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    Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012 311

    PESSOAS EM SITUAO DE RUA E DIREITOS PRESTACIONAISPEOPLE ON THE STREETS AND SOCIAL RIGHTS

    EMERSON GARCIA

    Recebido para publicao em junho de 2012.

    RESUMO:Aps identificar os elementos estruturais da dignidade humana, resultante da convergncia do serhumano com o estar humano, o estudo individualiza os dois direitos sociais cuja ausncia torna-se maisperceptvel em relao s pessoas em situao de rua.So eles a alimentao e a habitao. O primeiroassegura a continuidade biolgica, o segundo, uma existncia digna. Direitos dessa natureza, conquantodependam, regra geral, de integrao pela legislao infraconstitucional, que indicar as prestaes a seremoferecidas, os destinatrios em potencial e a respectiva fonte de custeio, podem ter o seu contedo integradopelo princpio mais amplo da dignidade humana e serem imediatamente exigidos dos poderes constitudos,inclusive com a interveno do Poder Judicirio.

    PALAVRAS-CHAVE:situao de rua; dignidade humana; habitao; alimentao; e discricionariedade.ABSTRACT:After identifying the structural elements of human dignity, resulting from the convergence of behuman with the human being, the study differentiates the two social rights whose absence becomes morenoticeable in relation to people in "the streets". They are the feeding and the housing. The first ensuresbiological continuity, the second, a dignified existence. Rights of this nature, though dependent, in general, ofthe integration by legislation, which will indicate the services to be offered, recipients and their potentialsource of funding, may have your content integrated by the broader principle of human dignity and beimmediately required of the constituted powers, including with the intervention of the Judiciary.

    KEY WORDS:homelessness; human dignity; housing; feeding and discretion.

    1. A aporia inicial

    O designativo inaugural de nossas consideraes, pessoas em situao de rua, daqueles

    cuja polissemia no passa despercebida. Na lngua portuguesa, o signo lingustico rua, do latim

    ruga,1 significando ruga e, em momento posterior, caminho, tem um sentido que no destoa de

    outros congneres, colhidos em lnguas diversas. Trata-se de uma via pblica que margeia

    propriedades ou outras reas pblicas, em um ou em ambos os lados, intermediada, ou no, por

    uma faixa exclusiva para pedestres.2Por extenso, tambm possvel falarmos nos habitantes de

    Doutor e Mestre em Cincias Jurdico-Polticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and PolicypelaEuropean Association for Education Law and Policy(Anturpia Blgica) e em Cincias Polticas e Internacionais pelaUniversidade de Lisboa. Membro do Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro e ex-Consultor Jurdico da ProcuradoriaGeral de Justia (2005-2009). Consultor Jurdico da Associao Nacional dos Membros do Ministrio Pblico (CONAMP).Assessor Jurdico do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Ministrios Pblicos dos Estados e da Unio (CNPG).Membro daAmerican Society of International Lawe da International Association of Prosecutors(HaiaHolanda).1TORRINHA, Francisco. Dicionrio Latino Portugus. 2 ed.. Porto: Grficos Reunidos, 1942, verbete ruga, p. 759.

    2 Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa. 2 ed.. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, verbete rua, p.

    1.525; Diccionario Enciplopedico Universal. Madrid: Cultural S.A., 2000, verbete calle; Parola Chiave. Dizionario di Italianoper Brasiliani. So Paulo: Martins Fontes, 2007, verbete via, p. 860; Larousse Dictionnaire Encyclopdique Illustr.Paris:Larousse, 1997, verbete rue, p. 1.396; Langenscheidts Growrterbuch. 5 ed.. Berlin: Langenscheidt, 2002, verbete

    Strae, p. 950.

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    uma rua, isso para fazermos meno quelas pessoas que residem em habitaes lindeiras a certa

    rua; ou em homem da rua, indicando como tal o cidado mdio, no importando quem seja. 3Essa

    ltima expresso, a depender do intrprete, tambm pode ser estendida pessoa sem moradia

    (homeless4, Wohnungslos5), que vaga pelas ruas sem ter para onde ir. Esse o sentido que

    atribuiremos s nossas breves reflexes. Trataremos da situao de inmeros seres, biologicamente

    enquadrveis na espcie humana, dotados de razo, isso ao menos no plano conceitual, e que, de

    modo voluntrio, ou no, vivem (vegetam, no fosse a confuso conceitual com a botnica,

    certamente seria uma opo a ser considerada) no espao pblico, seja, ou no, tecnicamente

    considerado uma rua (v.g.: parques, viadutos, rvores etc.).6

    E porque distinguir o homem da rua do homem da casa, quando ambos,

    indistintamente, so enquadrveis sob a epgrafe da espcie humana? A resposta simples: a

    civilizao contempornea h muito compreendeu que ao serhumano deve ser agregado o estar

    humano, surgindo, da convergncia desses elementos, a noo mais ampla de dignidade humana,

    to ao gosto de tantos quantos queiram enfatizar a necessidade de assegurar algo a algum ou de

    evitar que algo lhe seja subtrado. nesse momento que nos deparamos com a nossa aporia

    inicial. Se a dignidade resulta do sere do estarhumano, possvel afirmar que, quando esse ltimo

    elemento estiver ausente, ela tambm o estar. E aqui surge o questionamento: possvel

    reconhecermos a existncia de um ser humano sem dignidade? Parafraseando Hamlet, em sua

    entrada triunfal: [t]o be, or not to be, - that is the question.7Ou devemos reconhecer a privao da

    dignidade como um evento que, alm de temporrio e acidental, deve ser necessariamente

    superado com a maior brevidade possvel? Caso essa proposio seja defensvel, de quem o dever

    de restabelecer a dignidade? Da prpria pessoa temporariamente destituda de dignidade, o que a

    situaria a jusante da juridicidade, ou de terceiros (rectius: famlia, sociedade ou Estado)?

    3Larousse Dictionnaire..., verbete rue, p. 1.396.

    4Oxford Advanced Learners Dictionary. 4 ed.. 6 imp.. Oxford: Oxford University Press, 1991, verbete Street, p. 1271.

    5Langenscheidts Growrterbuch..., verbete Strae, p. 950.

    6 O Decreto n 7.053/2009, que instituiu a Poltica Nacional para a Populao em Situao de Rua, considerou, no

    pargrafo nico do seu art. 1, populao em situao de rua o grupo populacional heterogneo que possui em comum apobreza extrema, os vnculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistncia de moradia convencional regular, e

    que utiliza os logradouros pblicos e as reas degradadas como espao de moradia e de sustento, de forma temporria ou

    permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporrio ou como moradia provisria.7 The Complete Works of William Shakespeare. Hamlet, Price of Denmark. Act III, Secene I A Room in the Castle.

    Cleveland: The World Syndcate Publishing Company, s/d, p. 945 (960).

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    Essas questes, evidncia, ho de ser enfrentadas em qualquer arrazoado que se proponha

    a analisar, sob o prisma tico-jurdico, a situao das pessoas em situao de rua e dos direitos que

    podem opor a terceiros. A temtica, que assume propores dramticas em Estados de

    modernidade tardia, tamanho o contingente de pessoas nessa situao, no desconhecida dos

    primos ricos que emolduram o primeiro mundo. Para citarmos apenas um exemplo, bem

    conhecido, pelos germnicos, o tema Leben auf der Strae: Wohnungslos in Deutschland (Viver

    na Rua: os sem habitao na Alemanha). Trata-se de problema social de contornos universais, que

    varia em intensidade conforme o estgio de desenvolvimento civilizatrio de um dado povo; os

    fatores que concorrem para o seu surgimento, como os de natureza econmica e familiar; o modo

    como as estruturas estatais de poder o encaram, reconhecendo, ou no, a existncia de um dever

    assistencial em relao a essas pessoas, mxime quando o estado de penria consequncia de atos

    voluntrios e facilmente evitveis (v.g.: preguia, desonestidade, insensatez etc.); e da percepo

    que a sociedade tem ao seu respeito, partilhando, ou no, um sentimento de solidariedade.

    2. A dignidade das pessoas em situao de rua8

    Nos Estados formados a partir de sociedades democrticas e pluralsticas, h muito sereconhece a posio de primazia atribuda ao ser humano, justamente visto como fator de

    legitimao e fim ltimo da atuao estatal. A Repblica Federativa do Brasil no foge a essa regra.

    Afinal, sua ordem constitucional reconhece que (1) todo o poder emana do povo (art. 2), (2) a

    dignidade da pessoa humana um dos fundamentos do Estado (art. 1, III) e (3) a construo de

    uma sociedade livre, justa e solidria, com a promoo do bem de todos e a erradicao da pobreza

    e da marginalizao, objetivo fundamental (art. 3, I, III e IV).

    Ainda que a cincia poltica esteja longe de alcanar um ponto de convergncia quanto

    noo de povo, inegvel que esse signo lingustico alberga os indivduos que possuem um vnculo

    jurdico com o Estado, o que normalmente expresso pelo conceito de nacionalidade, alcanando

    tanto os residentes em seu territrio, como os que se encontram no exterior. nesse sentido que se

    8Parte das consideraes realizadas neste item reflete o constante de obra indita, do articulista, intitulada Interpretao

    Constitucional. A resoluo das conflitualidades intrnsecas da norma constitucional, resultante de tese de doutoramentoapresentada Universidade de Lisboa e aprovada, por unanimidade, por jri composto pelos Professores Doutores J. J.Gomes Canotilho e Fernando Bronze, da Universidade de Coimbra, e pelos Professores Doutores Jorge Miranda(orientador), Jorge Reis Novais, Carlos Blanco de Morais, David Duarte, Pedro Romano e Miguel Teixeira de Souza.

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    pode falar em povo brasileiro, povo alemo etc.. Embora seja factvel que nem todos os integrantes

    do povo participam da formao da vontade poltica (v.g.: so normalmente excludos do exerccio

    da cidadania os jovens de reduzida idade, os alienados mentais etc.), nele que o poder encontra a

    sua base de legitimao. Sartori, alis, j observara que, no plano etimolgico, democracia significa

    poder do povo.9No por outra razo que Abrahan Lincoln, no clebre discurso de Gettysburg, de

    19 de novembro de 1863, afirmara que democracia o governo do povo, para o povo e pelo povo.

    possvel reconhecer, sem maiores esforos argumentativos, que tanto o homem da rua, como o

    homem da casa, integramo conceito mais amplo de povo. Logo, o poder estatal emana de ambos.

