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Fotografia e surrealismo
Roberto Berton de Ângelo /UNICAMP
Cronologicamente, o Surrealismo é o último movimento da vanguarda européia e surgiu com
esta denominação em finais de 1924, por ocasião de três eventos; a fundação do “Bureau central de
recherches surréalistes”, um escritório destinado a investigações oníricas, em outubro; o lançamento
do Manifeste du surréalisme, por André Breton, em novembro e a publicação do primeiro número da
revista La Révolution Surréaliste, em 25 de dezembro de 1924.
O Surrealismo, definido por André Breton, em Manifeste du Surréalisme (1924), como um
“automatismo psíquico puro através do qual propõe-se exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja
por outra maneira, o funcionamento real do pensamento na ausência de todo controle exercido pela
razão e fora de toda preocupação estética ou moral”. Afirmou-se não apenas como um movimento de
vanguarda dentro da história artística e literária do século XX, mas como uma revolução dos modos de
pensar e da tomada de consciência do homem moderno e de sua inserção no mundo.
Com preocupações fortemente voltadas à renovação, os surrealistas exploraram os domínios
ligados à psicologia, à filosofia, à etnologia, à antropologia e à sociologia, procurando. Redescobriram
escritores como Sade, Lautréamont, Rimbaud e Mallarmé, buscando ao mesmo tempo apoio filosófico
em Freud e no marxismo. Além disso, o movimento buscava a emancipação total do homem, o homem
fora da lógica, da razão, da moral e da religião - o homem livre de suas relações psicológicas e
culturais. Daí a recorrência à magia, ao ocultismo, na tentativa de se descobrir o homem primitivo,
ainda não maculado pela sociedade.
Essas atitudes, acrescidas ao desenvolvimento da psicologia e a descoberta do método
psicanalítico da escrita automática e do pensamento falado, vão levar agora à dimensão surrealista, que
teve repercussões na maior parte das literaturas e artes ocidentais. O grupo surrealista, estudando Freud
e os estados alterados de consciência e fazendo experiências com o sonho e com o sono hipnótico,
procurou superar o sentido de grupo destinado apenas à divulgação de suas idéias para se transformar
numa equipe de estudos e experimentações psicanalíticas. Ao niilismo dadaísta opunha-se agora o
conhecimento total do homem, para o que tanto a poesia como a arte ano passavam de meios de
investigação que lhes permitiam, como “cientistas”, explorar o inconsciente, o sonho, o maravilhoso.
Em 1924, com o lançamento do primeiro manifesto surrealista, definem-se as diretrizes desse
movimento cultural. Nas publicações do periódico La Révolution Surréaliste sucedem-se declarações e
descobertas surrealistas, predominando a exploração do inconsciente, as narrações dos sonhos, as
experiências com o sono hipnótico e, também, a partir de 1925, a fase de conscientização política. Para
Breton, a arte autêntica era a que estava ligada à atividade revolucionária.
As principais publicações do movimento surrealista foram as revistas, La Révolution
Surréaliste (1924-1929), Le Surréalisme au service de la Révolution (1930-1933), Documents (1929-
1930) e Minotaure (1933-1939) e em seu conjunto, permite-nos, através das fotografias publicadas, o
estudo da trajetória intelectual do movimento e de sua estética, assim como, a observação das relações
entre a teoria e a prática surrealistas.
Os surrealistas foram atraídos pelo registro direto e pela reprodução mecânica próprios da
fotografia. O interesse dos surrealistas foi, entretanto, fruto de uma longa reflexão sobre a natureza do
visual, reflexão na qual a fotografia é considerada como a imagem moderna por excelência, um
verdadeiro monóculo cultural. Insistiram sobre a idéia de que a imagem comunicava muito mais do que
poderia mostrar ordinariamente e demoliram a noção de comunicação exata, proclamando que
diferentes mensagens poderiam emanar de um mesmo documento.
