RBDC-19-311-Artigo Emerson Garcia (Pessoas Em Situacao de Rua e Direitos Prestacionais)
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Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012 311
PESSOAS EM SITUAO DE RUA E DIREITOS PRESTACIONAISPEOPLE ON THE STREETS AND SOCIAL RIGHTS
EMERSON GARCIA
Recebido para publicao em junho de 2012.
RESUMO:Aps identificar os elementos estruturais da dignidade humana, resultante da convergncia do serhumano com o estar humano, o estudo individualiza os dois direitos sociais cuja ausncia torna-se maisperceptvel em relao s pessoas em situao de rua.So eles a alimentao e a habitao. O primeiroassegura a continuidade biolgica, o segundo, uma existncia digna. Direitos dessa natureza, conquantodependam, regra geral, de integrao pela legislao infraconstitucional, que indicar as prestaes a seremoferecidas, os destinatrios em potencial e a respectiva fonte de custeio, podem ter o seu contedo integradopelo princpio mais amplo da dignidade humana e serem imediatamente exigidos dos poderes constitudos,inclusive com a interveno do Poder Judicirio.
PALAVRAS-CHAVE:situao de rua; dignidade humana; habitao; alimentao; e discricionariedade.ABSTRACT:After identifying the structural elements of human dignity, resulting from the convergence of behuman with the human being, the study differentiates the two social rights whose absence becomes morenoticeable in relation to people in "the streets". They are the feeding and the housing. The first ensuresbiological continuity, the second, a dignified existence. Rights of this nature, though dependent, in general, ofthe integration by legislation, which will indicate the services to be offered, recipients and their potentialsource of funding, may have your content integrated by the broader principle of human dignity and beimmediately required of the constituted powers, including with the intervention of the Judiciary.
KEY WORDS:homelessness; human dignity; housing; feeding and discretion.
1. A aporia inicial
O designativo inaugural de nossas consideraes, pessoas em situao de rua, daqueles
cuja polissemia no passa despercebida. Na lngua portuguesa, o signo lingustico rua, do latim
ruga,1 significando ruga e, em momento posterior, caminho, tem um sentido que no destoa de
outros congneres, colhidos em lnguas diversas. Trata-se de uma via pblica que margeia
propriedades ou outras reas pblicas, em um ou em ambos os lados, intermediada, ou no, por
uma faixa exclusiva para pedestres.2Por extenso, tambm possvel falarmos nos habitantes de
Doutor e Mestre em Cincias Jurdico-Polticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and PolicypelaEuropean Association for Education Law and Policy(Anturpia Blgica) e em Cincias Polticas e Internacionais pelaUniversidade de Lisboa. Membro do Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro e ex-Consultor Jurdico da ProcuradoriaGeral de Justia (2005-2009). Consultor Jurdico da Associao Nacional dos Membros do Ministrio Pblico (CONAMP).Assessor Jurdico do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Ministrios Pblicos dos Estados e da Unio (CNPG).Membro daAmerican Society of International Lawe da International Association of Prosecutors(HaiaHolanda).1TORRINHA, Francisco. Dicionrio Latino Portugus. 2 ed.. Porto: Grficos Reunidos, 1942, verbete ruga, p. 759.
2 Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa. 2 ed.. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, verbete rua, p.
1.525; Diccionario Enciplopedico Universal. Madrid: Cultural S.A., 2000, verbete calle; Parola Chiave. Dizionario di Italianoper Brasiliani. So Paulo: Martins Fontes, 2007, verbete via, p. 860; Larousse Dictionnaire Encyclopdique Illustr.Paris:Larousse, 1997, verbete rue, p. 1.396; Langenscheidts Growrterbuch. 5 ed.. Berlin: Langenscheidt, 2002, verbete
Strae, p. 950.
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uma rua, isso para fazermos meno quelas pessoas que residem em habitaes lindeiras a certa
rua; ou em homem da rua, indicando como tal o cidado mdio, no importando quem seja. 3Essa
ltima expresso, a depender do intrprete, tambm pode ser estendida pessoa sem moradia
(homeless4, Wohnungslos5), que vaga pelas ruas sem ter para onde ir. Esse o sentido que
atribuiremos s nossas breves reflexes. Trataremos da situao de inmeros seres, biologicamente
enquadrveis na espcie humana, dotados de razo, isso ao menos no plano conceitual, e que, de
modo voluntrio, ou no, vivem (vegetam, no fosse a confuso conceitual com a botnica,
certamente seria uma opo a ser considerada) no espao pblico, seja, ou no, tecnicamente
considerado uma rua (v.g.: parques, viadutos, rvores etc.).6
E porque distinguir o homem da rua do homem da casa, quando ambos,
indistintamente, so enquadrveis sob a epgrafe da espcie humana? A resposta simples: a
civilizao contempornea h muito compreendeu que ao serhumano deve ser agregado o estar
humano, surgindo, da convergncia desses elementos, a noo mais ampla de dignidade humana,
to ao gosto de tantos quantos queiram enfatizar a necessidade de assegurar algo a algum ou de
evitar que algo lhe seja subtrado. nesse momento que nos deparamos com a nossa aporia
inicial. Se a dignidade resulta do sere do estarhumano, possvel afirmar que, quando esse ltimo
elemento estiver ausente, ela tambm o estar. E aqui surge o questionamento: possvel
reconhecermos a existncia de um ser humano sem dignidade? Parafraseando Hamlet, em sua
entrada triunfal: [t]o be, or not to be, - that is the question.7Ou devemos reconhecer a privao da
dignidade como um evento que, alm de temporrio e acidental, deve ser necessariamente
superado com a maior brevidade possvel? Caso essa proposio seja defensvel, de quem o dever
de restabelecer a dignidade? Da prpria pessoa temporariamente destituda de dignidade, o que a
situaria a jusante da juridicidade, ou de terceiros (rectius: famlia, sociedade ou Estado)?
3Larousse Dictionnaire..., verbete rue, p. 1.396.
4Oxford Advanced Learners Dictionary. 4 ed.. 6 imp.. Oxford: Oxford University Press, 1991, verbete Street, p. 1271.
5Langenscheidts Growrterbuch..., verbete Strae, p. 950.
6 O Decreto n 7.053/2009, que instituiu a Poltica Nacional para a Populao em Situao de Rua, considerou, no
pargrafo nico do seu art. 1, populao em situao de rua o grupo populacional heterogneo que possui em comum apobreza extrema, os vnculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistncia de moradia convencional regular, e
que utiliza os logradouros pblicos e as reas degradadas como espao de moradia e de sustento, de forma temporria ou
permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporrio ou como moradia provisria.7 The Complete Works of William Shakespeare. Hamlet, Price of Denmark. Act III, Secene I A Room in the Castle.
Cleveland: The World Syndcate Publishing Company, s/d, p. 945 (960).
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Essas questes, evidncia, ho de ser enfrentadas em qualquer arrazoado que se proponha
a analisar, sob o prisma tico-jurdico, a situao das pessoas em situao de rua e dos direitos que
podem opor a terceiros. A temtica, que assume propores dramticas em Estados de
modernidade tardia, tamanho o contingente de pessoas nessa situao, no desconhecida dos
primos ricos que emolduram o primeiro mundo. Para citarmos apenas um exemplo, bem
conhecido, pelos germnicos, o tema Leben auf der Strae: Wohnungslos in Deutschland (Viver
na Rua: os sem habitao na Alemanha). Trata-se de problema social de contornos universais, que
varia em intensidade conforme o estgio de desenvolvimento civilizatrio de um dado povo; os
fatores que concorrem para o seu surgimento, como os de natureza econmica e familiar; o modo
como as estruturas estatais de poder o encaram, reconhecendo, ou no, a existncia de um dever
assistencial em relao a essas pessoas, mxime quando o estado de penria consequncia de atos
voluntrios e facilmente evitveis (v.g.: preguia, desonestidade, insensatez etc.); e da percepo
que a sociedade tem ao seu respeito, partilhando, ou no, um sentimento de solidariedade.
2. A dignidade das pessoas em situao de rua8
Nos Estados formados a partir de sociedades democrticas e pluralsticas, h muito sereconhece a posio de primazia atribuda ao ser humano, justamente visto como fator de
legitimao e fim ltimo da atuao estatal. A Repblica Federativa do Brasil no foge a essa regra.
Afinal, sua ordem constitucional reconhece que (1) todo o poder emana do povo (art. 2), (2) a
dignidade da pessoa humana um dos fundamentos do Estado (art. 1, III) e (3) a construo de
uma sociedade livre, justa e solidria, com a promoo do bem de todos e a erradicao da pobreza
e da marginalizao, objetivo fundamental (art. 3, I, III e IV).
Ainda que a cincia poltica esteja longe de alcanar um ponto de convergncia quanto
noo de povo, inegvel que esse signo lingustico alberga os indivduos que possuem um vnculo
jurdico com o Estado, o que normalmente expresso pelo conceito de nacionalidade, alcanando
tanto os residentes em seu territrio, como os que se encontram no exterior. nesse sentido que se
8Parte das consideraes realizadas neste item reflete o constante de obra indita, do articulista, intitulada Interpretao
Constitucional. A resoluo das conflitualidades intrnsecas da norma constitucional, resultante de tese de doutoramentoapresentada Universidade de Lisboa e aprovada, por unanimidade, por jri composto pelos Professores Doutores J. J.Gomes Canotilho e Fernando Bronze, da Universidade de Coimbra, e pelos Professores Doutores Jorge Miranda(orientador), Jorge Reis Novais, Carlos Blanco de Morais, David Duarte, Pedro Romano e Miguel Teixeira de Souza.
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pode falar em povo brasileiro, povo alemo etc.. Embora seja factvel que nem todos os integrantes
do povo participam da formao da vontade poltica (v.g.: so normalmente excludos do exerccio
da cidadania os jovens de reduzida idade, os alienados mentais etc.), nele que o poder encontra a
sua base de legitimao. Sartori, alis, j observara que, no plano etimolgico, democracia significa
poder do povo.9No por outra razo que Abrahan Lincoln, no clebre discurso de Gettysburg, de
19 de novembro de 1863, afirmara que democracia o governo do povo, para o povo e pelo povo.
possvel reconhecer, sem maiores esforos argumentativos, que tanto o homem da rua, como o
homem da casa, integramo conceito mais amplo de povo. Logo, o poder estatal emana de ambos.
