Redescrições, ano 4, número 2
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1 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano IV, número 2, 2013 ISSN: 1984-7157
2 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157
Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)† Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ
Expediente
REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor adjunto: Frederico Graniço Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Ilustração da capa: "The Last of the Buffalo" de Albert Bierstadt (1830–1902)
3 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano IV, número 2, 2013
Sumário Editorial 5
Notas & Comentários
ROGER SCRUTON E A DENÚNCIA TARDIA DA MODERNIDADE OU SCRUTON VERSUS RORTY: crítica ao the great swindle - Paulo Ghiraldelli Jr
Artigos
O CARÁTER NÃO DEWEYANO DO “DEWEY HIPOTÉTICO” DE RORTY - Edna Maria Magalhães do Nascimento A INDUSTRIALIZAÇÃO DA VERDADE - Ronie Alexsandro Teles da Silveira UMA ANÁLISE DO “DISQUE DENÚNCIA” NA ROMÊNIA PÓS-COMUNISTA. - Cerasel Cuteanu
ASPECTOS DA EXPRESSÃO DAS ARTES CÔMICAS DA ERA CLÁSSICA - Fabio Mourilhe
Tradução
A ONTOLOGIA DA ARTE DE MASSA - Noël Carroll
Resenha
BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. -Resenha por Fernanda Siqueira Miguens
4 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Editorial
5 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
EDITORIAL
Olá caro(a) leitor(a)! Apresentamos mais um número da Revista Redescrições.
As contribuições desta edição (Ano 4, Número 2) se pautam principalmente nas
relações entre modernidade e contemporaneidade; em aspectos como arte, filosofia,
ciência e cultura.
Abrindo a revista, debatendo sobre arte e filosofia, Paulo Ghiraldelli estuda a
crítica do conservador Roger Scruton à arte contemporânea de massa – o “kitsch”.
Segundo a análise de Scruton, essa arte fake seria resultado de uma cultura que
abandonou a contemplação ociosa para o estritamente “verdadeiro”, e cita alguns
filósofos que teriam contribuído com isso: como Marx, Foucault e Rorty. É nesse ponto
que Ghiraldelli desenvolve sua explanação, caracterizando a filosofia de Rorty no
intuito de mostrar que Scruton se engana ao relacionar a crítica de Rorty sobre a
filosofia moderna com o surgimento da arte fake. Pois nesse argumento o trabalho de
Rorty não deveria ser pensado a partir de seus resultados práticos, mas sim a partir de
suas reais motivações estritamente filosóficas ao tratar um problema do século XX.
Além disso, Ghiraldelli não vê o trabalho de Rorty endossando obras de arte com
“sentimentos rasos e falsos”.
Também pensando a modernidade e a contemporaneidade, o artigo de Ronie
Alexsandro (“A Industrialização da Verdade”), traz o foco da discussão para os efeitos
da industrialização agora sobre o próprio conhecimento e seu “processo de produção”.
O autor questiona a autocompreensão do cientista enquanto desenvolvendo uma
atividade de grande heroísmo espiritual. Ao longo de sua narrativa, Ronie torna ainda
mais claras as distinções entre uma perspectiva iluminista e uma pragmatista.
Por outro lado, Edna do Nascimento em seu artigo “O caráter não deweyano do
‘Dewey hipotético’ de Rorty”, trata a questão (que também vem na esteira da crítica
contemporânea à modernidade) da distinção entre a perspectiva científica e uma
perspectiva historicista. Talvez de modo não antagônico ao pensamento de Ronie, Edna
defende em Dewey um conceito de ciência coerente com seu historicismo. Para a
autora, Rorty exagera numa falsa dicotomia entre um Dewey “bom” historicista, e um
Dewey “mal” cientista.
No artigo de Cerasel Cuteanu encontramos uma análise do “disque denúncia”
na Romênia pós-comunista. O jornalista identifica uma dificuldade cultural no país em
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adotar essa tecnologia, muito por conta do caráter excessivamente político das
instituições – como por exemplo as universidades.
Finalizando a seção de artigos, Fabio Mourilhe aborda as artes cômicas na
modernidade, era “clássica” deste gênero. Procurando por relações e rupturas entre a
linguagem estabelecida nos séculos XVII e XVIII e a prática apresentada nas artes
cômicas. Fabio conclui apontando para um pioneirismo das artes cômicas, por não
buscarem encerrar o dito (no quadro) em palavras completamente representativas.
Contamos ainda, na seção de traduções, com o artigo de Noël Carroll sobre “A
Ontologia da Arte de Massa”, que dialoga com o texto de Ghiraldelli que abre a revista.
Noël Carroll, buscando a “ontologia da arte de massa”, faz minuciosa distinção entre a
“arte de massa”, a “arte popular” e a “arte de vanguarda”; referindo-as a contextos
históricos específicos e a condições e objetivos culturais distintos para cada uma.
E finalizando este número temos a resenha do livro “A Teoria dos incorporais
no estoicismo antigo” de Émile Bréhier. Segundo Fernanda Siqueira é um clássico
recentemente traduzido para o português, que trata da abordagem do estoicismo antigo
sobre os conceitos, criticando a abordagem deixada por Aristóteles. No estoicismo o
conceito deixa de ser algo já sempre prévio, e passa a ser visto como uma construção...
Deixa de ser ‘uno’ para se tornar ‘múltiplo’, como conclui Fernanda.
Frederico Graniço, editor adjunto.
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Notas & Comentários
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ROGER SCRUTON E A DENÚNCIA TARDIA DA MODERNIDADE
OU SCRUTON VERSUS RORTY: crítica ao the great swindle1
Paulo Ghiraldelli Jr2
1.
A arte e a cultura em geral devem cultuar a ‘originalidade’, têm de promover a
‘transgressão’ e, enfim, ‘abrir novos caminhos’. Há quem diga o contrário?
O filósofo conservador britânico Roger Scruton diz que isso tudo, hoje, tornou-
se cliché. O kitsch teria substituído a arte. A boa arte tinha como objetivo a
“autoconsciência da sociedade” e a emergência de “sentimentos profundos” a respeito
da realidade. O kitsch, por sua vez, nada é senão produto de uma cumplicidade entre
autor e consumidor (a “vítima”) buscando substituir a vida real. Tratar-se-ia de um
produto da “razão instrumental” destinado ao comércio e, assim sendo, substituiria os
“sentimentos verdadeiros”, aqueles oriundos da “alta cultura”, da “cultura verdadeira”.
Nossas instituições de ensino e de cultura deveriam continuar a trabalhar segundo o que
os alemães chamaram de Bildung, o cultivo do que se faz no caminho do que nos torna
cultos, a cultura. Mas essas instituições estão se desviando de tudo que é “verdadeiro” e
adotando para tudo “o falso”. Segundo os adjetivos de Scruton: true é substituído por
fake.
Scruton cita Aristóteles para dizer que a cultura depende de contemplação
advinda do ócio e remete a outros filósofos para dar base ao seu ataque à cultura do
kitsch, procurando manter uma distinção rígida entre “verdadeiro” e “falso”. Ecoa aí
certo kantismo conservador, típico de Scruton. Mas, mas de um modo geral, para saber
de crítica semelhante vinda de matrizes distintas, poderíamos abrir a internet e escutar
uma rádio do passado transmitindo falas de Theodor Adorno e Hanna Arendt. Estes, por
sua vez, ecoaram Nietzsche, isso sem contar uma enorme gama de pensadores de vários
calibres, descontentes com o progresso da civilização e desconfiados da aliança entre
1 Aeon Magazine, 2012
2 Paulo Ghiraldelli Jr., 55, filósofo, escritor e professor da UFRRJ. Contato: http://ghiraldelli.pro.br
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tecnologia e democracia de massas. Em outras palavras: salvo no estilo, a reclamação
de Scruton, ainda que tenha lá sua legitimidade, é daquelas que podemos considerar
como o que pouco tem de novidade. Já ouvimos isso durante bastante tempo e, em
alguns casos, como o de Arendt, de uma maneira mais sofisticada e mais arguta.
Todavia, não é isso que vejo como problemático em Scruton.
O que me incomoda na reclamação de Scruton é que o seu conservadorismo o
faz fustigar certos filósofos não por aquilo que eles merecem e, sim, pelo que não
fizeram. Três deles estão na mira de Scruton: Marx, Foucault e Rorty. Ele os culpa por
terem impulsionado a filosofia, de certo modo, a alimentar o “fake”, à medida que
criticaram a cultura em geral ou, de certo modo, a alta cultura. Segundo Scruton, a
“crítica da ideologia”, utilizada por Marx, buscou colocar a alta cultura como “cultura
burguesa”, atrelando-a a defeitos de classe, e então a destituindo de seu pretenso
universalismo e, portanto, de sua legitimidade. O modo de Foucault olhar as narrativas
em geral, ensinando todos a verem antes quem pronuncia o discurso do que
propriamente o seu conteúdo, fez da cultura sempre alguma coisa que é mecanismo de
poder, tornando-a também carente da legitimidade até então desfrutada. Por fim, Rorty,
ao destituir a própria consideração para com a verdade, tomando-a como o que é útil,
abriu definitivamente espaço para o falso.
Não creio que Scruton esteja errado no que disse de Marx e Foucault, ainda
que eu não o endosse no que talvez seja sua condenação a tais pensadores de um modo
mais totalizado que o necessário. Marx e Foucault falaram o que tinham de falar. Suas
críticas, apesar de datadas, nos deram dimensões da cultura que até então tínhamos
tocado apenas de modo leve. Mas, em relação a Rorty, ainda que Scruton não o chame
de pensador “fake”, mas de autor que favoreceu a hegemonia atual do “fake”, há uma
posição muito infeliz.
O próprio Rorty respondeu a críticos parecidos com Scruton. Um de seus
melhores textos veio de uma defesa assim, em resposta a uma crítica de Searle, quando
este disse que autores como Kuhn, Derrida, Foucault, Rorty e outros “pós-modernos”
foram os que causaram o fim da avaliação objetiva nas provas universitárias, e que
haviam ajudado na deterioração do ensino superior americano (esse texto de Rorty está,
entre outros lugares, no terceiro volume de seus Philosophical Papers, e há uma
tradução em português, pela Manole). Não vou repetir aqui os argumentos de Rorty a
Searle. Já fiz isso em outros lugares, no sentido de esclarecer situações confusas criadas
por textos parecidos com o de Scruton. Aqui, meu caminho será outro. Vou tentar
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mostrar que Scruton toma um Rorty culpado de algo que ele nunca fez. Vou procurar
mostrar, sem excesso de argumentos técnicos, que essa maneira de tomar Rorty como
um relativista banal caberia para um aluno qualquer de primeiro ano de ciências sociais
ou filosofia, ou daqueles professores com viseiras eternas, moldadas por partidos, mas
não a alguém do calibre de Scruton.
2.
Scruton acredita que Rorty (como Foucault e Marx) “fixou-se contra a verdade
objetiva”, “dando uma variedade de argumentos para pensar que a verdade é uma coisa
negociável, que o que importa no final é de que lado você está”. Scruton diz que esse
tipo de coisa abriu espaço para o que veio depois em favor de uma cultura de privilégio
do “fake”.
Ora, se Scruton reclama da verdade objetiva e ele próprio toma Rorty apenas
pelas consequências que outros tiraram de seus estudos, como quem quer acreditar que,
afinal, o kitsch foi legitimado por alguma coisa dita pelo filósofo pragmatista, ele está
abraçando o que denunciou. Um conservador como Scruton, preocupado com a verdade
objetiva, deveria ir menos pelos supostos efeitos e mais pelo que Rorty disse, vindo dos
seus livros, além disso, não deveria, sem uma pesquisa sociológica relativamente
quantitativa, pôr sobre os ombros de Rorty aquilo que venceu e se legitimou, talvez, por
outros mecanismos. Não vou tocar nesse segundo ponto, pois eu mesmo não tenho essa
sociologia nas mãos, embora não desconheça autores que evocariam outros elementos
para dizer o que Scruton disse, e não a obra de Rorty. Mas vou tocar, sim, no primeiro
ponto, discordando: Rorty não disse para as pessoas que a verdade não existe ou que a
verdade objetiva é pouca coisa ou não importa. Muito menos Rorty disse, em um
sentido banal, como Scruton coloca, que a verdade é algo negociável. Sempre esteve
longe de Rorty achar que “o que importa no final é de que lado você está”. Talvez fosse
mais correto dizer, para ser justo com Rorty, que a negociação em torno dos enunciados
que afirmamos como verdadeiros é uma prática da qual nenhum homem de ciência pode
fugir.
O que Rorty fez foi considerar algo que em geral os filósofos da cultura, ao
desprezarem certos aspectos técnicos que surgiram com a filosofia metafísica enquanto
associada à filosofia da linguagem, deixam de lado e, então, com facilidade deslizam
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para a crítica fácil dos que foram chamados, ao menos no final do século XX, de pós-
modernos. Destaco dois pontos. Em primeiro lugar, Rorty teve, ele próprio, de enfrentar
o problema da verdade enquanto um problema filosófico específico no século XX (neste
tópico 2). Em segundo lugar, Rorty teve de considerar, no campo específico da cultura
americana, o papel da religião e o modo como as igrejas utilizam o termo “verdade”
(tópico 3). Assim, não foi por uma idiossincrasia que Rorty escreveu o que escreveu a
respeito da verdade. Não foi como um militante que gostaria de ver a alta cultura se
deteriorar que Rorty se dedicou ao tema da verdade, se é que alguém que se dispusesse
a falar contra a verdade objetiva estivesse já de imediato criando caminhos para a
entrada da cultura “fake”.
A questão toda de Rorty quanto à verdade é uma que, no que concerne aos
limites que tenho aqui neste texto, pode ser posta da seguinte maneira: a noção de
verdade vinda da Teoria da Verdade como Correspondência está na berlinda (e escapar
dela optando pela noção de verdade que emerge da Teoria da Verdade como Coerência
não tem se mostrado algo sem críticas). Rorty nunca conseguiu esquecer sua formação
parcialmente analítica, em que tal questão importava muito – especialmente em filosofia
da ciência, um campo que para boa parte dos professores sempre esteve cruzado com a
filosofia analítica, principalmente nos Estados Unidos. Muito menos Rorty poderia
evitar seu apego à tradição americana que produziu a ele próprio, ou seja, o
pragmatismo de James e Dewey, que duelou com Russell exatamente nesse campo da
noção de verdade. Scruton não é alemão ou brasileiro ou francês. É britânico. Ele sabe
de tudo isso. O que o faz saltar tais coisas é o seu conservadorismo. Ele parece precisar,
por conta de sua posição na direita política, alinhar Marx, Foucault e Rorty, de modo a
dizer que foram tais plebeus que atacaram a alta cultura ao atacar a verdade e, portanto,
automaticamente, elevar o “fake”.
O certo é que quem ataca as noções tradicionais de verdade não
necessariamente eleva o “fake”. Nem mesmo dá caminho para tal. Esse tipo de
entendimento é o do senso comum, e Scruton não deveria assumi-lo assim tão
facilmente. O que Rorty fez ao ver que as noções tradicionais de verdade estavam na
berlinda, foi simplesmente apoiar a filosofia da linguagem, em suas soluções técnicas,
para escapar do problema. Ele tomou então, mais radicalmente, os trabalhos de Donald
Davidson, exatamente para saltar para fora das falhas das teorias tradicionais da verdade
e, ao mesmo tempo, não ter de suportar os que poderiam chamá-lo de relativista, de um
modo pouco qualificado.
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Qual o problema das noções tradicionais de verdade? Qual o problema
específico com a Teoria Correspondentista? Ora, o problema é que quando eu digo que
“O Pitoko está deitado no chão” (p), e ele, Pitoko, está deitado no chão, eu chamo a
sentença p de verdadeira, mas o que eu estou dizendo, quando me afasto da questão da
percepção (de questões psicológicas e de certo modo epistemológicas), quando fico
somente com a frase e a sua lógica, isso tudo ganha uma fórmula de enunciação que
parece não se sustentar. Ei-la:
S: “O Pitoko está deitado no chão” (p) é verdadeira se e somente se o Pitoko
está deitado no chão (p). Ou então:
S1: p é verdadeira se e somente se p, em que p é o que eu chamo de o fato
indicado por p.
Ora, mas o que é o fato? É algo não linguístico? O que é o fato senão aquilo
que se sabe a se ter “O Pitoko está deitado no chão”? Não há como dizer que p é outra
coisa que não p se estamos tratando de p como um enunciado verdadeiro. De modo que
dizer o verdadeiro é dizer o fato, mas ao perguntar o que é fato não conseguimos obter
outra coisa senão a resposta: é o que é verdadeiro. Assim, ao falarmos “fato” para
apontar para o não linguístico, para que este possa corresponder ao que é linguístico,
que é “O Pitoko está deitado no chão”, não estamos fazendo outra coisa senão
entrarmos em um círculo. Assim, a Teoria da Correspondência não explica o que é a
correspondência e o que é dizer a verdade. Sendo circular, dizer que essa teoria explica
algo é realmente desrespeitar a filosofia. Em filosofia como em ciência não temos o
costume de ouvir sem desconfiança as explicações circulares.
Desse modo, no linguajar comum, cansamos de usar da noção de
correspondência para pensar na verdade (ou, ao menos, em um primeiro momento,
assim nos parece), e isso parece funcionar, mas do ponto de vista filosófico, um simples
exercício – como este acima – diz que há anos estivemos caminhando no uso de alguma
coisa obscura. Rorty nunca falou para as pessoas pararem de usar essa noção de
verdade, mas, como filósofo, ele teve de levar a sério esse problema da Teoria da
Verdade como Correspondência, ou seja, dela ser uma explicação circular.
Outras teorias também trouxeram problemas. E então, Rorty resolveu usar de
seu pragmatismo para pensar a verdade de um modo em que os problemas filosóficos
tradicionais não aparecessem. Ele ouviu James e Dewey, como também o segundo
Wittgenstein e Davidson, para seguir a linguagem e, então, estudar não A Verdade, mas
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os usos do verdadeiro em nossa linguagem. O que Rorty viu foi que expressões como “é
verdade” ou “é verdadeiro”, do modo que a utilizamos, podem ser mantidas sem que
tenhamos de nos referir à noção de correspondência. Portanto, se a Teoria da Verdade
como Correspondência é falha, temos outra maneira de continuar usando “é verdade” se
descrevermos nossa linguagem de outra maneira. Pelos usos de “é verdade” ou “é
verdadeiro”, chegamos a situações em que a correspondência não precisa ser evocada.
Rorty colocou três situações que, segundo ele, cobrem todo o espectro em que o “é
verdadeiro” aparece e dispensa a correspondência. Esses são os três casos.
- Usamos “verdadeiro” para aplaudir alguém ou uma situação. Nesse caso,
falamos que algo é verdadeiro à medida que falaríamos que é bom ou nobre, ou útil, etc.
- Usamos “verdadeiro” para dizer coisas que foram endossadas por outros.
Nesse caso, falamos: “‘Tudo é água’ é verdadeiro para Tales, mas não para
Anaximandro. Ou então: “É verdade que ‘a escravidão é um crime’ para mim, mas meu
tataravô nunca a viu como um crime”.
- Usamos “verdadeiro” como sinal de advertência. Nesse caso, temos: “‘Os
cães foram domesticados por nós há muito tempo’ é verdadeiro para os biólogos, mas
não é verdadeiro para os antropólogos”.
Ora, dos três casos, só o terceiro parece trazer algum problema. Esse problema
é o seguinte: se digo “é verdadeiro” como alguma coisa que é uma advertência, há quem
fale que, neste momento, entra aí, sim, a noção de verdade objetiva associada à noção
de correspondência. Um dos filósofos que disse isso, contra Rorty, foi Habermas. Em
uma polêmica de mais de trinta anos, com vários textos trocados, Habermas sempre
insistiu que quem admoesta o outro com a verdade tem em mente uma noção de “é
verdadeiro” como algo que é atemporal e que serve para qualquer audiência. Assim, a
advertência só seria advertência porque quem a pronuncia não está colocando geografia
e história para medir o “é verdadeiro”, mas lidando com a noção de verdade no seu
sentido substancial e forte. Penso que as respostas de Rorty admitem essa consideração,
em parte. Mas só em parte! Porque tal pessoa, que faz tal coisa, não precisaria fazer
assim, ou seja, não precisaria estar pensando dessa maneira, como quem tem na mão
uma verdade universal e objetiva, e ainda assim a advertência continuaria válida.
Portanto, em termos de descrever a prática do usuário da linguagem, o uso da verdade
como advertência pode ser o uso de quem está dizendo algo desse tipo: “verdade, mas
não para os seres galácticos de Alfa Centauro”. Uma descrição assim manteria o uso,
sua validade e, enfim, evitaria a noção de correspondência, problemática em nível
14 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
filosófico.
Não vejo aí, por conta da argumentação de Rorty, qualquer afirmação no
sentido de endossar o “mais vale o lado que se está”. Não vejo aí nada que abra espaço
para que o kitsch possa imperar na cultura. Não consigo entender no que é que uma
solução filosófica como esta estaria comprometendo Rorty com aqueles que promovem
obras de arte que não podem mais causar “sentimentos profundos e reais”. Menos ainda
vejo Rorty comprometido com os que pedem ousadia e tudo mais, mas como clichês.
Explico novamente a questão do uso de advertência.
Dizer coisas como “é verdadeiro aqui e agora, mas talvez não para lá e depois”
não é o mesmo que dizer “é verdadeiro aqui e agora, mas talvez não para qualquer lá e
qualquer depois”. A advertência é a seguinte: “olha meu camarada, o que você diz é
verdade mesmo, para o grupo que o escuta, sendo este o grupo em que você nasceu e o
grupo que é da sua geração”. Isso não é o mesmo que dizer o seguinte: “olha meu
camarada, o que você diz é verdade mesmo, mas única e exclusivamente para o grupo
no qual você nasceu e para as pessoas deste grupo da sua geração”. A advertência não é
uma que implique em tamanha particularização, em tão profunda restrição, algo que, no
seu oposto, acolhesse “a verdade universal é X, de modo algum a sua verdade, que é
necessariamente particular”.
Posso ser surpreendido por um grupo cultural em que homens de 55 anos
comem um animal que o meu grupo de homens de 55 anos considera sagrado. Então, eu
e pessoas do meu grupo avisamos os membros do grupo que nos surpreendeu que eles
estão fazendo algo que é um pecado. Dizemos para eles: “é verdade que comer esse
animal é um pecado”. Nós os advertimos. Nossa frase pode ser substituída por uma
outra forma de explícita advertência, sem perder qualquer função: “é verdade que comer
esse animal é um pecado para nós e para mulheres de nossa cultura, também com 55
anos”. Eles não precisam entender o nosso aviso como sendo um que traduziriam assim:
“é verdade que comer tal animal é pecado para esses dois grupos, mas nós podemos
continuar comendo tais animais porque esses dois grupos não são significativos em todo
o cosmos”. Não! Não precisamos ser interpretados assim. Podemos ser levados a sério.
Nossa advertência os fará pensar. Mesmo que só nós tenhamos aquele animal como
sagrado enquanto todo o resto do mundo come aquele animal sem qualquer culpa, nossa
advertência ainda estará válida para ser considerada para quem ela foi dirigida. A
advertência continua forte uma vez que a fizemos: “Olha, meu caro, você está em
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pecado, eu não, e não adianta você me desconsiderar e considerar todos os outros
grupos da Terra, porque ainda assim minha advertência está aqui, e você vai acabar
pensando sobre ela”. Não necessariamente quem usa o termo “verdadeiro” em um
contexto de advertência precisaria estar de posse de um sentido universal de verdade.
Essa exposição Scruton, como Searle no passado, parece não entender. Não sei
o quanto, no debate entre Habermas e Rorty, o primeiro cedeu ao segundo. O debate
entre eles não chega a evoluir para essa argumentação que eu detalhei no último
parágrafo, em que introduzo a minha explicação para alguém que viesse com a objeção
de Habermas a Rorty. Tudo indica que, nesse ponto, eles mantiveram essa divergência e
preferiram deslocar o debate para outros pontos. Talvez essa divergência de Habermas
para com Rorty é a que poderia estar na cabeça de Scruton, para que ele tivesse alguma
razão contra Rorty. Ele poderia simplesmente não estar interessado em raciocinar sobre
o assunto e, dessa maneira, não chegaria ao argumento que utilizei no parágrafo
anterior. Mas, pela minha argumentação aqui, penso que posições como as de Scruton e
Habermas, na indisposição contra Rorty, não precisam se manter.
Só os filósofos pensam em verdade objetiva e universal como a única verdade
forte o suficiente para fazer alguém considerar frases contendo “é verdadeiro” como
alguma coisa capaz de ser levada a sério. De modo algum as pessoas (tão inteligentes
quanto os filósofos), em seu cotidiano, tomam as coisas assim. Qualquer frase contendo
“é verdadeiro” é levada a sério, sim, se estiver sendo tomada em um dos três sentidos
apontados por Rorty, no seu mapeamento do uso cotidiano – o único uso que nos
interessa. E a frase de advertência também não precisa ter o “é verdade” ou o “é
verdadeiro” aludindo ao objetivo e universal para ser levada a sério. Nós a levamos a
sério porque se trata de uma advertência e que, então, forçará os mais curiosos, os mais
afeitos a pedir justificativas, a dizer: “mas do que está falando, explique mais”. Ou
assim: “vocês estão dizendo que o animal que comemos é sagrado e, portanto, que é
verdade que pecamos quando o comemos, mas o que os faz afirmar que ele é sagrado, o
que vocês sabem que nós não sabemos que os fazem falar isso desse animal?”
Dizer que se fizermos tal pergunta já estamos abrindo um caminho para que
venha tudo a ser “fake” e então ser desprestigiado, ou que com isso abrimos as porteiras
para o kitsch e para uma cultura que leva as pessoas a não terem mais a cultura como
autoconsciência é algo no mínimo exagerado. Scruton não é um exagerado no bom
sentido, no sentido weberiano. Ele força a barra.
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3.
O segundo ponto é quanto à religião. Nesse caso, Rorty entende que a maneira
técnica com a qual ele lida com o tema da verdade facilita sua exposição diante de
incômodos sociais, especialmente os que o fundamentalismo religioso põe e repõe.
A noção de verdade enquanto o que é sustentado pela Teoria da
Correspondência é uma noção dita substantiva, que em geral é facilmente inflacionada
metafisicamente. Ela corrobora certo isomorfismo. Uma situação em que linguagem e
mundo podem ser tomados como isomorfos, onde o gancho entre o linguístico e o não-
linguístico pode se dar por meio da correspondência, é um prato cheio para a metafísica.
O velho ideal grego de que o Logos do universo esteja também preso no peito do
homem, uma vez que este está no universo e parece ser predestinado a compreendê-lo,
nunca saiu da cabeça não só de filósofos antigos, mas também e talvez principalmente
dos medievais. Muitos modernos repetiram isso, depois, quando vieram a desenvolver a
ciência experimental e então viram na matemática aquilo que os medievais enxergaram
na lógica. “A natureza fala por meio da matemática” ou “Deus é um grande
matemático” foram frases que os modernos repetiram encantados, principalmente à
medida que a matemática lhes parecia uma expressão própria da razão finita. O eco do
Evangelho de João nunca foi desprezível: “no princípio era o Logos”. Deus criou o
mundo à medida que falava da Criação. Exercia a linguagem de modo que o mundo
nunca foi outra coisa senão a linguagem de Deus ou sua lógica ou, em termos mais
populares, algo com a regularidade captável pela matemática do homem. Assim, para os
intelectuais religiosos, nunca foi muito difícil imaginar que se chegamos a alguma
verdade em matemática – campo no qual o contingente e mutável parece não ter lugar –
poderíamos estar muito próximos do tipo de verdade que a religião espera ter em mãos:
a verdade objetiva e universal, o que equivale ao ponto metafísico, a pedra absoluta.
Esses passos deram a vários intelectuais o espaço para poder, somente com
metafísica, falar em “Verdade” antes que em “verdadeiro”, e assim fazer o nome
“Verdade”, ao indicar algo absoluto, se por como sinônimo de “Deus”. No campo
metafísico poder-se-ia dizer como o Mundo Realmente É, e tendo permissão para assim
se pronunciar tudo estaria aberto para o caminho de se ter aquilo que se não é Deus, é
seu produto direto mais próximo.
Poder deslocar a Teoria da Verdade como Correspondência e, ao mesmo tempo,
17 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
fornecer uma descrição filosófica de como a verdade atua em nossa linguagem,
seguindo o rastro do uso, para Rorty, veio a se constituir em uma boa vitória. Deu-lhe
força para preferir narrativas iluministas, deixando as narrativas metafísicas e religiosas
para outros.
Ora, será que foi essa a parte do discurso rortiano que, então, teria incomodado
Scruton, diferentemente do que incomodou Searle ou Habermas? Eu até poderia dizer
que sim, uma vez que Searle ou Habermas teriam ficado em divergência com Rorty
quanto às questões técnicas já aludidas, não quanto à posição de Rorty diante da
religião, enquanto que o conservadorismo de Scruton o deslocaria para um tipo de
divergência diferente. Mas Scruton, neste artigo analisado, não vai adiante. Ele limita
sua questão ao elo entre desprestígio da verdade objetiva e prestígio do “fake”, e deste
prestígio último para o enaltecimento do kitsch como ponto de chegada da cultura
“fake”.
O artigo de Scruton discorre sobre efeitos de uma cultura “fake” e ele,
realmente, anuncia algo interessante. Ele lembra que os modernistas fizeram o que
fizeram – a arte de tipo Warhol – como alguma coisa consciente, e isso teve seu valor
humano, mas que repetir isso, como se repete agora, integrado ao processo de venda, é o
“fake”. Ora, posso concordar com isso. Mas as bases sobre as quais ele põe sua crítica,
chamando Marx, Foucault e principalmente Rorty para que eles possam ser culpados
pelo que eles não tiveram culpa, isso é obra exclusiva do conservadorismo de Scruton.
Ele deveria deixar de lado essa necessidade de ser de direita em tudo, e pensar
que gente da classe social dele talvez tenha, por meio de financiamentos muito mal
direcionados e através do Estado privatizado em favor do lixo cultural, contribuído
muito mais decisivamente para que a cultura atual tenha abocanhado mais coisa ruim do
que o necessário em cada lugar. Caso ele fosse por essa via, ele se surpreenderia em
encontrar mais culpa das coisas estarem como estão entre aqueles que ele imagina que,
por estarem próximo a ele, estão em defesa da alta cultura. Às vezes, tenho a impressão
que não estão.
A democracia de massas e todo o processo de democratização e popularização
que passamos entre os séculos XIX e XXI podem ter uma enorme responsabilidade pelo
que Scruton detecta que ocorre no coração humano, na curtição do fake, digamos assim.
Todavia, dizer que os teóricos não conservadores – Marx, Foucault e Rorty à frente – ao
descreverem esses processos deram guarida ao que ocorreu de ruim nesses mesmos
processos é, a meu ver, um escorregão. No caso de Marx e Foucault, um escorregão
18 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
com justificativas, talvez a “crítica da ideologia” e a “teoria do poder” de ambos,
respectivamente, tenha feito ataques não alvissareiros às bases de legitimidade da
cultura. Quanto a Rorty, não poderia dizer o mesmo.
O pragmatismo, ao caminhar pela estrada da desinflação das teorias de
verdade, nunca me pareceu ser um voluntarioso membro de um partido de uma
“revolução cultural” contra a alta cultura. O pragmatismo me parece, ao fazer o que fez
e faz, inclusive e principalmente com Rorty, um produto natural do período que
Nietzsche qualificou como o pós-positivismo, a época em que não temos mais que ser
crentes ou ateus, justamente porque “Deus está morto”. Quando James e Wittgenstein
nos abriram caminho para lidarmos com a verdade a partir do uso, que foi o que Rorty
seguiu (e o que eu mesmo sigo), a questão entre verdade e falsidade não poderia mais
estar posta de modo dramático como foram postas coisas como Deus-Verdade versus
Ateísmo-Falsidade. O pragmatismo me parece, principalmente com Rorty, uma filosofia
dos tempos em que não só o Mundo Real foi destruído, mas também, com o Mundo
Real, o Mundo Aparente nos deixou. O pragmatismo é uma filosofia que nos permite ler
Platão novamente, sem ter de combatê-lo. Ler Platão se tornou agora, pela primeira vez,
uma tarefa não partidária. Scruton está com um pé demais num mundo que parece já ter
passado.
19 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Artigos
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O CARÁTER NÃO DEWEYANO DO “DEWEY HIPOTÉTICO” DE
RORTY
Edna Maria Magalhães do Nascimento
1
RESUMO O artigo é uma crítica a estratégia rortyana de cindir Dewey em dois: um Dewey “bom”
e um Dewey “mau”. Nele, sustentaremos uma interpretação que articula as duas
dimensões da filosofia deweyana: a historicista e a cientista. Nessa perspectiva,
apresentaremos nossas objeções tanto à hipótese de um Dewey unicamente historicista e
antifundacionista quanto à de um Dewey unicamente cientista, como a maioria dos
críticos de Rorty termina concluindo, caindo na estratégia rortyana. Levaremos em
conta também algumas propostas de comentadores favoráveis a Rorty, que procuram
atenuar essa divisão, alegando a existência de um Dewey “concentrado” e outro
“diluído”. De acordo com nossa interpretação, consideramos tais propostas como
estratégias oriundas da mesma fonte, ou seja, da tentativa de “atualizar” Dewey para
adaptá-lo ao quadro conceitual neopragmatista. Considerando as divisões desses autores
que colocam, de um lado, um Dewey “bom”, ou “jamesiano”, ou “diluído” e, de outro,
um Dewey “mau” ou peirciano ou concentrado, nos colocamos a favor de um único
Dewey historicista e cientista ao mesmo tempo.
Palavras chave: Dewey, Rorty, pragmatismo, neopragmatismo, ciência.
ABSTRACT
The article is a critique of Rorty's strategy of split Dewey in two: a “nice” one and a
“bad” one. In it, we will maintain an interpretation that links the two dimensions
Dewey's philosophy: the historicist and scientist. In this perspective, we present our
objections to both the hypothesis of a historicist and antifundacionist Dewey, such as to
a scientist Dewey only, like most critics of Rorty concludes, falling in rortyan’s strategy.
We will take into account also some comments in favor of Rorty, who tries to mitigate
this division, alleging the existence of a Dewey "concentrated" and a "diluted" one.