Constituindo-se num meio de expressão privilegiado do Surrealismo, a fotografia foi
amplamente utilizada com finalidades subversivas. Dentre as técnicas fotográficas empregadas,
podemos citar: a colagem, técnica iniciada pelos cubistas; a fotomontagem, já utilizada pelos dadaistas
e construtivistas russos; o fotograma, também chamado de rayografia, termo oriundo do nome Man
Ray, (prova obtida sem aparelho, pela impressão direta de objetos sobre uma superfície sensível, ao
contato com a luz), técnica apreciada pelas vanguardas da época; a solarização (inversão parcial dos
valores numa imagem, produzida pela reexposiçao do filme durante sua revelação); o Space Writing de
Man Ray, espécie de escritura automática fotográfica; a fossilização, utilizada por Raoul Ubac, consiste
em sobrepor o negativo juntamente com o positivo de um mesmo sujeito, ligeiramente deslocados,
dando à imagem obtida um curioso aspecto de baixo-relevo; a brûlage, utilizada também por Ubac,
imagens resultantes através do amolecimento da emulsão negativa pela ação do calor.
A técnicas desenvolvidas pela fotografia surrealista buscavam alterar a percepção da realidade,
criando imagens e combinações que ganhavam um aspecto alucinatório e enigmático. Combinando
muitas vezes, várias imagens fotográficas, transformando objetos, corpos e paisagens, criando
ambientes maravilhosos e provocando certa desorientação, a fotografia serviu como um meio de
conquista do irracional, gerando novas configurações da realidade.
Algumas fotografias possuem uma precisão maior, outras, como as de Ubac, são dominadas
por uma fluidez. Algumas técnicas são procedentes do automatismo ou de recursos aleatórios,
evocando as coisas de maneira pouco clara, estas imagens parecem precipitadas do inconsciente, como
a poesia automática.
A revista La Révolution Surréaliste, dirigida inicialmente por Pierre Naville e Benjamin Péret
(André Breton terá sua direção em abril de 1925), compreende em sua coleção completa 12 números,
equivalentes ao período de cinco anos de atividades, de 1 de dezembro de 1924 a 15 de dezembro de
1929. Encontramos nesta revista muitas fotografias de Man Ray, algumas de Eugène Atget, de René
Magritte (fotomontagem), fotografias variadas de anônimos e fotografias antigas encontradas em lojas
de objetos usados e outras, que podem ou não relacionar-se, em justaposição, com os textos.
Man Ray (Emmanuel Rudnitsky), um dos maiores nomes da fotografia surrealista, chega a
Paris em 1921. Pintor, dadaísta e amigo de Marcel Duchamp é logo inserido ao grupo surrealista. Faz
retratos, moda, documentação e monta seu próprio atelier. Utiliza técnicas inovadoras como
solarizaçoes, rayografias, experimentações diversas e lúdicas, cria objetos absolutamente
desconcertantes e novas temáticas, indo de encontro aos anseios surrealistas. Um profissional
meticuloso e um agitador metódico em fotografia, utiliza tanto do acaso quanto da razão.
Três fotografias de Man Ray (1896-1976), são publicadas em dezembro de 1924, na capa do
primeiro número de La Révolution surréaliste (Fig. 1). Estas fotografias mostram o grupo de
surrealistas em plena atividade, em sessões e experiências hipnagógicas realizadas no Bureau central
de recherches surréalistes, conhecido também como Central surréaliste. Uma legenda acompanha
estas fotografias, Il faut aboutir a une nouvelle déclaration des droits de l’homme (É necessário uma
nova declaração dos direitos do homem).
Para compreender os mecanismos do inconsciente, os surrealistas estudaram os processos de
funcionamento do sonho e exploraram profundamente sua linguagem. Nos primeiros números
acentuam-se os relatos oníricos que sucedem as pesquisas sobre os sonhos experimentadas por
membros do grupo. Na sessão Rêves (Sonhos), aparecem relatos de Giorgio de Chirico e Renée
Gauthier, e ilustrando um sonho de André Breton, na página 4, surge uma fotografia de Man Ray,
intitulada Le Retour à la Raison (Fig. 2). Um torso nu, de mulher, como que rendado, pelo efeito da
tênue luz que vem pela janela e atravessa a cortina. Uma atmosfera de sonho e sensualidade! O tronco é
de Kiki de Montparnasse (Alice Sprin), na época sua modelo preferida e amante e a foto foi retirada do
filme Le Retour à la raison, realizado por Man Ray, em 1923.