A reconhecida primazia dos direitos humanos no Estado de Direito, fruto da concepo de serhumano enquanto razo e fim do poder estatal, tem influenciado, intensamente, o delineamento do
arqutipo constitucional. possvel afirmar que o discurso dos direitos do ser humano
consubstancia a linguagem da prioridade.10Afinal, direitos so trunfos polticos11que ostentam
inegvel fora no ambiente sociopoltico, norteando e limitando o exerccio do poder. O seu
acolhimento, alis, alm de representar uma revoluo da conscincia humana,12 tem sido visto
como o principal meio para se determinar a correo moral da ordem jurdica.13Sob a epgrafe dos
direitos humanos14podem ser includos tanto a exigncia do facere, como do non facere, estatal ou
privado, voltados preservao e garantia da digna existncia do ser humano. 15Direitos dessa
natureza, em seus contornos mais amplos, tm sido vistos sob uma perspectiva dplice. Em um
extremo, sua natureza seria puramente idealista ou moral, em que prevalece a ideia de inerncia ao
indivduo, que a eles faria juscom abstrao de sua insero em uma disposio normativa formal.
No extremo oposto, seriam objeto de reflexo e anlise sob uma tica jurgena, isso em razo de sua
absoro por uma ordem jurdica, internacional ou interna, normalmente recebendo, no mbito
9Thorie de la Democratie(Democrazia e definizioni). Trad. de HURTIG, Christiane. Paris: Librairie Armand Colin, 1973, p. 3.
10CAMPBELL, Tom. Rights: a critical introduction.New York: Routledge, 2006, p. 3.
11DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously.17 imp.. Massachussets: Harvard University Press, 1999, p. xi.
12 IGNATIEFF, Michael. Whose Universal Values? The Crisis in Human Rights. The Hague: Foundation Horizon, 1999, p. 10-
11.13
Cf. STONE, Adrienne. Introduction, inCAMPBELL, Tom, GOLDSWORTHY, Jeffrey Denys e STONE, Adrienne Sarah Ackary.Protecting human rights: instruments and institutions.Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 1.14
Sobre as distintas concepes de direitos humanos, vide: BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de COUTINHO,Carlos Nlson. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 17.15
Cf. HAASHER, Guy. Law, Reason and Ethics in the Philosophy of Human Rights, in SADURSKI, Wojciech (editor). Ethicaldimensions of legal theory.The Netherlands: Rodopi, 1991, p. 141 (142).
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desta ltima, o designativo de direitos fundamentais (rectius: direitos humanos positivados).16Um
termo comum aos planos moral e jurgeno, internacional ou interno, o de dignidade da pessoa
humana, que seria reconhecida e preservada com o respeito a esses direitos.17
Como todo poder emana do povo, nada mais natural que considerar a dignidade humana
um dos fundamentos do Estado, estrutura orgnica que surge a partir desse poder e responsvel
pela sua projeo na realidade. Se a ilao simples, o mesmo no pode ser dito em relao
densificao do significado dessa expresso, que apresenta textura essencialmente aberta, exigindo
do intrprete a resoluo de uma srie de conflitualidades intrnsecas, todas subjacentes ao
processo de interpretao constitucional. Trata-se de expresso incorporada a no poucas ordensconstitucionais, exigindo uma intensa participao do intrprete no delineamento do seu
significado, o que decorre (1) da vagueza de sua base semntica, (2) de sua evidente polissemia;18(3)
dos diversos valores que podem ser satisfeitos com a integrao do seu contedo ( v.g.: igualdade,
justia social etc.); (4) dos distintos fins que podem ser alcanados sob os auspcios de sua
observncia (v.g.: preservao da liberdade, da vida etc.); e (5) do modo de operacionaliz-la ( v.g.:
no incurso na esfera jurdica individual, oferta dos direitos sociais imprescindveis garantia do
mnimo existencial etc.). Essas caractersticas tornam o seu contedo to voltil quanto importante,
mxime quando lembramos a sua permeabilidade aos influxos recebidos do contexto ambiental.
A proteo da dignidade humana costuma enfrentar uma dificuldade bsica: a de identificar o
que est, ou no, abrangido por ela. De um lado, corre-se o risco de ver como atentatrias
dignidade humana meras afrontas ao bom gosto e moral comum. Do outro, a de no estender a
sua proteo a valores efetivamente basilares espcie humana. Aqui, retrai-se em excesso. L,
amplia-se ao ponto de amesquinhar. Face dificuldade conceitual, no incomum que, a partir das
16 Cf. PREZ LUO, Antonio Henrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucin. 8a ed.. Madrid: EditorialTecnos, 2003, p. 30-31; WOLFGANG SARLET, Ingo. A Eficcia dos Direitos Fundamentais. Uma Teoria Geral dos DireitosFundamentais na Perspectiva Constitucional. 10 ed.. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 27-35; IDEM eFILCHTINER FIGUEIREDO, Mariana. Reserva do possvel, mnimo existencial e direito sade: algumas aproximaes, inWOLFGANG SARLET, Ingo e BENETTI TIMM, Luciano (org.). Direitos Fundamentais: oramento e reserva do possvel. 2ed., Porto Alegre: Livraria do ADVOGADO, 2010, p. 13 (15). Ferrajoli, por sua vez, associa o adjetivo fundamental aosdireitos reconhecidos universalmente [Sobre los Derechos Fundamentales, in CC n 15, julho-dezembro de 2006, p. 113(116-117)].17
A dignidade humana seria o elemento de base de toda a ordem constitucional. Cf. ALEXANDRINO, Jos de Melo. AEstruturao do Sistema de Direitos, Liberdades e Garantias na Constituio Portuguesa, vol. II. Coimbra: EdiesAlmedina, 2006, p. 312.18
Carmn Lcia Antunes Rocha destaca a ambiguidade e porosidade do conceito [O princpio da dignidade da pessoahumana e a excluso social, inRIP, n 4, 1999, p. 23 (24)].
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experincias colhidas no ambiente sociopoltico, parcelas caractersticas da dignidade humana
passem a receber proteo especfica, precisando os contornos da violao. o que se d, por
exemplo, com a proibio da tortura, cuja principal funo preservar aspectos fsicos e morais
inerentes dignidade de todo e qualquer ser humano.
Com os olhos voltados essncia da pessoa humana e projeo dessa essncia na realidade,
quer em sua individualidade, quer na inter-relao com a sociedade ou o Estado, possvel
identificar dois elementos estruturais da dignidade que lhe caracterstica. O primeiro deles
consiste na prpria existncia do ser humano, enquanto ser vivo e racional, que deve estar
protegido de qualquer ameaa que possa comprometer a sua continuidade, quer essa ameaaprovenha de aes (v.g.: atentados integridade fsica), quer de omisses (v.g.: indiferena ao
estado de penria). O segundo elemento se manifesta no estar humano ou, mais especificamente,
na possibilidade de ser, fazer ou receber algo. No obstante as variaes de contedo, esse
arqutipo bsico da dignidade costuma ser acolhido pela maior parte das construes tericas que
se dedicam temtica, j que, rotineiramente, todas se preocupam em justificar as razes e os
efeitos de sua proteo.
Embora seja exato afirmar que os rtulos nem sempre expressam a essncia, pode-sereconhecer, sob uma perspectiva metodolgica, que as distintas concepes existentes a respeito da
dignidade humana tendem a ser enquadradas, em suas linhas gerais, sob a epgrafe do naturalismo,
do positivismo e da sensibilidade axiolgica. Enquanto os dois ltimos apresentam variaes de
contedo de acordo com os circunstancialismos de natureza espacial e temporal, o que os situa no
plano mais amplo do relativismo, o primeiro, lastreado em algum dos alicerces metafsicos
(teolgico, racionalista, humanista etc.) que do sustentao s teorias dessa natureza, assume
contornos universais. Essa classificao, importante frisar, alm de sua simplicidade estrutural,
direciona-se ao alicerce de sustentao da dignidade humana, no propriamente essncia da
faculdade e da proteo que oferece ao indivduo, o que justifica a no incurso em teorias como (1)
a liberal, que valoriza a liberdade individual em um sentido negativo, obstando a interveno estatal;
(2) a institucional, que direciona sua ateno no dimenso subjetiva dos direitos fundamentais,
mas ao seu carter objetivo, garantia oferecida pelo aparato estatal; (3) a do Estado Social, que
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atribui ao indivduo o direito percepo de direitos prestacionais; (4) a democrtica, que valoriza a
participao poltica e a consequente moldagem do aparato estatal etc..19
De acordo com as construes naturalistas, a proteo dignidade humana independe das
variaes de contexto ou, mesmo, de sua expressa recepo pela ordem jurdica. Os direitos
humanos, de importncia superior e precedente,20seriam atributos inatos de todo e qualquer ser
humano, intangveis e inalienveis, acompanhando-o por toda a existncia, no apresentando
variaes no tempo e no espao.21Configurariam o cerne do sistema moral de uma coletividade,
antecedendo o processo poltico e se sobrepondo a ele.22Por serem preexistentes ao direito posto,
de natureza voluntria, produzido pelo homem, somente seriam passveis de apreenso econhecimento, no de criao.
inegvel que o naturalismo, em especial aquele de contornos teolgicos, com destaque para
o cristianismo, teve influncia decisiva para a sedimentao dos direitos humanos. 23 O homem,
imagem e semelhana de Deus, teve sua essncia valorizada e protegida. A Bblia, partindo de um
referencial de f, apregoa o respeito a todo ser humano, a correo do pensar e do agir, e,
consequentemente, a harmnica convivncia social. A universalidade apregoada pelo naturalismo,
embora tenha o mrito de realar a igualdade entre todos os seres humanos, apresenta umavulnerabilidade que aconselha a adoo de construes alternativas.