    A reconhecida primazia dos direitos humanos no Estado de Direito, fruto da concepo de serhumano enquanto razo e fim do poder estatal, tem influenciado, intensamente, o delineamento do

    arqutipo constitucional. possvel afirmar que o discurso dos direitos do ser humano

    consubstancia a linguagem da prioridade.10Afinal, direitos so trunfos polticos11que ostentam

    inegvel fora no ambiente sociopoltico, norteando e limitando o exerccio do poder. O seu

    acolhimento, alis, alm de representar uma revoluo da conscincia humana,12 tem sido visto

    como o principal meio para se determinar a correo moral da ordem jurdica.13Sob a epgrafe dos

    direitos humanos14podem ser includos tanto a exigncia do facere, como do non facere, estatal ou

    privado, voltados preservao e garantia da digna existncia do ser humano. 15Direitos dessa

    natureza, em seus contornos mais amplos, tm sido vistos sob uma perspectiva dplice. Em um

    extremo, sua natureza seria puramente idealista ou moral, em que prevalece a ideia de inerncia ao

    indivduo, que a eles faria juscom abstrao de sua insero em uma disposio normativa formal.

    No extremo oposto, seriam objeto de reflexo e anlise sob uma tica jurgena, isso em razo de sua

    absoro por uma ordem jurdica, internacional ou interna, normalmente recebendo, no mbito

    9Thorie de la Democratie(Democrazia e definizioni). Trad. de HURTIG, Christiane. Paris: Librairie Armand Colin, 1973, p. 3.

    10CAMPBELL, Tom. Rights: a critical introduction.New York: Routledge, 2006, p. 3.

    11DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously.17 imp.. Massachussets: Harvard University Press, 1999, p. xi.

    12 IGNATIEFF, Michael. Whose Universal Values? The Crisis in Human Rights. The Hague: Foundation Horizon, 1999, p. 10-

    11.13

    Cf. STONE, Adrienne. Introduction, inCAMPBELL, Tom, GOLDSWORTHY, Jeffrey Denys e STONE, Adrienne Sarah Ackary.Protecting human rights: instruments and institutions.Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 1.14

    Sobre as distintas concepes de direitos humanos, vide: BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de COUTINHO,Carlos Nlson. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 17.15

    Cf. HAASHER, Guy. Law, Reason and Ethics in the Philosophy of Human Rights, in SADURSKI, Wojciech (editor). Ethicaldimensions of legal theory.The Netherlands: Rodopi, 1991, p. 141 (142).

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    desta ltima, o designativo de direitos fundamentais (rectius: direitos humanos positivados).16Um

    termo comum aos planos moral e jurgeno, internacional ou interno, o de dignidade da pessoa

    humana, que seria reconhecida e preservada com o respeito a esses direitos.17

    Como todo poder emana do povo, nada mais natural que considerar a dignidade humana

    um dos fundamentos do Estado, estrutura orgnica que surge a partir desse poder e responsvel

    pela sua projeo na realidade. Se a ilao simples, o mesmo no pode ser dito em relao

    densificao do significado dessa expresso, que apresenta textura essencialmente aberta, exigindo

    do intrprete a resoluo de uma srie de conflitualidades intrnsecas, todas subjacentes ao

    processo de interpretao constitucional. Trata-se de expresso incorporada a no poucas ordensconstitucionais, exigindo uma intensa participao do intrprete no delineamento do seu

    significado, o que decorre (1) da vagueza de sua base semntica, (2) de sua evidente polissemia;18(3)

    dos diversos valores que podem ser satisfeitos com a integrao do seu contedo ( v.g.: igualdade,

    justia social etc.); (4) dos distintos fins que podem ser alcanados sob os auspcios de sua

    observncia (v.g.: preservao da liberdade, da vida etc.); e (5) do modo de operacionaliz-la ( v.g.:

    no incurso na esfera jurdica individual, oferta dos direitos sociais imprescindveis garantia do

    mnimo existencial etc.). Essas caractersticas tornam o seu contedo to voltil quanto importante,

    mxime quando lembramos a sua permeabilidade aos influxos recebidos do contexto ambiental.

    A proteo da dignidade humana costuma enfrentar uma dificuldade bsica: a de identificar o

    que est, ou no, abrangido por ela. De um lado, corre-se o risco de ver como atentatrias

    dignidade humana meras afrontas ao bom gosto e moral comum. Do outro, a de no estender a

    sua proteo a valores efetivamente basilares espcie humana. Aqui, retrai-se em excesso. L,

    amplia-se ao ponto de amesquinhar. Face dificuldade conceitual, no incomum que, a partir das

    16 Cf. PREZ LUO, Antonio Henrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucin. 8a ed.. Madrid: EditorialTecnos, 2003, p. 30-31; WOLFGANG SARLET, Ingo. A Eficcia dos Direitos Fundamentais. Uma Teoria Geral dos DireitosFundamentais na Perspectiva Constitucional. 10 ed.. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 27-35; IDEM eFILCHTINER FIGUEIREDO, Mariana. Reserva do possvel, mnimo existencial e direito sade: algumas aproximaes, inWOLFGANG SARLET, Ingo e BENETTI TIMM, Luciano (org.). Direitos Fundamentais: oramento e reserva do possvel. 2ed., Porto Alegre: Livraria do ADVOGADO, 2010, p. 13 (15). Ferrajoli, por sua vez, associa o adjetivo fundamental aosdireitos reconhecidos universalmente [Sobre los Derechos Fundamentales, in CC n 15, julho-dezembro de 2006, p. 113(116-117)].17

    A dignidade humana seria o elemento de base de toda a ordem constitucional. Cf. ALEXANDRINO, Jos de Melo. AEstruturao do Sistema de Direitos, Liberdades e Garantias na Constituio Portuguesa, vol. II. Coimbra: EdiesAlmedina, 2006, p. 312.18

    Carmn Lcia Antunes Rocha destaca a ambiguidade e porosidade do conceito [O princpio da dignidade da pessoahumana e a excluso social, inRIP, n 4, 1999, p. 23 (24)].

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    experincias colhidas no ambiente sociopoltico, parcelas caractersticas da dignidade humana

    passem a receber proteo especfica, precisando os contornos da violao. o que se d, por

    exemplo, com a proibio da tortura, cuja principal funo preservar aspectos fsicos e morais

    inerentes dignidade de todo e qualquer ser humano.

    Com os olhos voltados essncia da pessoa humana e projeo dessa essncia na realidade,

    quer em sua individualidade, quer na inter-relao com a sociedade ou o Estado, possvel

    identificar dois elementos estruturais da dignidade que lhe caracterstica. O primeiro deles

    consiste na prpria existncia do ser humano, enquanto ser vivo e racional, que deve estar

    protegido de qualquer ameaa que possa comprometer a sua continuidade, quer essa ameaaprovenha de aes (v.g.: atentados integridade fsica), quer de omisses (v.g.: indiferena ao

    estado de penria). O segundo elemento se manifesta no estar humano ou, mais especificamente,

    na possibilidade de ser, fazer ou receber algo. No obstante as variaes de contedo, esse

    arqutipo bsico da dignidade costuma ser acolhido pela maior parte das construes tericas que

    se dedicam temtica, j que, rotineiramente, todas se preocupam em justificar as razes e os

    efeitos de sua proteo.

    Embora seja exato afirmar que os rtulos nem sempre expressam a essncia, pode-sereconhecer, sob uma perspectiva metodolgica, que as distintas concepes existentes a respeito da

    dignidade humana tendem a ser enquadradas, em suas linhas gerais, sob a epgrafe do naturalismo,

    do positivismo e da sensibilidade axiolgica. Enquanto os dois ltimos apresentam variaes de

    contedo de acordo com os circunstancialismos de natureza espacial e temporal, o que os situa no

    plano mais amplo do relativismo, o primeiro, lastreado em algum dos alicerces metafsicos

    (teolgico, racionalista, humanista etc.) que do sustentao s teorias dessa natureza, assume

    contornos universais. Essa classificao, importante frisar, alm de sua simplicidade estrutural,

    direciona-se ao alicerce de sustentao da dignidade humana, no propriamente essncia da

    faculdade e da proteo que oferece ao indivduo, o que justifica a no incurso em teorias como (1)

    a liberal, que valoriza a liberdade individual em um sentido negativo, obstando a interveno estatal;

    (2) a institucional, que direciona sua ateno no dimenso subjetiva dos direitos fundamentais,

    mas ao seu carter objetivo, garantia oferecida pelo aparato estatal; (3) a do Estado Social, que

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    atribui ao indivduo o direito percepo de direitos prestacionais; (4) a democrtica, que valoriza a

    participao poltica e a consequente moldagem do aparato estatal etc..19

    De acordo com as construes naturalistas, a proteo dignidade humana independe das

    variaes de contexto ou, mesmo, de sua expressa recepo pela ordem jurdica. Os direitos

    humanos, de importncia superior e precedente,20seriam atributos inatos de todo e qualquer ser

    humano, intangveis e inalienveis, acompanhando-o por toda a existncia, no apresentando

    variaes no tempo e no espao.21Configurariam o cerne do sistema moral de uma coletividade,

    antecedendo o processo poltico e se sobrepondo a ele.22Por serem preexistentes ao direito posto,

    de natureza voluntria, produzido pelo homem, somente seriam passveis de apreenso econhecimento, no de criao.

    inegvel que o naturalismo, em especial aquele de contornos teolgicos, com destaque para

    o cristianismo, teve influncia decisiva para a sedimentao dos direitos humanos. 23 O homem,

    imagem e semelhana de Deus, teve sua essncia valorizada e protegida. A Bblia, partindo de um

    referencial de f, apregoa o respeito a todo ser humano, a correo do pensar e do agir, e,

    consequentemente, a harmnica convivncia social. A universalidade apregoada pelo naturalismo,

    embora tenha o mrito de realar a igualdade entre todos os seres humanos, apresenta umavulnerabilidade que aconselha a adoo de construes alternativas.