According to our interpretation, we consider such proposals as strategies derived from
the same source, which means, the attempt to "update" Dewey to adapt it to the
conceptual framework neopragmatist. Considering the division made by some authors
between a“good”, “jamesian”, or “thin” Dewey, and in the other side a “bad”,
“peircean”, or “thick” Dewey, we favor in our interpretation a unique historicist and
scientist Dewey.
Keywords: Dewey, Rorty, Pragmatism, neo-pragmatism, science
1 Doutorado em Filosofia(UFMG).Professora da Universidade federal do Piauí- UFPI, do Departamento
de Fundamentos da Educação – DEFE/CCE. Email: [email protected]
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1. O “Dewey hipotético” de Rorty não é uma boa hipótese
Ao construir sua hipótese interpretativa sobre Dewey, Rorty atribui a nosso
autor duas personalidades conflitantes: O Dewey “bom” e o Dewey “mau”. Rorty não
considera adequado que Dewey reconstrua conceitos da filosofia tradicional como
ciência, natureza, experiência e método. Ele pensa que se Dewey tivesse abandonado
tais projetos estéreis poderia ter criado argumentos mais persuasivos e adequados contra
a tradição filosófica. No entanto, conforme Rorty, Dewey não abandonou esses projetos.
Esse é o “Dewey mau” que Rorty reprova. Mesmo assim, ele não se cansa de elogiar um
suposto “Dewey bom”, que foi crítico da evidência, do fundacionismo e dos dualismos.
Na sua tentativa de “linguisticizar” Dewey, Rorty quer demonstrar que o
“jovem Dewey” foi o Dewey “mau” que tentou seguir Locke e Hegel e ainda
permaneceu no kantismo. Assim, atribui ao “velho Dewey” uma mudança de atitude
que seria mais coerente com a sua doutrina: a realização de estudos sócio culturais sobre
os problemas filosóficos em seus contextos específicos. Mas não nos parece adequada a
hipótese de que haja um “primeiro” e um “segundo” Dewey. Não nos parece que, ao
final de sua carreira, Dewey tenha desejado mudar de assunto e abandonar a sua
metafísica em sentido atenuado. Aquilo a que ele se dispôs foi discutir se as palavras
não-técnicas poderiam ser utilizadas de modo frutífero no discurso filosófico. Ao
contrário de Whitehead, que desenvolve um novo vocabulário para expressar suas
idéias, ou, pelo menos, muda radicalmente o uso ordinário das palavras para adequá-las
às suas necessidades, Dewey, pelo menos até seus últimos anos, tenta limitar-se ao uso
da linguagem comum
A estratégia interpretativa de Rorty não é aceita por nós porque desfigura a
obra do pragmatista clássico, considerando que deve ser aceita apenas a dimensão
historicista de seu pensamento. A sua dimensão cientificizante deve ser rejeitada,
especialmente a principal categoria da filosofia de John Dewey, que é a experiência.
Rorty escreve que a contribuição que Dewey ofereceu ao pensamento filosófico foi a de
ser crítico da tradição. Desse modo, a pretensão deweyana de oferecer uma metafísica,
caracterizada pela descrição da realidade e pela descoberta dos traços gerais da mesma,
a fim de iluminar as pesquisas e investigações futuras, foi rejeitada por Rorty.
Deixando de lado parte significativa da obra de nosso autor, Rorty acredita que
o Dewey “bom” pode levar a filosofia à “idade de ouro”. Isso corresponderia a sair da
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metafísica da experiência, segundo o modelo kantiano, e passar para uma fase de análise
do desenvolvimento cultural, segundo o modelo hegeliano. Para atingir esse objetivo,
Rorty faz uma desleitura da obra de Dewey que tenta mostrar a prevalência da dimensão
historicista sobre a dimensão cientista do pragmatista clássico. Sem dúvida, Dewey se
opõe à ideia de uma filosofia única, fundamentadora do conhecimento. Rorty acredita
que, por causa disso, não há lugar para uma metafísica empírica na obra de Dewey, mas
sim para um tratamento terapêutico da tradição.
Pretendemos sugerir que, ao elogiar seu herói filosófico, Rorty fala de si
mesmo. A criação do Dewey “bom” é um pretexto de Rorty para nele encontrar a
inspiração fundamental para a construção do conceito de intelectual ironista. A
influência historicista de Dewey aponta tanto na direção de uma interdisciplinaridade
que falta à filosofia clássica como na direção de uma contextualidade fundamental ao
pragmatismo. Pensamos que Rorty concorda com Dewey quando este último declara
que a filosofia cumprirá sua função quando o significado das ciências sociais e das artes
tiver tornado objeto de atenção crítica da mesma maneira que as ciências matemáticas e
físicas e quando sua importância for compreendida. Certamente Rorty também
concordaria com Dewey quanto a sua defesa do processo de humanização da ciência2.
Rorty aceita a interdisciplinaridade e a contextualidade do pragmatismo deweyano. No
entanto, parece cair em contradição ao não aceitar que a concepção de ciência em
Dewey tenha essas características.
2. Avaliando a posição de Lavine e Rorty
Começaremos a nossa discussão avaliando a posição de Lavine3, para quem, é
a concepção do método científico que separa Dewey de Rorty. Diferentemente do que
declara essa autora, pensamos que o que distingue Rorty de Dewey não é o método
científico, mas a articulação dialética entre a dimensão científica e a dimensão histórica,
que está presente em Dewey e não está em Rorty. Esse último fica apenas com a
dimensão histórica e termina recusando a dimensão científica. A recusa dessa última por
Rorty, que a reduz a um vocabulário contingente, o leva ao antifundacionismo. Em
2 DEWEY, John. Experience and Nature. New York: Dover Publications, Inc., 1958, p. 164.
3 LAVINE, Thelma Z. America and The Contestations of Modernity: Bently, Dewey, Rorty. In: Rorty &
Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University
Press, 1995.
23 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
contraposição, Dewey, em sua filosofia naturalista, recusa o fundacionismo porque as
interações causais entre seres vivos e o ambiente não exigem um fundamento último.
Mas Lavine tem razão quando diz que, para Dewey, a ciência e a democracia não se
dissolvem no processo histórico. Elas mudam de acordo com as interações causais
mencionadas4.
Lavine afirma também que Dewey está influenciado pela modernidade ao
associar o historicismo e o cientismo. Pensamos que ela tem razão no caso da
modernidade, pois a dimensão histórica em Dewey está ligada ao Contra-iluminismo,
do mesmo modo que a dimensão científica nesse mesmo autor está ligada ao
Iluminismo. Lavine acerta também em sua descrição das diferenças entre o historicismo
de Rorty e o de Dewey. A descrição que Lavine faz do historicismo de Dewey coincide
com a que decorre de nossa interpretação e não precisa ser discutida aqui. A descrição
que ela faz do historicismo de Rorty é adequada, porque o vocabulário em Rorty
corresponde de maneira bastante aproximada à ideia de jogo de linguagem em
Wittgenstein. Em ambos os casos, a contingência histórica do meio circundante é
destacada, embora a expressão usada por Wittgenstein seja mais adequada que a de
Rorty, uma vez que entendemos que vocabulário se refere a uma lista estática de
palavras, enquanto jogo de linguagem se refere a uma atividade social.
Na continuação de seu argumento, Lavine acerta também quando diz que Rorty
não escapa ao dilema da modernidade, ao adotar a distinção entre público e privado, a
qual reflete a oposição entre iluminismo e contra-iluminismo. Isso ilustra não só a
inevitabilidade da oposição para os intelectuais contemporâneos, mas também uma
inconsistência em Rorty, já que ele acaba por assumir a distinção entre público e
privado, que está baseada na oposição entre iluminismo e contra-iluminismo, que ele
rejeita. Com isso, Rorty acaba propondo a tarefa impossível de tentar atingir os
objetivos do pai Dewey, mas sem utilizar as ferramentas propostas por esse último.
Ao responder as críticas de Lavine, Rorty admite a possibilidade de um
conhecimento objetivo, sem realismo, sem representação e sem correspondência5. Ele
identifica tal conhecimento com as práticas sociais e com o acordo intersubjetivo6.
Portanto, Dewey está certo se método científico for considerado sinônimo de práticas
sociais das comunidades democráticas. Para Rorty, Lavine diz que Dewey sacralizou o
4 Ibidem, pp. 47-48.
5 RORTY, Richard, “Response to Lavine”. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to
His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995, p. 50 6 Ibidem, pp. 51-52.
24 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
método científico e o processo democrático, mas isso poderia reduzir-se a sacralizou o
processo democrático, sem perda de conteúdo. Para Rorty, Dewey não é claro sobre o
que significa método científico7. Como justificativa para isso, Rorty afirma que, para
cada citação de Lavine ilustrando o realismo deweyano, ele pode oferecer outra
passagem ilustrando o anti-representacionismo deweyano. Rorty reconhece não saber
como resolver essa questão exegética, pois ele e Lavine estão construindo cada um o
seu Dewey respectivo. Rorty admite a existência de uma relação edípica entre ele e
Dewey, como acusa Lavine, mas acha que, se ele, Rorty, tivesse feito uma distinção
mais cuidadosa entre o “bom” e o “mau” Dewey, Lavine não poderia levantar essa
questão. Rorty reconhece que de fato está “desmetodologizando” e “linguistificando”
Dewey. Conforme Rorty, isso não significa descaracterizá-lo, mas apenas promover
uma atualização de Dewey, a qual foge da letra dos seus textos, mas não do seu
espírito8.
Em resposta à réplica de Rorty a Lavine, temos a dizer o que segue. Para
admitir um conhecimento ao mesmo tempo objetivo, sem realismo, sem representação e
sem correspondência, Rorty está deixando entrar pela porta dos fundos aquilo que
expulsou pela porta da frente. Com efeito, a dimensão científica em Dewey, que garante
a objetividade desse conhecimento, foi explicitamente expulsa por Rorty em nome do
historicismo, que elimina o caráter realista, representacionista e correspondentista desse
conhecimento. Mas, ao apelar para a objetividade das práticas sociais das comunidades
democráticas, Rorty está admitindo implicitamente alguma coisa semelhante à
experiência deweyana, com sua dialética das interações entre os seres vivos e o
ambiente.
3. Avaliando a posição de Rorty em sua resposta a Lavine
Pensamos que Rorty está certo ao enfatizar a imprecisão do conceito de método
científico em Dewey. Mas nosso autor não foi claro em relação ao conceito de método
científico pelas mesmas razões por que não foi claro em relação ao conceito de
experiência: não há como ser preciso quando se busca caracterizar os traços gerais da
existência humana. Em se tratando de realidades historicamente contingentes, o máximo
7 Ibidem, p. 51.
8 Ibidem, p. 53.
25 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
que pode ser feito é fornecer uma ideia geral dos processos envolvidos, tanto no caso da
experiência como no caso do método científico. Nessa perspectiva, o que Dewey
escreveu em sua Lógica é suficiente para os seus objetivos: ele está dando os traços
gerais dos diversos tipos de interação entre seres vivos e o ambiente, os quais são
capazes de levar a algum conhecimento objetivo. Além disso, a exigência de precisão
conceitual em Dewey não condiz com postura do próprio Rorty quando está
argumentando, pois o neopragmatista, enquanto ironista, está muito mais próximo da
imprecisão do que gostaria de reconhecer.
Quando Rorty reconhece que não sabe como resolver a questão exegética entre
ele e Lavine, está ignorando o fato de ser possível encontrar tanto passagens realistas
quanto anti-representacionistas em Dewey aponta claramente na direção de uma
interpretação que reúna esses dois aspectos de maneira consistente em Dewey, ao invés
de forçar a uma escolha entre um ou outro. Nessa perspectiva, nem Rorty nem Lavine
estão certos, mas sim uma combinação das interpretações de ambos.
Na sua resposta a Lavine, Rorty reconhece ter uma relação edípica com Dewey,
o que é bom. Mas sua resposta a Lavine não é satisfatória. Pensamos que, quanto mais
ele trabalhasse a distinção entre o Dewey “bom” e o “mau”, mais ele estaria se
distanciando do pensamento de Dewey, que envolve essas duas dimensões de maneira
indissolúvel. Agindo desse modo, Rorty não conseguiria imunizar-se, mas estaria
abrindo mais ainda o flanco para a objeção de Lavine.
Finalmente, Rorty reconhece que, com a “desmetodologização” e a
“linguistificação” de Dewey, ele está “atualizando” Dewey. Isso também é bom. Mas a
questão é: com essa “atualização”, Rorty foge não só da letra, mas também do espírito
da filosofia de Dewey. Com efeito, a divisão de Dewey em dois temperamentos opostos
e a opção por um deles em detrimento do outro simplesmente deforma de maneira
irrecuperável a filosofia de Dewey. Ela passa a ser um historicismo sem critérios de
objetividade: isso poderia agradar a Rorty, mas certamente não agradaria a Dewey.
4. Avaliando a posição de Gouinlock e Rorty
Passemos agora à discussão da posição de Gouinlock, para quem Rorty se
inspira na tese da incomensurabilidade da tradução ao alegar que o conhecimento
26 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
objetivo é impossível9. Pensamos que Gouinlock está certo ao dizer isso. Com efeito,
essa tese torna contingentes os enunciados das teorias científicas, permitindo que elas
sejam colocadas em pé de igualdade com outros gêneros literários, o que faz parte do
projeto de Rorty. Guinlock também está certo ao dizer que, com essa posição, Rorty
acredita poder livrar-se das acusações de relativismo e de incomensurabilidade porque
esses conceitos pressupõem que afirmações opostas são incomensuráveis ou relativas
em relação a algum critério. Já que os critérios pertencem à epistemologia e ela deve ser
abandonada, esses conceitos problemáticos também devem ser abandonados10
. Com
efeito, a estratégia de Rorty é a de simplesmente propor uma troca de vocabulário
através da qual a epistemologia e seus problemas seriam deixados de lado em benefício
de uma conversação mais voltada para a visão de mundo neopragmatista. Entretanto,
Gouinlock peca ao aceitar a divisão de Dewey em dois temperamentos, um “bom” e
outro “mau”. Isso não só deforma a filosofia de Dewey, mas também torna mais fácil a
argumentação de Rorty no sentido de defender a opção por um Dewey “bom” em
detrimento de um Dewey “mau”.
Gouinlock distribui seus argumentos contra Rorty com base naquilo que ele
considera os cinco mal entendidos do neopragmatista em relação a Dewey. O primeiro
desses mal entendidos tem a ver com o método. Ao contrário de Rorty, Gouinlock
afirma que Dewey não foi além do método, mas simplesmente o considera fundamental
para a raça humana. Pensamos que Gouinlock está certo ao apontar esse mal entendido
rortyano, pois o objetivo central da filosofia de Dewey é de fato a extensão do método a
todas as áreas de conduta humana. E achamos conveniente lembrar aqui que essa
extensão só pode ser feita em termos bastante gerais, e não específicos, como quer
Rorty.
O segundo dos mal entendidos está ligado à teoria correspondentista. Pensamos
que Gouinlock está certo ao reconhecer uma dimensão correspondentista na filosofia de
Dewey, mas achamos oportuno observar que o realismo e o correspondentismo de
Dewey, pressupostos pela existência de uma situação problemática inicial e pelo fato de
que nossas ideias são antecipações do futuro, nada têm a ver com o realismo e o
correspondentismo tradicionais. Realismo aqui significa que, nas interações com o
99
RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton: Princeton University Press,
1979(cap. VI). 10
GOUINLOCK, James, “What The Legacy instrumentalism? Rorty’s Interpretation of Dewey”. In.
Saatkamp Jr., H. J. (ed.). Rorty and pragmatism. The philosopher responds to his critics. Nashville
and London: Vanderbilt Un Press, 1995, p. 74.
27 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
ambiente, os objetos surgem como alteridades que confirmam ou falsificam nossos
testes. Correspondentismo significa aqui simplesmente que o modelo de conduta
proposto hipoteticamente para um dado objeto funcionou. Esse modelo não constitui
uma “cópia” do objeto em sentido tradicional. Portanto, o sentido de representação e de
correspondência em Dewey não pode ser o mesmo das filosofias clássicas. Trata-se de
uma leitura errada que Rorty faz da filosofia deweyana. De acordo com Gouinlock, com
quem concordamos, o próprio processo de investigação é inseparável da manipulação e
organização de eventos e seu propósito é produzir o objeto completo. Com essa
caracterização, certamente, a investigação de Dewey não pode ser redutível à
conversação11
.
Quanto ao mal entendido rortyano em relação à concepção de ciência,
Gouinlock também está certo quando afirma que em Dewey a ciência nos fornece o
conhecimento das potencialidades da natureza sob condições definidas. Mas convém
reiterar que o conhecimento científico para Dewey é falível e autocorretivo. Isso
significa que Dewey tenta retratar mais os traços gerais do método científico do que
propriamente os traços gerais do conhecimento científico, já que o primeiro leva ao
segundo.
Passando ao mal entendido rortyano relativo à linguagem, podemos dizer que
ela é de fato função das nossas interações com o ambiente. A linguagem faz parte da
nossa experiência, mas não de toda a nossa experiência, e não pode, portanto, ser
identificada com essa última. A linguagem é uma ferramenta para lidar com o ambiente.
Ao tentar ver em Dewey a tese de que a linguagem é a própria realidade em que
vivemos, Rorty está projetando equivocadamente sua perspectiva sobre a de Dewey. Se
a linguagem é a realidade em que vivemos, então tudo é conversação e nada poderá ser
estabelecido com um mínimo de objetividade. Rorty está revelando aqui o seu idealismo
linguístico, que será discutido na seção sobre a sua queda inadvertida numa metafísica
da cultura. Outro ponto importante a ser considerado aqui está no fato de que, ao ver a
linguagem como jogo de linguagem, Rorty parece estar confirmando a tese de
Wittgenstein sobre a forma de vida: isso é assim porque agimos assim. A única maneira
de escapar ao relativismo implícito nessa afirmação é supor que a expressão “agimos
assim” pressupõe exatamente aquilo que Rorty quer negar em Dewey, a saber, os
procedimentos de formação de hipóteses e seus respectivos testes empíricos para a
11
Ibidem, pp. 74-78
28 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
resolução de situações problemáticas.
Finalmente, no que diz respeito ao mal entendido rortyano sobre a metafísica
naturalista de Dewey, acreditamos que Gouinlock está certo ao dizer que esse é o
problema principal da discussão. Gouinlock caracteriza adequadamente a metafísica
deweyana ao descrevê-la como uma tentativa de caracterizar o contexto inclusivo da
existência humana para que possamos funcionar com eficiência no interior desse mesmo
contexto. Ora, isso significa que Dewey não tem a intenção de estabelecer uma matriz
neutra e permanente para toda investigação futura, pois isso iria contra o próprio espírito
da sua concepção básica de experiência como interação dialética entre os seres vivos e o
ambiente. A experiência possui caráter histórico e contingente, sendo portanto mutável.
Desse modo, ela jamais poderia ser apresentada como uma “matriz neutra e
permanente” para toda investigação futura. Com efeito, a tarefa de apresentar os traços
gerais da existência humana envolve também a elaboração de uma hipótese sobre essa
mesma existência, hipótese essa que deverá ser verificada através da interação com
novas experiências, as quais gerarão uma nova hipótese e assim por diante. Temos aqui
uma metafísica contingente e falibilista que poderá ser alterada de acordo com as
necessidades das experiências futuras. A noção de uma “matriz neutra e permanente”
não cabe aqui.
Em sua resposta às críticas de Gouinlock, Rorty afirma que Dewey também
quer se comprometer com a “esperança social sem fundamento”. O que conta aqui é a
energia e a inteligência dos que lutam por ela12
. Mas Gouinlock pode estar opondo essa
“esperança social sem fundamento” a um “compromisso alcançado através do método
científico”. Aqui, a divergência entre Rorty e Gouinlock pode ser apenas sobre a
utilidade da noção de método. Rorty a considera sem utilidade. A expressão método da
inteligência crítica poderia ser substituída apenas por inteligência crítica, expressão que
significa ser experimental, não-dogmático, inventivo e imaginativo, deixando de buscar
a certeza. Quando Dewey liga as expressões método da e inteligência crítica, ele está
tentando fazer contraste com o método a priori, dedutivo. Dewey, conforme Rorty,
insistiu em usar a noção vazia de método porque queria que a filosofia deixasse de
oferecer um corpo de conhecimento, embora ainda oferecesse alguma coisa. E para ele
isso é o método. Mas essa foi uma escolha infeliz, pois prometia mais do que podia
12
RORTY, Richard. “Response to Gouinlock”. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds
to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995, p. 91
29 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
oferecer: prometia algo positivo, ao invés de simplesmente advertir negativamente para
não ficarmos presos na armadilha do passado. Seria possível isolar na obra de Dewey
algo suficientemente amplo para ser “extensível a todos os problemas da conduta” e
também suficientemente estrito para ter “propriedades formais”? Em outras palavras:
seria possível isolar nessa obra algo suficientemente genérico para ser o método da
democracia e da ciência e ao mesmo tempo específico o bastante para ser contrastados
com outros métodos efetivamente utilizados pelas pessoas? Rorty pensa que não13
.
Rorty argumenta que método científico é um nome para um terreno
intermediário não encontrável entre um conjunto de hábitos virtuosos e um conjunto de
técnicas concretas, passíveis de serem ensinadas14
. Embora Gouinlock diga que Dewey
caracterizou o método científico com detalhe em The Quest for Certainty, Rorty
afirma não ter encontrado essa caracterização detalhada naquele livro. Ele declara que
tudo o que conseguimos ali é a polêmica padrão de Dewey, repetida sem cessar contra
os dualismos epistemológicos e metafísicos. O único conselho positivo que obtemos é o
de sermos reflexivos, mas determinados, abertos, mas disciplinados, tolerantes, mas
discriminados, ousados, mas não tanto, imaginativos, mas não selvagens. Seria um
desrespeito à memória de Dewey admitir que, quando ele começa a falar sobre método,
ele soa como Polônio?15
Ao afirmar que Dewey foi “além do método”, Rorty quis dizer que Dewey
desistiu da ideia de que é possível extrair algumas regras a partir daquilo que os
cientistas naturais estão fazendo e aplicá-las a outras áreas da cultura, a fim de
modificar essas mesmas áreas. Desse modo, aquilo que Gouinlock chama de
“racionalidade como traço de caráter” nunca corresponderá a um conjunto de
algoritmos, mas sim a algum análogo epistêmico da phronesis aristotélica. Embora
nunca parasse de falar sobre o método científico, Dewey nunca teve qualquer coisa útil
para oferecer a respeito dele. A não ser que seja possível mostrar algum trecho de
Dewey indicando o que ele realmente pensava do “método”16
.
Rorty afirma quer Gouinlock o acusa de ser incapaz de distinguir os melhores
dos piores métodos de investigação ou de ser incapaz de falar do progresso do
conhecimento, mesmo na ciência. Se as duas acusações fossem corretas, então Rorty
estaria muito longe de Dewey. Mas pelo menos a segunda acusação é falsa. Rorty segue
13
Ibidem, p. 92 14
Ibidem, p. 93 15
Personagem do Hamlet de Shakespeare, descrito como “um velho idiota e tedioso”. 16
Ibidem, p. 94
30 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Kunh no conceito de progresso do conhecimento na ciência, definindo-o como
capacidade crescente de conseguir o que queremos a partir da ciência. Uma das coisas
que queremos é a capacidade de explicar por que a ciência passada estava certa ou
errada. Se isso não for progresso do conhecimento também para Gouinlock, então ele
tem de mostrar que a expressão solução de problemas possui sentidos diferentes em
Kuhn e em Dewey. Ora, ele não poderia fazer isso. Kuhn e Dewey estão juntos ao
argumentar que a esperança dos positivistas de substituir a phronesis por regras é
irrealizável17
.
Mas Rorty reconhece que há um sentido em que Gouinlock está certo ao dizer
que o seu neopragmatismo não pode distinguir os melhores dos piores métodos de
investigação. Isso é assim porque Rorty tem dificuldade em encontrar um princípio de
individuação para “métodos”. Esse termo é ambíguo, referindo-se a algo tão geral como
os quatro métodos de fixação da crença em Peirce e a algo tão específico como usar
magnetômetros – instrumentos científicos usados para medir campos magnéticos no
ambiente circundante – e não varinhas de rabdomancia – varinhas não muito científicas
que são apontadas para o solo a fim de descobrir água. Rorty prefere abandonar o termo
método e usar: a) prática social para descrever o que Peirce quer e b) técnica para
descrever o uso adequado de magnetômetros. As práticas sociais que determinavam o
que era “racional” ou “irracional” eram diferentes nas tribos primitivas, nas salas de
aula medievais e nos laboratórios do século XIX. Mas nenhum desses três tipos de
prática social é redutível a regras e nenhum deles parece adequadamente descrito pelo
termo método18
. Em síntese, Rorty acha que Feyerabend estava justificado em se
colocar “contra o método” porque não há nada mais filosoficamente profundo ou
interessante a ser dito contra o vudu, ou a astrologia, ou a autoridade papal, do que dizer
que essas técnicas não parecem ter-nos levado para onde esperávamos. Depois de
termos elaborado a analogia rala entre abandonar a astrologia pela astronomia e
abandonar o feudalismo pela democracia, Rorty não pensa que seja útil a sugestão de
que observemos mais de perto o que os cientistas fazem para conceber o que o resto da
cultura deveria fazer19
.
Rorty ainda afirma que Gouinlock o acusa de ter perdido um ponto crucial da
teoria do conhecimento de Dewey: para produzir objetos de percepção e de
17
Ibidem, p. 95. 18
Ibidem, p. 95. 19
Ibidem, p. 96.
31 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
conhecimento adequados às peculiaridades de uma situação problemática, é preciso
empreender alguma forma de reorientação intencional com relação às condições
perturbadoras. Rorty pensa que Dewey tirou essa ideia da Fenomenologia do Espírito
de Hegel e que ela foi reafirmada muito bem na polêmica de Sellars contra o “mito do
dado”20
. Rorty acrescenta que, em diversos artigos, ele tenta ampliar a crítica de Sellars,
argumentando que, se compreendemos a relação causal entre a aquisição de crenças e o
ambiente em torno daquele que tem a crença, não precisamos nos perguntar a respeito
de relações representacionais. Para Rorty, uma explicação causal e não-
representacionista dos estados intencionais nos dá todas as razões para afirmar que as
propriedades reais dos objetos estão registradas na linguagem, mesmo depois de termos
negado que essas propriedades estejam representadas na linguagem. Elas estão
registradas no sentido de que se os objetos não tivessem essas propriedades, não
estaríamos provavelmente dizendo o que dizemos ou acreditando no que acreditamos.
Para Rorty, a maneira mais eficiente de dispensar as questões sobre a representação é
interpretar a expressão registro das propriedades reais do objeto como significando
causado pelas propriedades reais do objeto e capaz de causar mudanças nessas
propriedades. Com isso, estaríamos trocando uma explicação representacionista da
crença por uma explicação causal da crença. Graças à substituição da “experiência” pela
conduta linguística, a teoria de Davidson parece a Rorty superior à de Dewey21
.
Para Rorty, a distinção de Dewey entre realismo e idealismo simplesmente não
funcionou no sentido de que seus colegas filósofos acharam impossível conceber o que
Dewey queria dizer ao afirmar que os objetos de conhecimento mudam no curso da
investigação. Por causa disso, Rorty pensa que devemos abandonar a noção de “objeto
de investigação”. Isso ficará mais fácil se assumirmos a virada linguística e
substituirmos a metafísica pela semântica. Rorty pensa que Gouinlock condenaria esse
procedimento em virtude de suas suspeitas para com a teoria dos jogos de linguagem.
Todavia, a descrição que Gouinlock oferece para essa teoria faz Rorty parar para pensar.
Gouinlock afirma que essa teoria nega que a linguagem seja uma função da atividade
compartilhada com um ambiente. Rorty afirma não ser capaz de imaginar um filósofo
da linguagem que algum dia tenha negado isso22
.
Ao final de sua resposta a Gouinlock, Rorty afirma que Dewey algumas vezes
20
Ibidem, p. 96. 21
Ibidem, p. 97. 22
Ibidem, p. 98.
32 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
rejeitou questões e terminologias. Rorty gostaria que Dewey tivesse feito isso mais
vezes. Infelizmente, Dewey empregou diversas vezes a técnica alternativa de conferir
sentidos novos e enigmáticos a palavras como objeto, experiência, natureza e
correspondência. Dewey infelizmente perdeu a oportunidade de dizer algo como
esqueça a ‘correspondência’ para dizer eis algo que você poderia significar por
‘correspondência’, mesmo que esse significado não tenha nada a ver com o significado
usado por aqueles que se preocupa em saber se a verdade consiste em correspondência
ou não23
.
5. Avaliando a posição de Rorty em sua resposta a Gouinlock
Em nossa avaliação da resposta de Rorty, pensamos que o início da sua
discussão com Gouinlock mostra a diferença crucial entre Dewey e Rorty: a questão do
método científico. Mas essa questão tem duas faces. Em primeiro lugar, ela parece ser
apenas uma questão de terminologia. Nessa perspectiva, Rorty reconhece que Dewey
não está usando a expressão método científico em seu sentido tradicional. Em Dewey,
essa expressão se refere ao processo de aprendizagem e conhecimento a partir da
dialética das interações entre seres vivos e ambiente. Esse processo se baseia em
interações causais que levam à construção de hipóteses a serem testadas e encontra sua
melhor expressão nas atividades dos cientistas da natureza. Mas temos de reiterar que a
descrição de tal processo só pode ser feita em termos genéricos, como acontece, p. ex.,
em The Quest for Certainty [A busca por certeza]. Em virtude disso, Rorty se
equivoca ao exigir uma formulação específica para o processo em questão.
Do ponto de vista terminológico, Rorty tem alguma razão ao afirmar que
Dewey poderia ter apresentado sua filosofia sem utilizar expressões como método
científico, experiência, objeto, etc. Mas isso não significa que essas expressões sejam
meramente descartáveis, pois o que Dewey pretende significar com elas ainda constitui
parte essencial de sua filosofia. A fim de evitar a prolixidade decorrente dos
circunlóquios necessários para se referir aos significados pretendidos sem usar as
expressões mencionadas, Dewey teria forçosamente de adotar uma nova terminologia,
coisa que ele preferiu não fazer, para salvaguardar a possibilidade de diálogo com seus
contemporâneos. Afinal de contas, apesar de adotar um novo sentido para o termo
23
Ibidem, p. 99.
33 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
experiência, p. ex., ele ainda estava se referindo a algo próximo da experiência em
sentido tradicional. Coisa semelhante acontece com o próprio Rorty, que usa termos
como filosofia, conversação, ironia, etnocentrismo, etc., em sentido diferente do
tradicional. Isso significa que ele também poderia ter apresentado sua filosofia sem
utilizar esses termos. Mas aqui também essas expressões não seriam meramente
descartáveis, pois aquilo que Rorty pretende significar com elas ainda constitui parte
essencial de sua filosofia. Para evitar a prolixidade dos circunlóquios, Rorty teria de
adotar uma nova terminologia, coisa que ele não fez, para salvaguardar a possibilidade
de diálogo com seus contemporâneos. Afinal de contas, apesar de adotar um novo
sentido para conversação, p. ex., Rorty ainda está se referindo a algo próximo da
conversação em sentido tradicional. Assim, a conclusão aqui seria que podemos aplicar
ao próprio Rorty aquilo que ele aplicou a Dewey através da seguinte paráfrase: Rorty
infelizmente perdeu a oportunidade de dizer esqueça a ‘conversação’ para dizer eis algo
que você poderia significar por ‘conversação’, mesmo que esse significado não tenha
nada a ver com o significado usado por aqueles que se preocupam em saber se a
filosofia consiste em conversação ou não.
Outro ponto importante na questão terminológica é saber se o termo método
corresponde efetivamente a uma noção vazia. Rorty afirma que Dewey promete com ela
mais do que podia oferecer. Isso não é verdade, pois Dewey não concebe método de
maneira meramente negativa, como uma advertência para não cairmos nas armadilhas
do passado. Para Dewey, o método tem claramente uma dimensão positiva que decorre
das interações causais com o ambiente. Como já afirmamos antes, esse lado positivo só
pode ser descrito em termos genéricos, de modo que não se coloca a exigência de Rorty
no sentido de que essa descrição deve envolver tanto uma parte geral, extensível a todos
os problemas da conduta, como uma parte específica, ligada às propriedades formais.
Desse modo, na avaliação da filosofia de Dewey, parece inadequada a oposição
estabelecida por Rorty entre a idéia de que seja possível algo suficientemente genérico
para ser o método da democracia e da ciência e ao mesmo tempo específico o bastante
para ser contrastado com outros métodos. Na verdade, a filosofia de Dewey defende a
possibilidade de algo suficientemente genérico para ser o método da democracia e da
ciência e ao mesmo tempo suficientemente específico para ser contrastado com outros
métodos. A noção de solução de problemas com base em conjeturas e testes é geral o
suficiente para ser aplicada a todos os setores da conduta humana e se torna específica o
suficiente quando seus princípios gerais são adaptados a setores determinados da
34 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
cultura. Isso mostra que o dualismo proposto por Rorty não se coloca no caso de
Dewey.
Desse modo, ao dizer que Dewey vai “além do método”, significando com isso
que ele desistiu da possibilidade de extrair regras a partir do trabalho dos cientistas
naturais para aplicá-las a outras áreas da cultura, Rorty está oferecendo uma
interpretação simplesmente falsa. Dewey e Kunh não estão juntos ao defender a tese de
que a esperança dos positivistas de substituir a phronesis por regras é irrealizável.
Diferentemente de Rorty, depois de elaborar a analogia – não rala – entre abandonar a
astrologia pela astronomia e abandonar o feudalismo pela democracia, Dewey pensa que
é útil a sugestão de observar mais de perto o que os cientistas fazem para conceber o
que o resto da cultura deveria fazer. Ao falar do método, Dewey não soa como Polônio.
