Redescrições, ano 4, número 2

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1 Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013 Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana Ano IV, número 2, 2013 ISSN: 1984-7157

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Revista on line do Gt de Pragmatismo

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1 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano IV, número 2, 2013 ISSN: 1984-7157

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2 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157

Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)† Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ

Expediente

REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor adjunto: Frederico Graniço Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Ilustração da capa: "The Last of the Buffalo" de Albert Bierstadt (1830–1902)

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano IV, número 2, 2013

Sumário Editorial 5

Notas & Comentários

ROGER SCRUTON E A DENÚNCIA TARDIA DA MODERNIDADE OU SCRUTON VERSUS RORTY: crítica ao the great swindle - Paulo Ghiraldelli Jr

Artigos

O CARÁTER NÃO DEWEYANO DO “DEWEY HIPOTÉTICO” DE RORTY - Edna Maria Magalhães do Nascimento A INDUSTRIALIZAÇÃO DA VERDADE - Ronie Alexsandro Teles da Silveira UMA ANÁLISE DO “DISQUE DENÚNCIA” NA ROMÊNIA PÓS-COMUNISTA. - Cerasel Cuteanu

ASPECTOS DA EXPRESSÃO DAS ARTES CÔMICAS DA ERA CLÁSSICA - Fabio Mourilhe

Tradução

A ONTOLOGIA DA ARTE DE MASSA - Noël Carroll

Resenha

BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. -Resenha por Fernanda Siqueira Miguens

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Editorial

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EDITORIAL

Olá caro(a) leitor(a)! Apresentamos mais um número da Revista Redescrições.

As contribuições desta edição (Ano 4, Número 2) se pautam principalmente nas

relações entre modernidade e contemporaneidade; em aspectos como arte, filosofia,

ciência e cultura.

Abrindo a revista, debatendo sobre arte e filosofia, Paulo Ghiraldelli estuda a

crítica do conservador Roger Scruton à arte contemporânea de massa – o “kitsch”.

Segundo a análise de Scruton, essa arte fake seria resultado de uma cultura que

abandonou a contemplação ociosa para o estritamente “verdadeiro”, e cita alguns

filósofos que teriam contribuído com isso: como Marx, Foucault e Rorty. É nesse ponto

que Ghiraldelli desenvolve sua explanação, caracterizando a filosofia de Rorty no

intuito de mostrar que Scruton se engana ao relacionar a crítica de Rorty sobre a

filosofia moderna com o surgimento da arte fake. Pois nesse argumento o trabalho de

Rorty não deveria ser pensado a partir de seus resultados práticos, mas sim a partir de

suas reais motivações estritamente filosóficas ao tratar um problema do século XX.

Além disso, Ghiraldelli não vê o trabalho de Rorty endossando obras de arte com

“sentimentos rasos e falsos”.

Também pensando a modernidade e a contemporaneidade, o artigo de Ronie

Alexsandro (“A Industrialização da Verdade”), traz o foco da discussão para os efeitos

da industrialização agora sobre o próprio conhecimento e seu “processo de produção”.

O autor questiona a autocompreensão do cientista enquanto desenvolvendo uma

atividade de grande heroísmo espiritual. Ao longo de sua narrativa, Ronie torna ainda

mais claras as distinções entre uma perspectiva iluminista e uma pragmatista.

Por outro lado, Edna do Nascimento em seu artigo “O caráter não deweyano do

‘Dewey hipotético’ de Rorty”, trata a questão (que também vem na esteira da crítica

contemporânea à modernidade) da distinção entre a perspectiva científica e uma

perspectiva historicista. Talvez de modo não antagônico ao pensamento de Ronie, Edna

defende em Dewey um conceito de ciência coerente com seu historicismo. Para a

autora, Rorty exagera numa falsa dicotomia entre um Dewey “bom” historicista, e um

Dewey “mal” cientista.

No artigo de Cerasel Cuteanu encontramos uma análise do “disque denúncia”

na Romênia pós-comunista. O jornalista identifica uma dificuldade cultural no país em

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adotar essa tecnologia, muito por conta do caráter excessivamente político das

instituições – como por exemplo as universidades.

Finalizando a seção de artigos, Fabio Mourilhe aborda as artes cômicas na

modernidade, era “clássica” deste gênero. Procurando por relações e rupturas entre a

linguagem estabelecida nos séculos XVII e XVIII e a prática apresentada nas artes

cômicas. Fabio conclui apontando para um pioneirismo das artes cômicas, por não

buscarem encerrar o dito (no quadro) em palavras completamente representativas.

Contamos ainda, na seção de traduções, com o artigo de Noël Carroll sobre “A

Ontologia da Arte de Massa”, que dialoga com o texto de Ghiraldelli que abre a revista.

Noël Carroll, buscando a “ontologia da arte de massa”, faz minuciosa distinção entre a

“arte de massa”, a “arte popular” e a “arte de vanguarda”; referindo-as a contextos

históricos específicos e a condições e objetivos culturais distintos para cada uma.

E finalizando este número temos a resenha do livro “A Teoria dos incorporais

no estoicismo antigo” de Émile Bréhier. Segundo Fernanda Siqueira é um clássico

recentemente traduzido para o português, que trata da abordagem do estoicismo antigo

sobre os conceitos, criticando a abordagem deixada por Aristóteles. No estoicismo o

conceito deixa de ser algo já sempre prévio, e passa a ser visto como uma construção...

Deixa de ser ‘uno’ para se tornar ‘múltiplo’, como conclui Fernanda.

Frederico Graniço, editor adjunto.

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Notas & Comentários

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ROGER SCRUTON E A DENÚNCIA TARDIA DA MODERNIDADE

OU SCRUTON VERSUS RORTY: crítica ao the great swindle1

Paulo Ghiraldelli Jr2

1.

A arte e a cultura em geral devem cultuar a ‘originalidade’, têm de promover a

‘transgressão’ e, enfim, ‘abrir novos caminhos’. Há quem diga o contrário?

O filósofo conservador britânico Roger Scruton diz que isso tudo, hoje, tornou-

se cliché. O kitsch teria substituído a arte. A boa arte tinha como objetivo a

“autoconsciência da sociedade” e a emergência de “sentimentos profundos” a respeito

da realidade. O kitsch, por sua vez, nada é senão produto de uma cumplicidade entre

autor e consumidor (a “vítima”) buscando substituir a vida real. Tratar-se-ia de um

produto da “razão instrumental” destinado ao comércio e, assim sendo, substituiria os

“sentimentos verdadeiros”, aqueles oriundos da “alta cultura”, da “cultura verdadeira”.

Nossas instituições de ensino e de cultura deveriam continuar a trabalhar segundo o que

os alemães chamaram de Bildung, o cultivo do que se faz no caminho do que nos torna

cultos, a cultura. Mas essas instituições estão se desviando de tudo que é “verdadeiro” e

adotando para tudo “o falso”. Segundo os adjetivos de Scruton: true é substituído por

fake.

Scruton cita Aristóteles para dizer que a cultura depende de contemplação

advinda do ócio e remete a outros filósofos para dar base ao seu ataque à cultura do

kitsch, procurando manter uma distinção rígida entre “verdadeiro” e “falso”. Ecoa aí

certo kantismo conservador, típico de Scruton. Mas, mas de um modo geral, para saber

de crítica semelhante vinda de matrizes distintas, poderíamos abrir a internet e escutar

uma rádio do passado transmitindo falas de Theodor Adorno e Hanna Arendt. Estes, por

sua vez, ecoaram Nietzsche, isso sem contar uma enorme gama de pensadores de vários

calibres, descontentes com o progresso da civilização e desconfiados da aliança entre

1 Aeon Magazine, 2012

2 Paulo Ghiraldelli Jr., 55, filósofo, escritor e professor da UFRRJ. Contato: http://ghiraldelli.pro.br

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tecnologia e democracia de massas. Em outras palavras: salvo no estilo, a reclamação

de Scruton, ainda que tenha lá sua legitimidade, é daquelas que podemos considerar

como o que pouco tem de novidade. Já ouvimos isso durante bastante tempo e, em

alguns casos, como o de Arendt, de uma maneira mais sofisticada e mais arguta.

Todavia, não é isso que vejo como problemático em Scruton.

O que me incomoda na reclamação de Scruton é que o seu conservadorismo o

faz fustigar certos filósofos não por aquilo que eles merecem e, sim, pelo que não

fizeram. Três deles estão na mira de Scruton: Marx, Foucault e Rorty. Ele os culpa por

terem impulsionado a filosofia, de certo modo, a alimentar o “fake”, à medida que

criticaram a cultura em geral ou, de certo modo, a alta cultura. Segundo Scruton, a

“crítica da ideologia”, utilizada por Marx, buscou colocar a alta cultura como “cultura

burguesa”, atrelando-a a defeitos de classe, e então a destituindo de seu pretenso

universalismo e, portanto, de sua legitimidade. O modo de Foucault olhar as narrativas

em geral, ensinando todos a verem antes quem pronuncia o discurso do que

propriamente o seu conteúdo, fez da cultura sempre alguma coisa que é mecanismo de

poder, tornando-a também carente da legitimidade até então desfrutada. Por fim, Rorty,

ao destituir a própria consideração para com a verdade, tomando-a como o que é útil,

abriu definitivamente espaço para o falso.

Não creio que Scruton esteja errado no que disse de Marx e Foucault, ainda

que eu não o endosse no que talvez seja sua condenação a tais pensadores de um modo

mais totalizado que o necessário. Marx e Foucault falaram o que tinham de falar. Suas

críticas, apesar de datadas, nos deram dimensões da cultura que até então tínhamos

tocado apenas de modo leve. Mas, em relação a Rorty, ainda que Scruton não o chame

de pensador “fake”, mas de autor que favoreceu a hegemonia atual do “fake”, há uma

posição muito infeliz.

O próprio Rorty respondeu a críticos parecidos com Scruton. Um de seus

melhores textos veio de uma defesa assim, em resposta a uma crítica de Searle, quando

este disse que autores como Kuhn, Derrida, Foucault, Rorty e outros “pós-modernos”

foram os que causaram o fim da avaliação objetiva nas provas universitárias, e que

haviam ajudado na deterioração do ensino superior americano (esse texto de Rorty está,

entre outros lugares, no terceiro volume de seus Philosophical Papers, e há uma

tradução em português, pela Manole). Não vou repetir aqui os argumentos de Rorty a

Searle. Já fiz isso em outros lugares, no sentido de esclarecer situações confusas criadas

por textos parecidos com o de Scruton. Aqui, meu caminho será outro. Vou tentar

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mostrar que Scruton toma um Rorty culpado de algo que ele nunca fez. Vou procurar

mostrar, sem excesso de argumentos técnicos, que essa maneira de tomar Rorty como

um relativista banal caberia para um aluno qualquer de primeiro ano de ciências sociais

ou filosofia, ou daqueles professores com viseiras eternas, moldadas por partidos, mas

não a alguém do calibre de Scruton.

2.

Scruton acredita que Rorty (como Foucault e Marx) “fixou-se contra a verdade

objetiva”, “dando uma variedade de argumentos para pensar que a verdade é uma coisa

negociável, que o que importa no final é de que lado você está”. Scruton diz que esse

tipo de coisa abriu espaço para o que veio depois em favor de uma cultura de privilégio

do “fake”.

Ora, se Scruton reclama da verdade objetiva e ele próprio toma Rorty apenas

pelas consequências que outros tiraram de seus estudos, como quem quer acreditar que,

afinal, o kitsch foi legitimado por alguma coisa dita pelo filósofo pragmatista, ele está

abraçando o que denunciou. Um conservador como Scruton, preocupado com a verdade

objetiva, deveria ir menos pelos supostos efeitos e mais pelo que Rorty disse, vindo dos

seus livros, além disso, não deveria, sem uma pesquisa sociológica relativamente

quantitativa, pôr sobre os ombros de Rorty aquilo que venceu e se legitimou, talvez, por

outros mecanismos. Não vou tocar nesse segundo ponto, pois eu mesmo não tenho essa

sociologia nas mãos, embora não desconheça autores que evocariam outros elementos

para dizer o que Scruton disse, e não a obra de Rorty. Mas vou tocar, sim, no primeiro

ponto, discordando: Rorty não disse para as pessoas que a verdade não existe ou que a

verdade objetiva é pouca coisa ou não importa. Muito menos Rorty disse, em um

sentido banal, como Scruton coloca, que a verdade é algo negociável. Sempre esteve

longe de Rorty achar que “o que importa no final é de que lado você está”. Talvez fosse

mais correto dizer, para ser justo com Rorty, que a negociação em torno dos enunciados

que afirmamos como verdadeiros é uma prática da qual nenhum homem de ciência pode

fugir.

O que Rorty fez foi considerar algo que em geral os filósofos da cultura, ao

desprezarem certos aspectos técnicos que surgiram com a filosofia metafísica enquanto

associada à filosofia da linguagem, deixam de lado e, então, com facilidade deslizam

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para a crítica fácil dos que foram chamados, ao menos no final do século XX, de pós-

modernos. Destaco dois pontos. Em primeiro lugar, Rorty teve, ele próprio, de enfrentar

o problema da verdade enquanto um problema filosófico específico no século XX (neste

tópico 2). Em segundo lugar, Rorty teve de considerar, no campo específico da cultura

americana, o papel da religião e o modo como as igrejas utilizam o termo “verdade”

(tópico 3). Assim, não foi por uma idiossincrasia que Rorty escreveu o que escreveu a

respeito da verdade. Não foi como um militante que gostaria de ver a alta cultura se

deteriorar que Rorty se dedicou ao tema da verdade, se é que alguém que se dispusesse

a falar contra a verdade objetiva estivesse já de imediato criando caminhos para a

entrada da cultura “fake”.

A questão toda de Rorty quanto à verdade é uma que, no que concerne aos

limites que tenho aqui neste texto, pode ser posta da seguinte maneira: a noção de

verdade vinda da Teoria da Verdade como Correspondência está na berlinda (e escapar

dela optando pela noção de verdade que emerge da Teoria da Verdade como Coerência

não tem se mostrado algo sem críticas). Rorty nunca conseguiu esquecer sua formação

parcialmente analítica, em que tal questão importava muito – especialmente em filosofia

da ciência, um campo que para boa parte dos professores sempre esteve cruzado com a

filosofia analítica, principalmente nos Estados Unidos. Muito menos Rorty poderia

evitar seu apego à tradição americana que produziu a ele próprio, ou seja, o

pragmatismo de James e Dewey, que duelou com Russell exatamente nesse campo da

noção de verdade. Scruton não é alemão ou brasileiro ou francês. É britânico. Ele sabe

de tudo isso. O que o faz saltar tais coisas é o seu conservadorismo. Ele parece precisar,

por conta de sua posição na direita política, alinhar Marx, Foucault e Rorty, de modo a

dizer que foram tais plebeus que atacaram a alta cultura ao atacar a verdade e, portanto,

automaticamente, elevar o “fake”.

O certo é que quem ataca as noções tradicionais de verdade não

necessariamente eleva o “fake”. Nem mesmo dá caminho para tal. Esse tipo de

entendimento é o do senso comum, e Scruton não deveria assumi-lo assim tão

facilmente. O que Rorty fez ao ver que as noções tradicionais de verdade estavam na

berlinda, foi simplesmente apoiar a filosofia da linguagem, em suas soluções técnicas,

para escapar do problema. Ele tomou então, mais radicalmente, os trabalhos de Donald

Davidson, exatamente para saltar para fora das falhas das teorias tradicionais da verdade

e, ao mesmo tempo, não ter de suportar os que poderiam chamá-lo de relativista, de um

modo pouco qualificado.

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Qual o problema das noções tradicionais de verdade? Qual o problema

específico com a Teoria Correspondentista? Ora, o problema é que quando eu digo que

“O Pitoko está deitado no chão” (p), e ele, Pitoko, está deitado no chão, eu chamo a

sentença p de verdadeira, mas o que eu estou dizendo, quando me afasto da questão da

percepção (de questões psicológicas e de certo modo epistemológicas), quando fico

somente com a frase e a sua lógica, isso tudo ganha uma fórmula de enunciação que

parece não se sustentar. Ei-la:

S: “O Pitoko está deitado no chão” (p) é verdadeira se e somente se o Pitoko

está deitado no chão (p). Ou então:

S1: p é verdadeira se e somente se p, em que p é o que eu chamo de o fato

indicado por p.

Ora, mas o que é o fato? É algo não linguístico? O que é o fato senão aquilo

que se sabe a se ter “O Pitoko está deitado no chão”? Não há como dizer que p é outra

coisa que não p se estamos tratando de p como um enunciado verdadeiro. De modo que

dizer o verdadeiro é dizer o fato, mas ao perguntar o que é fato não conseguimos obter

outra coisa senão a resposta: é o que é verdadeiro. Assim, ao falarmos “fato” para

apontar para o não linguístico, para que este possa corresponder ao que é linguístico,

que é “O Pitoko está deitado no chão”, não estamos fazendo outra coisa senão

entrarmos em um círculo. Assim, a Teoria da Correspondência não explica o que é a

correspondência e o que é dizer a verdade. Sendo circular, dizer que essa teoria explica

algo é realmente desrespeitar a filosofia. Em filosofia como em ciência não temos o

costume de ouvir sem desconfiança as explicações circulares.

Desse modo, no linguajar comum, cansamos de usar da noção de

correspondência para pensar na verdade (ou, ao menos, em um primeiro momento,

assim nos parece), e isso parece funcionar, mas do ponto de vista filosófico, um simples

exercício – como este acima – diz que há anos estivemos caminhando no uso de alguma

coisa obscura. Rorty nunca falou para as pessoas pararem de usar essa noção de

verdade, mas, como filósofo, ele teve de levar a sério esse problema da Teoria da

Verdade como Correspondência, ou seja, dela ser uma explicação circular.

Outras teorias também trouxeram problemas. E então, Rorty resolveu usar de

seu pragmatismo para pensar a verdade de um modo em que os problemas filosóficos

tradicionais não aparecessem. Ele ouviu James e Dewey, como também o segundo

Wittgenstein e Davidson, para seguir a linguagem e, então, estudar não A Verdade, mas

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os usos do verdadeiro em nossa linguagem. O que Rorty viu foi que expressões como “é

verdade” ou “é verdadeiro”, do modo que a utilizamos, podem ser mantidas sem que

tenhamos de nos referir à noção de correspondência. Portanto, se a Teoria da Verdade

como Correspondência é falha, temos outra maneira de continuar usando “é verdade” se

descrevermos nossa linguagem de outra maneira. Pelos usos de “é verdade” ou “é

verdadeiro”, chegamos a situações em que a correspondência não precisa ser evocada.

Rorty colocou três situações que, segundo ele, cobrem todo o espectro em que o “é

verdadeiro” aparece e dispensa a correspondência. Esses são os três casos.

- Usamos “verdadeiro” para aplaudir alguém ou uma situação. Nesse caso,

falamos que algo é verdadeiro à medida que falaríamos que é bom ou nobre, ou útil, etc.

- Usamos “verdadeiro” para dizer coisas que foram endossadas por outros.

Nesse caso, falamos: “‘Tudo é água’ é verdadeiro para Tales, mas não para

Anaximandro. Ou então: “É verdade que ‘a escravidão é um crime’ para mim, mas meu

tataravô nunca a viu como um crime”.

- Usamos “verdadeiro” como sinal de advertência. Nesse caso, temos: “‘Os

cães foram domesticados por nós há muito tempo’ é verdadeiro para os biólogos, mas

não é verdadeiro para os antropólogos”.

Ora, dos três casos, só o terceiro parece trazer algum problema. Esse problema

é o seguinte: se digo “é verdadeiro” como alguma coisa que é uma advertência, há quem

fale que, neste momento, entra aí, sim, a noção de verdade objetiva associada à noção

de correspondência. Um dos filósofos que disse isso, contra Rorty, foi Habermas. Em

uma polêmica de mais de trinta anos, com vários textos trocados, Habermas sempre

insistiu que quem admoesta o outro com a verdade tem em mente uma noção de “é

verdadeiro” como algo que é atemporal e que serve para qualquer audiência. Assim, a

advertência só seria advertência porque quem a pronuncia não está colocando geografia

e história para medir o “é verdadeiro”, mas lidando com a noção de verdade no seu

sentido substancial e forte. Penso que as respostas de Rorty admitem essa consideração,

em parte. Mas só em parte! Porque tal pessoa, que faz tal coisa, não precisaria fazer

assim, ou seja, não precisaria estar pensando dessa maneira, como quem tem na mão

uma verdade universal e objetiva, e ainda assim a advertência continuaria válida.

Portanto, em termos de descrever a prática do usuário da linguagem, o uso da verdade

como advertência pode ser o uso de quem está dizendo algo desse tipo: “verdade, mas

não para os seres galácticos de Alfa Centauro”. Uma descrição assim manteria o uso,

sua validade e, enfim, evitaria a noção de correspondência, problemática em nível

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filosófico.

Não vejo aí, por conta da argumentação de Rorty, qualquer afirmação no

sentido de endossar o “mais vale o lado que se está”. Não vejo aí nada que abra espaço

para que o kitsch possa imperar na cultura. Não consigo entender no que é que uma

solução filosófica como esta estaria comprometendo Rorty com aqueles que promovem

obras de arte que não podem mais causar “sentimentos profundos e reais”. Menos ainda

vejo Rorty comprometido com os que pedem ousadia e tudo mais, mas como clichês.

Explico novamente a questão do uso de advertência.

Dizer coisas como “é verdadeiro aqui e agora, mas talvez não para lá e depois”

não é o mesmo que dizer “é verdadeiro aqui e agora, mas talvez não para qualquer lá e

qualquer depois”. A advertência é a seguinte: “olha meu camarada, o que você diz é

verdade mesmo, para o grupo que o escuta, sendo este o grupo em que você nasceu e o

grupo que é da sua geração”. Isso não é o mesmo que dizer o seguinte: “olha meu

camarada, o que você diz é verdade mesmo, mas única e exclusivamente para o grupo

no qual você nasceu e para as pessoas deste grupo da sua geração”. A advertência não é

uma que implique em tamanha particularização, em tão profunda restrição, algo que, no

seu oposto, acolhesse “a verdade universal é X, de modo algum a sua verdade, que é

necessariamente particular”.

Posso ser surpreendido por um grupo cultural em que homens de 55 anos

comem um animal que o meu grupo de homens de 55 anos considera sagrado. Então, eu

e pessoas do meu grupo avisamos os membros do grupo que nos surpreendeu que eles

estão fazendo algo que é um pecado. Dizemos para eles: “é verdade que comer esse

animal é um pecado”. Nós os advertimos. Nossa frase pode ser substituída por uma

outra forma de explícita advertência, sem perder qualquer função: “é verdade que comer

esse animal é um pecado para nós e para mulheres de nossa cultura, também com 55

anos”. Eles não precisam entender o nosso aviso como sendo um que traduziriam assim:

“é verdade que comer tal animal é pecado para esses dois grupos, mas nós podemos

continuar comendo tais animais porque esses dois grupos não são significativos em todo

o cosmos”. Não! Não precisamos ser interpretados assim. Podemos ser levados a sério.

Nossa advertência os fará pensar. Mesmo que só nós tenhamos aquele animal como

sagrado enquanto todo o resto do mundo come aquele animal sem qualquer culpa, nossa

advertência ainda estará válida para ser considerada para quem ela foi dirigida. A

advertência continua forte uma vez que a fizemos: “Olha, meu caro, você está em

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pecado, eu não, e não adianta você me desconsiderar e considerar todos os outros

grupos da Terra, porque ainda assim minha advertência está aqui, e você vai acabar

pensando sobre ela”. Não necessariamente quem usa o termo “verdadeiro” em um

contexto de advertência precisaria estar de posse de um sentido universal de verdade.

Essa exposição Scruton, como Searle no passado, parece não entender. Não sei

o quanto, no debate entre Habermas e Rorty, o primeiro cedeu ao segundo. O debate

entre eles não chega a evoluir para essa argumentação que eu detalhei no último

parágrafo, em que introduzo a minha explicação para alguém que viesse com a objeção

de Habermas a Rorty. Tudo indica que, nesse ponto, eles mantiveram essa divergência e

preferiram deslocar o debate para outros pontos. Talvez essa divergência de Habermas

para com Rorty é a que poderia estar na cabeça de Scruton, para que ele tivesse alguma

razão contra Rorty. Ele poderia simplesmente não estar interessado em raciocinar sobre

o assunto e, dessa maneira, não chegaria ao argumento que utilizei no parágrafo

anterior. Mas, pela minha argumentação aqui, penso que posições como as de Scruton e

Habermas, na indisposição contra Rorty, não precisam se manter.

Só os filósofos pensam em verdade objetiva e universal como a única verdade

forte o suficiente para fazer alguém considerar frases contendo “é verdadeiro” como

alguma coisa capaz de ser levada a sério. De modo algum as pessoas (tão inteligentes

quanto os filósofos), em seu cotidiano, tomam as coisas assim. Qualquer frase contendo

“é verdadeiro” é levada a sério, sim, se estiver sendo tomada em um dos três sentidos

apontados por Rorty, no seu mapeamento do uso cotidiano – o único uso que nos

interessa. E a frase de advertência também não precisa ter o “é verdade” ou o “é

verdadeiro” aludindo ao objetivo e universal para ser levada a sério. Nós a levamos a

sério porque se trata de uma advertência e que, então, forçará os mais curiosos, os mais

afeitos a pedir justificativas, a dizer: “mas do que está falando, explique mais”. Ou

assim: “vocês estão dizendo que o animal que comemos é sagrado e, portanto, que é

verdade que pecamos quando o comemos, mas o que os faz afirmar que ele é sagrado, o

que vocês sabem que nós não sabemos que os fazem falar isso desse animal?”

Dizer que se fizermos tal pergunta já estamos abrindo um caminho para que

venha tudo a ser “fake” e então ser desprestigiado, ou que com isso abrimos as porteiras

para o kitsch e para uma cultura que leva as pessoas a não terem mais a cultura como

autoconsciência é algo no mínimo exagerado. Scruton não é um exagerado no bom

sentido, no sentido weberiano. Ele força a barra.

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3.

O segundo ponto é quanto à religião. Nesse caso, Rorty entende que a maneira

técnica com a qual ele lida com o tema da verdade facilita sua exposição diante de

incômodos sociais, especialmente os que o fundamentalismo religioso põe e repõe.

A noção de verdade enquanto o que é sustentado pela Teoria da

Correspondência é uma noção dita substantiva, que em geral é facilmente inflacionada

metafisicamente. Ela corrobora certo isomorfismo. Uma situação em que linguagem e

mundo podem ser tomados como isomorfos, onde o gancho entre o linguístico e o não-

linguístico pode se dar por meio da correspondência, é um prato cheio para a metafísica.

O velho ideal grego de que o Logos do universo esteja também preso no peito do

homem, uma vez que este está no universo e parece ser predestinado a compreendê-lo,

nunca saiu da cabeça não só de filósofos antigos, mas também e talvez principalmente

dos medievais. Muitos modernos repetiram isso, depois, quando vieram a desenvolver a

ciência experimental e então viram na matemática aquilo que os medievais enxergaram

na lógica. “A natureza fala por meio da matemática” ou “Deus é um grande

matemático” foram frases que os modernos repetiram encantados, principalmente à

medida que a matemática lhes parecia uma expressão própria da razão finita. O eco do

Evangelho de João nunca foi desprezível: “no princípio era o Logos”. Deus criou o

mundo à medida que falava da Criação. Exercia a linguagem de modo que o mundo

nunca foi outra coisa senão a linguagem de Deus ou sua lógica ou, em termos mais

populares, algo com a regularidade captável pela matemática do homem. Assim, para os

intelectuais religiosos, nunca foi muito difícil imaginar que se chegamos a alguma

verdade em matemática – campo no qual o contingente e mutável parece não ter lugar –

poderíamos estar muito próximos do tipo de verdade que a religião espera ter em mãos:

a verdade objetiva e universal, o que equivale ao ponto metafísico, a pedra absoluta.

Esses passos deram a vários intelectuais o espaço para poder, somente com

metafísica, falar em “Verdade” antes que em “verdadeiro”, e assim fazer o nome

“Verdade”, ao indicar algo absoluto, se por como sinônimo de “Deus”. No campo

metafísico poder-se-ia dizer como o Mundo Realmente É, e tendo permissão para assim

se pronunciar tudo estaria aberto para o caminho de se ter aquilo que se não é Deus, é

seu produto direto mais próximo.

Poder deslocar a Teoria da Verdade como Correspondência e, ao mesmo tempo,

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17 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

fornecer uma descrição filosófica de como a verdade atua em nossa linguagem,

seguindo o rastro do uso, para Rorty, veio a se constituir em uma boa vitória. Deu-lhe

força para preferir narrativas iluministas, deixando as narrativas metafísicas e religiosas

para outros.

Ora, será que foi essa a parte do discurso rortiano que, então, teria incomodado

Scruton, diferentemente do que incomodou Searle ou Habermas? Eu até poderia dizer

que sim, uma vez que Searle ou Habermas teriam ficado em divergência com Rorty

quanto às questões técnicas já aludidas, não quanto à posição de Rorty diante da

religião, enquanto que o conservadorismo de Scruton o deslocaria para um tipo de

divergência diferente. Mas Scruton, neste artigo analisado, não vai adiante. Ele limita

sua questão ao elo entre desprestígio da verdade objetiva e prestígio do “fake”, e deste

prestígio último para o enaltecimento do kitsch como ponto de chegada da cultura

“fake”.

O artigo de Scruton discorre sobre efeitos de uma cultura “fake” e ele,

realmente, anuncia algo interessante. Ele lembra que os modernistas fizeram o que

fizeram – a arte de tipo Warhol – como alguma coisa consciente, e isso teve seu valor

humano, mas que repetir isso, como se repete agora, integrado ao processo de venda, é o

“fake”. Ora, posso concordar com isso. Mas as bases sobre as quais ele põe sua crítica,

chamando Marx, Foucault e principalmente Rorty para que eles possam ser culpados

pelo que eles não tiveram culpa, isso é obra exclusiva do conservadorismo de Scruton.

Ele deveria deixar de lado essa necessidade de ser de direita em tudo, e pensar

que gente da classe social dele talvez tenha, por meio de financiamentos muito mal

direcionados e através do Estado privatizado em favor do lixo cultural, contribuído

muito mais decisivamente para que a cultura atual tenha abocanhado mais coisa ruim do

que o necessário em cada lugar. Caso ele fosse por essa via, ele se surpreenderia em

encontrar mais culpa das coisas estarem como estão entre aqueles que ele imagina que,

por estarem próximo a ele, estão em defesa da alta cultura. Às vezes, tenho a impressão

que não estão.

A democracia de massas e todo o processo de democratização e popularização

que passamos entre os séculos XIX e XXI podem ter uma enorme responsabilidade pelo

que Scruton detecta que ocorre no coração humano, na curtição do fake, digamos assim.

Todavia, dizer que os teóricos não conservadores – Marx, Foucault e Rorty à frente – ao

descreverem esses processos deram guarida ao que ocorreu de ruim nesses mesmos

processos é, a meu ver, um escorregão. No caso de Marx e Foucault, um escorregão

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18 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

com justificativas, talvez a “crítica da ideologia” e a “teoria do poder” de ambos,

respectivamente, tenha feito ataques não alvissareiros às bases de legitimidade da

cultura. Quanto a Rorty, não poderia dizer o mesmo.

O pragmatismo, ao caminhar pela estrada da desinflação das teorias de

verdade, nunca me pareceu ser um voluntarioso membro de um partido de uma

“revolução cultural” contra a alta cultura. O pragmatismo me parece, ao fazer o que fez

e faz, inclusive e principalmente com Rorty, um produto natural do período que

Nietzsche qualificou como o pós-positivismo, a época em que não temos mais que ser

crentes ou ateus, justamente porque “Deus está morto”. Quando James e Wittgenstein

nos abriram caminho para lidarmos com a verdade a partir do uso, que foi o que Rorty

seguiu (e o que eu mesmo sigo), a questão entre verdade e falsidade não poderia mais

estar posta de modo dramático como foram postas coisas como Deus-Verdade versus

Ateísmo-Falsidade. O pragmatismo me parece, principalmente com Rorty, uma filosofia

dos tempos em que não só o Mundo Real foi destruído, mas também, com o Mundo

Real, o Mundo Aparente nos deixou. O pragmatismo é uma filosofia que nos permite ler

Platão novamente, sem ter de combatê-lo. Ler Platão se tornou agora, pela primeira vez,

uma tarefa não partidária. Scruton está com um pé demais num mundo que parece já ter

passado.

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Artigos

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O CARÁTER NÃO DEWEYANO DO “DEWEY HIPOTÉTICO” DE

RORTY

Edna Maria Magalhães do Nascimento

1

RESUMO O artigo é uma crítica a estratégia rortyana de cindir Dewey em dois: um Dewey “bom”

e um Dewey “mau”. Nele, sustentaremos uma interpretação que articula as duas

dimensões da filosofia deweyana: a historicista e a cientista. Nessa perspectiva,

apresentaremos nossas objeções tanto à hipótese de um Dewey unicamente historicista e

antifundacionista quanto à de um Dewey unicamente cientista, como a maioria dos

críticos de Rorty termina concluindo, caindo na estratégia rortyana. Levaremos em

conta também algumas propostas de comentadores favoráveis a Rorty, que procuram

atenuar essa divisão, alegando a existência de um Dewey “concentrado” e outro

“diluído”. De acordo com nossa interpretação, consideramos tais propostas como

estratégias oriundas da mesma fonte, ou seja, da tentativa de “atualizar” Dewey para

adaptá-lo ao quadro conceitual neopragmatista. Considerando as divisões desses autores

que colocam, de um lado, um Dewey “bom”, ou “jamesiano”, ou “diluído” e, de outro,

um Dewey “mau” ou peirciano ou concentrado, nos colocamos a favor de um único

Dewey historicista e cientista ao mesmo tempo.

Palavras chave: Dewey, Rorty, pragmatismo, neopragmatismo, ciência.

ABSTRACT

The article is a critique of Rorty's strategy of split Dewey in two: a “nice” one and a

“bad” one. In it, we will maintain an interpretation that links the two dimensions

Dewey's philosophy: the historicist and scientist. In this perspective, we present our

objections to both the hypothesis of a historicist and antifundacionist Dewey, such as to

a scientist Dewey only, like most critics of Rorty concludes, falling in rortyan’s strategy.

We will take into account also some comments in favor of Rorty, who tries to mitigate

this division, alleging the existence of a Dewey "concentrated" and a "diluted" one.