Ilustrando o cultivo ao inusitado, no Prefácio de La Révolution Surréaliste, N. 1, p. 1, num
texto de J.A Boiffard, Paul Éluard e R. Vitrac, surge a fotografia de Man Ray, L’enigme d’Isadore
Ducasse (Fig. 3), também conhecida por The Riddle, de 1920. Trata-se de uma “assemblage”, uma
reunião de objetos, possivelmente, uma máquina de costura, embrulhada num tecido escuro e grosso e
amarrada com cordões, tornando-se irreconhecível seu conteúdo, porém, fornecendo um forte convite à
imaginação. Isadore Ducasse, ou Comte de Lautréamont, foi o autor do poema Les Chants de Maldoror
(1869), considerado pelos surrealistas como um texto precursor do Surrealismo. Se bem que esta
“assemblage” tenha sido desmontada após a tomada da fotografia, Man Ray desejava fazer crer que
dois objetos ordinários eram dissimulados sob o tecido. Mas a única maneira de saber o que era e de
resolver o enigma, era conhecer os escritos do autor francês, permanecido por muito tempo obscuro e
tornado, agora, muito influente.
Este encontro fortuito que Man Ray tentou mostrar em L’Enigme d’Isadore Ducasse é
explicado por ele: “Quando eu li Lautréamont, fascinei-me pela justaposição dos objetos e das palavras
inusitadas” (Man Ray, Autoportrait, p. 346). Atraído pelo universo da liberdade total do Comte de
Lautréamont, mais tarde, Man Ray faz um desenho ilustrando uma de suas conhecidas frases: “Belo
como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecação de uma máquina de costura e de uma guarda-
chuva”.
Alguns objetos estiveram presentes na vida cotidiana de Man Ray (M. Ray, Objetos de mon
affection), em seu atelier, mantendo com estes uma relação próxima e constante. Como que secretados,
como um animal secreta sua própria concha, estes objetos eram fotografados, modificados,
aperfeiçoados. São objetos míticos, como Cadeau, o ferro de passar eriçado de pregos, ou Lampshade,
o abajur esticado numa espiral, cujo misterioso poder de sedução não cessa de nos surpreender através
de infinitas variantes e o Roulement Habile (Fig. 4), um vidro cilíndrico contendo bolas e uma tarja
escrita New York, publicado em La Révolution Surréaliste, n. 1, p. 29.
Estes objetos são criações puras, nascidas do nada, a partir de velhos pedaços de ferragens ou
de jogos de palavras, “objets trouvés” (objetos encontrados), ou “objets interpretés” (objets
interpretados), às vezes criados para o tempo de uma fotografia e depois destruídos.
A mulher, o feminino e o erótico são as forças maiores que movem o Surrealismo. A mulher é
celebrada de todas as formas, como musa e libertadora. Pretende-se a liberação total da sexualidade. O
tema de predileção de Man Ray é o nu, que ele trata de múltiplas maneiras, desde a simples fotografia
aparentemente acadêmica até aquela com múltiplas exposições e solarizações passando pelas figuras
alegóricas bem conhecidas do público como Le violon d’Ingres (1924) ou La prière (1930). Suas
amigas, companheiras e amantes sucessivas, de Kiki de Montparnasse à Lee Miller, tornaram-se seus
modelos privilegiados e suas fontes de inspiração.
Dentro de uma temática mesclada de mitologia e fantasia, podemos ver em La Révolution
Surréaliste, N. 1, p. 14, outra foto de Man Ray, retirada do mesmo filme, Le Retour à la raison. Mostra
um tronco de mulher (Fig. 5), porém com quatro seios, lembrando uma imagem reminescente das
antigas deusas da fertilidade. Este efeito de multiplicação dos seios foi conseguido pela superposição
de dois fotogramas retirados provavelmente de sobras de filme. Foram encontradas entre suas
anotações, recomendações ao laboratorista para mascarar cuidadosamente, na reprodução fotográfica, a
linha de junção entre as duas imagens, afim de acentuar o caráter fantástico da imagem. Havia sempre
um mistério e estranheza, como um véu lançado sobre a imagem.
O filme Le Retour à la Raison foi composto com algumas experimentações realizadas por
Man Ray, com imagens estranhas, aglomerados de rayografias (impressões de cristais de sais, de
alfinetes e de percevejos) e seqüências com a “assemblage” Dancer/Danger, incorporando também
algumas seqüências mais realistas, como a do nu em movimento, listrado de luz e sombra, de Kiki .