Em primeiro lugar, observa-se que nem todos os serem humanos esto em posio de
irrestrita igualdade, o que decorre de suas qualidades intrnsecas ( v.g.: doentes mentais) ou do
modo como interagem com o entorno (v.g.: consoante a sua condio financeira), da decorrendo o
surgimento de aptides e necessidades distintas, com a consequente exigncia de tratamento
diferenciado. Acresa-se que os povos no evoluem de modo linear, no sendo incomum que
condies razoveis de vida em certos locais sejam consideradas insuficientes ou, mesmo,19
Cf. BCKENFRDE, Ernest-Wolfgang. Teora e interpretacin de los derechos fundamentales, in Escritos sobre DerechosFundamentales. Trad. de REQUEJO PAGS, Juan e VILLAVERDE MENNDEZ, Igncio. Baden-Baden: Nomos, 1993, p. 45-71;e MIRANDA. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV. 4 ed.. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 49-50.20
Cf. CRANSTON, Maurice. What Are Human Rights?, London: Blodey Head, 1973, p. 63.21
Cf. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo ( Two Treatises of Government). Trad. de MARINS, Alex. So Paulo:Martin Claret, 2005, p. 23 e ss..22
Cf. BARBOSA PINTO, Marcos. Constituio e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2009, p. 89.23
Cf. BARZOTTO, Luiz Fernando. Pessoa e ReconhecimentoUma Anlise Estrutural da Dignidade da Pessoa Humana, inALMEIDA FILHO, Agassiz e MELGAR, Plnio (org.). Dignidade da Pessoa Humana. Fundamentos e Critrios Interpretativos.So Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 39 (40); e SEELMANN, Kurt. Rechtsphilosophie.4 ed.. Mnchen: Verlag C. H. Beck,2007, p. 210-211.
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humilhantes, em outros. Na medida em que poucos direitos apresentariam contornos de indiscutvel
relevncia e indispensabilidade para todos os seres humanos do planeta, a consequncia seria uma
concepo demasiado tmida e restritiva a seu respeito. O prprio desenvolvimento dos direitos
humanos correria o risco de estagnao, isso por que o tratamento linear terminaria por ver as
posies de vanguarda adotadas em alguns Estados como meras concesses, no como verdadeiros
paradigmas a serem seguidos.
Em segundo lugar, constata-se que a conexo dos direitos humanos a alicerces metafsicos,
embora tenha o mrito de conter os excessos do poder, superando a lgica formalista que tantos
abusos gerou, no consegue superar as dificuldades argumentativas que surgem ao se tentarjustificar como realidades estranhas ordem jurdica (rectius: os direitos humanos) podem
prescindir de uma relao jurdica e da interveno estatal para a sua plena operacionalizao.24
Para as construes que encampam o positivismo enquanto mtodo, da decorrendo uma
relao de contraposio s teorias naturalistas, fundamentos metafsicos no podem condicionar o
contedo do direito, mas to somente informar a sua compatibilidade, ou no, com certos
paradigmas tidos como relevantes. Os direitos humanos existem na medida em que reconhecidos
pela ordem jurdica, sendo descritos, limitados e protegidos pelo aparato estatal. Construes dessanatureza, em seus contornos extremados, tanto reconheceriam a normalidade em se atribuir
qualquer contedo aos direitos humanos, como em no se lhes atribuir contedo algum. Esse tipo
de entendimento, como dito quando da anlise da virada axiolgica do constitucionalismo, mostrou-
se de todo inaceitvel a partir do segundo conflito mundial, perodo em que as mais comezinhas
garantias reconhecidas pela humanidade foram solenemente ignoradas com a chancela do direito
positivo. No incomum, ademais, que a prpria ordem constitucional reconhea a sua
incompletude e a possibilidade de o homem gozar de direitos outros que no aqueles que possam
ser reconduzidos ao potencial expansivo dos seus enunciados lingusticos. A IX Emenda
Constituio norte-americana, de 1791; o art. 5, 2, da Constituio brasileira de 1988; e o art. 16,
1, da Constituio portuguesa de 1976 so ntidos exemplos da possibilidade de os direitos humanos
(rectius: fundamentais) encontrarem a sua base de sustentao fora da Constituio formal. o caso
24Cf. BIELEFELDT, Heiner. Philosophie der Menschenrechte, Grundlagen eines weltweiten Freiheitsethos. Frankfurt: Primus
Verlag, 1998, p. 162.
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dos direitos j sedimentados no ambiente sociopoltico, isso no exemplo norte-americano, e dos
direitos colhidos no mbito do direito internacional, como ocorre no paradigma luso-brasileiro.25
Esse quadro inicial, como se percebe, no nada animador. De um lado, a fluidez do
naturalismo, refm do subjetivismo do intrprete e rfo da segurana jurdica. De outro, a
neutralidade do positivismo, proslito do formalismo e indiferente aos valores subjacentes ao
contexto social. A soluo alternativa, por sua vez, parte da premissa de que a preservao da
dignidade humana no prescinde do direito e que o direito no deve renegar a plano secundrio os
aspectos essenciais dessa dignidade.26 Essa linha argumentativa, que busca compatibilizar a
segurana oferecida pelo texto normativo com a base axiolgica obtida no contexto, pressupe quetais aspectos essenciais sejam colhidos fora do direito e tornem-se operativos por meio dele.
Malgrado seja exato afirmar, com Campbell,27 que a efetiva proteo dos direitos humanos
pressupe a sua positivao em um direito concreto, internacional ou domstico, isso no importa
em afirmar que sua existncia deve ser identificada com esses mecanismos de proteo. O discurso
dos direitos humanos , essencialmente, um discurso axiolgico, no prescindindo de juzos
valorativos de igual natureza. Em verdade, face aos inmeros atos de direito internacional voltados
sua proteo, j possvel visualiz-los, ao menos em sua essncia, como um consenso de valores
universal (universaler Werterkonsens).28
Tambm aqui a dignidade vista como algo inerente ao ser humano,29 30delineada a partir
dos valores sociais sedimentados no contexto, o que reala a sua perspectiva historicista 31 e a
contnua sensibilidade renovao dos influxos sociais, denotando o seu acolhimento pela
25Cf. MIRANDA. Manual..., Tomo IV..., p. 11-12.
26Cf. MOUTOUH, Hugues. La dignit de lhomme en droit, in RDPSPn 1, 1999, p. 159 (165).
27 Cf. CAMPBELL, Tom. Human Rights: Shifting Boundaries, in CAMPBELL, Tom, GOLDSWORTHY, Jeffrey Denys e STONE,
Adrienne Sarah Ackary. Protecting human rights: instruments and institutions.Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 18(24).28
RENSMANN. Wertordnung...,p. 11-12.29
A DUDH, de 1948, um referencial da ideia de inerncia: o seu primeiro considerando dispe sobre o reconhecimentoda dignidade inerente a todos os membros da famlia humana e o art. 1 que [t]odas as pessoas nascem livres e iguaisem dignidade e direitos. Lembrando a tcnica adotada pela Constituio polonesa de 1997, aps a reforma de 2005, deve-se reconhecer que a dignidade inerente e inalienvel da pessoa a fonte dos direitos e das liberdades do homem e docidado (art. 30).30
Cf. WOLFGANG SARLET, Ingo. Proibio de Retrocesso, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Sociais: manifestao deum constitucionalismo dirigente possvel, in LEITE SAMPAIO, Jos Adrcio (org.). Constituio e Crise Poltica. BeloHorizonte: Del-Rey, 2006, p. 403 (411).31
Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito (Rechtsphilosophie). Trad. de CORTS, Antnio Ulisses. Lisboa: FundaoCalouste Gulbenkian, 2004, p. 435.
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conscincia jurdica geral.32A dignidade deve ser vista como a manifestao vinculante de uma
identidade, a identidade do ser humano, que dele no pode ser dissociada. Ostenta um valor, o
mais alto de todos os valores afetos ao ser humano.33 E regula o comportamento de todos que
interagem com ele.34 A dignidade reconhecida a todos os seres humanos pelo s fato de
partilharem uma essncia comum, sendo dotados de razo e liberdade intelectiva.35No por outra
razo que, ao afirmarmos que uma conduta ou situao especfica viola a dignidade humana,
estaremos afirmando, ipso facto, que essa conduta ou situao atentatria prpria condio de
pessoa humana.36
importante ressaltar que a ideia de inerncia, situando na condio humana o fator dejustificao da dignidade, no reflete propriamente uma adeso s correntes naturalistas. Pode ser
vista, em verdade, como uma das principais portas de penetrao da moral no direito. o valor mais
importante e paradigmtico entre todos os valores.37A prpria subsistncia da vida em comunidade
obsta que seus distintos membros deixem de ver, uns aos outros, como integrantes da espcie
humana, sendo imprescindvel, de modo correlato, a observncia de todos os seus atributos. Em
qualquer caso, necessrio que a inerncia da dignidade humana seja revalidada pela conscincia
coletiva. Trata-se de conceito que demanda constante construo pela sociedade e que reflete a
reafirmao de uma opo poltica.38
O contedo atribudo dignidade humana tende a assumir grande universalidade quando
analisado nos contornos mais amplos da generalidade e da abstrao. No extremo oposto, ao nos
aproximarmos da especificidade e da concretude, as distines entre os regimes jurdico-polticos
32 Cf. VIEIRA DE ANDRADE, Jose Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituio Portuguesa de 1976. 4
a ed., reimp..
Coimbra: Livraria Almedina, 2010, p. 50. No Teeteto de Plato, coube ao sofista Protgoras afirmar que o homem amedida de todas as coisas, das que so e das que so, enquanto so, das que no so, enquanto no so. Scrates, aoexplicar a essncia desse pensamento a Teeteto, afirma que cada coisa para mim do modo que a mim me parece (trad.
de NOGUEIRA, Adriana Manuela e BOERI, Marcelo. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2005, 152a, p. 205). Na filosofiaplatnica, cabe a cada homem apreender a realidade de acordo com sua percepo. E a percepo, enquanto saber, comoafirmou Scrates no dilogo, no pode ser falsa (152c, p. 206); nada nunca , mas vai se tornando sempre (152e, p.206-207).33
Cf. RENSMANN, Thilo. Wertordnung und Verfassung: das Grundgesetz im Kontext grenzberschreitenderKonstitutionalisierung. Tbingen: Mohr Siebeck, 2007, p. 18.34
Cf. BARZOTTO. Pessoa e Reconhecimento, p. 39 (51).35
Cf. DUDH, de 1948, art. 1. Na doutrina: MIRANDA. Manual..., Tomo IV..., p. 183.36
Cf. BARZOTTO. Pessoa e Reconhecimento..., p. 39 (50-51).37
Cf. COMPLAK, Krystian. Dignidad Humana como Categoria Normativa en Polonia, in CC n 14, janeiro-junho de 2006, p.71 (72).38
Cf. CASTILHO, Ricardo. Justia Social e Distributiva. Desafios para concretizar direitos sociais. So Paulo: Editora Saraiva,2009, p. 60.