According to our interpretation, we consider such proposals as strategies derived from

the same source, which means, the attempt to "update" Dewey to adapt it to the

conceptual framework neopragmatist. Considering the division made by some authors

between a“good”, “jamesian”, or “thin” Dewey, and in the other side a “bad”,

“peircean”, or “thick” Dewey, we favor in our interpretation a unique historicist and

scientist Dewey.

Keywords: Dewey, Rorty, Pragmatism, neo-pragmatism, science

1 Doutorado em Filosofia(UFMG).Professora da Universidade federal do Piauí- UFPI, do Departamento

de Fundamentos da Educação – DEFE/CCE. Email: [email protected]

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21 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

1. O “Dewey hipotético” de Rorty não é uma boa hipótese

Ao construir sua hipótese interpretativa sobre Dewey, Rorty atribui a nosso

autor duas personalidades conflitantes: O Dewey “bom” e o Dewey “mau”. Rorty não

considera adequado que Dewey reconstrua conceitos da filosofia tradicional como

ciência, natureza, experiência e método. Ele pensa que se Dewey tivesse abandonado

tais projetos estéreis poderia ter criado argumentos mais persuasivos e adequados contra

a tradição filosófica. No entanto, conforme Rorty, Dewey não abandonou esses projetos.

Esse é o “Dewey mau” que Rorty reprova. Mesmo assim, ele não se cansa de elogiar um

suposto “Dewey bom”, que foi crítico da evidência, do fundacionismo e dos dualismos.

Na sua tentativa de “linguisticizar” Dewey, Rorty quer demonstrar que o

“jovem Dewey” foi o Dewey “mau” que tentou seguir Locke e Hegel e ainda

permaneceu no kantismo. Assim, atribui ao “velho Dewey” uma mudança de atitude

que seria mais coerente com a sua doutrina: a realização de estudos sócio culturais sobre

os problemas filosóficos em seus contextos específicos. Mas não nos parece adequada a

hipótese de que haja um “primeiro” e um “segundo” Dewey. Não nos parece que, ao

final de sua carreira, Dewey tenha desejado mudar de assunto e abandonar a sua

metafísica em sentido atenuado. Aquilo a que ele se dispôs foi discutir se as palavras

não-técnicas poderiam ser utilizadas de modo frutífero no discurso filosófico. Ao

contrário de Whitehead, que desenvolve um novo vocabulário para expressar suas

idéias, ou, pelo menos, muda radicalmente o uso ordinário das palavras para adequá-las

às suas necessidades, Dewey, pelo menos até seus últimos anos, tenta limitar-se ao uso

da linguagem comum

A estratégia interpretativa de Rorty não é aceita por nós porque desfigura a

obra do pragmatista clássico, considerando que deve ser aceita apenas a dimensão

historicista de seu pensamento. A sua dimensão cientificizante deve ser rejeitada,

especialmente a principal categoria da filosofia de John Dewey, que é a experiência.

Rorty escreve que a contribuição que Dewey ofereceu ao pensamento filosófico foi a de

ser crítico da tradição. Desse modo, a pretensão deweyana de oferecer uma metafísica,

caracterizada pela descrição da realidade e pela descoberta dos traços gerais da mesma,

a fim de iluminar as pesquisas e investigações futuras, foi rejeitada por Rorty.

Deixando de lado parte significativa da obra de nosso autor, Rorty acredita que

o Dewey “bom” pode levar a filosofia à “idade de ouro”. Isso corresponderia a sair da

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22 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

metafísica da experiência, segundo o modelo kantiano, e passar para uma fase de análise

do desenvolvimento cultural, segundo o modelo hegeliano. Para atingir esse objetivo,

Rorty faz uma desleitura da obra de Dewey que tenta mostrar a prevalência da dimensão

historicista sobre a dimensão cientista do pragmatista clássico. Sem dúvida, Dewey se

opõe à ideia de uma filosofia única, fundamentadora do conhecimento. Rorty acredita

que, por causa disso, não há lugar para uma metafísica empírica na obra de Dewey, mas

sim para um tratamento terapêutico da tradição.

Pretendemos sugerir que, ao elogiar seu herói filosófico, Rorty fala de si

mesmo. A criação do Dewey “bom” é um pretexto de Rorty para nele encontrar a

inspiração fundamental para a construção do conceito de intelectual ironista. A

influência historicista de Dewey aponta tanto na direção de uma interdisciplinaridade

que falta à filosofia clássica como na direção de uma contextualidade fundamental ao

pragmatismo. Pensamos que Rorty concorda com Dewey quando este último declara

que a filosofia cumprirá sua função quando o significado das ciências sociais e das artes

tiver tornado objeto de atenção crítica da mesma maneira que as ciências matemáticas e

físicas e quando sua importância for compreendida. Certamente Rorty também

concordaria com Dewey quanto a sua defesa do processo de humanização da ciência2.

Rorty aceita a interdisciplinaridade e a contextualidade do pragmatismo deweyano. No

entanto, parece cair em contradição ao não aceitar que a concepção de ciência em

Dewey tenha essas características.

2. Avaliando a posição de Lavine e Rorty

Começaremos a nossa discussão avaliando a posição de Lavine3, para quem, é

a concepção do método científico que separa Dewey de Rorty. Diferentemente do que

declara essa autora, pensamos que o que distingue Rorty de Dewey não é o método

científico, mas a articulação dialética entre a dimensão científica e a dimensão histórica,

que está presente em Dewey e não está em Rorty. Esse último fica apenas com a

dimensão histórica e termina recusando a dimensão científica. A recusa dessa última por

Rorty, que a reduz a um vocabulário contingente, o leva ao antifundacionismo. Em

2 DEWEY, John. Experience and Nature. New York: Dover Publications, Inc., 1958, p. 164.

3 LAVINE, Thelma Z. America and The Contestations of Modernity: Bently, Dewey, Rorty. In: Rorty &

Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University

Press, 1995.

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23 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

contraposição, Dewey, em sua filosofia naturalista, recusa o fundacionismo porque as

interações causais entre seres vivos e o ambiente não exigem um fundamento último.

Mas Lavine tem razão quando diz que, para Dewey, a ciência e a democracia não se

dissolvem no processo histórico. Elas mudam de acordo com as interações causais

mencionadas4.

Lavine afirma também que Dewey está influenciado pela modernidade ao

associar o historicismo e o cientismo. Pensamos que ela tem razão no caso da

modernidade, pois a dimensão histórica em Dewey está ligada ao Contra-iluminismo,

do mesmo modo que a dimensão científica nesse mesmo autor está ligada ao

Iluminismo. Lavine acerta também em sua descrição das diferenças entre o historicismo

de Rorty e o de Dewey. A descrição que Lavine faz do historicismo de Dewey coincide

com a que decorre de nossa interpretação e não precisa ser discutida aqui. A descrição

que ela faz do historicismo de Rorty é adequada, porque o vocabulário em Rorty

corresponde de maneira bastante aproximada à ideia de jogo de linguagem em

Wittgenstein. Em ambos os casos, a contingência histórica do meio circundante é

destacada, embora a expressão usada por Wittgenstein seja mais adequada que a de

Rorty, uma vez que entendemos que vocabulário se refere a uma lista estática de

palavras, enquanto jogo de linguagem se refere a uma atividade social.

Na continuação de seu argumento, Lavine acerta também quando diz que Rorty

não escapa ao dilema da modernidade, ao adotar a distinção entre público e privado, a

qual reflete a oposição entre iluminismo e contra-iluminismo. Isso ilustra não só a

inevitabilidade da oposição para os intelectuais contemporâneos, mas também uma

inconsistência em Rorty, já que ele acaba por assumir a distinção entre público e

privado, que está baseada na oposição entre iluminismo e contra-iluminismo, que ele

rejeita. Com isso, Rorty acaba propondo a tarefa impossível de tentar atingir os

objetivos do pai Dewey, mas sem utilizar as ferramentas propostas por esse último.

Ao responder as críticas de Lavine, Rorty admite a possibilidade de um

conhecimento objetivo, sem realismo, sem representação e sem correspondência5. Ele

identifica tal conhecimento com as práticas sociais e com o acordo intersubjetivo6.

Portanto, Dewey está certo se método científico for considerado sinônimo de práticas

sociais das comunidades democráticas. Para Rorty, Lavine diz que Dewey sacralizou o

4 Ibidem, pp. 47-48.

5 RORTY, Richard, “Response to Lavine”. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to

His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995, p. 50 6 Ibidem, pp. 51-52.

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método científico e o processo democrático, mas isso poderia reduzir-se a sacralizou o

processo democrático, sem perda de conteúdo. Para Rorty, Dewey não é claro sobre o

que significa método científico7. Como justificativa para isso, Rorty afirma que, para

cada citação de Lavine ilustrando o realismo deweyano, ele pode oferecer outra

passagem ilustrando o anti-representacionismo deweyano. Rorty reconhece não saber

como resolver essa questão exegética, pois ele e Lavine estão construindo cada um o

seu Dewey respectivo. Rorty admite a existência de uma relação edípica entre ele e

Dewey, como acusa Lavine, mas acha que, se ele, Rorty, tivesse feito uma distinção

mais cuidadosa entre o “bom” e o “mau” Dewey, Lavine não poderia levantar essa

questão. Rorty reconhece que de fato está “desmetodologizando” e “linguistificando”

Dewey. Conforme Rorty, isso não significa descaracterizá-lo, mas apenas promover

uma atualização de Dewey, a qual foge da letra dos seus textos, mas não do seu

espírito8.

Em resposta à réplica de Rorty a Lavine, temos a dizer o que segue. Para

admitir um conhecimento ao mesmo tempo objetivo, sem realismo, sem representação e

sem correspondência, Rorty está deixando entrar pela porta dos fundos aquilo que

expulsou pela porta da frente. Com efeito, a dimensão científica em Dewey, que garante

a objetividade desse conhecimento, foi explicitamente expulsa por Rorty em nome do

historicismo, que elimina o caráter realista, representacionista e correspondentista desse

conhecimento. Mas, ao apelar para a objetividade das práticas sociais das comunidades

democráticas, Rorty está admitindo implicitamente alguma coisa semelhante à

experiência deweyana, com sua dialética das interações entre os seres vivos e o

ambiente.

3. Avaliando a posição de Rorty em sua resposta a Lavine

Pensamos que Rorty está certo ao enfatizar a imprecisão do conceito de método

científico em Dewey. Mas nosso autor não foi claro em relação ao conceito de método

científico pelas mesmas razões por que não foi claro em relação ao conceito de

experiência: não há como ser preciso quando se busca caracterizar os traços gerais da

existência humana. Em se tratando de realidades historicamente contingentes, o máximo

7 Ibidem, p. 51.

8 Ibidem, p. 53.

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25 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

que pode ser feito é fornecer uma ideia geral dos processos envolvidos, tanto no caso da

experiência como no caso do método científico. Nessa perspectiva, o que Dewey

escreveu em sua Lógica é suficiente para os seus objetivos: ele está dando os traços

gerais dos diversos tipos de interação entre seres vivos e o ambiente, os quais são

capazes de levar a algum conhecimento objetivo. Além disso, a exigência de precisão

conceitual em Dewey não condiz com postura do próprio Rorty quando está

argumentando, pois o neopragmatista, enquanto ironista, está muito mais próximo da

imprecisão do que gostaria de reconhecer.

Quando Rorty reconhece que não sabe como resolver a questão exegética entre

ele e Lavine, está ignorando o fato de ser possível encontrar tanto passagens realistas

quanto anti-representacionistas em Dewey aponta claramente na direção de uma

interpretação que reúna esses dois aspectos de maneira consistente em Dewey, ao invés

de forçar a uma escolha entre um ou outro. Nessa perspectiva, nem Rorty nem Lavine

estão certos, mas sim uma combinação das interpretações de ambos.

Na sua resposta a Lavine, Rorty reconhece ter uma relação edípica com Dewey,

o que é bom. Mas sua resposta a Lavine não é satisfatória. Pensamos que, quanto mais

ele trabalhasse a distinção entre o Dewey “bom” e o “mau”, mais ele estaria se

distanciando do pensamento de Dewey, que envolve essas duas dimensões de maneira

indissolúvel. Agindo desse modo, Rorty não conseguiria imunizar-se, mas estaria

abrindo mais ainda o flanco para a objeção de Lavine.

Finalmente, Rorty reconhece que, com a “desmetodologização” e a

“linguistificação” de Dewey, ele está “atualizando” Dewey. Isso também é bom. Mas a

questão é: com essa “atualização”, Rorty foge não só da letra, mas também do espírito

da filosofia de Dewey. Com efeito, a divisão de Dewey em dois temperamentos opostos

e a opção por um deles em detrimento do outro simplesmente deforma de maneira

irrecuperável a filosofia de Dewey. Ela passa a ser um historicismo sem critérios de

objetividade: isso poderia agradar a Rorty, mas certamente não agradaria a Dewey.

4. Avaliando a posição de Gouinlock e Rorty

Passemos agora à discussão da posição de Gouinlock, para quem Rorty se

inspira na tese da incomensurabilidade da tradução ao alegar que o conhecimento

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objetivo é impossível9. Pensamos que Gouinlock está certo ao dizer isso. Com efeito,

essa tese torna contingentes os enunciados das teorias científicas, permitindo que elas

sejam colocadas em pé de igualdade com outros gêneros literários, o que faz parte do

projeto de Rorty. Guinlock também está certo ao dizer que, com essa posição, Rorty

acredita poder livrar-se das acusações de relativismo e de incomensurabilidade porque

esses conceitos pressupõem que afirmações opostas são incomensuráveis ou relativas

em relação a algum critério. Já que os critérios pertencem à epistemologia e ela deve ser

abandonada, esses conceitos problemáticos também devem ser abandonados10

. Com

efeito, a estratégia de Rorty é a de simplesmente propor uma troca de vocabulário

através da qual a epistemologia e seus problemas seriam deixados de lado em benefício

de uma conversação mais voltada para a visão de mundo neopragmatista. Entretanto,

Gouinlock peca ao aceitar a divisão de Dewey em dois temperamentos, um “bom” e

outro “mau”. Isso não só deforma a filosofia de Dewey, mas também torna mais fácil a

argumentação de Rorty no sentido de defender a opção por um Dewey “bom” em

detrimento de um Dewey “mau”.

Gouinlock distribui seus argumentos contra Rorty com base naquilo que ele

considera os cinco mal entendidos do neopragmatista em relação a Dewey. O primeiro

desses mal entendidos tem a ver com o método. Ao contrário de Rorty, Gouinlock

afirma que Dewey não foi além do método, mas simplesmente o considera fundamental

para a raça humana. Pensamos que Gouinlock está certo ao apontar esse mal entendido

rortyano, pois o objetivo central da filosofia de Dewey é de fato a extensão do método a

todas as áreas de conduta humana. E achamos conveniente lembrar aqui que essa

extensão só pode ser feita em termos bastante gerais, e não específicos, como quer

Rorty.

O segundo dos mal entendidos está ligado à teoria correspondentista. Pensamos

que Gouinlock está certo ao reconhecer uma dimensão correspondentista na filosofia de

Dewey, mas achamos oportuno observar que o realismo e o correspondentismo de

Dewey, pressupostos pela existência de uma situação problemática inicial e pelo fato de

que nossas ideias são antecipações do futuro, nada têm a ver com o realismo e o

correspondentismo tradicionais. Realismo aqui significa que, nas interações com o

99

RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton: Princeton University Press,

1979(cap. VI). 10

GOUINLOCK, James, “What The Legacy instrumentalism? Rorty’s Interpretation of Dewey”. In.

Saatkamp Jr., H. J. (ed.). Rorty and pragmatism. The philosopher responds to his critics. Nashville

and London: Vanderbilt Un Press, 1995, p. 74.

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27 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

ambiente, os objetos surgem como alteridades que confirmam ou falsificam nossos

testes. Correspondentismo significa aqui simplesmente que o modelo de conduta

proposto hipoteticamente para um dado objeto funcionou. Esse modelo não constitui

uma “cópia” do objeto em sentido tradicional. Portanto, o sentido de representação e de

correspondência em Dewey não pode ser o mesmo das filosofias clássicas. Trata-se de

uma leitura errada que Rorty faz da filosofia deweyana. De acordo com Gouinlock, com

quem concordamos, o próprio processo de investigação é inseparável da manipulação e

organização de eventos e seu propósito é produzir o objeto completo. Com essa

caracterização, certamente, a investigação de Dewey não pode ser redutível à

conversação11

.

Quanto ao mal entendido rortyano em relação à concepção de ciência,

Gouinlock também está certo quando afirma que em Dewey a ciência nos fornece o

conhecimento das potencialidades da natureza sob condições definidas. Mas convém

reiterar que o conhecimento científico para Dewey é falível e autocorretivo. Isso

significa que Dewey tenta retratar mais os traços gerais do método científico do que

propriamente os traços gerais do conhecimento científico, já que o primeiro leva ao

segundo.

Passando ao mal entendido rortyano relativo à linguagem, podemos dizer que

ela é de fato função das nossas interações com o ambiente. A linguagem faz parte da

nossa experiência, mas não de toda a nossa experiência, e não pode, portanto, ser

identificada com essa última. A linguagem é uma ferramenta para lidar com o ambiente.

Ao tentar ver em Dewey a tese de que a linguagem é a própria realidade em que

vivemos, Rorty está projetando equivocadamente sua perspectiva sobre a de Dewey. Se

a linguagem é a realidade em que vivemos, então tudo é conversação e nada poderá ser

estabelecido com um mínimo de objetividade. Rorty está revelando aqui o seu idealismo

linguístico, que será discutido na seção sobre a sua queda inadvertida numa metafísica

da cultura. Outro ponto importante a ser considerado aqui está no fato de que, ao ver a

linguagem como jogo de linguagem, Rorty parece estar confirmando a tese de

Wittgenstein sobre a forma de vida: isso é assim porque agimos assim. A única maneira

de escapar ao relativismo implícito nessa afirmação é supor que a expressão “agimos

assim” pressupõe exatamente aquilo que Rorty quer negar em Dewey, a saber, os

procedimentos de formação de hipóteses e seus respectivos testes empíricos para a

11

Ibidem, pp. 74-78

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28 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

resolução de situações problemáticas.

Finalmente, no que diz respeito ao mal entendido rortyano sobre a metafísica

naturalista de Dewey, acreditamos que Gouinlock está certo ao dizer que esse é o

problema principal da discussão. Gouinlock caracteriza adequadamente a metafísica

deweyana ao descrevê-la como uma tentativa de caracterizar o contexto inclusivo da

existência humana para que possamos funcionar com eficiência no interior desse mesmo

contexto. Ora, isso significa que Dewey não tem a intenção de estabelecer uma matriz

neutra e permanente para toda investigação futura, pois isso iria contra o próprio espírito

da sua concepção básica de experiência como interação dialética entre os seres vivos e o

ambiente. A experiência possui caráter histórico e contingente, sendo portanto mutável.

Desse modo, ela jamais poderia ser apresentada como uma “matriz neutra e

permanente” para toda investigação futura. Com efeito, a tarefa de apresentar os traços

gerais da existência humana envolve também a elaboração de uma hipótese sobre essa

mesma existência, hipótese essa que deverá ser verificada através da interação com

novas experiências, as quais gerarão uma nova hipótese e assim por diante. Temos aqui

uma metafísica contingente e falibilista que poderá ser alterada de acordo com as

necessidades das experiências futuras. A noção de uma “matriz neutra e permanente”

não cabe aqui.

Em sua resposta às críticas de Gouinlock, Rorty afirma que Dewey também

quer se comprometer com a “esperança social sem fundamento”. O que conta aqui é a

energia e a inteligência dos que lutam por ela12

. Mas Gouinlock pode estar opondo essa

“esperança social sem fundamento” a um “compromisso alcançado através do método

científico”. Aqui, a divergência entre Rorty e Gouinlock pode ser apenas sobre a

utilidade da noção de método. Rorty a considera sem utilidade. A expressão método da

inteligência crítica poderia ser substituída apenas por inteligência crítica, expressão que

significa ser experimental, não-dogmático, inventivo e imaginativo, deixando de buscar

a certeza. Quando Dewey liga as expressões método da e inteligência crítica, ele está

tentando fazer contraste com o método a priori, dedutivo. Dewey, conforme Rorty,

insistiu em usar a noção vazia de método porque queria que a filosofia deixasse de

oferecer um corpo de conhecimento, embora ainda oferecesse alguma coisa. E para ele

isso é o método. Mas essa foi uma escolha infeliz, pois prometia mais do que podia

12

RORTY, Richard. “Response to Gouinlock”. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds

to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995, p. 91

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29 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

oferecer: prometia algo positivo, ao invés de simplesmente advertir negativamente para

não ficarmos presos na armadilha do passado. Seria possível isolar na obra de Dewey

algo suficientemente amplo para ser “extensível a todos os problemas da conduta” e

também suficientemente estrito para ter “propriedades formais”? Em outras palavras:

seria possível isolar nessa obra algo suficientemente genérico para ser o método da

democracia e da ciência e ao mesmo tempo específico o bastante para ser contrastados

com outros métodos efetivamente utilizados pelas pessoas? Rorty pensa que não13

.

Rorty argumenta que método científico é um nome para um terreno

intermediário não encontrável entre um conjunto de hábitos virtuosos e um conjunto de

técnicas concretas, passíveis de serem ensinadas14

. Embora Gouinlock diga que Dewey

caracterizou o método científico com detalhe em The Quest for Certainty, Rorty

afirma não ter encontrado essa caracterização detalhada naquele livro. Ele declara que

tudo o que conseguimos ali é a polêmica padrão de Dewey, repetida sem cessar contra

os dualismos epistemológicos e metafísicos. O único conselho positivo que obtemos é o

de sermos reflexivos, mas determinados, abertos, mas disciplinados, tolerantes, mas

discriminados, ousados, mas não tanto, imaginativos, mas não selvagens. Seria um

desrespeito à memória de Dewey admitir que, quando ele começa a falar sobre método,

ele soa como Polônio?15

Ao afirmar que Dewey foi “além do método”, Rorty quis dizer que Dewey

desistiu da ideia de que é possível extrair algumas regras a partir daquilo que os

cientistas naturais estão fazendo e aplicá-las a outras áreas da cultura, a fim de

modificar essas mesmas áreas. Desse modo, aquilo que Gouinlock chama de

“racionalidade como traço de caráter” nunca corresponderá a um conjunto de

algoritmos, mas sim a algum análogo epistêmico da phronesis aristotélica. Embora

nunca parasse de falar sobre o método científico, Dewey nunca teve qualquer coisa útil

para oferecer a respeito dele. A não ser que seja possível mostrar algum trecho de

Dewey indicando o que ele realmente pensava do “método”16

.

Rorty afirma quer Gouinlock o acusa de ser incapaz de distinguir os melhores

dos piores métodos de investigação ou de ser incapaz de falar do progresso do

conhecimento, mesmo na ciência. Se as duas acusações fossem corretas, então Rorty

estaria muito longe de Dewey. Mas pelo menos a segunda acusação é falsa. Rorty segue

13

Ibidem, p. 92 14

Ibidem, p. 93 15

Personagem do Hamlet de Shakespeare, descrito como “um velho idiota e tedioso”. 16

Ibidem, p. 94

Page 30: Redescrições, ano 4, número 2

30 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Kunh no conceito de progresso do conhecimento na ciência, definindo-o como

capacidade crescente de conseguir o que queremos a partir da ciência. Uma das coisas

que queremos é a capacidade de explicar por que a ciência passada estava certa ou

errada. Se isso não for progresso do conhecimento também para Gouinlock, então ele

tem de mostrar que a expressão solução de problemas possui sentidos diferentes em

Kuhn e em Dewey. Ora, ele não poderia fazer isso. Kuhn e Dewey estão juntos ao

argumentar que a esperança dos positivistas de substituir a phronesis por regras é

irrealizável17

.

Mas Rorty reconhece que há um sentido em que Gouinlock está certo ao dizer

que o seu neopragmatismo não pode distinguir os melhores dos piores métodos de

investigação. Isso é assim porque Rorty tem dificuldade em encontrar um princípio de

individuação para “métodos”. Esse termo é ambíguo, referindo-se a algo tão geral como

os quatro métodos de fixação da crença em Peirce e a algo tão específico como usar

magnetômetros – instrumentos científicos usados para medir campos magnéticos no

ambiente circundante – e não varinhas de rabdomancia – varinhas não muito científicas

que são apontadas para o solo a fim de descobrir água. Rorty prefere abandonar o termo

método e usar: a) prática social para descrever o que Peirce quer e b) técnica para

descrever o uso adequado de magnetômetros. As práticas sociais que determinavam o

que era “racional” ou “irracional” eram diferentes nas tribos primitivas, nas salas de

aula medievais e nos laboratórios do século XIX. Mas nenhum desses três tipos de

prática social é redutível a regras e nenhum deles parece adequadamente descrito pelo

termo método18

. Em síntese, Rorty acha que Feyerabend estava justificado em se

colocar “contra o método” porque não há nada mais filosoficamente profundo ou

interessante a ser dito contra o vudu, ou a astrologia, ou a autoridade papal, do que dizer

que essas técnicas não parecem ter-nos levado para onde esperávamos. Depois de

termos elaborado a analogia rala entre abandonar a astrologia pela astronomia e

abandonar o feudalismo pela democracia, Rorty não pensa que seja útil a sugestão de

que observemos mais de perto o que os cientistas fazem para conceber o que o resto da

cultura deveria fazer19

.

Rorty ainda afirma que Gouinlock o acusa de ter perdido um ponto crucial da

teoria do conhecimento de Dewey: para produzir objetos de percepção e de

17

Ibidem, p. 95. 18

Ibidem, p. 95. 19

Ibidem, p. 96.

Page 31: Redescrições, ano 4, número 2

31 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

conhecimento adequados às peculiaridades de uma situação problemática, é preciso

empreender alguma forma de reorientação intencional com relação às condições

perturbadoras. Rorty pensa que Dewey tirou essa ideia da Fenomenologia do Espírito

de Hegel e que ela foi reafirmada muito bem na polêmica de Sellars contra o “mito do

dado”20

. Rorty acrescenta que, em diversos artigos, ele tenta ampliar a crítica de Sellars,

argumentando que, se compreendemos a relação causal entre a aquisição de crenças e o

ambiente em torno daquele que tem a crença, não precisamos nos perguntar a respeito

de relações representacionais. Para Rorty, uma explicação causal e não-

representacionista dos estados intencionais nos dá todas as razões para afirmar que as

propriedades reais dos objetos estão registradas na linguagem, mesmo depois de termos

negado que essas propriedades estejam representadas na linguagem. Elas estão

registradas no sentido de que se os objetos não tivessem essas propriedades, não

estaríamos provavelmente dizendo o que dizemos ou acreditando no que acreditamos.

Para Rorty, a maneira mais eficiente de dispensar as questões sobre a representação é

interpretar a expressão registro das propriedades reais do objeto como significando

causado pelas propriedades reais do objeto e capaz de causar mudanças nessas

propriedades. Com isso, estaríamos trocando uma explicação representacionista da

crença por uma explicação causal da crença. Graças à substituição da “experiência” pela

conduta linguística, a teoria de Davidson parece a Rorty superior à de Dewey21

.

Para Rorty, a distinção de Dewey entre realismo e idealismo simplesmente não

funcionou no sentido de que seus colegas filósofos acharam impossível conceber o que

Dewey queria dizer ao afirmar que os objetos de conhecimento mudam no curso da

investigação. Por causa disso, Rorty pensa que devemos abandonar a noção de “objeto

de investigação”. Isso ficará mais fácil se assumirmos a virada linguística e

substituirmos a metafísica pela semântica. Rorty pensa que Gouinlock condenaria esse

procedimento em virtude de suas suspeitas para com a teoria dos jogos de linguagem.

Todavia, a descrição que Gouinlock oferece para essa teoria faz Rorty parar para pensar.

Gouinlock afirma que essa teoria nega que a linguagem seja uma função da atividade

compartilhada com um ambiente. Rorty afirma não ser capaz de imaginar um filósofo

da linguagem que algum dia tenha negado isso22

.

Ao final de sua resposta a Gouinlock, Rorty afirma que Dewey algumas vezes

20

Ibidem, p. 96. 21

Ibidem, p. 97. 22

Ibidem, p. 98.

Page 32: Redescrições, ano 4, número 2

32 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

rejeitou questões e terminologias. Rorty gostaria que Dewey tivesse feito isso mais

vezes. Infelizmente, Dewey empregou diversas vezes a técnica alternativa de conferir

sentidos novos e enigmáticos a palavras como objeto, experiência, natureza e

correspondência. Dewey infelizmente perdeu a oportunidade de dizer algo como

esqueça a ‘correspondência’ para dizer eis algo que você poderia significar por

‘correspondência’, mesmo que esse significado não tenha nada a ver com o significado

usado por aqueles que se preocupa em saber se a verdade consiste em correspondência

ou não23

.

5. Avaliando a posição de Rorty em sua resposta a Gouinlock

Em nossa avaliação da resposta de Rorty, pensamos que o início da sua

discussão com Gouinlock mostra a diferença crucial entre Dewey e Rorty: a questão do

método científico. Mas essa questão tem duas faces. Em primeiro lugar, ela parece ser

apenas uma questão de terminologia. Nessa perspectiva, Rorty reconhece que Dewey

não está usando a expressão método científico em seu sentido tradicional. Em Dewey,

essa expressão se refere ao processo de aprendizagem e conhecimento a partir da

dialética das interações entre seres vivos e ambiente. Esse processo se baseia em

interações causais que levam à construção de hipóteses a serem testadas e encontra sua

melhor expressão nas atividades dos cientistas da natureza. Mas temos de reiterar que a

descrição de tal processo só pode ser feita em termos genéricos, como acontece, p. ex.,

em The Quest for Certainty [A busca por certeza]. Em virtude disso, Rorty se

equivoca ao exigir uma formulação específica para o processo em questão.

Do ponto de vista terminológico, Rorty tem alguma razão ao afirmar que

Dewey poderia ter apresentado sua filosofia sem utilizar expressões como método

científico, experiência, objeto, etc. Mas isso não significa que essas expressões sejam

meramente descartáveis, pois o que Dewey pretende significar com elas ainda constitui

parte essencial de sua filosofia. A fim de evitar a prolixidade decorrente dos

circunlóquios necessários para se referir aos significados pretendidos sem usar as

expressões mencionadas, Dewey teria forçosamente de adotar uma nova terminologia,

coisa que ele preferiu não fazer, para salvaguardar a possibilidade de diálogo com seus

contemporâneos. Afinal de contas, apesar de adotar um novo sentido para o termo

23

Ibidem, p. 99.

Page 33: Redescrições, ano 4, número 2

33 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

experiência, p. ex., ele ainda estava se referindo a algo próximo da experiência em

sentido tradicional. Coisa semelhante acontece com o próprio Rorty, que usa termos

como filosofia, conversação, ironia, etnocentrismo, etc., em sentido diferente do

tradicional. Isso significa que ele também poderia ter apresentado sua filosofia sem

utilizar esses termos. Mas aqui também essas expressões não seriam meramente

descartáveis, pois aquilo que Rorty pretende significar com elas ainda constitui parte

essencial de sua filosofia. Para evitar a prolixidade dos circunlóquios, Rorty teria de

adotar uma nova terminologia, coisa que ele não fez, para salvaguardar a possibilidade

de diálogo com seus contemporâneos. Afinal de contas, apesar de adotar um novo

sentido para conversação, p. ex., Rorty ainda está se referindo a algo próximo da

conversação em sentido tradicional. Assim, a conclusão aqui seria que podemos aplicar

ao próprio Rorty aquilo que ele aplicou a Dewey através da seguinte paráfrase: Rorty

infelizmente perdeu a oportunidade de dizer esqueça a ‘conversação’ para dizer eis algo

que você poderia significar por ‘conversação’, mesmo que esse significado não tenha

nada a ver com o significado usado por aqueles que se preocupam em saber se a

filosofia consiste em conversação ou não.

Outro ponto importante na questão terminológica é saber se o termo método

corresponde efetivamente a uma noção vazia. Rorty afirma que Dewey promete com ela

mais do que podia oferecer. Isso não é verdade, pois Dewey não concebe método de

maneira meramente negativa, como uma advertência para não cairmos nas armadilhas

do passado. Para Dewey, o método tem claramente uma dimensão positiva que decorre

das interações causais com o ambiente. Como já afirmamos antes, esse lado positivo só

pode ser descrito em termos genéricos, de modo que não se coloca a exigência de Rorty

no sentido de que essa descrição deve envolver tanto uma parte geral, extensível a todos

os problemas da conduta, como uma parte específica, ligada às propriedades formais.

Desse modo, na avaliação da filosofia de Dewey, parece inadequada a oposição

estabelecida por Rorty entre a idéia de que seja possível algo suficientemente genérico

para ser o método da democracia e da ciência e ao mesmo tempo específico o bastante

para ser contrastado com outros métodos. Na verdade, a filosofia de Dewey defende a

possibilidade de algo suficientemente genérico para ser o método da democracia e da

ciência e ao mesmo tempo suficientemente específico para ser contrastado com outros

métodos. A noção de solução de problemas com base em conjeturas e testes é geral o

suficiente para ser aplicada a todos os setores da conduta humana e se torna específica o

suficiente quando seus princípios gerais são adaptados a setores determinados da

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34 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

cultura. Isso mostra que o dualismo proposto por Rorty não se coloca no caso de

Dewey.

Desse modo, ao dizer que Dewey vai “além do método”, significando com isso

que ele desistiu da possibilidade de extrair regras a partir do trabalho dos cientistas

naturais para aplicá-las a outras áreas da cultura, Rorty está oferecendo uma

interpretação simplesmente falsa. Dewey e Kunh não estão juntos ao defender a tese de

que a esperança dos positivistas de substituir a phronesis por regras é irrealizável.

Diferentemente de Rorty, depois de elaborar a analogia – não rala – entre abandonar a

astrologia pela astronomia e abandonar o feudalismo pela democracia, Dewey pensa que

é útil a sugestão de observar mais de perto o que os cientistas fazem para conceber o

que o resto da cultura deveria fazer. Ao falar do método, Dewey não soa como Polônio.