    Em primeiro lugar, observa-se que nem todos os serem humanos esto em posio de

    irrestrita igualdade, o que decorre de suas qualidades intrnsecas ( v.g.: doentes mentais) ou do

    modo como interagem com o entorno (v.g.: consoante a sua condio financeira), da decorrendo o

    surgimento de aptides e necessidades distintas, com a consequente exigncia de tratamento

    diferenciado. Acresa-se que os povos no evoluem de modo linear, no sendo incomum que

    condies razoveis de vida em certos locais sejam consideradas insuficientes ou, mesmo,19

    Cf. BCKENFRDE, Ernest-Wolfgang. Teora e interpretacin de los derechos fundamentales, in Escritos sobre DerechosFundamentales. Trad. de REQUEJO PAGS, Juan e VILLAVERDE MENNDEZ, Igncio. Baden-Baden: Nomos, 1993, p. 45-71;e MIRANDA. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV. 4 ed.. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 49-50.20

    Cf. CRANSTON, Maurice. What Are Human Rights?, London: Blodey Head, 1973, p. 63.21

    Cf. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo ( Two Treatises of Government). Trad. de MARINS, Alex. So Paulo:Martin Claret, 2005, p. 23 e ss..22

    Cf. BARBOSA PINTO, Marcos. Constituio e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2009, p. 89.23

    Cf. BARZOTTO, Luiz Fernando. Pessoa e ReconhecimentoUma Anlise Estrutural da Dignidade da Pessoa Humana, inALMEIDA FILHO, Agassiz e MELGAR, Plnio (org.). Dignidade da Pessoa Humana. Fundamentos e Critrios Interpretativos.So Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 39 (40); e SEELMANN, Kurt. Rechtsphilosophie.4 ed.. Mnchen: Verlag C. H. Beck,2007, p. 210-211.

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    humilhantes, em outros. Na medida em que poucos direitos apresentariam contornos de indiscutvel

    relevncia e indispensabilidade para todos os seres humanos do planeta, a consequncia seria uma

    concepo demasiado tmida e restritiva a seu respeito. O prprio desenvolvimento dos direitos

    humanos correria o risco de estagnao, isso por que o tratamento linear terminaria por ver as

    posies de vanguarda adotadas em alguns Estados como meras concesses, no como verdadeiros

    paradigmas a serem seguidos.

    Em segundo lugar, constata-se que a conexo dos direitos humanos a alicerces metafsicos,

    embora tenha o mrito de conter os excessos do poder, superando a lgica formalista que tantos

    abusos gerou, no consegue superar as dificuldades argumentativas que surgem ao se tentarjustificar como realidades estranhas ordem jurdica (rectius: os direitos humanos) podem

    prescindir de uma relao jurdica e da interveno estatal para a sua plena operacionalizao.24

    Para as construes que encampam o positivismo enquanto mtodo, da decorrendo uma

    relao de contraposio s teorias naturalistas, fundamentos metafsicos no podem condicionar o

    contedo do direito, mas to somente informar a sua compatibilidade, ou no, com certos

    paradigmas tidos como relevantes. Os direitos humanos existem na medida em que reconhecidos

    pela ordem jurdica, sendo descritos, limitados e protegidos pelo aparato estatal. Construes dessanatureza, em seus contornos extremados, tanto reconheceriam a normalidade em se atribuir

    qualquer contedo aos direitos humanos, como em no se lhes atribuir contedo algum. Esse tipo

    de entendimento, como dito quando da anlise da virada axiolgica do constitucionalismo, mostrou-

    se de todo inaceitvel a partir do segundo conflito mundial, perodo em que as mais comezinhas

    garantias reconhecidas pela humanidade foram solenemente ignoradas com a chancela do direito

    positivo. No incomum, ademais, que a prpria ordem constitucional reconhea a sua

    incompletude e a possibilidade de o homem gozar de direitos outros que no aqueles que possam

    ser reconduzidos ao potencial expansivo dos seus enunciados lingusticos. A IX Emenda

    Constituio norte-americana, de 1791; o art. 5, 2, da Constituio brasileira de 1988; e o art. 16,

    1, da Constituio portuguesa de 1976 so ntidos exemplos da possibilidade de os direitos humanos

    (rectius: fundamentais) encontrarem a sua base de sustentao fora da Constituio formal. o caso

    24Cf. BIELEFELDT, Heiner. Philosophie der Menschenrechte, Grundlagen eines weltweiten Freiheitsethos. Frankfurt: Primus

    Verlag, 1998, p. 162.

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    dos direitos j sedimentados no ambiente sociopoltico, isso no exemplo norte-americano, e dos

    direitos colhidos no mbito do direito internacional, como ocorre no paradigma luso-brasileiro.25

    Esse quadro inicial, como se percebe, no nada animador. De um lado, a fluidez do

    naturalismo, refm do subjetivismo do intrprete e rfo da segurana jurdica. De outro, a

    neutralidade do positivismo, proslito do formalismo e indiferente aos valores subjacentes ao

    contexto social. A soluo alternativa, por sua vez, parte da premissa de que a preservao da

    dignidade humana no prescinde do direito e que o direito no deve renegar a plano secundrio os

    aspectos essenciais dessa dignidade.26 Essa linha argumentativa, que busca compatibilizar a

    segurana oferecida pelo texto normativo com a base axiolgica obtida no contexto, pressupe quetais aspectos essenciais sejam colhidos fora do direito e tornem-se operativos por meio dele.

    Malgrado seja exato afirmar, com Campbell,27 que a efetiva proteo dos direitos humanos

    pressupe a sua positivao em um direito concreto, internacional ou domstico, isso no importa

    em afirmar que sua existncia deve ser identificada com esses mecanismos de proteo. O discurso

    dos direitos humanos , essencialmente, um discurso axiolgico, no prescindindo de juzos

    valorativos de igual natureza. Em verdade, face aos inmeros atos de direito internacional voltados

    sua proteo, j possvel visualiz-los, ao menos em sua essncia, como um consenso de valores

    universal (universaler Werterkonsens).28

    Tambm aqui a dignidade vista como algo inerente ao ser humano,29 30delineada a partir

    dos valores sociais sedimentados no contexto, o que reala a sua perspectiva historicista 31 e a

    contnua sensibilidade renovao dos influxos sociais, denotando o seu acolhimento pela

    25Cf. MIRANDA. Manual..., Tomo IV..., p. 11-12.

    26Cf. MOUTOUH, Hugues. La dignit de lhomme en droit, in RDPSPn 1, 1999, p. 159 (165).

    27 Cf. CAMPBELL, Tom. Human Rights: Shifting Boundaries, in CAMPBELL, Tom, GOLDSWORTHY, Jeffrey Denys e STONE,

    Adrienne Sarah Ackary. Protecting human rights: instruments and institutions.Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 18(24).28

    RENSMANN. Wertordnung...,p. 11-12.29

    A DUDH, de 1948, um referencial da ideia de inerncia: o seu primeiro considerando dispe sobre o reconhecimentoda dignidade inerente a todos os membros da famlia humana e o art. 1 que [t]odas as pessoas nascem livres e iguaisem dignidade e direitos. Lembrando a tcnica adotada pela Constituio polonesa de 1997, aps a reforma de 2005, deve-se reconhecer que a dignidade inerente e inalienvel da pessoa a fonte dos direitos e das liberdades do homem e docidado (art. 30).30

    Cf. WOLFGANG SARLET, Ingo. Proibio de Retrocesso, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Sociais: manifestao deum constitucionalismo dirigente possvel, in LEITE SAMPAIO, Jos Adrcio (org.). Constituio e Crise Poltica. BeloHorizonte: Del-Rey, 2006, p. 403 (411).31

    Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito (Rechtsphilosophie). Trad. de CORTS, Antnio Ulisses. Lisboa: FundaoCalouste Gulbenkian, 2004, p. 435.

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    conscincia jurdica geral.32A dignidade deve ser vista como a manifestao vinculante de uma

    identidade, a identidade do ser humano, que dele no pode ser dissociada. Ostenta um valor, o

    mais alto de todos os valores afetos ao ser humano.33 E regula o comportamento de todos que

    interagem com ele.34 A dignidade reconhecida a todos os seres humanos pelo s fato de

    partilharem uma essncia comum, sendo dotados de razo e liberdade intelectiva.35No por outra

    razo que, ao afirmarmos que uma conduta ou situao especfica viola a dignidade humana,

    estaremos afirmando, ipso facto, que essa conduta ou situao atentatria prpria condio de

    pessoa humana.36

    importante ressaltar que a ideia de inerncia, situando na condio humana o fator dejustificao da dignidade, no reflete propriamente uma adeso s correntes naturalistas. Pode ser

    vista, em verdade, como uma das principais portas de penetrao da moral no direito. o valor mais

    importante e paradigmtico entre todos os valores.37A prpria subsistncia da vida em comunidade

    obsta que seus distintos membros deixem de ver, uns aos outros, como integrantes da espcie

    humana, sendo imprescindvel, de modo correlato, a observncia de todos os seus atributos. Em

    qualquer caso, necessrio que a inerncia da dignidade humana seja revalidada pela conscincia

    coletiva. Trata-se de conceito que demanda constante construo pela sociedade e que reflete a

    reafirmao de uma opo poltica.38

    O contedo atribudo dignidade humana tende a assumir grande universalidade quando

    analisado nos contornos mais amplos da generalidade e da abstrao. No extremo oposto, ao nos

    aproximarmos da especificidade e da concretude, as distines entre os regimes jurdico-polticos

    32 Cf. VIEIRA DE ANDRADE, Jose Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituio Portuguesa de 1976. 4

    a ed., reimp..

    Coimbra: Livraria Almedina, 2010, p. 50. No Teeteto de Plato, coube ao sofista Protgoras afirmar que o homem amedida de todas as coisas, das que so e das que so, enquanto so, das que no so, enquanto no so. Scrates, aoexplicar a essncia desse pensamento a Teeteto, afirma que cada coisa para mim do modo que a mim me parece (trad.

    de NOGUEIRA, Adriana Manuela e BOERI, Marcelo. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2005, 152a, p. 205). Na filosofiaplatnica, cabe a cada homem apreender a realidade de acordo com sua percepo. E a percepo, enquanto saber, comoafirmou Scrates no dilogo, no pode ser falsa (152c, p. 206); nada nunca , mas vai se tornando sempre (152e, p.206-207).33

    Cf. RENSMANN, Thilo. Wertordnung und Verfassung: das Grundgesetz im Kontext grenzberschreitenderKonstitutionalisierung. Tbingen: Mohr Siebeck, 2007, p. 18.34

    Cf. BARZOTTO. Pessoa e Reconhecimento, p. 39 (51).35

    Cf. DUDH, de 1948, art. 1. Na doutrina: MIRANDA. Manual..., Tomo IV..., p. 183.36

    Cf. BARZOTTO. Pessoa e Reconhecimento..., p. 39 (50-51).37

    Cf. COMPLAK, Krystian. Dignidad Humana como Categoria Normativa en Polonia, in CC n 14, janeiro-junho de 2006, p.71 (72).38

    Cf. CASTILHO, Ricardo. Justia Social e Distributiva. Desafios para concretizar direitos sociais. So Paulo: Editora Saraiva,2009, p. 60.

