Quarenta Anos de Relações Brasil Angola

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    Quarenta anos das relaes

    Brasil-Angola

    histriadiplomtica

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    MINISTRIODASRELAESEXTERIORES

    Ministro de Estado Embaixador Mauro Luiz Iecker Vieira Secretrio-Geral Embaixador Srgio Frana Danese

    FUNDAOALEXANDREDEGUSMO

    A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica

    vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a fnalidade de levar sociedade

    civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica

    brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os

    temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

    Presidente Embaixador Srgio Eduardo Moreira Lima

    Instituto de Pesquisa de

    Relaes Internacionais

    Diretor Embaixador Jos Humberto de Brito Cruz

    Centro de Histria e

    Documentao Diplomtica

    Diretor Embaixador Maurcio E. Cortes Costa

    Conselho Editorial da

    Fundao Alexandre de Gusmo

    Presidente Embaixador Srgio Eduardo Moreira Lima

    Membros Embaixador Ronaldo Mota Sardenberg

    Embaixador Jorio Dauster Magalhes e Silva

    Embaixador Gonalo de Barros Carvalho e Mello Mouro

    Embaixador Jos Humberto de Brito Cruz

    Embaixador Julio Glinternick Bitelli

    Ministro Lus Felipe Silvrio Fortuna

    Professor Francisco Fernando Monteoliva Doratioto

    Professor Jos Flvio Sombra Saraiva

    Professor Eiiti Sato

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    Q111 Quarenta anos das relaes Brasil-Angola : documentos e depoimentos / Srgio Eduardo

    Moreira Lima, Lus Cludio Villafae G. Santos (organizadores). Braslia : FUNAG,

    2015.

    260 p. : il. (Histria diplomtica)

    ISBN 978-85-7631-575-9

    1. Independncia de Angola (1975). 2. Diplomacia - Brasil - Angola. 3. Histria

    diplomtica - Brasil. 4. Documento histrico. I. Lima, Srgio Eduardo Moreira. II.

    Santos, Lus Cludio Villafae G. III. Srie.

    CDD 327.2

    Direitos depublicao reservados Fundao Alexandre de Gusmo

    Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo70170-900 BrasliaDFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

    Equipe Tcnica:

    Eliane Miranda PaivaFernanda Antunes SiqueiraGabriela Del Rio de RezendeAndr Luiz Ventura FerreiraLuiz Antnio Gusmo

    Projeto Grfico:

    Daniela Barbosa

    Programao Visual e Diagramao:

    Grfcae Editora Ideal

    Impresso no Brasil 2015

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

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    SUMRIO

    Apresentao ............................................................................................... 9Mauro Vieira

    O Brasil e a Independncia de Angola ................................................. 13Srgio Eduardo Moreira Lima

    O sentido do reconhecimentoda independncia de Angola pelo Brasil ............................................. 45Nelson Manuel Cosme

    Nota sobre a documentao .................................................................. 53Lus Cludio Villafae G. Santos

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    Parte IDocumentos

    Exposio de Motivos ao Senhor Presidente da Repblica,General de Exrcito Emlio Garrastazu Mdici G/DAO/DOI/DEU/022/900.2 (F42)(A), de 22 de janeiro de 1974(Arquivo do Itamaraty) ........................................................................... 71

    Circular-telegrfica nmero 9821, de 7 de maio de 1974,transmitida s Misses Diplomticas do Brasil em Abdijan,Nairbi, Kinshasa, Acra, Dacar, Lagos e Cairo,com retransmisso para a Embaixada em Lisboa e para asRepresentaes junto ONU em Genebra e Nova York(Arquivo do Itamaraty) ........................................................................121

    Comunicado de Imprensa do Ministrio das

    Relaes Exteriores, de 8 de junho de 1974 .....................................123

    O Brasil e a frica Subsarica: Palestra proferida naEscola Superior de Guerra, em 3 de julho de 1974, peloento Ministro talo Zappa, Chefe do Departamento de sia,frica e Oceania do Ministrio das Relaes Exteriores(Arquivo da ESG) ..................................................................................125

    Excerto do Discurso do Ministro Antonio FranciscoAzeredo da Silveira na abertura da XXIX Sesso Ordinriada Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas,em 23 de setembro de 1974 .................................................................145