Vimos também que Rorty afirma ter dificuldade em encontrar um princípio de

individuação para “métodos”. Por causa disso, ele propõe prática social para se referir a

instâncias do método filosófico e técnica para aplicações metodológicas específicas no

caso das ciências naturais. Mas Rorty se refere apenas a Peirce, quando fala no método

filosófico. O que fazer então com outras instâncias do método filosófico, como, p. ex., o

método transcendental, o método fenomenológico, o método hermenêutico ou o próprio

método analítico? Eles não se distinguem uns dos outros e devem ser misturados no

terreno comum das práticas sociais? Tudo indica que não. No campo da filosofia, esses

procedimentos podem referir-se, diferentemente do que pensa Rorty, simultaneamente a

algo geral a algo específico, embora a parte específica não seja comparável ao uso de

magnetômetros. É verdade que todos envolvem algo geral, mas podem ser aplicados a

domínios específicos com técnicas específicas. Como sabemos, a aplicação do método

fenomenológico pode ser feita a domínios específicos, pois ela envolve técnicas de

análise que diferem bastante claramente daquelas decorrentes da aplicação do método

analítico a um domínio específico. Subsumir tudo isso no conceito de prática social

seria filosoficamente confuso e inadequado, porque na verdade estamos lidando com

instâncias do método filosófico, as quais podem ser identificadas a partir de princípios

de individuação cuja existência Rorty insiste em ignorar. Assim, embora as práticas

sociais que determinavam o que era “racional” ou “irracional” fossem diferentes nas

sociedades primitivas, nas salas de aula medievais e nos laboratórios do século XIX,

não podemos esquecer que, do ponto de vista filosófico, tais práticas envolviam

métodos diferentes que eram aplicados a situações diferentes. Deixando de lado as

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35 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

comunidades primitivas e os laboratórios científicos para simplificar a discussão,

podemos dizer que os métodos filosóficos usados nas salas de aula medievais não só

eram diferentes daqueles usados pelos filósofos do século XIX, mas que também

podiam ser identificados em cada uma dessas épocas como instâncias de práticas sociais

mais abrangentes.

A discussão sobre o método parece ser uma questão substantiva, no sentido de

envolver concepções diferentes de objetividade em Dewey e Rorty. Aqui, Gouinlock

tem razão ao dizer que Rorty é incapaz de distinguir os melhores dos piores métodos de

investigação, em que pesem os argumentos de Rorty em contrário. A discussão anterior

mostra que a posição de Rorty implica que ele não quer ter ou não tem condições de

distinguir o método fenomenológico do analítico, que não passam de práticas sociais, e

por esse motivo não sabe ou não quer dizer qual deles é o melhor. Até mesmo sua

recusa das técnicas vudus e astrológicas não é convincente, pois o argumento de que

elas não parecem ter-nos levado para onde esperávamos não encontrará repercussão

naqueles que nelas acreditam.

Na verdade, o apelo à conversação, ao etnocentrismo, ao ironismo e à

contingência dificilmente fornecerá algum critério adequado para distinguirmos os

melhores dos piores métodos. E dizer que a teoria dos jogos de linguagem envolve

interações com o ambiente não resolve o problema, pois Rorty não oferece qualquer

caracterização de como essas mesmas interações podem levar a algum critério de

objetividade. Dizer que a busca de critérios é caudatária da epistemologia que Rorty

quer descartar também não resolve o problema, pois Rorty certamente teve de usar

algum argumento e, portanto, algum critério racional para defender a superioridade da

conversação sobre a epistemologia e a superioridade da desmetodologização e da

linguistificação de Dewey sobre a interpretação tradicional de Dewey. Rorty não oferece

elemento algum em seus textos que possa garantir de maneira objetiva a sua afirmação

de que a teoria davidsoniana, ao substituir “experiência” por “conduta linguística”,

parece superior à de Dewey.

6. John Hartmann e a defesa de Rorty

Com o objetivo de tornar a discussão mais rica, selecionamos também dois

autores que se posicionam mais favoravelmente em relação à apropriação rortyana de

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36 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Dewey, para também avaliar aqui suas ideias: John Hartmann e Alexander Kremer.

Começaremos pela posição do primeiro, que será inicialmente apresentada para depois

ser discutida.

Para Hartmann, embora as diferenças entre Dewey e Rorty sobre o status da

metafísica sejam provavelmente irreconciliáveis, a reivindicação rortyana de um Dewey

“diluído” pode ser vista como consistente ao menos com o espírito da obra de Dewey24

.

Hartmann acredita que o ponto principal da diferença entre Dewey e Rorty está

nas atitudes de cada um em relação à metafísica. Para entendermos melhor essa

distinção, Hartmann argumenta que é preciso considerar o comentário de Lyotard sobre

a morte da metanarrativa. Hartmann recorre a Larry Hickman, para quem, se

entendemos Lyotard como anunciando a morte de toda metafísica sistemática que alega

explicar toda a realidade, então tanto Dewey como Rorty são pensadores pós-modernos,

uma vez que ambos negam a eficácia da metafísica ocidental tradicional. Entretanto, se

entendermos Lyotard como afirmando que qualquer metanarrativa é ilegítima e mal

orientada, o que torna qualquer metafísica ilegítima e mal orientada, então apenas Rorty

é um pensador pós-moderno. Com efeito, essa segunda leitura de Lyotard é inteiramente

consistente com a discussão de Rorty sobre a contingência da linguagem, com sua

rejeição da viabilidade da metafísica e com sua valorização do ironismo liberal. Mas

essa mesma leitura é decididamente inconsistente tanto com a reconstrução da

metafísica proposta por Dewey em Experience and Nature quanto com o papel central

desempenhado pela sua metafísica naturalista em seus diversos esforços

reconstrutivos25

.

Hartmann pensa que, nessa perspectiva, qualquer leitura simpática à

apropriação rortyana do legado deweyano seria fadada ao fracasso. Mas a questão que

se colocada nesse ponto para Hartmann é a seguinte: precisamos de fato de um Dewey

“concentrado” para fazer justiça ao seu projeto educacional e social, ou essa tarefa

poderia ser cumprida por um Dewey “diluído”? Hartmann pensa que, pelo menos do

ponto de vista da posição rortyana, o projeto de Dewey não sofre praticamente nada

quando é lido de maneira “diluída”. Hartmann tenta justificar isso comparando Dewey e

24

HARTMANN, John. Dewey and Rorty: Pragmatism and Postmodernism. Presented at:

Collaborations Conference, SIUC, March 20-21, 2003, p.1. Disponível em

<http://mypage.siu.edu/hartmajr/pdf/jh_collab03.pdf>. Acesso em 10 de maio de 2012. 25

Ibidem, p.2.

Page 37: Redescrições, ano 4, número 2

37 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Rorty em dois pontos interrelacionados: o método e a esperança social26

.

Quanto à discussão sobre o método, Hartmann se refere ao texto de Gouinlock

What is the legacy of instrumentalism? Rorty’s interpretation of Dewey, por nós já

discutido, e afirma que ali Gouinlock destaca as diferenças entre instrumentalismo de

Dewey e o ironismo de Rorty, ou seja, entre o Dewey “concentrado” e o Dewey

“diluído”27

. Depois de discutir os argumentos de Gouinlock e a resposta de Rorty,

Hartmann conclui que nada do que Rorty diz em relação ao seu retrato do ironista é

inconsistente com o Dewey “diluído” que emerge da rejeição da sua metafísica da

experiência. Uma vez que relativizemos o método deweyano, de tal modo que possamos

reconhecer o papel fundamental desempenhado pelos paradigmas kuhnianos no interior

do pensamento reflexivo, a importância crítica das tendências reformistas de Dewey, a

sua reconstrução histórica e sociológica da tradição podem ser claramente vistas. Longe

de rejeitar a conexão estabelecida por Dewey entre o método científico e o método de

investigação, como acusa Gouinlock, o neopragmatismo pós-moderno de Rorty pode

abraçar a tendência de Dewey em direção ao cientismo como fundamentalmente viável

em relação ao contexto específico em que Dewey escreve e em que vivemos.

Entretanto, nada justifica a valorização da ciência para além da ideia de que a

consideramos útil. Embora o método científico, tomado como modelo de investigação

bem sucedida, forneça os fins que consideramos úteis e os objetos que realmente

funcionam, não se segue daí que os usuários de outros vocabulários sejam menos

racionais na busca de fins diferentes28

. É nesse sentido que Dewey é visto por Rorty

como estando “além do método”. Embora o Dewey que está além do método seja um

Dewey “diluído”, não é evidente que Dewey sofra alguma perda aqui, ainda que

minimamente, em termos da tarefa realizada pelo seu pensamento29

.

No que concerne ao debate sobre a esperança social, Hartmann coloca a

seguinte questão: pode o ironismo fornecer os meios para uma reconstrução positiva da

democracia oferecida pelo pensamento de Dewey?30

Será que Rorty pode oferecer isso a

partir de uma posição que seja coerente com a de Dewey? Esse não é um assunto pouco

importante e muitos comentadores se colocaram contra Rorty neste ponto. Certamente

podemos garantir que Rorty não satisfaz à conexão íntima que Dewey faz entre sua

26

Ibidem, p.3. 27

Ibidem, p.3. 28

Ibidem, p. 8. 29

Ibidem, p. 9. 30

Ibidem, p. 9.

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38 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

metafísica e as possibilidades de progresso democrático. Mas isso não significa que a

esperança social sem fundamento de Rorty não possa ser conciliada com a posição de

Dewey. Hartmann pensa que a relativização do programa de Dewey para o progresso

democrático não exige que abandonemos os seus ideais nem seu potencial para o

progresso efetivo e a transformação social. Com efeito, Rorty acredita que uma crença

ainda pode regular a nossa ação e ser considerada valiosa a ponto de morrermos por ela,

embora seja causada por nada mais profundo do que circunstâncias históricas

contingentes31

. Mesmo nesse caso, não ficamos despojados dos imperativos morais que

Dewey extrai de sua fundamentação metafísica da democracia e do progresso

democrático. A historicização dos ideais democráticos de Dewey não diminui o seu

poder nem sua capacidade de persuadir32

.

7. Avaliando a posição de Hartmann

Em resposta a Hartmann, temos a dizer o que se segue. É verdade que a

filosofia de Dewey pode levar o leitor menos atento à impressão de que há uma tensão

irreconciliável entre o cientismo e o historicismo. Rorty parece encontrar-se nessa

situação em sua leitura de Dewey e por causa disso se aproveita para dividir Dewey em

duas pessoas ou dois temperamentos opostos, fazendo a seguir uma opção por aquele

Dewey que mais se ajusta aos seus próprios interesses. No debate que se seguiu,

diversos autores acompanharam Rorty nessa estratégia um tanto discutível. Em virtude

disso, as divisões desses autores colocam, de um lado, um Dewey “bom”, ou

“jamesiano”, ou “diluído” e, de outro, um Dewey “mau”, ou “peirciano”, ou

“concentrado”. Mas achamos conveniente lembrar que uma leitura mais atenta dos

textos de Dewey revela que a tensão apontada no seu pensamento na realidade faz parte

de uma visão unificada, em que os elementos opostos se complementam dialeticamente.

Nessa perspectiva, qualquer tentativa de dividir Dewey em duas pessoas ou dois

temperamentos é, de início, equivocada e só serve para dar força sub-repticiamente aos

argumentos de Rorty. Se nossa interpretação da filosofia deweyana estiver correta, então

um Dewey diluído não é Dewey, mas sim outro pensador.

Pensamos que o Dewey hipotético de Rorty nada mais é do que uma invenção

31

Ibidem, p.10. 32

Ibidem, p. 11.

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39 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

retórica com o objetivo de estabelecer raízes autenticamente norte-americanas para as

extravagâncias relativistas do neopragmatismo. Com esse procedimento, Rorty está

tentando tornar suas ideias controversas mais palatáveis à comunidade filosófica norte-

americana em particular e à comunidade filosófica mundial em geral. Mas Rorty está

fazendo com seu conceito de Dewey hipotético o mesmo que acusa Dewey de estar

fazendo com o conceito de experiência e poderia ser assim parafraseado: Rorty

infelizmente perdeu a oportunidade de dizer esqueça Dewey para dizer eis algo que

você poderia significar por ‘Dewey’, mesmo que esse significado não tenha nada a ver

com o significado usado por aqueles que se preocupam em saber em que consiste a

filosofia de Dewey. Em outras palavras, Rorty poderia ter dito tudo o que quis dizer sem

ter de usar a expressão Dewey hipotético. Ao invés de inventar essa personagem

imaginária, Rorty poderia ter dito simplesmente que se inspira em alguns dos ideais de

Dewey, mas não todos. Não é preciso recorrer a um “Dewey bom”, como faz Rorty, ou

a um “Dewey diluído”, como faz Hartmann, ou dizer que são “fusões de horizontes”

como faz Kremer para dizer essas coisas de maneira mais simples e menos confusa. Isso

inclusive deixaria mais claras as reais intenções de Rorty, sem ter de recorrer ao

apadrinhamento de Dewey.

Acreditamos também que Hartmann não está certo nem ao dizer que o ponto

crucial da diferença entre Dewey e Rorty está na atitude em relação à metafísica nem ao

distinguir as posições desses dois autores através do comentário de Lyotard a respeito da

morte da metanarrativa. É verdade que, se entendermos o pós-modernismo de Lyotard

como anunciando a morte de toda metafísica sistemática, então certamente Dewey e

Rorty são filósofos pós-modernos. Se, porém, entendermos o pós-modernismo de

Lyotard como anunciando a morte de toda e qualquer metafísica, então Dewey e Rorty –

e não somente Dewey – deixam de ser filósofos pós-modernos. Com efeito, a

consistência que Hartmann vê entre essa segunda leitura do comentário de Lyotard e a

posição rortyana é apenas aparente. Pretendemos mostrar na próxima seção desse

capítulo que Rorty também adota uma postura metafísica, ainda que atenuada, de

maneira análoga a Dewey.

Desse modo, ao contrário do que pensa Hartmann, a segunda leitura do

comentário de Lyotard é decididamente inconsistente com o papel desempenhado por

uma metafísica da cultura implícita que perpassa os escritos de Rorty. Isso significa que

o pensamento de Rorty se aproxima mais do Dewey “concentrado” do que do “diluído”

e que Hartmann está certo ao ver uma ligação entre Dewey e Rorty, mas por motivos

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40 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

errados. O que está presente em Rorty não é o projeto educacional e social de um

Dewey “diluído”, mas sim o do Dewey “concentrado”, cuja tendência metafísica é

partilhada por Rorty. É como se o próprio Rorty tentasse apresentar um retrato “diluído”

de si mesmo, sem perceber que por trás dessa imagem se esconde o verdadeiro Rorty,

um Rorty tão “concentrado” quanto o Dewey “concentrado”. Assim, ao contrário do que

diz Hartmann, nada do que Rorty diz em relação ao ironista é inconsistente com o

Dewey “concentrado”, em virtude da sua inadvertida adoção de uma metafísica

implícita. Essas afirmações serão justificadas no momento oportuno.

Se nossa interpretação está correta, então a diferença entre Dewey e Rorty se

encontra muito mais na concepção do cientificismo do que na concepção de metafísica.

Na verdade, é a metafísica subjacente a cada um deles que conduz a concepções

diferentes da atividade científica. Assim, embora ambos os autores possam abraçar,

como diz Hartmann, a tendência cientificista como fundamentalmente viável em relação

ao contexto contemporâneo, somente Rorty valoriza a ciência com base apenas na ideia

de que a consideramos útil. Dewey vê muito mais do que isso na ciência: para ele, ela

surge como o padrão mais sofisticado das relações de aprendizado e conhecimento que

decorrem das interações dos seres vivos com o ambiente. Rorty não faz isso, perdendo

assim uma fonte confiável para a elaboração de instrumentos capazes de garantir a

objetividade. Nessa perspectiva, Rorty está certamente além do método, mas não

Dewey. Estamos nos referindo, é claro, ao Dewey “concentrado”, já que o “diluído” não

passa de uma invenção de Rorty e seus seguidores.

Isso se reflete na discussão da esperança social. Com efeito, sem instrumentos

capazes de garantir minimamente algum tipo de objetividade, o ironismo, ao contrário

do que pensa Hartmann, não pode fornecer os meios para a reconstrução positiva da

democracia de acordo com a proposta de Dewey. O máximo que o ironismo pode

oferecer é uma conversação sem fim, sem conclusão, que pode, a qualquer momento,

trocar aleatoriamente os ideais de Dewey por outros. Aquilo que Hartmann chama de

“relativização” e de “historicização” do programa de Dewey nada mais é do que um

primeiro passo nessa direção. Mas isso não quer dizer que Dewey não reconheça que

seu programa seja determinado por contingências históricas. A diferença entre Rorty e

Dewey está em que o primeiro, sem caracterizar adequadamente as condições para a

objetividade, fica na conversação pela conversação, sem um guia efetivo para ação,

enquanto o segundo, ao caracterizar as condições para a objetividade, vai além da

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41 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

conversação, fornecendo um guia mais efetivo para a ação. Dominado pelo paradigma

da conversação, o ironismo não tem como oferecer instrumentos eficazes para a ação

efetiva. A historicização dos ideais democráticos de Dewey, da maneira pela qual é

realizada por Rorty, certamente diminui o seu poder e a sua capacidade de persuadir.

8. Alexander Kremer e a defesa de Rorty

Passemos agora à posição de Kremer, que será também, como no caso de

Hartmann, inicialmente apresentada e depois discutida. Este autor pensa que Rorty se

apropria de um modo especial da filosofia de Dewey, através de uma fusão de

horizontes. Conforme Kremer, Rorty sabe, a partir das hermenêuticas de Heidegger e

Gadamer, que é impossível dar uma interpretação fiel da filosofia de Dewey, no sentido

de uma interpretação objetiva. Todas as pessoas compreendem e interpretam não

somente a filosofia de Dewey, mas tudo o mais exclusivamente a partir de seus

respectivos horizontes de significado. Nesse sentido, a compreensão e a interpretação

sempre envolvem uma fusão de horizontes33

.

Nesse caso, como resultado da fusão de horizontes, um novo horizonte nasceu

sob a forma do pragmatismo de Rorty. Temos de observar que ocorreu aqui uma fusão

de horizontes em um sentido muito mais amplo, porque Rorty fundiu não apenas o

horizonte de Dewey com o seu, mas também aqueles de Peirce, James, Whitman,

Goodman, Putnam, Davidson, Wittgenstein, Heidegger, Gadamer, Foucault, Habermas,

Derrida, etc34

.

Kremer prossegue seu argumento afirmando que Rorty reconhece haver muitos

traços úteis na filosofia de Dewey, mesmo depois dos desenvolvimentos proporcionados

pelos autores mencionados. Essa é a razão pela qual ele distingue o que está vivo e o

que está morto em Dewey35

. Kremer considera que a situação apresentada por Rorty é

semelhante à do período pós-hegeliano, em que o sistema filosófico de Hegel já não

poderia sobreviver, com exceção do seu historicismo36

. Kremer pensa que Dewey é

importante para Rorty à luz dos recentes resultados da filosofia analítica, ou antes, da

33

KREMER, Alexander. Dewey and Rorty, in Americana E-Journal of American Studies in

Hungary, vol III, n.2, fall 2007. Disponível em <http://americanaejournal.hu/vol3no2/kremer>. Acesso

em 01/05/2012, p. 6. 34

Ibidem, pp. 6-7. 35

Ibidem, p. 7. 36

Ibidem, p. 8.

Page 42: Redescrições, ano 4, número 2

42 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

filosofia continental. Isso significa que Rorty enfatiza as diferenças e os aspectos

positivos da filosofia de Dewey com base nos últimos resultados do desenvolvimento

filosófico do século XX. Desse modo, se alguém pretende criticar a interpretação

rortyana de Dewey e seu contexto, esse alguém tem de levar em conta o contexto

filosófico do século XX37

.

9. Avaliando a posição de Kremer

Em nossa avaliação da posição de Kremer, consideramos que o seu apelo a

Heidegger e Gadamer para justificar a interpretação rortyana de Dewey, nos termos em

que está colocado, apresentam-se excessivamente relativista. Com efeito, parece que

“vale tudo” no processo de interpretação. Isso até certo ponto explicaria por que Rorty

optou pela interpretação dual de Dewey: ao assumir a perspectiva de que não há uma

interpretação definitiva da filosofia de um autor, ele pode ter-se aproveitado disso para

implementar sua estratégia retórica de ligar o neopragmatismo à tradição do

pragmatismo norte-americano pela via do Dewey “bom”. Mas convém lembrar que os

horizontes de significado envolvidos na presente discussão sempre têm alguma coisa em

comum e que isso constitui uma base para separarmos as “boas” das “más”

interpretações. E uma interpretação que divide Dewey em “dois” filósofos, dos quais

apenas um é “bom”, certamente será reconhecida pela maioria da comunidade filosófica

como inferior a uma interpretação que procure articular os “dois” filósofos num só,

obtendo uma perspectiva de conjunto mais coerente. A superioridade da segunda

interpretação fica reforçada quando nos lembramos de que o Dewey dual poderia

corresponder a um artifício retórico e que a discussão, nos termos em que foi colocada

por Rorty, parece ser ociosa.

Em que pesem as observações acima, Kremer tem razão ao dizer que a crítica

da interpretação rortyana de Dewey exige que levemos em conta o contexto filosófico

do século XX. Com efeito, se esse contexto não for levado em conta, estaríamos

isolando o pensamento de Rorty e o de Dewey de seus respectivos ambientes históricos,

o que não seria recomendável, já que correríamos o risco de perder elementos

importantes para a discussão nesse processo.

Mas Kremer exagera ao dizer que há uma semelhança entre a situação

37

Ibidem, p. 8.

Page 43: Redescrições, ano 4, número 2

43 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

apresentada pela interpretação de Rorty e aquela apresentada pelo período pós-

hegeliano. No caso de Hegel, uma parte mais fantasiosa de seu sistema já se encontrava

superada, embora a sua abordagem historicista ainda se revelasse promissora. No caso

de Dewey, o cerne de seu sistema, representado pela sua metafísica empírica, ainda nos

parece bastante atual, principalmente no que diz respeito à concepção de experiência

como resultado das interações entre os seres vivos e seus respectivos ambientes. Assim,

a “desatualização” de Dewey não nos parece depender do cerne de seu sistema, mas sim

do fato de que, depois de sua morte, outros problemas e temas foram acrescentados à

discussão por seus sucessores. A consideração do contexto, tal como sugerida por

Kremer, poderia mostrar-nos os acréscimos feitos pela filosofia analítica e continental

no período pós-deweyano. É verdade que isso poderia sugerir que alguma parte da

filosofia de Dewey está morta e que alguma parte dela ainda está viva. Mas a adesão a

essa hipótese seria equivocada e somente poderia decorrer de uma leitura menos atenta

de Dewey. Essa leitura nos levaria à estratégia de Rorty, que consiste na construção

artificial de um Dewey hipotético “desatualizado” que estaria necessitando de uma

“atualização”. Dado o caráter ainda atual da proposta deweyana, não consideramos que

isso seja recomendável. Além de levar a uma discussão ociosa, essa postura tende a criar

confusão desnecessária e a reforçar o perigo de um relativismo sem limites.

10. Considerações Finais

A partir da discussão acima, vemos que o equívoco da interpretação de Rorty

está em sua recusa a reconhecer o fato de que só há um único Dewey, que é historicista

e cientista simultaneamente. Em virtude disso, procuramos deixar claro que Rorty, ao

defender a noção de um Dewey dividido em dois temperamentos, está adotando uma

estratégia retórica que deforma o pensamento do Dewey original e cria outro, favorável

ao neopragmatismo por ligá-lo à tradição pragmatista norte-americana clássica. A

tentativa de separar um Dewey “bom” ou “jamesiano” de um Dewey “mau” ou

“peirciano” perde de vista o caráter complementar dessas duas dimensões da filosofia

deweyana. O apelo a um Dewey “diluído”, em oposição a um Dewey “concentrado”,

como faz Hartmann ou um Dewey que representa uma fusão de horizontes como

escreve Kremer, também não resolve o problema.

Assim, colocamo-nos contra a apropriação rortyana do pensamento de Dewey

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44 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

e, para finalizar, apresentamos a seguinte questão: Rorty estaria ele mesmo imune às

críticas que faz a Dewey? Pretendemos mostrar em trabalhos futuros que a resposta a

essa pergunta é não. Isso nos permitirá sustentar que Rorty é deweyano não porque

evitou a “metafísica empírica”, mas porque elaborou inadvertidamente, de acordo com o

espírito de seu herói pragmatista clássico, uma "metafísica da cultura" escamoteada

através da filosofia da conversação, cujo modelo e realidade última a ser considera é a

cultura38

.

REFERÊNCIAS

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introduction by the Author. Boston: The Beacon Press, 1957.

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38

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46 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

A INDUSTRIALIZAÇÃO DA VERDADE

Ronie Alexsandro Teles da Silveira

RESUMO Os cientistas possuem uma autoimagem heróica sobre si mesmos e seu trabalho de

investigação. Entretanto, pode-se observar que a produção do conhecimento tem

adquirido gradativamente feições cada vez mais industriais. Uma autoimagem mais

adequada seria, portanto, a de um operário. A industrialização não é um acidente no

processo de desenvolvimento do conhecimento científico, mas sua expressão natural

mais acabada. Embora várias modalidades de humanismo critiquem essa crescente

industrialização, não parece que ela atinja o que é fundamental ou possa ter qualquer

efeito prático. Tudo indica que apenas a contradição entre a industrialização crescente e

o estilo de vida democrático poderá gerar um desenlace promissor no futuro.

Palavras-chave: Conhecimento; Verdade; Industrialização; Pós-modernidade;

Democracia

ABSTRACT Scientists have a heroic self-image about themselves and their research. However, it can

be seen that the production of knowledge has gradually gained increasing industrial

features. A most suitable self-image would be, therefore, that of a worker.

Industrialization is not an accident in the process of development of scientific

knowledge, but his natural and more finished expression. Although various forms of

humanism criticize this growing industrialization, it doesn’t seem that it reach what is

essential or would have any practical effect. Everything suggests the contradiction

between the growing industrialization and democratic way of life may generate a

promising outcome in the future.

Key words: Knowledge; Truth; Industrialization; Post modernity; Democracy

1. O Herói

Os cientistas têm o hábito de compreender o processo de investigação como

sendo dotado de uma característica especial, quando comparado a outras formas de

trabalho. A partir de uma disposição benévola podemos considerar que isso é apenas a

manifestação da autoestima de qualquer profissão. Certamente ninguém gosta de

reconhecer que a atividade a que se dedica é menor ou secundária. Assim, não

encontraremos um único pedreiro saudável que afirme que o trabalho de levantar casas

é destituído de mérito. Pelo contrário, ele tem orgulho de construir acomodações nas

quais as pessoas podem viver com segurança e conforto. Mas precisamos de cautela

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47 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

com essa sensação natural de autoestima, pois nem sempre sabemos onde ela termina e

onde começa o autoengano.

O trabalho de investigação científica parece ser especialmente propício ao

autoengano. A definição da pesquisa como uma atividade de desvelamento gradativo de

uma realidade oculta é muito convidativa e apreciada no meio acadêmico e nos

ambientes em que se realizam investigações. Sagan (1996) usou a metáfora de uma vela

acessa na escuridão para caracterizar a atividade de investigação e, com isso, sintetizou

o heroísmo que supomos estar presente nela. Afinal, trata-se de lutar contra as trevas.

Todos os vilões do mundo possuem ligação com algum princípio obscuro – desde

Satanás até Darth Vader. Por outro lado, a atividade intelectual foi reiteradamente

aproximada da metáfora da luz, mesmo antes do Iluminismo, no século XVIII. De fato,

essa aproximação existe pelo menos desde a civilização grega, personificada por Apolo:

o deus que conduzia diariamente o carro do sol pelos céus e, dessa forma, afastava a

noite.

O ato de iluminar a escuridão e afastar a noite da ignorância é uma espécie de

sacerdócio: uma atividade que se faz pelo bem da humanidade, um esforço cujo

resultado será desfrutado pelas gerações posteriores. É quase inevitável que essa

metáfora da iluminação implique na valorização do seu protagonista – o investigador –

e na noção de um consequente desapego pessoal, já que a luta contra o lado negro

possui uma característica universal: ela é levada adiante em função do interesse geral ou

do bem da humanidade. É comum que, lidando com um trabalho que pareça tão

revestido de heroísmo, sejamos tentados a pensar em nós mesmos como pessoas que

podem vir a acender uma nova luz e, com isso, iluminar dimensões recônditas e ainda

ocultas da realidade.

Mas isso não é necessário. Versões instrumentalistas do conhecimento

(POPPER, 1972; RORTY, 1991) também podem se fazer acompanhar da crença no

heroísmo dos cientistas. Basta que a investigação instrumental se apresente como a

superação de condições conceituais já estabelecidas por meio do esforço pessoal. A

diferença é que, na versão instrumental, o heroísmo se circunscreve ao aprimoramento

do conhecimento, sem que isso implique em alguma melhor compreensão da própria

realidade. O essencial aqui é a presença, seja na versão realista ou na instrumental,

desse papel especial reservado ao herói.

Os cientistas julgam, muitas vezes, que esse heroísmo advém da própria

natureza do trabalho intelectual. Com efeito, se acredita que esse último é diferente do

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48 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

trabalho manual, na medida em que, por meio dele, grandes transformações podem ser

levadas a cabo por uma única pessoa. Assim, ele ocorreria em um ambiente propício ao

protagonismo, enquanto que o trabalho manual estaria ligado à rotina de operações

repetitivas e à divisão social do trabalho – uma atividade nada interessante representada

pela esteira industrial taylorista. Na juventude, o autor desse texto adorava usar uma

camiseta com a seguinte inscrição: “Science, where imagination comes to reality”. Ele

acreditava que existia uma conexão entre a dedicação ao conhecimento e uma atividade

criativa, que a tornava diferente do trabalho repetitivo.

De fato, não está fora de nossas pretensões de investigadores tornar clara toda

uma região inexplorada da realidade ou levar o conhecimento a um patamar inigualável

por meio de nossa criatividade individual. Uma região que, ao se revelar para nós,

poderia lançar nova luz sobre outras já conhecidas, mas ainda não devidamente

iluminadas. Faz parte da crença do investigador herói pensar que mesmo o trabalho que

os outros já realizaram ainda não está acabado ou que pode ser compreendido de uma

maneira ainda superior ou melhor. O que alimenta o herói, durante longas batalhas sem

nenhuma garantia de sucesso, é pensar na possibilidade de que seu trabalho emita uma

luz tão brilhante que elimine as trevas que ocultam a realidade, tão luminoso que

ofusque as pequenas estrelas que já brilham no céu da ciência. Todo investigador possui

a pretensão íntima de ser um Apolo e levar luz à noite sombria, mesmo quando esta já

se encontra salpicada de pequenas estrelas da ciência – como é evidentemente o caso no

início do século XXI.

Entretanto, o autor desse artigo acredita que todo esse aparato de noções

heróicas em torno da investigação e do investigador é um autoengano. O heroísmo

pessoal foi eliminado de maneira consciente da atividade científica desde a formulação

de seu projeto inicial no século XVII. Como se isso não fosse suficiente, a observação

da atividade de pesquisa nos nossos dias mostra que ela é desenvolvida em termos

crescentemente industriais – aproximando-a do trabalho taylorista rotineiro e

segmentado.

Entendo, portanto, que a industrialização é um destino inevitável do processo

de produção do conhecimento, em função de seus próprios fundamentos. Além dessa

força latente, agindo no interior da própria atividade científica desde o seu nascimento,

existe a colaboração dos fatores culturais externos. Seria realmente uma exceção

admirável que uma área da cultura, como é a ciência, se mostrasse independente do

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49 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

processo de racionalização e de otimização de meios que caracteriza as democracias

liberais contemporâneas - isto é, todo o mundo desenvolvido. Mais espantoso ainda

seria constatar que justamente o processo de produção do conhecimento fosse capaz

de se mostrar independente da tendência presente nos processos dominantes de

produção industriais.

O restante desse artigo está destinado a tornar explícito como o heroísmo no

conhecimento é um autoengano que contraria a lógica da produção do conhecimento

científico desde a sua origem. A questão principal não é discutir se houve uma época de

heróis na indústria do conhecimento: grandes pioneiros e descobridores. Trata-se, antes,

de evidenciar que essa atividade heróica não corresponde nem ao projeto moderno da

ciência nem à sua configuração atual. Se eles existiram foi apenas como uma etapa

transitória do processo de industrialização da verdade cujo sentido já se perdeu pela

lógica interna de expansão do sistema. Se, hoje, ainda existem heróis, trata-se apenas de

uma má representação que os cientistas fazem de si mesmos.

2. O Método Moderno

A Filosofia de Descartes (1641/1973) estabeleceu as bases da modernidade

cultural, incluindo-se aí o segmento da modernidade científica. A ciência é uma

atividade que se constituiu no panorama da cultura moderna e retirou dele seus

parâmetros principais de funcionamento. Assim, é importante verificarmos, em primeiro

lugar, o panorama geral da cultura moderna de onde surgiu a ciência.

O projeto cartesiano de obtenção de uma ciência segura consistiu inicialmente

em submeter o conhecimento humano já existente a uma dúvida implacável. Tornar a

dúvida um procedimento que se estende sobre todo o conhecimento de maneira

sistemática e implacável é uma decorrência da profunda desconfiança com relação a

tudo o que se considerava certo até então. Mais do que isso, se trata de uma suspeita

acerca de qualquer resultado obtido pelo exercício da razão humana.

A modernidade implica na crença de que não é suficiente que se comece a

fazer ciência para atingir o conhecimento verdadeiro. Seu ponto de partida é o

reconhecimento de que a razão é falível, de que não fomos dotados pela natureza ou

pelos deuses de um poder de conhecimento isento de erros. O fundamento da

modernidade é o reconhecimento dos defeitos intrínsecos da razão humana. Portanto, a

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50 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

atitude moderna típica é a de desconfiança e prudência desde seu ponto de partida: pode

ocorrer que Deus não esteja do nosso lado, pode ser que exista um demônio que tente

nos enganar todo o tempo (o lado negro pode ser sutil), pode ser que sejamos fracos e

limitados quando percebemos e pensamos.

Por isso, o ambiente inicial da modernidade é de uma profunda suspeita com

relação aos instrumentos humanos utilizados para se gerar conhecimento. São os erros

que constituem o ambiente requerido pelo herói. São eles que criam as dificuldades a

serem superadas ao longo do caminho pela modernidade.