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    tendem a se acentuar. O direito vida um exemplo bem sugestivo a respeito das dissonncias que

    podem existir. Se o reconhecimento desse direito assume contornos nitidamente universais, no

    havendo Estado de Direito que apregoe a sua inobservncia, o mesmo no pode ser dito em relao

    ao modo de v-lo em um ambiente sociopoltico concreto, o que comea pela identificao dos seus

    titulares, no sendo incomum a existncia de restries em relao aos titulares desse direito (v.g.: a

    pessoa qualificada como combatente inimigo pode ser condenada morte mesmo em Estados que

    proscreveram essa pena; o doente terminal pode vir a sofrer a eutansia; e o feto pode ser objeto de

    aborto devidamente autorizado pela lei do Estado) e ao modo de proteg-lo (v.g.: com a mera

    absteno de incurses que possam viol-lo ou com a imperativa oferta de prestaes que

    assegurem a continuidade de uma vida digna). O relativismo tende a superar o universalismo que se

    busca atribuir aos direitos humanos, isso por existir uma inescondvel relao com as especificidades

    locais. Os direitos humanos, declarados (deklariert) ou convencionados (konveniert), por terem sua

    proteo associada ordem jurdica, esto sempre vinculados a um dado contexto situacional.39

    A impossibilidade de se atribuir contornos amplamente universais a significados que no

    prescindem, na sua formao, da influncia de uma base de valores obtida junto ao ambiente

    sociopoltico, evidencia que o sentido da dignidade humana nitidamente influenciado pelo que

    denominamos de teoria dos crculos. Essa teoria indica que a base de valores responsvel pela

    densificao da dignidade humana influenciada por fatores normativos e sociolgicos, que

    permitem a formao de entendimento a respeito das garantias, protees e prestaes

    consideradas imprescindveis para que cada indivduo tenha sua condio humana efetivamente

    reconhecida. Os crculos aqui referidos consubstanciam espaos pblicos de reflexo e relativa

    coeso, os quais, no obstante a autonomia que podem ostentar, no permanecem indiferentes

    entre si. Tangenciam-se nos seus aspectos basilares e distanciam-se nos perifricos.

    Tendencialmente, quanto maior o crculo, mais restritos sero os pontos de convergncia e mais

    basilares sero os contornos essenciais da dignidade humana. Nos crculos menores o efeito

    normalmente ser inverso. Em consequncia, possvel visualizar, na dignidade humana, um

    contedo essencial coexistindo com contedos perifricos, que podem ser expandidos ou retrados

    conforme as especificidades do respectivo crculo.

    39Cf. VAN DER VEN , J. J. M.. Ius Humanum: das Menschliche und das Rechtliche. Frankfurt Am Main: Metzner Verlag, 1981,

    p. 3.

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    Enquanto o centro absorve os seus elementos essenciais e intransigveis, a periferia densifica

    as especificidades de cada crculo, com especial realce para o nvel civilizatrio ali existente, que

    influi diretamente no modo de ver o ser humano e as suas relaes com o poder. Os crculos

    menores podem ser vistos como a representao de cada Estado de Direito, enquanto os crculos

    maiores denotam, em um primeiro momento, o direito regional, e, em um segundo momento, o

    direito internacional. Como os crculos maiores devem harmonizar individualidades muito mais

    numerosas, natural que a sntese por eles oferecida seja idntica aos valores adotados pelo mais

    moderado dos crculos menores, ao menos para que haja uma relao de compatibilidade entre

    eles, e que seja mais tmida que os valores prevalecentes no mais progressista dos crculos menores,

    em que a dignidade humana avana ao ponto de absorver valores que, embora tidos como positivos

    em outros Estados, no so considerados inerentes pessoa humana e muito menos indisponveis.

    possvel afirmar que os distintos fatores que compem a dignidade humana tero o seu

    epicentro estrutural oferecido pelo direito internacional, que indicar a sua essncia, vale dizer, o

    contedo mnimo que no pode ser descurado por qualquer integrante da sociedade internacional.40

    Se o universalismo dessa concepo, ao menos nos planos terico e ideolgico, parece ser lugar

    comum no Ocidente, o mesmo no pode ser dito em relao sua transposio para a realidade. Em

    no poucos aspectos, o universalismo tem sido visto como uma teoria do bloco dominante, que

    40 A preocupao com a preservao de uma esfera jurdica essencial preservao da dignidade humana facilmente

    perceptvel em convenes internacionais que vedam a supresso de certos direitos mesmo em situaes excepcionais. OPacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos, de 1966, em seu art. 4, aps autorizar que, em situaes excepcionais,que ponham em perigo a existncia da Nao, os Estados suspendam as obrigaes ali contradas, ressalta que no autorizada nenhuma derrogao do direito vida (art. 6

    oressalvada a aplicao da pena de morte nos casos previstos),

    do direito a no ser submetido a tortura nem a penas ou a tratamentos crueis, desumanos ou degradantes (art. 7 o), dodireito de no ser submetido escravido ou mantido em servido (art. 8

    o), do direito a no ser encarcerado pelo simples

    fato de no poder cumprir uma obrigao contratual (art. 11), do direito irretroatividade da lei penal incriminadora (art.15), do direito ao reconhecimento da personalidade jurdica (art. 16) e do direito liberdade de pensamento, deconscincia e de religio (art. 18). A Conveno Americana dos Direitos Humanos, de 1969, em seu art. 27, n

    o2, repete as

    restries constantes do Pacto dos Direitos Civis e Polticos e acrescenta a impossibilidade de supresso dos direitos dafamlia (art. 17direito ao casamento, igualdade de direitos entre crianas nascidas do casamento ou no etc.), do direitoao nome (art. 18), dos direitos da criana (art. 19), do direito nacionalidade (art. 20) e das garantias judiciaisindispensveis proteo dos direitos que no podem ser suprimidos (art. 27, n

    o2). A Conveno Europeia dos Direitos do

    Homem, de 1950, em seu art. 15, de modo mais tmido, somente no autoriza a derrogao do direito vida (art. 2o

    salvo em relao pena de morte resultante de atos ilcitos de guerra), do direito a no ser submetido a tortura nem apenas ou a tratamentos crueis, desumanos ou degradantes (art. 3

    o), do direito de no ser submetido escravido ou

    mantido em servido (art. 4o, pargrafo primeiro) e do direito irretroatividade da lei penal incriminadora (art. 7

    o).

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    pretende ver-se convertida em uma ideologia.41Essa ideologia, em verdade, teria como metavalor

    e ponto de equilbrio a paz universal.42

    Note-se que o ocidentalismo da concepo corrente de direitos humanos j fora realado por

    Boaventura de Sousa Santos,43 que alertou para a necessidade de ser estabelecido um dilogo

    multicultural, com contnua transmisso, absoro e valorao da informao. Esse dilogo somente

    seria vivel com o afastamento da lgica maniquesta da infalibilidade e o correlato reconhecimento

    da incompletude das distintas culturas. Nessa linha, necessrio um trabalho de traduo

    intercultural.44

    natural a presena de diferenas entre as tradies culturais de cada povo em relao ao

    reconhecimento e proteo dos direitos humanos, o que, segundo alguns, apontaria para a

    incompatibilidade de uma Declarao Universal dos Direitos Humanos com o relativismo cultural e

    moral. Afinal, entendimento contrrio importaria no reconhecimento de que a universidade dos

    direitos tem preferncia sobre a preservao de identidades culturais antidireitos.4546As diferenas,

    acompanhadas, ou no, de afrontas diretas, no afastam a constatao de que a crescente

    generalizao dos direitos humanos um caminho sem volta. O fato de partilharmos uma

    humanidade comum, como realado por Fukuyama,47

    alm de viabilizar o desenvolvimento de umauniversalidade comunicativa, torna possvel o estabelecimento de uma relao moral entre todos os

    seres humanos, isso apesar de o mundo ostentar caractersticas multiformes. Ainda que esse

    processo encontre resistncia em barreiras de natureza cultural (v.g.: a inferioridade da mulher em

    certas culturas), ideolgica (v.g.: a reminiscncia de concepes marxistas), econmica (v.g.: a

    41Cf. RUOTOLO, Marco, La Funzione Ermeneutica delle Convenzioni Internazionali sui Diritti Umani nei Confronti delle

    Disposizioni Costituzionali, in RDS no2, 2000, p. 291 (318).

    42Cf. RUOTOLO. La Funzione Ermeneutica..., in RDSn 2, 2000, p. 291 (318).

    43Por uma concepo multicultural de direitos humanos, inRCCS n 48, 1997, p. 11 (18-20).

    44SANTOS, Boaventura de Souza. A gramtica do tempo: para uma nova cultura poltica. So Paulo: Cortez, 2006, p. 127 ess.45

    FERNNDEZ-GARCIA, Eusbio. Dignidad Humana y Ciudadana Cosmopolita.Madrid: Editorial Dykinson, 2001, p. 66.46

    Exemplos bem sugestivos de diversidade cultural so aqueles relacionados questo religiosa. A Declarao dos Direitosdo Homem no Isl, adotada pela Organizao da Conferncia Islmica, no dia 5 de outubro de 1990, no Cairo, declara quea comunidade islmica a melhor comunidade que Deus criou e que o isl a religio natural do homem, o quedefinitivamente no se compatibiliza com a liberdade religiosa propagada pelo Ocidente. Cf. DOBELLE, Jean-Franois. LeDroit International et la Protection des Droits de LHomme, in PERRIN DE BRICHAMBAUT et alii. Leons de DroitInternational Public.Paris: ditions Dalloz, 2002, p. 371 (383-384). J a Carta da Liga rabe (arts. 32 a 35) estabelece ntidasdiscriminaes entre nacionais e estrangeiros por razes religiosas. Cf. NASCIMBENE, Bruno. LIndividuo e la TutelaInternazionale dei Diritti Umani, in CARBONE, Sergio M., LUZZATTO, Riccardo e SANTA MARIA, Alberto. Istituzionidi DirittoInternazionale. Torino: G. Giappichelli Editore, 2002, p. 269 (290).47

    Nosso futuro ps-humano: conseqncias da revoluo da biotecnologia, Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p. 10; e 23 e ss..