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tendem a se acentuar. O direito vida um exemplo bem sugestivo a respeito das dissonncias que
podem existir. Se o reconhecimento desse direito assume contornos nitidamente universais, no
havendo Estado de Direito que apregoe a sua inobservncia, o mesmo no pode ser dito em relao
ao modo de v-lo em um ambiente sociopoltico concreto, o que comea pela identificao dos seus
titulares, no sendo incomum a existncia de restries em relao aos titulares desse direito (v.g.: a
pessoa qualificada como combatente inimigo pode ser condenada morte mesmo em Estados que
proscreveram essa pena; o doente terminal pode vir a sofrer a eutansia; e o feto pode ser objeto de
aborto devidamente autorizado pela lei do Estado) e ao modo de proteg-lo (v.g.: com a mera
absteno de incurses que possam viol-lo ou com a imperativa oferta de prestaes que
assegurem a continuidade de uma vida digna). O relativismo tende a superar o universalismo que se
busca atribuir aos direitos humanos, isso por existir uma inescondvel relao com as especificidades
locais. Os direitos humanos, declarados (deklariert) ou convencionados (konveniert), por terem sua
proteo associada ordem jurdica, esto sempre vinculados a um dado contexto situacional.39
A impossibilidade de se atribuir contornos amplamente universais a significados que no
prescindem, na sua formao, da influncia de uma base de valores obtida junto ao ambiente
sociopoltico, evidencia que o sentido da dignidade humana nitidamente influenciado pelo que
denominamos de teoria dos crculos. Essa teoria indica que a base de valores responsvel pela
densificao da dignidade humana influenciada por fatores normativos e sociolgicos, que
permitem a formao de entendimento a respeito das garantias, protees e prestaes
consideradas imprescindveis para que cada indivduo tenha sua condio humana efetivamente
reconhecida. Os crculos aqui referidos consubstanciam espaos pblicos de reflexo e relativa
coeso, os quais, no obstante a autonomia que podem ostentar, no permanecem indiferentes
entre si. Tangenciam-se nos seus aspectos basilares e distanciam-se nos perifricos.
Tendencialmente, quanto maior o crculo, mais restritos sero os pontos de convergncia e mais
basilares sero os contornos essenciais da dignidade humana. Nos crculos menores o efeito
normalmente ser inverso. Em consequncia, possvel visualizar, na dignidade humana, um
contedo essencial coexistindo com contedos perifricos, que podem ser expandidos ou retrados
conforme as especificidades do respectivo crculo.
39Cf. VAN DER VEN , J. J. M.. Ius Humanum: das Menschliche und das Rechtliche. Frankfurt Am Main: Metzner Verlag, 1981,
p. 3.
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Enquanto o centro absorve os seus elementos essenciais e intransigveis, a periferia densifica
as especificidades de cada crculo, com especial realce para o nvel civilizatrio ali existente, que
influi diretamente no modo de ver o ser humano e as suas relaes com o poder. Os crculos
menores podem ser vistos como a representao de cada Estado de Direito, enquanto os crculos
maiores denotam, em um primeiro momento, o direito regional, e, em um segundo momento, o
direito internacional. Como os crculos maiores devem harmonizar individualidades muito mais
numerosas, natural que a sntese por eles oferecida seja idntica aos valores adotados pelo mais
moderado dos crculos menores, ao menos para que haja uma relao de compatibilidade entre
eles, e que seja mais tmida que os valores prevalecentes no mais progressista dos crculos menores,
em que a dignidade humana avana ao ponto de absorver valores que, embora tidos como positivos
em outros Estados, no so considerados inerentes pessoa humana e muito menos indisponveis.
possvel afirmar que os distintos fatores que compem a dignidade humana tero o seu
epicentro estrutural oferecido pelo direito internacional, que indicar a sua essncia, vale dizer, o
contedo mnimo que no pode ser descurado por qualquer integrante da sociedade internacional.40
Se o universalismo dessa concepo, ao menos nos planos terico e ideolgico, parece ser lugar
comum no Ocidente, o mesmo no pode ser dito em relao sua transposio para a realidade. Em
no poucos aspectos, o universalismo tem sido visto como uma teoria do bloco dominante, que
40 A preocupao com a preservao de uma esfera jurdica essencial preservao da dignidade humana facilmente
perceptvel em convenes internacionais que vedam a supresso de certos direitos mesmo em situaes excepcionais. OPacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos, de 1966, em seu art. 4, aps autorizar que, em situaes excepcionais,que ponham em perigo a existncia da Nao, os Estados suspendam as obrigaes ali contradas, ressalta que no autorizada nenhuma derrogao do direito vida (art. 6
oressalvada a aplicao da pena de morte nos casos previstos),
do direito a no ser submetido a tortura nem a penas ou a tratamentos crueis, desumanos ou degradantes (art. 7 o), dodireito de no ser submetido escravido ou mantido em servido (art. 8
o), do direito a no ser encarcerado pelo simples
fato de no poder cumprir uma obrigao contratual (art. 11), do direito irretroatividade da lei penal incriminadora (art.15), do direito ao reconhecimento da personalidade jurdica (art. 16) e do direito liberdade de pensamento, deconscincia e de religio (art. 18). A Conveno Americana dos Direitos Humanos, de 1969, em seu art. 27, n
o2, repete as
restries constantes do Pacto dos Direitos Civis e Polticos e acrescenta a impossibilidade de supresso dos direitos dafamlia (art. 17direito ao casamento, igualdade de direitos entre crianas nascidas do casamento ou no etc.), do direitoao nome (art. 18), dos direitos da criana (art. 19), do direito nacionalidade (art. 20) e das garantias judiciaisindispensveis proteo dos direitos que no podem ser suprimidos (art. 27, n
o2). A Conveno Europeia dos Direitos do
Homem, de 1950, em seu art. 15, de modo mais tmido, somente no autoriza a derrogao do direito vida (art. 2o
salvo em relao pena de morte resultante de atos ilcitos de guerra), do direito a no ser submetido a tortura nem apenas ou a tratamentos crueis, desumanos ou degradantes (art. 3
o), do direito de no ser submetido escravido ou
mantido em servido (art. 4o, pargrafo primeiro) e do direito irretroatividade da lei penal incriminadora (art. 7
o).
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pretende ver-se convertida em uma ideologia.41Essa ideologia, em verdade, teria como metavalor
e ponto de equilbrio a paz universal.42
Note-se que o ocidentalismo da concepo corrente de direitos humanos j fora realado por
Boaventura de Sousa Santos,43 que alertou para a necessidade de ser estabelecido um dilogo
multicultural, com contnua transmisso, absoro e valorao da informao. Esse dilogo somente
seria vivel com o afastamento da lgica maniquesta da infalibilidade e o correlato reconhecimento
da incompletude das distintas culturas. Nessa linha, necessrio um trabalho de traduo
intercultural.44
natural a presena de diferenas entre as tradies culturais de cada povo em relao ao
reconhecimento e proteo dos direitos humanos, o que, segundo alguns, apontaria para a
incompatibilidade de uma Declarao Universal dos Direitos Humanos com o relativismo cultural e
moral. Afinal, entendimento contrrio importaria no reconhecimento de que a universidade dos
direitos tem preferncia sobre a preservao de identidades culturais antidireitos.4546As diferenas,
acompanhadas, ou no, de afrontas diretas, no afastam a constatao de que a crescente
generalizao dos direitos humanos um caminho sem volta. O fato de partilharmos uma
humanidade comum, como realado por Fukuyama,47
alm de viabilizar o desenvolvimento de umauniversalidade comunicativa, torna possvel o estabelecimento de uma relao moral entre todos os
seres humanos, isso apesar de o mundo ostentar caractersticas multiformes. Ainda que esse
processo encontre resistncia em barreiras de natureza cultural (v.g.: a inferioridade da mulher em
certas culturas), ideolgica (v.g.: a reminiscncia de concepes marxistas), econmica (v.g.: a
41Cf. RUOTOLO, Marco, La Funzione Ermeneutica delle Convenzioni Internazionali sui Diritti Umani nei Confronti delle
Disposizioni Costituzionali, in RDS no2, 2000, p. 291 (318).
42Cf. RUOTOLO. La Funzione Ermeneutica..., in RDSn 2, 2000, p. 291 (318).
43Por uma concepo multicultural de direitos humanos, inRCCS n 48, 1997, p. 11 (18-20).
44SANTOS, Boaventura de Souza. A gramtica do tempo: para uma nova cultura poltica. So Paulo: Cortez, 2006, p. 127 ess.45
FERNNDEZ-GARCIA, Eusbio. Dignidad Humana y Ciudadana Cosmopolita.Madrid: Editorial Dykinson, 2001, p. 66.46
Exemplos bem sugestivos de diversidade cultural so aqueles relacionados questo religiosa. A Declarao dos Direitosdo Homem no Isl, adotada pela Organizao da Conferncia Islmica, no dia 5 de outubro de 1990, no Cairo, declara quea comunidade islmica a melhor comunidade que Deus criou e que o isl a religio natural do homem, o quedefinitivamente no se compatibiliza com a liberdade religiosa propagada pelo Ocidente. Cf. DOBELLE, Jean-Franois. LeDroit International et la Protection des Droits de LHomme, in PERRIN DE BRICHAMBAUT et alii. Leons de DroitInternational Public.Paris: ditions Dalloz, 2002, p. 371 (383-384). J a Carta da Liga rabe (arts. 32 a 35) estabelece ntidasdiscriminaes entre nacionais e estrangeiros por razes religiosas. Cf. NASCIMBENE, Bruno. LIndividuo e la TutelaInternazionale dei Diritti Umani, in CARBONE, Sergio M., LUZZATTO, Riccardo e SANTA MARIA, Alberto. Istituzionidi DirittoInternazionale. Torino: G. Giappichelli Editore, 2002, p. 269 (290).47
Nosso futuro ps-humano: conseqncias da revoluo da biotecnologia, Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p. 10; e 23 e ss..