Este filme foi apresentado em 6 de julho do mesmo ano, no Théâtre Michel, quando da noite Coeur à
Barbe, que marca a morte “oficial” do movimento Dada.
Definido como uma revolução de valores e apresentando-se como um novo modo de
apreender o real, o Surrealismo refere-se à obra plástica: “A obra plástica, para responder à necessidade
de revisão absoluta dos valores reais sobre os quais hoje todos os espíritos se conciliam, se referirá a
um modelo puramente interior ou não será.” (A. Breton, Manifeste du surréalisme, J.-J. Pauvert, 1965,
p. 24). Estes modelos interiores podem revelar-se nos estados oníricos, de associações livres, de
hipnose, em estados de êxtase e delírio.
Dentro desta mesma temática, Man Ray, em La Révolution Surréaliste, 1925, N. 2, p. 26,
apresenta mais uma vez um corpo nu, ilustrando uma das Crônicas intitulada Le Sommeil: Je ne sais
pas découper (O Sono: Eu não sei recortá-lo) (Fig. 6), de René Crevel. Desta vez o corpo feminino,
curvilíneo, é apresentado por inteiro e em pé. Os braços contornam o rosto, como um capuz não
permitindo que a luz que vem por cima (luz de pino) ilumine sua face. Foi conseguido, na revelação,
um efeito de embaçamento (flou), que torna a imagem imprecisa, fluida, onírica.
A mulher como musa, mas também como símbolo da transgressão é celebrada no conjunto de
fotografias quer acompanha os Textes Surréalistes, em La Révolution Surréaliste, 1925, N. 1, p. 17
(Fig. 7). Vemos um conjunto de 28 retratos, quadrados e de mesmo tamanho, circundando o retrato de
Germaine Berton, de proporções maiores, situado ao centro. À sua volta estão os retratos de André
Breton, Max Ernst, Louis Aragon, Paul Éluard, Giorgio de Chirico, Man Ray, Antonin Artaud, e outros
principais representantes do movimento surrealista, juntamente com outras importantes personalidades
da época como Sigmund Freud, Pablo Picasso, e outros. Germaine Berton, anarquista que havia
assassinado o redator chefe de l’Action Française, um político de extrema direita, é colocada ao centro
e, como que uma dedicatória, uma citação de Baudelaire: ”A mulher é o ser que projeta a maior sombra
ou a maior luz em nosso sonhos”.
Podemos verificar que, às vezes, as fotografias aparecem sem legendas, anônimas e
desprovidas de índices de identificação ou ligação com o texto. Outras fotografias trazem uma legenda
que, por sua vez, modifica o sentido da imagem, como por exemplo, a fotografia de Man Ray, France
(Fig. 8)(La Révolution Surréaliste, 1926, N. 6), também conhecida por Sculpture mouvante. Esta
imagem, encontrada em várias versões, mostra lençóis ou roupas, dependurados num varal, ao vento,
lembrando corpos fantasmagóricos ou bandeiras esfarrapadas.
A revista Documents, fundada em 1929 por Georges Henri Rivière e Georges Bataille
(também redator chefe), compreende o período de 1929-30, e compõem-se de dois volumes, sendo que
no Volume 1, ano 1929, encontramos os números de 1 a 7, e no Volume 2, ano 1930, os números de 1
a 8. Participam de suas publicações, representantes de disciplinas variadas e diversificadas, com textos
que compreendem a arqueologia, as belas artes, a etnografia e outras áreas do conhecimento.
Nesta revista, a fotografia tomará, desde cedo, um lugar de destaque. Muitas vezes, uma
fotografia fornece o ponto de partida de um texto. Da mesma forma que em La Révolution Surréaliste,
a revista Documents publicou muitas fotografias, dentre as quais podemos citar a de autores como
Jacques-André Boiffard, Eli Lotar, Nadar, Blossfeldt, como também outros tipos de fotografia,
retiradas de filmes, fotografias de origem popular e científicas.
Mostrando as relações da fotografia com o texto, temos o trabalho do fotógrafo Eli Lotar,
(Documents, 1, novembro de 1929, N. 6), que apresenta três fotografias intituladas Aux abattoirs de La
Villette (Nos abatedouros de La Villette)(Fig. 9), na parte de Chronique: Dictionaire, ilustrando a
palavra Abattoir (Abatedouro).Estas fotografias foram tomadas em La Vilette, um antigo matadouro,
situado na periferia de Paris, e inspiraram o texto de Bataille, que se interessava pelo tema do
sacrifício. Segundo Bataille, os abatedouros são lugares que guardam certa relação com os templos
religiosos, que por sua vez caracterizam-se como lugar de prece e sacrifício. Neste sentido, religião e
batedouro, situam-se com certa proximidade, como lugares de morte e sacrifício.