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    insuficincia de recursos para a implementao de polticas pblicas) e tcnica (v.g.: a insuficincia

    de ratificaes e as reservas apresentadas em atos internacionais convencionais),48 factvel a

    impossibilidade de os Estados desconsiderarem esse acquis internacional. So direitos que no

    podem ser subtrados do indivduo, ainda que a diversidade assuma propores extremas.49Mesmo

    que a dignidade humana apele a uma referncia cultural e social, essa referncia, quando

    contextualizada no mbito dos crculos menores, tende a ser relativizada em nome de uma

    dignidade humana na sociedade-mundo.50

    3. Prestaes sociais mnimas a serem garantidas s pessoas em situao de rua51

    Ao afirmarmos que o contedo da dignidade humana delineado sob a influncia da teoria

    dos crculos, de modo que a realidade subjacente a cada crculo concorra para a formao e, por

    imperativo lgico, para a operacionalizao da base de valores que lhe d sustentao, necessrio

    identificar, luz do nosso atual estgio civilizatrio, o que deve ser disponibilizado ao homem da

    rua para que ele tenha sua dignidade reconhecida. Nesse particular, podemos identificar as

    prestaes que so (1) essenciais sua continuidade biolgica, (2) essenciais a uma continuidade

    digna e (3) teis ao seu bem estar. Com os olhos voltados a essa tripartio, compreendemos aimportncia dos inmeros direitos sociais, de carter prestacional, consagrados na nossa ordem

    constitucional, e o modo de contornar a renitncia dos poderes constitudos na sua implementao.

    As prestaes essenciais continuidade biolgica so aquelas que se mostram

    instrumentalmente conectadas preservao do bem mais valioso de qualquer ser humano: a vida.

    A Constituio brasileira de 1988, ao reconhecer a inviolabilidade do direito vida, o fez no caput

    do seu art. 5, preceito que congrega os clssicos direitos de liberdade, assegurando a existncia de

    uma esfera jurdica individual imune a intervenes exgenas, promovidas pelo Estado ou por

    48Cf. DUPUY, Pierre-Marie. Droit International Public.6

    aed.. Paris: ditions Dalloz, 2002, p. 228-232; e GARCIA, Emerson.

    Proteo Internacional dos Direitos Humanos. 2 ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 54-55.49

    Cf. CARRILLO SALCEDO, Juan Antonio. Soberania de los Estados y Derechos Humanos en Derecho InternacionalContemporneo. 2

    a ed.. Madrid: Editorial Tecnos, 2001, p. 83-84; e FERNNDEZ SNCHEZ, Pablo Antonio. La Violation

    Grave des Droits de LHomme comme une Menace Contre la Paix, in RDISDP vol. 77, no1, 1999, p. 23 (27-29).

    50 Cf. GOMES CANOTILHO, Jos Joaquim. A Teoria da Constituio e as Insinuaes do Hegelianismo Democrtico, in

    Brancosos e Interconstitucionalidade Itinerrios dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional. 2 ed.. Coimbra:Edies Almedina, 2008, p. 163 (181).51

    Parte das consideraes realizadas neste item reflete o constante de obra indita, do articulista, intituladaInterpretao Constitucional. A resoluo das conflitualidades intrnsecas da norma constitucional.

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    outros particulares. Impedir que a vida seja afrontada no guarda correlao direta com a previso

    de prestaes materiais que assegurem a sua continuidade. Da a importncia dos direitos sociais, os

    quais, de acordo com o rol do art. 6 da Constituio de 1988, com a redao dada pela Emenda

    Constitucional n 64/2010, so a educao, a sade, a alimentao, o trabalho, a moradia, o lazer,

    a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos

    desamparados, oferecidos na forma da Constituio. Sob a tica da continuidade da vida, o mais

    desses direitos certamente a alimentao.

    Embora seja exato afirmar que a alimentao est diretamente conectada preservao da

    vida, tratando-se de prestao essencial continuidade biolgica, observa-se que o art. 6 daConstituio de 1988 fez meno expressa assistncia aos desamparados. O homem da rua,

    evidncia, um desamparado. J o art. 203, aps enunciar que a assistncia social ser prestada a

    quem dela necessitar, deixa evidente, em seus incisos, que o objetivo proteger pessoas que, por

    deficincias de natureza biolgica, mostrem-se inaptas a obter, sozinhas, a sua insero no ambiente

    comunitrio e, de modo correlato, a prpria subsistncia. o que ocorre com os portadores de

    deficincia, os idosos, as crianas e os adolescentes carentes. Apesar disso, tambm estabelece o

    objetivo de promover a integrao ao mercado de trabalho e de proteger a famlia, o que,

    evidncia, tambm tangencia o interesse do homem da rua.

    As prestaes essenciais a uma continuidade digna so aquelas que qualificam a vida do ser

    humano, permitindo-lhe estarhumano. Aquele que vive no espao pblico, ainda que receba uma

    cota diria de alimentos e consiga dar continuidade sua existncia, decididamente no ostenta

    uma situao compatvel com o atual nvel civilizatrio da sociedade brasileira. Afinal, factvel que

    o homem da rua est completamente alijado do convvio social, isso em razo das condies sub-

    humanas a que o conduzem a ausncia de abrigo e das facilidades correlatas ( v.g.: privacidade, gua

    encanada, vesturio adequado etc.). Considerando que os servios pblicos genericamente

    oferecidos a toda a populao tambm esto, ao menos no plano terico, ao alcance desses

    indivduos (v.g.: sade e educao), no h, aqui, especificidades dignas de nota em relao ao que

    rotineiramente escrito sobre essa temtica. A habitao, em verdade, o direito cuja ausncia

    mais perceptvel e sentida.

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    326 Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012

    A respeito da essencialidade de certas prestaes para a continuidade da existncia e para

    uma vida digna, merecem meno as construes tericas atreladas ao denominado mnimo

    existencial52 (ou mnimo social social minimum53). O mnimo existencial a parte operativa da

    dignidade humana, indicando as liberdades fundamentais que a integram, de modo a delinear uma

    esfera jurdica imune a intervenes exgenas, pblicas ou particulares, e as prestaes positivas

    que as estruturas estatais de poder no podem negar ao indivduo, isso sob pena de lhe ser negada a

    prpria essncia humana. Esse mnimo no congrega apenas as prestaes necessrias

    sobrevivncia. Exige um plus: que essas prestaes assegurem o pleno desenvolvimento da

    personalidade individual e que ofeream os meios necessrios a uma existncia digna e saudvel.54

    Essa aproximao entre dignidade (Wrde) e mnimo existencial (Existenzminimum) tem sido

    historicamente encampada em solo alemo. Com os olhos voltados a uma Lei Fundamental que

    praticamente passara ao largo dos direitos sociais,55os Tribunais alemes, principando pelo Tribunal

    Administrativo Federal (Bundesverwaltungsgericht),56 com ulterior desenvolvimento do Tribunal

    52 Cf. FORSTHOFF, Ernst. Der Staat der Industriegesellschaft. Dargestellt am Beispiel der Bundesrepublik Deutschland. 2

    ed.. Mnchen: Beck, 1971, p. 75; LOBO TORRES, Ricardo. O Mnimo Existencial e os Direitos Fundamentais, in RDA n 177,jul.-set,/1989, p. 20 (20 e ss.); IDEM. O Direito ao Mnimo Existencial. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2009, p. 37; eCALABRICH SCHLUCKING, Marialva. A Proteo Constitucional do Mnimo Imune. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2009,p. 25 e ss.. Vide, ainda, o art. 12 da Constituio sua de 1999.53

    Cf. RAWLS, John.A Theory of Justice.USA: Harvard University Press, (1971), reimp. de 2005, p. 370.54

    Cf. WOLFGANG SARLET, Ingo. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituio Federal de 1988. 8ed.. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 59-60.55

    A Grundgesetz alem, como se sabe, no contempla um rol de direitos sociais, mas, sim, pouqussimas previsesesparsas (v.g.: a proteo da maternidade e dos filhos GG, art. 6, n 4 e 5). No demais lembrar que esse fato noobstou a observncia desses direitos na Alemanha ou, mesmo, desautorizou a slida dogmtica dos direitos fundamentaiscunhada pelo Tribunal Constitucional Federal. A omisso, em verdade, tem colorido histrico: a grande distncia verificadaentre o extenso rol de direitos sociais contemplado na Constituio de Weimar e a sua concretizao junto classeproletria alem foi um dos fertilizantes para o surgimento do III Reich, da a preocupao em no se assegurar direitosque se reduziriam a um mero exerccio de retrica. Acresa-se, com Peter Badura ( Staatsrecht, Systematische Erluterungdes Grundgesetzes.3

    aed.. Mnchen: Verlag C. H. Beck, 2003, p. 90) e Dieter Grimm [Constituio e Poltica (Die Verfassung

    und die Politik). Trad. de CARVALHO, Geraldo de. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006, p. 250], que a doutrina

    prevalecente poca de Weimar, face necessidade de mediao legislativa, afastava o efeito direto dos direitos sociais,que no passariam de meras declaraes de intenes e de programa. Sob a gide da Lei Fundamental de 1949, oTribunal Constitucional Federal, a partir das clusulas constitucionais que impem o respeito ao ser humano e sualiberdade, reconheceu a existncia de obrigaes a serem imediatamente adimplidas pelo Estado. Em consequncia,embora no nvel do direito constitucional menos marcada como Estado social, a Repblica Federal alem Estado socialem grau mais intenso do que a Repblica de Weimar, que se mostrava, no nvel do direito constitucional, socialmente mais

    forte (GRIMM. Constituio..., p. 251).56

    BVerwGE 1, 159 (161), 1954. Nesse julgamento, realizado em momento anterior edio da Lei Federal sobreAssistncia Social (Bundessozialhilfsgesetz - BSHG), o Tribunal, invocando a necessidade de proteo da dignidade humanae do direito vida, reconheceu s pessoas carentes o direito subjetivo ao recebimento de auxlio material a cargo doEstado. A imperativa necessidade de preservao da dignidade humana, em especial nos Pases de modernidade tardia,torna imperativa a adoo de medidas de insero social, o que permite divisar, no mbito das estruturas estatais depoder, a paulatina formao de uma opo pelos pobres, que passa a direcionar a formao, a interpretao e a