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insuficincia de recursos para a implementao de polticas pblicas) e tcnica (v.g.: a insuficincia
de ratificaes e as reservas apresentadas em atos internacionais convencionais),48 factvel a
impossibilidade de os Estados desconsiderarem esse acquis internacional. So direitos que no
podem ser subtrados do indivduo, ainda que a diversidade assuma propores extremas.49Mesmo
que a dignidade humana apele a uma referncia cultural e social, essa referncia, quando
contextualizada no mbito dos crculos menores, tende a ser relativizada em nome de uma
dignidade humana na sociedade-mundo.50
3. Prestaes sociais mnimas a serem garantidas s pessoas em situao de rua51
Ao afirmarmos que o contedo da dignidade humana delineado sob a influncia da teoria
dos crculos, de modo que a realidade subjacente a cada crculo concorra para a formao e, por
imperativo lgico, para a operacionalizao da base de valores que lhe d sustentao, necessrio
identificar, luz do nosso atual estgio civilizatrio, o que deve ser disponibilizado ao homem da
rua para que ele tenha sua dignidade reconhecida. Nesse particular, podemos identificar as
prestaes que so (1) essenciais sua continuidade biolgica, (2) essenciais a uma continuidade
digna e (3) teis ao seu bem estar. Com os olhos voltados a essa tripartio, compreendemos aimportncia dos inmeros direitos sociais, de carter prestacional, consagrados na nossa ordem
constitucional, e o modo de contornar a renitncia dos poderes constitudos na sua implementao.
As prestaes essenciais continuidade biolgica so aquelas que se mostram
instrumentalmente conectadas preservao do bem mais valioso de qualquer ser humano: a vida.
A Constituio brasileira de 1988, ao reconhecer a inviolabilidade do direito vida, o fez no caput
do seu art. 5, preceito que congrega os clssicos direitos de liberdade, assegurando a existncia de
uma esfera jurdica individual imune a intervenes exgenas, promovidas pelo Estado ou por
48Cf. DUPUY, Pierre-Marie. Droit International Public.6
aed.. Paris: ditions Dalloz, 2002, p. 228-232; e GARCIA, Emerson.
Proteo Internacional dos Direitos Humanos. 2 ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 54-55.49
Cf. CARRILLO SALCEDO, Juan Antonio. Soberania de los Estados y Derechos Humanos en Derecho InternacionalContemporneo. 2
a ed.. Madrid: Editorial Tecnos, 2001, p. 83-84; e FERNNDEZ SNCHEZ, Pablo Antonio. La Violation
Grave des Droits de LHomme comme une Menace Contre la Paix, in RDISDP vol. 77, no1, 1999, p. 23 (27-29).
50 Cf. GOMES CANOTILHO, Jos Joaquim. A Teoria da Constituio e as Insinuaes do Hegelianismo Democrtico, in
Brancosos e Interconstitucionalidade Itinerrios dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional. 2 ed.. Coimbra:Edies Almedina, 2008, p. 163 (181).51
Parte das consideraes realizadas neste item reflete o constante de obra indita, do articulista, intituladaInterpretao Constitucional. A resoluo das conflitualidades intrnsecas da norma constitucional.
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outros particulares. Impedir que a vida seja afrontada no guarda correlao direta com a previso
de prestaes materiais que assegurem a sua continuidade. Da a importncia dos direitos sociais, os
quais, de acordo com o rol do art. 6 da Constituio de 1988, com a redao dada pela Emenda
Constitucional n 64/2010, so a educao, a sade, a alimentao, o trabalho, a moradia, o lazer,
a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos
desamparados, oferecidos na forma da Constituio. Sob a tica da continuidade da vida, o mais
desses direitos certamente a alimentao.
Embora seja exato afirmar que a alimentao est diretamente conectada preservao da
vida, tratando-se de prestao essencial continuidade biolgica, observa-se que o art. 6 daConstituio de 1988 fez meno expressa assistncia aos desamparados. O homem da rua,
evidncia, um desamparado. J o art. 203, aps enunciar que a assistncia social ser prestada a
quem dela necessitar, deixa evidente, em seus incisos, que o objetivo proteger pessoas que, por
deficincias de natureza biolgica, mostrem-se inaptas a obter, sozinhas, a sua insero no ambiente
comunitrio e, de modo correlato, a prpria subsistncia. o que ocorre com os portadores de
deficincia, os idosos, as crianas e os adolescentes carentes. Apesar disso, tambm estabelece o
objetivo de promover a integrao ao mercado de trabalho e de proteger a famlia, o que,
evidncia, tambm tangencia o interesse do homem da rua.
As prestaes essenciais a uma continuidade digna so aquelas que qualificam a vida do ser
humano, permitindo-lhe estarhumano. Aquele que vive no espao pblico, ainda que receba uma
cota diria de alimentos e consiga dar continuidade sua existncia, decididamente no ostenta
uma situao compatvel com o atual nvel civilizatrio da sociedade brasileira. Afinal, factvel que
o homem da rua est completamente alijado do convvio social, isso em razo das condies sub-
humanas a que o conduzem a ausncia de abrigo e das facilidades correlatas ( v.g.: privacidade, gua
encanada, vesturio adequado etc.). Considerando que os servios pblicos genericamente
oferecidos a toda a populao tambm esto, ao menos no plano terico, ao alcance desses
indivduos (v.g.: sade e educao), no h, aqui, especificidades dignas de nota em relao ao que
rotineiramente escrito sobre essa temtica. A habitao, em verdade, o direito cuja ausncia
mais perceptvel e sentida.
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A respeito da essencialidade de certas prestaes para a continuidade da existncia e para
uma vida digna, merecem meno as construes tericas atreladas ao denominado mnimo
existencial52 (ou mnimo social social minimum53). O mnimo existencial a parte operativa da
dignidade humana, indicando as liberdades fundamentais que a integram, de modo a delinear uma
esfera jurdica imune a intervenes exgenas, pblicas ou particulares, e as prestaes positivas
que as estruturas estatais de poder no podem negar ao indivduo, isso sob pena de lhe ser negada a
prpria essncia humana. Esse mnimo no congrega apenas as prestaes necessrias
sobrevivncia. Exige um plus: que essas prestaes assegurem o pleno desenvolvimento da
personalidade individual e que ofeream os meios necessrios a uma existncia digna e saudvel.54
Essa aproximao entre dignidade (Wrde) e mnimo existencial (Existenzminimum) tem sido
historicamente encampada em solo alemo. Com os olhos voltados a uma Lei Fundamental que
praticamente passara ao largo dos direitos sociais,55os Tribunais alemes, principando pelo Tribunal
Administrativo Federal (Bundesverwaltungsgericht),56 com ulterior desenvolvimento do Tribunal
52 Cf. FORSTHOFF, Ernst. Der Staat der Industriegesellschaft. Dargestellt am Beispiel der Bundesrepublik Deutschland. 2
ed.. Mnchen: Beck, 1971, p. 75; LOBO TORRES, Ricardo. O Mnimo Existencial e os Direitos Fundamentais, in RDA n 177,jul.-set,/1989, p. 20 (20 e ss.); IDEM. O Direito ao Mnimo Existencial. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2009, p. 37; eCALABRICH SCHLUCKING, Marialva. A Proteo Constitucional do Mnimo Imune. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2009,p. 25 e ss.. Vide, ainda, o art. 12 da Constituio sua de 1999.53
Cf. RAWLS, John.A Theory of Justice.USA: Harvard University Press, (1971), reimp. de 2005, p. 370.54
Cf. WOLFGANG SARLET, Ingo. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituio Federal de 1988. 8ed.. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 59-60.55
A Grundgesetz alem, como se sabe, no contempla um rol de direitos sociais, mas, sim, pouqussimas previsesesparsas (v.g.: a proteo da maternidade e dos filhos GG, art. 6, n 4 e 5). No demais lembrar que esse fato noobstou a observncia desses direitos na Alemanha ou, mesmo, desautorizou a slida dogmtica dos direitos fundamentaiscunhada pelo Tribunal Constitucional Federal. A omisso, em verdade, tem colorido histrico: a grande distncia verificadaentre o extenso rol de direitos sociais contemplado na Constituio de Weimar e a sua concretizao junto classeproletria alem foi um dos fertilizantes para o surgimento do III Reich, da a preocupao em no se assegurar direitosque se reduziriam a um mero exerccio de retrica. Acresa-se, com Peter Badura ( Staatsrecht, Systematische Erluterungdes Grundgesetzes.3
aed.. Mnchen: Verlag C. H. Beck, 2003, p. 90) e Dieter Grimm [Constituio e Poltica (Die Verfassung
und die Politik). Trad. de CARVALHO, Geraldo de. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006, p. 250], que a doutrina
prevalecente poca de Weimar, face necessidade de mediao legislativa, afastava o efeito direto dos direitos sociais,que no passariam de meras declaraes de intenes e de programa. Sob a gide da Lei Fundamental de 1949, oTribunal Constitucional Federal, a partir das clusulas constitucionais que impem o respeito ao ser humano e sualiberdade, reconheceu a existncia de obrigaes a serem imediatamente adimplidas pelo Estado. Em consequncia,embora no nvel do direito constitucional menos marcada como Estado social, a Repblica Federal alem Estado socialem grau mais intenso do que a Repblica de Weimar, que se mostrava, no nvel do direito constitucional, socialmente mais
forte (GRIMM. Constituio..., p. 251).56
BVerwGE 1, 159 (161), 1954. Nesse julgamento, realizado em momento anterior edio da Lei Federal sobreAssistncia Social (Bundessozialhilfsgesetz - BSHG), o Tribunal, invocando a necessidade de proteo da dignidade humanae do direito vida, reconheceu s pessoas carentes o direito subjetivo ao recebimento de auxlio material a cargo doEstado. A imperativa necessidade de preservao da dignidade humana, em especial nos Pases de modernidade tardia,torna imperativa a adoo de medidas de insero social, o que permite divisar, no mbito das estruturas estatais depoder, a paulatina formao de uma opo pelos pobres, que passa a direcionar a formao, a interpretao e a
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Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht),57passaram a visualizar a exigibilidade de direitos
prestacionais que encontravam sua base de sustentao na unio ( Verbindung) entre a clusula da
dignidade humana (Menschenwrden - GG, art. 1o, no 1) e o princpio do Estado Social de Direito
(Sozialstaat - GG, art. 20, no 1).58 Com isso, a dignidade humana, alm de orientar a produo
normativa, atuando como mandado constitucional endereado ao legislador; direcionar a
interpretao e a integrao da ordem constitucional, assumindo contornos de princpio diretor,
tambm poderia dar origem a verdadeiros direitos subjetivos, permitindo que a pessoa humana
exija do Estado as prestaes mnimas e imprescindveis a uma existncia digna.59
Na temtica dos direitos sociais, a Constituio brasileira de 1988 apresenta uma estruturasensivelmente distinta da Lei Fundamental alem de 1949: enquanto esta ltima deles praticamente
no trata, aquela os prev em profuso. Apesar de o paradigma brasileiro estabelecer um
balizamento mais detalhado, ambos assemelham-se na dependncia de integrao pela legislao
infraconstitucional, que delinear as prestaes a serem oferecidas pelo Estado, os requisitos que
condicionaro a sua percepo pelos interessados e a respectiva fonte de custeio. Outra semelhana
reside na funcionalidade atribuda dignidade humana: se os Tribunais alemes extraram o direito
ao mnimo existencial diretamente de sua essncia, o Supremo Tribunal brasileiro a utilizou para
conferir eficcia plena aos preceitos constitucionais que versavam sobre os direitos fundamentais,
suprindo a omisso do legislador infraconstitucional.60
efetivao dos padres normativos estatais. Cf. DEINHAMMER, Robert. Ist eine Option fr die Armen in derRechtwissenschaft?, in ARS, v. 93, n 4, 2007, p. 551 (551 e ss.).57
BVerfGE40, 121 (133), 1975 (Weisenrente Urteil). De acordo com o Tribunal, o oferecimento de assistncia social aoscidados, que tenham suas atividades limitadas pela precariedade de suas condies fsicas e mentais, no podendo provera prpria subsistncia, uma das obrigaes essenciais do Estado Social, que deve assegurar-lhes as condies mnimaspara uma existncia digna, e ainda adotar as medidas necessrias para integr-los na sociedade.