As solarizações tornaram-se o aspecto mais conhecido do trabalho de Man Ray, juntamente
com as rayografias. A solarização consiste na intervenção da luz no laboratório durante a operação de
revelação. Em função da intensidade da luz e do tempo de exposição os resultado são diversos e podem
ir de um simples margem contornando as bordas da figura (as zonas de aglomeração dos sais de prata)
até uma verdadeira inversão dos valores. Podemos reconhecer este efeito na fotografia Primat de la
matière sur la pensée (Fig. 10), de 1929, publicada em Le Surréalisme au service de la Révolution, n.
3-4, onde o nu torna-se uma espécie de matéria intermediária entre o metal e o líquido denso, uma
espécie de um metal em fusão.
A operação de solarização pode ser realizada tanto sobre o negativo, como sobre a tiragem.
Não totalmente previsível, porém pode ser mais ou menos controlável. A partir de 1930, Man Ray
utiliza esta técnica também conhecida sob o nome de efeito Sabatier. É uma forma de subversão da
fotografia, que encontrava-se bem consciente e que agora torna possível retardar o desejo, para um
outro nível de erotismo.
Outra importante revista do movimento surrealista denominou-se Minotaure (Minotauro), e
esta disposta em três volumes, a saber: I, que cobre o período de 1933; II, o período de 1934 a 1936 e
III, o período de 1936 a 1939, editadas por Editions Albert Skira. Considerada a grande revista
surrealista, Minotaure, foi muito luxuosa e abundantemente ilustrada. Com a proposta de ser uma
revista artística e literária, apresenta-se num formato maior e cobre os mais vastos campos de
conhecimento, dos experimentais aos exploratórios. Seus textos compreendem as artes plásticas,
poesia, música, arquitetura, etnografia e mitologia, espetáculos, estudos e observações psicanalíticas.
A revista Minoutaure concede à fotografia um estatuto ainda maior, como jamais havia
conseguido. A fotografia torna mais visíveis as preocupações surrealistas referentes à realidade que
almejam transformar. Em numerosos casos, os temas surrealistas aparecem em íntima colaboração com
a fotografia. A partir do segundo número, André Breton, Marcel Duchamp e seus amigos formam o
comitê de redação e contam com muitos colaboradores, como Jacques Lacan e Jean Frois Wittman.
Brassaï, chega à Paris em 1921. Amigo de Kertész, começa a fotografar as ruas da capital,
particularmente à noite, conseguindo paisagens emblemáticas da cidade. Seu primeiro álbum, Paris de
nuit, é publicado em 1933 e recebe a aprovação dos surrealistas que o apresentam a Breton, no
escritório da revista Minotaure.
A revista Minotaure publica numerosas fotografias de Brassaï, portadoras de um novo clima.
Colabora com Salvador Dali, no trabalho Le Phénomène de l’extase (Fig 11), uma extraordinária
fotocolagem, publicada em Minotaure (1933, 3-4). São ordenados, no interior do quadro, numa
seqüência em espiral, rostos femininos em estado de êxtase. São incluídas zonas que representam
orelhas extraídas de uma catálogo antropométrico estabelecido por Alphonse Bertillon, fundador de um
sistema de identificação, no século XIX.
Abordando o tema da arquitetura urbana, encontramos o texto de Salvador Dali: “De la beauté
terrifiante et comestible, de l’architecture modern’ style” e as fotografias de Man Ray e Brassaï
(Minotaure, 1933, 3-4). Man Ray realizou as fotografias de edifícios de Gaudi, em Barcelona, e
Brassaï, as fotografias de Paris, de arquiteturas urbanas, fachadas de edifícios Belle Époque, entradas
de metro e outras.