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    Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012 327

    Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht),57passaram a visualizar a exigibilidade de direitos

    prestacionais que encontravam sua base de sustentao na unio ( Verbindung) entre a clusula da

    dignidade humana (Menschenwrden - GG, art. 1o, no 1) e o princpio do Estado Social de Direito

    (Sozialstaat - GG, art. 20, no 1).58 Com isso, a dignidade humana, alm de orientar a produo

    normativa, atuando como mandado constitucional endereado ao legislador; direcionar a

    interpretao e a integrao da ordem constitucional, assumindo contornos de princpio diretor,

    tambm poderia dar origem a verdadeiros direitos subjetivos, permitindo que a pessoa humana

    exija do Estado as prestaes mnimas e imprescindveis a uma existncia digna.59

    Na temtica dos direitos sociais, a Constituio brasileira de 1988 apresenta uma estruturasensivelmente distinta da Lei Fundamental alem de 1949: enquanto esta ltima deles praticamente

    no trata, aquela os prev em profuso. Apesar de o paradigma brasileiro estabelecer um

    balizamento mais detalhado, ambos assemelham-se na dependncia de integrao pela legislao

    infraconstitucional, que delinear as prestaes a serem oferecidas pelo Estado, os requisitos que

    condicionaro a sua percepo pelos interessados e a respectiva fonte de custeio. Outra semelhana

    reside na funcionalidade atribuda dignidade humana: se os Tribunais alemes extraram o direito

    ao mnimo existencial diretamente de sua essncia, o Supremo Tribunal brasileiro a utilizou para

    conferir eficcia plena aos preceitos constitucionais que versavam sobre os direitos fundamentais,

    suprindo a omisso do legislador infraconstitucional.60

    efetivao dos padres normativos estatais. Cf. DEINHAMMER, Robert. Ist eine Option fr die Armen in derRechtwissenschaft?, in ARS, v. 93, n 4, 2007, p. 551 (551 e ss.).57

    BVerfGE40, 121 (133), 1975 (Weisenrente Urteil). De acordo com o Tribunal, o oferecimento de assistncia social aoscidados, que tenham suas atividades limitadas pela precariedade de suas condies fsicas e mentais, no podendo provera prpria subsistncia, uma das obrigaes essenciais do Estado Social, que deve assegurar-lhes as condies mnimaspara uma existncia digna, e ainda adotar as medidas necessrias para integr-los na sociedade.

    58 Sobre a evoluo da temtica no direito alemo, vide: NEUMANN, Volker. Menschenwrde und Existenzminimum, inBREUER, RDIGER et alii (org.).Neue Zeitschrift fr Verwaltungsrecht,1995, p. 426 (426 e ss.). Especialmente em relao influncia do pensamento de Forsthoff, vide: RENSMANN. Wertordnung..., p. 303-304.59

    As distintas funcionalidades da dignidade humana foram objeto de desenvolvimento por Albrecht Weber. LEtat social etles droits sociaux en RFA, in RDCn

    o24, 1995, p. 677 (680).

    60 Apesar de a Constituio de 1988 (art. 196) assegurar o direito sade genericamente a todos, sem indicao das

    prestaes a serem oferecidas e dos recursos que permitiro a sua satisfao, o Supremo Tribunal Federal, integrando asua eficcia com o imperativo dever de o Poder Pblico assegurar o direito vida (art. 5, caput) e dignidade (art. 1, III),reconheceu que as pessoas carentes, portadores do vrus HIV, tinham o direito pblico subjetivo de receber,gratuitamente, os medicamentos necessrios e indispensveis sua sobrevivncia (STF, 2 Turma, RE-AgR n 271.286/RS,rel. Min. Celso de Mello, j. em 12/09/2000, DJ de 24/11/2000). O mesmo entendimento foi adotado em relao a pacientescom esquizofrenia paranide e doena manaco-depressiva crnica, com episdios de tentativa de suicdio, destitudas derecursos financeiros (STF, 2 Turma, RE n 393.175/RS, rel. Min. Celso de Mello, j. em 12/12/2006, DJ de 02/02/2007).

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    328 Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012

    O Tribunal Constitucional portugus tambm associou a dignidade humana ao mnimo

    existencial, o que permitiu a integrao de eficcia do art. 63, n 1 e 3, da Constituio de 1976, que

    versa sobre o direito segurana social, limitando a prpria liberdade de conformao do legislador

    constitucional. O Tribunal tem conferido especial realce existncia, ao lado dos direitos positivos,

    de natureza prestacional, de direitos negativos, o que obstaria qualquer ao estatal que pudesse

    afrontar a garantia do mnimo existencial. Assim entendeu, por exemplo, ao declarar a injuridicidade

    da limitao dos beneficirios do rendimento social de insero61 e da possibilidade de ser

    penhorada uma parte das prestaes peridicas pagas, qualquer que seja o valor, a ttulo de

    aposentao.62

    Como requisito necessrio preservao da essncia da pessoa humana, o mnimo existencial

    h de ser indistintamente assegurado queles que estejam no interior do respectivo crculo

    axiolgico, o que lhe atribui contornos igualitrios. Deve ser estendido a todos, com abstrao das

    especificidades de ordem pessoal e do mrito de cada indivduo.

    Por fim, tem-se as prestaes teis ao homem da rua, aumentando o seu bem-estar. Sob

    essa epgrafe estaro normalmente includas prestaes ontologicamente idnticas s anteriores,

    mas que apresentam distines de ordem qualitativa (v.g.: alimentao de melhor qualidade,habitao mais suntuosa, tratamento mdico realizado por especialistas renomados etc.). Nesse

    caso, sentido, em toda a sua intensidade, o alicerce ideolgico que confere sustentao aos

    61Acrdo n 509/2002, inDirio da Repblica I-Srie A, n 36, de 12/02/2003, p. 905-917. Nesse julgamento, o Tribunal,

    em sede de controle preventivo de constitucionalidade, entendeu que o Decreto da Assembleia da Repblica, querestringia o alcance do rendimento social de insero a apenas uma parte dos jovens com idade entre 18 e 25 anos,

    alcanados pelo antigo rendimento mnimo garantido, afrontava o direito a um mnimo de existncia condigna. Cf.VIEIRA DE ANDRADE. Os Direitos Fundamentais..., p. 398-399; e MEDEIROS, Rui. Anotaes ao art. 63, inMIRANDA, Jorge eMEDEIROS, Rui. Constituio Portuguesa Anotada, Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 639-640.62

    1aSeco, Acrdo n

    o318/99, Proc. n

    o 855/98, Conselheiro Vtor Nunes de Almeida,

    j. em 26/05/1999, Acrdos do

    Tribunal Constitucional, 43o vol., 1999, p. 639 a 646 (646). Nesse julgamento, prevaleceu o entendimento de que a

    sobrevivncia digna do trabalhador somente seria alcanada com o atendimento do mnimo dos mnimos. Partindo dessapremissa, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade do art. 824, n

    os1 e 2, do Cdigo de Processo Civil, na medida em que

    permite a penhora de at 1/3 das prestaes peridicas pagas a ttulo de aposentao ou de outra qualquer regalia social,

    seguro, indemnizao por acidente ou renda vitalcia, ou de quaisquer outras penses de natureza semelhante, cujo valor

    no seja superior ao do salrio mnimo nacional ento em vigor, por violao do princpio da dignidade humana contido no

    princpio do Estado de direito que resulta das disposies conjugadas dos artigos 1, 59, n.2, alnea a e 63, n.s 1 e 3, da

    Constituio . No mesmo sentido: Plenrio, Acrdo no177/02, Proc. n

    o546/01, rel. Cons. Maria dos Prazeres Pizarro

    Beleza, j. em 23/04/2002, Acrdos..., 52ovol., 2002, p. 259 a 271.

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    Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012 329

    regimes econmicos de livre iniciativa, em que se privilegia o mrito individual em detrimento da

    igualdade plena entre todos os integrantes do organismo social.63

    Se os contornos nucleares da dignidade humana no prescindem das prestaes essenciais

    continuidade biolgica e a uma vida digna, preciso analisar a possibilidade de os poderes

    constitudos serem compelidos a oferec-las, bem como os legitimados a pleitear tais providncias e

    os bices tradicionalmente opostos s pretenses formuladas.

    4. A exegibilidade dos direitos prestacionais

    O reconhecimento de que a preservao da dignidade humana no prescinde da concorrncia

    do sere do estarhumano evidencia, ao menos em relao ao homem da rua, a premncia de dois

    direitos sociais verdadeiramente basilares, que so a alimentao e a habitao: o primeiro

    essencial continuidade da vida, o segundo, vida digna. O primeiro problema a ser enfrentado diz

    respeito ao contedo dessas prestaes e ao modo de disponibiliz-las s pessoas que vivam ao

    relento, perambulando pelo espao pblico. Por certo, o ideal seria fornecer a cada pessoa uma

    habitao individual e um quantitativo de alimentos que se mostrasse suficiente ao seu sustento e,

    se fosse o caso, ao de sua famlia, pois a penria, como sabido por todos, costuma ser uma das

    causas de dissoluo do ncleo familiar.

    Se o objetivo nobre e no se pode censurar quem busca materializ-lo na realidade, a

    verdade que o Estado brasileiro apresenta incontveis carncias nos servios pblicos que oferece

    populao. O dficit habitacional apenas uma delas, sendo elevado o quantitativo de pessoas,

    distribudo por incontveis comunidades carentes, que se aglomera em moradias de inegvel

    precariedade. Acresa-se que a atuao do Estado deve ser sempre subsidiria, devendo estimular

    que o prprio indivduo desenvolva suas aptides pessoais, de modo a obter a sua integrao ao

    mercado de trabalho. Esse, como dissemos, um dos objetivos da assistncia social.

    A situao de rua deve ser vista como um estgio de profunda humilhao e desresp eito

    condio humana, devendo ser imediatamente contornada pelo Poder Pblico. Essa atuao, por

    sua vez, deve ser sempre transitria, subsistindo enquanto o indivduo no consiga se reestruturar e

    63Sobre a desigualdade de meios entre os homens, vide Sieys, Abade. Exposio Refletida dos Direitos do Homem e do

    Cidado. Trad. de GARCIA, Emerson. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 57-58.