Vimos também que Rorty afirma ter dificuldade em encontrar um princípio de
individuação para “métodos”. Por causa disso, ele propõe prática social para se referir a
instâncias do método filosófico e técnica para aplicações metodológicas específicas no
caso das ciências naturais. Mas Rorty se refere apenas a Peirce, quando fala no método
filosófico. O que fazer então com outras instâncias do método filosófico, como, p. ex., o
método transcendental, o método fenomenológico, o método hermenêutico ou o próprio
método analítico? Eles não se distinguem uns dos outros e devem ser misturados no
terreno comum das práticas sociais? Tudo indica que não. No campo da filosofia, esses
procedimentos podem referir-se, diferentemente do que pensa Rorty, simultaneamente a
algo geral a algo específico, embora a parte específica não seja comparável ao uso de
magnetômetros. É verdade que todos envolvem algo geral, mas podem ser aplicados a
domínios específicos com técnicas específicas. Como sabemos, a aplicação do método
fenomenológico pode ser feita a domínios específicos, pois ela envolve técnicas de
análise que diferem bastante claramente daquelas decorrentes da aplicação do método
analítico a um domínio específico. Subsumir tudo isso no conceito de prática social
seria filosoficamente confuso e inadequado, porque na verdade estamos lidando com
instâncias do método filosófico, as quais podem ser identificadas a partir de princípios
de individuação cuja existência Rorty insiste em ignorar. Assim, embora as práticas
sociais que determinavam o que era “racional” ou “irracional” fossem diferentes nas
sociedades primitivas, nas salas de aula medievais e nos laboratórios do século XIX,
não podemos esquecer que, do ponto de vista filosófico, tais práticas envolviam
métodos diferentes que eram aplicados a situações diferentes. Deixando de lado as
35 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
comunidades primitivas e os laboratórios científicos para simplificar a discussão,
podemos dizer que os métodos filosóficos usados nas salas de aula medievais não só
eram diferentes daqueles usados pelos filósofos do século XIX, mas que também
podiam ser identificados em cada uma dessas épocas como instâncias de práticas sociais
mais abrangentes.
A discussão sobre o método parece ser uma questão substantiva, no sentido de
envolver concepções diferentes de objetividade em Dewey e Rorty. Aqui, Gouinlock
tem razão ao dizer que Rorty é incapaz de distinguir os melhores dos piores métodos de
investigação, em que pesem os argumentos de Rorty em contrário. A discussão anterior
mostra que a posição de Rorty implica que ele não quer ter ou não tem condições de
distinguir o método fenomenológico do analítico, que não passam de práticas sociais, e
por esse motivo não sabe ou não quer dizer qual deles é o melhor. Até mesmo sua
recusa das técnicas vudus e astrológicas não é convincente, pois o argumento de que
elas não parecem ter-nos levado para onde esperávamos não encontrará repercussão
naqueles que nelas acreditam.
Na verdade, o apelo à conversação, ao etnocentrismo, ao ironismo e à
contingência dificilmente fornecerá algum critério adequado para distinguirmos os
melhores dos piores métodos. E dizer que a teoria dos jogos de linguagem envolve
interações com o ambiente não resolve o problema, pois Rorty não oferece qualquer
caracterização de como essas mesmas interações podem levar a algum critério de
objetividade. Dizer que a busca de critérios é caudatária da epistemologia que Rorty
quer descartar também não resolve o problema, pois Rorty certamente teve de usar
algum argumento e, portanto, algum critério racional para defender a superioridade da
conversação sobre a epistemologia e a superioridade da desmetodologização e da
linguistificação de Dewey sobre a interpretação tradicional de Dewey. Rorty não oferece
elemento algum em seus textos que possa garantir de maneira objetiva a sua afirmação
de que a teoria davidsoniana, ao substituir “experiência” por “conduta linguística”,
parece superior à de Dewey.
6. John Hartmann e a defesa de Rorty
Com o objetivo de tornar a discussão mais rica, selecionamos também dois
autores que se posicionam mais favoravelmente em relação à apropriação rortyana de
36 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Dewey, para também avaliar aqui suas ideias: John Hartmann e Alexander Kremer.
Começaremos pela posição do primeiro, que será inicialmente apresentada para depois
ser discutida.
Para Hartmann, embora as diferenças entre Dewey e Rorty sobre o status da
metafísica sejam provavelmente irreconciliáveis, a reivindicação rortyana de um Dewey
“diluído” pode ser vista como consistente ao menos com o espírito da obra de Dewey24
.
Hartmann acredita que o ponto principal da diferença entre Dewey e Rorty está
nas atitudes de cada um em relação à metafísica. Para entendermos melhor essa
distinção, Hartmann argumenta que é preciso considerar o comentário de Lyotard sobre
a morte da metanarrativa. Hartmann recorre a Larry Hickman, para quem, se
entendemos Lyotard como anunciando a morte de toda metafísica sistemática que alega
explicar toda a realidade, então tanto Dewey como Rorty são pensadores pós-modernos,
uma vez que ambos negam a eficácia da metafísica ocidental tradicional. Entretanto, se
entendermos Lyotard como afirmando que qualquer metanarrativa é ilegítima e mal
orientada, o que torna qualquer metafísica ilegítima e mal orientada, então apenas Rorty
é um pensador pós-moderno. Com efeito, essa segunda leitura de Lyotard é inteiramente
consistente com a discussão de Rorty sobre a contingência da linguagem, com sua
rejeição da viabilidade da metafísica e com sua valorização do ironismo liberal. Mas
essa mesma leitura é decididamente inconsistente tanto com a reconstrução da
metafísica proposta por Dewey em Experience and Nature quanto com o papel central
desempenhado pela sua metafísica naturalista em seus diversos esforços
reconstrutivos25
.
Hartmann pensa que, nessa perspectiva, qualquer leitura simpática à
apropriação rortyana do legado deweyano seria fadada ao fracasso. Mas a questão que
se colocada nesse ponto para Hartmann é a seguinte: precisamos de fato de um Dewey
“concentrado” para fazer justiça ao seu projeto educacional e social, ou essa tarefa
poderia ser cumprida por um Dewey “diluído”? Hartmann pensa que, pelo menos do
ponto de vista da posição rortyana, o projeto de Dewey não sofre praticamente nada
quando é lido de maneira “diluída”. Hartmann tenta justificar isso comparando Dewey e
24
HARTMANN, John. Dewey and Rorty: Pragmatism and Postmodernism. Presented at:
Collaborations Conference, SIUC, March 20-21, 2003, p.1. Disponível em
<http://mypage.siu.edu/hartmajr/pdf/jh_collab03.pdf>. Acesso em 10 de maio de 2012. 25
Ibidem, p.2.
37 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Rorty em dois pontos interrelacionados: o método e a esperança social26
.
Quanto à discussão sobre o método, Hartmann se refere ao texto de Gouinlock
What is the legacy of instrumentalism? Rorty’s interpretation of Dewey, por nós já
discutido, e afirma que ali Gouinlock destaca as diferenças entre instrumentalismo de
Dewey e o ironismo de Rorty, ou seja, entre o Dewey “concentrado” e o Dewey
“diluído”27
. Depois de discutir os argumentos de Gouinlock e a resposta de Rorty,
Hartmann conclui que nada do que Rorty diz em relação ao seu retrato do ironista é
inconsistente com o Dewey “diluído” que emerge da rejeição da sua metafísica da
experiência. Uma vez que relativizemos o método deweyano, de tal modo que possamos
reconhecer o papel fundamental desempenhado pelos paradigmas kuhnianos no interior
do pensamento reflexivo, a importância crítica das tendências reformistas de Dewey, a
sua reconstrução histórica e sociológica da tradição podem ser claramente vistas. Longe
de rejeitar a conexão estabelecida por Dewey entre o método científico e o método de
investigação, como acusa Gouinlock, o neopragmatismo pós-moderno de Rorty pode
abraçar a tendência de Dewey em direção ao cientismo como fundamentalmente viável
em relação ao contexto específico em que Dewey escreve e em que vivemos.
Entretanto, nada justifica a valorização da ciência para além da ideia de que a
consideramos útil. Embora o método científico, tomado como modelo de investigação
bem sucedida, forneça os fins que consideramos úteis e os objetos que realmente
funcionam, não se segue daí que os usuários de outros vocabulários sejam menos
racionais na busca de fins diferentes28
. É nesse sentido que Dewey é visto por Rorty
como estando “além do método”. Embora o Dewey que está além do método seja um
Dewey “diluído”, não é evidente que Dewey sofra alguma perda aqui, ainda que
minimamente, em termos da tarefa realizada pelo seu pensamento29
.
No que concerne ao debate sobre a esperança social, Hartmann coloca a
seguinte questão: pode o ironismo fornecer os meios para uma reconstrução positiva da
democracia oferecida pelo pensamento de Dewey?30
Será que Rorty pode oferecer isso a
partir de uma posição que seja coerente com a de Dewey? Esse não é um assunto pouco
importante e muitos comentadores se colocaram contra Rorty neste ponto. Certamente
podemos garantir que Rorty não satisfaz à conexão íntima que Dewey faz entre sua
26
Ibidem, p.3. 27
Ibidem, p.3. 28
Ibidem, p. 8. 29
Ibidem, p. 9. 30
Ibidem, p. 9.
38 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
metafísica e as possibilidades de progresso democrático. Mas isso não significa que a
esperança social sem fundamento de Rorty não possa ser conciliada com a posição de
Dewey. Hartmann pensa que a relativização do programa de Dewey para o progresso
democrático não exige que abandonemos os seus ideais nem seu potencial para o
progresso efetivo e a transformação social. Com efeito, Rorty acredita que uma crença
ainda pode regular a nossa ação e ser considerada valiosa a ponto de morrermos por ela,
embora seja causada por nada mais profundo do que circunstâncias históricas
contingentes31
. Mesmo nesse caso, não ficamos despojados dos imperativos morais que
Dewey extrai de sua fundamentação metafísica da democracia e do progresso
democrático. A historicização dos ideais democráticos de Dewey não diminui o seu
poder nem sua capacidade de persuadir32
.
7. Avaliando a posição de Hartmann
Em resposta a Hartmann, temos a dizer o que se segue. É verdade que a
filosofia de Dewey pode levar o leitor menos atento à impressão de que há uma tensão
irreconciliável entre o cientismo e o historicismo. Rorty parece encontrar-se nessa
situação em sua leitura de Dewey e por causa disso se aproveita para dividir Dewey em
duas pessoas ou dois temperamentos opostos, fazendo a seguir uma opção por aquele
Dewey que mais se ajusta aos seus próprios interesses. No debate que se seguiu,
diversos autores acompanharam Rorty nessa estratégia um tanto discutível. Em virtude
disso, as divisões desses autores colocam, de um lado, um Dewey “bom”, ou
“jamesiano”, ou “diluído” e, de outro, um Dewey “mau”, ou “peirciano”, ou
“concentrado”. Mas achamos conveniente lembrar que uma leitura mais atenta dos
textos de Dewey revela que a tensão apontada no seu pensamento na realidade faz parte
de uma visão unificada, em que os elementos opostos se complementam dialeticamente.
Nessa perspectiva, qualquer tentativa de dividir Dewey em duas pessoas ou dois
temperamentos é, de início, equivocada e só serve para dar força sub-repticiamente aos
argumentos de Rorty. Se nossa interpretação da filosofia deweyana estiver correta, então
um Dewey diluído não é Dewey, mas sim outro pensador.
Pensamos que o Dewey hipotético de Rorty nada mais é do que uma invenção
31
Ibidem, p.10. 32
Ibidem, p. 11.
39 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
retórica com o objetivo de estabelecer raízes autenticamente norte-americanas para as
extravagâncias relativistas do neopragmatismo. Com esse procedimento, Rorty está
tentando tornar suas ideias controversas mais palatáveis à comunidade filosófica norte-
americana em particular e à comunidade filosófica mundial em geral. Mas Rorty está
fazendo com seu conceito de Dewey hipotético o mesmo que acusa Dewey de estar
fazendo com o conceito de experiência e poderia ser assim parafraseado: Rorty
infelizmente perdeu a oportunidade de dizer esqueça Dewey para dizer eis algo que
você poderia significar por ‘Dewey’, mesmo que esse significado não tenha nada a ver
com o significado usado por aqueles que se preocupam em saber em que consiste a
filosofia de Dewey. Em outras palavras, Rorty poderia ter dito tudo o que quis dizer sem
ter de usar a expressão Dewey hipotético. Ao invés de inventar essa personagem
imaginária, Rorty poderia ter dito simplesmente que se inspira em alguns dos ideais de
Dewey, mas não todos. Não é preciso recorrer a um “Dewey bom”, como faz Rorty, ou
a um “Dewey diluído”, como faz Hartmann, ou dizer que são “fusões de horizontes”
como faz Kremer para dizer essas coisas de maneira mais simples e menos confusa. Isso
inclusive deixaria mais claras as reais intenções de Rorty, sem ter de recorrer ao
apadrinhamento de Dewey.
Acreditamos também que Hartmann não está certo nem ao dizer que o ponto
crucial da diferença entre Dewey e Rorty está na atitude em relação à metafísica nem ao
distinguir as posições desses dois autores através do comentário de Lyotard a respeito da
morte da metanarrativa. É verdade que, se entendermos o pós-modernismo de Lyotard
como anunciando a morte de toda metafísica sistemática, então certamente Dewey e
Rorty são filósofos pós-modernos. Se, porém, entendermos o pós-modernismo de
Lyotard como anunciando a morte de toda e qualquer metafísica, então Dewey e Rorty –
e não somente Dewey – deixam de ser filósofos pós-modernos. Com efeito, a
consistência que Hartmann vê entre essa segunda leitura do comentário de Lyotard e a
posição rortyana é apenas aparente. Pretendemos mostrar na próxima seção desse
capítulo que Rorty também adota uma postura metafísica, ainda que atenuada, de
maneira análoga a Dewey.
Desse modo, ao contrário do que pensa Hartmann, a segunda leitura do
comentário de Lyotard é decididamente inconsistente com o papel desempenhado por
uma metafísica da cultura implícita que perpassa os escritos de Rorty. Isso significa que
o pensamento de Rorty se aproxima mais do Dewey “concentrado” do que do “diluído”
e que Hartmann está certo ao ver uma ligação entre Dewey e Rorty, mas por motivos
40 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
errados. O que está presente em Rorty não é o projeto educacional e social de um
Dewey “diluído”, mas sim o do Dewey “concentrado”, cuja tendência metafísica é
partilhada por Rorty. É como se o próprio Rorty tentasse apresentar um retrato “diluído”
de si mesmo, sem perceber que por trás dessa imagem se esconde o verdadeiro Rorty,
um Rorty tão “concentrado” quanto o Dewey “concentrado”. Assim, ao contrário do que
diz Hartmann, nada do que Rorty diz em relação ao ironista é inconsistente com o
Dewey “concentrado”, em virtude da sua inadvertida adoção de uma metafísica
implícita. Essas afirmações serão justificadas no momento oportuno.
Se nossa interpretação está correta, então a diferença entre Dewey e Rorty se
encontra muito mais na concepção do cientificismo do que na concepção de metafísica.
Na verdade, é a metafísica subjacente a cada um deles que conduz a concepções
diferentes da atividade científica. Assim, embora ambos os autores possam abraçar,
como diz Hartmann, a tendência cientificista como fundamentalmente viável em relação
ao contexto contemporâneo, somente Rorty valoriza a ciência com base apenas na ideia
de que a consideramos útil. Dewey vê muito mais do que isso na ciência: para ele, ela
surge como o padrão mais sofisticado das relações de aprendizado e conhecimento que
decorrem das interações dos seres vivos com o ambiente. Rorty não faz isso, perdendo
assim uma fonte confiável para a elaboração de instrumentos capazes de garantir a
objetividade. Nessa perspectiva, Rorty está certamente além do método, mas não
Dewey. Estamos nos referindo, é claro, ao Dewey “concentrado”, já que o “diluído” não
passa de uma invenção de Rorty e seus seguidores.
Isso se reflete na discussão da esperança social. Com efeito, sem instrumentos
capazes de garantir minimamente algum tipo de objetividade, o ironismo, ao contrário
do que pensa Hartmann, não pode fornecer os meios para a reconstrução positiva da
democracia de acordo com a proposta de Dewey. O máximo que o ironismo pode
oferecer é uma conversação sem fim, sem conclusão, que pode, a qualquer momento,
trocar aleatoriamente os ideais de Dewey por outros. Aquilo que Hartmann chama de
“relativização” e de “historicização” do programa de Dewey nada mais é do que um
primeiro passo nessa direção. Mas isso não quer dizer que Dewey não reconheça que
seu programa seja determinado por contingências históricas. A diferença entre Rorty e
Dewey está em que o primeiro, sem caracterizar adequadamente as condições para a
objetividade, fica na conversação pela conversação, sem um guia efetivo para ação,
enquanto o segundo, ao caracterizar as condições para a objetividade, vai além da
41 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
conversação, fornecendo um guia mais efetivo para a ação. Dominado pelo paradigma
da conversação, o ironismo não tem como oferecer instrumentos eficazes para a ação
efetiva. A historicização dos ideais democráticos de Dewey, da maneira pela qual é
realizada por Rorty, certamente diminui o seu poder e a sua capacidade de persuadir.
8. Alexander Kremer e a defesa de Rorty
Passemos agora à posição de Kremer, que será também, como no caso de
Hartmann, inicialmente apresentada e depois discutida. Este autor pensa que Rorty se
apropria de um modo especial da filosofia de Dewey, através de uma fusão de
horizontes. Conforme Kremer, Rorty sabe, a partir das hermenêuticas de Heidegger e
Gadamer, que é impossível dar uma interpretação fiel da filosofia de Dewey, no sentido
de uma interpretação objetiva. Todas as pessoas compreendem e interpretam não
somente a filosofia de Dewey, mas tudo o mais exclusivamente a partir de seus
respectivos horizontes de significado. Nesse sentido, a compreensão e a interpretação
sempre envolvem uma fusão de horizontes33
.
Nesse caso, como resultado da fusão de horizontes, um novo horizonte nasceu
sob a forma do pragmatismo de Rorty. Temos de observar que ocorreu aqui uma fusão
de horizontes em um sentido muito mais amplo, porque Rorty fundiu não apenas o
horizonte de Dewey com o seu, mas também aqueles de Peirce, James, Whitman,
Goodman, Putnam, Davidson, Wittgenstein, Heidegger, Gadamer, Foucault, Habermas,
Derrida, etc34
.
Kremer prossegue seu argumento afirmando que Rorty reconhece haver muitos
traços úteis na filosofia de Dewey, mesmo depois dos desenvolvimentos proporcionados
pelos autores mencionados. Essa é a razão pela qual ele distingue o que está vivo e o
que está morto em Dewey35
. Kremer considera que a situação apresentada por Rorty é
semelhante à do período pós-hegeliano, em que o sistema filosófico de Hegel já não
poderia sobreviver, com exceção do seu historicismo36
. Kremer pensa que Dewey é
importante para Rorty à luz dos recentes resultados da filosofia analítica, ou antes, da
33
KREMER, Alexander. Dewey and Rorty, in Americana E-Journal of American Studies in
Hungary, vol III, n.2, fall 2007. Disponível em <http://americanaejournal.hu/vol3no2/kremer>. Acesso
em 01/05/2012, p. 6. 34
Ibidem, pp. 6-7. 35
Ibidem, p. 7. 36
Ibidem, p. 8.
42 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
filosofia continental. Isso significa que Rorty enfatiza as diferenças e os aspectos
positivos da filosofia de Dewey com base nos últimos resultados do desenvolvimento
filosófico do século XX. Desse modo, se alguém pretende criticar a interpretação
rortyana de Dewey e seu contexto, esse alguém tem de levar em conta o contexto
filosófico do século XX37
.
9. Avaliando a posição de Kremer
Em nossa avaliação da posição de Kremer, consideramos que o seu apelo a
Heidegger e Gadamer para justificar a interpretação rortyana de Dewey, nos termos em
que está colocado, apresentam-se excessivamente relativista. Com efeito, parece que
“vale tudo” no processo de interpretação. Isso até certo ponto explicaria por que Rorty
optou pela interpretação dual de Dewey: ao assumir a perspectiva de que não há uma
interpretação definitiva da filosofia de um autor, ele pode ter-se aproveitado disso para
implementar sua estratégia retórica de ligar o neopragmatismo à tradição do
pragmatismo norte-americano pela via do Dewey “bom”. Mas convém lembrar que os
horizontes de significado envolvidos na presente discussão sempre têm alguma coisa em
comum e que isso constitui uma base para separarmos as “boas” das “más”
interpretações. E uma interpretação que divide Dewey em “dois” filósofos, dos quais
apenas um é “bom”, certamente será reconhecida pela maioria da comunidade filosófica
como inferior a uma interpretação que procure articular os “dois” filósofos num só,
obtendo uma perspectiva de conjunto mais coerente. A superioridade da segunda
interpretação fica reforçada quando nos lembramos de que o Dewey dual poderia
corresponder a um artifício retórico e que a discussão, nos termos em que foi colocada
por Rorty, parece ser ociosa.
Em que pesem as observações acima, Kremer tem razão ao dizer que a crítica
da interpretação rortyana de Dewey exige que levemos em conta o contexto filosófico
do século XX. Com efeito, se esse contexto não for levado em conta, estaríamos
isolando o pensamento de Rorty e o de Dewey de seus respectivos ambientes históricos,
o que não seria recomendável, já que correríamos o risco de perder elementos
importantes para a discussão nesse processo.
Mas Kremer exagera ao dizer que há uma semelhança entre a situação
37
Ibidem, p. 8.
43 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
apresentada pela interpretação de Rorty e aquela apresentada pelo período pós-
hegeliano. No caso de Hegel, uma parte mais fantasiosa de seu sistema já se encontrava
superada, embora a sua abordagem historicista ainda se revelasse promissora. No caso
de Dewey, o cerne de seu sistema, representado pela sua metafísica empírica, ainda nos
parece bastante atual, principalmente no que diz respeito à concepção de experiência
como resultado das interações entre os seres vivos e seus respectivos ambientes. Assim,
a “desatualização” de Dewey não nos parece depender do cerne de seu sistema, mas sim
do fato de que, depois de sua morte, outros problemas e temas foram acrescentados à
discussão por seus sucessores. A consideração do contexto, tal como sugerida por
Kremer, poderia mostrar-nos os acréscimos feitos pela filosofia analítica e continental
no período pós-deweyano. É verdade que isso poderia sugerir que alguma parte da
filosofia de Dewey está morta e que alguma parte dela ainda está viva. Mas a adesão a
essa hipótese seria equivocada e somente poderia decorrer de uma leitura menos atenta
de Dewey. Essa leitura nos levaria à estratégia de Rorty, que consiste na construção
artificial de um Dewey hipotético “desatualizado” que estaria necessitando de uma
“atualização”. Dado o caráter ainda atual da proposta deweyana, não consideramos que
isso seja recomendável. Além de levar a uma discussão ociosa, essa postura tende a criar
confusão desnecessária e a reforçar o perigo de um relativismo sem limites.
10. Considerações Finais
A partir da discussão acima, vemos que o equívoco da interpretação de Rorty
está em sua recusa a reconhecer o fato de que só há um único Dewey, que é historicista
e cientista simultaneamente. Em virtude disso, procuramos deixar claro que Rorty, ao
defender a noção de um Dewey dividido em dois temperamentos, está adotando uma
estratégia retórica que deforma o pensamento do Dewey original e cria outro, favorável
ao neopragmatismo por ligá-lo à tradição pragmatista norte-americana clássica. A
tentativa de separar um Dewey “bom” ou “jamesiano” de um Dewey “mau” ou
“peirciano” perde de vista o caráter complementar dessas duas dimensões da filosofia
deweyana. O apelo a um Dewey “diluído”, em oposição a um Dewey “concentrado”,
como faz Hartmann ou um Dewey que representa uma fusão de horizontes como
escreve Kremer, também não resolve o problema.
Assim, colocamo-nos contra a apropriação rortyana do pensamento de Dewey
44 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
e, para finalizar, apresentamos a seguinte questão: Rorty estaria ele mesmo imune às
críticas que faz a Dewey? Pretendemos mostrar em trabalhos futuros que a resposta a
essa pergunta é não. Isso nos permitirá sustentar que Rorty é deweyano não porque
evitou a “metafísica empírica”, mas porque elaborou inadvertidamente, de acordo com o
espírito de seu herói pragmatista clássico, uma "metafísica da cultura" escamoteada
através da filosofia da conversação, cujo modelo e realidade última a ser considera é a
cultura38
.
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38
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46 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A INDUSTRIALIZAÇÃO DA VERDADE
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
RESUMO Os cientistas possuem uma autoimagem heróica sobre si mesmos e seu trabalho de
investigação. Entretanto, pode-se observar que a produção do conhecimento tem
adquirido gradativamente feições cada vez mais industriais. Uma autoimagem mais
adequada seria, portanto, a de um operário. A industrialização não é um acidente no
processo de desenvolvimento do conhecimento científico, mas sua expressão natural
mais acabada. Embora várias modalidades de humanismo critiquem essa crescente
industrialização, não parece que ela atinja o que é fundamental ou possa ter qualquer
efeito prático. Tudo indica que apenas a contradição entre a industrialização crescente e
o estilo de vida democrático poderá gerar um desenlace promissor no futuro.
Palavras-chave: Conhecimento; Verdade; Industrialização; Pós-modernidade;
Democracia
ABSTRACT Scientists have a heroic self-image about themselves and their research. However, it can
be seen that the production of knowledge has gradually gained increasing industrial
features. A most suitable self-image would be, therefore, that of a worker.
Industrialization is not an accident in the process of development of scientific
knowledge, but his natural and more finished expression. Although various forms of
humanism criticize this growing industrialization, it doesn’t seem that it reach what is
essential or would have any practical effect. Everything suggests the contradiction
between the growing industrialization and democratic way of life may generate a
promising outcome in the future.
Key words: Knowledge; Truth; Industrialization; Post modernity; Democracy
1. O Herói
Os cientistas têm o hábito de compreender o processo de investigação como
sendo dotado de uma característica especial, quando comparado a outras formas de
trabalho. A partir de uma disposição benévola podemos considerar que isso é apenas a
manifestação da autoestima de qualquer profissão. Certamente ninguém gosta de
reconhecer que a atividade a que se dedica é menor ou secundária. Assim, não
encontraremos um único pedreiro saudável que afirme que o trabalho de levantar casas
é destituído de mérito. Pelo contrário, ele tem orgulho de construir acomodações nas
quais as pessoas podem viver com segurança e conforto. Mas precisamos de cautela
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com essa sensação natural de autoestima, pois nem sempre sabemos onde ela termina e
onde começa o autoengano.
O trabalho de investigação científica parece ser especialmente propício ao
autoengano. A definição da pesquisa como uma atividade de desvelamento gradativo de
uma realidade oculta é muito convidativa e apreciada no meio acadêmico e nos
ambientes em que se realizam investigações. Sagan (1996) usou a metáfora de uma vela
acessa na escuridão para caracterizar a atividade de investigação e, com isso, sintetizou
o heroísmo que supomos estar presente nela. Afinal, trata-se de lutar contra as trevas.
Todos os vilões do mundo possuem ligação com algum princípio obscuro – desde
Satanás até Darth Vader. Por outro lado, a atividade intelectual foi reiteradamente
aproximada da metáfora da luz, mesmo antes do Iluminismo, no século XVIII. De fato,
essa aproximação existe pelo menos desde a civilização grega, personificada por Apolo:
o deus que conduzia diariamente o carro do sol pelos céus e, dessa forma, afastava a
noite.
O ato de iluminar a escuridão e afastar a noite da ignorância é uma espécie de
sacerdócio: uma atividade que se faz pelo bem da humanidade, um esforço cujo
resultado será desfrutado pelas gerações posteriores. É quase inevitável que essa
metáfora da iluminação implique na valorização do seu protagonista – o investigador –
e na noção de um consequente desapego pessoal, já que a luta contra o lado negro
possui uma característica universal: ela é levada adiante em função do interesse geral ou
do bem da humanidade. É comum que, lidando com um trabalho que pareça tão
revestido de heroísmo, sejamos tentados a pensar em nós mesmos como pessoas que
podem vir a acender uma nova luz e, com isso, iluminar dimensões recônditas e ainda
ocultas da realidade.
Mas isso não é necessário. Versões instrumentalistas do conhecimento
(POPPER, 1972; RORTY, 1991) também podem se fazer acompanhar da crença no
heroísmo dos cientistas. Basta que a investigação instrumental se apresente como a
superação de condições conceituais já estabelecidas por meio do esforço pessoal. A
diferença é que, na versão instrumental, o heroísmo se circunscreve ao aprimoramento
do conhecimento, sem que isso implique em alguma melhor compreensão da própria
realidade. O essencial aqui é a presença, seja na versão realista ou na instrumental,
desse papel especial reservado ao herói.
Os cientistas julgam, muitas vezes, que esse heroísmo advém da própria
natureza do trabalho intelectual. Com efeito, se acredita que esse último é diferente do
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trabalho manual, na medida em que, por meio dele, grandes transformações podem ser
levadas a cabo por uma única pessoa. Assim, ele ocorreria em um ambiente propício ao
protagonismo, enquanto que o trabalho manual estaria ligado à rotina de operações
repetitivas e à divisão social do trabalho – uma atividade nada interessante representada
pela esteira industrial taylorista. Na juventude, o autor desse texto adorava usar uma
camiseta com a seguinte inscrição: “Science, where imagination comes to reality”. Ele
acreditava que existia uma conexão entre a dedicação ao conhecimento e uma atividade
criativa, que a tornava diferente do trabalho repetitivo.
De fato, não está fora de nossas pretensões de investigadores tornar clara toda
uma região inexplorada da realidade ou levar o conhecimento a um patamar inigualável
por meio de nossa criatividade individual. Uma região que, ao se revelar para nós,
poderia lançar nova luz sobre outras já conhecidas, mas ainda não devidamente
iluminadas. Faz parte da crença do investigador herói pensar que mesmo o trabalho que
os outros já realizaram ainda não está acabado ou que pode ser compreendido de uma
maneira ainda superior ou melhor. O que alimenta o herói, durante longas batalhas sem
nenhuma garantia de sucesso, é pensar na possibilidade de que seu trabalho emita uma
luz tão brilhante que elimine as trevas que ocultam a realidade, tão luminoso que
ofusque as pequenas estrelas que já brilham no céu da ciência. Todo investigador possui
a pretensão íntima de ser um Apolo e levar luz à noite sombria, mesmo quando esta já
se encontra salpicada de pequenas estrelas da ciência – como é evidentemente o caso no
início do século XXI.
Entretanto, o autor desse artigo acredita que todo esse aparato de noções
heróicas em torno da investigação e do investigador é um autoengano. O heroísmo
pessoal foi eliminado de maneira consciente da atividade científica desde a formulação
de seu projeto inicial no século XVII. Como se isso não fosse suficiente, a observação
da atividade de pesquisa nos nossos dias mostra que ela é desenvolvida em termos
crescentemente industriais – aproximando-a do trabalho taylorista rotineiro e
segmentado.
Entendo, portanto, que a industrialização é um destino inevitável do processo
de produção do conhecimento, em função de seus próprios fundamentos. Além dessa
força latente, agindo no interior da própria atividade científica desde o seu nascimento,
existe a colaboração dos fatores culturais externos. Seria realmente uma exceção
admirável que uma área da cultura, como é a ciência, se mostrasse independente do
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processo de racionalização e de otimização de meios que caracteriza as democracias
liberais contemporâneas - isto é, todo o mundo desenvolvido. Mais espantoso ainda
seria constatar que justamente o processo de produção do conhecimento fosse capaz
de se mostrar independente da tendência presente nos processos dominantes de
produção industriais.
O restante desse artigo está destinado a tornar explícito como o heroísmo no
conhecimento é um autoengano que contraria a lógica da produção do conhecimento
científico desde a sua origem. A questão principal não é discutir se houve uma época de
heróis na indústria do conhecimento: grandes pioneiros e descobridores. Trata-se, antes,
de evidenciar que essa atividade heróica não corresponde nem ao projeto moderno da
ciência nem à sua configuração atual. Se eles existiram foi apenas como uma etapa
transitória do processo de industrialização da verdade cujo sentido já se perdeu pela
lógica interna de expansão do sistema. Se, hoje, ainda existem heróis, trata-se apenas de
uma má representação que os cientistas fazem de si mesmos.
2. O Método Moderno
A Filosofia de Descartes (1641/1973) estabeleceu as bases da modernidade
cultural, incluindo-se aí o segmento da modernidade científica. A ciência é uma
atividade que se constituiu no panorama da cultura moderna e retirou dele seus
parâmetros principais de funcionamento. Assim, é importante verificarmos, em primeiro
lugar, o panorama geral da cultura moderna de onde surgiu a ciência.
O projeto cartesiano de obtenção de uma ciência segura consistiu inicialmente
em submeter o conhecimento humano já existente a uma dúvida implacável. Tornar a
dúvida um procedimento que se estende sobre todo o conhecimento de maneira
sistemática e implacável é uma decorrência da profunda desconfiança com relação a
tudo o que se considerava certo até então. Mais do que isso, se trata de uma suspeita
acerca de qualquer resultado obtido pelo exercício da razão humana.
A modernidade implica na crença de que não é suficiente que se comece a
fazer ciência para atingir o conhecimento verdadeiro. Seu ponto de partida é o
reconhecimento de que a razão é falível, de que não fomos dotados pela natureza ou
pelos deuses de um poder de conhecimento isento de erros. O fundamento da
modernidade é o reconhecimento dos defeitos intrínsecos da razão humana. Portanto, a
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atitude moderna típica é a de desconfiança e prudência desde seu ponto de partida: pode
ocorrer que Deus não esteja do nosso lado, pode ser que exista um demônio que tente
nos enganar todo o tempo (o lado negro pode ser sutil), pode ser que sejamos fracos e
limitados quando percebemos e pensamos.
Por isso, o ambiente inicial da modernidade é de uma profunda suspeita com
relação aos instrumentos humanos utilizados para se gerar conhecimento. São os erros
que constituem o ambiente requerido pelo herói. São eles que criam as dificuldades a
serem superadas ao longo do caminho pela modernidade.
Descartes (1637/1979) afirma que a tradição filosófica de seu tempo
havia progredido por acumulação de conhecimentos sem, no entanto, submetê-los a uma
análise cuidadosa. O fato de a tradição anterior a ele não se haver preocupado em
verificar a confiabilidade dos procedimentos utilizados até então, evidencia uma fé
plena no uso da razão. Essa autoconfiança é justamente o que foi perdido na
modernidade. A imagem usada por Descartes para caracterizar essa tradição de
confiança na perfeição natural da razão é a cidade medieval.