Descartes (1637/1979) afirma que a tradição filosófica de seu tempo

havia progredido por acumulação de conhecimentos sem, no entanto, submetê-los a uma

análise cuidadosa. O fato de a tradição anterior a ele não se haver preocupado em

verificar a confiabilidade dos procedimentos utilizados até então, evidencia uma fé

plena no uso da razão. Essa autoconfiança é justamente o que foi perdido na

modernidade. A imagem usada por Descartes para caracterizar essa tradição de

confiança na perfeição natural da razão é a cidade medieval.

A cidade medieval representa uma entidade que cresceu

espontaneamente ao longo do tempo, sem um plano geral, sem que se fosse previsto seu

desenvolvimento ou analisadas as suas bases fundamentais. Assim, foram se agregando

lentamente um edifício ao outro sem que houvesse um traçado geral para a sua

expansão. Havia uma crença implícita de que essa expansão levaria naturalmente a um

mundo de bem-estar e justiça. Mas, ao contrário do que essa crença previa, o resultado

se mostrou um produto desordenado e fruto do acaso, seguindo necessidades

particulares e imediatas sem que a totalidade tivesse sido considerada, sem direção e

intencionalidade. A confiança ingênua conduziu à desordem e à falta de adequação

entre meios e fins, à falta de razão.

Descartes acreditava que, mesmo que eventuais verdades tivessem sido

obtidas por meio da expansão natural e sem planejamento, não havia nenhuma

segurança com relação a elas - pois não se sabia a partir de que princípio elas haviam

sido erigidas. Não se sabia também se elas podiam ser estendidas a outras áreas do

conhecimento, visando a obtenção de novas verdades. Portanto, a fé ingênua na razão

produziu uma expansão espontânea, sem crítica e que não gerou conhecimentos

generalizáveis. Enfim, a fé pré-moderna na razão levou a um ambiente epistemológico

desorganizado, assistemático e de baixa eficiência.

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51 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Entretanto, isso não significa que um acúmulo de conhecimentos produzidos

sem método não tenha levado a algum aprimoramento tecnológico e melhorado

processos importantes para a sobrevivência e para o bem-estar diário do homem. A

cidade medieval certamente era habitável nos seus próprios termos. O que Descartes

pretendeu foi justamente identificar o processo que levou ao sucesso eventual para que

ele pudesse ser utilizado de maneira segura e sistemática.

Nesse sentido, a adoção do método da dúvida tornaria possível reavaliar todo o

conhecimento disponível, separando aquilo que é verdade do que não é. Ele permitiria

que se encontrassem certezas autênticas: verdades que funcionariam como sustentáculos

de outras verdades – já que obtidas de maneira segura. A procura pelo método é,

portanto, a busca por procedimentos de reconhecido valor epistemológico que podem

ser utilizados como mecanismos arquitetônicos para a obtenção de novas verdades

(SILVEIRA, 1998). Ele produziria certezas confiáveis a partir de uma moldura inicial

de desconfiança na razão. Se há algum tipo de confiança expressa na necessidade

moderna de um método, se trata certamente da confiança na capacidade da razão em

corrigir seus erros e de superar suas deficiências naturais.

O mesmo tipo de necessidade de correção, causada pela desconfiança no uso

natural da razão, move o projeto de Francis Bacon (1620/1999) – o principal formulador

das bases do conhecimento científico moderno. O “Novum Organon” de Bacon

sistematiza os princípios da atividade que veio a se tornar culturalmente dominante nos

nossos dias: a ciência.

Bacon (1620/1999), assim como Descartes, defendeu que a atividade científica

deveria ser dirigida por um método. Segundo ele, “o intelecto não regulado e sem apoio

é irregular e de todo inábil para superar a obscuridade das coisas.” (Aforismo XXI). Ele

entende o método como um processo de supervisão racional da razão, um mecanismo de

monitoramento que visa corrigir os erros naturais do sistema de descoberta da verdade.

Para ele, é uma arrogância temerária acreditar que a razão pode chegar à verdade por

meio de suas disposições naturais.

Observa-se que o método moderno é uma tecnologia racional, um aparato de

apoio para fragilidades cognitivas. Ele consiste em um sistema de escoras para uma

racionalidade que não produz conhecimento seguro de maneira natural. O método é uma

expressão daquela desconfiança da razão com relação a si mesma, típica da

modernidade. Para facilitar, podemos comparar essa noção moderna à noção antiga de

método.

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52 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Aristóteles (2001) defendia que o método devia ser derivado da natureza do

objeto. Para ele, um homem versado nas ciências exige de seu objeto de estudo apenas o

grau de precisão relativo à natureza de seu objeto. Ou seja, o conhecimento deveria se

ajustar às características do ser de que trata. Assim, o método antigo é de matriz

ontológica, porque se espera que ele deve refletir o ser específico de cada objeto de

estudo. Ele deveria ser flexível com relação ao modo de existência de cada ser particular

que compõe o cosmos.

O método moderno é diferente, pois consiste em um artifício corretivo em

função da evidência de que a racionalidade, quando deixada à rédea solta, se equivoca

seguidamente. O método moderno é uma espécie de contenção dos cavalos afoitos do

carro de Apolo. Ele é uma decorrência da desconfiança na razão humana. Dessa

maneira, ele é o resultado de uma avaliação das próprias condições humanas do

conhecimento. Ao contrário da origem ontológica do método antigo, o método moderno

é eminentemente epistemológico.

3. A Indústria

A instauração do método moderno levaria ao que Bacon (1620/1999)

denominou de reino dos homens: o conhecimento completo da natureza. Conhecimento

cuja principal característica consiste em dominar a natureza. Bacon é um crítico do

conhecimento que não gera operações de controle sobre o mundo exterior. Para ele, não

há conhecimento autêntico sem poder. A verdade se manifesta justamente no fato de

haver controle sobre o mundo natural. Portanto, o reino dos homens significa total

controle do mundo natural.

O primeiro desafio do método baconiano é preparar o investigador para

produzir conhecimento verdadeiro. Isso decorre daquele reconhecimento moderno de

que sua constituição natural não o habilita para isso. Dessa forma, o futuro investigador

deveria ser curado de hábitos que se encontravam arraigados na sua forma natural de

ser. Liberado de tais vícios, ele tornaria sua mente pura e bem disposta ao

conhecimento. Assim como a entrada no reino dos céus requer a purificação do coração,

o reino dos homens requer purificação dos hábitos mentais prejudiciais ao

conhecimento autêntico.

Dessa forma, a etapa inicial do processo de investigação é a purificação do

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53 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

investigador ou, se quisermos, a geração de um ser inocente e puro no sentido

epistemológico: alguém que seja capaz de interpretar o mundo sem se deixar levar por

seus preconceitos e hábitos mentais. A purificação consiste, seguindo a metáfora

religiosa de Bacon, na destruição dos falsos deuses, na eliminação dos ídolos. Esses

ídolos são os falsos princípios que estão instalados na razão e que precisam ser

abandonados. A ciência, assim como a verdadeira religião, também deve expulsar do

seu templo os bezerros de ouro, os falsos deuses que levam ao erro.

Assim como Descartes, Bacon acredita que existam verdades autênticas já

descobertas pelo homem. Mas tais descobertas ocorreram por acaso, de maneira

assistemática e artesanal. O propósito de instituir um método e corrigir a razão equivale

à industrialização do processo de produção do conhecimento. Isso significa que a

descoberta de verdades passa a ser regulamentado por procedimentos padronizados e

não mais por gambiarras epistemológicas que oscilam ao sabor das circunstâncias. Para

se obter conhecimento verdadeiro, se requer um conjunto de ações específicas,

reconhecidamente eficientes, que podem ser usadas de maneira recorrente.

O método é, como os cientistas o entendem e usam hoje, uma receita para se

obter verdades. Sem o seu uso, o conhecimento, mesmo se verdadeiro, não obteria

legitimidade, porque não seria possível saber como ele foi produzido. O conhecimento

legítimo possui uma espécie de certificado de origem: ele deve ser produzido no

ambiente de pureza e assepsia estabelecido pelo método. Para que os resultados de uma

investigação possam ser comparados com outros resultados, eles devem ser gerados a

partir dos mesmos procedimentos. É o método que permite a criação de uma instância

comparativa de resultados, por mais diversos que eles sejam. O método é a linguagem

universal do conhecimento científico.

Portanto, a utilização do método moderno implica na passagem do artesanato

para a indústria do conhecimento. Com o método se definem os procedimentos

necessários para se chegar ao conhecimento verdadeiro de maneira sistemática, sem

improviso, sem variações, sem falar dialetos particulares e tomar desvios de rota. O

método moderno é a estrada para o conhecimento verdadeiro, a única estrada. Os erros,

se houverem, deverão ser atribuídos a algum fator ligado ao investigador e não ao

método. Esse se constitui como uma fórmula geral, um conjunto de operações

padronizadas que levam ao conhecimento verdadeiro.

Observe, então, que o propósito de se instalar uma fábrica de conhecimento

não é estranho ao espírito da modernidade. Pelo contrário, esse mecanismo de produção

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54 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

em série é plenamente derivado dos princípios fundamentais da modernidade cultural e

científica. Portanto, a industrialização da verdade é um propósito explícito da ciência

desde a sua origem.

Eventuais problemas decorrentes da industrialização da verdade não podem ser

considerados acidentais ou interferências externas inesperadas. As dificuldades próprias

da industrialização são derivadas dos princípios fundamentais da atividade científica e

fazem parte da realização plena do projeto científico-industrial moderno.

Observe, entretanto, que não há nesses princípios nenhum papel especial

destinado a heróis. Eles podem ter existido historicamente, mas não são uma

decorrência das bases modernas da ciência. Os heróis ou são más representações

(autoenganos) ou desempenham funções marginais com relação ao núcleo do sistema

científico-industrial. Mesmo nesse último caso, como se verá adiante, sua importância

relativa decai gradativamente à medida que o sistema obtém maior eficiência.

4. A Purificação

Para tornar mais claro o impacto da instauração do sistema científico-industrial

na formação dos cientistas, vamos nos concentrar aqui na primeira parte do método de

Bacon (1620/1999): a eliminação dos ídolos. Eles são de quatro tipos: ídolos da tribo;

ídolos da caverna; ídolos do foro e ídolos do teatro.

Os ídolos da tribo são os preconceitos que existem em nós em função de

sermos seres humanos: as emoções e a vontade. Eles podem interferir no desempenho

da razão, desviando-a de seu exercício puro. Contra isso, são requeridas frieza e

prudência. Além dessa interferência congênita, a própria sensibilidade humana (o

conjunto dos nossos cinco sentidos) possui limitações que não podem ser superadas.

Nossa visão possui um alcance definido, nosso tato só vai até o limite do nosso corpo

etc. Não há como superar essas limitações senão precariamente através do uso de

instrumentos. Os ídolos da tribo não podem ser extirpados do homem, mas sua

influência pode ser controlada por meio de dispositivos compensatórios. Tratam-se de

limitações às quais a razão deve se conformar em função de serem condições naturais

do homem.

Por outro lado, os ídolos da caverna foram adquiridos pela educação e pelo

hábito. Eles são tendências que desenvolvemos em função de nosso caráter particular ou

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55 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

porque adquirimos tais disposições ao longo do tempo. Assim, alguns investigadores

possuem uma tendência para se concentrar em análises minuciosas, outros têm

facilidade para produzir sínteses genéricas. Devemos evitar que essas tendências ou

preferências pessoais afetem o uso equilibrado da razão. Nem sempre análises ínfimas

ou macrossínteses são recomendáveis em uma investigação.

Os ídolos do foro são considerados por Bacon como os que mais perturbam a

razão humana. Esses ídolos consistem na crença de que governamos as palavras, sendo

que, na verdade, são as palavras que nos governam. Ou seja, se tratam das armadilhas a

que somos conduzidos em função de utilizarmos uma linguagem que não foi

desenvolvida para a produção do conhecimento. Com efeito, a linguagem se

desenvolveu no contexto da cultura e é basicamente um instrumento prático de

comunicação. Sua utilidade principal não é a de gerar novos conhecimentos em um

ambiente asséptico como o que é requerido pela modernidade. Portanto, seria um erro

utilizar esse instrumento de maneira descuidada. A linguagem natural pode sugerir para

a mente significados falsos que levarão ao erro.

Os ídolos do teatro são aqueles que a razão adquiriu em função do suposto

conhecimento obtido da tradição, através de falsas explicações da natureza. Bacon se

refere principalmente à má influência das ideias filosóficas antigas de origem grega e

romana. Além disso, esses ídolos se apresentam através das leis da lógica. Mesmo essas

não podem ser objeto de confiança, porque não levam necessariamente ao controle da

natureza. O conhecimento verdadeiro não pode ser obtido tendo como guia somente a

correção do raciocínio. Como vimos, é necessário que o conhecimento gere controle do

mundo natural. A verdade sempre envolve poder sobre a natureza.

O resultado geral da purificação dos ídolos é a obtenção de um investigador

sem preconceitos, uma espécie de criança inocente e preparada para a atividade

científica. Esse investigador não se deixa enganar pela sua própria constituição como

ser humano. Isto é, não é vítima de sua vontade ou de seus sentimentos. Ele também é

levado a considerar a perspectiva limitada dos seus sentidos e do seu próprio corpo.

Assim como não se deixa enganar por suas preferências e inclinações de estudo ou pela

educação que recebeu. Além disso, ele é cuidadoso no uso das palavras que utiliza no

conhecimento evitando o significado prático e cultural que elas já possuem no ambiente

social da comunicação. O investigador baconiano vê o mundo além da linguagem, sem

se deixar conduzir pelo véu de suas sugestões enganadoras. Os conhecimentos

disponíveis também não são confiáveis em função de terem sido acumulados sem

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56 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

método. Por sua vez, a lógica não pode ser um parâmetro exclusivo de correção do

conhecimento, pois um raciocínio perfeito pode se mostrar impotente diante da

natureza.

Embora seja evidente que um investigador com todas as características listadas

acima jamais existiu, o modelo a ser atingido gerou certamente padrões de

comportamento ao longo do tempo. A purificação dos ídolos consiste em um valor

desejado, um objetivo a ser perseguido, e não exatamente em características que possam

ser identificados em um pesquisador em particular. No conjunto, ela pressupõe uma

determinada disposição epistemológica por parte do pesquisador.

Além disso, observe que a preparação para o conhecimento de Bacon possui

requerimentos éticos explícitos, na medida em que estabelece padrões de conduta

desejados para qualquer investigador. Essa ética, ao contrário do entendimento atual,

não depende nem de códigos profissionais nem passa por comitês (SILVEIRA,

HUNNING, 2010), mas compõe um núcleo básico do comportamento requerido para a

prática da ciência que é muito elementar.

O poder desses valores epistemológicos e éticos propostos é enorme se

avaliarmos o seu impacto na formação de uma cultura científica. Por exemplo, o

princípio de se manter sempre uma atitude crítica com relação à tradição tornou-se uma

marca distintiva da própria modernidade. Popper (1975) chegou a caracterizar a

atividade científica como a criação de uma espécie de tradição de crítica em que

qualquer resultado sempre deve ser submetido ao escrutínio dos membros de uma

comunidade de cientistas. Isso impediria que qualquer verdade se tornasse tradicional

ou adquirisse um valor superior ao próprio escrutínio.

A tentativa de se obter uma linguagem depurada de significados práticos e

culturais tem conduzido, ainda hoje, a esforços no sentido de se obter um discurso

objetivo, que evite as ambiguidades e as segundas interpretações. As definições

operacionais são uma tentativa de tornar claro sobre o que é o conhecimento que se

produz, de maneira independente das variações semânticas da linguagem. A

matematização do conhecimento, através da adoção de técnicas estatísticas de análise de

dados ou de modelização, é a expressão atual da necessidade de se chegar a essa

linguagem depurada de qualquer carga cultural.

Além dessas tendências que se tornaram distintivas da atividade científica, há

os impactos que nos interessam diretamente: aqueles que forjaram o caráter

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epistemológico e ético do investigador. A abstração total de características pessoais é

um componente do caráter da criança epistemológica de Bacon. A objetividade do

conhecimento é garantida justamente pela possibilidade de que investigadores diferentes

cheguem aos mesmos resultados. Isto é, a pessoa concreta do cientista que realiza a

investigação não deve interferir no resultado final. Também não importa o contexto

cultural em que se desenvolve uma investigação, porque o conhecimento requer a

possibilidade de sua reprodutibilidade de maneira independente. Enfim, qualquer

investigador que tenha passado pelo processo de purificação dos ídolos, diante dos

mesmos fatos, deve chegar necessariamente às mesmas verdades. Essa pessoa que se

tornou pura é o operário ideal da indústria da verdade.

5. O Operário

Nos nossos dias o processo de produção do conhecimento se intensificou e se

tornou imensamente complexo. Entretanto, não parece ter ocorrido nenhum desvio

substancial na história de seu desenvolvimento que nos trouxe de Descartes e Bacon até

hoje. Pelo contrário, aparentemente estamos muito mais próximos do ideal baconiano de

conhecimento científico do que há 100 anos.

A complexidade atual da ciência pode ser percebida no fato de falarmos menos

de investigadores individuais e mais de linhas e grupos de pesquisa. O sujeito da

investigação científica contemporânea é coletivo, pois o trabalho de pesquisa é feito por

vários pesquisadores, de tal forma que nenhum deles visualiza a totalidade do problema

que está sendo investigado. A divisão social do trabalho de investigação é uma condição

da produção do conhecimento científico atual. Com efeito, “está-se mergulhado no

positivismo de tal ou qual conhecimento particular, os sábios tornaram-se cientistas, as

reduzidas tarefas de pesquisa tornaram-se tarefas fragmentárias que ninguém domina"

(LYOTARD, 1979, p. 74).

Sem a divisão em tarefas específicas, grande parte das investigações não

poderia ser desenvolvida, porque se requer uma quantidade enorme de talentos e um

gasto de energia humana extraordinário para realizá-las. Assim, o que um investigador

faz, de fato, é realizar uma atividade ínfima em uma rede de trabalho coletivo que

termina em um produto extremamente sofisticado e complexo: o conhecimento

científico. E isso não depende de sua vontade. Investigações consideradas pertinentes

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devem obedecer ao preceito da viabilidade, isto é, se avalia antes de tudo se o conjunto

de pesquisadores é realmente capaz de realizá-las em um tempo determinado. Dessa

forma, investigações sofisticadas não podem ser desenvolvidas por um único

pesquisador.

Na prática, o que um cientista faz é acrescentar um tijolo a uma parede em

construção. Mas o que está em construção não é somente uma parede e sim um grande

edifício, um bairro inteiro e talvez até uma nova cidade. Não parece haver um controle

central para essa expansão, nem há como dimensionar o sentido de cada atividade

particular dentro de um panorama geral. Nesse sentido, a participação de um

investigador tem se tornado proporcionalmente menor se considerarmos que o sistema

industrial da verdade cresce e se torna mais e mais complexo a cada dia.

Uma contribuição individual essencial feita no passado passa a ser uma

contribuição importante hoje e terá um significado corriqueiro amanhã – já que a a

expansão e a complexidade são crescentes. O destino do trabalho do cientista é perder

gradativamente seu sentido especial, é ter sua importância particular lentamente diluída

no contexto da produção industrial e no aparato enorme de resultados que são gerados.

Mesmo os nossos heróis de ontem se tornarão operários humildes a partir da perspectiva

de um futuro próximo. O sentido de uma investigação não é definido pela sua

importância passada de uma vez por todas. Ele oscila em função da complexidade e da

sofisticação crescente dos produtos gerados pelo sistema científico-industrial.

Essa diluição do sentido específico e do valor intrínseco da atividade de

pesquisa faz parte da lógica da produção industrial em larga escala. O fato de que cada

produto em particular não ser mais significativo por si mesmo é uma consequência

direta da proliferação de outros produtos semelhantes e dos índices crescentes de

eficiência do sistema. Esse efeito de diluição do sentido parece ter se tornado uma

característica dqa cultura atual. Ele já foi detectado com relação à produção artística

(BENJAMIM, 1987), à sociedade de consumo (BAUDRILLARD, 1970) e ao fluxo de

informações proporcionada pelos meios digitais (LÉVY, 1999). Em todas essas

situações se observa que, em um oceano de produtos, cada um deles em particular perde

seu significado específico.

A proliferação excessiva de mercadorias epistemológicas conduz a dificuldades

na gestão da qualidade do sistema na sua totalidade. Nesse caso, é a eficiência

crescente, a produção de mais conhecimento com menos recursos através da otimização

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dos processos de descoberta e divulgação, que passa a requerer a criação de um patamar

de qualidade geral (TRZESNIAK, PLATA-CAVIEDES E CÓRDOBA-SALGADO,

2012). Entretanto, justamente em função da fragmentação e da especialização esse

denominador comum de todo o conhecimento parece um ideal abstrato e sem qualquer

possibilidade de se concretizar.

É a própria eficiência do sistema industrial da verdade que impede uma

avaliação independente de seus produtos. Com isso, parece inevitável que ocorra a

banalização da verdade e a circulação livre de mercadorias epistemológicas sem que

existam condições práticas de uma avaliação objetiva. Nesse caso, o valor de cada

produto é corroído pela eficiência do sistema e a verdade torna-se moeda sem valor.

Ao mesmo tempo, a atividade de investigação se torna mais e mais delimitada

e pertencente a um ambiente restrito. Cada objeto de estudo requer um foco particular.

Na pesquisa se utiliza uma linguagem técnica que permite a comunicação apenas com

os cientistas mais próximos, aqueles que estão habilitados a travar um diálogo

pertinente sobre determinado assunto, a partir de alguns pressupostos. Pesquisadores de

uma linha ou de um grupo de investigação não entendem o que se diz em outra linha ou

outro grupo – dentro da mesma ciência, da mesma área de conhecimento e do mesmo

corredor de universidade/indústria. A linguagem da ciência vem se tornando um

complexo crescente de dialetos cada vez mais específicos. Nesse sentido, não é um

contrassenso afirmar que o sentido da atividade particular de cada cientista vem

encolhendo a cada dia, na exata proporção em que a ciência se expande.

Vimos acima que, como qualquer sistema de produção, a ciência tende a se

submeter à lógica de aperfeiçoamento dos meios. Produzir conhecimento, como

qualquer outra coisa, implica em custos e o sistema é mais eficiente à medida que

produz mais com menos. Portanto, se requer que um investigador esteja pronto para a

prática da investigação tão logo seja possível. Se ele começar jovem será melhor,

porque ele poderá se dedicar à sua atividade por mais tempo, ampliando sua vida útil e

sendo mais produtivo. Para estar preparado para a investigação mais cedo, ele deve ser

recrutado e treinado rapidamente.

Para que o treinamento seja aperfeiçoado ele deve se concentrar somente

naquelas habilidades que são indispensáveis para a prática efetiva da pesquisa a ser

desenvolvida posteriormente. Por isso, cada ciência ou área de investigação tem de se

tornar cada vez mais independente de outras formas de conhecimento, de modo a poder

realizar sem perda de tempo o treinamento requerido para sua sobrevivência e

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ampliação. A fragmentação do conhecimento certamente torna o treinamento de

recursos humanos mais rápido e economiza em termos da quantidade de informações

prévias que são necessárias para as atividades de investigação. A diminuição da

amplitude e aumento da fragmentação do conhecimento são fatores de aumento da

eficiência do sistema científico-industrial.

Cada linha ou cada grupo de pesquisa deve ser capaz de preparar seus recrutas

o mais rapidamente possível, sem se importar com o que os investigadores de outras

linhas estão fazendo. Requer-se que uma capacidade de foco seja rapidamente

incorporada a um cientista jovem, sem que haja perda de tempo na obtenção de

conhecimento e no desenvolvimento das habilidades necessárias. A rapidez no

treinamento significa maior índice de produtividade par o sistema. Da precocidade

advém a ampliação da possibilidade de sucesso, do número de interlocutores em

potencial e de captação de recursos financeiros. Dessa forma, o processo de formação

de recursos humanos para a investigação também se torna um fator a ser aperfeiçoado

pelo sistema industrial.

No sistema de produção do conhecimento científico um cientista generalista é

uma exuberância sem sentido. Ele não possui as habilidades para ser integrado em uma

pesquisa concreta e tem dificuldades em manter o foco específico que é requerido em

investigações específicas. Assim, pode-se constar que um cientista especializado na

história de sua área de conhecimento é um ser em crescente processo de extinção. O

conhecimento histórico de uma disciplina custa caro, não gera resultados palpáveis e

dificulta a aderência imediata do pesquisador a uma linha particular de trabalho.

Se observarmos o trabalho desenvolvido por um jovem estudante de mestrado

de uma ciência particular, notaremos que sua investigação é conduzida tendo como

referência a produção relativa ao seu objeto de estudo nos últimos quatro ou cinco anos.

O conhecimento sobre a história de sua área de investigação é um desvio desnecessário

para a produção de conhecimento. Ele pode produzir conhecimento, e efetivamente o

faz, apenas com o conhecimento julgado relevante para o problema que pretende

resolver. As revisões de literatura temporalmente mais curtas são a expressão crescente

dessa necessidade. O sistema de produção industrial do conhecimento compacta a

história ao mínimo que é imprescindível para a continuidade de uma tradição de

pesquisa eficiente.

Nesse mesmo sentido e ao contrário do que se costuma imaginar, uma

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formação superficial do cientista não é um defeito do sistema. Ela é uma de suas

virtudes principais. A superficialidade é incentivada em função da lógica do trabalho de

investigação adotada desde o início da modernidade. Com efeito, ela se constitui como

uma virtude do operário baconiano. O jovem pesquisador de hoje está cada vez mais

parecido com a criança epistemológica de Bacon: ele quase nada sabe além do seu

objeto de estudo: aquilo que é considerado nas condições vigentes estritamente

necessário para conduzir uma investigação sobre determinado objeto.

Sem conhecer a história de sua área de conhecimento ou saber manusear

adequadamente uma linguagem de amplo significado, ele tem menos preconceitos a

serem combatidos, menos cultura a ser eliminada durante o período de recrutamento,

menos obstáculos a serem removidos antes do início da investigação. A superficialidade

do cientista é um índice de excelência do sistema, na medida em que ele tem menos

coisas a desaprender do que um homem culto. Nesse caso, saber menos é saber melhor.

Na verdade, ao invés de se ocupar com o processo de purificação baconiano de

jovens cientistas, o sistema de produção de conhecimento contemporâneo está

recrutando-os já puros, antes que eles adquiram conhecimentos desnecessários para a

prática industrial da pesquisa. Isto é, a formação do pesquisador ocorre cada vez mais

cedo, antes que ele cometa o pecado de se tornar culto. Assim, o sistema aperfeiçoa

também o processo de treinamento. A ignorância sobre tudo o que não interessa à

produção de conhecimento específico é uma virtude epistemológica do investigador

extremamente valorizada pelo sistema industrial. Um pesquisador culto é uma fonte

potencial de problemas que pode ser contornada com o treinamento de jovens para o

desenvolvimento de investigações pontuais a partir do início do período de graduação.

Uma das consequências diretas desse processo de formação de recursos

humanos é a identificação do mérito do investigador com a linearidade de sua vida

produtiva – percebida pela concentração a determinado objeto de estudo,

preferencialmente sob um tratamento metodológico particular. Os operários excelentes

são aqueles que possuem uma capacidade de foco já desenvolvida, que se demonstram

capazes de desenvolver a investigação específica que é requerida pelo sistema.

6. Crítica moralista e crítica moral

A ciência vem se tornando um sistema de produção da verdade cada vez mais

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eficiente, aprimorando o sentido industrial contido na proposição do método por

Descartes (1637/1979) e Bacon (1620/1999). Parece claro que a situação atual não é o

resultado de desvios circunstanciais ou equívocos na condução do projeto da

modernidade científica que poderiam tê-la conduzido a um rumo inesperado. Pelo

contrário, esperamos ter evidenciado o quanto as características da produção do

conhecimento existentes hoje estão em pleno acordo com o ideal de ciência e de

cientista formulados pela modernidade. Seria mais adequado dizer que a ciência vem

conseguindo realizar plenamente seu projeto de maneira cada vez mais integral.

Diante do quadro atual, resultante da evolução natural do projeto moderno,

talvez o leitor esperasse que o autor manifestasse descontentamento ou indignação. Essa

é uma postura adotada por várias perspectivas que julgam que a situação atual está

substancialmente errada como forma de geração de conhecimento. De fato, alguns

tipos de humanistas acham que é a própria histórica do desenvolvimento do

conhecimento científico que tomou um rumo errado em algum momento histórico

anterior. Alguns deles chegam mesmo a desenvolver alguma forma de aversão à ciência.

Para eles, melhor seria adotarmos outro ponto de vista, radicalmente distinto do

científico, que reintroduzisse o valor do homem como centro do processo de

conhecimento.

Não é importante, nesse momento, nos determos demasiadamente na

caracterização dessa perspectiva que julgo difundida mesmo no meio acadêmico das

humanidades. De maneira sumária, ela parece pretender fazer o conhecimento

retroceder para a época do artesanato científico ou para alguma etapa intermediária em

que o sistema científico-industrial ainda não possuía o grau de eficiência atual.

Não me parece fazer nenhum sentido formular uma crítica moralista a um

sistema que tem se demonstrado mais e mais eficaz, dentro de parâmetros históricos que

se tornaram hegemônicos nas democracias liberais. O moralismo consistiria aqui em

tomar pé em valores externos à nossa época e ao nosso modo de vida e exprimir uma

discordância com relação ao processo de industrialização da verdade.

Assim, ele busca valores e disposições de espírito saudosistas que afirmam, por

exemplo, que “precisamos manter presente o sentido nobre da ciência” (BIANCHETTI,

MACHADO, 2007, p. 13). É comum que essas posturas usem a retórica da decadência

moral, afirmando a inexistência atual de “an honorable ideal of personal integrity” ou de

“ethical bones” (LEWIS, 2006, p. 5). Não é incomum que elas combinem os conceitos

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de “high ideals”, “meaning” e “purpose” (idem, p. 19) para indicar o vácuo moral do

sistema atual de produção do conhecimento.

Entretanto, essa crítica só poderia ser feita por aqueles que se julgam

portadores de valores independentes desse sistema – uma necessidade implícita em toda

crítica moralista. Mas não é essa a perspectiva desse texto. Confesso que não tenho um

pé de apoio fora da condição histórica de produção do conhecimento contemporâneo.

Assim, não me julgo em condições de realizar esse tipo de crítica ao sistema – como se

dizia nos anos 60 do século XX. Para o moralismo, “integridade pessoal”, “ideais

elevados”, “significado” e “propósito” apontam para dimensões externas ao sistema

científico-industrial que deveriam ser considerados para sua correção. Esses valores

requerem, da parte de um moralista uma justificativa que não me julgo em condições de

oferecer.

A hegemonia que foi obtida pela ciência não foi construída de maneira

voluntariosa por indivíduos isolados. Ela é o resultado do sucesso prático e do

reconhecimento social obtido pelo sistema científico-industrial intensificado nas

democracias liberais contemporâneas. Portanto, a hegemonia da ciência e seu modo de

produção estão umbilicalmente ligados ao que denominamos de mundo civilizado

democrático. A crítica moralista possui a vantagem de trazer conforto psicológico para

quem se mostra indignado. Mas ela precisa avançar na direção da fundamentação dos

valores alternativos que propõe para deixar de se apresentar apenas como uma estratégia

de conforto pessoal diante de um mundo que se julga decadente.

Não julgo haver sentido em criticar o mundo civilizado, a menos que sejamos

capazes de traçar alguma perspectiva alternativa concreta para outro processo de

civilização que não seja exatamente idêntico ao passado. Assim, o ponto de vista que

adoto é, para o bem e para o mal, sempre interno a esse sistema de produção,

simplesmente porque faço parte dele. Observe que esse texto é, ele mesmo, um produto

gerado por esse sistema. Ignorar isso é enveredar por uma metafísica moralista e pela

negação da importância e da concretude do processo histórico que nos trouxe até aqui.

Dessa forma, só nos cabe fazer uma crítica interna, porque ela também é parte

do processo contemporâneo de produção do conhecimento. Afirmar que o sistema é um

monstro cujas engrenagens corrompem o homem é tomar pé fora da história e se

refugiar em algum recôndito metafísico em que haja em uma noção não histórica de

homem.

A crítica aqui deve ser moral, porque faço parte do processo histórico que

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construiu o sistema de produção industrial do conhecimento científico e sou, dessa

forma, corresponsável por ele. Mas uma crítica moral é frágil justamente por isso: ela é

uma crítica interna e certamente não poderá propor a mera destruição revolucionária do

sistema. Ela é sempre reformista!

7. A Desilusão do Operário

Cabe à crítica moral, cujo ponto de vista adoto aqui, indicar as limitações

internas do sistema e as tendências que nele parecem indesejáveis. Portanto, sendo uma

atividade orientada para o futuro, uma crítica moral possui sempre algo de profético.

Embora seu sucesso prático seja indiscutível, as restrições à participação

pessoal criativa no processo de produção do conhecimento científico tem se

intensificado. Hoje, não faz sentido acreditar naquela frase da juventude: “Science:

where imagination comes to reality”. Os cientistas tornam-se cada vez mais

engrenagens de um sistema de produção coletivo e impessoal. Vimos como a eficiência

requerida por tal sistema enaltece a superficialidade e a virtude da compreensão

unidimensional e imediata dos problemas.

A crítica e o debate entre pares, em geral entendida como uma virtude da

produção do conhecimento científico tem sido utilizada como um processo permanente

de redundância de valores e de intimidação de dissonâncias nascentes (MARTIN, 1999).

A vigilância mútua dos pares certamente é um mecanismo da normalização da ciência,

um reforço de procedimentos já consagrados pela tradição, uma intensificação do que

Kuhn (1988) chamou de ciência normal. Mas o sistema de produção industrial parece

levar a normalidade ao extremo de maneira a prejudicar o dissenso e a variabilidade –

forças propulsoras da inovação. Portanto, o sistema tende a se tornar ótimo, segundo os

critérios vigentes, e estagnar nesse patamar de excelência. O sistema industrial da

verdade tende à redundância.

A industrialização da verdade possui efeitos também sobre a impessoalidade

das agendas de pesquisa: o trabalho de investigação individual é entendido como uma

contribuição em um processo complexo cujo sentido escapa ao indivíduo. Assim, sua

responsabilidade é limitada a fazer avançar um aspecto particular desconectado do

empreendimento e do sentido geral. A abertura das universidades para a lógica de

mercado tem acentuado esse aspecto. Entretanto, ao contrário do que se acredita, o

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“capitalismo acadêmico” (SLAUGHTER e RHOADES, 2004; MUSSELIN, 2007) não

nos parece uma interferência alienígena na atividade científica e sim a realização plena

de sua vocação industrial moderna.