58 Sobre a evoluo da temtica no direito alemo, vide: NEUMANN, Volker. Menschenwrde und Existenzminimum, inBREUER, RDIGER et alii (org.).Neue Zeitschrift fr Verwaltungsrecht,1995, p. 426 (426 e ss.). Especialmente em relao influncia do pensamento de Forsthoff, vide: RENSMANN. Wertordnung..., p. 303-304.59
As distintas funcionalidades da dignidade humana foram objeto de desenvolvimento por Albrecht Weber. LEtat social etles droits sociaux en RFA, in RDCn
o24, 1995, p. 677 (680).
60 Apesar de a Constituio de 1988 (art. 196) assegurar o direito sade genericamente a todos, sem indicao das
prestaes a serem oferecidas e dos recursos que permitiro a sua satisfao, o Supremo Tribunal Federal, integrando asua eficcia com o imperativo dever de o Poder Pblico assegurar o direito vida (art. 5, caput) e dignidade (art. 1, III),reconheceu que as pessoas carentes, portadores do vrus HIV, tinham o direito pblico subjetivo de receber,gratuitamente, os medicamentos necessrios e indispensveis sua sobrevivncia (STF, 2 Turma, RE-AgR n 271.286/RS,rel. Min. Celso de Mello, j. em 12/09/2000, DJ de 24/11/2000). O mesmo entendimento foi adotado em relao a pacientescom esquizofrenia paranide e doena manaco-depressiva crnica, com episdios de tentativa de suicdio, destitudas derecursos financeiros (STF, 2 Turma, RE n 393.175/RS, rel. Min. Celso de Mello, j. em 12/12/2006, DJ de 02/02/2007).
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O Tribunal Constitucional portugus tambm associou a dignidade humana ao mnimo
existencial, o que permitiu a integrao de eficcia do art. 63, n 1 e 3, da Constituio de 1976, que
versa sobre o direito segurana social, limitando a prpria liberdade de conformao do legislador
constitucional. O Tribunal tem conferido especial realce existncia, ao lado dos direitos positivos,
de natureza prestacional, de direitos negativos, o que obstaria qualquer ao estatal que pudesse
afrontar a garantia do mnimo existencial. Assim entendeu, por exemplo, ao declarar a injuridicidade
da limitao dos beneficirios do rendimento social de insero61 e da possibilidade de ser
penhorada uma parte das prestaes peridicas pagas, qualquer que seja o valor, a ttulo de
aposentao.62
Como requisito necessrio preservao da essncia da pessoa humana, o mnimo existencial
h de ser indistintamente assegurado queles que estejam no interior do respectivo crculo
axiolgico, o que lhe atribui contornos igualitrios. Deve ser estendido a todos, com abstrao das
especificidades de ordem pessoal e do mrito de cada indivduo.
Por fim, tem-se as prestaes teis ao homem da rua, aumentando o seu bem-estar. Sob
essa epgrafe estaro normalmente includas prestaes ontologicamente idnticas s anteriores,
mas que apresentam distines de ordem qualitativa (v.g.: alimentao de melhor qualidade,habitao mais suntuosa, tratamento mdico realizado por especialistas renomados etc.). Nesse
caso, sentido, em toda a sua intensidade, o alicerce ideolgico que confere sustentao aos
61Acrdo n 509/2002, inDirio da Repblica I-Srie A, n 36, de 12/02/2003, p. 905-917. Nesse julgamento, o Tribunal,
em sede de controle preventivo de constitucionalidade, entendeu que o Decreto da Assembleia da Repblica, querestringia o alcance do rendimento social de insero a apenas uma parte dos jovens com idade entre 18 e 25 anos,
alcanados pelo antigo rendimento mnimo garantido, afrontava o direito a um mnimo de existncia condigna. Cf.VIEIRA DE ANDRADE. Os Direitos Fundamentais..., p. 398-399; e MEDEIROS, Rui. Anotaes ao art. 63, inMIRANDA, Jorge eMEDEIROS, Rui. Constituio Portuguesa Anotada, Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 639-640.62
1aSeco, Acrdo n
o318/99, Proc. n
o 855/98, Conselheiro Vtor Nunes de Almeida,
j. em 26/05/1999, Acrdos do
Tribunal Constitucional, 43o vol., 1999, p. 639 a 646 (646). Nesse julgamento, prevaleceu o entendimento de que a
sobrevivncia digna do trabalhador somente seria alcanada com o atendimento do mnimo dos mnimos. Partindo dessapremissa, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade do art. 824, n
os1 e 2, do Cdigo de Processo Civil, na medida em que
permite a penhora de at 1/3 das prestaes peridicas pagas a ttulo de aposentao ou de outra qualquer regalia social,
seguro, indemnizao por acidente ou renda vitalcia, ou de quaisquer outras penses de natureza semelhante, cujo valor
no seja superior ao do salrio mnimo nacional ento em vigor, por violao do princpio da dignidade humana contido no
princpio do Estado de direito que resulta das disposies conjugadas dos artigos 1, 59, n.2, alnea a e 63, n.s 1 e 3, da
Constituio . No mesmo sentido: Plenrio, Acrdo no177/02, Proc. n
o546/01, rel. Cons. Maria dos Prazeres Pizarro
Beleza, j. em 23/04/2002, Acrdos..., 52ovol., 2002, p. 259 a 271.
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regimes econmicos de livre iniciativa, em que se privilegia o mrito individual em detrimento da
igualdade plena entre todos os integrantes do organismo social.63
Se os contornos nucleares da dignidade humana no prescindem das prestaes essenciais
continuidade biolgica e a uma vida digna, preciso analisar a possibilidade de os poderes
constitudos serem compelidos a oferec-las, bem como os legitimados a pleitear tais providncias e
os bices tradicionalmente opostos s pretenses formuladas.
4. A exegibilidade dos direitos prestacionais
O reconhecimento de que a preservao da dignidade humana no prescinde da concorrncia
do sere do estarhumano evidencia, ao menos em relao ao homem da rua, a premncia de dois
direitos sociais verdadeiramente basilares, que so a alimentao e a habitao: o primeiro
essencial continuidade da vida, o segundo, vida digna. O primeiro problema a ser enfrentado diz
respeito ao contedo dessas prestaes e ao modo de disponibiliz-las s pessoas que vivam ao
relento, perambulando pelo espao pblico. Por certo, o ideal seria fornecer a cada pessoa uma
habitao individual e um quantitativo de alimentos que se mostrasse suficiente ao seu sustento e,
se fosse o caso, ao de sua famlia, pois a penria, como sabido por todos, costuma ser uma das
causas de dissoluo do ncleo familiar.
Se o objetivo nobre e no se pode censurar quem busca materializ-lo na realidade, a
verdade que o Estado brasileiro apresenta incontveis carncias nos servios pblicos que oferece
populao. O dficit habitacional apenas uma delas, sendo elevado o quantitativo de pessoas,
distribudo por incontveis comunidades carentes, que se aglomera em moradias de inegvel
precariedade. Acresa-se que a atuao do Estado deve ser sempre subsidiria, devendo estimular
que o prprio indivduo desenvolva suas aptides pessoais, de modo a obter a sua integrao ao
mercado de trabalho. Esse, como dissemos, um dos objetivos da assistncia social.
A situao de rua deve ser vista como um estgio de profunda humilhao e desresp eito
condio humana, devendo ser imediatamente contornada pelo Poder Pblico. Essa atuao, por
sua vez, deve ser sempre transitria, subsistindo enquanto o indivduo no consiga se reestruturar e
63Sobre a desigualdade de meios entre os homens, vide Sieys, Abade. Exposio Refletida dos Direitos do Homem e do
Cidado. Trad. de GARCIA, Emerson. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 57-58.