A cidade medieval representa uma entidade que cresceu
espontaneamente ao longo do tempo, sem um plano geral, sem que se fosse previsto seu
desenvolvimento ou analisadas as suas bases fundamentais. Assim, foram se agregando
lentamente um edifício ao outro sem que houvesse um traçado geral para a sua
expansão. Havia uma crença implícita de que essa expansão levaria naturalmente a um
mundo de bem-estar e justiça. Mas, ao contrário do que essa crença previa, o resultado
se mostrou um produto desordenado e fruto do acaso, seguindo necessidades
particulares e imediatas sem que a totalidade tivesse sido considerada, sem direção e
intencionalidade. A confiança ingênua conduziu à desordem e à falta de adequação
entre meios e fins, à falta de razão.
Descartes acreditava que, mesmo que eventuais verdades tivessem sido
obtidas por meio da expansão natural e sem planejamento, não havia nenhuma
segurança com relação a elas - pois não se sabia a partir de que princípio elas haviam
sido erigidas. Não se sabia também se elas podiam ser estendidas a outras áreas do
conhecimento, visando a obtenção de novas verdades. Portanto, a fé ingênua na razão
produziu uma expansão espontânea, sem crítica e que não gerou conhecimentos
generalizáveis. Enfim, a fé pré-moderna na razão levou a um ambiente epistemológico
desorganizado, assistemático e de baixa eficiência.
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Entretanto, isso não significa que um acúmulo de conhecimentos produzidos
sem método não tenha levado a algum aprimoramento tecnológico e melhorado
processos importantes para a sobrevivência e para o bem-estar diário do homem. A
cidade medieval certamente era habitável nos seus próprios termos. O que Descartes
pretendeu foi justamente identificar o processo que levou ao sucesso eventual para que
ele pudesse ser utilizado de maneira segura e sistemática.
Nesse sentido, a adoção do método da dúvida tornaria possível reavaliar todo o
conhecimento disponível, separando aquilo que é verdade do que não é. Ele permitiria
que se encontrassem certezas autênticas: verdades que funcionariam como sustentáculos
de outras verdades – já que obtidas de maneira segura. A procura pelo método é,
portanto, a busca por procedimentos de reconhecido valor epistemológico que podem
ser utilizados como mecanismos arquitetônicos para a obtenção de novas verdades
(SILVEIRA, 1998). Ele produziria certezas confiáveis a partir de uma moldura inicial
de desconfiança na razão. Se há algum tipo de confiança expressa na necessidade
moderna de um método, se trata certamente da confiança na capacidade da razão em
corrigir seus erros e de superar suas deficiências naturais.
O mesmo tipo de necessidade de correção, causada pela desconfiança no uso
natural da razão, move o projeto de Francis Bacon (1620/1999) – o principal formulador
das bases do conhecimento científico moderno. O “Novum Organon” de Bacon
sistematiza os princípios da atividade que veio a se tornar culturalmente dominante nos
nossos dias: a ciência.
Bacon (1620/1999), assim como Descartes, defendeu que a atividade científica
deveria ser dirigida por um método. Segundo ele, “o intelecto não regulado e sem apoio
é irregular e de todo inábil para superar a obscuridade das coisas.” (Aforismo XXI). Ele
entende o método como um processo de supervisão racional da razão, um mecanismo de
monitoramento que visa corrigir os erros naturais do sistema de descoberta da verdade.
Para ele, é uma arrogância temerária acreditar que a razão pode chegar à verdade por
meio de suas disposições naturais.
Observa-se que o método moderno é uma tecnologia racional, um aparato de
apoio para fragilidades cognitivas. Ele consiste em um sistema de escoras para uma
racionalidade que não produz conhecimento seguro de maneira natural. O método é uma
expressão daquela desconfiança da razão com relação a si mesma, típica da
modernidade. Para facilitar, podemos comparar essa noção moderna à noção antiga de
método.
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Aristóteles (2001) defendia que o método devia ser derivado da natureza do
objeto. Para ele, um homem versado nas ciências exige de seu objeto de estudo apenas o
grau de precisão relativo à natureza de seu objeto. Ou seja, o conhecimento deveria se
ajustar às características do ser de que trata. Assim, o método antigo é de matriz
ontológica, porque se espera que ele deve refletir o ser específico de cada objeto de
estudo. Ele deveria ser flexível com relação ao modo de existência de cada ser particular
que compõe o cosmos.
O método moderno é diferente, pois consiste em um artifício corretivo em
função da evidência de que a racionalidade, quando deixada à rédea solta, se equivoca
seguidamente. O método moderno é uma espécie de contenção dos cavalos afoitos do
carro de Apolo. Ele é uma decorrência da desconfiança na razão humana. Dessa
maneira, ele é o resultado de uma avaliação das próprias condições humanas do
conhecimento. Ao contrário da origem ontológica do método antigo, o método moderno
é eminentemente epistemológico.
3. A Indústria
A instauração do método moderno levaria ao que Bacon (1620/1999)
denominou de reino dos homens: o conhecimento completo da natureza. Conhecimento
cuja principal característica consiste em dominar a natureza. Bacon é um crítico do
conhecimento que não gera operações de controle sobre o mundo exterior. Para ele, não
há conhecimento autêntico sem poder. A verdade se manifesta justamente no fato de
haver controle sobre o mundo natural. Portanto, o reino dos homens significa total
controle do mundo natural.
O primeiro desafio do método baconiano é preparar o investigador para
produzir conhecimento verdadeiro. Isso decorre daquele reconhecimento moderno de
que sua constituição natural não o habilita para isso. Dessa forma, o futuro investigador
deveria ser curado de hábitos que se encontravam arraigados na sua forma natural de
ser. Liberado de tais vícios, ele tornaria sua mente pura e bem disposta ao
conhecimento. Assim como a entrada no reino dos céus requer a purificação do coração,
o reino dos homens requer purificação dos hábitos mentais prejudiciais ao
conhecimento autêntico.
Dessa forma, a etapa inicial do processo de investigação é a purificação do
53 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
investigador ou, se quisermos, a geração de um ser inocente e puro no sentido
epistemológico: alguém que seja capaz de interpretar o mundo sem se deixar levar por
seus preconceitos e hábitos mentais. A purificação consiste, seguindo a metáfora
religiosa de Bacon, na destruição dos falsos deuses, na eliminação dos ídolos. Esses
ídolos são os falsos princípios que estão instalados na razão e que precisam ser
abandonados. A ciência, assim como a verdadeira religião, também deve expulsar do
seu templo os bezerros de ouro, os falsos deuses que levam ao erro.
Assim como Descartes, Bacon acredita que existam verdades autênticas já
descobertas pelo homem. Mas tais descobertas ocorreram por acaso, de maneira
assistemática e artesanal. O propósito de instituir um método e corrigir a razão equivale
à industrialização do processo de produção do conhecimento. Isso significa que a
descoberta de verdades passa a ser regulamentado por procedimentos padronizados e
não mais por gambiarras epistemológicas que oscilam ao sabor das circunstâncias. Para
se obter conhecimento verdadeiro, se requer um conjunto de ações específicas,
reconhecidamente eficientes, que podem ser usadas de maneira recorrente.
O método é, como os cientistas o entendem e usam hoje, uma receita para se
obter verdades. Sem o seu uso, o conhecimento, mesmo se verdadeiro, não obteria
legitimidade, porque não seria possível saber como ele foi produzido. O conhecimento
legítimo possui uma espécie de certificado de origem: ele deve ser produzido no
ambiente de pureza e assepsia estabelecido pelo método. Para que os resultados de uma
investigação possam ser comparados com outros resultados, eles devem ser gerados a
partir dos mesmos procedimentos. É o método que permite a criação de uma instância
comparativa de resultados, por mais diversos que eles sejam. O método é a linguagem
universal do conhecimento científico.
Portanto, a utilização do método moderno implica na passagem do artesanato
para a indústria do conhecimento. Com o método se definem os procedimentos
necessários para se chegar ao conhecimento verdadeiro de maneira sistemática, sem
improviso, sem variações, sem falar dialetos particulares e tomar desvios de rota. O
método moderno é a estrada para o conhecimento verdadeiro, a única estrada. Os erros,
se houverem, deverão ser atribuídos a algum fator ligado ao investigador e não ao
método. Esse se constitui como uma fórmula geral, um conjunto de operações
padronizadas que levam ao conhecimento verdadeiro.
Observe, então, que o propósito de se instalar uma fábrica de conhecimento
não é estranho ao espírito da modernidade. Pelo contrário, esse mecanismo de produção
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em série é plenamente derivado dos princípios fundamentais da modernidade cultural e
científica. Portanto, a industrialização da verdade é um propósito explícito da ciência
desde a sua origem.
Eventuais problemas decorrentes da industrialização da verdade não podem ser
considerados acidentais ou interferências externas inesperadas. As dificuldades próprias
da industrialização são derivadas dos princípios fundamentais da atividade científica e
fazem parte da realização plena do projeto científico-industrial moderno.
Observe, entretanto, que não há nesses princípios nenhum papel especial
destinado a heróis. Eles podem ter existido historicamente, mas não são uma
decorrência das bases modernas da ciência. Os heróis ou são más representações
(autoenganos) ou desempenham funções marginais com relação ao núcleo do sistema
científico-industrial. Mesmo nesse último caso, como se verá adiante, sua importância
relativa decai gradativamente à medida que o sistema obtém maior eficiência.
4. A Purificação
Para tornar mais claro o impacto da instauração do sistema científico-industrial
na formação dos cientistas, vamos nos concentrar aqui na primeira parte do método de
Bacon (1620/1999): a eliminação dos ídolos. Eles são de quatro tipos: ídolos da tribo;
ídolos da caverna; ídolos do foro e ídolos do teatro.
Os ídolos da tribo são os preconceitos que existem em nós em função de
sermos seres humanos: as emoções e a vontade. Eles podem interferir no desempenho
da razão, desviando-a de seu exercício puro. Contra isso, são requeridas frieza e
prudência. Além dessa interferência congênita, a própria sensibilidade humana (o
conjunto dos nossos cinco sentidos) possui limitações que não podem ser superadas.
Nossa visão possui um alcance definido, nosso tato só vai até o limite do nosso corpo
etc. Não há como superar essas limitações senão precariamente através do uso de
instrumentos. Os ídolos da tribo não podem ser extirpados do homem, mas sua
influência pode ser controlada por meio de dispositivos compensatórios. Tratam-se de
limitações às quais a razão deve se conformar em função de serem condições naturais
do homem.
Por outro lado, os ídolos da caverna foram adquiridos pela educação e pelo
hábito. Eles são tendências que desenvolvemos em função de nosso caráter particular ou
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porque adquirimos tais disposições ao longo do tempo. Assim, alguns investigadores
possuem uma tendência para se concentrar em análises minuciosas, outros têm
facilidade para produzir sínteses genéricas. Devemos evitar que essas tendências ou
preferências pessoais afetem o uso equilibrado da razão. Nem sempre análises ínfimas
ou macrossínteses são recomendáveis em uma investigação.
Os ídolos do foro são considerados por Bacon como os que mais perturbam a
razão humana. Esses ídolos consistem na crença de que governamos as palavras, sendo
que, na verdade, são as palavras que nos governam. Ou seja, se tratam das armadilhas a
que somos conduzidos em função de utilizarmos uma linguagem que não foi
desenvolvida para a produção do conhecimento. Com efeito, a linguagem se
desenvolveu no contexto da cultura e é basicamente um instrumento prático de
comunicação. Sua utilidade principal não é a de gerar novos conhecimentos em um
ambiente asséptico como o que é requerido pela modernidade. Portanto, seria um erro
utilizar esse instrumento de maneira descuidada. A linguagem natural pode sugerir para
a mente significados falsos que levarão ao erro.
Os ídolos do teatro são aqueles que a razão adquiriu em função do suposto
conhecimento obtido da tradição, através de falsas explicações da natureza. Bacon se
refere principalmente à má influência das ideias filosóficas antigas de origem grega e
romana. Além disso, esses ídolos se apresentam através das leis da lógica. Mesmo essas
não podem ser objeto de confiança, porque não levam necessariamente ao controle da
natureza. O conhecimento verdadeiro não pode ser obtido tendo como guia somente a
correção do raciocínio. Como vimos, é necessário que o conhecimento gere controle do
mundo natural. A verdade sempre envolve poder sobre a natureza.
O resultado geral da purificação dos ídolos é a obtenção de um investigador
sem preconceitos, uma espécie de criança inocente e preparada para a atividade
científica. Esse investigador não se deixa enganar pela sua própria constituição como
ser humano. Isto é, não é vítima de sua vontade ou de seus sentimentos. Ele também é
levado a considerar a perspectiva limitada dos seus sentidos e do seu próprio corpo.
Assim como não se deixa enganar por suas preferências e inclinações de estudo ou pela
educação que recebeu. Além disso, ele é cuidadoso no uso das palavras que utiliza no
conhecimento evitando o significado prático e cultural que elas já possuem no ambiente
social da comunicação. O investigador baconiano vê o mundo além da linguagem, sem
se deixar conduzir pelo véu de suas sugestões enganadoras. Os conhecimentos
disponíveis também não são confiáveis em função de terem sido acumulados sem
56 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
método. Por sua vez, a lógica não pode ser um parâmetro exclusivo de correção do
conhecimento, pois um raciocínio perfeito pode se mostrar impotente diante da
natureza.
Embora seja evidente que um investigador com todas as características listadas
acima jamais existiu, o modelo a ser atingido gerou certamente padrões de
comportamento ao longo do tempo. A purificação dos ídolos consiste em um valor
desejado, um objetivo a ser perseguido, e não exatamente em características que possam
ser identificados em um pesquisador em particular. No conjunto, ela pressupõe uma
determinada disposição epistemológica por parte do pesquisador.
Além disso, observe que a preparação para o conhecimento de Bacon possui
requerimentos éticos explícitos, na medida em que estabelece padrões de conduta
desejados para qualquer investigador. Essa ética, ao contrário do entendimento atual,
não depende nem de códigos profissionais nem passa por comitês (SILVEIRA,
HUNNING, 2010), mas compõe um núcleo básico do comportamento requerido para a
prática da ciência que é muito elementar.
O poder desses valores epistemológicos e éticos propostos é enorme se
avaliarmos o seu impacto na formação de uma cultura científica. Por exemplo, o
princípio de se manter sempre uma atitude crítica com relação à tradição tornou-se uma
marca distintiva da própria modernidade. Popper (1975) chegou a caracterizar a
atividade científica como a criação de uma espécie de tradição de crítica em que
qualquer resultado sempre deve ser submetido ao escrutínio dos membros de uma
comunidade de cientistas. Isso impediria que qualquer verdade se tornasse tradicional
ou adquirisse um valor superior ao próprio escrutínio.
A tentativa de se obter uma linguagem depurada de significados práticos e
culturais tem conduzido, ainda hoje, a esforços no sentido de se obter um discurso
objetivo, que evite as ambiguidades e as segundas interpretações. As definições
operacionais são uma tentativa de tornar claro sobre o que é o conhecimento que se
produz, de maneira independente das variações semânticas da linguagem. A
matematização do conhecimento, através da adoção de técnicas estatísticas de análise de
dados ou de modelização, é a expressão atual da necessidade de se chegar a essa
linguagem depurada de qualquer carga cultural.
Além dessas tendências que se tornaram distintivas da atividade científica, há
os impactos que nos interessam diretamente: aqueles que forjaram o caráter
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epistemológico e ético do investigador. A abstração total de características pessoais é
um componente do caráter da criança epistemológica de Bacon. A objetividade do
conhecimento é garantida justamente pela possibilidade de que investigadores diferentes
cheguem aos mesmos resultados. Isto é, a pessoa concreta do cientista que realiza a
investigação não deve interferir no resultado final. Também não importa o contexto
cultural em que se desenvolve uma investigação, porque o conhecimento requer a
possibilidade de sua reprodutibilidade de maneira independente. Enfim, qualquer
investigador que tenha passado pelo processo de purificação dos ídolos, diante dos
mesmos fatos, deve chegar necessariamente às mesmas verdades. Essa pessoa que se
tornou pura é o operário ideal da indústria da verdade.
5. O Operário
Nos nossos dias o processo de produção do conhecimento se intensificou e se
tornou imensamente complexo. Entretanto, não parece ter ocorrido nenhum desvio
substancial na história de seu desenvolvimento que nos trouxe de Descartes e Bacon até
hoje. Pelo contrário, aparentemente estamos muito mais próximos do ideal baconiano de
conhecimento científico do que há 100 anos.
A complexidade atual da ciência pode ser percebida no fato de falarmos menos
de investigadores individuais e mais de linhas e grupos de pesquisa. O sujeito da
investigação científica contemporânea é coletivo, pois o trabalho de pesquisa é feito por
vários pesquisadores, de tal forma que nenhum deles visualiza a totalidade do problema
que está sendo investigado. A divisão social do trabalho de investigação é uma condição
da produção do conhecimento científico atual. Com efeito, “está-se mergulhado no
positivismo de tal ou qual conhecimento particular, os sábios tornaram-se cientistas, as
reduzidas tarefas de pesquisa tornaram-se tarefas fragmentárias que ninguém domina"
(LYOTARD, 1979, p. 74).
Sem a divisão em tarefas específicas, grande parte das investigações não
poderia ser desenvolvida, porque se requer uma quantidade enorme de talentos e um
gasto de energia humana extraordinário para realizá-las. Assim, o que um investigador
faz, de fato, é realizar uma atividade ínfima em uma rede de trabalho coletivo que
termina em um produto extremamente sofisticado e complexo: o conhecimento
científico. E isso não depende de sua vontade. Investigações consideradas pertinentes
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devem obedecer ao preceito da viabilidade, isto é, se avalia antes de tudo se o conjunto
de pesquisadores é realmente capaz de realizá-las em um tempo determinado. Dessa
forma, investigações sofisticadas não podem ser desenvolvidas por um único
pesquisador.
Na prática, o que um cientista faz é acrescentar um tijolo a uma parede em
construção. Mas o que está em construção não é somente uma parede e sim um grande
edifício, um bairro inteiro e talvez até uma nova cidade. Não parece haver um controle
central para essa expansão, nem há como dimensionar o sentido de cada atividade
particular dentro de um panorama geral. Nesse sentido, a participação de um
investigador tem se tornado proporcionalmente menor se considerarmos que o sistema
industrial da verdade cresce e se torna mais e mais complexo a cada dia.
Uma contribuição individual essencial feita no passado passa a ser uma
contribuição importante hoje e terá um significado corriqueiro amanhã – já que a a
expansão e a complexidade são crescentes. O destino do trabalho do cientista é perder
gradativamente seu sentido especial, é ter sua importância particular lentamente diluída
no contexto da produção industrial e no aparato enorme de resultados que são gerados.
Mesmo os nossos heróis de ontem se tornarão operários humildes a partir da perspectiva
de um futuro próximo. O sentido de uma investigação não é definido pela sua
importância passada de uma vez por todas. Ele oscila em função da complexidade e da
sofisticação crescente dos produtos gerados pelo sistema científico-industrial.
Essa diluição do sentido específico e do valor intrínseco da atividade de
pesquisa faz parte da lógica da produção industrial em larga escala. O fato de que cada
produto em particular não ser mais significativo por si mesmo é uma consequência
direta da proliferação de outros produtos semelhantes e dos índices crescentes de
eficiência do sistema. Esse efeito de diluição do sentido parece ter se tornado uma
característica dqa cultura atual. Ele já foi detectado com relação à produção artística
(BENJAMIM, 1987), à sociedade de consumo (BAUDRILLARD, 1970) e ao fluxo de
informações proporcionada pelos meios digitais (LÉVY, 1999). Em todas essas
situações se observa que, em um oceano de produtos, cada um deles em particular perde
seu significado específico.
A proliferação excessiva de mercadorias epistemológicas conduz a dificuldades
na gestão da qualidade do sistema na sua totalidade. Nesse caso, é a eficiência
crescente, a produção de mais conhecimento com menos recursos através da otimização
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dos processos de descoberta e divulgação, que passa a requerer a criação de um patamar
de qualidade geral (TRZESNIAK, PLATA-CAVIEDES E CÓRDOBA-SALGADO,
2012). Entretanto, justamente em função da fragmentação e da especialização esse
denominador comum de todo o conhecimento parece um ideal abstrato e sem qualquer
possibilidade de se concretizar.
É a própria eficiência do sistema industrial da verdade que impede uma
avaliação independente de seus produtos. Com isso, parece inevitável que ocorra a
banalização da verdade e a circulação livre de mercadorias epistemológicas sem que
existam condições práticas de uma avaliação objetiva. Nesse caso, o valor de cada
produto é corroído pela eficiência do sistema e a verdade torna-se moeda sem valor.
Ao mesmo tempo, a atividade de investigação se torna mais e mais delimitada
e pertencente a um ambiente restrito. Cada objeto de estudo requer um foco particular.
Na pesquisa se utiliza uma linguagem técnica que permite a comunicação apenas com
os cientistas mais próximos, aqueles que estão habilitados a travar um diálogo
pertinente sobre determinado assunto, a partir de alguns pressupostos. Pesquisadores de
uma linha ou de um grupo de investigação não entendem o que se diz em outra linha ou
outro grupo – dentro da mesma ciência, da mesma área de conhecimento e do mesmo
corredor de universidade/indústria. A linguagem da ciência vem se tornando um
complexo crescente de dialetos cada vez mais específicos. Nesse sentido, não é um
contrassenso afirmar que o sentido da atividade particular de cada cientista vem
encolhendo a cada dia, na exata proporção em que a ciência se expande.
Vimos acima que, como qualquer sistema de produção, a ciência tende a se
submeter à lógica de aperfeiçoamento dos meios. Produzir conhecimento, como
qualquer outra coisa, implica em custos e o sistema é mais eficiente à medida que
produz mais com menos. Portanto, se requer que um investigador esteja pronto para a
prática da investigação tão logo seja possível. Se ele começar jovem será melhor,
porque ele poderá se dedicar à sua atividade por mais tempo, ampliando sua vida útil e
sendo mais produtivo. Para estar preparado para a investigação mais cedo, ele deve ser
recrutado e treinado rapidamente.
Para que o treinamento seja aperfeiçoado ele deve se concentrar somente
naquelas habilidades que são indispensáveis para a prática efetiva da pesquisa a ser
desenvolvida posteriormente. Por isso, cada ciência ou área de investigação tem de se
tornar cada vez mais independente de outras formas de conhecimento, de modo a poder
realizar sem perda de tempo o treinamento requerido para sua sobrevivência e
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ampliação. A fragmentação do conhecimento certamente torna o treinamento de
recursos humanos mais rápido e economiza em termos da quantidade de informações
prévias que são necessárias para as atividades de investigação. A diminuição da
amplitude e aumento da fragmentação do conhecimento são fatores de aumento da
eficiência do sistema científico-industrial.
Cada linha ou cada grupo de pesquisa deve ser capaz de preparar seus recrutas
o mais rapidamente possível, sem se importar com o que os investigadores de outras
linhas estão fazendo. Requer-se que uma capacidade de foco seja rapidamente
incorporada a um cientista jovem, sem que haja perda de tempo na obtenção de
conhecimento e no desenvolvimento das habilidades necessárias. A rapidez no
treinamento significa maior índice de produtividade par o sistema. Da precocidade
advém a ampliação da possibilidade de sucesso, do número de interlocutores em
potencial e de captação de recursos financeiros. Dessa forma, o processo de formação
de recursos humanos para a investigação também se torna um fator a ser aperfeiçoado
pelo sistema industrial.
No sistema de produção do conhecimento científico um cientista generalista é
uma exuberância sem sentido. Ele não possui as habilidades para ser integrado em uma
pesquisa concreta e tem dificuldades em manter o foco específico que é requerido em
investigações específicas. Assim, pode-se constar que um cientista especializado na
história de sua área de conhecimento é um ser em crescente processo de extinção. O
conhecimento histórico de uma disciplina custa caro, não gera resultados palpáveis e
dificulta a aderência imediata do pesquisador a uma linha particular de trabalho.
Se observarmos o trabalho desenvolvido por um jovem estudante de mestrado
de uma ciência particular, notaremos que sua investigação é conduzida tendo como
referência a produção relativa ao seu objeto de estudo nos últimos quatro ou cinco anos.
O conhecimento sobre a história de sua área de investigação é um desvio desnecessário
para a produção de conhecimento. Ele pode produzir conhecimento, e efetivamente o
faz, apenas com o conhecimento julgado relevante para o problema que pretende
resolver. As revisões de literatura temporalmente mais curtas são a expressão crescente
dessa necessidade. O sistema de produção industrial do conhecimento compacta a
história ao mínimo que é imprescindível para a continuidade de uma tradição de
pesquisa eficiente.
Nesse mesmo sentido e ao contrário do que se costuma imaginar, uma
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formação superficial do cientista não é um defeito do sistema. Ela é uma de suas
virtudes principais. A superficialidade é incentivada em função da lógica do trabalho de
investigação adotada desde o início da modernidade. Com efeito, ela se constitui como
uma virtude do operário baconiano. O jovem pesquisador de hoje está cada vez mais
parecido com a criança epistemológica de Bacon: ele quase nada sabe além do seu
objeto de estudo: aquilo que é considerado nas condições vigentes estritamente
necessário para conduzir uma investigação sobre determinado objeto.
Sem conhecer a história de sua área de conhecimento ou saber manusear
adequadamente uma linguagem de amplo significado, ele tem menos preconceitos a
serem combatidos, menos cultura a ser eliminada durante o período de recrutamento,
menos obstáculos a serem removidos antes do início da investigação. A superficialidade
do cientista é um índice de excelência do sistema, na medida em que ele tem menos
coisas a desaprender do que um homem culto. Nesse caso, saber menos é saber melhor.
Na verdade, ao invés de se ocupar com o processo de purificação baconiano de
jovens cientistas, o sistema de produção de conhecimento contemporâneo está
recrutando-os já puros, antes que eles adquiram conhecimentos desnecessários para a
prática industrial da pesquisa. Isto é, a formação do pesquisador ocorre cada vez mais
cedo, antes que ele cometa o pecado de se tornar culto. Assim, o sistema aperfeiçoa
também o processo de treinamento. A ignorância sobre tudo o que não interessa à
produção de conhecimento específico é uma virtude epistemológica do investigador
extremamente valorizada pelo sistema industrial. Um pesquisador culto é uma fonte
potencial de problemas que pode ser contornada com o treinamento de jovens para o
desenvolvimento de investigações pontuais a partir do início do período de graduação.
Uma das consequências diretas desse processo de formação de recursos
humanos é a identificação do mérito do investigador com a linearidade de sua vida
produtiva – percebida pela concentração a determinado objeto de estudo,
preferencialmente sob um tratamento metodológico particular. Os operários excelentes
são aqueles que possuem uma capacidade de foco já desenvolvida, que se demonstram
capazes de desenvolver a investigação específica que é requerida pelo sistema.
6. Crítica moralista e crítica moral
A ciência vem se tornando um sistema de produção da verdade cada vez mais
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eficiente, aprimorando o sentido industrial contido na proposição do método por
Descartes (1637/1979) e Bacon (1620/1999). Parece claro que a situação atual não é o
resultado de desvios circunstanciais ou equívocos na condução do projeto da
modernidade científica que poderiam tê-la conduzido a um rumo inesperado. Pelo
contrário, esperamos ter evidenciado o quanto as características da produção do
conhecimento existentes hoje estão em pleno acordo com o ideal de ciência e de
cientista formulados pela modernidade. Seria mais adequado dizer que a ciência vem
conseguindo realizar plenamente seu projeto de maneira cada vez mais integral.
Diante do quadro atual, resultante da evolução natural do projeto moderno,
talvez o leitor esperasse que o autor manifestasse descontentamento ou indignação. Essa
é uma postura adotada por várias perspectivas que julgam que a situação atual está
substancialmente errada como forma de geração de conhecimento. De fato, alguns
tipos de humanistas acham que é a própria histórica do desenvolvimento do
conhecimento científico que tomou um rumo errado em algum momento histórico
anterior. Alguns deles chegam mesmo a desenvolver alguma forma de aversão à ciência.
Para eles, melhor seria adotarmos outro ponto de vista, radicalmente distinto do
científico, que reintroduzisse o valor do homem como centro do processo de
conhecimento.
Não é importante, nesse momento, nos determos demasiadamente na
caracterização dessa perspectiva que julgo difundida mesmo no meio acadêmico das
humanidades. De maneira sumária, ela parece pretender fazer o conhecimento
retroceder para a época do artesanato científico ou para alguma etapa intermediária em
que o sistema científico-industrial ainda não possuía o grau de eficiência atual.
Não me parece fazer nenhum sentido formular uma crítica moralista a um
sistema que tem se demonstrado mais e mais eficaz, dentro de parâmetros históricos que
se tornaram hegemônicos nas democracias liberais. O moralismo consistiria aqui em
tomar pé em valores externos à nossa época e ao nosso modo de vida e exprimir uma
discordância com relação ao processo de industrialização da verdade.
Assim, ele busca valores e disposições de espírito saudosistas que afirmam, por
exemplo, que “precisamos manter presente o sentido nobre da ciência” (BIANCHETTI,
MACHADO, 2007, p. 13). É comum que essas posturas usem a retórica da decadência
moral, afirmando a inexistência atual de “an honorable ideal of personal integrity” ou de
“ethical bones” (LEWIS, 2006, p. 5). Não é incomum que elas combinem os conceitos
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de “high ideals”, “meaning” e “purpose” (idem, p. 19) para indicar o vácuo moral do
sistema atual de produção do conhecimento.
Entretanto, essa crítica só poderia ser feita por aqueles que se julgam
portadores de valores independentes desse sistema – uma necessidade implícita em toda
crítica moralista. Mas não é essa a perspectiva desse texto. Confesso que não tenho um
pé de apoio fora da condição histórica de produção do conhecimento contemporâneo.
Assim, não me julgo em condições de realizar esse tipo de crítica ao sistema – como se
dizia nos anos 60 do século XX. Para o moralismo, “integridade pessoal”, “ideais
elevados”, “significado” e “propósito” apontam para dimensões externas ao sistema
científico-industrial que deveriam ser considerados para sua correção. Esses valores
requerem, da parte de um moralista uma justificativa que não me julgo em condições de
oferecer.
A hegemonia que foi obtida pela ciência não foi construída de maneira
voluntariosa por indivíduos isolados. Ela é o resultado do sucesso prático e do
reconhecimento social obtido pelo sistema científico-industrial intensificado nas
democracias liberais contemporâneas. Portanto, a hegemonia da ciência e seu modo de
produção estão umbilicalmente ligados ao que denominamos de mundo civilizado
democrático. A crítica moralista possui a vantagem de trazer conforto psicológico para
quem se mostra indignado. Mas ela precisa avançar na direção da fundamentação dos
valores alternativos que propõe para deixar de se apresentar apenas como uma estratégia
de conforto pessoal diante de um mundo que se julga decadente.
Não julgo haver sentido em criticar o mundo civilizado, a menos que sejamos
capazes de traçar alguma perspectiva alternativa concreta para outro processo de
civilização que não seja exatamente idêntico ao passado. Assim, o ponto de vista que
adoto é, para o bem e para o mal, sempre interno a esse sistema de produção,
simplesmente porque faço parte dele. Observe que esse texto é, ele mesmo, um produto
gerado por esse sistema. Ignorar isso é enveredar por uma metafísica moralista e pela
negação da importância e da concretude do processo histórico que nos trouxe até aqui.
Dessa forma, só nos cabe fazer uma crítica interna, porque ela também é parte
do processo contemporâneo de produção do conhecimento. Afirmar que o sistema é um
monstro cujas engrenagens corrompem o homem é tomar pé fora da história e se
refugiar em algum recôndito metafísico em que haja em uma noção não histórica de
homem.
A crítica aqui deve ser moral, porque faço parte do processo histórico que
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construiu o sistema de produção industrial do conhecimento científico e sou, dessa
forma, corresponsável por ele. Mas uma crítica moral é frágil justamente por isso: ela é
uma crítica interna e certamente não poderá propor a mera destruição revolucionária do
sistema. Ela é sempre reformista!
7. A Desilusão do Operário
Cabe à crítica moral, cujo ponto de vista adoto aqui, indicar as limitações
internas do sistema e as tendências que nele parecem indesejáveis. Portanto, sendo uma
atividade orientada para o futuro, uma crítica moral possui sempre algo de profético.
Embora seu sucesso prático seja indiscutível, as restrições à participação
pessoal criativa no processo de produção do conhecimento científico tem se
intensificado. Hoje, não faz sentido acreditar naquela frase da juventude: “Science:
where imagination comes to reality”. Os cientistas tornam-se cada vez mais
engrenagens de um sistema de produção coletivo e impessoal. Vimos como a eficiência
requerida por tal sistema enaltece a superficialidade e a virtude da compreensão
unidimensional e imediata dos problemas.
A crítica e o debate entre pares, em geral entendida como uma virtude da
produção do conhecimento científico tem sido utilizada como um processo permanente
de redundância de valores e de intimidação de dissonâncias nascentes (MARTIN, 1999).
A vigilância mútua dos pares certamente é um mecanismo da normalização da ciência,
um reforço de procedimentos já consagrados pela tradição, uma intensificação do que
Kuhn (1988) chamou de ciência normal. Mas o sistema de produção industrial parece
levar a normalidade ao extremo de maneira a prejudicar o dissenso e a variabilidade –
forças propulsoras da inovação. Portanto, o sistema tende a se tornar ótimo, segundo os
critérios vigentes, e estagnar nesse patamar de excelência. O sistema industrial da
verdade tende à redundância.
A industrialização da verdade possui efeitos também sobre a impessoalidade
das agendas de pesquisa: o trabalho de investigação individual é entendido como uma
contribuição em um processo complexo cujo sentido escapa ao indivíduo. Assim, sua
responsabilidade é limitada a fazer avançar um aspecto particular desconectado do
empreendimento e do sentido geral. A abertura das universidades para a lógica de
mercado tem acentuado esse aspecto. Entretanto, ao contrário do que se acredita, o
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“capitalismo acadêmico” (SLAUGHTER e RHOADES, 2004; MUSSELIN, 2007) não
nos parece uma interferência alienígena na atividade científica e sim a realização plena
de sua vocação industrial moderna.
O cientista não crê, hoje, que deva rever os fundamentos ou se ocupar com as
origens de sua ciência. Isso expressa, no âmbito científico, a falência das metanarrativas
a que Lyotard (1979) se refere como característica da pós-modernidade. O investigador
parte de verdades instituídas para produzir novas verdades, dentro de um quadro de
referências já considerado verdadeiro. Ele é um operário que não produz as regras do
seu trabalho, não cria novidades efetivas, mas redundâncias que confirmam os
pressupostos adotados pelo foco e pela metodologia. Sua atividade é um processo de
aderência a um quadro de significados previamente adquirido na fase de treinamento.