O cientista não crê, hoje, que deva rever os fundamentos ou se ocupar com as

origens de sua ciência. Isso expressa, no âmbito científico, a falência das metanarrativas

a que Lyotard (1979) se refere como característica da pós-modernidade. O investigador

parte de verdades instituídas para produzir novas verdades, dentro de um quadro de

referências já considerado verdadeiro. Ele é um operário que não produz as regras do

seu trabalho, não cria novidades efetivas, mas redundâncias que confirmam os

pressupostos adotados pelo foco e pela metodologia. Sua atividade é um processo de

aderência a um quadro de significados previamente adquirido na fase de treinamento.

Como os demais operários tradicionais, ele apenas desenvolve uma função estabelecida

a partir de um contexto dado e de acordo com uma metodologia já existente. Isso ocorre

principalmente quando ele realiza um trabalho “excelente” pelos padrões do sistema.

Não seria de se estranhar, portanto, que o operário percebesse mais cedo ou

mais tarde que seu trabalho é rotineiro, antiheróico e mecânico. Ou seja, é perfeitamente

razoável esperar que o operário se dê conta de que não conduz o carro de Apolo nos

céus escuros da ignorância e que sua atividade é tão repetitiva como o de qualquer outro

operário em uma esteira de produção segmentada taylorista.

Assim como a eliminação do autoengano sobre o suposto heroísmo do

cientista, não há como evitar que o cansaço e o desinteresse acometam uma atividade

que não envolve a criatividade e a participação pessoal. Hoje, o operário ainda possui a

ilusão do seu papel apolíneo no plano do conhecimento, mas isso é apenas um engano

passageiro que se dissipará à medida que as engrenagens se tornarem mais e mais

visíveis. Elas se tornaram visíveis porque em um mundo intensamente democrático, o

indivíduo é a fonte principal do valor e busca expandir sua subjetividade para além de

qualquer conteúdo particular (SILVEIRA, 2013).

O contato permanente com uma atividade repetitiva que promove virtudes de

superficialidade e falta de cultura geral está em contradição com a expansão da

subjetividade contemporânea. Essa contradição não permanecerá irresoluta

indefinidamente. Enquanto os operários acreditarem que fazem parte de algo importante

e meritório, o sistema dará seus frutos e se mostrará produtivo. Mas, quando se tornar

evidente que a lógica do sistema é idêntica à de qualquer indústria, cairá por terra a falsa

distinção entre o trabalho intelectual do investigador e o trabalho manual bruto e

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repetitivo – algo que é, aliás, positivo. Com isso, o sistema não poderá manter a aura de

heroísmo sacerdotal com a qual revestiu o trabalho intelectual dos pesquisadores.

Sem a criação de valores que mobilizem os cientistas para o desempenho de

atividades que possuam relevância pessoal, a ciência passará a enfrentar os mesmos

problemas de qualquer processo industrial que envolve rotina e repetição. Em uma

cultura marcada pela intensificação do individualismo, pela atenção incessante aos

direitos da pessoa e à sua plena realização existencial, atividades impessoais caminham

na direção contrária daquilo que se espera. Dessa forma, o sistema de produção da

verdade deve se tornar desinteressante diante das novas necessidades humanas. Ou a

indústria da verdade se adapta à cultura individualista ou deixará de ocupar o lugar de

destaque dos últimos 200 anos.

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68 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

UMA ANÁLISE DO “DISQUE DENÚNCIA” 1 NA ROMÊNIA PÓS-

COMUNISTA. Cerasel Cuteanu

2

RESUMO No início dos anos ’90 do século XX, a Romênia entrou em sua fase pós-comunista, em

que importou contornos, normas e construtos que, infelizmente, foram aplicados com

muito desperdício, e, em última análise, de maneira ineficiente. Entre eles, o “disque

denúncia” é um exemplo dos conceitos ocidentais que – como provaremos depois – não

podem ser funcionais em países que possuem uma dimensão cultural de essência pós-

comunista. A fim de verificar a hipótese, nós olhamos para o sistema universitário da

Romênia, um campo que, potencialmente, é mais aberto ao novo e ao reformismo, e

descobrimos que ele mantém excessiva implicação política, ao lado de práticas não

democráticas (escondidas sob a capa de procedimentos democráticos e maiorias

tirânicas), iguais às que havia durante o comunismo, enquanto educadores competitivos

são marginalizados. O resultado é a óbvia mediocridade do sistema, considerando que

as decisões, no nível da gestão, são tomadas com base em razões políticas,

anticompetitivas. Em tal sistema, “disque denunciantes” são isolados por seus colegas

de trabalho, a retaliação não é algo considerado fora do normal (considerando que tal

organização é orientada por liderança), e a instituição permanece “sagrada”, mas

anticompetitiva. Aplicando o esquema interpretativo de Hofstede, nossa conclusão é que

dimensões culturais (isto é, a distância hierárquica, o individualismo e o evitar

incertezas) são um fundamento para a razão de permanecermos céticos sobre a

imposição de uma cultura de “disque denúncia” em um ambiente pós-comunista.

Palavras-chaves: Ética aplicada, disque denúncia, Romênia, pós-comunismo, Geert

Hofstede.

1 A tradução da expressão original por “disque denúncia” requer alguns esclarecimentos. O termo

“Whistle-blowing” significa “a exposição do malfeito de um empregador a agentes externos à companhia,

tal como a mídia ou agências reguladoras governamentais. O termo também é usado para a denúncia

interna de desvios de conduta, à gerência, especialmente por meio de mecanismos anônimos de

participação, frequentemente chamados de ‘linhas quentes’ ”. Cf. FERRELL, O. C.; FRAEDRICH, John;

FERRELL, Linda. Business Ethics: Ethical Decision Making and Cases. Boston: Houghton Mifflin,

2008. p. 183. No Brasil, as “linhas quentes” corporativas (isto é, os canais telefônicos ou eletrônicos

internos à organização) são frequentemente chamadas de “ouvidorias”, e não de “disque denúncia”. Em

compensação, a expressão “disque denúncia”, mais aproximada do sentido global que o articulista

pretende apresentar, e que já ficou bastante conhecida entre nós (o que também justifica a escolha),

designa claramente a “linha quente” (em geral telefônica, gratuita) do público em geral com toda e

qualquer autoridade constituída. Nesse sentido, ela é muito mais ampla do que no contexto original, pois

não envolve a denúncia apenas de dirigentes empresariais de conduta reprovável, mas é válida para

denunciar qualquer malfeito, de qualquer um. São inúmeros os exemplos de casos de crimes, fraudes e

similares que foram denunciados, apurados e seus perpetradores punidos, junto à polícia, ao ministério

público e a muitos outros agentes públicos, a imprensa incluída. Nesse sentido, vale dizer que a

instituição brasileira do “disque denúncia” – garantida pelo anonimato – é, efetivamente, bem sucedida,

ao contrário, ao que parece, do caso romeno descrito no artigo. Cabe informar também que, por esse

motivo, todas as variantes da expressão usadas pelo articulista foram igualmente vertidas com o formato

“disque” anteposto, em vez de simplesmente, “denúncia”. (Nota do tradutor) 2 O autor é jornalista, PhD pela Universidade de Petrosani, Romênia. (Nota do tradutor).

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69 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

ABSTRACT At the beginning of the ‘90’s, Romania entered its post-communist phase, a phase that

imported Western frames, norms, and constructs, which, unfortunately, were applied

quite loosely, and, finally, inefficiently. Among these, whistle-blowing is an example of

Western concepts that – we will further prove – cannot be functional in countries,

having a cultural dimension, of a post-communist essence. In order to verify the

hypothesis, we looked at the university system in Romania, a field that, potentially, is

more open towards the new and the reformism, and discovered that it maintains the

excessive implication of the political, as well as undemocratic practices (hidden under

democratic procedures and tyrannical majorities), same as during communism, while

competitive educators are marginalized. The result is the obvious mediocrity of the

system, considering that decisions, at the level of management, are made based on anti-

competitive, political reasoning. In such a system, whistle-blowers are isolated by their

coworkers, retaliation is not something considered out of the ordinary (considering that

such an organization is leader-oriented), and the institution remains “sacre”, but anti-

competitive. Applying Hofstede’s scheme of interpretation, our conclusion is that

cultural dimensions (i.e. power distance, individualism, uncertainty avoidance) are an

argument for the reason that we remain skeptical about the imposing of a culture of

whistle-blowing in a post-communist environment.

Key-wordws: applied ethics, whistle-blowing, Romania, post-communism, Geert

Hofstede.

1. Visão geral sobre o “disque denúncia”.

A percepção geral sobre o “disque denúncia” implica uma dicotomia

inevitável: de cada lado da disputa, podem-se achar argumentos que justifiquem tanto a

virtude quanto o erro do procedimento. Em uma cultura democrática, que possua um

histórico de sistema legal em funcionamento, respeitosa dos tópicos morais essenciais,

poder-se-ia ter a expectativa de que o “disque denúncia” fosse um fenômeno

intraorganizacional positivo.

Ir além das fronteiras da organização, sem primeiro tentar consertá-la pelo lado

de dentro, poderia ser considerado como algo malicioso e, mesmo, corrupto, daí o erro

em “disque denunciar”. Obviamente, a possibilidade de uma anomalia não está

excluída, na medida em que os dirigentes executivos máximos ou administradores de

sistemas públicos são capazes das formas de corrupção mais simples, em nome de

variados interesses políticos ou financeiros. Lutar contra tais ações egoístas e corruptas

representa um testemunho do papel positivo do “disque denunciante”. Isso nos conduz à

essência da questão – um “disque denunciante” é alguém que tem o bem coletivo em

mente, quando age contra a organização, apesar das consequências; sobretudo, mesmo

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70 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

quando ele/ela falha, o “disque denunciante” pretende ter feito “a coisa certa” 3.

Consequentemente, ele não poderia hesitar, caso fosse necessário repetir a ação.

É por isso que, normalmente, organizações sólidas (especialmente no mundo

ocidental) proclamam publicamente a vantagem do “disque denúncia” e o encorajam

internamente, como um sinal de democracia e eficiência moderna. A alternativa também

é possível, já que sempre há organizações em que esse fenômeno não é encorajado de

modo algum, o que é uma prova de que não estão desenvolvidas de modo

suficientemente democrático. Na Romênia, as universidades públicas são exemplos

dessas organizações em que o simples conceito de “disque denúncia” é irrelevante,

devido a um mau funcionamento da democracia em um nível institucional, o que é um

sinal de falta de maturidade cultural. Esse mau funcionamento, com óbvios efeitos sobre

o desempenho das pessoas em uma universidade, é uma consequência das anomalias

típicas e específicas de sociedades pós-comunistas. Dessa perspectiva, necessita-se de

progresso, mas ele não é estimulado.

Geralmente, um sistema especializado como o educacional tem suas próprias

regras científicas, estritas; o que atraiu minha atenção no sistema universitário da

Romênia é que ele tem sido substituído por um “clone” com uma essência política, e

que relativiza todos os critérios. A consequência direta é que os educadores são

sufocados por um sistema não competitivo que recaiu em uma imitação “kitsch”, um

sistema conduzido por políticos pseudoacadêmicos que usam sua influência de maneira

a controlá-lo, não pelo bem do progresso, mas somente por amor ao poder político,

dinheiro e imagem pública...

Os verdadeiros acadêmicos profissionais (uma pequena porcentagem) se

transformam em uma massa amorfa de indivíduos despersonalizados, no momento em

que sentem que o poder não acompanha mais a qualidade acadêmica. Como resultado,

há uma pressão gerencial invisível, que força qualquer “disque denunciante” potencial a

permanecer calado e a não oferecer nenhuma reação a qualquer desvio de conduta. O

outro aspecto a se mostrar relevante na discussão poderia ser o cultural; não existe a

cultura do “disque denúncia” neste país pós-comunista, devido à mentalidade, à história

e à cultura romenas. É por isso que as perspectivas de Geert Hofstede sobre dimensões

culturais provam sua utilidade para a análise do padrão cultural dos romenos e como

3 ALFORD, Fred C. Whistleblowers: Broken Lives and Organizational Power. Cornell U. P., 2001. p.

1.

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71 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

isto influencia a filosofia do “disque denúncia”.

Hofstede menciona o fato de que as pessoas carregam programas mentais e

vê a cultura como uma “programação coletiva da mente”4. Valores e cultura são

diretamente conectados a esses programas mentais. Ele define os valores como “uma

tendência generalizada a preferir certos estados de coisas a outros”, de modo não

racional, “programados desde cedo em nossas vidas” e “determinantes para nossa

definição subjetiva de racionalidade” 5. A cultura é definida como “a programação

coletiva da mente que distingue os membros de um grupo humano do outro”; ela

também inclui um “sistema de valores”6. Nós usaremos a visão hofstediana para

comentar o conceito de “disque denúncia” na Romênia, já que a dimensão cultural

específica dos romenos justifica sua incapacidade de alcançar o papel positivo de um

“disque denunciante”.

2. Uma solidariedade contra o “disque denunciante”.

Por razões culturais que elaboraremos posteriormente, os empregados nas

organizações romenas, em geral, têm a reação instintiva de isolar os “disque

denunciantes”. Isto se deve a uma solidariedade – erroneamente compreendida – com o

líder da instituição (e não com a própria instituição ou com a sociedade), e isto é algo

que pode ser explicado com base na dimensão da distância hierárquica hofstediana.

Como resultado, em tais contextos, um “disque denunciante” encara, além do

medo da retaliação, o dilema de acomodar, na mesma equação, a lealdade a uma

organização (mais precisamente, ao seu líder e aos colegas de trabalho) e o fator “fazer

a coisa certa”. Esse dilema é imposto a ele pelos outros empregados. Ademais, é

ingenuamente invocada uma lealdade egoísta à organização (por exemplo, uma

universidade romena) e não ao “fazer a coisa certa”.

Obviamente, o “disque denunciante” cai em contradição com seus superiores/a

administração e com os colegas que podem ser afetados pela informação,

potencialmente prejudicial a eles também. O pano de fundo é a organização, que é agora

percebida como sagrada 7 (mais do que a organização, é o líder que é “sacralizado” em

4 HOFSTEDE, G. Cultures Consequences: International Differences in Work-Related Values (Cross

Cultural Research and Methodology). New York: SAGE, 1980. p. 13 5 Idem, p. 18.

6 Ibidem, p. 21.

7 ALFORD, Fred C. Whistleblowers: Broken Lives and Organizational Power, p. 6.

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72 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

uma universidade romena). A recessão global também pode causar certo tipo de

ansiedade que justifica tais sacralizações irracionais e desonestas.

Tais sacralizações são específicas das universidades romenas, em particular.

Aqui, o isolamento imposto sobre “disque denunciantes” é mais visível. A maioria dos

empregados de uma universidade romena está contente em delegar todas as

responsabilidades ao reitor, ao pró-reitor ou a qualquer outro superior, em geral, e, em

consequência, não está interessada em arriscar seu futuro, em prol de fazer a coisa certa.

Não há apoio aos “disque denunciantes”. Como resultado, a retaliação é algo quase

aceito e esperado/tolerado pelos colegas.

Aliado ao fato de que a sociedade civil não é suficientemente poderosa, a

opinião pública não é algo muito eficiente na Romênia. Ao mesmo tempo, na era global

em que a mídia é excessivamente polarizada, ela geralmente depende de financiamento

dos que têm o poder. Pode acontecer de a mídia trazer ao público a história de um

“disque denunciante” sobre uma universidade (por exemplo, um reitor que infringe

partes da lei de educação – algo que aconteceu recentemente, quando muitos reitores

concorreram ilegalmente para um terceiro mandato, e nenhuma sanção foi aplicada a

eles) e a opinião pública não reagir, assim como o ministério da educação, enquanto a

retaliação é inequívoca e impossível de ser provada em juízo (caso tenhamos uma visão

realista acerca de como funciona o sistema de justiça neste país).

Tudo isto descreve as coordenadas de um bloqueio geral que mantém as

universidades romenas na mediocridade (as últimas classificações provaram que

nenhuma universidade romena está entre as primeiras 600 do mundo). Este círculo

vicioso poderia ser quebrado por “disque denunciantes” mesmo que as premissas não

sejam promissoras, graças àqueles programas mentais hofstedianos e à pressão da

corrupção. Como jornalista investigativo, escrevendo principalmente sobre o sistema

universitário, eu lido com muitas pessoas desse sistema. Minha conclusão é que os

possíveis “disque denunciantes” retrocedem pelo fato de que os políticos romenos, os

mesmos da era comunista, invadem todos os campos e permitem retaliações contra

qualquer um lutando contra o “sistema” (com o propósito de melhorá-lo). No nível do

poder, a abordagem impõe uma solidariedade entre os que detêm o poder e aqueles que

não o têm – a distinção é entre “nós” e “eles” – nós que temos o poder (nenhuma

ideologia é envolvida, é apenas amor básico pelo poder) e eles (que podem se tornar

uma ameaça para “nós”, ansiosos por fazermos qualquer coisa para conservar o poder).

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A realidade fictícia que foi construída pelo poder da propaganda do Partido

Comunista antes de 1989 assumiu uma nova configuração hoje, uma forma que justifica

todas as teses. A confusão sociopolítica durante os anos ’90 permitiu um controle da

sociedade por pessoas que estão protegidas por políticos de alto nível. É uma forma de

corrupção óbvia, sem dúvida, e um modo de forçar este país à mediocridade.

Efetivamente, o fato de que políticos estejam tentando controlar a justiça (e assim

protegendo os partidários), por meio do Parlamento, do Governo ou de outras

instituições da sociedade democrática, ainda é um debate público frequente na Romênia.

Sob as circunstâncias, considerando esses traços pós-comunistas da sociedade

romena, o “disque denúncia” não é algo efetivo, eis porque as universidades romenas

ainda estão lutando em classificações internacionais, uma vez que a excelência não é

algo buscado por si mesmo, mas, ao contrário, algo a ser evitado, apenas pelo amor do

poder, em qualquer contexto. Mas então, o comunismo não funcionava em bases

semelhantes – mentira, mediocridade e propaganda?

3. Romênia pós-comunista – instituições frágeis e democracia

“original”.

Este país ex-comunista recuperou sua liberdade em 1989, quando o

comunismo, em sua forma totalitária, ruiu (novamente, não porque os romenos tivessem

tido a iniciativa de fazer a coisa certa, mas apenas porque nos ajustamos ao fato de que

todo o bloco comunista estava se despedaçando, sendo esta uma prova óbvia da posse

em larga escala da dimensão hofstediana do poder, específica da mentalidade romena).

Desde os anos ’90, tem havido uma luta para implantar a sociedade liberal-

democrática. Diferente de outros países, como a Polônia ou a República Tcheca, a

Romênia não teve força suficiente para produzir uma separação drástica/completa de

seu passado. Em consequência, a mudança de sistema ideológico aconteceu apenas na

superfície, enquanto os vetores do novo sistema eram, na maioria das vezes, indivíduos

influentes da segunda ou terceira onda do Partido Comunista ou da polícia política de

Ceausescu 8. Um exemplo simples para esta tipologia é o primeiro presidente

“democrático”, o senhor Ion Iliescu que, de muitos modos, assegurou esta “transição”

das estruturas do passado para o novo sistema (de fato, seu instinto inicial, que admitiu

publicamente, foi continuar o comunismo na Romênia, mas num estilo perestroika-

8 Nicolau Ceausescu foi o líder comunista e presidente da Romênia de 1965 até sua execução, em 1989.

(Nota do tradutor).

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74 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

reformista 9). Depois de muitas décadas de ditadura comunista, a maioria dos romenos

tendo sofrido lavagem cerebral e sendo ignorante, escolheu o caminho mais fácil, e,

assim, recusou o novo, graças a instintos retrógrados e ignorantes como os da época das

cavernas. O resultado foi que o novo tipo de sociedade estava sendo construído com

pessoas que não tinham qualquer outro interesse que o de ficar em vantagem no jogo do

poder, agora jogando pelas regras da democracia.

Não chega a surpreender que as “elites” que tomaram o poder nos anos ’90

fossem basicamente as mesmas pessoas do regime (comunista), embora se pudesse ter

tido a expectativa que os dissidentes que se opuseram ao comunismo teriam um papel

mais significativo. Infelizmente, este não foi o caso e, em consequência, mesmo agora

não existe qualquer coisa parecida a uma cultura de dissidência na Romênia. Além da

dimensão cultural que iremos analisar mais tarde neste artigo (com efeitos sobre o

“disque denúncia”), durante a ditadura de Ceausescu, ao indivíduo era ensinado (de

formas violentas) que não se podia lutar contra o “sistema” e que a dissidência não tinha

qualquer chance de ser bem sucedida. Muito poucos dissidentes, os quais passaram

muitos anos aprisionados, devido às suas convicções políticas, foi o exemplo que

convenceu o resto da população de que não há chance de lutar. Isto combinado com uma

cultura do informante (a polícia política da ditadura forçava as pessoas a espionarem-se

umas às outras, em nome dos ideais comunistas), levou à diminuição da personalidade e

responsabilidade individuais. A consequência foi que o indivíduo não lutava como

deveria por sua opinião, mas, ao contrário, aprendia a aceitar a dominação daqueles que

tinham o poder. Assim, a verdade se tornou algo que só se validava ideologicamente.

Tudo isto pode ser entendido muito facilmente, se aplicarmos a visão hofstediana de

valores transculturais e dimensões culturais.

O fato de que o primeiro presidente romeno (eleito ilegalmente para dois

mandatos e meio – mais tarde reitores de universidades o imitaram, para permanecer no

poder) havia começado sua carreira política na nova Romênia, livre e democrática,

insistindo em impor um tipo melhor de comunismo, e finalmente, uma “democracia

original”, retardou o progresso. De muitos pontos de vista, na medida em que a

9 Em conjunto com a Glasnost (transparência), a Perestroika (reestruturação) foi uma das políticas

introduzidas na URSS, em 1985, pelo presidente à época, Mikhail Gorbachev. Ela designava um processo

de reforma administrativa e política, e de abertura econômica, que culminaria com os eventos de 1989,

em especial a queda do Muro de Berlim e, em 1991, o colapso final do bloco soviético na Europa. (Nota

do tradutor).

.

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75 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Romênia mal começou a buscar esse caminho, a sociedade liberal-democrática é um

“fim da história”. No mínimo, as gerações mais novas sentem que ainda há um longo

caminho a ser feito rumo a esse ideal.

Uma das piores coisas foi o fato de que instituições nas novas sociedades

acabaram sendo geridas por líderes pós-comunistas, de maneira criptocomunista.

Democracia era apenas o disfarce para uma cultura da liberdade disfuncional e quebrada

a priori. O principal resultado: a corrupção, a falta de progresso, a irresponsabilidade

pública, o que não é surpreendente, de acordo com teóricos políticos. De maneira

realista, nós temos que concordar com os teóricos que afirmam que não se espera que as

democracias recentemente construídas sejam tão funcionais quanto aquelas dos países

em que tal sociedade já era uma tradição. A força da democracia é dada pelo poder das

instituições do Estado 10

. Por definição, um regime é democrático quando organiza

eleições livres, sem este sentido de que isto é mais do que uma formalidade. O que

conta, desde esta perspectiva, e mantém tais países subdesenvolvidos, são as práticas

não democráticas e a corrupção frequente. Na verdade, o mero fato de que uma nova

democracia esteja emergindo da escuridão dos princípios fundadores marxistas,

leninistas e stalinistas é uma razão para a sua falta de funcionalidade 11

.

Vale a pena enfatizar as ditas “práticas não democráticas” 12

que caracterizam

alguns dos regimes pós-comunistas que se converteram à democracia depois de ’89.

Tais práticas estão presentes também na Romênia. Não é fácil construir uma democracia

sobre as alvoradas da ditadura comunista. O “disque denúncia” pode ajudar? É

provável, especialmente se olharmos para a sociedade democrática de modo realista,

como uma poliarquia, aceitando o fato de que as instituições importam, de forma a

preencher o vazio criado pelo fato de que é a maioria que governa e não todos os

cidadãos de uma democracia. O pós-comunismo romeno organiza uma “democracia

original” que combina partes de oligarquia, totalitarismo e ditadura em suas instituições.

Há uma indiscutível conexão entre regimes totalitários e a administração das

universidades romenas. Universidades romenas construíram uma oligarquia em torno do

reitor, tomando de empréstimo à teoria política o seguinte princípio: “Quem não está

conosco, está contra nós”. A herança totalitária não deve ser negligenciada, logo, uma

explicação para as acusações de estalinismo em muitas das instituições públicas da

10

ROSE, R.; MISHLER, W.; HAERPFER, C. Democrația și alternativele ei. Institutul European, 2003.

p. 23. 11

Idem, p. 35-36. 12

Ibidem.

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76 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Romênia, em geral, ou, mais precisamente, putinismo 13

. Eu tenho publicado

intensivamente, na Gorjnews 14

, artigos que insistem nesses traços 15

que descrevem um

atualizado “sultanismo” (no sentido de Max Weber) nas universidades romenas. Mesmo

eleições, em tal contexto, são apenas de fachada, já que os detentores do poder estão

sempre vencendo 16

– provavelmente a teoria da distância hierárquica de Hofstede é

uma explicação para isto.

Este é o contexto institucional que um “disque denunciante” potencial encontra

em uma universidade romena – uma mistura de excessos de poder e decoração abusiva,

em que as principais características são de essência política (afinal, a direção de cada

conselho regional de educação é indicada pelo presidente do partido que tenha vencido

as eleições). O resultado é que se podem descobrir muitos traços políticos com um claro

toque de uma ditadura institucional refinada. São específicos de tais ditadores discretos,

governando as universidades romenas, o individualismo, o subjetivismo e a luta

incessante para impor suas vontades pessoais 17

.

Os elementos de oligarquia são também facilmente notáveis no nível de uma

liderança universitária, já que ela geralmente promove apenas as leis e regulamentos

que são favoráveis aos interesses 18

dos detentores do poder. A ilusão de democracia é

facilmente mantida em um nível superficial, pela organização de eleições livres, as

quais os oligarcas podem vencer, uma vez que a oposição é geralmente censurada e

isolada – no nível de impacto – assim como durante o domínio do Partido Comunista

(por exemplo, a menção de tais eventos foi feita recentemente na universidade pública

de Targu-Jiu, Romênia).

Tudo isto impõe óbvias práticas não democráticas no nível institucional em

uma universidade. “Disque denunciantes” estão encarando isto. O máximo que poderia

conseguir alcançar são pessoas desejosas de falar anonimamente sobre malfeitos em

universidades. Sua desculpa é que ainda há uma ditadura escondida (sob a aparência

13

Isto é, ao modo do regime de Vladimir Putin, presidente russo de 2000 a 2008, primeiro-ministro de

2009 a 2012 e presidente, novamente, de 2012 em diante. Seus críticos europeus o acusam de liderar uma

“máfia de Estado”, de modo análogo ao que fez Josef Stálin, dos anos ’30 aos ’50 do século XX. (Nota

do tradutor) 14

Veículo diário multimídia romeno, que inclui atualidades e comentários variados, inclusive políticos

(ver web: http://www.gorjnews.ro/). (Nota do tradutor). 15

CUTEANU, C. Externele, pe mâna adepților lui Putin: Marga și Gorun. Disponível em:

http://www.gorjnews.ro/slider/externele-pe-mana-adep%C8%9Bilor-lui-putin-marga-%C8%99i-

gorun.html. Acesso em: May 2012. 16

Democrația și alternativele ei, p. 59. 17

Idem, p. 60. 18

Ibidem.

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77 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

democrática).

Em minha experiência como jornalista investigativo, eu reparei na seguinte

psicologia, quando se trata de “disque denúncia” em uma organização romena, em

geral: como, em 1989, a Romênia não separou o velho do novo, tudo está borrado.

Consequentemente, “bocados” de comunismo, estalinismo e ditaduras reinventadas

foram importados para as organizações, no nível da liderança, e aceitos como

representando o estilo adequado de gestão. A consequência é que, seguindo seus

instintos, as pessoas muito frequentemente começaram a reagir aos líderes em uma

instituição, do mesmo modo que durante o comunismo: já que estão subjugadas pelas

mesmas práticas, elas são programadas para não assumirem excessiva liberdade

(enquanto o “disque denúncia” seria uma manifestação de liberdade). O risco é que elas

pudessem se tornar dissidentes e, baseados no que resultou da dissidência no passado

romeno, isto é algo que 99% dos romenos escolheriam não se tornar. Em resumo, o

sistema de valores que forma a cultura na Romênia não oferece qualquer razão para

dizer, nesse sentido, que “disque-denunciar” pudesse ser pragmático ou ajuizado.

A consequência óbvia é: não importa qual seja o malfeito, os romenos preferem

deixar todas as responsabilidades para os líderes, assim como foi durante o comunismo.

Naturalmente, há questões/desculpas inerentes para não “disque-denunciar” e desistir da

liberdade. Lutar contra o malfeito é uma boa ação? No fim das contas, pode-se dizer o

que é bem e o que mal? Considerando o relativismo da sociedade contemporânea, a

verdade não é um construto social, um construto que precisa ser alcançado

democraticamente? O “disque denúncia” não seria algo irracional, talvez um excesso?

Ou ainda outra desculpa pela passividade é que o malfeito pode bem ser algo

subjetivo. O “disque denunciante” é percebido como um empregado que, dentro da

organização, vai contra seus companheiros apenas para se opor à liderança. Nós

daremos depois uma explicação hofstediana para essa forma de pensar. O que já pode

ser dito é que é difícil a separação do passado comunista anticompetitivo, enquanto a

pressão faz as pessoas tolerarem o malfeito, já que parece ser a coisa prática a se fazer.

4. A boa ação de lutar contra o malfeito – um modo de sair do

círculo vicioso.

A quem o “disque denunciante” é leal? Isto significa que ele tem a intenção de

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78 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

fazer a coisa certa? Quão injusta é a retaliação contra um “disque denunciante”? São

algumas poucas questões legítimas que tentaremos oferecer uma resposta nesta parte do

artigo.

Ao reagir ao malfeito no interior da organização, um “disque denunciante” é

leal, principalmente, à sociedade (algo externo à organização), mas também à própria

organização, que é parte da mesma sociedade. Miceli and Near 19

afirmaram que a

intervenção do “disque denunciante” é reclamada por três dimensões de malfeitos:

comportamento ilegal, ações imorais ou ilegítimas. Em todos os três sentidos, as ações

de um “disque denunciante” perseguem a finalidade de fazer a coisa certa. Ao teorizar o

conceito de “disque denúncia”, deveríamos ter em mente a necessidade de separar o

“disque denúncia” de “outras ações de empregados voltadas à criação de mudanças

organizacionais no local de trabalho” 20

. As ações de um “disque denunciante” tentam

parar um malfeito que teria certo impacto negativo na sociedade, logo, para além da

organização.

Ao analisarmos este fenômeno historicamente, podemos chegar à conclusão de

que o “disque denúncia” sempre teve um efeito positivo na sociedade. Isso retroage ao

tempo da cidade-Estado de Veneza (quando o “disque denúncia” foi “instituído” ... para

ajudar a combater a corrupção e para dar aos cidadãos uma voz mais significativa em

seu governo 21

, mas remete também ao congresso americano durante a guerra civil (a lei

do “disque denúncia” queria combater fraudes), ou ao “apelo de Ralph Nader 22

, em

1971, por sua implementação como instrumento para estancar o malfeito

organizacional” 23

.

Uma conclusão não arriscada é que o “disque denúncia” é uma boa ação, sem

dúvida. Muitos autores o veem desse modo – por exemplo, Dworkin e Davidson

insistem no papel positivo do “disque denúncia” (como “instrumento comum de

controle”). Consequentemente, as organizações deveriam evitar a retaliação contra os

“disque denunciantes”:

19

MICELI, Marcia P.; NEAR, Janet P. Whistle-blowing in organization. Routledge/Taylor and

Francis, 2008. p. 4. 20

Idem, p. 6. 21

DWORKIN, T.M.; DAVIDSON, W. Whistle-blowing, MNC’s and Peace. Working Paper Number

437. February 2002, p. 3. 22

Ralph Nader é advogado, ex-congressista, político e ativista de direitos humanos estadunidense de

origem libanesa. (Nota do tradutor) 23

DWORKIN, T.M.; DAVIDSON, W. Whistle-blowing, p. 3.

Page 79: Redescrições, ano 4, número 2

79 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Se adequadamente protegidos da retaliação, eles se apresentarão com evidências do

malfeito antes que seja detectado externamente, isso se chegar a ser descoberto. Os danos

do malfeito poderiam ser reduzidos, comportamentos errados seriam freados, os prejuízos

da desatenção pública e os gastos da investigação seriam reduzidos, se tais relatos

ocorressem. Além disso, se o “disque denúncia” provasse ser uma ocorrência relativamente

frequente, os malfeitos poderiam diminuir, porque malfeitores potenciais ficariam em alerta

sobre o fato de que suas atividades não eram tão secretas quanto seriam no caso contrário 24

.

O passo essencial em qualquer organização é encorajar a denúncia interna.

Assim, a organização tem a oportunidade de consertar o malfeito, evitando efeitos

danosos, ficando dentro dos limites da ética e permanecendo leal à própria sociedade. O

que os EUA fizeram – sendo um dos defensores do “disque denúncia” – foi punir

impiedosamente as organizações acusadas de malfeitos com medidas extremas, e

precisamente com as formas práticas que iriam feri-las ao máximo. Somente assim elas

seriam capazes de perceber e aceitar a importância do “disque denúncia” interno. O

resultado imediato foi que o elemento de retaliação desapareceu de seu arsenal, nesse

dualismo “disque denúncia” / organização.

Isto é algo sobre o qual as universidades romenas ainda não estão

suficientemente conscientes, de modo que ainda existe a retaliação sobre os “disque

denunciantes”. Vem com o nível de democracia do país e com a compreensão do mundo

contemporâneo. Uma vez que o fator político está presente em todos os níveis, assim

como durante o comunismo, é óbvio que o malfeito não será punido. Ao contrário, o

“disque denunciante” será jogado aos “leões” que controlam, de forma pós-comunista,

todas as organizações públicas. O que normalmente acontece é que o “disque

denunciante” encarará o isolamento dentro da instituição e será preterido em qualquer

promoção ou possíveis bônus. O fenômeno mais interessante é que o restante de seus

colegas de trabalho não reaja a isto. Em si mesma esta é uma prova de que os colegas de

trabalho aceitam o totalitarismo autoimposto do líder e o fato de que este tem o direito

de dispor do “traidor” da forma que considerar apropriada. Tal aceitação da injustiça, se

imposta pelo líder de uma universidade romena, é uma especificidade da maioria das

organizações públicas romenas.