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reingressar em um padro de normalidade. A transitoriedade h de influenciar o modo de
oferecimento das prestaes a que temos nos referido. Ainda merece referncia que a execuo
desse munus deve ser antecedida por um levantamento, realizado pelas estruturas estatais de
poder, a respeito do quantitativo de pessoas em situao de rua; das regies, urbanas ou rurais,
em que se encontram; e das causas que conduziram a esse estado de coisas. O levantamento inicial,
como intuitivo, deve ser constantemente atualizado.
A partir do momento em que o levantamento realizado, a soluo que se mostra mais
compatvel com a realidade brasileira parece ser a construo de centros de apoio, com habitaes
coletivas, divididas por sexo, e estruturas individuais para o atendimento das famlias que seencontrem em situao de rua, de modo a preservar o agregado familiar. Nesses centros, as
pessoas, alm de abrigo e alimentao, recebero atendimento especializado, por equipe
multidisciplinar, que ter a funo de realizar (1) a reconstruo da sua autoestima, (2) a
aproximao com a famlia, isso nas situaes de abandono de lar e (3) a insero no mercado de
trabalho, se necessrio com a qualificao profissional.
soluo ora alvitrada certamente ser combatida com o (tradicional) argumento de que,
mngua de lei detalhando a natureza das prestaes a serem oferecidas, no seria possvel exigi-lasdos poderes constitudos. Esse argumento, alm de inusitado, desafia o velho brocardo de que a
ningum dado beneficiar-se com a prpria torpeza. No demais lembrar que, a teor dos incisos
I, IX e X do art. 23 da Constituio, competncia comum da Unio, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municpios zelar pela guarda da Constituio, promover programas de construo de moradias
e a melhoria das condies habitacionais, bem como combater as causas da pobreza e os fatores de
marginalizao, promovendo a integrao social dos setores desfavorecidos.
Ainda que a Lei n 8.742/1993, diploma que dispe sobre a organizao da assistncia social,no defina, detalhadamente, as prestaes a serem oferecidas, ela reconhece que (1) a poltica de
assistncia social deve prover o mnimo social (art. 1); (2) a assistncia social tem por objetivo a
proteo social, que visa garantia da vida (art. 2, I); (3) o enfrentamento da pobreza deve ser
norteado pela universalizao dos direitos sociais (arts. 2, pargrafo nico e 4, II); (4) o Servio
nico de Assistncia Social (SUAS) tem por objetivo afianar a vigilncia socioassistencial e a
garantia de direitos (art. 6, VII); (5) a proteo social especial tem por objetivo contribuir para a
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reconstruo de vnculos familiares e comunitrios, a defesa de direito, o fortalecimento das
potencialidades e aquisies e a proteo de famlias e indivduos para o enfrentamento das
situaes de violao de direitos (art. 6-A, II), o que deve ser feito por intermdio do Centro de
Referncia Especializado de Assistncia Social Creas - (art. 6-C, 2); (6) os Estados, o Distrito
Federal e os Municpios podero conceder benefcios eventuais aos cidados e s famlias em
virtude de situaes de vulnerabilidade temporria (art. 22, capute 1); (7) devem ser oferecidos
servios socioassistenciais, tal qual definidos em regulamento, considerados como tais as atividades
continuadas que visem melhoria de vida da populao e cujas aes, voltadas para as necessidades
bsicas, observem os objetivos, princpios e diretrizes estabelecidos da Lei n 8.742/1993 (art. 23,
caput, e 1), que devem incluir os programas de amparo s pessoas que vivam em situao de
rua (art. 23, 2, II); (8) os projetos de enfrentamento da pobreza devem subs idiar, financeira e
tecnicamente, iniciativas que garantam, aos grupos populares, meios, capacidade produtiva e de
gesto para melhoria das condies gerais de subsistncia e elevao do padro da qualidade de
vida (art. 25, caput); e (9) a atuao da Unio se dar em carter supletivo (art. 34).
Portanto, todos os entes federados tm a responsabilidade de restabelecer a dignidade das
pessoas em situao de rua. Em primeiro lugar, cumpre observar que o oferecimento de
alimentao e abrigo consubstancia o mnimo dos mnimos. Em outras palavras, permite, apenas,
que o indivduo continue a viver e apresente as caractersticas que delineiam o estilo de vida da
espcie humana no crculo em que est inserido. Assim, a exemplo do que foi feito aqui e alhures,
nesse caso, a exigibilidade dos direitos sociais referidos no art. 6 da Constituio de 1988 decorre
da integrao do seu contedo pela necessidade de preservao da dignidade humana. Em segundo
lugar, deve-se observar que a presena de uma equipe multidisciplinar decorre justamente da
exigncia de que a assistncia social tenha carter transitrio, de modo a no perpetuar a situao
de carncia da pessoa necessitada. Sem a equipe multidisciplinar, os centros de apoio se
transformariam em verdadeiros depsitos de indigentes, afastando qualquer esperana de
reinsero social.
com os olhos voltados a essa responsabilidade assistencial que deve ser interpretado o
Decreto n 7.053/2009, que instituiu a Poltica Nacional para a Populao em situao de Rua.
Apesar de o seu art. 2 ter previsto que essa poltica seria implementada, de forma descentralizada e
articulada entre a Unio e os demais entes federativos que a ela aderirem por meio de instrumento
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prprio, possvel afirmar que no h qualquer espao de deciso quanto integrao do
respectivo ente federado a essa poltica ou implementao, ou no, das medidas que delineiam a
sua estrutura bsica. Afinal, no se pode transigir com a proteo dignidade humana.
De acordo com o Decreto n 7.052/2009, tm-se, como princpios da referida poltica, o
respeito dignidade da pessoa humana e o direito convivncia familiar e comunitria (art. 5, I e
II); como diretriz, a promoo dos direitos civis, polticos, econmicos, sociais, culturais e ambientais
(art. 6, I); e, como objetivos, assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos servios e
programas que integram as polticas pblicas de sade, educao, previdncia, assistncia social,
moradia, segurana, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda, bem como proporcionar o acesso daspessoas em situao de rua aos benefcios previdencirios e assistenciais e aos programas de
transferncia de renda, na forma da legislao especfica, alm de implementar aes de segurana
alimentar e nutricional suficientes para proporcionar acesso permanente alimentao pela
populao em situao de rua alimentao, com qualidade (art. 7 I, IX e XIII). A rede de
acolhimento temporrio, consoante o art. 8, dever observar limite de capacidade, regras de
funcionamento e convivncia, acessibilidade, salubridade e distribuio geogrfica das unidades de
acolhimento nas reas urbanas, respeitado o direito de permanncia da populao em situao de
rua, preferencialmente nas cidades ou nos centros urbanos.
Alm de definir as prestaes a serem oferecidas s pessoas carentes, tambm caberia lei,
mais especificamente lei oramentria, autorizar a realizao da despesa pblica e indicar as
receitas a serem utilizadas para custe-la. Essa, alis, a sistemtica constitucional, bem explicitada
no art. 167 da Constituio de 1988 e na Lei n 4.320/1964. Alm dessa impossibilidade de ordem
jurdica, consistente na vedao ao incio de programas ou projetos no includos na lei
oramentria anual, h outra, de ordemftica, que se reflete na prpria inexistncia de recursos
que possam financiar esse tipo de prestaes. Ambas podem ser enquadradas sob a epgrafe mais
ampla da reserva do possvel, argumento tradicionalmente suscitado pelos poderes constitudos
para se esquivar de suas obrigaes.
Em relao reserva do possvel de ordem jurdica, observa-se a mesma deturpao presente
no argumento de que somente a lei poderia definir as prestaes a serem oferecidas ao homem da
rua. Do mesmo modo que a clusula constitucional de proteo dignidade humana autoriza a
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integrao do contedo do direito alimentao e habitao, tambm ela deve direcionar a
interpretao da lei oramentria, de natureza infraconstitucional. Assim, caso o Chefe do Poder
Executivo e o Poder Legislativo, o primeiro ao apresentar o projeto de lei oramentria, o segundo
ao vot-lo, por um lapso, esqueam de direcionar dotaes oramentrias para fazer face
realizao de projetos envolvendo as pessoas em situao de rua, a soluo ser ajustar a lei
Constituio e no o contrrio. Assim, caber ao Poder Executivo, na gesto do oramento,
determinar o remanejamento das dotaes oramentrias necessrias realizao dos programas
assistenciais aqui referidos.
Situao mais delicada diz respeito reserva do possvel de ordem ftica, em que,verdadeiramente, no h disponibilidade de caixa para realizar os programas almejados. Em
situaes dessa natureza, no h como se compelir o Poder Pblico a realizar despesas que no
pode custear. Apesar dessa concluso ser verdadeira e de os atos dos agentes pblico estarem
amparados pela presuno de veracidade ao menos os manuais nos ensinam isso -, imperativo
que essa situao seja devidamente provada no curso da relao processual. Afinal, como dispe o
art. 333, II, do Cdigo de Processo Civil, o nus da prova compete ao demandado quanto
existncia de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Para se chegar concluso de que inexistem recursos disponveis, preciso verificar, em
carter preliminar, como sero gastos aqueles existentes. Afinal, recursos, ainda que em pequena
quantidade, sempre existiro. Isso significa dizer que, se os recursos so limitados e o administrador
deve decidir quais projetos sero realizados e quais sero adiados, preciso estabelecer uma ordem
de precedncia entre eles. Conquanto se reconhea que essa ordem de precedncia ser
ordinariamente definida a partir dos juzos valorativos realizados pelo administrador, no se pode
negar o escalonamento hierrquico que emerge do prprio texto constitucional. o caso, por
exemplo, da prioridade absoluta que o art. 227, caput, da Constituio atribui aos direitos das
crianas e dos adolescentes. O mesmo pode ser dito em relao s prestaes essenciais
continuidade biolgica do ser humano e a uma continuidade digna. Despesas dessa natureza
ostentam evidente precedncia em relao a outras que no se mostram essenciais estrutura
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administrativa, como o caso da propaganda institucional. Se escolhas trgicas precisam ser
realizadas e efetivamente o sero, no pode o administrador ignorar os comandos constitucionais.64
Para sustentar a liberdade de escolha do administrador, mxime quando possui legitimidade
democrtica, costuma-se argumentar que a definio dos programas sociais a serem
implementados, quando no decorrente de imposio legal, se insere no mbito da
discricionariedade administrativa. A existncia do poder discricionrio decorre da impossibilidade de
a lei dispor, a priori, sobre a soluo que melhor aproveite ao interesse pblico, sendo prefervel a
concesso de uma liberdade mais ampla s autoridades responsveis pela execuo do ato. Com
isso, permite-se a valorao das circunstncias subjacentes ao caso concreto, possibilitando aidentificao da medida mais adequada. Essa atividade valorativa culminar com a escolha, dentre
dois ou mais comportamentos possveis, daquele que se mostre mais consentneo com o caso
concreto e a satisfao do interesse pblico.65 Para que esse objetivo seja alcanado, dever o
administrador, na lio de Gianini,66 proceder ponderao comparativa dos vrios interesses
secundrios (pblicos, coletivos ou privados), em vista a um interesse primrio. De acordo com
Sandulli,67a discricionariedade importa sempre uma valorao, uma ponderao de interesses e um
poder de escolha.