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    reingressar em um padro de normalidade. A transitoriedade h de influenciar o modo de

    oferecimento das prestaes a que temos nos referido. Ainda merece referncia que a execuo

    desse munus deve ser antecedida por um levantamento, realizado pelas estruturas estatais de

    poder, a respeito do quantitativo de pessoas em situao de rua; das regies, urbanas ou rurais,

    em que se encontram; e das causas que conduziram a esse estado de coisas. O levantamento inicial,

    como intuitivo, deve ser constantemente atualizado.

    A partir do momento em que o levantamento realizado, a soluo que se mostra mais

    compatvel com a realidade brasileira parece ser a construo de centros de apoio, com habitaes

    coletivas, divididas por sexo, e estruturas individuais para o atendimento das famlias que seencontrem em situao de rua, de modo a preservar o agregado familiar. Nesses centros, as

    pessoas, alm de abrigo e alimentao, recebero atendimento especializado, por equipe

    multidisciplinar, que ter a funo de realizar (1) a reconstruo da sua autoestima, (2) a

    aproximao com a famlia, isso nas situaes de abandono de lar e (3) a insero no mercado de

    trabalho, se necessrio com a qualificao profissional.

    soluo ora alvitrada certamente ser combatida com o (tradicional) argumento de que,

    mngua de lei detalhando a natureza das prestaes a serem oferecidas, no seria possvel exigi-lasdos poderes constitudos. Esse argumento, alm de inusitado, desafia o velho brocardo de que a

    ningum dado beneficiar-se com a prpria torpeza. No demais lembrar que, a teor dos incisos

    I, IX e X do art. 23 da Constituio, competncia comum da Unio, dos Estados, do Distrito Federal

    e dos Municpios zelar pela guarda da Constituio, promover programas de construo de moradias

    e a melhoria das condies habitacionais, bem como combater as causas da pobreza e os fatores de

    marginalizao, promovendo a integrao social dos setores desfavorecidos.

    Ainda que a Lei n 8.742/1993, diploma que dispe sobre a organizao da assistncia social,no defina, detalhadamente, as prestaes a serem oferecidas, ela reconhece que (1) a poltica de

    assistncia social deve prover o mnimo social (art. 1); (2) a assistncia social tem por objetivo a

    proteo social, que visa garantia da vida (art. 2, I); (3) o enfrentamento da pobreza deve ser

    norteado pela universalizao dos direitos sociais (arts. 2, pargrafo nico e 4, II); (4) o Servio

    nico de Assistncia Social (SUAS) tem por objetivo afianar a vigilncia socioassistencial e a

    garantia de direitos (art. 6, VII); (5) a proteo social especial tem por objetivo contribuir para a

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    Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012 331

    reconstruo de vnculos familiares e comunitrios, a defesa de direito, o fortalecimento das

    potencialidades e aquisies e a proteo de famlias e indivduos para o enfrentamento das

    situaes de violao de direitos (art. 6-A, II), o que deve ser feito por intermdio do Centro de

    Referncia Especializado de Assistncia Social Creas - (art. 6-C, 2); (6) os Estados, o Distrito

    Federal e os Municpios podero conceder benefcios eventuais aos cidados e s famlias em

    virtude de situaes de vulnerabilidade temporria (art. 22, capute 1); (7) devem ser oferecidos

    servios socioassistenciais, tal qual definidos em regulamento, considerados como tais as atividades

    continuadas que visem melhoria de vida da populao e cujas aes, voltadas para as necessidades

    bsicas, observem os objetivos, princpios e diretrizes estabelecidos da Lei n 8.742/1993 (art. 23,

    caput, e 1), que devem incluir os programas de amparo s pessoas que vivam em situao de

    rua (art. 23, 2, II); (8) os projetos de enfrentamento da pobreza devem subs idiar, financeira e

    tecnicamente, iniciativas que garantam, aos grupos populares, meios, capacidade produtiva e de

    gesto para melhoria das condies gerais de subsistncia e elevao do padro da qualidade de

    vida (art. 25, caput); e (9) a atuao da Unio se dar em carter supletivo (art. 34).

    Portanto, todos os entes federados tm a responsabilidade de restabelecer a dignidade das

    pessoas em situao de rua. Em primeiro lugar, cumpre observar que o oferecimento de

    alimentao e abrigo consubstancia o mnimo dos mnimos. Em outras palavras, permite, apenas,

    que o indivduo continue a viver e apresente as caractersticas que delineiam o estilo de vida da

    espcie humana no crculo em que est inserido. Assim, a exemplo do que foi feito aqui e alhures,

    nesse caso, a exigibilidade dos direitos sociais referidos no art. 6 da Constituio de 1988 decorre

    da integrao do seu contedo pela necessidade de preservao da dignidade humana. Em segundo

    lugar, deve-se observar que a presena de uma equipe multidisciplinar decorre justamente da

    exigncia de que a assistncia social tenha carter transitrio, de modo a no perpetuar a situao

    de carncia da pessoa necessitada. Sem a equipe multidisciplinar, os centros de apoio se

    transformariam em verdadeiros depsitos de indigentes, afastando qualquer esperana de

    reinsero social.

    com os olhos voltados a essa responsabilidade assistencial que deve ser interpretado o

    Decreto n 7.053/2009, que instituiu a Poltica Nacional para a Populao em situao de Rua.

    Apesar de o seu art. 2 ter previsto que essa poltica seria implementada, de forma descentralizada e

    articulada entre a Unio e os demais entes federativos que a ela aderirem por meio de instrumento

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    EMERSON GARCIA

    332 Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012

    prprio, possvel afirmar que no h qualquer espao de deciso quanto integrao do

    respectivo ente federado a essa poltica ou implementao, ou no, das medidas que delineiam a

    sua estrutura bsica. Afinal, no se pode transigir com a proteo dignidade humana.

    De acordo com o Decreto n 7.052/2009, tm-se, como princpios da referida poltica, o

    respeito dignidade da pessoa humana e o direito convivncia familiar e comunitria (art. 5, I e

    II); como diretriz, a promoo dos direitos civis, polticos, econmicos, sociais, culturais e ambientais

    (art. 6, I); e, como objetivos, assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos servios e

    programas que integram as polticas pblicas de sade, educao, previdncia, assistncia social,

    moradia, segurana, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda, bem como proporcionar o acesso daspessoas em situao de rua aos benefcios previdencirios e assistenciais e aos programas de

    transferncia de renda, na forma da legislao especfica, alm de implementar aes de segurana

    alimentar e nutricional suficientes para proporcionar acesso permanente alimentao pela

    populao em situao de rua alimentao, com qualidade (art. 7 I, IX e XIII). A rede de

    acolhimento temporrio, consoante o art. 8, dever observar limite de capacidade, regras de

    funcionamento e convivncia, acessibilidade, salubridade e distribuio geogrfica das unidades de

    acolhimento nas reas urbanas, respeitado o direito de permanncia da populao em situao de

    rua, preferencialmente nas cidades ou nos centros urbanos.

    Alm de definir as prestaes a serem oferecidas s pessoas carentes, tambm caberia lei,

    mais especificamente lei oramentria, autorizar a realizao da despesa pblica e indicar as

    receitas a serem utilizadas para custe-la. Essa, alis, a sistemtica constitucional, bem explicitada

    no art. 167 da Constituio de 1988 e na Lei n 4.320/1964. Alm dessa impossibilidade de ordem

    jurdica, consistente na vedao ao incio de programas ou projetos no includos na lei

    oramentria anual, h outra, de ordemftica, que se reflete na prpria inexistncia de recursos

    que possam financiar esse tipo de prestaes. Ambas podem ser enquadradas sob a epgrafe mais

    ampla da reserva do possvel, argumento tradicionalmente suscitado pelos poderes constitudos

    para se esquivar de suas obrigaes.

    Em relao reserva do possvel de ordem jurdica, observa-se a mesma deturpao presente

    no argumento de que somente a lei poderia definir as prestaes a serem oferecidas ao homem da

    rua. Do mesmo modo que a clusula constitucional de proteo dignidade humana autoriza a

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    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012 333

    integrao do contedo do direito alimentao e habitao, tambm ela deve direcionar a

    interpretao da lei oramentria, de natureza infraconstitucional. Assim, caso o Chefe do Poder

    Executivo e o Poder Legislativo, o primeiro ao apresentar o projeto de lei oramentria, o segundo

    ao vot-lo, por um lapso, esqueam de direcionar dotaes oramentrias para fazer face

    realizao de projetos envolvendo as pessoas em situao de rua, a soluo ser ajustar a lei

    Constituio e no o contrrio. Assim, caber ao Poder Executivo, na gesto do oramento,

    determinar o remanejamento das dotaes oramentrias necessrias realizao dos programas

    assistenciais aqui referidos.