Realiza para o texto de André Breton, “Picasso dans son élément”, 45 fotografias mostrando
os diversos aspectos do atelier de Picasso em Paris, de seu atelier de escultura em Boisgeloup e suas
esculturas recentes. A partir desse seu contato com Picasso, inicia-se uma longa amizade com o pintor,
que mais tarde culmina com a produção de um livro Conversations avec Picasso (Gallimard, 1964)
Brassaï, por sua vez, publica também um texto, “Du Mur des cavernes au mur d’Usine” (Das
paredes das cavernas às paredes da usina)(Minotaure, 1933, 3-4)(Fig 12). Sobre uma idéia de Paul
Éluard, realiza uma série de fotografias sobre os “grafites”, uma escritura popular marcada nas paredes,
os “graffiti” parisienses. Faz uma leitura destas superfícies grifadas e antropomorfisadas, lugares de
fantasmas e fantasias, de magia e erotismo. Tenta decifrar a rede de signos e os traços de uma
civilização através do inconsciente individual e coletivo.
Podemos considerar Minotaure a revista que maior interesse concedeu à fotografia, pelo
grande número de imagens fotográficas surrealistas que publicou durante todos os sete anos de sua
existência. Percebemos que o interesse pela fotografia foi crescente no decorrer dos quinze anos de
publicações das revistas surrealistas abordadas.
Raoul Ubac (1910-1985) chega à Paris em 1930, com 21 anos. Freqüenta a Grande Chaumière
e diversas academias livres de Montparnasse e a partir de 1932 abandona a pintura pela fotografia.
Produz imagens, a partir de fotos, que monta e desmonta, realizando um longo trabalho de
reapropriação de seus elementos do real, de fusão de tudo o que foi separado e disperso.
A partir de 1937, começa a trabalhar o que se tornaria o Combat de Penthésilée e todas as
experiências paralelas, a partir das fotografias de sua mulher Agui e de uma amiga, Marthe (fotos
realizadas entre 1933 e 1934). É sua obra maior, inspirada na peça de Heinrich von Kleist, Penthesilée,
que conta a tragédia do reino das Amazonas. Ubac sente que esse tema do combate feminino, e de seu
poder erótico e revolucionário, será receptivo ao Surrealismo.
Os meios que ele utiliza são, evidentemente, aqueles do Surrealismo fotográfico: a montagem,
“a assemblage”, a sobreimpressão, a tiragem negativa e a solarização. Mas, aos meios utilizados por
Man Ray acrescenta outros, como a “brûlage” (amolecer e dissolver uma parte da camada sensível de
modo a deformar a imagem, à misturar, confundir, e a degradar), a fossilização (fazer a tiragem com o
negativo e o positivo juntos, com um ínfimo deslocamento entre eles, dando uma imagem com um
aspecto de baixo-relevo e uma impressão de petrificação da matéria); o “voilage” (para obter os leves
cinzas uniformes que fazem desaparecer os detalhes), etc. Realiza um trabalho verdadeiramente
plástico que dá acesso à uma imagem incerta, intrigante e múltipla, às vezes desconstruída e totalmente
fabricada. O que interessa à Ubac é uma mudança no estatuto da fotografia.
É a partir de algumas fotografias de seus dois modelos que ele recorta, desdobra, monta e
combina de diferentes maneiras, submetendo-os às provas da química e do fogo, voltando-se sem
cessar sobre os resultados, recombinando-os novamente, refotografando-os para recomeçar, realizando
uma obra rara e de uma força até então inédita.
Publicados em Minotaure desde 1937, estas imagens acompanharam textos de André Breton,
de Pierre Mabile, Miroirs (Minotaure, 1938, 11), ou de Benjamin Péret, A l’interieur de l’armadure
(Minotaure, 1938, 11), e constituíram-se de alguma forma numa obra autônoma e poderosa como as
duas fotografias denominadas Le Triomphe de la Sterilité (Minotaure, 1937, 10)(Fig 13). Em Fossile
de la Bourse, Fossile de L’Opera e Fossile de la Tour Eiffel (Minotaure, 1939, 12-13)(Fig. 14), as
nuances das fotos tomam uma densidade e uma qualidade particular, o céu torna-se areia, a água em
mármore, etc. Este procedimento foi denominado fossilização, “foto-relevo”, “petrificação”.