inegvel, portanto, que o administrador pblico deve ter assegurada uma esfera de
liberdade no mbito de sua atuao funcional. No entanto, margem da lei no h verdadeira
liberdade, mas, sim, arbitrariedade. Ao reconhecermos que a dignidade humana atribui imediata
exegibilidade aos direitos prestacionais, ainda que o legislador no defina o teor das prestaes ou
indique a fonte de custeio, factvel que s h verdadeira liberdade quando o administrador, por
absoluta carncia de recursos, precisar escolher entre eles ou outros programas dotados de igual ou
superior hierarquia axiolgica. Fora dessa situao, no h propriamente uma opo, mas
verdadeira imposio.
64 Cf. GARCIA, Emerson. O Direito Educao e suas Perspectivas de Efetividade, in Revista Forense n 383, p. 83,
janeiro/fevereiro de 2006.65
Cf. CRAIG, Paul. Administrative Law. 5a ed.. Londres: Sweet & Maxwell Limited, 2003, p. 521; e MORAND-DEVILLER,
Jacqueline. Cours de Droit Administratif.4aed.. Paris: Montchrestien, 1995, p. 255.
66Diritto Amministrativo, vol. 2
o. 3
aed.. Milano: D. A. Giufrr Editore, 1993, p. 49.
67Manuale di Diritto Amministrativo, vol. 1. 15
aed.. Napoli: Jovene Editore, 1989, p. 593.
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Se o administrador deixar de cumprir uma imposio de ordem constitucional ou legal, no h
qualquer bice atuao do Poder Judicirio com o objetivo de recompor a juridicidade. Em
situaes dessa natureza, embora o argumento seja mais que corriqueiro, no h que se falar em
violao ao princpio da diviso das funes estatais. Note-se que a estrita conexo entre a diviso
das funes estatais e a garantia dos direitos individuais remonta ao pensamento revolucionrio
francs, recebendo consagrao expressa no art. 16 da Declarao dos Direitos do Homem e do
Cidado de 1789: toda sociedade na qual a garantia dos direitos no assegurada, nem a
separao dos poderes determinada, no tem Constituio. O Poder Judicirio, ao atuar, longe de
macular a diviso das funes estatais, lhe rende homenagem, contendo os excessos ou
contornando as omisses do Poder Executivo. Afinal, por imposio constitucional, a lei sequer pode
excluir da sua apreciao leso ou ameaa a direito (art. 5, XXXV).68
O Poder Judicirio, por fora do princpio da inrcia, somente pode atuar quando provocado.
In casu, essa provocao, em primeiro lugar, pode ser realizada pelo prprio homem da rua. Essa
hiptese, conquanto juridicamente possvel, faticamente improvvel. Ao chegar aos limites de sua
prpria humanidade, por pouco deixando de estar humano, o indivduo h muito abandonou a
conscincia de sua civilidade e consequente insero em um Estado de Direito, onde titular de
direitos e obrigaes. V-se entregue prpria sorte, marginalizado por um sistema que o
abandonou e no qual no se sente inserido. luz desse quadro, aumenta o munusinstitucional do
Ministrio Pblico, que pode realizar a defesa dos interesses do homem da rua tanto sob a tica
individual, o que decorre de sua situao de indigncia e da indisponibilidade dos interesses
envolvidos (rectius: vida e subsistncia digna), como sob a tica coletiva ou difusa, isso em razo da
pluralidade de beneficirios de sua ao, individualizveis ou no. o que deflui do art. 127, capute
do art. 129, III, da Constituio da Repblica. Acresa-se que a Lei n 8.742/1993, em seu art. 31,
dispe que [c]abe ao Ministrio Pblico zelar pelo efetivo respeito aos direitos estabelecidos nesta
lei.
5. A autonomia da vontade como algoz da dignidade
68Cf. GARCIA, Emerson. Princpio da Separao dos Poderes: os rgos Jurisdicionais e a Concreo dos Direitos Sociais, in
Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa vol. 46, n 2, p. 955, 2005.
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A ideia de autonomia reflete a liberdade de determinao de um sujeito. No mbito
doutrinrio, no incomum defender-se que a autonomia privada pode ser induzida, como garantia
constitucional, do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e de outros direitos
fundamentais contemplados na ordem constitucional.69A superioridade hierrquica da Constituio,
ao que se acresce o seu papel de elemento unificador do ordenamento jurdico e vrtice do sistema
axiolgico que lhe inerente, permite afirmar que a definio da esfera jurdica individual receber
todo o influxo normativo dela originrio. Em outras palavras, a autonomia da vontade e os demais
elementos caractersticos das relaes privadas assumiro os contornos que a ordem constitucional
lhes facultar.
O reconhecimento da autonomia da vontade tambm uma forma de exteriorizao da
dignidade humana, refletindo a liberdade de pensar e agir, desde, obviamente, que isso no importe
em violao aos balizamentos estabelecidos pela ordem jurdica. No h liberdade para agir
margem da juridicidade.
Por mais incrvel que possa parecer, no se deve descartar a possibilidade de um elevado
quantitativo de pessoas se encontrar, voluntariamente, em situao de rua. Esse estado de coisas,
vez ou outra, decorre no propriamente do gosto pelas condies de vida obtidas no espao pblico,mas, sim, da insatisfao com as alternativas disponveis, como a reinsero no ambiente familiar
ou, mesmo, o ingresso nos centros de apoio que venham a ser estruturados pelo Poder Pblico.
Embora seja exato afirmar que uma pessoa no pode abrir mo de sua dignidade, bem
inerente e indissocivel da espcie humana, portanto, fora de comrcio, possvel que sua conduta
individual mostre-se faticamente atentatria a essa dignidade, que somente continuaria a existir no
plano idealstico-formal. Nessas situaes, caber ordem jurdica definir se esse tipo de conduta
caracterizar, ou no, um ato ilcito.
No caso brasileiro, merece referncia a contraveno penal tipificada no art. 59 do Decreto-
Lei n 3.688/1941, verbis: [e]ntregar-se algum habitualmente ociosidade, sendo vlido para o
trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistncia, ou prover prpria
subsistncia mediante ocupao ilcita: Pena priso simples, de quinze dias a trs meses. Pargrafo
nico. A aquisio superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de
69Cf. MIRANDA. Manual..., Tomo IV, p. 326.
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7/23/2019 RBDC-19-311-Artigo Emerson Garcia (Pessoas Em Situacao de Rua e Direitos Prestacionais)
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PESSOAS EM SITUAO DE RUA E DIREITOS PRESTACIONAIS
EMERSON GARCIA
Revista Brasileira de Direito ConstitucionalRBDC n. 19jan./jun. 2012 337
subsistncia, extingue a pena. A referncia validez para o trabalho evidencia que o indivduo no
praticar qualquer ilcito caso apresente uma disfuno fsica ou mental que inviabilize o exerccio
de atividade laborativa lcita ou, mesmo, quando no encontrar um posto de trabalho, o que no
chega a ser incomum. Esse aspecto bem demonstra que a reduo da populao em situao de
rua somente ser obtida a partir da realizao de esforos integrados, disponibilizando -se abrigo e
alimentao, com a correlata atuao da equipe multidisciplinar, de modo a integrar, ao mercado de
trabalho, as pessoas que se encontrem nessa situao, bem como com a coibio do ilcito penal que
a ociosidade pode caracterizar.
Outro aspecto digno de nota que o espao pblico, como se constata pelos prprioscontornos semnticos da expresso, destinado ao uso pblico, no podendo ser privatizado pelo
homem da rua margem de autorizao concedida pelo rgo competente. Uma coisa transitar
pelo espao, coisa diversa ocup-lo como se moradia fosse. Nessa linha, plenamente factvel a
possibilidade de manejo da ao civil pblica, pelo Ministrio Pblico ou por outros legitimados, com
o objetivo de compelir o Poder Pblico a remover o homem da rua do local em que se encontra.
Essa medida, no entanto, somente se mostra uma opo vivel caso os centros de apoio sejam
estruturados e estejam em plena operao. Detectada a omisso do administrador no cumprimento
do seu munus constitucional, ainda possvel perquirir a sua responsabilizao pessoal,
especialmente com a incidncia das sanes previstas na Lei n 8.429/1992. Para tanto, de bom
alvitre seja manejado, pelo Ministrio Pblico, o instrumento da recomendao, de modo a
cientificar o agente pblico, pessoalmente, da ilicitude de sua omisso e facilitar a demonstrao do
seu dolo, necessrio na hiptese do art. 11 do referido diploma legal.
Eplogo
A lamentvel situao em que se encontra o elevado contingente populacional que vive
margem do ambiente sociopoltico, perambulando pelo espao pblico, refm da prpria sorte,
exige um processo de mobilizao social para que os representantes do povo, frente dos Poderes
Executivo e Legislativo, at