De maneira a tornar isto mais claro, eu enfatizaria dois exemplos conectados ao

“disque denúncia” nas universidades romenas. Um é o de um professor de uma pequena

universidade pública regional que eu tenho investigado, e o outro exemplo é o atual

primeiro-ministro da Romênia. O primeiro é um exemplo de como as instituições

24

Idem, p. 4.

Page 80: Redescrições, ano 4, número 2

80 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

retaliam, e o segundo é um exemplo de como os poderes políticos interferem com a

educação, protegendo os responsáveis pelos malfeitos.

O professor do primeiro exemplo é genérico para o caso dos “disque

denunciantes” que são retaliados. A pressão foi tão insuportável que ele deixou o

emprego, como resultado. Uma vez que a união em qualquer universidade romena

“atende” as disposições da administração, não foi surpresa que ele não tivesse recebido

apoio e tivesse que deixar o emprego.

O segundo exemplo está do lado dos retaliadores, que seguiram a regra

requerida para ser aceito pelo sistema universitário romeno: superficialidade acadêmica

combinada com apoio político significativo – eu estou me referindo ao primeiro-

ministro da Romênia, o senhor Victor Ponta.

Recentemente, ele esteve envolvido em um caso internacionalmente famoso de

plágio. A revista Nature 25

trouxe evidências consideráveis de que sua tese de

doutoramento foi plagiada. Mesmo se tratando de um caso de plágio direto (copiar-

colar) e de que a universidade que lhe deu o título de PhD tenha resolvido que as

acusações eram justificadas, em último caso, é da competência do ministro da educação

dar o veredito e tomar as medidas/sanções legais.

Aqui é onde o dilema kitsch começa. Quem nomeou o ministro da educação? O

próprio senhor Ponta, na qualidade de primeiro-ministro do governo romeno. Quem tem

que dar a assinatura final anulando o título de PhD do primeiro-ministro, com base no

plágio? O ministro da educação, nomeado pelo mesmo senhor Ponta. Ainda não há

conclusão, mas minha intuição me diz que o resultado será político.

A realidade é que o primeiro-ministro plagiou até 115 páginas de sua tese de

doutorado. Mas há um impasse, na medida em que o sistema educacional foi penetrado

por políticos que não se guiam pela verdade ética, objetiva, rígida e acadêmica, mas, ao

contrário, funcionam baseados em uma verdade contextual, política, flexível e

dependente de interesses políticos. Aqueles que sustentam que ele plagiou não podem

impor suas decisões, já que perderam a maioria no governo (?), enquanto o outro lado

não convence ninguém, já que o plágio é óbvio. Daí o impasse, o círculo vicioso que

mantém o sistema universitário na mediocridade, por causa dos políticos.

Quando se apresenta tal configuração do poder, quem teria a coragem de ser

25 SCHIERMEIER, Q. “Romanian Prime-minister accused of plagiarism”. In: Nature, International

Journal of Science.Disponível em: http://www.nature.com/news/romanian-prime-minister-accused-of-

plagiarism-1.10845. Acesso em: Junho, 2012

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81 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

um “disque denunciante” em uma universidade romena? Como dissemos antes, mesmo

a revista Nature não expôs seus “disque denunciantes” neste caso de plágio. Este não é

o único exemplo de quão superficial é o sistema universitário na Romênia, e o quão

baseadas em política são tomadas as suas decisões institucionais.

Outro exemplo, novamente de um político, o ex-ministro da educação, senhor

Ioan Mang. O Conselho Nacional de Ética lhe deu o veredito de plágio. Sua reação:

“Foi uma decisão política”. A coisa esquisita é que a acusação de plágio veio de um

partido político e não de gente da academia 26

, como deveria ter sido (novamente a

dimensão cultural da distância hierárquica). Mas, então, mais uma vez, considerando o

contexto sociopolítico da Romênia pós-comunista, que professor, em seu juízo perfeito,

teria a coragem de acusar um primeiro-ministro, ou o ministro da educação, de plágio

ou de infringir a lei? Esta é a coisa estranha acerca da maioria dos campos na Romênia

– excessiva penetração política ou mesmo, talvez, estrutura/essência política.

Assim, quem pode lutar contra o malfeito nas universidades romenas, uma vez

que mesmo a academia está povoada por políticos que parecem estar acima da verdade

acadêmica? Além disso, há alguma saída do círculo vicioso?

5. Pode-se ver a política como um componente cultural da

Romênia?

Dworkin e Davis conectam o “disque denúncia” a um componente cultural, e,

assim, sustentam que ele pode variar de país para país: “Como discutimos acima, o

“disque denúncia” moderno (não político) é um fenômeno ocidental. Os países que o

adotaram têm sistemas legais comuns baseados no direito, em uma sociedade que

entesoura o individualismo” 27

.

Em países como o Japão, o indivíduo não é tão importante quanto o grupo ao

qual ele pertence, e isto é um padrão cultural aceito. Algo similar poderia ser dito sobre

os romenos, por causa do passado comunista. Se, durante o comunismo, a polícia

política de Ceausescu transformou muitos romenos em seus informantes, aqueles que

querem fingir que o “disque denúncia” é errado podem usar esse passado como

26

DINU, C.; ION, R. PDL îl acuză pe ministrul Educaţiei, Ioan Mang, de plagiat şi îi cere demisia.

Disponível em: http://www.gandul.info/politica/pdl-il-acuza-pe-ministrul-educatiei-ioan-mang-de-

plagiat-si-ii-cere-demisia-9608215. Acesso em: September, 2012. 27

DWORKIN; DAVIDSON, p. 10.

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82 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

desculpa. O certo é que os romenos não podem ser acusados de excessivo

“ocidentalismo” – uma análise posterior mais detalhada, baseada nas visões de Geert

Hofstede, provará que o necessário individualismo é, culturalmente, quase impossível.

Nós comprovamos, anteriormente, o fato de que, na Romênia, a influência

política é essencial em campos externos à política, mesmo nos especiais, como a

academia. O indivíduo tem uma forte sensação de que ele não pode vencer uma luta

contra o “sistema”, na medida em que as instituições não estão funcionando

objetivamente, razoavelmente, ou no interesse dos cidadãos... Este assim chamado

“sistema” é uma mistura de poder político com um toque de falsa academia, e uma

autêntica mentalidade criptocomunista não ocidental.

O passado comunista seguido pela nova democracia criptocomunista (dos anos

’90) ofereceu uma lição amarga para qualquer um que fosse suficientemente ingênuo

para esperar pela oportunidade de uma mudança positiva por meio do “disque

denúncia”. Consequentemente, não chega a surpreender que os envolvidos nas “disque

denúncias” dos casos de plágio de Ponta e Mang não fossem pessoas das universidades,

mas, ao contrário, políticos. Este é um exemplo óbvio de que a ética acadêmica é algo

que só funciona se houver um interesse político, enquanto os verdadeiros acadêmicos

são desencorajados de um maior envolvimento no assunto. Pode ser seguro dizer que a

dimensão cultural mais essencial da Romênia é a política. Não é um exagero dizer que

ninguém teria se importado, se fosse um acadêmico a expor os dois plagiadores do

governo romeno – isto significa o quanto a política está estruturada em nossos genes. É

provavelmente prático dizer que ninguém no sistema educacional teria tido a coragem

de “disque denunciar” o primeiro-ministro. Além disso, considerando quão

partidarizada é a imprensa na Romênia, fora os políticos, ninguém seria capaz de

sustentar tal história na mídia.

O fato de as pessoas nas universidades, e na educação em geral, sentirem que o

poder não está depositado naqueles que dizem a verdade, mas, ao contrário, naqueles

que detêm a influência política, conduziu a uma aceitação derrotista e, eventualmente, a

um sistema universitário corrupto, onde a competência não importava mais.

Recentemente, nós da Gorjnews investigamos quantos dos professores que

detêm altas posições administrativas nas universidades locais haviam plagiado. A

conclusão é surpreendente: todos eles! Não obstante, nenhum de seus colegas jamais foi

a público “disque denunciar”. Seria o medo da retaliação ou, talvez, o fato de que o

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83 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

sistema pós-comunista não pode ser derrotado? É possível que os políticos tenham

imposto seu poder a tal ponto sobre a academia romena que as pessoas achem que a

honestidade não tem mais qualquer chance, enquanto a academia é reconstruída (o

mesmo durante o comunismo) com incompetentes, mas pertencentes ao partido político

que detém a maioria do parlamento?

Se for isso o que acontece, trata-se de uma perigosa forma de corrupção, já que

cria impostores no nível da educação, educadores cujo único valor é serem filiados ao

poder político, logo, dispensados de desempenho. A reforma educacional Marga (1997-

2000) relativizou completamente o sistema universitário, em nome do incremento no

número de pessoas recebendo educação superior na Romênia (os números pareciam

bons apenas nas estatísticas). O resultado imediato foi: a qualidade não importava mais,

já que as decisões estavam sendo tomadas baseando-se na quantidade (que se tornou o

critério para garantir apoio financeiro). A competência entre professores também

começou a não importar mais.

Esta é dimensão cultural real, em um bizarro sistema romeno, imposto por

criptocomunistas no interior de limites democráticos, logo após a queda do comunismo

na Romênia (1989). O efeito estranho, considerando a essência política de uma

dimensão cultural nacional, é que está se tornando natural que “disque denunciantes”

não consigam produzir uma mudança, a menos que os políticos tenham algum interesse

nela. O “disque denúncia” é geralmente justificável se há “boas razões para esperar que

a exposição não autorizada de informações confidenciais levará às mudanças

apropriadas” 28

. Não é desta cultura politizada dos romenos a aceitação derrotista do

fato de que a mudança não é possível? Consequentemente, a virtude ou o erro de um

assunto é decidido contextualmente, enquanto o papel de um “disque denunciante” seria

considerado irrelevante em uma realidade contextual coerente... Não obstante, há

implicações das decisões tomadas dentro deste contexto, implicações com efeitos.

Ainda assim, o “disque denúncia” tem uma conexão com a dimensão cultural

romena e o melhor teórico deste ponto de vista é Geert Hofstede.

6. A visão “dimensional” de Hofstede sobre o “disque denúncia”

cultural.

28

KERNAGHAN, K.; LANGFORD, John W. The Responsible Public Servant. The Institute For

Research on Public Policy, 1990. p. 100.

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84 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

A essência pós-comunista de países como a Romênia pode ser facilmente

analisada baseando-se na primeira dimensão cultural de Hofstede – distância

hierárquica. De acordo com esta primeira dimensão, em países com grande distância

hierárquica, pode-se aceitar que o poder esteja “desigualmente distribuído entre os

indivíduos” 29

, consequentemente concordando com a centralização do poder e com a

liderança autocrática. Como foi mencionado antes, considerando a forte influência que

o fator político tem tradicionalmente, na maioria das organizações públicas, o “disque

denúncia” é algo que está mais próximo da loucura do que da razão em qualquer

universidade pública da Romênia. Na maioria das vezes, mesmo como no caso do

primeiro-ministro plagiário, nenhuma sanção foi feita contra aqueles expostos por

malfeitos. Consequentemente, o “disque denunciante” se torna uma vítima exposta a

possíveis retaliações.

Seguindo as visões de Hofstede, quando se aborda o “disque denúncia”

culturalmente, o clima ameno da Romênia poderia ser também uma causa/sinal da

tolerância romena a uma distribuição desigual de poder e da não reação tão ácida aos

malfeitos quanto os ocidentais. Assim, “quanto mais frio o clima, menor será a distância

hierárquica” 30

. E a Romênia possui um clima ameno. A autoridade não é desafiada,

enquanto o grau de distância hierárquica permanece grande.

Outra dimensão pela qual se pode ver acuradamente os romenos, quando se

trata de “disque denúncia”, é a de evitar a incerteza. De acordo com esta última,

devem-se obedecer as regras, para que as “pessoas possam estar nas organizações por

toda a vida” 31

. Esta mentalidade remonta ao comunismo, quando todas as instituições e

companhias pertenciam ao governo. Os empregadores nas universidades romenas

guiam-se pelo seguinte princípio: “A vida é estressante por causa de sua incerteza” 32

. E

aceitam o sistema tal como é imposto pelos detentores do poder. Eu imagino que este

seja o sinal de uma verdade unilateral, quase ditatorial, que não dá margem para a

flexibilidade que um “disque denunciante” requer (“culturas evitadoras de incerteza

29

Sem referência no original. (Nota do tradutor) 30

MILNER, L.; FOODNESS, D.; SPEECE, M. W. “Hofstede’s Research and Cross-Cultural Work-

Related values: Implications for Consumer Behavior”. In: RAAIJ, W. Fred Van; BAMOSSY, Gary

(Eds.). European Advanced in Consumer Research, Vol. I. Association for Consumer Research, 1993.

p. 70-76. 31

Sem referência no original. (Nota do tradutor) 32

MILNER, L.; FOODNESS, D.; SPEECE, M. W. Hofstede’s Research and Cross-Cultural Work-

Related values, p. 70-76.

Page 85: Redescrições, ano 4, número 2

85 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

acreditam em uma Verdade absoluta, e culturas aceitadoras de incerteza adotam uma

posição mais relativista” 33

).

A visão oposta foi descrita por Bond e Hofstede em The Confucius

Connection:

Culturas aceitadoras de incerteza são mais tolerantes com comportamentos e opiniões que

diferem das suas próprias; elas tentam ter tão poucas regras quanto possível, e, no nível

filosófico e religioso, elas são relativistas, permitindo a muitas correntes fluir lado a lado 34

.

O individualismo – outra dimensão cultural hofstediana – é específico de

países afluentes, o que a Romênia não é. Logo, neste caso poder-se-ia falar de

coletivismo – “uma preferência por uma trama social estreitamente costurada, na qual

os indivíduos podem esperar que seus parentes, seu clã, ou outros de seus grupos de

pertencimento cuidem deles em troca de uma lealdade inquestionável” 35

. Em tal

sociedade, a outra dimensão – masculinidade – é praticamente inexistente.

Em conclusão, quando se trata de “disque denúncia” na Romênia, tem-se que

olhar as dimensões culturais de Hofstede e levar em consideração o contexto

sociopolítico, o qual possui todos os ingredientes pós-comunistas.

7. Criando uma cultura de “disque denúncia”?

Considerando seu passado comunista, totalitário, a Romênia é um país que

assume uma direção ocidental (no nível da propaganda), mas que age essencialmente

como um país pós-comunista traumatizado. “Disque denúncia” é um conceito

ocidental que está acomodado no contexto romeno em nível discursivo, mas que, na

prática, raramente prova a sua eficiência, pragmaticamente. Desde a era comunista, o

fator político é o decisivo em qualquer sistema. Esta mentalidade alcançou as gerações

mais novas, e com isso ele ainda é algo presente em vários sistemas da Romênia de

hoje. Como consequência, as mais importantes figuras públicas possuem um forte

passado e mentalidade comunistas, e sua influência os permite penetrar quaisquer

sistemas e subjugá-los, reorganizando-os em torno de si próprios.

33

HOFSTEDE, G.; BOND, M. H. “The Confucius Connection: From Cultural Roots to Economic

Growth”. In: Organizational Dynamics, Vol. 16, No. 4, 4-21. s/d. p. 19 34

HOFSTEDE, G., BOND, M. H., The Confucius Connection, p. 11 35

HOFSTEDE, G. “Cultural Dimensions in Management and Planning”. In: Asia Pacific Journal of

Management, January, 81-99, 1984b. p. 83

Page 86: Redescrições, ano 4, número 2

86 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

O mesmo aconteceu com a educação e é muito óbvio quando se fala do sistema

universitário: nenhuma universidade romena está classificada entre as primeiras 600 do

mundo. Isto não significa que não haja professores e pesquisadores extraordinários, ou

que os estudantes não sejam muito competitivos, mas, de outro modo, tem muito a ver

com o fato de que o progresso não é permitido pelas mesmíssimas pessoas que nós

mencionamos antes – as personalidades comunistas criadoras da Romênia “capitalista”.

A qualidade não é mais algo objetivo, mas, ao contrário, algo ditado pelo líder alfa.

É irônico que uma das mais importantes figuras da educação e da propaganda

comunistas, o doutor Andrei Marga (e atualmente há um forte debate sobre ele e sobre a

possibilidade de que possa ter colaborado com a polícia política repressiva comunista),

fosse aquele que teve a pretensão de reformar a educação romena em fins dos anos ’90,

enquanto era secretário de educação. O resultado desta reforma é um sistema

educacional medíocre. Naturalmente, isto é razoavelmente discutível, já que há

apoiadores e inimigos de suas visões reformistas, mas as análises internacionais provam

que os resultados não foram satisfatórios.

Não obstante, a ironia permanece, na medida em que o autoproclamado

“reformista” da educação romena é um indivíduo publicamente reconhecido por suas

profundas raízes comunistas – o senhor Marga é ex-professor de marxismo na Romênia

comunista. Ele é sintomático da mediocridade e falsidade da sociedade romena, tanto

quanto da inexistente cultura do “disque denúncia”.

Finalmente, talvez fosse possível relevar o fato de que algumas/a maioria das

figuras públicas teve um passado oportunista/comunista, caso elas fossem

objetivamente destacadas, apesar do sistema em que foram criadas. A questão desta

tipologia das figuras públicas (dispersadas por muitos sistemas públicos na Romênia)

com relação ao progresso social é que elas importaram práticas não democráticas do

comunismo, praticamente forçando a realidade capitalista a lidar com e a se ajustar à

essência comunista, em vez do oposto.

Por exemplo, no caso de Marga, ele é famoso por ter abusado do estatuto que

limitava os mandatos legalmente permitidos aos reitores da Universidade Babes-Bolyai,

de Cluj, Romênia. Do mesmo modo que ditadores em qualquer país não democrático,

ele manteve o poder nessa universidade por quase 20 anos. Quando alguém faz isso em

uma universidade de um país democrático, pode-se especular que essa pessoa não tem

qualquer respeito pela democracia. Por todo esse tempo, houve pessoas “disque

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87 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

denunciando” tal abuso, mas isto não importou, já que o relógio “interior” da Romênia

pós-comunista não era ocidental.

O único resultado foi o desencorajamento do “disque denúncia” e, assim, da

mentalidade do fazer a coisa certa. Somando-se a isto a conclusão objetiva de que, para

algumas pessoas, a lei e a decência não importariam (por exemplo, para reitores que

abusaram da duração de seus mandatos, para primeiros-ministros, para quem o plágio é

tolerável), as dimensões culturais hofstedianas se tornaram consolidadas (a distância

hierárquica, o evitar a incerteza, o individualismo): todas elas se aplicam a indivíduos

que aprenderam da forma mais dura que fazer a coisa certa mais leva alguém à punição

do que à recompensa. Além disso, que as leis e normas não importam, já que há pessoas

que estão acima da lei. Consequentemente, qualquer “disque denunciante” é

considerado um “dedo duro”, enquanto a visão geral é a de que a lealdade para com a

organização é mais importante, que o malfeito é relativo e que todos os que têm poder

no sistema público da Romênia são tolerados enquanto o fazem. Não é esta a verdadeira

definição da distância hierárquica hofstediana?

Tudo isto deveria ser levado em consideração, quando pensamos em modos de

impor uma cultura de “disque denúncia” em um país como a Romênia. Quando lemos

visões sobre o assunto, como a de Lilanthi Ravishankar 36

, podemos facilmente

visualizar o papel dos valores e da cultura, em geral, numa compreensão hofstediana,

tanto quanto a importância da história e de como ela influenciou os indivíduos. Um dos

subtítulos do texto de Ravishankar sugere que “pode-se evitar o ‘disque denúncia’ ao

encorajá-lo”. Isto funcionaria em um sólido contexto ocidental, bem estabelecido, mas

não no caótico sistema romeno, por razões enfatizadas previamente. Toda a visão de

Ravishankar seria aceitável na Romênia, mas não teria qualquer efeito num país onde há

boas leias, mas que são aplicadas apenas erraticamente.

Em conclusão, em um país onde os valores ocidentais não estão bem

estabelecidos, conceitos e valores essenciais do Ocidente são aceitos, na teoria, mas não

são aplicados na prática. O pano de fundo cultural é aquilo que torna possível que

qualquer conceito progressista seja abraçado e tornado funcional. O próprio progresso

da sociedade é retardado pelo caos de opções, criando uma mistura autobloqueadora de

pós-comunismo, comunismo, capitalismo, democracia, Oriente, Ocidente. Não escolher

36

RAVISHANKAR, L. Encouraging Internal Whistleblowing in Organizations. Disponível em:

http://www.scu.edu/ethics/publications/submitted/whistleblowing.html, Markkula Center for Applied

Ethics, Santa Clara University, 2003.

Page 88: Redescrições, ano 4, número 2

88 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

uma direção clara e decidida e, em vez disso, contextualizar excessivamente, trava o

progresso em um círculo vicioso. Tal incerteza é uma causa de mediocridade, como no

caso da educação pública, especialmente no nível universitário.

Por último, devido ao seu passado comunista, já que a Romênia cria contextos

organizados em torno de machos alfas (em vez de um sistema independente de um

líder), seu progresso rumo ao Ocidente permanece duvidoso, e uma cultura do “disque

denúncia” não pode ser implantada. Ao contrário, uma cultura anti “disque denúncia” é

muito funcional e coerente com uma mentalidade derrotista, baseada na distância

hierárquica hofstediana. O evitar a incerteza em uma instituição pública na Romênia é

equivalente a aceitar um tipo único de individualismo: aquele do líder, a quem o

rebanho dá suficiente poder administrativo/político/institucional para retaliar

drasticamente qualquer empregado suficientemente individualista para “disque

denunciar” um possível caso de malfeito.

Tradução: Aldir Araújo Carvalho Filho37

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37

Tradução: ALDIR ARAÚJO CARVALHO FILHO, Doutor em Filosofia, Professor do Colégio Pedro II

(RJ), Docente permanente do PPG em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí, professor

visitante do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão, membro do GT

Pragmatismo e Filosofia Americana (ANPOF) e membro do conselho editorial da Revista Redescrições.

Concluída em São Luís (MA), em 13 de fevereiro de 2013

Page 89: Redescrições, ano 4, número 2

89 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

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International Journal of Science, June 18th, 2012,

http://www.nature.com/news/romanian-prime-minister-accused-of-plagiarism-

1.10845.

.

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90 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

ASPECTOS DA EXPRESSÃO DAS ARTES CÔMICAS DA ERA

CLÁSSICA

Fabio Mourilhe

RESUMO Este trabalho tem por objetivo avaliar a relação existente entre as artes cômicas,

anteriores aos quadrinhos, realizadas na era clássica (entre os séculos XVII e XVIII) de

modo a verificar a influencia desta era sobre estas artes. Aqui, são comparadas as

linguagens características desta era clássica (e também certos aspectos do renascimento

e era moderna) conforme a descrição apresentada por Foucault em “Palavras e as

coisas” e a prática apresentada nas artes cômicas da mesma época. Verificou-se na

linguagem destas artes cômicas, de uma forma geral, uma estrutura muito mais aberta

em relação àquela utilizada na era clássica, em função da preponderância de uma

imagem pautada pela representação grotesca.

Palavras-chave: Artes cômicas. Era clássica. Gramática. Epistemologia.

ABSTRACT This study aims to evaluate the relationship between the comic arts, prior to comics,

performed in the classical era (between the seventeenth and eighteenth centuries) in

order to check the presence of this era over this kind of art. Here, the languages that

characterize this classic era (and also some aspects of the Renaissance and the modern

era) are compared, according to the description presented by Foucault in “The Order of

Things: An Archaeology of the Human Sciences” and the practice perceived in the

comic arts of this classical era. It was found in the language of these comic arts, in

general, a much more outgoing structure compared to that used in the classic age, due to

the preponderance of the grotesque representation in its image.

Key-words: Comic arts. Classical era. Grammar. Epistemology.

1.Introdução

Este trabalho surgiu a partir da necessidade de avaliação das artes cômicas da

era clássica, como expressão própria decorrente de uma pragmática que as caracteriza e

que vai além de um modelo linguístico e de uma gramática.

A partir da delimitação desta expressão, coloca-se em questão se uma

determinação histórica das práticas epistemológicas que caracterizaram a era clássica

poderia ser sentida na prática das artes cômicas caracterizadas pelo grotesco, sátira e

deboche.

Temos aqui como hipótese que “as artes cômicas da era clássica se desdobram

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sem uma ordem prevista de antemão graças ao privilegio de uma critica social e política

e uma estética grotesca”.

2.Linguagem da era clássica e artes cômicas

A linguagem da era clássica (séculos XVII e XVIII) apresentava uma ênfase na

soberania das palavras, representações soberanas na representação do pensamento e na

representação de si mesmo (linguagem e palavra), se desdobrando e se refletindo em

outras representações equivalentes, um processo interno de onde emergia o sentido.

Temos, então, uma linguagem em que a representação se estabelece consigo mesma e

com o pensamento (Foucault, 1966, pp.107-108).

Na linguagem das artes cômicas – composições gráficas e textuais, sequenciais

ou não da era clássica, com os originais gravados em chapas de metal, coletados em

álbuns ou distribuídos individualmente, com extrema popularidade – temos

características próprias que transcendem a formatação organizada da linguagem da

época com composições através de imagens (sem a estruturação exclusiva da

representação linguística), que junto ao uso de palavras que repetem a ação das imagens

ou as comentam, ou seja, o que se estabelece consigo na linguagem das artes cômicas

faz parte de uma linguagem com uma estrutura muito mais aberta do que aquela vigente

na linguagem utilizada na gramática clássica (tal qual se estabeleceu com a ordenação e

estruturação das palavras), sem convenções estritas de como se deve desenhar

(excetuando a teoria apresentada por Hogarth (1753)), com expressões equivalentes de

sentido através de imagens inspiradas no grotesco (principalmente advindos de Bosch e

Brueghel) ou em alegorias, podendo apontar para uma multiplicidade de direções.

Apresenta-se o pensamento não através de uma simples palavra, mas de jogos entre

imagens e palavras que se articulam mutuamente.

De forma diferente da era clássica, a linguagem no renascimento (século XVI)

estava restrita a uma erudição de poucos, que comentavam (postura de eterno

comentário), em espaço igualmente restrito (manuscritos e folhas de livros) com siglas e

marcas indecifráveis para a maioria. Estes sinais estavam misturados a todas as coisas.

“O enigma de uma palavra que uma segunda linguagem deve interpretar” (Foucault,

1966, pp.108-109).

Esta linguagem do renascimento de certa forma se manteve na linguagem das

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artes cômicas da era clássica, tanto pela semelhança de sua composição, com imagens e

texto, como por seu caráter enigmático e restrito a poucos (principalmente em

Arcimboldo (Figura 1)), na medida em que nas artes cômicas criticavam não só a si

mesmos, mas principalmente a sociedade, realeza e os costumes; críticas nem sempre

compreendidas.

Figura 1- Primavera, casa do amor – Arcimboldo.

Com as artes cômicas da era clássica, conforme visto, o caráter enigmático não

é retirado das palavras, em expressões com palavras e desenhos que se desenvolvem nos

signos verbais e visuais. Porém, de forma semelhante à gramática imposta pela era

clássica, os signos textuais desdobram a linguagem em uma ordem visível e um caráter

exotérico (destinado a um grande público) é mantido em seu discurso. Tendo o discurso

como objeto da linguagem, trata-se de saber como o discurso das artes cômicas

funciona, o que é designado, quais elementos são recortados. Aqui, temos um panorama

político específico com um discurso que, considerando as imagens, não estava preso aos

limites de análise e composição da gramática clássica, nem em seu esquema de

substituição limitada a palavras sinônimos envolvidas em uma representação. Na era

clássica, o comentário e a interpretação deram lugar à crítica, mas, nas artes cômicas,

temos não uma predominância da crítica a sua própria estrutura e linguagem, mas uma

interpretação social e política do cenário que se desenrolava na vida cotidiana,

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possibilitando a veiculação de toda uma pragmática própria. Tanto nos impressos

ilustrados do período medievo quanto nas artes cômicas da era clássica, temos a

exposição de significados ocultos que demandavam uma decifração.

A crítica presente na linguagem da era clássica interroga a linguagem como se

ela fosse uma “pura função” e conjunto de signos, mas ambiguamente não consegue

deixar de considerar o “modo de presença” do que se diz, sua verdade ou mentira,

opacidade ou transparência. Nas artes cômicas da época, contudo, o conjunto de signos

envolvia uma multiplicidade não prevista em conjuntos estruturados de palavras,

deixando de lado a necessidade de se manter um modo exato de apresentação, e sim de

uma caricatura, simulacro com ares grotescos (como vemos em Jacques Callot (1592-

1635) (Figura 2)), que antes da escola inglesa (Hogarth, Rowlandson (1756 -1827))

prevaleceu. O conteúdo, contudo, tinha uma preocupação com uma tentativa de se

atingir uma verdade e transparência do que se diz, uma preocupação ética, com os

aspectos visuais indicando fatos e personagens cotidianos através de distorções

caricaturais, mesmo em outros de origem inglesa, como Gillray (1757 – 1815) e

Cruikshank (1792 – 1878), onde se salientava o ridículo (Figura 3). Assim, as artes

cômicas, com uma segunda linguagem por cima da outra, ou melhor, apenas um efeito,

do texto ou da imagem, no limite que se dá na extensão de uma sobre a outra, em certa

medida se assemelha ao que se deu com a literatura no século XIX, com uma ênfase na

interpretação e no comentário.

Figura 2- Jacques Callot - Gobbi

Figura 3- A voluptuary under

the horrors of digestion - James

Gillray.

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Nas artes cômicas da era clássica, um conteúdo crítico vem associado a sua

expressão, mas sem uma preocupação com o modo pelo qual se diz, diferente do papel

representacional assumido pela linguagem da era clássica que tenta assumir toda

diversidade possível da linguagem na representação. A linguagem que começa a ser

delineada nas artes cômicas permite a apresentação de toda multiplicidade possível

através de desenho e texto, sem que seja necessário estipular de antemão todas as

combinações possíveis de seu vocabulário, sem a imposição de uma ordem reflexiva,

gramática e retórica. Em termos artísticos, aquele que mais se aproxima desta proposta

(não condizente com a proposta das artes cômicas da época) é William Hogarth no

século XVIII com o seu “Análise da beleza” (1753). As imagens que acompanham

“Análise da beleza” mostram referências a áreas e estilos diversos, e também a

transformação progressiva de certos motivos e formas, como objetos, matizes de cor,

degradês, traços e a evolução de uma representação figurativa clássica da face até sua

versão caricata (Figura 4). Contudo, os temas retratados se afastam de um caráter

essencialista.

Figura 4- The analysis of beauty- William Hogarth

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A ordem reflexiva indica a relação da gramática com uma tentativa de

universalizá-la, considerando a possibilidade de língua ou discurso universal, mostrando

uma prática comum a alguns teóricos que estudam os quadrinhos atualmente, como

Groensteen. Esta língua teria o poder de atribuir a cada representação (e a cada

elemento que a compõe) um signo marcado de modo único. Mostra também como estes

elementos da representação são compostos e como são ligados uns aos outros,

mostrando todas as ordens possíveis. “Ao mesmo tempo, característica e combinatória”

(Foucault, Ibid, pp.116-117). Este objetivo de estruturação máxima do mundo se faz

sentir de forma concreta nas enciclopédias, uma tentativa de recolher entre as palavras a

totalidade do mundo.

Nesta estruturação, conhecimento e linguagem estão imbricados, tendo a

representação como origem e princípio de funcionamento, se apoiando e se criticando

mutuamente em um mesmo movimento. Envolvem uma linguagem que analisa a

“simultaneidade da representação, em distinguir-lhe os elementos, em estabelecer as

relações que os combinam, as sucessões possíveis segundo as quais podemos

desenvolvê-los”; e ao mesmo tempo um conhecimento que aparece com toda clareza.

Uma ordem analítica estrita (Ibid, pp.120-121). A dependência entre saber e linguagem

será desfeita com a literatura no século XIX, quando o saber volta a ser fechado e a

linguagem passa a ser tratada de forma pura (sua essência e função) e enigmática. E

entre saber e linguagem se desenvolvem linguagens intermediarias e derivadas.

A estruturação que se enfatiza com a linguagem da era clássica também passa

pelo formato da cópula e da proposição, objeto essencial da gramática e primazia formal

do juízo, com seu sujeito, atributo e ligação, tendo esta ligação (verbo – uma palavra

entre palavras) como condição para o discurso e o discurso como indicação para o

pensamento clássico de que existe linguagem.

A análise das palavras continua no século XIX através da filologia, porém com

a literatura que emerge na mesma época, temos a ideia de que,

(...) destruindo as palavras, não são nem ruídos nem puros elementos arbitrários que se

reencontram, mas outras palavras que, pulverizadas por sua vez, liberam outras — essa

ideia é ao mesmo tempo o negativo de toda a ciência moderna das línguas e o mito no qual

transcrevemos os mais obscuros poderes da linguagem, e os mais reais (Foucault, 1966,

p.145).

Deleuze & Guattari (1980, pp.12-13) mostram uma pulverização de palavras,

na situação sugerida por Lewis Carrol, na qual o professor lança uma questão do alto da

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escadaria, que é transmitida pelos valetes que a deformam a cada degrau, ao passo que o

aluno, embaixo, no pátio, envia uma resposta, ela mesma deformada, a cada etapa da

subida.

Contudo, a representação distorcida através das imagens das artes cômicas não

é uma prática que prevalece de uma forma geral em outras artes, discursos e textos.

Enquanto a linguagem estiver presa à representação (palavra ou marcas), as

linguagens segundas estarão presas às alternativas entre crítica e comentário,

“proliferando-se ao infinito na sua indecisão” (Foucault, 1966, p.112).

A dificuldade de se estabelecer uma relação entre gramática da era clássica e as

artes cômicas da época parece indicar a tarefa de tentar organizar o que poderia ser uma

gramática destas artes cômicas como secundária (e inútil).

3.Conclusão

Para as artes cômicas da era clássica, temos uma articulação que permite uma

expressão própria que não está ligada necessariamente a modelos linguísticos e da

gramática, mas decorre dos corpos relacionados e de toda a pragmática advinda de

influências culturais, tecnológicas e de suporte que estão sempre em devir.