    Situao mais delicada diz respeito reserva do possvel de ordem ftica, em que,verdadeiramente, no h disponibilidade de caixa para realizar os programas almejados. Em

    situaes dessa natureza, no h como se compelir o Poder Pblico a realizar despesas que no

    pode custear. Apesar dessa concluso ser verdadeira e de os atos dos agentes pblico estarem

    amparados pela presuno de veracidade ao menos os manuais nos ensinam isso -, imperativo

    que essa situao seja devidamente provada no curso da relao processual. Afinal, como dispe o

    art. 333, II, do Cdigo de Processo Civil, o nus da prova compete ao demandado quanto

    existncia de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

    Para se chegar concluso de que inexistem recursos disponveis, preciso verificar, em

    carter preliminar, como sero gastos aqueles existentes. Afinal, recursos, ainda que em pequena

    quantidade, sempre existiro. Isso significa dizer que, se os recursos so limitados e o administrador

    deve decidir quais projetos sero realizados e quais sero adiados, preciso estabelecer uma ordem

    de precedncia entre eles. Conquanto se reconhea que essa ordem de precedncia ser

    ordinariamente definida a partir dos juzos valorativos realizados pelo administrador, no se pode

    negar o escalonamento hierrquico que emerge do prprio texto constitucional. o caso, por

    exemplo, da prioridade absoluta que o art. 227, caput, da Constituio atribui aos direitos das

    crianas e dos adolescentes. O mesmo pode ser dito em relao s prestaes essenciais

    continuidade biolgica do ser humano e a uma continuidade digna. Despesas dessa natureza

    ostentam evidente precedncia em relao a outras que no se mostram essenciais estrutura

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    EMERSON GARCIA

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    administrativa, como o caso da propaganda institucional. Se escolhas trgicas precisam ser

    realizadas e efetivamente o sero, no pode o administrador ignorar os comandos constitucionais.64

    Para sustentar a liberdade de escolha do administrador, mxime quando possui legitimidade

    democrtica, costuma-se argumentar que a definio dos programas sociais a serem

    implementados, quando no decorrente de imposio legal, se insere no mbito da

    discricionariedade administrativa. A existncia do poder discricionrio decorre da impossibilidade de

    a lei dispor, a priori, sobre a soluo que melhor aproveite ao interesse pblico, sendo prefervel a

    concesso de uma liberdade mais ampla s autoridades responsveis pela execuo do ato. Com

    isso, permite-se a valorao das circunstncias subjacentes ao caso concreto, possibilitando aidentificao da medida mais adequada. Essa atividade valorativa culminar com a escolha, dentre

    dois ou mais comportamentos possveis, daquele que se mostre mais consentneo com o caso

    concreto e a satisfao do interesse pblico.65 Para que esse objetivo seja alcanado, dever o

    administrador, na lio de Gianini,66 proceder ponderao comparativa dos vrios interesses

    secundrios (pblicos, coletivos ou privados), em vista a um interesse primrio. De acordo com

    Sandulli,67a discricionariedade importa sempre uma valorao, uma ponderao de interesses e um

    poder de escolha.

    inegvel, portanto, que o administrador pblico deve ter assegurada uma esfera de

    liberdade no mbito de sua atuao funcional. No entanto, margem da lei no h verdadeira

    liberdade, mas, sim, arbitrariedade. Ao reconhecermos que a dignidade humana atribui imediata

    exegibilidade aos direitos prestacionais, ainda que o legislador no defina o teor das prestaes ou

    indique a fonte de custeio, factvel que s h verdadeira liberdade quando o administrador, por

    absoluta carncia de recursos, precisar escolher entre eles ou outros programas dotados de igual ou

    superior hierarquia axiolgica. Fora dessa situao, no h propriamente uma opo, mas

    verdadeira imposio.

    64 Cf. GARCIA, Emerson. O Direito Educao e suas Perspectivas de Efetividade, in Revista Forense n 383, p. 83,

    janeiro/fevereiro de 2006.65

    Cf. CRAIG, Paul. Administrative Law. 5a ed.. Londres: Sweet & Maxwell Limited, 2003, p. 521; e MORAND-DEVILLER,

    Jacqueline. Cours de Droit Administratif.4aed.. Paris: Montchrestien, 1995, p. 255.

    66Diritto Amministrativo, vol. 2

    o. 3

    aed.. Milano: D. A. Giufrr Editore, 1993, p. 49.

    67Manuale di Diritto Amministrativo, vol. 1. 15

    aed.. Napoli: Jovene Editore, 1989, p. 593.

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    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012 335

    Se o administrador deixar de cumprir uma imposio de ordem constitucional ou legal, no h

    qualquer bice atuao do Poder Judicirio com o objetivo de recompor a juridicidade. Em

    situaes dessa natureza, embora o argumento seja mais que corriqueiro, no h que se falar em

    violao ao princpio da diviso das funes estatais. Note-se que a estrita conexo entre a diviso

    das funes estatais e a garantia dos direitos individuais remonta ao pensamento revolucionrio

    francs, recebendo consagrao expressa no art. 16 da Declarao dos Direitos do Homem e do

    Cidado de 1789: toda sociedade na qual a garantia dos direitos no assegurada, nem a

    separao dos poderes determinada, no tem Constituio. O Poder Judicirio, ao atuar, longe de

    macular a diviso das funes estatais, lhe rende homenagem, contendo os excessos ou

    contornando as omisses do Poder Executivo. Afinal, por imposio constitucional, a lei sequer pode

    excluir da sua apreciao leso ou ameaa a direito (art. 5, XXXV).68

    O Poder Judicirio, por fora do princpio da inrcia, somente pode atuar quando provocado.

    In casu, essa provocao, em primeiro lugar, pode ser realizada pelo prprio homem da rua. Essa

    hiptese, conquanto juridicamente possvel, faticamente improvvel. Ao chegar aos limites de sua

    prpria humanidade, por pouco deixando de estar humano, o indivduo h muito abandonou a

    conscincia de sua civilidade e consequente insero em um Estado de Direito, onde titular de

    direitos e obrigaes. V-se entregue prpria sorte, marginalizado por um sistema que o

    abandonou e no qual no se sente inserido. luz desse quadro, aumenta o munusinstitucional do

    Ministrio Pblico, que pode realizar a defesa dos interesses do homem da rua tanto sob a tica

    individual, o que decorre de sua situao de indigncia e da indisponibilidade dos interesses

    envolvidos (rectius: vida e subsistncia digna), como sob a tica coletiva ou difusa, isso em razo da

    pluralidade de beneficirios de sua ao, individualizveis ou no. o que deflui do art. 127, capute

    do art. 129, III, da Constituio da Repblica. Acresa-se que a Lei n 8.742/1993, em seu art. 31,

    dispe que [c]abe ao Ministrio Pblico zelar pelo efetivo respeito aos direitos estabelecidos nesta

    lei.

    5. A autonomia da vontade como algoz da dignidade

    68Cf. GARCIA, Emerson. Princpio da Separao dos Poderes: os rgos Jurisdicionais e a Concreo dos Direitos Sociais, in

    Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa vol. 46, n 2, p. 955, 2005.

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    PESSOAS EM SITUAO DE RUA E DIREITOS PRESTACIONAIS

    EMERSON GARCIA

    336 Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012

    A ideia de autonomia reflete a liberdade de determinao de um sujeito. No mbito

    doutrinrio, no incomum defender-se que a autonomia privada pode ser induzida, como garantia

    constitucional, do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e de outros direitos

    fundamentais contemplados na ordem constitucional.69A superioridade hierrquica da Constituio,

    ao que se acresce o seu papel de elemento unificador do ordenamento jurdico e vrtice do sistema

    axiolgico que lhe inerente, permite afirmar que a definio da esfera jurdica individual receber

    todo o influxo normativo dela originrio. Em outras palavras, a autonomia da vontade e os demais

    elementos caractersticos das relaes privadas assumiro os contornos que a ordem constitucional

    lhes facultar.

    O reconhecimento da autonomia da vontade tambm uma forma de exteriorizao da

    dignidade humana, refletindo a liberdade de pensar e agir, desde, obviamente, que isso no importe

    em violao aos balizamentos estabelecidos pela ordem jurdica. No h liberdade para agir

    margem da juridicidade.

    Por mais incrvel que possa parecer, no se deve descartar a possibilidade de um elevado

    quantitativo de pessoas se encontrar, voluntariamente, em situao de rua. Esse estado de coisas,

    vez ou outra, decorre no propriamente do gosto pelas condies de vida obtidas no espao pblico,mas, sim, da insatisfao com as alternativas disponveis, como a reinsero no ambiente familiar

    ou, mesmo, o ingresso nos centros de apoio que venham a ser estruturados pelo Poder Pblico.

    Embora seja exato afirmar que uma pessoa no pode abrir mo de sua dignidade, bem

    inerente e indissocivel da espcie humana, portanto, fora de comrcio, possvel que sua conduta

    individual mostre-se faticamente atentatria a essa dignidade, que somente continuaria a existir no

    plano idealstico-formal. Nessas situaes, caber ordem jurdica definir se esse tipo de conduta

    caracterizar, ou no, um ato ilcito.

    No caso brasileiro, merece referncia a contraveno penal tipificada no art. 59 do Decreto-

    Lei n 3.688/1941, verbis: [e]ntregar-se algum habitualmente ociosidade, sendo vlido para o

    trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistncia, ou prover prpria

    subsistncia mediante ocupao ilcita: Pena priso simples, de quinze dias a trs meses. Pargrafo

    nico. A aquisio superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de

    69Cf. MIRANDA. Manual..., Tomo IV, p. 326.

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    Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012 337

    subsistncia, extingue a pena. A referncia validez para o trabalho evidencia que o indivduo no

    praticar qualquer ilcito caso apresente uma disfuno fsica ou mental que inviabilize o exerccio

    de atividade laborativa lcita ou, mesmo, quando no encontrar um posto de trabalho, o que no

    chega a ser incomum. Esse aspecto bem demonstra que a reduo da populao em situao de

    rua somente ser obtida a partir da realizao de esforos integrados, disponibilizando -se abrigo e

    alimentao, com a correlata atuao da equipe multidisciplinar, de modo a integrar, ao mercado de

    trabalho, as pessoas que se encontrem nessa situao, bem como com a coibio do ilcito penal que

    a ociosidade pode caracterizar.

    Outro aspecto digno de nota que o espao pblico, como se constata pelos prprioscontornos semnticos da expresso, destinado ao uso pblico, no podendo ser privatizado pelo

    homem da rua margem de autorizao concedida pelo rgo competente. Uma coisa transitar

    pelo espao, coisa diversa ocup-lo como se moradia fosse. Nessa linha, plenamente factvel a

    possibilidade de manejo da ao civil pblica, pelo Ministrio Pblico ou por outros legitimados, com

    o objetivo de compelir o Poder Pblico a remover o homem da rua do local em que se encontra.

    Essa medida, no entanto, somente se mostra uma opo vivel caso os centros de apoio sejam

    estruturados e estejam em plena operao. Detectada a omisso do administrador no cumprimento

    do seu munus constitucional, ainda possvel perquirir a sua responsabilizao pessoal,

    especialmente com a incidncia das sanes previstas na Lei n 8.429/1992. Para tanto, de bom

    alvitre seja manejado, pelo Ministrio Pblico, o instrumento da recomendao, de modo a

    cientificar o agente pblico, pessoalmente, da ilicitude de sua omisso e facilitar a demonstrao do

    seu dolo, necessrio na hiptese do art. 11 do referido diploma legal.

    Eplogo

    A lamentvel situao em que se encontra o elevado contingente populacional que vive

    margem do ambiente sociopoltico, perambulando pelo espao pblico, refm da prpria sorte,

    exige um processo de mobilizao social para que os representantes do povo, frente dos Poderes

    Executivo e Legislativo, at