O trabalho de Ubac é incontestavelmente surrealista, e os meios empregados conferem à obra
uma estranheza singular, realmente inédita. Em Penthésilée e seu combate, ele inventa uma realidade
desmembrada, fracionada, renascida, com corpos múltiplos. Este trabalho de dissociação e
recomposição, de deformação e de inversão da realidade, este massacre, com corpos atormentados e
esfacelados pela luz, com danças macabras e loucos abraços, esta extraordinária beleza que ele cria
com certa dor, são totalmente diferentes do que anima a obra de Bellmer.
O mais erótico dos companheiros surrealistas, é Hans Bellmer. Alemão, aluno de Georges
Grosz, muito ligado a Otto Dix e John Heartfield, banha-se no Dadaismo e chega a Paris em 1924,
encontrando os surrealistas e mantendo contato. Dez anos mais tarde, em 1934, publica em Karlsruhe,
sob o título Die Puppe, suas primeiras imagens da boneca boneca com membros articuláveis (Poupée)
e a fotografa em posições provocantes, retomadas no ano seguinte em Minotaure, N. 6 (Fig.15) , sob o
título Variations sur le montage d’une mineure articulée, obtendo um vivo sucesso entre os
surrealistas.
Entre 1937 e 1938, produz uma segunda série de bonecas, que são acompanhadas de poemas
de Paul Éluard “Jeux vagues de la poupée” e publicadas na revista Messages (1939) e depois sob a
forma de livro, “Les jeux de la poupée” (Paris, les Editions Premières, 1949).
Fugindo do nazismo, instala-se em Paris, em 1938. Realiza também algumas fotografias mais
diretas e provocadoras. A sombra de Freud pesa particularmente sobre o trabalho de Bellmer. Sua
primeira boneca, construída com sua mulher, em 1933 é abertamente inspirada na peça que ele montou
com Max Reinhard, L’Homme de sable, de um conto de Hoffmann, longamente estudada por Freud e
que coloca em cena Olympia, uma boneca autômato que um homem se apaixona, tomando-a por uma
mulher em carne e osso.
Este velho tema do autômato, sobretudo feminino, é a representação da confusão e da
incerteza da realidade, um jogo sobre as fronteiras da percepção. O que é fascinante na tentativa, de
Bellmer é que ele constrói as bonecas (fabrica o objeto de sua foto com as peças separadas e
recuperadas) para desmontá-las e é o resultado desta operação que ele fotografa. E é a operação da
fotografia, seu ritual, que torna esta estranheza inquietante, alegoria da castração, alegoria do duplo,
símbolo genital através da imagem dispersada da fêmea-boneca.
Suas imagens funcionam como o fantasma ou a obsessão, construídas e desconstruídas sem
cessar, espécie de compulsão, não separada do cotidiano, colocando estas bonecas nos lugares mais
comuns, cozinha, escada, armário, quarto, jardim, qualquer lugar onde a imagem da mulher pode se
cristalizar.
A obra fotográfica de Hans Bellmer pôde ser vista por ocasião da exposição Hans Bellmer,
apresentada no Musée d’Art Moderne do Centre Georges Pompidou (Paris - de 25 de dezembro de
1983 a 27 de fevereiro de 1984). Nesta exposição foram apresentadas mais de 150 fotografias - em sua
maioria inéditas - que servem para ilustrar a intensidade com a qual Hans Bellmer procurou confrontar
a realidade registrada mecanicamente pela objetiva do aparelho à todos seus fantasmas. Nestas bonecas
e corpos misturados encontramos esta confrontação que situa-se no centro da consciência surrealista.
BibliografiaBATAILLE, Georges. Documents. Paris: Jean-Michel Place, 1991.BRASSAI. Conversations avec Picasso. Paris: Gallimard, 1997.BRETON, André. Le Surréalisme et la peinture. Paris: Gallimard,
1979.Catálogo da exposição "Brassaï: Paris de jour, Paris la nuit", Paris,
Audiovisuel, 1989.Catálogo da exposição “Man Ray: la photographie a l’envers”, Paris,
1998.Catálogo da exposição “Hans Bellmer, photographe”, Paris, Centre
Pompidou, 1983.Catálogo da exposição “Raoul Ubac: Photographies des années
trinte”, Paris, Galerie Adrien Maeght, 1983.Coleção de fotografias do Musée National d’Art Moderne, Paris,
Centre Pompidou, 1996.JAGUER, Edouard. Les mystères de la chambre claire. Paris:
Flammarion, 1982.PICON, Gaëtan. Journal du surréalisme. Paris: Skira, 1976.