Como os demais operários tradicionais, ele apenas desenvolve uma função estabelecida
a partir de um contexto dado e de acordo com uma metodologia já existente. Isso ocorre
principalmente quando ele realiza um trabalho “excelente” pelos padrões do sistema.
Não seria de se estranhar, portanto, que o operário percebesse mais cedo ou
mais tarde que seu trabalho é rotineiro, antiheróico e mecânico. Ou seja, é perfeitamente
razoável esperar que o operário se dê conta de que não conduz o carro de Apolo nos
céus escuros da ignorância e que sua atividade é tão repetitiva como o de qualquer outro
operário em uma esteira de produção segmentada taylorista.
Assim como a eliminação do autoengano sobre o suposto heroísmo do
cientista, não há como evitar que o cansaço e o desinteresse acometam uma atividade
que não envolve a criatividade e a participação pessoal. Hoje, o operário ainda possui a
ilusão do seu papel apolíneo no plano do conhecimento, mas isso é apenas um engano
passageiro que se dissipará à medida que as engrenagens se tornarem mais e mais
visíveis. Elas se tornaram visíveis porque em um mundo intensamente democrático, o
indivíduo é a fonte principal do valor e busca expandir sua subjetividade para além de
qualquer conteúdo particular (SILVEIRA, 2013).
O contato permanente com uma atividade repetitiva que promove virtudes de
superficialidade e falta de cultura geral está em contradição com a expansão da
subjetividade contemporânea. Essa contradição não permanecerá irresoluta
indefinidamente. Enquanto os operários acreditarem que fazem parte de algo importante
e meritório, o sistema dará seus frutos e se mostrará produtivo. Mas, quando se tornar
evidente que a lógica do sistema é idêntica à de qualquer indústria, cairá por terra a falsa
distinção entre o trabalho intelectual do investigador e o trabalho manual bruto e
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repetitivo – algo que é, aliás, positivo. Com isso, o sistema não poderá manter a aura de
heroísmo sacerdotal com a qual revestiu o trabalho intelectual dos pesquisadores.
Sem a criação de valores que mobilizem os cientistas para o desempenho de
atividades que possuam relevância pessoal, a ciência passará a enfrentar os mesmos
problemas de qualquer processo industrial que envolve rotina e repetição. Em uma
cultura marcada pela intensificação do individualismo, pela atenção incessante aos
direitos da pessoa e à sua plena realização existencial, atividades impessoais caminham
na direção contrária daquilo que se espera. Dessa forma, o sistema de produção da
verdade deve se tornar desinteressante diante das novas necessidades humanas. Ou a
indústria da verdade se adapta à cultura individualista ou deixará de ocupar o lugar de
destaque dos últimos 200 anos.
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conteúdo, o grande desafio para os editores científicos. [Manuscrito não publicado].
68 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
UMA ANÁLISE DO “DISQUE DENÚNCIA” 1 NA ROMÊNIA PÓS-
COMUNISTA. Cerasel Cuteanu
2
RESUMO No início dos anos ’90 do século XX, a Romênia entrou em sua fase pós-comunista, em
que importou contornos, normas e construtos que, infelizmente, foram aplicados com
muito desperdício, e, em última análise, de maneira ineficiente. Entre eles, o “disque
denúncia” é um exemplo dos conceitos ocidentais que – como provaremos depois – não
podem ser funcionais em países que possuem uma dimensão cultural de essência pós-
comunista. A fim de verificar a hipótese, nós olhamos para o sistema universitário da
Romênia, um campo que, potencialmente, é mais aberto ao novo e ao reformismo, e
descobrimos que ele mantém excessiva implicação política, ao lado de práticas não
democráticas (escondidas sob a capa de procedimentos democráticos e maiorias
tirânicas), iguais às que havia durante o comunismo, enquanto educadores competitivos
são marginalizados. O resultado é a óbvia mediocridade do sistema, considerando que
as decisões, no nível da gestão, são tomadas com base em razões políticas,
anticompetitivas. Em tal sistema, “disque denunciantes” são isolados por seus colegas
de trabalho, a retaliação não é algo considerado fora do normal (considerando que tal
organização é orientada por liderança), e a instituição permanece “sagrada”, mas
anticompetitiva. Aplicando o esquema interpretativo de Hofstede, nossa conclusão é que
dimensões culturais (isto é, a distância hierárquica, o individualismo e o evitar
incertezas) são um fundamento para a razão de permanecermos céticos sobre a
imposição de uma cultura de “disque denúncia” em um ambiente pós-comunista.
Palavras-chaves: Ética aplicada, disque denúncia, Romênia, pós-comunismo, Geert
Hofstede.
1 A tradução da expressão original por “disque denúncia” requer alguns esclarecimentos. O termo
“Whistle-blowing” significa “a exposição do malfeito de um empregador a agentes externos à companhia,
tal como a mídia ou agências reguladoras governamentais. O termo também é usado para a denúncia
interna de desvios de conduta, à gerência, especialmente por meio de mecanismos anônimos de
participação, frequentemente chamados de ‘linhas quentes’ ”. Cf. FERRELL, O. C.; FRAEDRICH, John;
FERRELL, Linda. Business Ethics: Ethical Decision Making and Cases. Boston: Houghton Mifflin,
2008. p. 183. No Brasil, as “linhas quentes” corporativas (isto é, os canais telefônicos ou eletrônicos
internos à organização) são frequentemente chamadas de “ouvidorias”, e não de “disque denúncia”. Em
compensação, a expressão “disque denúncia”, mais aproximada do sentido global que o articulista
pretende apresentar, e que já ficou bastante conhecida entre nós (o que também justifica a escolha),
designa claramente a “linha quente” (em geral telefônica, gratuita) do público em geral com toda e
qualquer autoridade constituída. Nesse sentido, ela é muito mais ampla do que no contexto original, pois
não envolve a denúncia apenas de dirigentes empresariais de conduta reprovável, mas é válida para
denunciar qualquer malfeito, de qualquer um. São inúmeros os exemplos de casos de crimes, fraudes e
similares que foram denunciados, apurados e seus perpetradores punidos, junto à polícia, ao ministério
público e a muitos outros agentes públicos, a imprensa incluída. Nesse sentido, vale dizer que a
instituição brasileira do “disque denúncia” – garantida pelo anonimato – é, efetivamente, bem sucedida,
ao contrário, ao que parece, do caso romeno descrito no artigo. Cabe informar também que, por esse
motivo, todas as variantes da expressão usadas pelo articulista foram igualmente vertidas com o formato
“disque” anteposto, em vez de simplesmente, “denúncia”. (Nota do tradutor) 2 O autor é jornalista, PhD pela Universidade de Petrosani, Romênia. (Nota do tradutor).
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ABSTRACT At the beginning of the ‘90’s, Romania entered its post-communist phase, a phase that
imported Western frames, norms, and constructs, which, unfortunately, were applied
quite loosely, and, finally, inefficiently. Among these, whistle-blowing is an example of
Western concepts that – we will further prove – cannot be functional in countries,
having a cultural dimension, of a post-communist essence. In order to verify the
hypothesis, we looked at the university system in Romania, a field that, potentially, is
more open towards the new and the reformism, and discovered that it maintains the
excessive implication of the political, as well as undemocratic practices (hidden under
democratic procedures and tyrannical majorities), same as during communism, while
competitive educators are marginalized. The result is the obvious mediocrity of the
system, considering that decisions, at the level of management, are made based on anti-
competitive, political reasoning. In such a system, whistle-blowers are isolated by their
coworkers, retaliation is not something considered out of the ordinary (considering that
such an organization is leader-oriented), and the institution remains “sacre”, but anti-
competitive. Applying Hofstede’s scheme of interpretation, our conclusion is that
cultural dimensions (i.e. power distance, individualism, uncertainty avoidance) are an
argument for the reason that we remain skeptical about the imposing of a culture of
whistle-blowing in a post-communist environment.
Key-wordws: applied ethics, whistle-blowing, Romania, post-communism, Geert
Hofstede.
1. Visão geral sobre o “disque denúncia”.
A percepção geral sobre o “disque denúncia” implica uma dicotomia
inevitável: de cada lado da disputa, podem-se achar argumentos que justifiquem tanto a
virtude quanto o erro do procedimento. Em uma cultura democrática, que possua um
histórico de sistema legal em funcionamento, respeitosa dos tópicos morais essenciais,
poder-se-ia ter a expectativa de que o “disque denúncia” fosse um fenômeno
intraorganizacional positivo.
Ir além das fronteiras da organização, sem primeiro tentar consertá-la pelo lado
de dentro, poderia ser considerado como algo malicioso e, mesmo, corrupto, daí o erro
em “disque denunciar”. Obviamente, a possibilidade de uma anomalia não está
excluída, na medida em que os dirigentes executivos máximos ou administradores de
sistemas públicos são capazes das formas de corrupção mais simples, em nome de
variados interesses políticos ou financeiros. Lutar contra tais ações egoístas e corruptas
representa um testemunho do papel positivo do “disque denunciante”. Isso nos conduz à
essência da questão – um “disque denunciante” é alguém que tem o bem coletivo em
mente, quando age contra a organização, apesar das consequências; sobretudo, mesmo
70 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
quando ele/ela falha, o “disque denunciante” pretende ter feito “a coisa certa” 3.
Consequentemente, ele não poderia hesitar, caso fosse necessário repetir a ação.
É por isso que, normalmente, organizações sólidas (especialmente no mundo
ocidental) proclamam publicamente a vantagem do “disque denúncia” e o encorajam
internamente, como um sinal de democracia e eficiência moderna. A alternativa também
é possível, já que sempre há organizações em que esse fenômeno não é encorajado de
modo algum, o que é uma prova de que não estão desenvolvidas de modo
suficientemente democrático. Na Romênia, as universidades públicas são exemplos
dessas organizações em que o simples conceito de “disque denúncia” é irrelevante,
devido a um mau funcionamento da democracia em um nível institucional, o que é um
sinal de falta de maturidade cultural. Esse mau funcionamento, com óbvios efeitos sobre
o desempenho das pessoas em uma universidade, é uma consequência das anomalias
típicas e específicas de sociedades pós-comunistas. Dessa perspectiva, necessita-se de
progresso, mas ele não é estimulado.
Geralmente, um sistema especializado como o educacional tem suas próprias
regras científicas, estritas; o que atraiu minha atenção no sistema universitário da
Romênia é que ele tem sido substituído por um “clone” com uma essência política, e
que relativiza todos os critérios. A consequência direta é que os educadores são
sufocados por um sistema não competitivo que recaiu em uma imitação “kitsch”, um
sistema conduzido por políticos pseudoacadêmicos que usam sua influência de maneira
a controlá-lo, não pelo bem do progresso, mas somente por amor ao poder político,
dinheiro e imagem pública...
Os verdadeiros acadêmicos profissionais (uma pequena porcentagem) se
transformam em uma massa amorfa de indivíduos despersonalizados, no momento em
que sentem que o poder não acompanha mais a qualidade acadêmica. Como resultado,
há uma pressão gerencial invisível, que força qualquer “disque denunciante” potencial a
permanecer calado e a não oferecer nenhuma reação a qualquer desvio de conduta. O
outro aspecto a se mostrar relevante na discussão poderia ser o cultural; não existe a
cultura do “disque denúncia” neste país pós-comunista, devido à mentalidade, à história
e à cultura romenas. É por isso que as perspectivas de Geert Hofstede sobre dimensões
culturais provam sua utilidade para a análise do padrão cultural dos romenos e como
3 ALFORD, Fred C. Whistleblowers: Broken Lives and Organizational Power. Cornell U. P., 2001. p.
1.
71 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
isto influencia a filosofia do “disque denúncia”.
Hofstede menciona o fato de que as pessoas carregam programas mentais e
vê a cultura como uma “programação coletiva da mente”4. Valores e cultura são
diretamente conectados a esses programas mentais. Ele define os valores como “uma
tendência generalizada a preferir certos estados de coisas a outros”, de modo não
racional, “programados desde cedo em nossas vidas” e “determinantes para nossa
definição subjetiva de racionalidade” 5. A cultura é definida como “a programação
coletiva da mente que distingue os membros de um grupo humano do outro”; ela
também inclui um “sistema de valores”6. Nós usaremos a visão hofstediana para
comentar o conceito de “disque denúncia” na Romênia, já que a dimensão cultural
específica dos romenos justifica sua incapacidade de alcançar o papel positivo de um
“disque denunciante”.
2. Uma solidariedade contra o “disque denunciante”.
Por razões culturais que elaboraremos posteriormente, os empregados nas
organizações romenas, em geral, têm a reação instintiva de isolar os “disque
denunciantes”. Isto se deve a uma solidariedade – erroneamente compreendida – com o
líder da instituição (e não com a própria instituição ou com a sociedade), e isto é algo
que pode ser explicado com base na dimensão da distância hierárquica hofstediana.
Como resultado, em tais contextos, um “disque denunciante” encara, além do
medo da retaliação, o dilema de acomodar, na mesma equação, a lealdade a uma
organização (mais precisamente, ao seu líder e aos colegas de trabalho) e o fator “fazer
a coisa certa”. Esse dilema é imposto a ele pelos outros empregados. Ademais, é
ingenuamente invocada uma lealdade egoísta à organização (por exemplo, uma
universidade romena) e não ao “fazer a coisa certa”.
Obviamente, o “disque denunciante” cai em contradição com seus superiores/a
administração e com os colegas que podem ser afetados pela informação,
potencialmente prejudicial a eles também. O pano de fundo é a organização, que é agora
percebida como sagrada 7 (mais do que a organização, é o líder que é “sacralizado” em
4 HOFSTEDE, G. Cultures Consequences: International Differences in Work-Related Values (Cross
Cultural Research and Methodology). New York: SAGE, 1980. p. 13 5 Idem, p. 18.
6 Ibidem, p. 21.
7 ALFORD, Fred C. Whistleblowers: Broken Lives and Organizational Power, p. 6.
72 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
uma universidade romena). A recessão global também pode causar certo tipo de
ansiedade que justifica tais sacralizações irracionais e desonestas.
Tais sacralizações são específicas das universidades romenas, em particular.
Aqui, o isolamento imposto sobre “disque denunciantes” é mais visível. A maioria dos
empregados de uma universidade romena está contente em delegar todas as
responsabilidades ao reitor, ao pró-reitor ou a qualquer outro superior, em geral, e, em
consequência, não está interessada em arriscar seu futuro, em prol de fazer a coisa certa.
Não há apoio aos “disque denunciantes”. Como resultado, a retaliação é algo quase
aceito e esperado/tolerado pelos colegas.
Aliado ao fato de que a sociedade civil não é suficientemente poderosa, a
opinião pública não é algo muito eficiente na Romênia. Ao mesmo tempo, na era global
em que a mídia é excessivamente polarizada, ela geralmente depende de financiamento
dos que têm o poder. Pode acontecer de a mídia trazer ao público a história de um
“disque denunciante” sobre uma universidade (por exemplo, um reitor que infringe
partes da lei de educação – algo que aconteceu recentemente, quando muitos reitores
concorreram ilegalmente para um terceiro mandato, e nenhuma sanção foi aplicada a
eles) e a opinião pública não reagir, assim como o ministério da educação, enquanto a
retaliação é inequívoca e impossível de ser provada em juízo (caso tenhamos uma visão
realista acerca de como funciona o sistema de justiça neste país).
Tudo isto descreve as coordenadas de um bloqueio geral que mantém as
universidades romenas na mediocridade (as últimas classificações provaram que
nenhuma universidade romena está entre as primeiras 600 do mundo). Este círculo
vicioso poderia ser quebrado por “disque denunciantes” mesmo que as premissas não
sejam promissoras, graças àqueles programas mentais hofstedianos e à pressão da
corrupção. Como jornalista investigativo, escrevendo principalmente sobre o sistema
universitário, eu lido com muitas pessoas desse sistema. Minha conclusão é que os
possíveis “disque denunciantes” retrocedem pelo fato de que os políticos romenos, os
mesmos da era comunista, invadem todos os campos e permitem retaliações contra
qualquer um lutando contra o “sistema” (com o propósito de melhorá-lo). No nível do
poder, a abordagem impõe uma solidariedade entre os que detêm o poder e aqueles que
não o têm – a distinção é entre “nós” e “eles” – nós que temos o poder (nenhuma
ideologia é envolvida, é apenas amor básico pelo poder) e eles (que podem se tornar
uma ameaça para “nós”, ansiosos por fazermos qualquer coisa para conservar o poder).
73 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A realidade fictícia que foi construída pelo poder da propaganda do Partido
Comunista antes de 1989 assumiu uma nova configuração hoje, uma forma que justifica
todas as teses. A confusão sociopolítica durante os anos ’90 permitiu um controle da
sociedade por pessoas que estão protegidas por políticos de alto nível. É uma forma de
corrupção óbvia, sem dúvida, e um modo de forçar este país à mediocridade.
Efetivamente, o fato de que políticos estejam tentando controlar a justiça (e assim
protegendo os partidários), por meio do Parlamento, do Governo ou de outras
instituições da sociedade democrática, ainda é um debate público frequente na Romênia.
Sob as circunstâncias, considerando esses traços pós-comunistas da sociedade
romena, o “disque denúncia” não é algo efetivo, eis porque as universidades romenas
ainda estão lutando em classificações internacionais, uma vez que a excelência não é
algo buscado por si mesmo, mas, ao contrário, algo a ser evitado, apenas pelo amor do
poder, em qualquer contexto. Mas então, o comunismo não funcionava em bases
semelhantes – mentira, mediocridade e propaganda?
3. Romênia pós-comunista – instituições frágeis e democracia
“original”.
Este país ex-comunista recuperou sua liberdade em 1989, quando o
comunismo, em sua forma totalitária, ruiu (novamente, não porque os romenos tivessem
tido a iniciativa de fazer a coisa certa, mas apenas porque nos ajustamos ao fato de que
todo o bloco comunista estava se despedaçando, sendo esta uma prova óbvia da posse
em larga escala da dimensão hofstediana do poder, específica da mentalidade romena).
Desde os anos ’90, tem havido uma luta para implantar a sociedade liberal-
democrática. Diferente de outros países, como a Polônia ou a República Tcheca, a
Romênia não teve força suficiente para produzir uma separação drástica/completa de
seu passado. Em consequência, a mudança de sistema ideológico aconteceu apenas na
superfície, enquanto os vetores do novo sistema eram, na maioria das vezes, indivíduos
influentes da segunda ou terceira onda do Partido Comunista ou da polícia política de
Ceausescu 8. Um exemplo simples para esta tipologia é o primeiro presidente
“democrático”, o senhor Ion Iliescu que, de muitos modos, assegurou esta “transição”
das estruturas do passado para o novo sistema (de fato, seu instinto inicial, que admitiu
publicamente, foi continuar o comunismo na Romênia, mas num estilo perestroika-
8 Nicolau Ceausescu foi o líder comunista e presidente da Romênia de 1965 até sua execução, em 1989.
(Nota do tradutor).
74 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
reformista 9). Depois de muitas décadas de ditadura comunista, a maioria dos romenos
tendo sofrido lavagem cerebral e sendo ignorante, escolheu o caminho mais fácil, e,
assim, recusou o novo, graças a instintos retrógrados e ignorantes como os da época das
cavernas. O resultado foi que o novo tipo de sociedade estava sendo construído com
pessoas que não tinham qualquer outro interesse que o de ficar em vantagem no jogo do
poder, agora jogando pelas regras da democracia.
Não chega a surpreender que as “elites” que tomaram o poder nos anos ’90
fossem basicamente as mesmas pessoas do regime (comunista), embora se pudesse ter
tido a expectativa que os dissidentes que se opuseram ao comunismo teriam um papel
mais significativo. Infelizmente, este não foi o caso e, em consequência, mesmo agora
não existe qualquer coisa parecida a uma cultura de dissidência na Romênia. Além da
dimensão cultural que iremos analisar mais tarde neste artigo (com efeitos sobre o
“disque denúncia”), durante a ditadura de Ceausescu, ao indivíduo era ensinado (de
formas violentas) que não se podia lutar contra o “sistema” e que a dissidência não tinha
qualquer chance de ser bem sucedida. Muito poucos dissidentes, os quais passaram
muitos anos aprisionados, devido às suas convicções políticas, foi o exemplo que
convenceu o resto da população de que não há chance de lutar. Isto combinado com uma
cultura do informante (a polícia política da ditadura forçava as pessoas a espionarem-se
umas às outras, em nome dos ideais comunistas), levou à diminuição da personalidade e
responsabilidade individuais. A consequência foi que o indivíduo não lutava como
deveria por sua opinião, mas, ao contrário, aprendia a aceitar a dominação daqueles que
tinham o poder. Assim, a verdade se tornou algo que só se validava ideologicamente.
Tudo isto pode ser entendido muito facilmente, se aplicarmos a visão hofstediana de
valores transculturais e dimensões culturais.
O fato de que o primeiro presidente romeno (eleito ilegalmente para dois
mandatos e meio – mais tarde reitores de universidades o imitaram, para permanecer no
poder) havia começado sua carreira política na nova Romênia, livre e democrática,
insistindo em impor um tipo melhor de comunismo, e finalmente, uma “democracia
original”, retardou o progresso. De muitos pontos de vista, na medida em que a
9 Em conjunto com a Glasnost (transparência), a Perestroika (reestruturação) foi uma das políticas
introduzidas na URSS, em 1985, pelo presidente à época, Mikhail Gorbachev. Ela designava um processo
de reforma administrativa e política, e de abertura econômica, que culminaria com os eventos de 1989,
em especial a queda do Muro de Berlim e, em 1991, o colapso final do bloco soviético na Europa. (Nota
do tradutor).
.
75 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Romênia mal começou a buscar esse caminho, a sociedade liberal-democrática é um
“fim da história”. No mínimo, as gerações mais novas sentem que ainda há um longo
caminho a ser feito rumo a esse ideal.
Uma das piores coisas foi o fato de que instituições nas novas sociedades
acabaram sendo geridas por líderes pós-comunistas, de maneira criptocomunista.
Democracia era apenas o disfarce para uma cultura da liberdade disfuncional e quebrada
a priori. O principal resultado: a corrupção, a falta de progresso, a irresponsabilidade
pública, o que não é surpreendente, de acordo com teóricos políticos. De maneira
realista, nós temos que concordar com os teóricos que afirmam que não se espera que as
democracias recentemente construídas sejam tão funcionais quanto aquelas dos países
em que tal sociedade já era uma tradição. A força da democracia é dada pelo poder das
instituições do Estado 10
. Por definição, um regime é democrático quando organiza
eleições livres, sem este sentido de que isto é mais do que uma formalidade. O que
conta, desde esta perspectiva, e mantém tais países subdesenvolvidos, são as práticas
não democráticas e a corrupção frequente. Na verdade, o mero fato de que uma nova
democracia esteja emergindo da escuridão dos princípios fundadores marxistas,
leninistas e stalinistas é uma razão para a sua falta de funcionalidade 11
.
Vale a pena enfatizar as ditas “práticas não democráticas” 12
que caracterizam
alguns dos regimes pós-comunistas que se converteram à democracia depois de ’89.
Tais práticas estão presentes também na Romênia. Não é fácil construir uma democracia
sobre as alvoradas da ditadura comunista. O “disque denúncia” pode ajudar? É
provável, especialmente se olharmos para a sociedade democrática de modo realista,
como uma poliarquia, aceitando o fato de que as instituições importam, de forma a
preencher o vazio criado pelo fato de que é a maioria que governa e não todos os
cidadãos de uma democracia. O pós-comunismo romeno organiza uma “democracia
original” que combina partes de oligarquia, totalitarismo e ditadura em suas instituições.
Há uma indiscutível conexão entre regimes totalitários e a administração das
universidades romenas. Universidades romenas construíram uma oligarquia em torno do
reitor, tomando de empréstimo à teoria política o seguinte princípio: “Quem não está
conosco, está contra nós”. A herança totalitária não deve ser negligenciada, logo, uma
explicação para as acusações de estalinismo em muitas das instituições públicas da
10
ROSE, R.; MISHLER, W.; HAERPFER, C. Democrația și alternativele ei. Institutul European, 2003.
p. 23. 11
Idem, p. 35-36. 12
Ibidem.
76 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Romênia, em geral, ou, mais precisamente, putinismo 13
. Eu tenho publicado
intensivamente, na Gorjnews 14
, artigos que insistem nesses traços 15
que descrevem um
atualizado “sultanismo” (no sentido de Max Weber) nas universidades romenas. Mesmo
eleições, em tal contexto, são apenas de fachada, já que os detentores do poder estão
sempre vencendo 16
– provavelmente a teoria da distância hierárquica de Hofstede é
uma explicação para isto.
Este é o contexto institucional que um “disque denunciante” potencial encontra
em uma universidade romena – uma mistura de excessos de poder e decoração abusiva,
em que as principais características são de essência política (afinal, a direção de cada
conselho regional de educação é indicada pelo presidente do partido que tenha vencido
as eleições). O resultado é que se podem descobrir muitos traços políticos com um claro
toque de uma ditadura institucional refinada. São específicos de tais ditadores discretos,
governando as universidades romenas, o individualismo, o subjetivismo e a luta
incessante para impor suas vontades pessoais 17
.
Os elementos de oligarquia são também facilmente notáveis no nível de uma
liderança universitária, já que ela geralmente promove apenas as leis e regulamentos
que são favoráveis aos interesses 18
dos detentores do poder. A ilusão de democracia é
facilmente mantida em um nível superficial, pela organização de eleições livres, as
quais os oligarcas podem vencer, uma vez que a oposição é geralmente censurada e
isolada – no nível de impacto – assim como durante o domínio do Partido Comunista
(por exemplo, a menção de tais eventos foi feita recentemente na universidade pública
de Targu-Jiu, Romênia).
Tudo isto impõe óbvias práticas não democráticas no nível institucional em
uma universidade. “Disque denunciantes” estão encarando isto. O máximo que poderia
conseguir alcançar são pessoas desejosas de falar anonimamente sobre malfeitos em
universidades. Sua desculpa é que ainda há uma ditadura escondida (sob a aparência
13
Isto é, ao modo do regime de Vladimir Putin, presidente russo de 2000 a 2008, primeiro-ministro de
2009 a 2012 e presidente, novamente, de 2012 em diante. Seus críticos europeus o acusam de liderar uma
“máfia de Estado”, de modo análogo ao que fez Josef Stálin, dos anos ’30 aos ’50 do século XX. (Nota
do tradutor) 14
Veículo diário multimídia romeno, que inclui atualidades e comentários variados, inclusive políticos
(ver web: http://www.gorjnews.ro/). (Nota do tradutor). 15
CUTEANU, C. Externele, pe mâna adepților lui Putin: Marga și Gorun. Disponível em:
http://www.gorjnews.ro/slider/externele-pe-mana-adep%C8%9Bilor-lui-putin-marga-%C8%99i-
gorun.html. Acesso em: May 2012. 16
Democrația și alternativele ei, p. 59. 17
Idem, p. 60. 18
Ibidem.
77 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
democrática).
Em minha experiência como jornalista investigativo, eu reparei na seguinte
psicologia, quando se trata de “disque denúncia” em uma organização romena, em
geral: como, em 1989, a Romênia não separou o velho do novo, tudo está borrado.
Consequentemente, “bocados” de comunismo, estalinismo e ditaduras reinventadas
foram importados para as organizações, no nível da liderança, e aceitos como
representando o estilo adequado de gestão. A consequência é que, seguindo seus
instintos, as pessoas muito frequentemente começaram a reagir aos líderes em uma
instituição, do mesmo modo que durante o comunismo: já que estão subjugadas pelas
mesmas práticas, elas são programadas para não assumirem excessiva liberdade
(enquanto o “disque denúncia” seria uma manifestação de liberdade). O risco é que elas
pudessem se tornar dissidentes e, baseados no que resultou da dissidência no passado
romeno, isto é algo que 99% dos romenos escolheriam não se tornar. Em resumo, o
sistema de valores que forma a cultura na Romênia não oferece qualquer razão para
dizer, nesse sentido, que “disque-denunciar” pudesse ser pragmático ou ajuizado.
A consequência óbvia é: não importa qual seja o malfeito, os romenos preferem
deixar todas as responsabilidades para os líderes, assim como foi durante o comunismo.
Naturalmente, há questões/desculpas inerentes para não “disque-denunciar” e desistir da
liberdade. Lutar contra o malfeito é uma boa ação? No fim das contas, pode-se dizer o
que é bem e o que mal? Considerando o relativismo da sociedade contemporânea, a
verdade não é um construto social, um construto que precisa ser alcançado
democraticamente? O “disque denúncia” não seria algo irracional, talvez um excesso?
Ou ainda outra desculpa pela passividade é que o malfeito pode bem ser algo
subjetivo. O “disque denunciante” é percebido como um empregado que, dentro da
organização, vai contra seus companheiros apenas para se opor à liderança. Nós
daremos depois uma explicação hofstediana para essa forma de pensar. O que já pode
ser dito é que é difícil a separação do passado comunista anticompetitivo, enquanto a
pressão faz as pessoas tolerarem o malfeito, já que parece ser a coisa prática a se fazer.
4. A boa ação de lutar contra o malfeito – um modo de sair do
círculo vicioso.
A quem o “disque denunciante” é leal? Isto significa que ele tem a intenção de
78 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
fazer a coisa certa? Quão injusta é a retaliação contra um “disque denunciante”? São
algumas poucas questões legítimas que tentaremos oferecer uma resposta nesta parte do
artigo.
Ao reagir ao malfeito no interior da organização, um “disque denunciante” é
leal, principalmente, à sociedade (algo externo à organização), mas também à própria
organização, que é parte da mesma sociedade. Miceli and Near 19
afirmaram que a
intervenção do “disque denunciante” é reclamada por três dimensões de malfeitos:
comportamento ilegal, ações imorais ou ilegítimas. Em todos os três sentidos, as ações
de um “disque denunciante” perseguem a finalidade de fazer a coisa certa. Ao teorizar o
conceito de “disque denúncia”, deveríamos ter em mente a necessidade de separar o
“disque denúncia” de “outras ações de empregados voltadas à criação de mudanças
organizacionais no local de trabalho” 20
. As ações de um “disque denunciante” tentam
parar um malfeito que teria certo impacto negativo na sociedade, logo, para além da
organização.
Ao analisarmos este fenômeno historicamente, podemos chegar à conclusão de
que o “disque denúncia” sempre teve um efeito positivo na sociedade. Isso retroage ao
tempo da cidade-Estado de Veneza (quando o “disque denúncia” foi “instituído” ... para
ajudar a combater a corrupção e para dar aos cidadãos uma voz mais significativa em
seu governo 21
, mas remete também ao congresso americano durante a guerra civil (a lei
do “disque denúncia” queria combater fraudes), ou ao “apelo de Ralph Nader 22
, em
1971, por sua implementação como instrumento para estancar o malfeito
organizacional” 23
.
Uma conclusão não arriscada é que o “disque denúncia” é uma boa ação, sem
dúvida. Muitos autores o veem desse modo – por exemplo, Dworkin e Davidson
insistem no papel positivo do “disque denúncia” (como “instrumento comum de
controle”). Consequentemente, as organizações deveriam evitar a retaliação contra os
“disque denunciantes”:
19
MICELI, Marcia P.; NEAR, Janet P. Whistle-blowing in organization. Routledge/Taylor and
Francis, 2008. p. 4. 20
Idem, p. 6. 21
DWORKIN, T.M.; DAVIDSON, W. Whistle-blowing, MNC’s and Peace. Working Paper Number
437. February 2002, p. 3. 22
Ralph Nader é advogado, ex-congressista, político e ativista de direitos humanos estadunidense de
origem libanesa. (Nota do tradutor) 23
DWORKIN, T.M.; DAVIDSON, W. Whistle-blowing, p. 3.
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Se adequadamente protegidos da retaliação, eles se apresentarão com evidências do
malfeito antes que seja detectado externamente, isso se chegar a ser descoberto. Os danos
do malfeito poderiam ser reduzidos, comportamentos errados seriam freados, os prejuízos
da desatenção pública e os gastos da investigação seriam reduzidos, se tais relatos
ocorressem. Além disso, se o “disque denúncia” provasse ser uma ocorrência relativamente
frequente, os malfeitos poderiam diminuir, porque malfeitores potenciais ficariam em alerta
sobre o fato de que suas atividades não eram tão secretas quanto seriam no caso contrário 24
.
O passo essencial em qualquer organização é encorajar a denúncia interna.
Assim, a organização tem a oportunidade de consertar o malfeito, evitando efeitos
danosos, ficando dentro dos limites da ética e permanecendo leal à própria sociedade. O
que os EUA fizeram – sendo um dos defensores do “disque denúncia” – foi punir
impiedosamente as organizações acusadas de malfeitos com medidas extremas, e
precisamente com as formas práticas que iriam feri-las ao máximo. Somente assim elas
seriam capazes de perceber e aceitar a importância do “disque denúncia” interno. O
resultado imediato foi que o elemento de retaliação desapareceu de seu arsenal, nesse
dualismo “disque denúncia” / organização.
Isto é algo sobre o qual as universidades romenas ainda não estão
suficientemente conscientes, de modo que ainda existe a retaliação sobre os “disque
denunciantes”. Vem com o nível de democracia do país e com a compreensão do mundo
contemporâneo. Uma vez que o fator político está presente em todos os níveis, assim
como durante o comunismo, é óbvio que o malfeito não será punido. Ao contrário, o
“disque denunciante” será jogado aos “leões” que controlam, de forma pós-comunista,
todas as organizações públicas. O que normalmente acontece é que o “disque
denunciante” encarará o isolamento dentro da instituição e será preterido em qualquer
promoção ou possíveis bônus. O fenômeno mais interessante é que o restante de seus
colegas de trabalho não reaja a isto. Em si mesma esta é uma prova de que os colegas de
trabalho aceitam o totalitarismo autoimposto do líder e o fato de que este tem o direito
de dispor do “traidor” da forma que considerar apropriada. Tal aceitação da injustiça, se
imposta pelo líder de uma universidade romena, é uma especificidade da maioria das
organizações públicas romenas.
De maneira a tornar isto mais claro, eu enfatizaria dois exemplos conectados ao
“disque denúncia” nas universidades romenas. Um é o de um professor de uma pequena
universidade pública regional que eu tenho investigado, e o outro exemplo é o atual
primeiro-ministro da Romênia. O primeiro é um exemplo de como as instituições
24
Idem, p. 4.