Uma determinação histórica das práticas epistemológicas já se mostra

problemática nas ilustrações humorísticas anteriores aos quadrinhos, considerando as

distinções entre as práticas realizadas nestas ilustrações e na linguagem da era clássica,

pois estas ilustrações, apesar de trazerem aspectos que ecoam na linguagem da era

clássica, são pautadas pelo grotesco, sátira e deboche. Em termos de imagem (imagem

que neste caso é soberana), as artes cômicas possibilitam um desdobramento de

significado que não está previsto de uma forma estrita em um dicionário e não existe

uma ordem correta para a apresentação dos elementos, como se dá na gramática em

relação à linguagem textual, pois se trata de uma grande imagem “aberta”, de forma

semelhante ao que ocorreu em Yellow Kid.

Esta estrutura mais aberta pode ser articulada em uma série de efeitos, junto ao

grotesco, a sátira e o deboche que serviram não apenas como autocrítica a sua própria

linguagem, mas como crítica social e política. Além disso, as artes cômicas da era

clássica, ao mesmo tempo em que traziam um caráter exotérico (pela utilização de

imagens em alguns casos realistas ou com um significado óbvio), se atinham também a

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um caráter hermético (pelas simbologias e alegorias utilizadas), pautando-se assim pela

diversidade, cabendo inclusive uma separação onde uma linguagem mais próxima

àquela da era clássica poderia ser pensada apenas tardiamente a partir de Hogarth,

porém, mesmo neste artista, temos uma crítica para além de uma autocrítica à própria

linguagem. As primeiras artes cômicas da era clássica, por sua vez, já se aproximam da

linguagem que emerge com a literatura (e sua narrativa própria pautada por outras

linguagens em sua superfície), pela desconexão promovida através da estética grotesca e

alegorias.

REFERÊNCIAS

Deleuze, Gilles. Guattari, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia vol.2. São

Paulo: Editora 34, 1995 (1980).

Foucault, Michel. As palavras e as coisas, São Paulo: Martins Fontes, 1999 (1966).

Hogarth, William. The Analysis of Beauty. London: John Reeves, 1753.

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Tradução

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A ONTOLOGIA DA ARTE DE MASSA

Noël Carroll1

Se por “tecnologia” significamos aquilo que aumenta nossos poderes naturais,

em especial aqueles de produção, então a questão da relação da arte com a tecnologia é

perene. Entretanto, se temos em mente uma concepção mais estrita de tecnologia, a que

faz parte da produção em massa rotineira e automática de múltiplos exemplares do

mesmo produto – sejam eles carros ou camisetas – então a questão da relação da arte

com a tecnologia é premente para nosso século. Pois especialmente em nosso século o

comércio com a arte se fez cada vez mais mediado por tecnologias no sentido estrito

(produção/distribuição em massa) do termo. Uma tecnologia no sentido lato é um

instrumento protético que amplia nossos poderes 2. Nesse sentido, as tecnologias que

marcam a revolução industrial são próteses de próteses, aumentando o alcance de

nossos já alargados poderes de produção e distribuição por meio da automatização de

nossos recursos técnicos de primeira ordem. Chamemos tais tecnologias de “tecnologias

de massa”. O desenvolvimento das tecnologias de massa inaugurou uma era da arte de

massa, obras de arte encarnadas em múltiplas instâncias e disseminadas largamente

através do tempo e do espaço.

Hoje em dia é lugar comum notar que vivemos em um meio dominado pela

arte de massa – quer dizer, dominado pela televisão, cinema, música popular (gravada e

transmitida), romances de sucesso absoluto na lista dos mais vendidos, fotografia e por

aí vai. Sem dúvida, essa condição é mais acentuada no mundo industrializado, onde a

arte de massa, ou se preferir, entretenimento massificado, é provavelmente a forma mais

comum de experiência estética para a maioria das pessoas 3. Mas a arte de massa

1 Texto cedido pelo autor para publicação na Revista Redescrições. Originalmente publicado em: The

Journal of Aesthetics and Art Criticism, Vol. 55, n. 2, Perspectives on the Arts and Technology (Spring,

1977), 187-199. 2 Patrick Maynard, “Photo-Opportunity: Photography as Technology” The Canadian Review of

American Studies 22 (1991): 505-506. 3 Eu prefiro o termo “arte de massa” a “entretenimento”, uma vez que o fenômeno que estou discutindo

neste artigo obviamente proveio de artes e gêneros bem conhecidos como o drama, o romance, a pintura a

óleo. O termo “entretenimento”, para especificá-lo, é muito mais solto do que o termo “arte”. Além disso,

ao estipular que minha preocupação é com arte de massa, estou excluindo de minha investigação os

gêneros da “mass media” (mídia de massa), como noticiários de televisão e eventos esportivos, que não

provêm das artes.

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também penetrou o mundo não industrial a tal ponto que em muitos lugares algo como

uma cultura global de massa passou a coexistir, com o que Todd Gitlin chamou de uma

segunda cultura, paralela às culturas indígenas e às tradicionais. De fato, em alguns

casos, essa segunda cultura em certos países do terceiro mundo até mesmo erodiu a

cultura primitiva. De qualquer modo, está se tornando cada vez mais raro encontrar

povos em algum lugar do mundo hoje que não tenham alguma exposição à arte

massificada como resultado da divulgação de tecnologias de massa.

Da mesma forma não há sinal de afrouxamento no controle da arte de massa.

Mesmo agora, os sonhos de cabos de conexão penetrando em cada casa encantam os

magnatas da mídia, enquanto Hollywood produz filmes em ritmo frenético, não apenas

para vender ao mercado, mas também a fim de sustentar uma despensa capaz de

satisfazer os apetites vorazes dos centros de diversão domésticos cuja evolução em

futuro próximo foi predita. Propriedades intelectuais de todo tipo estão sendo

produzidas e adquiridas em ritmo delirante na expectativa de que as futuras tecnologias

de mídia que estão por vir demandarão uma quantidade simplesmente colossal de

produtos para transmitir. Assim, em todo caso, podemos antecipar mais arte de massa

em toda parte do que nunca antes.

Entretanto, apesar da inegável relevância da arte de massa para a experiência

estética no mundo tal como o conhecemos, a arte de massa tem recebido pouca atenção

nas recentes filosofias da arte, que parecem mais preocupadas com a arte

contemporânea de alto nível, ou mais precisamente, a arte de vanguarda. Dada essa

lacuna, o propósito do presente artigo é chamar a atenção dos filósofos da arte para

questões concernentes à arte de massa, um fenômeno que já se faz notar pela atenção

generalizada.

A questão particular que eu gostaria de abordar aqui concerne à ontologia da

arte de massa – a questão do modo como a arte de massa existe. Ou, isso dito de outro

modo, eu tentarei especificar o status ontológico das obras de arte de massa. Mas, antes

de discutir o status ontológico da arte de massa, será proveitoso esclarecer o que eu

entendo que seja a arte de massa. Assim, no que segue, tentarei primeiro definir as

condições necessárias e suficientes para pertencer à categoria de arte de massa. Em

seguida, introduzirei uma teoria sobre o status ontológico da arte de massa. E,

finalmente, considerarei certas objeções às minhas teorias.

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I. A DEFINIÇÃO DE ARTE DE MASSA

Talvez a questão básica que surge com relação à minha abordagem de arte de

massa concerne minha razão para chamar o fenômeno sob análise “arte de massa” ao

invés de, digamos, “arte popular”.4 Minha preocupação a esse respeito é bastante

simples. “Arte popular” é um termo ahistórico. Se pensarmos na arte popular como arte

das classes mais baixas, então, provavelmente, cada cultura na qual apareceram divisões

de classe, nelas existiu alguma arte popular. De outro lado, se consideramos arte popular

como arte que muitos em dada cultura usufruem, então, espera-se que toda cultura tenha

alguma arte popular. Mas o que se chama de “arte de massa” não existiu em todo lugar

através da história humana. O tipo de arte – de que cinema, fotografia e rock fornecem

exemplos típicos – prolifera na cultura contemporânea, tem certa especificidade

histórica. Ela surgiu no contexto da sociedade industrial moderna, sociedade de massa, e

é expressamente destinada para uso dessa sociedade, justamente empregando forças

produtivas características dela, tais como tecnologias de massa, a fim de levar a arte

para enormes populações consumidoras.

Arte de massa, diferentemente de arte popular pura e simples, não é o tipo de

arte que possa ser encontrada em qualquer sociedade. É a arte de massa, da sociedade

industrial, e se destina às finalidades dessas sociedades. Sem dúvida, apesar de arte de

massa ser uma categoria historicamente específica, não se pode datar seu advento com

grande precisão. A própria sociedade de massa começa a emergir gradualmente com a

evolução do capitalismo, da urbanização e industrialização, e a arte de massa se

desenvolve conjuntamente, surgindo já com as primeiras tecnologias de informação de

massa, como a imprensa, que também possibilitou a popularização de gêneros de arte de

massa como o romance. À medida que a industrialização e as tecnologias da informação

que são parte e fruto delas expandiam, se somaram a fotografia, o cinema, o rádio, as

telecomunicações e agora a informática se acrescentou à imprensa de modo que a arte

produzida e disseminada tecnologicamente, progressivamente se tornou a marca de uma

época que começa em fins do século 19 e prossegue com intensidade exponencialmente

crescente ao longo do século 21.

4 Para defesas mais elaboradas da definição de arte de massa proposta nesta seção ver: Noël Carroll, “The

Nature of Mass Art” (“A Natureza da Arte de Massa”) e “Mass Art” (“Arte de Massa”), “High Art and

the Avant-Garde: a Response to David Novitz”, (“Arte Superior e a Vanguarda: uma Resposta a David

Novitz”), in: 1922: Philosophic Exchange (Brockport, New York: Center for Philosophic Exchange,

State University of New York, College at Brockport, 1993).

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A arte de massa, em resumo, destina-se ao consumo de massa. Destina-se a ser

consumida por amplo número de pessoas. Isso porque a arte de massa possibilita o

consumo simultâneo do mesmo artefato por audiências frequentemente separadas por

largas distâncias. O vaudeville era uma arte popular, mas não arte de massa pela óbvia

razão de que no circuito do vaudeville, um W. C. Fields poderia apenas se dirigir a uma

audiência limitada a um teatro e a um transcurso de tempo. Entretanto, quando ele

traduziu seus roteiros para o cinema, ele pode “atuar” como artista e diretor em Peoria,

Londres e mesmo na Filadélfia ao mesmo tempo. Como este exemplo indica, ao recusar

em rotular esse fenômeno como arte popular, eu não nego que há muitas vezes uma

conexão histórica entre arte popular, em sentido lato, e arte de massa. Com bastante

frequência, a arte de massa evolui a partir de arte popular já existente. As baladas,

primeiramente divulgadas por meio de performances ao vivo e preservadas na memória,

por sua vez, deram lugar a partituras de baladas e de música, e, recentemente evoluíram

para discos. Shows grotescos de carnaval talvez tenham dado origem a filmes de terror,

enquanto os dramas de teatro do século 19 proporcionaram um repertório de histórias e

técnicas de que foram extraídos os primeiros filmes, do mesmo modo contar histórias,

brincadeiras estilizadas e brincadeiras em geral, e, finalmente, a comédia stand-up são

as fontes de muitos shows da TV, para não mencionar as comédias de costume

(sitcoms).

Mas, é claro, nem todas as formas tradicionais de entretenimento popular, em

sentido lato, evoluíram para formas da arte de massa. Briga de galo, por exemplo, não

encontrou lugar na arte de massa. E a arte de massa desenvolveu certas formas que não

evidenciam nenhuma dívida com as artes populares tradicionais. Por exemplo, a música

em vídeo deve sua herança à arte de massa pré-existente como o filme. Em suma, apesar

de toda arte de massa dever pertencer à classe de arte popular mais ampla e ahistórica,

nem toda arte popular é arte de massa.

Ex hypothesi, o que distingue a arte de massa da classe mais ampla da arte

popular ahistórica é, como o rótulo “arte de massa” indica, que ela é produzida e

disseminada por meios de tecnologias industriais de massa, tecnologias capazes de

reproduzir múltiplas instâncias ou signos de produtos da arte de massa até pontos de

recepção distantes um do outro. Como a manufatura em massa de automóveis, a arte de

massa é uma forma de produção e distribuição destinada a dispor uma multiplicidade de

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artes para audiências de consumo de massa geograficamente remotas.5 Arte de massa é a

arte da sociedade de massa, dirigida a audiências de massas por meio do que as

tecnologias de massa permitem.

Arte de massa é produzida e distribuída pelos mass media (mídias de massas).

Essas mídias chamadas de massa fazem com que seus produtos sejam acessíveis

simultaneamente a vastas audiências mesmo se não comandam realmente grandes

audiências. A TV foi um meio de comunicação de massa neste sentido antes que um

grande número de pessoas possuísse aparelhos de TV6. Os produtos da arte de massa

são, em princípio, produzidos para uma pluralidade de receptores e a tecnologia de

massa contribui para a realização dessa finalidade por meio da extensão “da viabilização

de formas simbólicas no espaço e no tempo”, como propõe John B. Thompson7.

Entretanto, apesar de a produção e distribuição pela mídia de tecnologias de

massa representar uma condição necessária à arte de massa, é insuficiente identificar um

candidato à produção artística de massa, pois obras de vanguarda podem também ser

produzidas e distribuídas pelas tecnologias de massa. Robert Ashley usa as mesmas

tecnologias de transmissão e gravação sonora que Rolling Stones e Madonna usam,

enquanto cineastas como Michael Snow e Jean Luc Godard fazem uso do mesmo

aparato de filmagem que David O. Selznick e Victor Fleming usaram em sua produção

de E o Vento Levou. Ainda assim, claramente, obras de vanguarda, quando produzidas

por meios de mídia de massa, não são propriamente obras de arte, pois elas não se

destinam ao consumo de um público de massa. Com frequência, elas são expressamente

destinadas para confundir o público de massa – para ultrajar a sensibilidade burguesa –

e mesmo quando não há essa intenção explícita, elas invariavelmente produzem esse

efeito, pois é uma condição necessária para ser vanguarda que as obras em questão

subvertam ou, pelo menos, vão além das expectativas convencionais.

Obras de vanguarda não se prestam para o acesso imediato ao público de

massa. Supõe-se que elas desafiem ou transgridam a compreensão comum e as

expectativas que esse tipo de público consumidor tem com relação às formas de arte

relevantes. Isso não significa que uma obra de vanguarda não possa se tornar um

5 É interessante notar que o rádio tal como concebido por Marconi, era transmitido de um ponto a outro

apenas. A noção de múltiplas recepções foi inventada por DeForest. Devo essa observação a Patrick

Maynard. 6 De modo similar, músicas country contam como forma de arte de massa, mesmo se poucas pessoas a

ouvem. 7 THOMPSON John B., Ideology and Modern Culture: Critical Social Theory in the Era of Mass

Communication (Ideologia e Cultura Moderna: Teoria Social Crítica na Era da Comunicação de Massa):

Stanford University Press, 1990, p. 221.

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sucesso editorial: Versos Satânicos de Salman Rushdie foi um sucesso. Entretanto, a

explicação neste caso tem mais a ver com o fato de pessoas em lugares como Iowa se

recusaram, desafiadoramente, a permitir que um ditador iraniano diga a elas o que

devem ler, e menos à apreciação das estratégias narrativas disjuntivas de Rushdie.

De fato, eu suponho que o livro de Rushdie, apesar do sucesso de vendagem,

não foi lido na mesma proporção. Pois para ser lido com compreensão e apreciação,

Versos Satânicos requer uma bagagem de história e de teoria da literatura e do discurso

relatado de sujeito dividido, que não estão na ponta da língua da maioria do público

leitor de língua inglesa.

As Pontes de Madison (para ficar em Iowa) é uma obra de arte de massa, mas

Versos Satânicos não. Qual é a diferença? O primeiro foi feito para ser acessível ao

público leitor de massa e o último não. Se fossem equivalentes, qualquer consumidor

deveria ser capaz de compreender As Pontes de Madison sem nenhum estofo

especializado, a não ser a habilidade de ler e um domínio rudimentar da prática da

ficção. Versos Satânicos, ao contrário, requer um preparo especial para ser

compreendido, apesar de, é claro, esse preparo poder ser adquirido autodidaticamente.

Obras de vanguarda podem ser produzidas e distribuídas por tecnologias de

massa, mas elas não são arte de massa. Pois apesar de produzidas e distribuídas por

tecnologias de massa, tais obras não são estruturadas para assimilação e recepção

imediata pelo público em geral. De fato, elas são designadas a frustrar uma fácil

assimilação. Nos casos mais favoráveis, a arte de vanguarda se destina a alargar

sensibilidades comuns, enquanto nos casos mais típicos, elas são destinadas a confundi-

las devido a modificações na percepção de laxismos estéticos e/ou morais.

De fato, ao longo da época da arte de massa, defensores da estética de

vanguarda (por exemplo, Collingwood, Adorno e Greenberg)8 foram os mais severos

críticos da arte de massa. Para eles, a vanguarda foi tanto a antítese histórica quanto

cultural da arte de massa. Além disso, como a vanguarda é a antítese da arte de massa,

ela proporciona hegelianamente, uma visão da “tese” – arte de massa – da qual extrai

seu programa e seu propósito. A arte de vanguarda é elaborada para ser difícil, para ser

intelectualmente, esteticamente e até moralmente desafiadora, inacessível àqueles sem

8 Ver Noël Carroll, “Philosophical Resistance to Mass Art” (“Resistência Filosófica à Arte de Massa”) em

Affirmation and Negation in Contemporary American Culture (Afirmação e Negação na Cultura

Americana Contemporânea), ed. Gerhard Hoffman and Alred Hornung (Heidelberg: Universitätsverlag C.

Winter, 1994, pp. 297-312).

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105 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

certo cabedal de conhecimento e aquisição de sensibilidades. A arte de massa, em

contraste, é elaborada para ser fácil, para ser imediatamente acessível ao maior número

de pessoas possível, com mínimo esforço.

A vanguarda é esotérica; a arte de massa é exotérica. Ela serve para comandar

um público de massa. Assim, é constituída para uso fácil. Idealmente, é estruturada de

tal modo que grande número de pessoas poderá compreendê-la e apreciá-la,

virtualmente sem esforço. É feita de modo a capturar e chamar a atenção do grande

público, enquanto a arte de vanguarda é feita para ser difícil e repelir a fácil assimilação

pelo grande público.

Como a arte de massa se destina a envolver amplos mercados, ela gravita em

direção à escolha de recursos que a farão prontamente acessível à massa, públicos

incultos. Revistas em quadrinhos, filmes comerciais e a TV, por exemplo, se comunicam

por meio de imagens. E imagens são símbolos cujos referentes são reconhecidos, sendo

as coisas uniformes, imediatamente e automaticamente por espectadores pelo simples

olhar. O reconhecimento pictórico, isto é, adquirido em conjunto com o reconhecimento

do objeto, vem de a pessoa poder reconhecer uma imagem de algo, digamos uma maçã,

quando já se é capaz de reconhecer perceptivamente, in natura o tipo de coisa – tais

como maçãs – que a imagem representa. Crianças, por exemplo, com frequência

aprendem o que coisas são a partir de imagens antes de realmente vê-las9. O

reconhecimento de imagens não requer nenhum treinamento especial. Assim, a arte de

massa que depende de imagens como constituintes básicos será acessível de modo

fundamental a um público virtualmente ilimitado. De fato, é esse recurso de filmes – de

imagens em movimento – que primariamente contribuiu para a popularidade

internacional dos filmes mudos, que se tornaram uma forma global de arte justamente

porque eles podem ser compreendidos por quase todo mundo seja qual for a

nacionalidade, classe, religião e educação.

A pesquisa pelo que é acessível massivamente até mesmo tende a influenciar a

escolha de conteúdo nos entretenimentos de massa. Cenários de ação/aventura são tão

apropriados aos propósitos da arte de massa porque a competição física entre as forças

fortemente definidas de bem e mal é mais fácil para quase todos seguirem do que

dramas psicológicos complexos, que podem exigir uma base de informação cultural que

o espectador comum não possui. Isto é, é mais fácil para o espectador comum

9 Em uma comunicação pessoal, Patrick Maynard referiu-se a isso como transferência “recíproca”.

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106 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

aleatoriamente selecionado compreender Combate Mortal do que Blow Up.

É o propósito ou função da arte de massa dirigir-se a um público de massa. Isso

pode ser resultado de se visar lucro em países capitalistas ou por motivos ideológicos

em países totalitários. E isso, por sua vez, dita certos desideratos concernentes às

estruturas internas das artes de massa, assim, tais obras gravitarão em direção a

estruturas como a representação pictórica, que serão acessíveis virtualmente por contato,

sem treino básico especial ou esforço por vasto número de pessoas. Artes de massa

tendem a certos tipos de homogeneidade exatamente porque visam atrair o que é

comum entre enormes populações de consumidores.

Frequentemente é essa tendência em direção à homogeneização que críticos –

geralmente críticos de vanguarda – destacam para repudiar quando a questão é arte de

massa. Entretanto, a busca por denominadores comuns na arte de massa, nas instâncias

tanto de estilo como conteúdo, não é uma fraude, e sim uma designação consciente dada

à função da arte de massa. Pois é o aspecto da arte de massa que engaja o público e que

está por detrás de uma inclinação em direção a estruturas que serão prontamente

acessíveis virtualmente pelo contato e com pequeno esforço de parte do público de

níveis bastante diversos.

Para resumir e ir adiante com essas observações, podemos tentar definir a arte

de massa por meio de seguinte fórmula:

x é arte de massa se e somente se 1) x é uma múltipla instância ou tipo de arte

2) produzida e distribuída por tecnologia de massa, 3) que é intencionalmente destinada

a gravitar em suas escolhas estruturais (por exemplo, formas narrativas, simbolismo,

efeitos intencionados e mesmo seus conteúdos) em direção àquelas escolhas que

prometem acessibilidade com mínimo esforço, virtualmente ao primeiro contato, para

vasto número de públicos relativamente incultos.

Cheguei à primeira condição ao estipular que meu domínio de estudo é arte de

massa, não cultura de massa, que representa uma categoria mais ampla. Isto é, minha

preocupação não são esses itens da cultura de massa que são identificados mais

estritamente como arte – tal como os dramas, histórias e canções mais do que programas

de notícias, shows de culinária ou eventos esportivos. Desde que obras de arte de massa

não são de vanguarda, há pouca dificuldade em classificar itens em termos de se recaem

ou não em formas de arte estritas – como drama ou canção – ou em termos de se eles

descartam propósitos artísticos classicamente reconhecidos como representação ou

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expressão. Que a arte de massa não seja o que se denomina arte múltipla ou única é uma

faceta que as obras que explicarei na próxima seção deste ensaio, se isso não tiver

ficado evidente 10

.

A segunda condição – que as obras de arte de massa são produzidas e

distribuídas por tecnologias de massa – deve ser também mais ou menos óbvia. A arte

de massa emerge historicamente; não esteve sempre entre nós. Ela emerge apenas

quando tecnologias capazes de produção e distribuição em massa surgem. Então, a arte

de massa não é simplesmente popular. Ela requer tecnologias que possam distribuir

exemplares de obras a mais de um ponto de recepção simultaneamente. Walter

Benjamin falou de arte de massa em termos de sua reprodutibilidade em massa11

. Isso

facilita as coisas como para certos fotógrafos, mas não dá conta da possibilidade de

transmissão simultânea. Antes, é mais proveitoso pensar em obras de arte de massa

como aquelas que podem ser transmitidas a muitos pontos de recepção

simultaneamente.

A noção de um local discreto de recepção neste caso é um tanto complicada.

Ela não pode ser especificada em termos de distâncias mensuráveis entre pontos de

recepção. Uma casa de tamanho médio com dois aparelhos de TV tem pelo menos dois

pontos de recepção distintos, enquanto que Mount Rushmore define um local de

recepção, embora possa ser visto por muitas pessoas de diferentes pontos, que

compreende uma área maior que a de uma casa de médio tamanho. O que conta como

ponto de recepção específico depende do que seja o foco de atenção do público de certa

prática. Mount Rushmore possui um ponto único de recepção espacialmente contínuo

cobrindo uma extensão ampla indeterminada, enquanto que dois aparelhos de TV são,

em condições normais, dois pontos de recepção12

. Cada palco de teatro tem um ponto de

recepção discreto, embora, diferentemente do caso da TV, no teatro é impossível enviar

o mesmo sinal para atuação em uma peça a dois locais diferentes de recepção

simultaneamente, enquanto que essa capacidade é uma condição sine qua non da arte de

tecnologia de massa como a televisão.

10

De passagem devo mencionar que nem todas as tecnologias da mídia de massa resultam em formas de

arte de massa. O telefone, enquanto tal, não parece ter dado à luz a uma forma de arte de massa própria

dele, apesar de funcionar como um elemento nas obras e servir como sistema distribuidor para algumas

obras de arte de massa. 11

Walter Benjamin, “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction” (“A Obra de Arte na

Época de suas Técnicas de Reprodução”), in Illuminations, ed. Hannah Arendt (New York: Schocken

Books, 1969), pp. 217-253. 12

As aspas “condições normais” significam excluir casos como em que diferentes monitores de TV unem

partes de uma só imagem ao modo de mosaico (com em algumas obras de Nam June Paik).

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Entretanto, apesar da produção e divulgação de obras relevantes por meio de

tecnologias industriais de massa contarem como fatores essenciais às obras de arte de

massa, eles não bastam para identificar um candidato a obra de arte de massa, pois,

como vimos, parece ser ilógico considerar que obras de vanguarda como os filmes de

Stan Brakhage sejam considerados como arte de massa. Tais obras podem ser

produzidas e distribuídas por meio de um agente de mídia de massa, mas não se espera

que delas possam usufruir públicos incultos. Não são acessíveis cognitivamente nem

emocionalmente a espectadores mais simples. Por isso Brakhage introduz seus filmes

com conferências: ele está tentando educar seu público para que possam ver seus filmes.

As obras de arte de massa típicas são aquelas feitas com vistas a garantir seu acesso a

espectadores que, sem nenhum preparo básico especial, possam compreender e apreciá-

las pelo simples contato, despendendo pouco esforço13

.

Rock, por exemplo, além de sua simplicidade harmônica, emprega uma batida

facilmente reconhecível que ajuda a compor o resto do som. Essa batida é uma estrutura

de referência pronunciada e imediata cuja repetição possibilita entrar na estrutura

rítmica que nela converge. Como na antiga canção dos Beatles “Rock and Roll Music”

isso aparece: “It’s got a backbeat, you can’t lose it” (em tradução livre: “Há uma batida

que você não pode perder”). Muitas pessoas podem identificá-la rapidamente e

diretamente, pelo menos dedilhá-la e acompanhar o ritmo com a cabeça. É essa sua

característica estrutura interna, entre outras, que faz do rock música acessível ao mundo

todo.

Pode-se pensar que como quase todo rock é cantado em língua inglesa, ele não

se espalharia tão facilmente. Entretanto, sociólogos descobriram que ouvintes não

prestam atenção basicamente às letras, mas sim à ampla linha melódica de uma peça14

.

Assim, estudantes em Moscou podem se deleitar com os mesmos sons de euforia ou

13

Apesar de neste ensaio eu abordar apenas arte de massa, arte popular e arte de vanguarda, não pretendo

que essas sejam as únicas formas de arte. Há também a arte do folclore, middle-brow art (arte didática) e

as formas tradicionais anteriores às artes modernas de massa (como quadros de da Vinci). Para mais

detalhes dessas outras formas de arte e sua relação com as de massa, ver Noël Carroll, “Nature of Mass

Art” (“A Natureza de Arte de Massa”); Noël Carroll, “Mass Art, High Art and the Avant-garde” (“Arte

de Massa, Arte Superior e a Vanguarda”); e Noël Carroll, Prolegomena to the Philosophy of Mass Art

(Prolegômenos à Filosofia da Arte de Massa), (Oxford University Press), no prelo. 14

Roger Jon Desmond, “Adolescents and Music Lyrics: Implications of a Cognitive Perspective”,

(“Adolescentes e Letras de Músicas: Implicações de uma Perspectiva Cognitiva”), “Communications

Quaterly 35 (1987): 278; Simon Frith, Music for Pleasure (Música por Prazer) (New York: Routledge,

1988), p. 154: e Quentin Shultze et al., Dancing in the Dark: Youth, Popular Culture and the

Electronic Media (Dançando no Escuro: Juventude, Cultura Popular e Mídia Eletrônica) (Grand Rapids,

Michigan: William B. Eerdmans, 1991), pp. 160-163.

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109 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

desafio que seus estudantes em Liverpool.

Enquanto minha definição de arte de massa enfatiza a sua busca por estruturas

que podem comandar públicos de massa, a fórmula sugere um rico programa de

pesquisa empírica para o estudo da arte de massa, visto que, no que diz respeito às obras

de arte de massa, uma questão sempre útil a ser levantada concerne o que ocorre com

obras importantes que as leva a chamar a atenção de amplo público. Que o limite de

corte nos vídeos na MTV seja a marca de 19.94 tomadas por minuto15

ajuda a explicar

porque os vídeos musicais fixam os espectadores na tela, pois tal recurso permite pouca

chance para a atenção diminuir. De fato, dado o modo como nosso sistema perceptivo

funciona, isto é, dada a tendência involuntária de nossa atenção para despertar (por

razões de adaptação sonora) com a introdução de novos estímulos, pode ser que a MTV

esteja explorando nossas conexões de tal modo que muitos espectadores quando menos

percebem, são tomados irresistivelmente pelas suas imagens16

.

II. A ONTOLOGIA DA ARTE DE MASSA

Após definir a natureza das artes de massa, gostaria agora de voltar à questão

de seu status ontológico – a questão do modo pelo qual a arte de massa existe. A

estratégia que adotarei primeiro é tentar caracterizar o status ontológico do cinema a fim

de prosseguir para ver se essa caracterização pode ser generalizada, com os ajustes

necessários, a outras formas de arte de massa tais como fotografia, gravação de músicas,

transmissão de rádio e telecomunicações.

Um modo útil de chegar à ontologia de filmes é dirigir a atenção para a

diferença entre performances teatrais e as do cinema17

. Digamos que há uma

apresentação de The Master Builder (Solness, o Construtor) às 8 horas da noite no

teatro local, e que estivesse em cartaz no mesmo horário Waterworld no cinema das

15

Donald L. Fry e Virginia H. Fry, “Some Structural Characteristics of Music Television Video”

(“Algumas Características Estruturais de Clipes Musicais em Televisão”), artigo apresentado nos

encontros da Associação de Comunicação Oral em Chicago em novembro de 1984 e citada em Dancing

in the Dark (Dançando no Escuro). 16

Talvez o chamado surf de canais seja um fenômeno relacionado. Enquanto nossa atenção diminui,

tentamos (em geral subconscientemente) reagir trocando de canal, e assim introduzindo um romper de

nova estimulação. O que fazemos conosco por meio dessa troca de canais é grosso modo o que a edição

na MTV faz por nós automaticamente e num ritmo muito mais rápido. 17

Esta abordagem da ontologia do cinema se constrói a partir de tentativas anteriores minhas, incluindo:

“Towards an Ontology of the Moving Image”, (“Em Direção a uma Ontologia do Cinema”), in:

Philosophy and Film (Filosofia e Filme), Eds. Cynthia A. Freeland and Thomas E. Wartenberg (New

York: Routledge, 1995); e “Definindo o Cinema” em minha obra Theorizing the Moving Image

(Teorizando sobre Cinema) (New York: Cambridge University Press, 1996).

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110 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

vizinhanças. Pode-se ir a ambos. Em ambos os casos, tanto podemos estar sentados em

um auditório e cada apresentação começaria quando a cortina levantasse. Mas, apesar

dessas semelhanças superficiais, há profundas diferenças ontológicas entre as duas

apresentações.

Sem dúvida, essa afirmação soará estranha para alguns filósofos. Pois se

alguém distingue ente dois tipos de artes – aquelas singulares e as múltiplas – então as

apresentações cinematográficas e as teatrais parecem ontologicamente pares; ambas são

consideradas signos (n.t.: token ou realizações) de um só tipo (n.t.: type, padrão). Em

cada caso, a apresentação é um signo de um tipo de arte – The Master Builder, de um

lado, e Waterworld de outro, - no sentido de qualquer signo do tipo em questão podem

sofrer destruição – digamos, por fogo – enquanto o tipo-padrão de arte permanece18

.

Evidentemente, a distinção tipo/signo (type/token), apesar de útil para localizar

a distinção ontológica entre certas pinturas e esculturas, de um lado, e coisas como

peças, filmes, romances e sinfonias de outro lado, não é fina o suficiente para distinguir

entre apresentações de cinema e apresentações de teatro. Para obter essa distinção, é

instrutivo considerar os caminhos diferentes pelos quais se chega de uma peça-tipo a

uma atuação dramática signo-realização, de um lado, versus o caminho de um filme-tipo

a uma apresentação (i.e., assistir) um filme.

Para obter a partir de um filme-tipo uma realização-signo, é preciso uma

interpretação. Além disso, os caminhos diferentes da apresentação do signo ao tipo no

teatro versus a do filme-tipo à realização do filme, explica porque vemos as

apresentações teatrais como formas de arte legítimas, ao passo que, ao mesmo tempo,

não vemos apresentações de filmes (i. e., assistir filmes) com formas de arte.

A apresentação de filme se dá a partir de uma cópia padrão de filme, mas pode

também ser um vídeo, um disco a laser, ou um programa de computador codificado por

meio físico. Tais padrões são eles próprios signos; a cada um deles pode ser designado

um local no espaço, embora ao filme-tipo (film-type) – Waterworld – isso não seja

possível. Tampouco o negativo da obra do filme-tipo. É uma realização entre outras. O

negativo original de Nosferatu de Murnau foi destruído por ordem judicial, mas o filme

ainda existe.

Cada apresentação de filme uma realização-signo do filme-tipo. Cada

18

A aplicação da distinção tipo/signo (type/token) para a arte foi feita por Richard Wollheim em seu livro

Art and its Objects (Arte e seus Objetos) (Cambridge: Cambridge University Press, 1980, em especial

seções 35-38).

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111 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

realização de apresentação dá acesso ao filme-tipo. Mas para apresentar uma realização-

signo da atuação de um filme, se requer um padrão – uma fita ou vídeo ou um disco a

laser – que é também uma realização-signo de filme tipo. A apresentação de filme como

signo-realização é gerada a partir de um mecanismo (ou eletronicamente), conforme o

procedimento técnico de rotina. Assim, a realização-signo da apresentação do filme –

projeção do filme – não é uma apresentação artística e não justifica apreciação estética.

Evidentemente, pode-se reclamar se o filme é projetado fora de foco, ou se ele

se queima no projetor, mas essas reclamações não são estéticas. São queixas sobre a

capacidade de quem projeta. Claro que essa capacidade é uma condição prévia para que

o filme-tipo seja arte. Mas não é um objeto de apreciação estética.

A abordagem é muito diferente no que toca às peças teatrais. A diferença, em

parte, é uma função do fato de que peças podem ser consideradas como obras literárias,

ou como obras de atuação. Quando uma peça como Strange Interlude (Estranho

Interlúdio), é considerada obra literária, então meu exemplar de Estranho Interlúdio é

um signo (realização, token) da forma de arte (art-type) Estranho Interlúdio do mesmo

modo que meu exemplar de The Warden é um signo (realização, token) do romance de

Trollope. Mas, quando visto da perspectiva da apresentação teatral, um signo

(realização) de Estranho Interlúdio é apresentação particular que ocorre em tempo e

espaço especificáveis.

Enquanto a apresentação de um filme é gerada a partir de um mecanismo e não

de uma interpretação, uma apresentação teatral de Estranho Interlúdio é gerada por uma

interpretação e não um mecanismo. Quando usada no contexto da apresentação, a peça-

tipo Estranho Interlúdio de Eugene O’Neill funciona como uma receita que deve ser

preenchida por outros artistas – diretores, atores, encenadores, e outros. O’Neill criou a

peça que é uma peça-tipo – mas a peça deve ser trazida à luz por uma interpretação ou

um conjunto de interpretações (diretores, atores, etc.) e, além disso, essa interpretação

governa a performance de signos-realizações (tokens) da peça à medida em que é

apresentada ao público noite após noite.

Além disso, esta interpretação é um tipo; a mesma apresentação de uma peça

pode ser revivida depois de um substancial hiato de tempo e pode ser realizada em

diferentes teatros com cenários numericamente diferentes, mas qualitativamente

idênticos. Então, a realização de um signo de uma peça-tipo é gerada por meio de uma

interpretação, sendo a mesma um tipo. Consequentemente, interpretações teatrais são

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112 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

tipos de tipos19

. Obtemos de uma peça-tipo uma interpretação por meio de uma

interpretação que é um tipo. Isso contrasta com o caminho de um filme-tipo à realização

da projeção do filme, a qual é mediada por um mecanismo que é também um signo-

realização (token).

Antes eu observei que a projeção de um filme – quer dizer, a projeção de um

filme em um cinema – não é, em si, uma obra artística, enquanto isso não se dá com o

teatro. Performances teatrais são formas artísticas propriamente ditas. É preciso

capacidade de atuar e imaginação para encarnar uma interpretação, enquanto atuações

em filmes requerem apenas competência técnica. No teatro, como se sabe, a peça, a

interpretação e a atuação são cada qual candidatos à apreciação estética.

No melhor dos casos, uma peça, é uma interpretação, e suas performances são

integradas, embora reconheçamos que essas são camadas distinguíveis de condição

artística, mesmo se uma pessoa escreve a peça, dirige e nela também atua. Pois há

muitos casos em que uma peça ruim tem uma interpretação louvável, corporifica por

atuações soberbas, enquanto em outras ocasiões, uma boa peça é interpretada

sofrivelmente, com boa atuação, e assim por diante. Essas distinções que fazemos tão

facilmente indicam que há diferentes estratos ontológicos artísticos quando o que está

em questão é o palco, estratos que não são conseguidos por filmes do mesmo modo.

Pois, se com o teatro a peça-tipo é uma receita que diretores e outros artistas

interpretam, alcançando formas de arte diferentes apesar de relacionadas, com a receita

do filme (por exemplo, o roteiro) e as interpretações artísticas do diretor, dos atores,

etc., não são constituintes detectáveis da mesma forma artística. Não avaliamos roteiros

independentemente da produção do filme, tampouco avaliamos a projeção de filmes

esteticamente.

É comum considerar obras de filme de arte como tipos. Mas se a comparação

anterior com o teatro é convincente, então podemos caracterizar os filmes de um modo

mais refinado, a saber: um filme é um tipo cujas realizações nas atuações são geradas

por padrões-tipos (types) que são eles próprios, realizações-signos (tokens). Nossa

próxima questão é se esse modelo de análise pode ser generalizado para outras formas

de arte de massa, incluindo fotografia, rádio, telecomunicações, gravações de música e

livros de sucesso de ficção popular.

19

Ver R. A. Sharpe, “Type, Token, Interpretation, Performance” (“Tipo, Signo, Interpretação,

Performance”), em Mind 88 (1979): 437-440.

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113 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

A ficção popular de sucesso, como a literatura em geral, é uma arte-tipo. Minha

cópia de The Gift (O Presente) é um signo/realização do romance de Danielle Steel do

mesmo modo que minha cópia de The Magic Mountain (A Montanha Mágica) é um

signo/realização do romance de Thomas Mann. Em cada caso, a destruição de minhas

copias não ocasionaria em geral a destruição dos romances de Steel ou de Mann. De

fato, cada signo/realização gráfica do romance de Steel pode ser queimado e ainda

assim o romance pode continuar a existir se, ao modo de Fahrenheit 451, uma pessoa

recordasse o texto. É claro, isso leva ao extremo o uso em inglês chamar esses signos-

realização de O Presente de performances; assim, talvez seja melhor falar instâncias de

signos ou de signos de instância-repetição, mais do que signos de performances, quando

expandimos nossa caracterização do modelo de análise que já desenvolvemos com

respeito ao cinema para outras formas de arte de massa. Além disso, no caso do cinema,

temos acesso a obras de literatura popular por meio de recepção de instâncias de signos

que são elas mesmas, produzidas a partir de padrões, incluindo discos rígidos e

programas, e, talvez no limite, traços de memória.

Indo da ficção popular à fotografia, a primeira coisa a ser notada é que isso

pode não se dar no caso de a fotografia ser uma forma de arte uniformemente múltipla

de um ponto de vista ontológico. Pois pode haver, devido a seu método de produção,

obras de arte fotográficas que são de um só tipo, tais como os daguerreótipos20

. Tais

fotografias têm um status ontológico característico do status das pinturas.

Como a Mona Lisa, se um daguerreótipo de Nièpce for destruído, nós o

perdemos, mesmo se reproduções fotográficas se conservarem, do mesmo modo que se

a Mona Lisa no Louvre for rasgada, perderemos a obra prima de da Vinci, mesmo que

sua existência permaneça em cartões postais de museus. Com tais instâncias únicas de

fotografias, as assim chamadas reproduções por isso não são signos da obra em questão,

mas documentações dela. Assim, não gostaria de chamar fotografias de instância única

propriamente arte de massa pela mesma razão que a Mona Lisa não é um exemplo de

arte de massa, apesar do fato de que tenha sido infinitamente documentada por

fotografias em textos de história da arte e em livros de viagem.

De outro lado, além das fotografias de única instância, há muitas fotografias

que caem perfeitamente na categoria de arte de massa. É bastante previsível, dada a base

ser filme, que o modelo desenvolvido para analisar o cinema se preste muito bem para

20

Patrick Maynard me alertou que algumas impressoras modernas de fotografia como impressões em

daguerreótipo são consideradas como tipos únicos.

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114 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

tais fotografias. Isso porque as instâncias que realizam os signos de tais fotografias são

geradas a partir de padrões, como os negativos, que são, por sua vez, signos; e as obras

em questão continuam a existir mesmo se os negativos e a maior parte dos outros

signos-realização do importante fotógrafo forem perdidos ou destruídos.

Considerando o rádio e a televisão, o primeiro ponto a observar é que na

grande maioria dos casos, programas nesses meios são gravados em fitas magnéticas,

cópias, vídeos ou programas digitais para transmissão posterior. Essa prática se tornou

bastante comum no rádio em fins dos anos 1940. Em casos como esses, o modelo de

análise acompanha o do cinema, pois as instâncias dos signos-realizações da gravação

servem como condições padrão que tornam possíveis as instâncias de recepção dos

signos. Mas o que dizer das transmissões simultâneas que não são gravadas nem

artisticamente modificadas (por meio de mixagens, por exemplo) na mensagem fonte?

Claramente, transmissões simultâneas no rádio e na TV devem contar como

exemplos de arte de massa, pois elas podem suportar simultaneamente uma

multiplicidade de instâncias de realização da mesma obra – uma canção ou um drama –

em pontosconcretizar de recepção que ficam longe geograficamente um do outro. Mas

qual é o padrão nesses casos? Sugiro que o padrão é o sinal ou mensagem do sinal de

transmissão que proveio da fonte da mensagem por instrumentos de codificação e de

modulação com a finalidade de transmitir e que são recebidos por instrumentos de

demodulação e decodificação, tais como rádios e TVs. Cada tipo de sinal de recepção é

derivado de um padrão por um processo mecânico/eletrônico (em contraste com o

artístico). Assim como projetar um filme não é artístico nem interpretativo, tampouco

ligar ou sintonizar um rádio ou TV o é. Os tipos de sinais receptores dos programas em

questão são processos físicos. O sinal de transmissão é uma estrutura física e certos

tipos de sinais de recepção desses programas podem ser destruídos, por excesso de

carga, por exemplo, enquanto as obras artísticas de massa do rádio ou da TV

permanecem. Claro, quando o sinal do programa provém de um padrão magnético, há

substitutos para os padrões, inclusive para a transmissão do sinal, como uma gravação

para mediar a arte de massa tipo e seus signos-realização em suas instâncias de

recepção21

.

21

Uma complicação deve ser mencionada aqui. Suponha-se que um programa de TV esteja sendo

gravado antes de uma transmissão ao vivo. Em tais casos devemos falar em duas obras artísticas. Há o

trabalho teatral que é desempenhado em frente dos espectadores do estúdio e algo mais. Em um caso, no

qual o que está sendo transmitido está sendo editado e estruturado (por exemplo, os closes, as tomadas

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115 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Em casos em que a transmissão única envolve um enredo, no caso de uma peça

de teatro, ou uma partitura no caso da música, não há problema em achar que estamos

lidando com um tipo que, em princípio, pode ser realizado mais de uma vez. Entretanto,

um problema pode surgir quando se pensa em transmissões que envolvem improvisação

(não há gravação nem mixagem), pois é possível perguntar se em tais casos não seremos

capazes de especificar de qual tipo os sinais são instâncias realizadoras. Penso neste

caso que nossas dúvidas repousam na intuição de que improvisações são eventos únicos.

Creio que há dois modos de lidar com esse problema. O primeiro é conceder

que improvisações, são artes singulares e o argumento para tal é que, como no caso de

fotografias com exemplar único, os casos de recepção de improvisações são

documentações e não tanto realizações-signos das obras em questão. Entretanto, a

segunda solução para esse problema, a que eu prefiro, é negar que improvisações são,

em princípio, formas únicas de arte. Pois improvisações podem ser memorizadas e

interpretadas novamente pelos artistas originais ou por outros; elas podem transcritas,

como na tradição clássica e interpretadas novamente; e, na era da arte de massa elas

podem ser gravadas e/ou memorizadas por ouvintes que, por sua vez, podem transcrevê-

las e/ou reproduzi-las. Uma improvisação continua a existir enquanto execuções dela

puderem ser realizadas. Uma pintura deixa de existir quando o “original” é destruído;

mas, neste sentido, não há, estritamente falando, originais nos casos de musicais

improvisados ou produções teatrais. É conceitualmente possível replicar uma

improvisação, mas não é possível replicar pinturas dentro do conceito padrão de uma

pintura.

Improvisações não são, em princípio, formas artísticas singulares. Assim, o

modelo desenvolvido para caracterizar a arte cinematográfica pode ser aplicado para a

transmissão de improvisações. Quer dizer, vemos e/ou ouvimos instâncias receptoras de

realização do tipo de improvisação através da mediação de um signo-realização de um

sinal padrão de transmissão.

O que se pode dizer sobre gravações populares é semelhante ao que se sabe

sobre transmissões do gênero, simplesmente pela razão de que a maioria das

amplas, etc.), há outra arte, de massa, que difere em importantes aspectos daquilo que um auditório de

estúdio vê. E, em outro caso, em que não há estruturação adicional (o que alguns podem negar que seja ao

vivo), o que se acrescenta é uma documentação da arte teatral, algo equivalente a um cartão postal de

museu da Mona Lisa. Distinções similares podem ser extraídas com respeito às transmissões de rádio ao

vivo que irão incluir uma exibição de arte ao vivo para um auditório presente no estúdio e mesmo uma

documentação direta dela (se é que tal coisa exista) ou, mais comumente, uma arte de massa que foi

gravada, mixada e aprimorada eletronicamente para os ouvintes de rádio.

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116 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

transmissões de música popular, já envolve gravação sonora. Na gravação sonora, um

microfone transforma as vibrações acústicas em pulsos elétricos que são ampliados e

convertidos em gravação, mecanismo eletromagnético que produz sinais na superfície

da fita do gravador. Este processo, por sua vez, é revertido em reprodução quando os

padrões magnéticos são convertidos novamente em vibrações, amplificadas por algum

tipo de caixa de som ou de fone de ouvido. Novamente, a obra musical, que é um tipo,

gera um signo-realização de instância receptora em minha sala de estar, via um padrão

de signo-realização, o qual neste caso é um modelo magnético ou signo de transmissão

disso.

Entretanto, como ocorre com algumas mídias que já examinamos, com a

gravação é possível distinguir entre dois casos distintos: peças criadas no estúdio por

mixagem, dublagem, etc., que podemos considerar como construídas como tipos de arte

de massa, e peças musicais que são virtualmente documentações simples de

performances musicais que existem independentemente22

. Apesar de aquela ter

provavelmente a melhor sustentação conceitualmente, e suspeito estatisticamente, para

ser considerada como música de massa propriamente, a última tem desempenhado um

papel inegável historicamente na evolução da cultura de massa, mesmo se o futuro

pareça pertencer à música de massa feita em estúdio23

.

Provisoriamente, então, o modelo de análise desenvolvido para destacar o

status ontológico do cinema parece funcionar em todos os sentidos para arte de massa

em geral. Artes de massa são múltiplas instâncias ou tipos de artes. Especificamente,

são tipos cujas instâncias de recepção dos signos-realizações são geradas por padrões ou

por padrões de transmissão, que são também signos-realizações. Isso serve para

distinguir as obras em questão de obras de arte singulares, de um lado, e de tipos de

artes cujos signos-realizações são gerados por interpretações. Claro, isso não separa as

obras em questão de certas obras que não são de arte, como noticiários de TV que

também são produzidos e transmitidos por importantes tecnologias de massa.

Noticiários televisivos e comédias compartilham do mesmo modo de ser, uma vez que

22

Muitos gostariam de negar a possibilidade do que eu chamo de gravações simples e, por isso, ver toda

gravação de som musical em termos da categoria construídos como tipos de arte de massa. Para uma

discussão mais aprofundada, apesar de controvertida, da significação ontológica da gravação de músicas

de rock, ver a obra de Theodore Gracyk, Rythm and Noise: The Aesthetics of Rock Music (Ritmo e

Ruído: a Estética da Música Rock) (Duke University Press, 1996). 23

Talvez valha a pena notar aqui que o rock tocado por bandas de garagem, bandas de bar e outras não

seja propriamente arte de massa em termos de minha proposta. Podem entrar como arte popular, mas não

é arte de massa, pois não é basicamente, transmitida a múltiplos locais de recepção simultaneamente.

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117 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

são da mesma espécie de tipos. Eles diferem em suas reivindicações ao status de arte.

III. OBJEÇÃO 1: TODA ARTE É MÚLTIPLA

Essa minha tentativa de isolar o status ontológico de obras de arte de massa,

em parte, sustentou-se em uma distinção entre artes singulares e múltiplas. Entretanto,

essa distinção foi questionada por Gregory Currie em sua importante e provocadora

monografia An Ontology of Art (Uma Ontologia da Arte)24

. Nela Currie defende a

Hipótese de Multiplicidade de Instâncias, de acordo com a qual, toda arte é múltipla25

.

Na visão de Currie não há artes singulares, não obstante nossas intuições acerca de

casos paradigmáticos de arte refinada, tal como pintura e escultura. Assim, como minha

teoria da ontologia da arte de massa depende de uma distinção entre artes singulares e

múltiplas, parece que ela se sustenta sobre uma distinção quando não há distinção

alguma.

Currie introduz sua defesa da Hipótese de Instância de Multiplicidade

argumentando que há uma pressuposição a favor de toda teoria ontológica de arte que

oferece uma perspectiva unificada do campo – que diz que, ou toda arte é singular ou

toda arte é múltipla. Além disso, é mais ou menos óbvio que é impossível o caso de que

toda arte seja singular. Considere a literatura. Assim, a hipótese de que todas as artes

sejam múltiplas tem melhor chance de fornecer uma teoria unificada do campo. Em

outras palavras, Currie pensa que há uma suposição favorável à visão de que as artes são

múltiplas em todos os sentidos. Assim, se não há considerações que ousem derrotá-lo, a

Hipótese de Instância de Multiplicidade é a teoria ontológica que devemos endossar.

Currie argumenta que é logicamente possível produzir molécula por molécula

versões de qualquer obra de arte refinada. Imagine uma máquina super avançada de

reprodução que pode replicar qualquer pintura, escultura e assim por diante. Desde que

a réplica é idêntica molécula a molécula à original, ela tem a mesma estrutura

perceptível que a original. E como a réplica é, até prova em contrário, dependente da

original no sentido de que cada aspecto na réplica é causalmente dependente de aspecto

correspondente no original, então a presença de aspectos na réplica são explicados pelos

mesmos fatores histórico, contextual e intencional que explicam a presença daqueles

aspectos no original. Assim, essas super impressoras produzem o mesmo estímulo

24

Gregory Currie, An Ontology of Art (New York: St Martin’s Press, 1989). 25

Ver capítulo 4 de An Ontology of Art.

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118 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

estético que o original e permitem o acesso à significação histórica do original.

Portanto, elas são alvos perfeitamente satisfatórios para a atenção artística (i.e., estética

e histórica) do ponto de vista da apreciação. Isto é, elas estão no mesmo nível das

originais. De fato, Currie escreve como se toda arte refinada seja, por meio dessas

impressoras, arte de massa (pelo menos em princípio). Sua estratégia argumentativa,

com efeito, é desafiar oponentes a encontrar algo errado em sua conjectura.

Muito da energia de Currie é gasta mostrando o que é enganoso nas objeções

possíveis a sua teoria. Entretanto, eu penso que há algumas considerações bastante

decisivas às quais ele nunca se dirige e que indicam que a Hipótese de Instância de

Multiplicidade não oferece uma teoria geral para todas as artes. Por exemplo, Currie

nunca pensa sobre obras de arte com local específico – isto é, esculturas e obras de arte

arquitetônicas que recebem seu caráter do ambiente no qual são construídas e que são

alteradas com o tempo pelas condições dos ambientes que as cercam propositadamente

para constituir parte do que espectadores devem tomar como seu objeto de apreciação.

Isto é, obras de escultura e arquitetura interagem com locais específicos nos quais ou a

partir dos quais são construídas, e esse processo interativo pode ele próprio ser

intencionado como parte do que é significativo com relação à peça.

Spiral Jetty (Dique Espiral) de Robert Smithson foi construído em um local

devido nele haver certa corrente particular de algas que davam a ele o tom avermelhado

que ele buscava, e a forma do dique era uma resposta à formação dos arredores.

Sobretudo, parte do que era para ser apreciado na obra eram as diferentes aparências do

dique devido às alterações no nível da água. De modo similar, a situação de Lightning

Field (Campo de Raios) de Walter de Maria se devia à alta intensidade da atividade

elétrica no ambiente e devido ao modo como as montanhas em volta emolduravam

aquela atividade. E, é claro, parte da peça envolvia o modo pelo qual ela interagia com

as frequentes tempestades de raios26

.

Essas peças são representativas de um gênero importante na arte

contemporânea chamado de “arte terrestre” por alguns. Sua importância para a

discussão sobre artes singulares versus múltiplas, se deve, é claro, às específicas

vicissitudes que operam nessas obras ao interagirem com seus ambientes como fazendo

parte do que elas são. Essas obras são envolvidas com processos, não apenas com

26

Descrições e fotos das peças de Smithson e de De Maria podem ser encontradas em Earth Works and

Beyond: Contemporary Art in the Landscape (Obras na Terra e Além: Arte Contemporânea na

Paisagem), (New:York:Abbeville Press Publishers, 1989).

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119 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

produtos. É difícil imaginar que, no universo físico conhecido, alguém poderia replicar

os exatos processos que ocorrem no local específico original das obras por meio de uma

super impressora de Currie. Suponhamos que uma super impressora pudesse replicar a

estrutura específica do local e do ambiente ao redor em um tempo T1. Ainda assim, é

impossível imaginar que fisicamente todos os eventos que ocorreram desde o tempo T2

através de Tn ocorrerão na suposta réplica. Mas se as histórias futuras da suposta réplica

não experimentarem os mesmos eventos da original, então as obras de arte não são

idênticas. É altamente inverossímil, dada a estrutura do universo físico, que as

reproduções das máquinas de Currie de obras de locais específicos farão exatamente

igual ao que os originais fazem. Mas como os processos climáticos podem ser um

elemento da contemplação artística nas obras de locais específicos, as obras não são, em

princípio, multiplicáveis no universo físico conhecido. Pois nele, a probabilidade de que

a obra com lugar original específico e a super impressora tivessem que passar pelas

mesmas transformações físicas, seria incrivelmente bizarro.

Tampouco essas considerações podem ser afastadas nos termos em que as

obras citadas possuem incontestável status artístico. O mesmo se pode dizer com base

nas obras primas de arquitetura famosas tais como a escola de arquitetura (Taliesin) e a

Casa da Cascata (Fallingwater) de Frank Lloyd Wright. Além disso, a especificidade do

local é sem dúvida um aspecto central da arquitetura dos templos gregos27

. De

passagem, Currie brevemente considera a arquitetura e presume que o meio ambiente é

irrelevante para a identidade da obra – talvez porque ele entende que se suas super

impressoras podem replicar ambientes ilimitados e suas vicissitudes, elas parecerão

altamente improváveis, mesmo em princípio. Mas ele simplesmente está errado se pensa

que um único ambiente e suas vicissitudes não podem ser parte de uma obra de local

específico. E esse erro implica no defeito da Hipótese de Instância de Multiplicidade

pelas razões que já expus.

Currie diz que há uma presunção em favor de uma teoria única da ontologia da

arte e que a visão de que toda arte é múltipla é a mais confiável teoria unificada. Não

vejo razão para acreditar que há tal presunção e, de qualquer modo, se os fatos fossem

diferentes, todas as reivindicações sobre tal presunção devem ser retiradas. Além disso,

penso que o fato de obras de arte de locais específicos do tipo a que aludi, mostra que

27

Ver, por exemplo, a obra de Vincent Scully The Earth, the Temple and the Gods: Greek Sacred

Architecture (A Terra, o Templo e os Deuses: a Arquitetura Sagrada dos Gregos), (New York: Frederick

A. Praeger, 1969).

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120 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

tal pressuposição é extravagante. Há pelo menos estas obras singulares, e isso basta para

sustentar a distinção entre artes singulares e múltiplas que eu invoquei no

desenvolvimento de minha teoria da ontologia da arte de massa. Mesmo se super

impressoras fossem possíveis, ainda haveria um classe contrastante de obras de arte

singulares. Nem toda arte é, em princípio perfeitamente “copiável”. Há ainda uma

distinção com uma diferença notável aqui. Além disso, mesmo se fosse o caso de que

toda arte seja múltipla no modo concebido por Currie, minha teoria da ontologia da arte

de massa ainda seria informativa, pois eu esbocei um contraste entre as artes múltiplas

cujas instâncias de signos-realização são produzidas por interpretações e arte de massa

cujos signos-realização são necessariamente produzidos por padrões que são também

signos-realização, e/ou transmissões de signos-realizações.

IV. OBJEÇÃO 2: ARTE DE MASSA É IRRELEVANTE

Uma objeção à minha sustentação inicial neste ensaio de que arte de massa é

um tema valioso para a investigação estética, pode ser o de que a arte de massa já está

obsoleta. Nessa objeção, o tema não possui a urgência com a qual investi nele, desde

que ele acabará como mero detalhe no plano histórico. A arte de massa está de saída. O

trajeto revolucionário da tecnologia da comunicação se afasta da arte de massa e segue

em direção à arte personalizada. O consumidor de arte no futuro não fará parte do

público de massa. Consumidores em um futuro próximo serão abastecidos por

tecnologias para novas informações tais que possibilitarão personalizar suas opções

artísticas, em geral interativamente. De fato, talvez todos nos transformemos em artistas

na futura utopia cibernética.

Pode ser argumentado ainda que a arte de massa, como eu a concebo, não

passará de breve momento vacilante que precederá a gloriosa emergência do consumo

(e produção) de arte altamente individualizada e tecnológica. No limite, as perspectivas

da arte personalizada já se evidenciam na existência de canais a cabo e satélite para

espectadores individualmente, que podem selecionar entre canais de desenho, ficção

científica, comédias, história e assim por diante. Mas isso é só uma parte do que está

para vir. Sinergias entre tecnologias do telefone, do computador, do satélite e do vídeo

prometem uma era de consumo de arte personalizado que criará uma demanda para a

produção de artes tecnológicas que serão de incrível variedade. Quando o público de

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massa desaparecer, isso quer dizer que a arte de massa desaparecerá com ele. E esse

evento está bem próximo.

Em minha opinião, tais profecias são excessivamente prematuras. O tipo de

“personalização” de que dispomos sob a forma de canais de comédia, de desenhos,

infantis e outros28

não provam que a arte de massa está acabando, pois esses canais

permitem escolher apenas entre tipos ou gêneros de arte de massa. As estruturas dos

programas em canais de comédia e de ficção científica não são de tipo realmente

diferente, porque todos são artes de massa produzidas para ser acessíveis ao espectador

comum inculto para rápido proveito com mínimo esforço. Os programas em questão

poderiam facilmente passar em redes que não são dedicadas a um único gênero de

programação. Eles são reunidos em um único canal, mas um canal que é ainda dirigido

para ser acessível a audiências numerosas e heterogêneas. Estruturalmente, os

programas desses canais são ainda exemplos de arte de massa. A montagem de Babylon

5 e Amazing Stories é do mesmo tipo empregado em Bewitched (A Feiticeira), The Dick

Van Dyke Show e em Os Jetsons.

Tampouco estou convencido de que a arte de massa esteja prestes a desaparecer

com o advento de tecnologias capazes de sustentar um consumo mais diversificado. Há

várias razões para isso. Primeiro, as economias de escala disponíveis nas mídias

tecnológicas fazem com que as indústrias da comunicação se inclinem para a produção

de “mídias de produção de massa, denominadores comuns e audiência de massa” 29

.

Essas indústrias não se dispõem a se livrar de pronto das vantagens dessas economias de

escala e dos lucros que elas proporcionam. Claro, esses interesses controlam não apenas

suas próprias produções de arte de massa, mas também importantes tecnologias de

divulgação e distribuição de mídia de massa. E podemos nos assegurar que elas não

matarão a galinha dos ovos de ouro.

Além disso, os públicos não mudarão apenas devido à alteração nos recursos

tecnológicos. O gosto pela arte facilmente acessível não desaparecerá, nem desaparecerá

o prazer que se tem em compartilhar essas artes com grande número de pessoas. Quer

dizer, a sociabilidade que a arte de massa proporciona de diferentes maneiras – como

tema comum de discussão e crítica, e como reservatório de símbolos culturais

compartilhados – fornece uma poderosa motivação para a persistência da arte de massa.

28

Há inclusive um canal de show de jogos, embora, é claro, não seja provedor de arte de massa na minha

concepção, uma vez que shows de jogos não são arte. 29

Ver W. Russell Neuman, The Future of Mass Audience (O Futuro do Público de Massa) (Cambridge:

Cambridge University Press, 1991), p. 13.

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E, acrescente-se, está longe de evidente que vastas maiorias fiquem satisfeitas com as

notórias capacidades de interagir e selecionar que se evidenciam no horizonte30

. Assim,

há pressões em contrário econômicas e psicológicas que militam contra a emergência de

utopias de comunicação personalizada patrocinadas por seguidores da revolução na

informação. A arte de massa veio para ficar em um futuro previsível. E, assim, cabe aos

filósofos da arte começar a dar conta dela teoricamente31

.

Tradução: Inês Lacerda Araújo.

30

De modo semelhante, não há razão para prever que só porque a tecnologia está aí que as pessoas irão

explorá-la a ponto de se tornarem da Vincis, criando arte sem mecenas febrilmente em seus

computadores. Sejam qual forem as forças psicológicas e sociais que desencorajam as pessoas de

experimentar artisticamente por conta própria, agora não desaparecerão apenas devido ao advento de uma

nova tecnologia. 31

Gostaria de agradecer J.J. Murphy, Douglas Rosenberg, Patrick Maynard, Sally Banes, Annette

Michelson, David Bordwell e Harriet Brickman pelas sugestões concernentes a este ensaio. Claro, os

erros eventuais são meus, não deles.

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Resenha

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124 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de

Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do

grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

Resenha por Fernanda Siqueira Miguens1

Recentemente publicado no Brasil, A Teoria dos Incorporais no Estoicismo

Antigo foi um texto decisivo para a filosofia francesa contemporânea. Vladimir

Jankélevitch, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Jaques Derrida, Maurice Blanchot e

Clément Rosset estão entre os autores que elaboraram reflexões decisivas a partir das

teses e do método proposto neste estudo. É famosa, por exemplo, a utilização de

Deleuze do pensamento estoico em Lógica do Sentido2. Apesar de sua suma

importância, esta tese de doutoramento de Bréhier é pela primeira vez vertida para uma

língua estrangeira, fato que reforça o mérito do Laboratório de Filosofia Contemporânea

da UFRJ.

Para falarmos na teoria dos incorporais, precisaremos entender a convergência

que este livro revelador guarda com outra obra famosa de Bréhier, a História da

filosofia.3 Um aspecto importante desse tema consistiria na observação cuidadosa da

trajetória do filósofo como historiador da filosofia, especialmente a partir do modo

como aborda os pensamentos marginais medieval e oriental. É preciso ressaltar que aí

reside o desejo de Bréhier de prescrever um caminho reflexivo que rompa com as

limitações e circunscrições inerentes ao próprio processo do pensamento, tal como

consolidado pela metafísica tradicional. Assim, de modo similar, podemos afirmar que é

com a demonstração da ideia de exprimível no estoicismo que ele pretende conter, à

força, a tendência do conceito ao confinamento, problematizando as consequências

políticas, cívicas, econômicas, monásticas ou ontológicas ao longo da história. Esta

extensão do pensamento conceitual metafísico em desdobramentos éticos representará

mais tarde uma marca inegável do conceito derridiano da desconstrução.

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro com

a dissertação "Aproximações entre os conceitos de verdade e feminino no sufismo". 2 DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo:

Perspectiva, 2003. 33

BRÉHIER, Émile. Histoire de La Philosophie I: Antiquité et moyen age. France: PUF, 1994.

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125 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

A origem da teoria dos incorporais remonta até os primeiros pensadores gregos,

cujas ideias foram posteriormente refutadas por Platão e Aristóteles, “que colocaram o

princípio das coisas nos elementos penetráveis ao pensamento claro”4. Para Bréhier, a

opção estoica deve-se ao fato de que sua doutrina nos chama a atenção para um

componente não assimilado pelo processo de ensino e aprendizado tal como erigido

pelo cânone ocidental, orientado pela lógica da identidade.

Sobre os estoicos, Bréhier volta-se para o modo como problematizam os

conceitos e edificam o pensamento - de acordo com as particularidades percebidas na

relação entre um nome e um objeto – ao patamar de uma ciência acerca da observação

dos significados. O método semiótico descrito no livro inclui ir além da camada externa

de um conceito, compreendido a partir da sua circunscrição em uma identidade, égide

da metafísica tradicional, em direção ao singular na realidade, em que seu caráter

múltiplo é respeitado.

O estoicismo inaugurou e aperfeiçoou, entre outras coisas, um método de leitura

a partir do qual o “elemento primordial da lógica aristotélica, o conceito5” coincide com

o “atributo do objeto que chamam de exprimível6”. Um conceito como belo, agora em

oposição à lógica aristotélica, é tão representativo da integridade de um tapete, por

exemplo, como um dos seus fios quando puxados ao léu. Rompe-se, deste modo, com a

categorização dos seres a partir de substância e acidentes, em que estes últimos

aparecem como termos acessórios do conceito.

De modo análogo, torna-se possível que nos voltemos à história da filosofia –

um retrato sobre como as partes tremularam e se consumiram em benefício do todo –

como a consequência narrativa daquilo que foi imune ao processo de aniquilamento das

multiplicidades em benefício da retificação do projeto político ocidental. Nem mesmo,

tal como apontado pela introdução do livro – feita por Fernando Padrão de Figueiredo e

José Eduardo Pimentel -, o conceito pode ser entendido como realidade pré-existente.

Isto faz com que o pensamento da metafísica seja entendido como encontrar um

caminho em que possa ser contemplado. Deste modo, o conceito se firma como unidade

do conhecimento, que, reunidos, produziriam os sistemas filosóficos.

4 BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de Fernando Padrão

Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do grego de Luiz Otávio

Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p. 19. 5 Idem, p. 35.

6 Idem, p. 36.

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126 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

O pensamento estoico, no entanto, decompõe isto que seria entendido como o

“átomo” da metafísica, e mostra que esta unidade é constituída por partes menores,

arranjadas num encadeamento mais complexo e captadas a partir da noção de

acontecimento. O conceito, deste modo, não é uno, mas múltiplo.

REFERÊNCIAS

BRÉHIER, Émile. Histoire de La Philosophie I: Antiquité et moyen age. France:

PUF, 1994.

BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de

Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do

grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São

Paulo: Perspectiva, 2003.

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127 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013

Revista RedescriçõesRevista on

line do GT de Pragmatismo e Filosofia

Norte-americana

Ano IV, número 2, 2013 ISSN: 1984-7157

Editor Adjunto: Frederico Graniço

Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de

Castro

www.ppgf.org

www.gtdepragmatismo.com