80 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
retaliam, e o segundo é um exemplo de como os poderes políticos interferem com a
educação, protegendo os responsáveis pelos malfeitos.
O professor do primeiro exemplo é genérico para o caso dos “disque
denunciantes” que são retaliados. A pressão foi tão insuportável que ele deixou o
emprego, como resultado. Uma vez que a união em qualquer universidade romena
“atende” as disposições da administração, não foi surpresa que ele não tivesse recebido
apoio e tivesse que deixar o emprego.
O segundo exemplo está do lado dos retaliadores, que seguiram a regra
requerida para ser aceito pelo sistema universitário romeno: superficialidade acadêmica
combinada com apoio político significativo – eu estou me referindo ao primeiro-
ministro da Romênia, o senhor Victor Ponta.
Recentemente, ele esteve envolvido em um caso internacionalmente famoso de
plágio. A revista Nature 25
trouxe evidências consideráveis de que sua tese de
doutoramento foi plagiada. Mesmo se tratando de um caso de plágio direto (copiar-
colar) e de que a universidade que lhe deu o título de PhD tenha resolvido que as
acusações eram justificadas, em último caso, é da competência do ministro da educação
dar o veredito e tomar as medidas/sanções legais.
Aqui é onde o dilema kitsch começa. Quem nomeou o ministro da educação? O
próprio senhor Ponta, na qualidade de primeiro-ministro do governo romeno. Quem tem
que dar a assinatura final anulando o título de PhD do primeiro-ministro, com base no
plágio? O ministro da educação, nomeado pelo mesmo senhor Ponta. Ainda não há
conclusão, mas minha intuição me diz que o resultado será político.
A realidade é que o primeiro-ministro plagiou até 115 páginas de sua tese de
doutorado. Mas há um impasse, na medida em que o sistema educacional foi penetrado
por políticos que não se guiam pela verdade ética, objetiva, rígida e acadêmica, mas, ao
contrário, funcionam baseados em uma verdade contextual, política, flexível e
dependente de interesses políticos. Aqueles que sustentam que ele plagiou não podem
impor suas decisões, já que perderam a maioria no governo (?), enquanto o outro lado
não convence ninguém, já que o plágio é óbvio. Daí o impasse, o círculo vicioso que
mantém o sistema universitário na mediocridade, por causa dos políticos.
Quando se apresenta tal configuração do poder, quem teria a coragem de ser
25 SCHIERMEIER, Q. “Romanian Prime-minister accused of plagiarism”. In: Nature, International
Journal of Science.Disponível em: http://www.nature.com/news/romanian-prime-minister-accused-of-
plagiarism-1.10845. Acesso em: Junho, 2012
81 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
um “disque denunciante” em uma universidade romena? Como dissemos antes, mesmo
a revista Nature não expôs seus “disque denunciantes” neste caso de plágio. Este não é
o único exemplo de quão superficial é o sistema universitário na Romênia, e o quão
baseadas em política são tomadas as suas decisões institucionais.
Outro exemplo, novamente de um político, o ex-ministro da educação, senhor
Ioan Mang. O Conselho Nacional de Ética lhe deu o veredito de plágio. Sua reação:
“Foi uma decisão política”. A coisa esquisita é que a acusação de plágio veio de um
partido político e não de gente da academia 26
, como deveria ter sido (novamente a
dimensão cultural da distância hierárquica). Mas, então, mais uma vez, considerando o
contexto sociopolítico da Romênia pós-comunista, que professor, em seu juízo perfeito,
teria a coragem de acusar um primeiro-ministro, ou o ministro da educação, de plágio
ou de infringir a lei? Esta é a coisa estranha acerca da maioria dos campos na Romênia
– excessiva penetração política ou mesmo, talvez, estrutura/essência política.
Assim, quem pode lutar contra o malfeito nas universidades romenas, uma vez
que mesmo a academia está povoada por políticos que parecem estar acima da verdade
acadêmica? Além disso, há alguma saída do círculo vicioso?
5. Pode-se ver a política como um componente cultural da
Romênia?
Dworkin e Davis conectam o “disque denúncia” a um componente cultural, e,
assim, sustentam que ele pode variar de país para país: “Como discutimos acima, o
“disque denúncia” moderno (não político) é um fenômeno ocidental. Os países que o
adotaram têm sistemas legais comuns baseados no direito, em uma sociedade que
entesoura o individualismo” 27
.
Em países como o Japão, o indivíduo não é tão importante quanto o grupo ao
qual ele pertence, e isto é um padrão cultural aceito. Algo similar poderia ser dito sobre
os romenos, por causa do passado comunista. Se, durante o comunismo, a polícia
política de Ceausescu transformou muitos romenos em seus informantes, aqueles que
querem fingir que o “disque denúncia” é errado podem usar esse passado como
26
DINU, C.; ION, R. PDL îl acuză pe ministrul Educaţiei, Ioan Mang, de plagiat şi îi cere demisia.
Disponível em: http://www.gandul.info/politica/pdl-il-acuza-pe-ministrul-educatiei-ioan-mang-de-
plagiat-si-ii-cere-demisia-9608215. Acesso em: September, 2012. 27
DWORKIN; DAVIDSON, p. 10.
82 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
desculpa. O certo é que os romenos não podem ser acusados de excessivo
“ocidentalismo” – uma análise posterior mais detalhada, baseada nas visões de Geert
Hofstede, provará que o necessário individualismo é, culturalmente, quase impossível.
Nós comprovamos, anteriormente, o fato de que, na Romênia, a influência
política é essencial em campos externos à política, mesmo nos especiais, como a
academia. O indivíduo tem uma forte sensação de que ele não pode vencer uma luta
contra o “sistema”, na medida em que as instituições não estão funcionando
objetivamente, razoavelmente, ou no interesse dos cidadãos... Este assim chamado
“sistema” é uma mistura de poder político com um toque de falsa academia, e uma
autêntica mentalidade criptocomunista não ocidental.
O passado comunista seguido pela nova democracia criptocomunista (dos anos
’90) ofereceu uma lição amarga para qualquer um que fosse suficientemente ingênuo
para esperar pela oportunidade de uma mudança positiva por meio do “disque
denúncia”. Consequentemente, não chega a surpreender que os envolvidos nas “disque
denúncias” dos casos de plágio de Ponta e Mang não fossem pessoas das universidades,
mas, ao contrário, políticos. Este é um exemplo óbvio de que a ética acadêmica é algo
que só funciona se houver um interesse político, enquanto os verdadeiros acadêmicos
são desencorajados de um maior envolvimento no assunto. Pode ser seguro dizer que a
dimensão cultural mais essencial da Romênia é a política. Não é um exagero dizer que
ninguém teria se importado, se fosse um acadêmico a expor os dois plagiadores do
governo romeno – isto significa o quanto a política está estruturada em nossos genes. É
provavelmente prático dizer que ninguém no sistema educacional teria tido a coragem
de “disque denunciar” o primeiro-ministro. Além disso, considerando quão
partidarizada é a imprensa na Romênia, fora os políticos, ninguém seria capaz de
sustentar tal história na mídia.
O fato de as pessoas nas universidades, e na educação em geral, sentirem que o
poder não está depositado naqueles que dizem a verdade, mas, ao contrário, naqueles
que detêm a influência política, conduziu a uma aceitação derrotista e, eventualmente, a
um sistema universitário corrupto, onde a competência não importava mais.
Recentemente, nós da Gorjnews investigamos quantos dos professores que
detêm altas posições administrativas nas universidades locais haviam plagiado. A
conclusão é surpreendente: todos eles! Não obstante, nenhum de seus colegas jamais foi
a público “disque denunciar”. Seria o medo da retaliação ou, talvez, o fato de que o
83 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
sistema pós-comunista não pode ser derrotado? É possível que os políticos tenham
imposto seu poder a tal ponto sobre a academia romena que as pessoas achem que a
honestidade não tem mais qualquer chance, enquanto a academia é reconstruída (o
mesmo durante o comunismo) com incompetentes, mas pertencentes ao partido político
que detém a maioria do parlamento?
Se for isso o que acontece, trata-se de uma perigosa forma de corrupção, já que
cria impostores no nível da educação, educadores cujo único valor é serem filiados ao
poder político, logo, dispensados de desempenho. A reforma educacional Marga (1997-
2000) relativizou completamente o sistema universitário, em nome do incremento no
número de pessoas recebendo educação superior na Romênia (os números pareciam
bons apenas nas estatísticas). O resultado imediato foi: a qualidade não importava mais,
já que as decisões estavam sendo tomadas baseando-se na quantidade (que se tornou o
critério para garantir apoio financeiro). A competência entre professores também
começou a não importar mais.
Esta é dimensão cultural real, em um bizarro sistema romeno, imposto por
criptocomunistas no interior de limites democráticos, logo após a queda do comunismo
na Romênia (1989). O efeito estranho, considerando a essência política de uma
dimensão cultural nacional, é que está se tornando natural que “disque denunciantes”
não consigam produzir uma mudança, a menos que os políticos tenham algum interesse
nela. O “disque denúncia” é geralmente justificável se há “boas razões para esperar que
a exposição não autorizada de informações confidenciais levará às mudanças
apropriadas” 28
. Não é desta cultura politizada dos romenos a aceitação derrotista do
fato de que a mudança não é possível? Consequentemente, a virtude ou o erro de um
assunto é decidido contextualmente, enquanto o papel de um “disque denunciante” seria
considerado irrelevante em uma realidade contextual coerente... Não obstante, há
implicações das decisões tomadas dentro deste contexto, implicações com efeitos.
Ainda assim, o “disque denúncia” tem uma conexão com a dimensão cultural
romena e o melhor teórico deste ponto de vista é Geert Hofstede.
6. A visão “dimensional” de Hofstede sobre o “disque denúncia”
cultural.
28
KERNAGHAN, K.; LANGFORD, John W. The Responsible Public Servant. The Institute For
Research on Public Policy, 1990. p. 100.
84 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A essência pós-comunista de países como a Romênia pode ser facilmente
analisada baseando-se na primeira dimensão cultural de Hofstede – distância
hierárquica. De acordo com esta primeira dimensão, em países com grande distância
hierárquica, pode-se aceitar que o poder esteja “desigualmente distribuído entre os
indivíduos” 29
, consequentemente concordando com a centralização do poder e com a
liderança autocrática. Como foi mencionado antes, considerando a forte influência que
o fator político tem tradicionalmente, na maioria das organizações públicas, o “disque
denúncia” é algo que está mais próximo da loucura do que da razão em qualquer
universidade pública da Romênia. Na maioria das vezes, mesmo como no caso do
primeiro-ministro plagiário, nenhuma sanção foi feita contra aqueles expostos por
malfeitos. Consequentemente, o “disque denunciante” se torna uma vítima exposta a
possíveis retaliações.
Seguindo as visões de Hofstede, quando se aborda o “disque denúncia”
culturalmente, o clima ameno da Romênia poderia ser também uma causa/sinal da
tolerância romena a uma distribuição desigual de poder e da não reação tão ácida aos
malfeitos quanto os ocidentais. Assim, “quanto mais frio o clima, menor será a distância
hierárquica” 30
. E a Romênia possui um clima ameno. A autoridade não é desafiada,
enquanto o grau de distância hierárquica permanece grande.
Outra dimensão pela qual se pode ver acuradamente os romenos, quando se
trata de “disque denúncia”, é a de evitar a incerteza. De acordo com esta última,
devem-se obedecer as regras, para que as “pessoas possam estar nas organizações por
toda a vida” 31
. Esta mentalidade remonta ao comunismo, quando todas as instituições e
companhias pertenciam ao governo. Os empregadores nas universidades romenas
guiam-se pelo seguinte princípio: “A vida é estressante por causa de sua incerteza” 32
. E
aceitam o sistema tal como é imposto pelos detentores do poder. Eu imagino que este
seja o sinal de uma verdade unilateral, quase ditatorial, que não dá margem para a
flexibilidade que um “disque denunciante” requer (“culturas evitadoras de incerteza
29
Sem referência no original. (Nota do tradutor) 30
MILNER, L.; FOODNESS, D.; SPEECE, M. W. “Hofstede’s Research and Cross-Cultural Work-
Related values: Implications for Consumer Behavior”. In: RAAIJ, W. Fred Van; BAMOSSY, Gary
(Eds.). European Advanced in Consumer Research, Vol. I. Association for Consumer Research, 1993.
p. 70-76. 31
Sem referência no original. (Nota do tradutor) 32
MILNER, L.; FOODNESS, D.; SPEECE, M. W. Hofstede’s Research and Cross-Cultural Work-
Related values, p. 70-76.
85 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
acreditam em uma Verdade absoluta, e culturas aceitadoras de incerteza adotam uma
posição mais relativista” 33
).
A visão oposta foi descrita por Bond e Hofstede em The Confucius
Connection:
Culturas aceitadoras de incerteza são mais tolerantes com comportamentos e opiniões que
diferem das suas próprias; elas tentam ter tão poucas regras quanto possível, e, no nível
filosófico e religioso, elas são relativistas, permitindo a muitas correntes fluir lado a lado 34
.
O individualismo – outra dimensão cultural hofstediana – é específico de
países afluentes, o que a Romênia não é. Logo, neste caso poder-se-ia falar de
coletivismo – “uma preferência por uma trama social estreitamente costurada, na qual
os indivíduos podem esperar que seus parentes, seu clã, ou outros de seus grupos de
pertencimento cuidem deles em troca de uma lealdade inquestionável” 35
. Em tal
sociedade, a outra dimensão – masculinidade – é praticamente inexistente.
Em conclusão, quando se trata de “disque denúncia” na Romênia, tem-se que
olhar as dimensões culturais de Hofstede e levar em consideração o contexto
sociopolítico, o qual possui todos os ingredientes pós-comunistas.
7. Criando uma cultura de “disque denúncia”?
Considerando seu passado comunista, totalitário, a Romênia é um país que
assume uma direção ocidental (no nível da propaganda), mas que age essencialmente
como um país pós-comunista traumatizado. “Disque denúncia” é um conceito
ocidental que está acomodado no contexto romeno em nível discursivo, mas que, na
prática, raramente prova a sua eficiência, pragmaticamente. Desde a era comunista, o
fator político é o decisivo em qualquer sistema. Esta mentalidade alcançou as gerações
mais novas, e com isso ele ainda é algo presente em vários sistemas da Romênia de
hoje. Como consequência, as mais importantes figuras públicas possuem um forte
passado e mentalidade comunistas, e sua influência os permite penetrar quaisquer
sistemas e subjugá-los, reorganizando-os em torno de si próprios.
33
HOFSTEDE, G.; BOND, M. H. “The Confucius Connection: From Cultural Roots to Economic
Growth”. In: Organizational Dynamics, Vol. 16, No. 4, 4-21. s/d. p. 19 34
HOFSTEDE, G., BOND, M. H., The Confucius Connection, p. 11 35
HOFSTEDE, G. “Cultural Dimensions in Management and Planning”. In: Asia Pacific Journal of
Management, January, 81-99, 1984b. p. 83
86 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
O mesmo aconteceu com a educação e é muito óbvio quando se fala do sistema
universitário: nenhuma universidade romena está classificada entre as primeiras 600 do
mundo. Isto não significa que não haja professores e pesquisadores extraordinários, ou
que os estudantes não sejam muito competitivos, mas, de outro modo, tem muito a ver
com o fato de que o progresso não é permitido pelas mesmíssimas pessoas que nós
mencionamos antes – as personalidades comunistas criadoras da Romênia “capitalista”.
A qualidade não é mais algo objetivo, mas, ao contrário, algo ditado pelo líder alfa.
É irônico que uma das mais importantes figuras da educação e da propaganda
comunistas, o doutor Andrei Marga (e atualmente há um forte debate sobre ele e sobre a
possibilidade de que possa ter colaborado com a polícia política repressiva comunista),
fosse aquele que teve a pretensão de reformar a educação romena em fins dos anos ’90,
enquanto era secretário de educação. O resultado desta reforma é um sistema
educacional medíocre. Naturalmente, isto é razoavelmente discutível, já que há
apoiadores e inimigos de suas visões reformistas, mas as análises internacionais provam
que os resultados não foram satisfatórios.
Não obstante, a ironia permanece, na medida em que o autoproclamado
“reformista” da educação romena é um indivíduo publicamente reconhecido por suas
profundas raízes comunistas – o senhor Marga é ex-professor de marxismo na Romênia
comunista. Ele é sintomático da mediocridade e falsidade da sociedade romena, tanto
quanto da inexistente cultura do “disque denúncia”.
Finalmente, talvez fosse possível relevar o fato de que algumas/a maioria das
figuras públicas teve um passado oportunista/comunista, caso elas fossem
objetivamente destacadas, apesar do sistema em que foram criadas. A questão desta
tipologia das figuras públicas (dispersadas por muitos sistemas públicos na Romênia)
com relação ao progresso social é que elas importaram práticas não democráticas do
comunismo, praticamente forçando a realidade capitalista a lidar com e a se ajustar à
essência comunista, em vez do oposto.
Por exemplo, no caso de Marga, ele é famoso por ter abusado do estatuto que
limitava os mandatos legalmente permitidos aos reitores da Universidade Babes-Bolyai,
de Cluj, Romênia. Do mesmo modo que ditadores em qualquer país não democrático,
ele manteve o poder nessa universidade por quase 20 anos. Quando alguém faz isso em
uma universidade de um país democrático, pode-se especular que essa pessoa não tem
qualquer respeito pela democracia. Por todo esse tempo, houve pessoas “disque
87 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
denunciando” tal abuso, mas isto não importou, já que o relógio “interior” da Romênia
pós-comunista não era ocidental.
O único resultado foi o desencorajamento do “disque denúncia” e, assim, da
mentalidade do fazer a coisa certa. Somando-se a isto a conclusão objetiva de que, para
algumas pessoas, a lei e a decência não importariam (por exemplo, para reitores que
abusaram da duração de seus mandatos, para primeiros-ministros, para quem o plágio é
tolerável), as dimensões culturais hofstedianas se tornaram consolidadas (a distância
hierárquica, o evitar a incerteza, o individualismo): todas elas se aplicam a indivíduos
que aprenderam da forma mais dura que fazer a coisa certa mais leva alguém à punição
do que à recompensa. Além disso, que as leis e normas não importam, já que há pessoas
que estão acima da lei. Consequentemente, qualquer “disque denunciante” é
considerado um “dedo duro”, enquanto a visão geral é a de que a lealdade para com a
organização é mais importante, que o malfeito é relativo e que todos os que têm poder
no sistema público da Romênia são tolerados enquanto o fazem. Não é esta a verdadeira
definição da distância hierárquica hofstediana?
Tudo isto deveria ser levado em consideração, quando pensamos em modos de
impor uma cultura de “disque denúncia” em um país como a Romênia. Quando lemos
visões sobre o assunto, como a de Lilanthi Ravishankar 36
, podemos facilmente
visualizar o papel dos valores e da cultura, em geral, numa compreensão hofstediana,
tanto quanto a importância da história e de como ela influenciou os indivíduos. Um dos
subtítulos do texto de Ravishankar sugere que “pode-se evitar o ‘disque denúncia’ ao
encorajá-lo”. Isto funcionaria em um sólido contexto ocidental, bem estabelecido, mas
não no caótico sistema romeno, por razões enfatizadas previamente. Toda a visão de
Ravishankar seria aceitável na Romênia, mas não teria qualquer efeito num país onde há
boas leias, mas que são aplicadas apenas erraticamente.
Em conclusão, em um país onde os valores ocidentais não estão bem
estabelecidos, conceitos e valores essenciais do Ocidente são aceitos, na teoria, mas não
são aplicados na prática. O pano de fundo cultural é aquilo que torna possível que
qualquer conceito progressista seja abraçado e tornado funcional. O próprio progresso
da sociedade é retardado pelo caos de opções, criando uma mistura autobloqueadora de
pós-comunismo, comunismo, capitalismo, democracia, Oriente, Ocidente. Não escolher
36
RAVISHANKAR, L. Encouraging Internal Whistleblowing in Organizations. Disponível em:
http://www.scu.edu/ethics/publications/submitted/whistleblowing.html, Markkula Center for Applied
Ethics, Santa Clara University, 2003.
88 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
uma direção clara e decidida e, em vez disso, contextualizar excessivamente, trava o
progresso em um círculo vicioso. Tal incerteza é uma causa de mediocridade, como no
caso da educação pública, especialmente no nível universitário.
Por último, devido ao seu passado comunista, já que a Romênia cria contextos
organizados em torno de machos alfas (em vez de um sistema independente de um
líder), seu progresso rumo ao Ocidente permanece duvidoso, e uma cultura do “disque
denúncia” não pode ser implantada. Ao contrário, uma cultura anti “disque denúncia” é
muito funcional e coerente com uma mentalidade derrotista, baseada na distância
hierárquica hofstediana. O evitar a incerteza em uma instituição pública na Romênia é
equivalente a aceitar um tipo único de individualismo: aquele do líder, a quem o
rebanho dá suficiente poder administrativo/político/institucional para retaliar
drasticamente qualquer empregado suficientemente individualista para “disque
denunciar” um possível caso de malfeito.
Tradução: Aldir Araújo Carvalho Filho37
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Cornell University Press, 2001.
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DWORKIN, T.M., DAVIDSON, W. - Whistleblowing, MNC’s and Peace, Working
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HOFSTEDE, G., BOND, M. H. – The Confucius Connection: From Cultural Roots
to Economic Growth, Organizational Dynamics, Vol. 16, No. 4, 4-21.
HOFSTEDE, Geert - Cultural Dimensions in Management and Planning, Asia
Pacific Journal of Management, January, 81-99, 1984b.
37
Tradução: ALDIR ARAÚJO CARVALHO FILHO, Doutor em Filosofia, Professor do Colégio Pedro II
(RJ), Docente permanente do PPG em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí, professor
visitante do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão, membro do GT
Pragmatismo e Filosofia Americana (ANPOF) e membro do conselho editorial da Revista Redescrições.
Concluída em São Luís (MA), em 13 de fevereiro de 2013
89 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
KERNAGHAN, K.., LANGFORD, John W. - The Responsible Public Servant, The
Institute For Research on Public Policy, 1990.
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Cultural Work-Related values: Implications for Consumer Behavior, in
European Advanced in Consumer Research, Vol. I, eds. W. Fred Van Raaij and
Gary Bamossy, European Advance in Consumer research, Vol 1, Association for
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http://www.nature.com/news/romanian-prime-minister-accused-of-plagiarism-
1.10845.
.
90 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
ASPECTOS DA EXPRESSÃO DAS ARTES CÔMICAS DA ERA
CLÁSSICA
Fabio Mourilhe
RESUMO Este trabalho tem por objetivo avaliar a relação existente entre as artes cômicas,
anteriores aos quadrinhos, realizadas na era clássica (entre os séculos XVII e XVIII) de
modo a verificar a influencia desta era sobre estas artes. Aqui, são comparadas as
linguagens características desta era clássica (e também certos aspectos do renascimento
e era moderna) conforme a descrição apresentada por Foucault em “Palavras e as
coisas” e a prática apresentada nas artes cômicas da mesma época. Verificou-se na
linguagem destas artes cômicas, de uma forma geral, uma estrutura muito mais aberta
em relação àquela utilizada na era clássica, em função da preponderância de uma
imagem pautada pela representação grotesca.
Palavras-chave: Artes cômicas. Era clássica. Gramática. Epistemologia.
ABSTRACT This study aims to evaluate the relationship between the comic arts, prior to comics,
performed in the classical era (between the seventeenth and eighteenth centuries) in
order to check the presence of this era over this kind of art. Here, the languages that
characterize this classic era (and also some aspects of the Renaissance and the modern
era) are compared, according to the description presented by Foucault in “The Order of
Things: An Archaeology of the Human Sciences” and the practice perceived in the
comic arts of this classical era. It was found in the language of these comic arts, in
general, a much more outgoing structure compared to that used in the classic age, due to
the preponderance of the grotesque representation in its image.
Key-words: Comic arts. Classical era. Grammar. Epistemology.
1.Introdução
Este trabalho surgiu a partir da necessidade de avaliação das artes cômicas da
era clássica, como expressão própria decorrente de uma pragmática que as caracteriza e
que vai além de um modelo linguístico e de uma gramática.
A partir da delimitação desta expressão, coloca-se em questão se uma
determinação histórica das práticas epistemológicas que caracterizaram a era clássica
poderia ser sentida na prática das artes cômicas caracterizadas pelo grotesco, sátira e
deboche.
Temos aqui como hipótese que “as artes cômicas da era clássica se desdobram
91 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
sem uma ordem prevista de antemão graças ao privilegio de uma critica social e política
e uma estética grotesca”.
2.Linguagem da era clássica e artes cômicas
A linguagem da era clássica (séculos XVII e XVIII) apresentava uma ênfase na
soberania das palavras, representações soberanas na representação do pensamento e na
representação de si mesmo (linguagem e palavra), se desdobrando e se refletindo em
outras representações equivalentes, um processo interno de onde emergia o sentido.
Temos, então, uma linguagem em que a representação se estabelece consigo mesma e
com o pensamento (Foucault, 1966, pp.107-108).
Na linguagem das artes cômicas – composições gráficas e textuais, sequenciais
ou não da era clássica, com os originais gravados em chapas de metal, coletados em
álbuns ou distribuídos individualmente, com extrema popularidade – temos
características próprias que transcendem a formatação organizada da linguagem da
época com composições através de imagens (sem a estruturação exclusiva da
representação linguística), que junto ao uso de palavras que repetem a ação das imagens
ou as comentam, ou seja, o que se estabelece consigo na linguagem das artes cômicas
faz parte de uma linguagem com uma estrutura muito mais aberta do que aquela vigente
na linguagem utilizada na gramática clássica (tal qual se estabeleceu com a ordenação e
estruturação das palavras), sem convenções estritas de como se deve desenhar
(excetuando a teoria apresentada por Hogarth (1753)), com expressões equivalentes de
sentido através de imagens inspiradas no grotesco (principalmente advindos de Bosch e
Brueghel) ou em alegorias, podendo apontar para uma multiplicidade de direções.
Apresenta-se o pensamento não através de uma simples palavra, mas de jogos entre
imagens e palavras que se articulam mutuamente.
De forma diferente da era clássica, a linguagem no renascimento (século XVI)
estava restrita a uma erudição de poucos, que comentavam (postura de eterno
comentário), em espaço igualmente restrito (manuscritos e folhas de livros) com siglas e
marcas indecifráveis para a maioria. Estes sinais estavam misturados a todas as coisas.
“O enigma de uma palavra que uma segunda linguagem deve interpretar” (Foucault,
1966, pp.108-109).
Esta linguagem do renascimento de certa forma se manteve na linguagem das
92 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
artes cômicas da era clássica, tanto pela semelhança de sua composição, com imagens e
texto, como por seu caráter enigmático e restrito a poucos (principalmente em
Arcimboldo (Figura 1)), na medida em que nas artes cômicas criticavam não só a si
mesmos, mas principalmente a sociedade, realeza e os costumes; críticas nem sempre
compreendidas.
Figura 1- Primavera, casa do amor – Arcimboldo.
Com as artes cômicas da era clássica, conforme visto, o caráter enigmático não
é retirado das palavras, em expressões com palavras e desenhos que se desenvolvem nos
signos verbais e visuais. Porém, de forma semelhante à gramática imposta pela era
clássica, os signos textuais desdobram a linguagem em uma ordem visível e um caráter
exotérico (destinado a um grande público) é mantido em seu discurso. Tendo o discurso
como objeto da linguagem, trata-se de saber como o discurso das artes cômicas
funciona, o que é designado, quais elementos são recortados. Aqui, temos um panorama
político específico com um discurso que, considerando as imagens, não estava preso aos
limites de análise e composição da gramática clássica, nem em seu esquema de
substituição limitada a palavras sinônimos envolvidas em uma representação. Na era
clássica, o comentário e a interpretação deram lugar à crítica, mas, nas artes cômicas,
temos não uma predominância da crítica a sua própria estrutura e linguagem, mas uma
interpretação social e política do cenário que se desenrolava na vida cotidiana,
93 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
possibilitando a veiculação de toda uma pragmática própria. Tanto nos impressos
ilustrados do período medievo quanto nas artes cômicas da era clássica, temos a
exposição de significados ocultos que demandavam uma decifração.
A crítica presente na linguagem da era clássica interroga a linguagem como se
ela fosse uma “pura função” e conjunto de signos, mas ambiguamente não consegue
deixar de considerar o “modo de presença” do que se diz, sua verdade ou mentira,
opacidade ou transparência. Nas artes cômicas da época, contudo, o conjunto de signos
envolvia uma multiplicidade não prevista em conjuntos estruturados de palavras,
deixando de lado a necessidade de se manter um modo exato de apresentação, e sim de
uma caricatura, simulacro com ares grotescos (como vemos em Jacques Callot (1592-
1635) (Figura 2)), que antes da escola inglesa (Hogarth, Rowlandson (1756 -1827))
prevaleceu. O conteúdo, contudo, tinha uma preocupação com uma tentativa de se
atingir uma verdade e transparência do que se diz, uma preocupação ética, com os
aspectos visuais indicando fatos e personagens cotidianos através de distorções
caricaturais, mesmo em outros de origem inglesa, como Gillray (1757 – 1815) e
Cruikshank (1792 – 1878), onde se salientava o ridículo (Figura 3). Assim, as artes
cômicas, com uma segunda linguagem por cima da outra, ou melhor, apenas um efeito,
do texto ou da imagem, no limite que se dá na extensão de uma sobre a outra, em certa
medida se assemelha ao que se deu com a literatura no século XIX, com uma ênfase na
interpretação e no comentário.
Figura 2- Jacques Callot - Gobbi
Figura 3- A voluptuary under
the horrors of digestion - James
Gillray.
94 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Nas artes cômicas da era clássica, um conteúdo crítico vem associado a sua
expressão, mas sem uma preocupação com o modo pelo qual se diz, diferente do papel
representacional assumido pela linguagem da era clássica que tenta assumir toda
diversidade possível da linguagem na representação. A linguagem que começa a ser
delineada nas artes cômicas permite a apresentação de toda multiplicidade possível
através de desenho e texto, sem que seja necessário estipular de antemão todas as
combinações possíveis de seu vocabulário, sem a imposição de uma ordem reflexiva,
gramática e retórica. Em termos artísticos, aquele que mais se aproxima desta proposta
(não condizente com a proposta das artes cômicas da época) é William Hogarth no
século XVIII com o seu “Análise da beleza” (1753). As imagens que acompanham
“Análise da beleza” mostram referências a áreas e estilos diversos, e também a
transformação progressiva de certos motivos e formas, como objetos, matizes de cor,
degradês, traços e a evolução de uma representação figurativa clássica da face até sua
versão caricata (Figura 4). Contudo, os temas retratados se afastam de um caráter
essencialista.
Figura 4- The analysis of beauty- William Hogarth
95 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A ordem reflexiva indica a relação da gramática com uma tentativa de
universalizá-la, considerando a possibilidade de língua ou discurso universal, mostrando
uma prática comum a alguns teóricos que estudam os quadrinhos atualmente, como
Groensteen. Esta língua teria o poder de atribuir a cada representação (e a cada
elemento que a compõe) um signo marcado de modo único. Mostra também como estes
elementos da representação são compostos e como são ligados uns aos outros,
mostrando todas as ordens possíveis. “Ao mesmo tempo, característica e combinatória”
(Foucault, Ibid, pp.116-117). Este objetivo de estruturação máxima do mundo se faz
sentir de forma concreta nas enciclopédias, uma tentativa de recolher entre as palavras a
totalidade do mundo.
Nesta estruturação, conhecimento e linguagem estão imbricados, tendo a
representação como origem e princípio de funcionamento, se apoiando e se criticando
mutuamente em um mesmo movimento. Envolvem uma linguagem que analisa a
“simultaneidade da representação, em distinguir-lhe os elementos, em estabelecer as
relações que os combinam, as sucessões possíveis segundo as quais podemos
desenvolvê-los”; e ao mesmo tempo um conhecimento que aparece com toda clareza.
Uma ordem analítica estrita (Ibid, pp.120-121). A dependência entre saber e linguagem
será desfeita com a literatura no século XIX, quando o saber volta a ser fechado e a
linguagem passa a ser tratada de forma pura (sua essência e função) e enigmática. E
entre saber e linguagem se desenvolvem linguagens intermediarias e derivadas.
A estruturação que se enfatiza com a linguagem da era clássica também passa
pelo formato da cópula e da proposição, objeto essencial da gramática e primazia formal
do juízo, com seu sujeito, atributo e ligação, tendo esta ligação (verbo – uma palavra
entre palavras) como condição para o discurso e o discurso como indicação para o
pensamento clássico de que existe linguagem.
A análise das palavras continua no século XIX através da filologia, porém com
a literatura que emerge na mesma época, temos a ideia de que,
(...) destruindo as palavras, não são nem ruídos nem puros elementos arbitrários que se
reencontram, mas outras palavras que, pulverizadas por sua vez, liberam outras — essa
ideia é ao mesmo tempo o negativo de toda a ciência moderna das línguas e o mito no qual
transcrevemos os mais obscuros poderes da linguagem, e os mais reais (Foucault, 1966,
p.145).
Deleuze & Guattari (1980, pp.12-13) mostram uma pulverização de palavras,
na situação sugerida por Lewis Carrol, na qual o professor lança uma questão do alto da
96 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
escadaria, que é transmitida pelos valetes que a deformam a cada degrau, ao passo que o
aluno, embaixo, no pátio, envia uma resposta, ela mesma deformada, a cada etapa da
subida.
Contudo, a representação distorcida através das imagens das artes cômicas não
é uma prática que prevalece de uma forma geral em outras artes, discursos e textos.
Enquanto a linguagem estiver presa à representação (palavra ou marcas), as
linguagens segundas estarão presas às alternativas entre crítica e comentário,
“proliferando-se ao infinito na sua indecisão” (Foucault, 1966, p.112).
A dificuldade de se estabelecer uma relação entre gramática da era clássica e as
artes cômicas da época parece indicar a tarefa de tentar organizar o que poderia ser uma
gramática destas artes cômicas como secundária (e inútil).
3.Conclusão
Para as artes cômicas da era clássica, temos uma articulação que permite uma
expressão própria que não está ligada necessariamente a modelos linguísticos e da
gramática, mas decorre dos corpos relacionados e de toda a pragmática advinda de
influências culturais, tecnológicas e de suporte que estão sempre em devir.
Uma determinação histórica das práticas epistemológicas já se mostra
problemática nas ilustrações humorísticas anteriores aos quadrinhos, considerando as
distinções entre as práticas realizadas nestas ilustrações e na linguagem da era clássica,
pois estas ilustrações, apesar de trazerem aspectos que ecoam na linguagem da era
clássica, são pautadas pelo grotesco, sátira e deboche. Em termos de imagem (imagem
que neste caso é soberana), as artes cômicas possibilitam um desdobramento de
significado que não está previsto de uma forma estrita em um dicionário e não existe
uma ordem correta para a apresentação dos elementos, como se dá na gramática em
relação à linguagem textual, pois se trata de uma grande imagem “aberta”, de forma
semelhante ao que ocorreu em Yellow Kid.
Esta estrutura mais aberta pode ser articulada em uma série de efeitos, junto ao
grotesco, a sátira e o deboche que serviram não apenas como autocrítica a sua própria
linguagem, mas como crítica social e política. Além disso, as artes cômicas da era
clássica, ao mesmo tempo em que traziam um caráter exotérico (pela utilização de
imagens em alguns casos realistas ou com um significado óbvio), se atinham também a
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um caráter hermético (pelas simbologias e alegorias utilizadas), pautando-se assim pela
diversidade, cabendo inclusive uma separação onde uma linguagem mais próxima
àquela da era clássica poderia ser pensada apenas tardiamente a partir de Hogarth,
porém, mesmo neste artista, temos uma crítica para além de uma autocrítica à própria
linguagem. As primeiras artes cômicas da era clássica, por sua vez, já se aproximam da
linguagem que emerge com a literatura (e sua narrativa própria pautada por outras
linguagens em sua superfície), pela desconexão promovida através da estética grotesca e
alegorias.
REFERÊNCIAS
Deleuze, Gilles. Guattari, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia vol.2. São
Paulo: Editora 34, 1995 (1980).
Foucault, Michel. As palavras e as coisas, São Paulo: Martins Fontes, 1999 (1966).
Hogarth, William. The Analysis of Beauty. London: John Reeves, 1753.
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Tradução
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A ONTOLOGIA DA ARTE DE MASSA
Noël Carroll1
Se por “tecnologia” significamos aquilo que aumenta nossos poderes naturais,
em especial aqueles de produção, então a questão da relação da arte com a tecnologia é
perene. Entretanto, se temos em mente uma concepção mais estrita de tecnologia, a que
faz parte da produção em massa rotineira e automática de múltiplos exemplares do
mesmo produto – sejam eles carros ou camisetas – então a questão da relação da arte
com a tecnologia é premente para nosso século. Pois especialmente em nosso século o
comércio com a arte se fez cada vez mais mediado por tecnologias no sentido estrito
(produção/distribuição em massa) do termo. Uma tecnologia no sentido lato é um
instrumento protético que amplia nossos poderes 2. Nesse sentido, as tecnologias que
marcam a revolução industrial são próteses de próteses, aumentando o alcance de
nossos já alargados poderes de produção e distribuição por meio da automatização de
nossos recursos técnicos de primeira ordem. Chamemos tais tecnologias de “tecnologias
de massa”. O desenvolvimento das tecnologias de massa inaugurou uma era da arte de
massa, obras de arte encarnadas em múltiplas instâncias e disseminadas largamente
através do tempo e do espaço.
Hoje em dia é lugar comum notar que vivemos em um meio dominado pela
arte de massa – quer dizer, dominado pela televisão, cinema, música popular (gravada e
transmitida), romances de sucesso absoluto na lista dos mais vendidos, fotografia e por
aí vai. Sem dúvida, essa condição é mais acentuada no mundo industrializado, onde a
arte de massa, ou se preferir, entretenimento massificado, é provavelmente a forma mais
comum de experiência estética para a maioria das pessoas 3. Mas a arte de massa
1 Texto cedido pelo autor para publicação na Revista Redescrições. Originalmente publicado em: The
Journal of Aesthetics and Art Criticism, Vol. 55, n. 2, Perspectives on the Arts and Technology (Spring,
1977), 187-199. 2 Patrick Maynard, “Photo-Opportunity: Photography as Technology” The Canadian Review of
American Studies 22 (1991): 505-506. 3 Eu prefiro o termo “arte de massa” a “entretenimento”, uma vez que o fenômeno que estou discutindo
neste artigo obviamente proveio de artes e gêneros bem conhecidos como o drama, o romance, a pintura a
óleo. O termo “entretenimento”, para especificá-lo, é muito mais solto do que o termo “arte”. Além disso,
ao estipular que minha preocupação é com arte de massa, estou excluindo de minha investigação os
gêneros da “mass media” (mídia de massa), como noticiários de televisão e eventos esportivos, que não
provêm das artes.
100 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
também penetrou o mundo não industrial a tal ponto que em muitos lugares algo como
uma cultura global de massa passou a coexistir, com o que Todd Gitlin chamou de uma
segunda cultura, paralela às culturas indígenas e às tradicionais. De fato, em alguns
casos, essa segunda cultura em certos países do terceiro mundo até mesmo erodiu a
cultura primitiva. De qualquer modo, está se tornando cada vez mais raro encontrar
povos em algum lugar do mundo hoje que não tenham alguma exposição à arte
massificada como resultado da divulgação de tecnologias de massa.
Da mesma forma não há sinal de afrouxamento no controle da arte de massa.
Mesmo agora, os sonhos de cabos de conexão penetrando em cada casa encantam os
magnatas da mídia, enquanto Hollywood produz filmes em ritmo frenético, não apenas
para vender ao mercado, mas também a fim de sustentar uma despensa capaz de
satisfazer os apetites vorazes dos centros de diversão domésticos cuja evolução em
futuro próximo foi predita. Propriedades intelectuais de todo tipo estão sendo
produzidas e adquiridas em ritmo delirante na expectativa de que as futuras tecnologias
de mídia que estão por vir demandarão uma quantidade simplesmente colossal de
produtos para transmitir. Assim, em todo caso, podemos antecipar mais arte de massa
em toda parte do que nunca antes.
Entretanto, apesar da inegável relevância da arte de massa para a experiência
estética no mundo tal como o conhecemos, a arte de massa tem recebido pouca atenção
nas recentes filosofias da arte, que parecem mais preocupadas com a arte
contemporânea de alto nível, ou mais precisamente, a arte de vanguarda. Dada essa
lacuna, o propósito do presente artigo é chamar a atenção dos filósofos da arte para
questões concernentes à arte de massa, um fenômeno que já se faz notar pela atenção
generalizada.
A questão particular que eu gostaria de abordar aqui concerne à ontologia da
arte de massa – a questão do modo como a arte de massa existe. Ou, isso dito de outro
modo, eu tentarei especificar o status ontológico das obras de arte de massa. Mas, antes
de discutir o status ontológico da arte de massa, será proveitoso esclarecer o que eu
entendo que seja a arte de massa. Assim, no que segue, tentarei primeiro definir as
condições necessárias e suficientes para pertencer à categoria de arte de massa. Em
seguida, introduzirei uma teoria sobre o status ontológico da arte de massa. E,
finalmente, considerarei certas objeções às minhas teorias.
101 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
I. A DEFINIÇÃO DE ARTE DE MASSA
Talvez a questão básica que surge com relação à minha abordagem de arte de
massa concerne minha razão para chamar o fenômeno sob análise “arte de massa” ao
invés de, digamos, “arte popular”.4 Minha preocupação a esse respeito é bastante
simples. “Arte popular” é um termo ahistórico. Se pensarmos na arte popular como arte
das classes mais baixas, então, provavelmente, cada cultura na qual apareceram divisões
de classe, nelas existiu alguma arte popular. De outro lado, se consideramos arte popular
como arte que muitos em dada cultura usufruem, então, espera-se que toda cultura tenha
alguma arte popular. Mas o que se chama de “arte de massa” não existiu em todo lugar
através da história humana. O tipo de arte – de que cinema, fotografia e rock fornecem
exemplos típicos – prolifera na cultura contemporânea, tem certa especificidade
histórica. Ela surgiu no contexto da sociedade industrial moderna, sociedade de massa, e
é expressamente destinada para uso dessa sociedade, justamente empregando forças
produtivas características dela, tais como tecnologias de massa, a fim de levar a arte
para enormes populações consumidoras.
Arte de massa, diferentemente de arte popular pura e simples, não é o tipo de
arte que possa ser encontrada em qualquer sociedade. É a arte de massa, da sociedade
industrial, e se destina às finalidades dessas sociedades. Sem dúvida, apesar de arte de
massa ser uma categoria historicamente específica, não se pode datar seu advento com
grande precisão. A própria sociedade de massa começa a emergir gradualmente com a
evolução do capitalismo, da urbanização e industrialização, e a arte de massa se
desenvolve conjuntamente, surgindo já com as primeiras tecnologias de informação de
massa, como a imprensa, que também possibilitou a popularização de gêneros de arte de
massa como o romance. À medida que a industrialização e as tecnologias da informação
que são parte e fruto delas expandiam, se somaram a fotografia, o cinema, o rádio, as
telecomunicações e agora a informática se acrescentou à imprensa de modo que a arte
produzida e disseminada tecnologicamente, progressivamente se tornou a marca de uma
época que começa em fins do século 19 e prossegue com intensidade exponencialmente
crescente ao longo do século 21.
4 Para defesas mais elaboradas da definição de arte de massa proposta nesta seção ver: Noël Carroll, “The
Nature of Mass Art” (“A Natureza da Arte de Massa”) e “Mass Art” (“Arte de Massa”), “High Art and
the Avant-Garde: a Response to David Novitz”, (“Arte Superior e a Vanguarda: uma Resposta a David
Novitz”), in: 1922: Philosophic Exchange (Brockport, New York: Center for Philosophic Exchange,
State University of New York, College at Brockport, 1993).
102 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A arte de massa, em resumo, destina-se ao consumo de massa. Destina-se a ser
consumida por amplo número de pessoas. Isso porque a arte de massa possibilita o
consumo simultâneo do mesmo artefato por audiências frequentemente separadas por
largas distâncias. O vaudeville era uma arte popular, mas não arte de massa pela óbvia
razão de que no circuito do vaudeville, um W. C. Fields poderia apenas se dirigir a uma
audiência limitada a um teatro e a um transcurso de tempo. Entretanto, quando ele
traduziu seus roteiros para o cinema, ele pode “atuar” como artista e diretor em Peoria,
Londres e mesmo na Filadélfia ao mesmo tempo. Como este exemplo indica, ao recusar
em rotular esse fenômeno como arte popular, eu não nego que há muitas vezes uma
conexão histórica entre arte popular, em sentido lato, e arte de massa. Com bastante
frequência, a arte de massa evolui a partir de arte popular já existente. As baladas,
primeiramente divulgadas por meio de performances ao vivo e preservadas na memória,
por sua vez, deram lugar a partituras de baladas e de música, e, recentemente evoluíram
para discos. Shows grotescos de carnaval talvez tenham dado origem a filmes de terror,
enquanto os dramas de teatro do século 19 proporcionaram um repertório de histórias e
técnicas de que foram extraídos os primeiros filmes, do mesmo modo contar histórias,
brincadeiras estilizadas e brincadeiras em geral, e, finalmente, a comédia stand-up são
as fontes de muitos shows da TV, para não mencionar as comédias de costume
(sitcoms).
Mas, é claro, nem todas as formas tradicionais de entretenimento popular, em
sentido lato, evoluíram para formas da arte de massa. Briga de galo, por exemplo, não
encontrou lugar na arte de massa. E a arte de massa desenvolveu certas formas que não
evidenciam nenhuma dívida com as artes populares tradicionais. Por exemplo, a música
em vídeo deve sua herança à arte de massa pré-existente como o filme. Em suma, apesar
de toda arte de massa dever pertencer à classe de arte popular mais ampla e ahistórica,
nem toda arte popular é arte de massa.
Ex hypothesi, o que distingue a arte de massa da classe mais ampla da arte
popular ahistórica é, como o rótulo “arte de massa” indica, que ela é produzida e
disseminada por meios de tecnologias industriais de massa, tecnologias capazes de
reproduzir múltiplas instâncias ou signos de produtos da arte de massa até pontos de
recepção distantes um do outro. Como a manufatura em massa de automóveis, a arte de
massa é uma forma de produção e distribuição destinada a dispor uma multiplicidade de
103 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
artes para audiências de consumo de massa geograficamente remotas.5 Arte de massa é a
arte da sociedade de massa, dirigida a audiências de massas por meio do que as
tecnologias de massa permitem.
Arte de massa é produzida e distribuída pelos mass media (mídias de massas).
Essas mídias chamadas de massa fazem com que seus produtos sejam acessíveis
simultaneamente a vastas audiências mesmo se não comandam realmente grandes
audiências. A TV foi um meio de comunicação de massa neste sentido antes que um
grande número de pessoas possuísse aparelhos de TV6. Os produtos da arte de massa
são, em princípio, produzidos para uma pluralidade de receptores e a tecnologia de
massa contribui para a realização dessa finalidade por meio da extensão “da viabilização
de formas simbólicas no espaço e no tempo”, como propõe John B. Thompson7.
Entretanto, apesar de a produção e distribuição pela mídia de tecnologias de
massa representar uma condição necessária à arte de massa, é insuficiente identificar um
candidato à produção artística de massa, pois obras de vanguarda podem também ser
produzidas e distribuídas pelas tecnologias de massa. Robert Ashley usa as mesmas
tecnologias de transmissão e gravação sonora que Rolling Stones e Madonna usam,
enquanto cineastas como Michael Snow e Jean Luc Godard fazem uso do mesmo
aparato de filmagem que David O. Selznick e Victor Fleming usaram em sua produção
de E o Vento Levou. Ainda assim, claramente, obras de vanguarda, quando produzidas
por meios de mídia de massa, não são propriamente obras de arte, pois elas não se
destinam ao consumo de um público de massa. Com frequência, elas são expressamente
destinadas para confundir o público de massa – para ultrajar a sensibilidade burguesa –
e mesmo quando não há essa intenção explícita, elas invariavelmente produzem esse
efeito, pois é uma condição necessária para ser vanguarda que as obras em questão
subvertam ou, pelo menos, vão além das expectativas convencionais.
Obras de vanguarda não se prestam para o acesso imediato ao público de
massa. Supõe-se que elas desafiem ou transgridam a compreensão comum e as
expectativas que esse tipo de público consumidor tem com relação às formas de arte
relevantes. Isso não significa que uma obra de vanguarda não possa se tornar um
5 É interessante notar que o rádio tal como concebido por Marconi, era transmitido de um ponto a outro
apenas. A noção de múltiplas recepções foi inventada por DeForest. Devo essa observação a Patrick
Maynard. 6 De modo similar, músicas country contam como forma de arte de massa, mesmo se poucas pessoas a
ouvem. 7 THOMPSON John B., Ideology and Modern Culture: Critical Social Theory in the Era of Mass
Communication (Ideologia e Cultura Moderna: Teoria Social Crítica na Era da Comunicação de Massa):
Stanford University Press, 1990, p. 221.
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sucesso editorial: Versos Satânicos de Salman Rushdie foi um sucesso. Entretanto, a
explicação neste caso tem mais a ver com o fato de pessoas em lugares como Iowa se
recusaram, desafiadoramente, a permitir que um ditador iraniano diga a elas o que
devem ler, e menos à apreciação das estratégias narrativas disjuntivas de Rushdie.
De fato, eu suponho que o livro de Rushdie, apesar do sucesso de vendagem,
não foi lido na mesma proporção. Pois para ser lido com compreensão e apreciação,
Versos Satânicos requer uma bagagem de história e de teoria da literatura e do discurso
relatado de sujeito dividido, que não estão na ponta da língua da maioria do público
leitor de língua inglesa.
As Pontes de Madison (para ficar em Iowa) é uma obra de arte de massa, mas
Versos Satânicos não. Qual é a diferença? O primeiro foi feito para ser acessível ao
público leitor de massa e o último não. Se fossem equivalentes, qualquer consumidor
deveria ser capaz de compreender As Pontes de Madison sem nenhum estofo
especializado, a não ser a habilidade de ler e um domínio rudimentar da prática da
ficção. Versos Satânicos, ao contrário, requer um preparo especial para ser
compreendido, apesar de, é claro, esse preparo poder ser adquirido autodidaticamente.
Obras de vanguarda podem ser produzidas e distribuídas por tecnologias de
massa, mas elas não são arte de massa. Pois apesar de produzidas e distribuídas por
tecnologias de massa, tais obras não são estruturadas para assimilação e recepção
imediata pelo público em geral. De fato, elas são designadas a frustrar uma fácil
assimilação. Nos casos mais favoráveis, a arte de vanguarda se destina a alargar
sensibilidades comuns, enquanto nos casos mais típicos, elas são destinadas a confundi-
las devido a modificações na percepção de laxismos estéticos e/ou morais.
De fato, ao longo da época da arte de massa, defensores da estética de
vanguarda (por exemplo, Collingwood, Adorno e Greenberg)8 foram os mais severos
críticos da arte de massa. Para eles, a vanguarda foi tanto a antítese histórica quanto
cultural da arte de massa. Além disso, como a vanguarda é a antítese da arte de massa,
ela proporciona hegelianamente, uma visão da “tese” – arte de massa – da qual extrai
seu programa e seu propósito. A arte de vanguarda é elaborada para ser difícil, para ser
intelectualmente, esteticamente e até moralmente desafiadora, inacessível àqueles sem
8 Ver Noël Carroll, “Philosophical Resistance to Mass Art” (“Resistência Filosófica à Arte de Massa”) em
Affirmation and Negation in Contemporary American Culture (Afirmação e Negação na Cultura
Americana Contemporânea), ed. Gerhard Hoffman and Alred Hornung (Heidelberg: Universitätsverlag C.
Winter, 1994, pp. 297-312).
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certo cabedal de conhecimento e aquisição de sensibilidades. A arte de massa, em
contraste, é elaborada para ser fácil, para ser imediatamente acessível ao maior número
de pessoas possível, com mínimo esforço.
A vanguarda é esotérica; a arte de massa é exotérica. Ela serve para comandar
um público de massa. Assim, é constituída para uso fácil. Idealmente, é estruturada de
tal modo que grande número de pessoas poderá compreendê-la e apreciá-la,
virtualmente sem esforço. É feita de modo a capturar e chamar a atenção do grande
público, enquanto a arte de vanguarda é feita para ser difícil e repelir a fácil assimilação
pelo grande público.
Como a arte de massa se destina a envolver amplos mercados, ela gravita em
direção à escolha de recursos que a farão prontamente acessível à massa, públicos
incultos. Revistas em quadrinhos, filmes comerciais e a TV, por exemplo, se comunicam
por meio de imagens. E imagens são símbolos cujos referentes são reconhecidos, sendo
as coisas uniformes, imediatamente e automaticamente por espectadores pelo simples
olhar. O reconhecimento pictórico, isto é, adquirido em conjunto com o reconhecimento
do objeto, vem de a pessoa poder reconhecer uma imagem de algo, digamos uma maçã,
quando já se é capaz de reconhecer perceptivamente, in natura o tipo de coisa – tais
como maçãs – que a imagem representa. Crianças, por exemplo, com frequência
aprendem o que coisas são a partir de imagens antes de realmente vê-las9. O
reconhecimento de imagens não requer nenhum treinamento especial. Assim, a arte de
massa que depende de imagens como constituintes básicos será acessível de modo
fundamental a um público virtualmente ilimitado. De fato, é esse recurso de filmes – de
imagens em movimento – que primariamente contribuiu para a popularidade
internacional dos filmes mudos, que se tornaram uma forma global de arte justamente
porque eles podem ser compreendidos por quase todo mundo seja qual for a
nacionalidade, classe, religião e educação.
A pesquisa pelo que é acessível massivamente até mesmo tende a influenciar a
escolha de conteúdo nos entretenimentos de massa. Cenários de ação/aventura são tão
apropriados aos propósitos da arte de massa porque a competição física entre as forças
fortemente definidas de bem e mal é mais fácil para quase todos seguirem do que
dramas psicológicos complexos, que podem exigir uma base de informação cultural que
o espectador comum não possui. Isto é, é mais fácil para o espectador comum
9 Em uma comunicação pessoal, Patrick Maynard referiu-se a isso como transferência “recíproca”.
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aleatoriamente selecionado compreender Combate Mortal do que Blow Up.
É o propósito ou função da arte de massa dirigir-se a um público de massa. Isso
pode ser resultado de se visar lucro em países capitalistas ou por motivos ideológicos
em países totalitários. E isso, por sua vez, dita certos desideratos concernentes às
estruturas internas das artes de massa, assim, tais obras gravitarão em direção a
estruturas como a representação pictórica, que serão acessíveis virtualmente por contato,
sem treino básico especial ou esforço por vasto número de pessoas. Artes de massa
tendem a certos tipos de homogeneidade exatamente porque visam atrair o que é
comum entre enormes populações de consumidores.
Frequentemente é essa tendência em direção à homogeneização que críticos –
geralmente críticos de vanguarda – destacam para repudiar quando a questão é arte de
massa. Entretanto, a busca por denominadores comuns na arte de massa, nas instâncias
tanto de estilo como conteúdo, não é uma fraude, e sim uma designação consciente dada
à função da arte de massa. Pois é o aspecto da arte de massa que engaja o público e que
está por detrás de uma inclinação em direção a estruturas que serão prontamente
acessíveis virtualmente pelo contato e com pequeno esforço de parte do público de
níveis bastante diversos.
Para resumir e ir adiante com essas observações, podemos tentar definir a arte
de massa por meio de seguinte fórmula:
x é arte de massa se e somente se 1) x é uma múltipla instância ou tipo de arte
2) produzida e distribuída por tecnologia de massa, 3) que é intencionalmente destinada
a gravitar em suas escolhas estruturais (por exemplo, formas narrativas, simbolismo,
efeitos intencionados e mesmo seus conteúdos) em direção àquelas escolhas que
prometem acessibilidade com mínimo esforço, virtualmente ao primeiro contato, para
vasto número de públicos relativamente incultos.
Cheguei à primeira condição ao estipular que meu domínio de estudo é arte de
massa, não cultura de massa, que representa uma categoria mais ampla. Isto é, minha
preocupação não são esses itens da cultura de massa que são identificados mais
estritamente como arte – tal como os dramas, histórias e canções mais do que programas
de notícias, shows de culinária ou eventos esportivos. Desde que obras de arte de massa
não são de vanguarda, há pouca dificuldade em classificar itens em termos de se recaem
ou não em formas de arte estritas – como drama ou canção – ou em termos de se eles
descartam propósitos artísticos classicamente reconhecidos como representação ou
107 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
expressão. Que a arte de massa não seja o que se denomina arte múltipla ou única é uma
faceta que as obras que explicarei na próxima seção deste ensaio, se isso não tiver
ficado evidente 10
.
A segunda condição – que as obras de arte de massa são produzidas e
distribuídas por tecnologias de massa – deve ser também mais ou menos óbvia. A arte
de massa emerge historicamente; não esteve sempre entre nós. Ela emerge apenas
quando tecnologias capazes de produção e distribuição em massa surgem. Então, a arte
de massa não é simplesmente popular. Ela requer tecnologias que possam distribuir
exemplares de obras a mais de um ponto de recepção simultaneamente. Walter
Benjamin falou de arte de massa em termos de sua reprodutibilidade em massa11
. Isso
facilita as coisas como para certos fotógrafos, mas não dá conta da possibilidade de
transmissão simultânea. Antes, é mais proveitoso pensar em obras de arte de massa
como aquelas que podem ser transmitidas a muitos pontos de recepção
simultaneamente.
A noção de um local discreto de recepção neste caso é um tanto complicada.
Ela não pode ser especificada em termos de distâncias mensuráveis entre pontos de
recepção. Uma casa de tamanho médio com dois aparelhos de TV tem pelo menos dois
pontos de recepção distintos, enquanto que Mount Rushmore define um local de
recepção, embora possa ser visto por muitas pessoas de diferentes pontos, que
compreende uma área maior que a de uma casa de médio tamanho. O que conta como
ponto de recepção específico depende do que seja o foco de atenção do público de certa
prática. Mount Rushmore possui um ponto único de recepção espacialmente contínuo
cobrindo uma extensão ampla indeterminada, enquanto que dois aparelhos de TV são,
em condições normais, dois pontos de recepção12
. Cada palco de teatro tem um ponto de
recepção discreto, embora, diferentemente do caso da TV, no teatro é impossível enviar
o mesmo sinal para atuação em uma peça a dois locais diferentes de recepção
simultaneamente, enquanto que essa capacidade é uma condição sine qua non da arte de
tecnologia de massa como a televisão.
10
De passagem devo mencionar que nem todas as tecnologias da mídia de massa resultam em formas de
arte de massa. O telefone, enquanto tal, não parece ter dado à luz a uma forma de arte de massa própria
dele, apesar de funcionar como um elemento nas obras e servir como sistema distribuidor para algumas
obras de arte de massa. 11
Walter Benjamin, “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction” (“A Obra de Arte na
Época de suas Técnicas de Reprodução”), in Illuminations, ed. Hannah Arendt (New York: Schocken
Books, 1969), pp. 217-253. 12
As aspas “condições normais” significam excluir casos como em que diferentes monitores de TV unem
partes de uma só imagem ao modo de mosaico (com em algumas obras de Nam June Paik).
108 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Entretanto, apesar da produção e divulgação de obras relevantes por meio de
tecnologias industriais de massa contarem como fatores essenciais às obras de arte de
massa, eles não bastam para identificar um candidato a obra de arte de massa, pois,
como vimos, parece ser ilógico considerar que obras de vanguarda como os filmes de
Stan Brakhage sejam considerados como arte de massa. Tais obras podem ser
produzidas e distribuídas por meio de um agente de mídia de massa, mas não se espera
que delas possam usufruir públicos incultos. Não são acessíveis cognitivamente nem
emocionalmente a espectadores mais simples. Por isso Brakhage introduz seus filmes
com conferências: ele está tentando educar seu público para que possam ver seus filmes.
As obras de arte de massa típicas são aquelas feitas com vistas a garantir seu acesso a
espectadores que, sem nenhum preparo básico especial, possam compreender e apreciá-
las pelo simples contato, despendendo pouco esforço13
.
Rock, por exemplo, além de sua simplicidade harmônica, emprega uma batida
facilmente reconhecível que ajuda a compor o resto do som. Essa batida é uma estrutura
de referência pronunciada e imediata cuja repetição possibilita entrar na estrutura
rítmica que nela converge. Como na antiga canção dos Beatles “Rock and Roll Music”
isso aparece: “It’s got a backbeat, you can’t lose it” (em tradução livre: “Há uma batida
que você não pode perder”). Muitas pessoas podem identificá-la rapidamente e
diretamente, pelo menos dedilhá-la e acompanhar o ritmo com a cabeça. É essa sua
característica estrutura interna, entre outras, que faz do rock música acessível ao mundo
todo.
Pode-se pensar que como quase todo rock é cantado em língua inglesa, ele não
se espalharia tão facilmente. Entretanto, sociólogos descobriram que ouvintes não
prestam atenção basicamente às letras, mas sim à ampla linha melódica de uma peça14
.
Assim, estudantes em Moscou podem se deleitar com os mesmos sons de euforia ou
13
Apesar de neste ensaio eu abordar apenas arte de massa, arte popular e arte de vanguarda, não pretendo
que essas sejam as únicas formas de arte. Há também a arte do folclore, middle-brow art (arte didática) e
as formas tradicionais anteriores às artes modernas de massa (como quadros de da Vinci). Para mais
detalhes dessas outras formas de arte e sua relação com as de massa, ver Noël Carroll, “Nature of Mass
Art” (“A Natureza de Arte de Massa”); Noël Carroll, “Mass Art, High Art and the Avant-garde” (“Arte
de Massa, Arte Superior e a Vanguarda”); e Noël Carroll, Prolegomena to the Philosophy of Mass Art
(Prolegômenos à Filosofia da Arte de Massa), (Oxford University Press), no prelo. 14
Roger Jon Desmond, “Adolescents and Music Lyrics: Implications of a Cognitive Perspective”,
(“Adolescentes e Letras de Músicas: Implicações de uma Perspectiva Cognitiva”), “Communications
Quaterly 35 (1987): 278; Simon Frith, Music for Pleasure (Música por Prazer) (New York: Routledge,
1988), p. 154: e Quentin Shultze et al., Dancing in the Dark: Youth, Popular Culture and the
Electronic Media (Dançando no Escuro: Juventude, Cultura Popular e Mídia Eletrônica) (Grand Rapids,
Michigan: William B. Eerdmans, 1991), pp. 160-163.
109 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
desafio que seus estudantes em Liverpool.
Enquanto minha definição de arte de massa enfatiza a sua busca por estruturas
que podem comandar públicos de massa, a fórmula sugere um rico programa de
pesquisa empírica para o estudo da arte de massa, visto que, no que diz respeito às obras
de arte de massa, uma questão sempre útil a ser levantada concerne o que ocorre com
obras importantes que as leva a chamar a atenção de amplo público. Que o limite de
corte nos vídeos na MTV seja a marca de 19.94 tomadas por minuto15
ajuda a explicar
porque os vídeos musicais fixam os espectadores na tela, pois tal recurso permite pouca
chance para a atenção diminuir. De fato, dado o modo como nosso sistema perceptivo
funciona, isto é, dada a tendência involuntária de nossa atenção para despertar (por
razões de adaptação sonora) com a introdução de novos estímulos, pode ser que a MTV
esteja explorando nossas conexões de tal modo que muitos espectadores quando menos
percebem, são tomados irresistivelmente pelas suas imagens16
.
II. A ONTOLOGIA DA ARTE DE MASSA
Após definir a natureza das artes de massa, gostaria agora de voltar à questão
de seu status ontológico – a questão do modo pelo qual a arte de massa existe. A
estratégia que adotarei primeiro é tentar caracterizar o status ontológico do cinema a fim
de prosseguir para ver se essa caracterização pode ser generalizada, com os ajustes
necessários, a outras formas de arte de massa tais como fotografia, gravação de músicas,
transmissão de rádio e telecomunicações.
Um modo útil de chegar à ontologia de filmes é dirigir a atenção para a
diferença entre performances teatrais e as do cinema17
. Digamos que há uma
apresentação de The Master Builder (Solness, o Construtor) às 8 horas da noite no
teatro local, e que estivesse em cartaz no mesmo horário Waterworld no cinema das
15
Donald L. Fry e Virginia H. Fry, “Some Structural Characteristics of Music Television Video”
(“Algumas Características Estruturais de Clipes Musicais em Televisão”), artigo apresentado nos
encontros da Associação de Comunicação Oral em Chicago em novembro de 1984 e citada em Dancing
in the Dark (Dançando no Escuro). 16
Talvez o chamado surf de canais seja um fenômeno relacionado. Enquanto nossa atenção diminui,
tentamos (em geral subconscientemente) reagir trocando de canal, e assim introduzindo um romper de
nova estimulação. O que fazemos conosco por meio dessa troca de canais é grosso modo o que a edição
na MTV faz por nós automaticamente e num ritmo muito mais rápido. 17
Esta abordagem da ontologia do cinema se constrói a partir de tentativas anteriores minhas, incluindo:
“Towards an Ontology of the Moving Image”, (“Em Direção a uma Ontologia do Cinema”), in:
Philosophy and Film (Filosofia e Filme), Eds. Cynthia A. Freeland and Thomas E. Wartenberg (New
York: Routledge, 1995); e “Definindo o Cinema” em minha obra Theorizing the Moving Image
(Teorizando sobre Cinema) (New York: Cambridge University Press, 1996).
110 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
vizinhanças. Pode-se ir a ambos. Em ambos os casos, tanto podemos estar sentados em
um auditório e cada apresentação começaria quando a cortina levantasse. Mas, apesar
dessas semelhanças superficiais, há profundas diferenças ontológicas entre as duas
apresentações.
Sem dúvida, essa afirmação soará estranha para alguns filósofos. Pois se
alguém distingue ente dois tipos de artes – aquelas singulares e as múltiplas – então as
apresentações cinematográficas e as teatrais parecem ontologicamente pares; ambas são
consideradas signos (n.t.: token ou realizações) de um só tipo (n.t.: type, padrão). Em
cada caso, a apresentação é um signo de um tipo de arte – The Master Builder, de um
lado, e Waterworld de outro, - no sentido de qualquer signo do tipo em questão podem
sofrer destruição – digamos, por fogo – enquanto o tipo-padrão de arte permanece18
.
Evidentemente, a distinção tipo/signo (type/token), apesar de útil para localizar
a distinção ontológica entre certas pinturas e esculturas, de um lado, e coisas como
peças, filmes, romances e sinfonias de outro lado, não é fina o suficiente para distinguir
entre apresentações de cinema e apresentações de teatro. Para obter essa distinção, é
instrutivo considerar os caminhos diferentes pelos quais se chega de uma peça-tipo a
uma atuação dramática signo-realização, de um lado, versus o caminho de um filme-tipo
a uma apresentação (i.e., assistir) um filme.
Para obter a partir de um filme-tipo uma realização-signo, é preciso uma
interpretação. Além disso, os caminhos diferentes da apresentação do signo ao tipo no
teatro versus a do filme-tipo à realização do filme, explica porque vemos as
apresentações teatrais como formas de arte legítimas, ao passo que, ao mesmo tempo,
não vemos apresentações de filmes (i. e., assistir filmes) com formas de arte.
A apresentação de filme se dá a partir de uma cópia padrão de filme, mas pode
também ser um vídeo, um disco a laser, ou um programa de computador codificado por
meio físico. Tais padrões são eles próprios signos; a cada um deles pode ser designado
um local no espaço, embora ao filme-tipo (film-type) – Waterworld – isso não seja
possível. Tampouco o negativo da obra do filme-tipo. É uma realização entre outras. O
negativo original de Nosferatu de Murnau foi destruído por ordem judicial, mas o filme
ainda existe.
Cada apresentação de filme uma realização-signo do filme-tipo. Cada
18
A aplicação da distinção tipo/signo (type/token) para a arte foi feita por Richard Wollheim em seu livro
Art and its Objects (Arte e seus Objetos) (Cambridge: Cambridge University Press, 1980, em especial
seções 35-38).
111 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
realização de apresentação dá acesso ao filme-tipo. Mas para apresentar uma realização-
signo da atuação de um filme, se requer um padrão – uma fita ou vídeo ou um disco a
laser – que é também uma realização-signo de filme tipo. A apresentação de filme como
signo-realização é gerada a partir de um mecanismo (ou eletronicamente), conforme o
procedimento técnico de rotina. Assim, a realização-signo da apresentação do filme –
projeção do filme – não é uma apresentação artística e não justifica apreciação estética.
Evidentemente, pode-se reclamar se o filme é projetado fora de foco, ou se ele
se queima no projetor, mas essas reclamações não são estéticas. São queixas sobre a
capacidade de quem projeta. Claro que essa capacidade é uma condição prévia para que
o filme-tipo seja arte. Mas não é um objeto de apreciação estética.
A abordagem é muito diferente no que toca às peças teatrais. A diferença, em
parte, é uma função do fato de que peças podem ser consideradas como obras literárias,
ou como obras de atuação. Quando uma peça como Strange Interlude (Estranho
Interlúdio), é considerada obra literária, então meu exemplar de Estranho Interlúdio é
um signo (realização, token) da forma de arte (art-type) Estranho Interlúdio do mesmo
modo que meu exemplar de The Warden é um signo (realização, token) do romance de
Trollope. Mas, quando visto da perspectiva da apresentação teatral, um signo
(realização) de Estranho Interlúdio é apresentação particular que ocorre em tempo e
espaço especificáveis.
Enquanto a apresentação de um filme é gerada a partir de um mecanismo e não
de uma interpretação, uma apresentação teatral de Estranho Interlúdio é gerada por uma
interpretação e não um mecanismo. Quando usada no contexto da apresentação, a peça-
tipo Estranho Interlúdio de Eugene O’Neill funciona como uma receita que deve ser
preenchida por outros artistas – diretores, atores, encenadores, e outros. O’Neill criou a
peça que é uma peça-tipo – mas a peça deve ser trazida à luz por uma interpretação ou
um conjunto de interpretações (diretores, atores, etc.) e, além disso, essa interpretação
governa a performance de signos-realizações (tokens) da peça à medida em que é
apresentada ao público noite após noite.
Além disso, esta interpretação é um tipo; a mesma apresentação de uma peça
pode ser revivida depois de um substancial hiato de tempo e pode ser realizada em
diferentes teatros com cenários numericamente diferentes, mas qualitativamente
idênticos. Então, a realização de um signo de uma peça-tipo é gerada por meio de uma
interpretação, sendo a mesma um tipo. Consequentemente, interpretações teatrais são
112 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
tipos de tipos19
. Obtemos de uma peça-tipo uma interpretação por meio de uma
interpretação que é um tipo. Isso contrasta com o caminho de um filme-tipo à realização
da projeção do filme, a qual é mediada por um mecanismo que é também um signo-
realização (token).
Antes eu observei que a projeção de um filme – quer dizer, a projeção de um
filme em um cinema – não é, em si, uma obra artística, enquanto isso não se dá com o
teatro. Performances teatrais são formas artísticas propriamente ditas. É preciso
capacidade de atuar e imaginação para encarnar uma interpretação, enquanto atuações
em filmes requerem apenas competência técnica. No teatro, como se sabe, a peça, a
interpretação e a atuação são cada qual candidatos à apreciação estética.
No melhor dos casos, uma peça, é uma interpretação, e suas performances são
integradas, embora reconheçamos que essas são camadas distinguíveis de condição
artística, mesmo se uma pessoa escreve a peça, dirige e nela também atua. Pois há
muitos casos em que uma peça ruim tem uma interpretação louvável, corporifica por
atuações soberbas, enquanto em outras ocasiões, uma boa peça é interpretada
sofrivelmente, com boa atuação, e assim por diante. Essas distinções que fazemos tão
facilmente indicam que há diferentes estratos ontológicos artísticos quando o que está
em questão é o palco, estratos que não são conseguidos por filmes do mesmo modo.
Pois, se com o teatro a peça-tipo é uma receita que diretores e outros artistas
interpretam, alcançando formas de arte diferentes apesar de relacionadas, com a receita
do filme (por exemplo, o roteiro) e as interpretações artísticas do diretor, dos atores,
etc., não são constituintes detectáveis da mesma forma artística. Não avaliamos roteiros
independentemente da produção do filme, tampouco avaliamos a projeção de filmes
esteticamente.
É comum considerar obras de filme de arte como tipos. Mas se a comparação
anterior com o teatro é convincente, então podemos caracterizar os filmes de um modo
mais refinado, a saber: um filme é um tipo cujas realizações nas atuações são geradas
por padrões-tipos (types) que são eles próprios, realizações-signos (tokens). Nossa
próxima questão é se esse modelo de análise pode ser generalizado para outras formas
de arte de massa, incluindo fotografia, rádio, telecomunicações, gravações de música e
livros de sucesso de ficção popular.
19
Ver R. A. Sharpe, “Type, Token, Interpretation, Performance” (“Tipo, Signo, Interpretação,
Performance”), em Mind 88 (1979): 437-440.
113 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A ficção popular de sucesso, como a literatura em geral, é uma arte-tipo. Minha
cópia de The Gift (O Presente) é um signo/realização do romance de Danielle Steel do
mesmo modo que minha cópia de The Magic Mountain (A Montanha Mágica) é um
signo/realização do romance de Thomas Mann. Em cada caso, a destruição de minhas
copias não ocasionaria em geral a destruição dos romances de Steel ou de Mann. De
fato, cada signo/realização gráfica do romance de Steel pode ser queimado e ainda
assim o romance pode continuar a existir se, ao modo de Fahrenheit 451, uma pessoa
recordasse o texto. É claro, isso leva ao extremo o uso em inglês chamar esses signos-
realização de O Presente de performances; assim, talvez seja melhor falar instâncias de
signos ou de signos de instância-repetição, mais do que signos de performances, quando
expandimos nossa caracterização do modelo de análise que já desenvolvemos com
respeito ao cinema para outras formas de arte de massa. Além disso, no caso do cinema,
temos acesso a obras de literatura popular por meio de recepção de instâncias de signos
que são elas mesmas, produzidas a partir de padrões, incluindo discos rígidos e
programas, e, talvez no limite, traços de memória.
Indo da ficção popular à fotografia, a primeira coisa a ser notada é que isso
pode não se dar no caso de a fotografia ser uma forma de arte uniformemente múltipla
de um ponto de vista ontológico. Pois pode haver, devido a seu método de produção,
obras de arte fotográficas que são de um só tipo, tais como os daguerreótipos20
. Tais
fotografias têm um status ontológico característico do status das pinturas.
Como a Mona Lisa, se um daguerreótipo de Nièpce for destruído, nós o
perdemos, mesmo se reproduções fotográficas se conservarem, do mesmo modo que se
a Mona Lisa no Louvre for rasgada, perderemos a obra prima de da Vinci, mesmo que
sua existência permaneça em cartões postais de museus. Com tais instâncias únicas de
fotografias, as assim chamadas reproduções por isso não são signos da obra em questão,
mas documentações dela. Assim, não gostaria de chamar fotografias de instância única
propriamente arte de massa pela mesma razão que a Mona Lisa não é um exemplo de
arte de massa, apesar do fato de que tenha sido infinitamente documentada por
fotografias em textos de história da arte e em livros de viagem.
De outro lado, além das fotografias de única instância, há muitas fotografias
que caem perfeitamente na categoria de arte de massa. É bastante previsível, dada a base
ser filme, que o modelo desenvolvido para analisar o cinema se preste muito bem para
20
Patrick Maynard me alertou que algumas impressoras modernas de fotografia como impressões em
daguerreótipo são consideradas como tipos únicos.
114 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
tais fotografias. Isso porque as instâncias que realizam os signos de tais fotografias são
geradas a partir de padrões, como os negativos, que são, por sua vez, signos; e as obras
em questão continuam a existir mesmo se os negativos e a maior parte dos outros
signos-realização do importante fotógrafo forem perdidos ou destruídos.
Considerando o rádio e a televisão, o primeiro ponto a observar é que na
grande maioria dos casos, programas nesses meios são gravados em fitas magnéticas,
cópias, vídeos ou programas digitais para transmissão posterior. Essa prática se tornou
bastante comum no rádio em fins dos anos 1940. Em casos como esses, o modelo de
análise acompanha o do cinema, pois as instâncias dos signos-realizações da gravação
servem como condições padrão que tornam possíveis as instâncias de recepção dos
signos. Mas o que dizer das transmissões simultâneas que não são gravadas nem
artisticamente modificadas (por meio de mixagens, por exemplo) na mensagem fonte?
Claramente, transmissões simultâneas no rádio e na TV devem contar como
exemplos de arte de massa, pois elas podem suportar simultaneamente uma
multiplicidade de instâncias de realização da mesma obra – uma canção ou um drama –
em pontosconcretizar de recepção que ficam longe geograficamente um do outro. Mas
qual é o padrão nesses casos? Sugiro que o padrão é o sinal ou mensagem do sinal de
transmissão que proveio da fonte da mensagem por instrumentos de codificação e de
modulação com a finalidade de transmitir e que são recebidos por instrumentos de
demodulação e decodificação, tais como rádios e TVs. Cada tipo de sinal de recepção é
derivado de um padrão por um processo mecânico/eletrônico (em contraste com o
artístico). Assim como projetar um filme não é artístico nem interpretativo, tampouco
ligar ou sintonizar um rádio ou TV o é. Os tipos de sinais receptores dos programas em
questão são processos físicos. O sinal de transmissão é uma estrutura física e certos
tipos de sinais de recepção desses programas podem ser destruídos, por excesso de
carga, por exemplo, enquanto as obras artísticas de massa do rádio ou da TV
permanecem. Claro, quando o sinal do programa provém de um padrão magnético, há
substitutos para os padrões, inclusive para a transmissão do sinal, como uma gravação
para mediar a arte de massa tipo e seus signos-realização em suas instâncias de
recepção21
.
21
Uma complicação deve ser mencionada aqui. Suponha-se que um programa de TV esteja sendo
gravado antes de uma transmissão ao vivo. Em tais casos devemos falar em duas obras artísticas. Há o
trabalho teatral que é desempenhado em frente dos espectadores do estúdio e algo mais. Em um caso, no
qual o que está sendo transmitido está sendo editado e estruturado (por exemplo, os closes, as tomadas
115 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Em casos em que a transmissão única envolve um enredo, no caso de uma peça
de teatro, ou uma partitura no caso da música, não há problema em achar que estamos
lidando com um tipo que, em princípio, pode ser realizado mais de uma vez. Entretanto,
um problema pode surgir quando se pensa em transmissões que envolvem improvisação
(não há gravação nem mixagem), pois é possível perguntar se em tais casos não seremos
capazes de especificar de qual tipo os sinais são instâncias realizadoras. Penso neste
caso que nossas dúvidas repousam na intuição de que improvisações são eventos únicos.
Creio que há dois modos de lidar com esse problema. O primeiro é conceder
que improvisações, são artes singulares e o argumento para tal é que, como no caso de
fotografias com exemplar único, os casos de recepção de improvisações são
documentações e não tanto realizações-signos das obras em questão. Entretanto, a
segunda solução para esse problema, a que eu prefiro, é negar que improvisações são,
em princípio, formas únicas de arte. Pois improvisações podem ser memorizadas e
interpretadas novamente pelos artistas originais ou por outros; elas podem transcritas,
como na tradição clássica e interpretadas novamente; e, na era da arte de massa elas
podem ser gravadas e/ou memorizadas por ouvintes que, por sua vez, podem transcrevê-
las e/ou reproduzi-las. Uma improvisação continua a existir enquanto execuções dela
puderem ser realizadas. Uma pintura deixa de existir quando o “original” é destruído;
mas, neste sentido, não há, estritamente falando, originais nos casos de musicais
improvisados ou produções teatrais. É conceitualmente possível replicar uma
improvisação, mas não é possível replicar pinturas dentro do conceito padrão de uma
pintura.
Improvisações não são, em princípio, formas artísticas singulares. Assim, o
modelo desenvolvido para caracterizar a arte cinematográfica pode ser aplicado para a
transmissão de improvisações. Quer dizer, vemos e/ou ouvimos instâncias receptoras de
realização do tipo de improvisação através da mediação de um signo-realização de um
sinal padrão de transmissão.
O que se pode dizer sobre gravações populares é semelhante ao que se sabe
sobre transmissões do gênero, simplesmente pela razão de que a maioria das
amplas, etc.), há outra arte, de massa, que difere em importantes aspectos daquilo que um auditório de
estúdio vê. E, em outro caso, em que não há estruturação adicional (o que alguns podem negar que seja ao
vivo), o que se acrescenta é uma documentação da arte teatral, algo equivalente a um cartão postal de
museu da Mona Lisa. Distinções similares podem ser extraídas com respeito às transmissões de rádio ao
vivo que irão incluir uma exibição de arte ao vivo para um auditório presente no estúdio e mesmo uma
documentação direta dela (se é que tal coisa exista) ou, mais comumente, uma arte de massa que foi
gravada, mixada e aprimorada eletronicamente para os ouvintes de rádio.
116 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
transmissões de música popular, já envolve gravação sonora. Na gravação sonora, um
microfone transforma as vibrações acústicas em pulsos elétricos que são ampliados e
convertidos em gravação, mecanismo eletromagnético que produz sinais na superfície
da fita do gravador. Este processo, por sua vez, é revertido em reprodução quando os
padrões magnéticos são convertidos novamente em vibrações, amplificadas por algum
tipo de caixa de som ou de fone de ouvido. Novamente, a obra musical, que é um tipo,
gera um signo-realização de instância receptora em minha sala de estar, via um padrão
de signo-realização, o qual neste caso é um modelo magnético ou signo de transmissão
disso.
Entretanto, como ocorre com algumas mídias que já examinamos, com a
gravação é possível distinguir entre dois casos distintos: peças criadas no estúdio por
mixagem, dublagem, etc., que podemos considerar como construídas como tipos de arte
de massa, e peças musicais que são virtualmente documentações simples de
performances musicais que existem independentemente22
. Apesar de aquela ter
provavelmente a melhor sustentação conceitualmente, e suspeito estatisticamente, para
ser considerada como música de massa propriamente, a última tem desempenhado um
papel inegável historicamente na evolução da cultura de massa, mesmo se o futuro
pareça pertencer à música de massa feita em estúdio23
.
Provisoriamente, então, o modelo de análise desenvolvido para destacar o
status ontológico do cinema parece funcionar em todos os sentidos para arte de massa
em geral. Artes de massa são múltiplas instâncias ou tipos de artes. Especificamente,
são tipos cujas instâncias de recepção dos signos-realizações são geradas por padrões ou
por padrões de transmissão, que são também signos-realizações. Isso serve para
distinguir as obras em questão de obras de arte singulares, de um lado, e de tipos de
artes cujos signos-realizações são gerados por interpretações. Claro, isso não separa as
obras em questão de certas obras que não são de arte, como noticiários de TV que
também são produzidos e transmitidos por importantes tecnologias de massa.
Noticiários televisivos e comédias compartilham do mesmo modo de ser, uma vez que
22
Muitos gostariam de negar a possibilidade do que eu chamo de gravações simples e, por isso, ver toda
gravação de som musical em termos da categoria construídos como tipos de arte de massa. Para uma
discussão mais aprofundada, apesar de controvertida, da significação ontológica da gravação de músicas
de rock, ver a obra de Theodore Gracyk, Rythm and Noise: The Aesthetics of Rock Music (Ritmo e
Ruído: a Estética da Música Rock) (Duke University Press, 1996). 23
Talvez valha a pena notar aqui que o rock tocado por bandas de garagem, bandas de bar e outras não
seja propriamente arte de massa em termos de minha proposta. Podem entrar como arte popular, mas não
é arte de massa, pois não é basicamente, transmitida a múltiplos locais de recepção simultaneamente.
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são da mesma espécie de tipos. Eles diferem em suas reivindicações ao status de arte.
III. OBJEÇÃO 1: TODA ARTE É MÚLTIPLA
Essa minha tentativa de isolar o status ontológico de obras de arte de massa,
em parte, sustentou-se em uma distinção entre artes singulares e múltiplas. Entretanto,
essa distinção foi questionada por Gregory Currie em sua importante e provocadora
monografia An Ontology of Art (Uma Ontologia da Arte)24
. Nela Currie defende a
Hipótese de Multiplicidade de Instâncias, de acordo com a qual, toda arte é múltipla25
.
Na visão de Currie não há artes singulares, não obstante nossas intuições acerca de
casos paradigmáticos de arte refinada, tal como pintura e escultura. Assim, como minha
teoria da ontologia da arte de massa depende de uma distinção entre artes singulares e
múltiplas, parece que ela se sustenta sobre uma distinção quando não há distinção
alguma.
Currie introduz sua defesa da Hipótese de Instância de Multiplicidade
argumentando que há uma pressuposição a favor de toda teoria ontológica de arte que
oferece uma perspectiva unificada do campo – que diz que, ou toda arte é singular ou
toda arte é múltipla. Além disso, é mais ou menos óbvio que é impossível o caso de que
toda arte seja singular. Considere a literatura. Assim, a hipótese de que todas as artes
sejam múltiplas tem melhor chance de fornecer uma teoria unificada do campo. Em
outras palavras, Currie pensa que há uma suposição favorável à visão de que as artes são
múltiplas em todos os sentidos. Assim, se não há considerações que ousem derrotá-lo, a
Hipótese de Instância de Multiplicidade é a teoria ontológica que devemos endossar.
Currie argumenta que é logicamente possível produzir molécula por molécula
versões de qualquer obra de arte refinada. Imagine uma máquina super avançada de
reprodução que pode replicar qualquer pintura, escultura e assim por diante. Desde que
a réplica é idêntica molécula a molécula à original, ela tem a mesma estrutura
perceptível que a original. E como a réplica é, até prova em contrário, dependente da
original no sentido de que cada aspecto na réplica é causalmente dependente de aspecto
correspondente no original, então a presença de aspectos na réplica são explicados pelos
mesmos fatores histórico, contextual e intencional que explicam a presença daqueles
aspectos no original. Assim, essas super impressoras produzem o mesmo estímulo
24
Gregory Currie, An Ontology of Art (New York: St Martin’s Press, 1989). 25
Ver capítulo 4 de An Ontology of Art.
118 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
estético que o original e permitem o acesso à significação histórica do original.
Portanto, elas são alvos perfeitamente satisfatórios para a atenção artística (i.e., estética
e histórica) do ponto de vista da apreciação. Isto é, elas estão no mesmo nível das
originais. De fato, Currie escreve como se toda arte refinada seja, por meio dessas
impressoras, arte de massa (pelo menos em princípio). Sua estratégia argumentativa,
com efeito, é desafiar oponentes a encontrar algo errado em sua conjectura.
Muito da energia de Currie é gasta mostrando o que é enganoso nas objeções
possíveis a sua teoria. Entretanto, eu penso que há algumas considerações bastante
decisivas às quais ele nunca se dirige e que indicam que a Hipótese de Instância de
Multiplicidade não oferece uma teoria geral para todas as artes. Por exemplo, Currie
nunca pensa sobre obras de arte com local específico – isto é, esculturas e obras de arte
arquitetônicas que recebem seu caráter do ambiente no qual são construídas e que são
alteradas com o tempo pelas condições dos ambientes que as cercam propositadamente
para constituir parte do que espectadores devem tomar como seu objeto de apreciação.
Isto é, obras de escultura e arquitetura interagem com locais específicos nos quais ou a
partir dos quais são construídas, e esse processo interativo pode ele próprio ser
intencionado como parte do que é significativo com relação à peça.
Spiral Jetty (Dique Espiral) de Robert Smithson foi construído em um local
devido nele haver certa corrente particular de algas que davam a ele o tom avermelhado
que ele buscava, e a forma do dique era uma resposta à formação dos arredores.
Sobretudo, parte do que era para ser apreciado na obra eram as diferentes aparências do
dique devido às alterações no nível da água. De modo similar, a situação de Lightning
Field (Campo de Raios) de Walter de Maria se devia à alta intensidade da atividade
elétrica no ambiente e devido ao modo como as montanhas em volta emolduravam
aquela atividade. E, é claro, parte da peça envolvia o modo pelo qual ela interagia com
as frequentes tempestades de raios26
.
Essas peças são representativas de um gênero importante na arte
contemporânea chamado de “arte terrestre” por alguns. Sua importância para a
discussão sobre artes singulares versus múltiplas, se deve, é claro, às específicas
vicissitudes que operam nessas obras ao interagirem com seus ambientes como fazendo
parte do que elas são. Essas obras são envolvidas com processos, não apenas com
26
Descrições e fotos das peças de Smithson e de De Maria podem ser encontradas em Earth Works and
Beyond: Contemporary Art in the Landscape (Obras na Terra e Além: Arte Contemporânea na
Paisagem), (New:York:Abbeville Press Publishers, 1989).
119 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
produtos. É difícil imaginar que, no universo físico conhecido, alguém poderia replicar
os exatos processos que ocorrem no local específico original das obras por meio de uma
super impressora de Currie. Suponhamos que uma super impressora pudesse replicar a
estrutura específica do local e do ambiente ao redor em um tempo T1. Ainda assim, é
impossível imaginar que fisicamente todos os eventos que ocorreram desde o tempo T2
através de Tn ocorrerão na suposta réplica. Mas se as histórias futuras da suposta réplica
não experimentarem os mesmos eventos da original, então as obras de arte não são
idênticas. É altamente inverossímil, dada a estrutura do universo físico, que as
reproduções das máquinas de Currie de obras de locais específicos farão exatamente
igual ao que os originais fazem. Mas como os processos climáticos podem ser um
elemento da contemplação artística nas obras de locais específicos, as obras não são, em
princípio, multiplicáveis no universo físico conhecido. Pois nele, a probabilidade de que
a obra com lugar original específico e a super impressora tivessem que passar pelas
mesmas transformações físicas, seria incrivelmente bizarro.
Tampouco essas considerações podem ser afastadas nos termos em que as
obras citadas possuem incontestável status artístico. O mesmo se pode dizer com base
nas obras primas de arquitetura famosas tais como a escola de arquitetura (Taliesin) e a
Casa da Cascata (Fallingwater) de Frank Lloyd Wright. Além disso, a especificidade do
local é sem dúvida um aspecto central da arquitetura dos templos gregos27
. De
passagem, Currie brevemente considera a arquitetura e presume que o meio ambiente é
irrelevante para a identidade da obra – talvez porque ele entende que se suas super
impressoras podem replicar ambientes ilimitados e suas vicissitudes, elas parecerão
altamente improváveis, mesmo em princípio. Mas ele simplesmente está errado se pensa
que um único ambiente e suas vicissitudes não podem ser parte de uma obra de local
específico. E esse erro implica no defeito da Hipótese de Instância de Multiplicidade
pelas razões que já expus.
Currie diz que há uma presunção em favor de uma teoria única da ontologia da
arte e que a visão de que toda arte é múltipla é a mais confiável teoria unificada. Não
vejo razão para acreditar que há tal presunção e, de qualquer modo, se os fatos fossem
diferentes, todas as reivindicações sobre tal presunção devem ser retiradas. Além disso,
penso que o fato de obras de arte de locais específicos do tipo a que aludi, mostra que
27
Ver, por exemplo, a obra de Vincent Scully The Earth, the Temple and the Gods: Greek Sacred
Architecture (A Terra, o Templo e os Deuses: a Arquitetura Sagrada dos Gregos), (New York: Frederick
A. Praeger, 1969).
120 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
tal pressuposição é extravagante. Há pelo menos estas obras singulares, e isso basta para
sustentar a distinção entre artes singulares e múltiplas que eu invoquei no
desenvolvimento de minha teoria da ontologia da arte de massa. Mesmo se super
impressoras fossem possíveis, ainda haveria um classe contrastante de obras de arte
singulares. Nem toda arte é, em princípio perfeitamente “copiável”. Há ainda uma
distinção com uma diferença notável aqui. Além disso, mesmo se fosse o caso de que
toda arte seja múltipla no modo concebido por Currie, minha teoria da ontologia da arte
de massa ainda seria informativa, pois eu esbocei um contraste entre as artes múltiplas
cujas instâncias de signos-realização são produzidas por interpretações e arte de massa
cujos signos-realização são necessariamente produzidos por padrões que são também
signos-realização, e/ou transmissões de signos-realizações.
IV. OBJEÇÃO 2: ARTE DE MASSA É IRRELEVANTE
Uma objeção à minha sustentação inicial neste ensaio de que arte de massa é
um tema valioso para a investigação estética, pode ser o de que a arte de massa já está
obsoleta. Nessa objeção, o tema não possui a urgência com a qual investi nele, desde
que ele acabará como mero detalhe no plano histórico. A arte de massa está de saída. O
trajeto revolucionário da tecnologia da comunicação se afasta da arte de massa e segue
em direção à arte personalizada. O consumidor de arte no futuro não fará parte do
público de massa. Consumidores em um futuro próximo serão abastecidos por
tecnologias para novas informações tais que possibilitarão personalizar suas opções
artísticas, em geral interativamente. De fato, talvez todos nos transformemos em artistas
na futura utopia cibernética.
Pode ser argumentado ainda que a arte de massa, como eu a concebo, não
passará de breve momento vacilante que precederá a gloriosa emergência do consumo
(e produção) de arte altamente individualizada e tecnológica. No limite, as perspectivas
da arte personalizada já se evidenciam na existência de canais a cabo e satélite para
espectadores individualmente, que podem selecionar entre canais de desenho, ficção
científica, comédias, história e assim por diante. Mas isso é só uma parte do que está
para vir. Sinergias entre tecnologias do telefone, do computador, do satélite e do vídeo
prometem uma era de consumo de arte personalizado que criará uma demanda para a
produção de artes tecnológicas que serão de incrível variedade. Quando o público de
121 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
massa desaparecer, isso quer dizer que a arte de massa desaparecerá com ele. E esse
evento está bem próximo.
Em minha opinião, tais profecias são excessivamente prematuras. O tipo de
“personalização” de que dispomos sob a forma de canais de comédia, de desenhos,
infantis e outros28
não provam que a arte de massa está acabando, pois esses canais
permitem escolher apenas entre tipos ou gêneros de arte de massa. As estruturas dos
programas em canais de comédia e de ficção científica não são de tipo realmente
diferente, porque todos são artes de massa produzidas para ser acessíveis ao espectador
comum inculto para rápido proveito com mínimo esforço. Os programas em questão
poderiam facilmente passar em redes que não são dedicadas a um único gênero de
programação. Eles são reunidos em um único canal, mas um canal que é ainda dirigido
para ser acessível a audiências numerosas e heterogêneas. Estruturalmente, os
programas desses canais são ainda exemplos de arte de massa. A montagem de Babylon
5 e Amazing Stories é do mesmo tipo empregado em Bewitched (A Feiticeira), The Dick
Van Dyke Show e em Os Jetsons.
Tampouco estou convencido de que a arte de massa esteja prestes a desaparecer
com o advento de tecnologias capazes de sustentar um consumo mais diversificado. Há
várias razões para isso. Primeiro, as economias de escala disponíveis nas mídias
tecnológicas fazem com que as indústrias da comunicação se inclinem para a produção
de “mídias de produção de massa, denominadores comuns e audiência de massa” 29
.
Essas indústrias não se dispõem a se livrar de pronto das vantagens dessas economias de
escala e dos lucros que elas proporcionam. Claro, esses interesses controlam não apenas
suas próprias produções de arte de massa, mas também importantes tecnologias de
divulgação e distribuição de mídia de massa. E podemos nos assegurar que elas não
matarão a galinha dos ovos de ouro.
Além disso, os públicos não mudarão apenas devido à alteração nos recursos
tecnológicos. O gosto pela arte facilmente acessível não desaparecerá, nem desaparecerá
o prazer que se tem em compartilhar essas artes com grande número de pessoas. Quer
dizer, a sociabilidade que a arte de massa proporciona de diferentes maneiras – como
tema comum de discussão e crítica, e como reservatório de símbolos culturais
compartilhados – fornece uma poderosa motivação para a persistência da arte de massa.
28
Há inclusive um canal de show de jogos, embora, é claro, não seja provedor de arte de massa na minha
concepção, uma vez que shows de jogos não são arte. 29
Ver W. Russell Neuman, The Future of Mass Audience (O Futuro do Público de Massa) (Cambridge:
Cambridge University Press, 1991), p. 13.
122 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
E, acrescente-se, está longe de evidente que vastas maiorias fiquem satisfeitas com as
notórias capacidades de interagir e selecionar que se evidenciam no horizonte30
. Assim,
há pressões em contrário econômicas e psicológicas que militam contra a emergência de
utopias de comunicação personalizada patrocinadas por seguidores da revolução na
informação. A arte de massa veio para ficar em um futuro previsível. E, assim, cabe aos
filósofos da arte começar a dar conta dela teoricamente31
.
Tradução: Inês Lacerda Araújo.
30
De modo semelhante, não há razão para prever que só porque a tecnologia está aí que as pessoas irão
explorá-la a ponto de se tornarem da Vincis, criando arte sem mecenas febrilmente em seus
computadores. Sejam qual forem as forças psicológicas e sociais que desencorajam as pessoas de
experimentar artisticamente por conta própria, agora não desaparecerão apenas devido ao advento de uma
nova tecnologia. 31
Gostaria de agradecer J.J. Murphy, Douglas Rosenberg, Patrick Maynard, Sally Banes, Annette
Michelson, David Bordwell e Harriet Brickman pelas sugestões concernentes a este ensaio. Claro, os
erros eventuais são meus, não deles.
123 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Resenha
124 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de
Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do
grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
Resenha por Fernanda Siqueira Miguens1
Recentemente publicado no Brasil, A Teoria dos Incorporais no Estoicismo
Antigo foi um texto decisivo para a filosofia francesa contemporânea. Vladimir
Jankélevitch, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Jaques Derrida, Maurice Blanchot e
Clément Rosset estão entre os autores que elaboraram reflexões decisivas a partir das
teses e do método proposto neste estudo. É famosa, por exemplo, a utilização de
Deleuze do pensamento estoico em Lógica do Sentido2. Apesar de sua suma
importância, esta tese de doutoramento de Bréhier é pela primeira vez vertida para uma
língua estrangeira, fato que reforça o mérito do Laboratório de Filosofia Contemporânea
da UFRJ.
Para falarmos na teoria dos incorporais, precisaremos entender a convergência
que este livro revelador guarda com outra obra famosa de Bréhier, a História da
filosofia.3 Um aspecto importante desse tema consistiria na observação cuidadosa da
trajetória do filósofo como historiador da filosofia, especialmente a partir do modo
como aborda os pensamentos marginais medieval e oriental. É preciso ressaltar que aí
reside o desejo de Bréhier de prescrever um caminho reflexivo que rompa com as
limitações e circunscrições inerentes ao próprio processo do pensamento, tal como
consolidado pela metafísica tradicional. Assim, de modo similar, podemos afirmar que é
com a demonstração da ideia de exprimível no estoicismo que ele pretende conter, à
força, a tendência do conceito ao confinamento, problematizando as consequências
políticas, cívicas, econômicas, monásticas ou ontológicas ao longo da história. Esta
extensão do pensamento conceitual metafísico em desdobramentos éticos representará
mais tarde uma marca inegável do conceito derridiano da desconstrução.
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro com
a dissertação "Aproximações entre os conceitos de verdade e feminino no sufismo". 2 DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo:
Perspectiva, 2003. 33
BRÉHIER, Émile. Histoire de La Philosophie I: Antiquité et moyen age. France: PUF, 1994.
125 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A origem da teoria dos incorporais remonta até os primeiros pensadores gregos,
cujas ideias foram posteriormente refutadas por Platão e Aristóteles, “que colocaram o
princípio das coisas nos elementos penetráveis ao pensamento claro”4. Para Bréhier, a
opção estoica deve-se ao fato de que sua doutrina nos chama a atenção para um
componente não assimilado pelo processo de ensino e aprendizado tal como erigido
pelo cânone ocidental, orientado pela lógica da identidade.
Sobre os estoicos, Bréhier volta-se para o modo como problematizam os
conceitos e edificam o pensamento - de acordo com as particularidades percebidas na
relação entre um nome e um objeto – ao patamar de uma ciência acerca da observação
dos significados. O método semiótico descrito no livro inclui ir além da camada externa
de um conceito, compreendido a partir da sua circunscrição em uma identidade, égide
da metafísica tradicional, em direção ao singular na realidade, em que seu caráter
múltiplo é respeitado.
O estoicismo inaugurou e aperfeiçoou, entre outras coisas, um método de leitura
a partir do qual o “elemento primordial da lógica aristotélica, o conceito5” coincide com
o “atributo do objeto que chamam de exprimível6”. Um conceito como belo, agora em
oposição à lógica aristotélica, é tão representativo da integridade de um tapete, por
exemplo, como um dos seus fios quando puxados ao léu. Rompe-se, deste modo, com a
categorização dos seres a partir de substância e acidentes, em que estes últimos
aparecem como termos acessórios do conceito.
De modo análogo, torna-se possível que nos voltemos à história da filosofia –
um retrato sobre como as partes tremularam e se consumiram em benefício do todo –
como a consequência narrativa daquilo que foi imune ao processo de aniquilamento das
multiplicidades em benefício da retificação do projeto político ocidental. Nem mesmo,
tal como apontado pela introdução do livro – feita por Fernando Padrão de Figueiredo e
José Eduardo Pimentel -, o conceito pode ser entendido como realidade pré-existente.
Isto faz com que o pensamento da metafísica seja entendido como encontrar um
caminho em que possa ser contemplado. Deste modo, o conceito se firma como unidade
do conhecimento, que, reunidos, produziriam os sistemas filosóficos.
4 BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de Fernando Padrão
Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do grego de Luiz Otávio
Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p. 19. 5 Idem, p. 35.
6 Idem, p. 36.
126 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
O pensamento estoico, no entanto, decompõe isto que seria entendido como o
“átomo” da metafísica, e mostra que esta unidade é constituída por partes menores,
arranjadas num encadeamento mais complexo e captadas a partir da noção de
acontecimento. O conceito, deste modo, não é uno, mas múltiplo.
REFERÊNCIAS
BRÉHIER, Émile. Histoire de La Philosophie I: Antiquité et moyen age. France:
PUF, 1994.
BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de
Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do
grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São
Paulo: Perspectiva, 2003.
127 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Revista RedescriçõesRevista on
line do GT de Pragmatismo e Filosofia
Norte-americana
Ano IV, número 2, 2013 ISSN: 1984-7157
Editor Adjunto: Frederico Graniço
Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de
Castro
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