    Excerto do Discurso do Ministro Antonio FranciscoAzeredo da Silveira na abertura da XXX Sesso Ordinriada Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas,em 22 de setembro de 1975 .................................................................149

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    Despacho-telegrfico n 393, secreto, da Secretariade Estado das Relaes Exteriores RepresentaoEspecial do Brasil em Luanda, de 6 de novembro de1975 (Arquivo do Itamaraty) ..............................................................151

    Nota de Imprensa do Ministrio das Relaes Exteriores,divulgada no dia 10 de novembro de 1975 no Brasil, zero hora do dia 11 de novembro, no horrio de Angola ..........153

    Parte IIDepoimentos

    Presidente da Repblica, General Ernesto Beckmann Geisel ..........157

    Ministro das Relaes Exteriores, EmbaixadorAntonio Francisco Azeredo da Silveira .............................................159

    Embaixador Ovdio de Andrade Melo ...............................................165

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    Apresentao

    O Brasil olha para a frica de uma perspectiva estratgica e de

    longo prazo. O continente africano parte essencial de nossa histria,de nossa identidade e de nossa insero internacional. A parceria quedesenvolvemos com Angola, pas irmo de lngua portuguesa, umdos eixos fundamentais dessa poltica. A perspectiva abrangente,ao mesmo tempo histrica e estratgica, j embasava a viso doBrasil sobre Angola mesmo antes de sua constituio formal comonao: o Brasil foi o primeiro pas do mundo a reconhecer a nascenteRepblica de Angola, exatamente no dia de sua independncia, em

    11 de novembro de 1975.O relacionamento entre o Brasil e Angola deve ser percebido,assim, em uma dupla dinmica: a do contexto mais amplo que nosaproxima da frica e a do rumo que buscamos traar conjuntamentepara esta parceria bilateral que nos une.

    So conhecidos os vnculos histricos, culturais e de sangueentre o continente africano e o Brasil. A frica contribuiu de formaprofunda para a formao da populao brasileira e para muitas

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    Quarenta anos das relaes Brasil-Angola

    Mauro Vieira

    facetas de sua cultura, da lngua culinria, da msica religio eao desenvolvimento econmico do territrio nacional.

    abrangente e complexa a rede de relaes polticas, econmicas,comerciais, sociais e culturais que une o Brasil aos pases africanos.Intensifica-se a cada ano a presena de cidados, de empresas ede investimentos brasileiros na frica. Iniciativas de cooperaonas mais diversas reas, como agricultura, biotecnologia e sadepblica, tm um papel importante em nosso relacionamento com ocontinente africano. A frica parte da vizinhana do Brasil, unidapela longa fronteira martima do Atlntico Sul.

    Nesse contexto se inserem os laos de amizade e cooperaoentre o Brasil e Angola. Nossas relaes bilaterais avanamsignificativamente nas mais diversas frentes. No plano poltico, oestabelecimento da Parceria Estratgica Brasil-Angola, em 2010,sistematizou o dilogo poltico e a coordenao entre nossos pases.A histria, a lngua e a cultura, bem como aspiraes e desafios dedesenvolvimento compartilhados, nos tornam, inevitavelmente,parceiros estratgicos. No plano econmico, os fluxos comerciaisbilaterais ampliam-se, empresas brasileiras operam em diversossetores da economia angolana e empresas angolanas atuam noBrasil. Nas reas de defesa, gesto governamental, desenvolvimentosocial, sade e educao, os dois pases desenvolvem importantecooperao bilateral.

    Tambm nas negociaes multilaterais, Angola um parceiro degrande relevncia para o Brasil. Nossos pases almejam uma ordeminternacional fundada na paz e no desenvolvimento, com maiorespao e voz para os pases em desenvolvimento. Na Organizaodas Naes Unidas (ONU), na Comunidade dos Pases de LnguaPortuguesa (CPLP), na Organizao Mundial do Comrcio (OMC) eem diversas outras instncias multilaterais, nossas vises convergem.So amplamente reconhecidos os esforos empreendidos pelo

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    Apresentao

    Governo angolano em favor da manuteno da paz e da prosperidadeno continente africano.

    A concertao e a cooperao empreendidas por Brasil e Angolacontribuem para o avano de uma agenda internacional baseada napromoo do desenvolvimento, do dilogo diplomtico e da soluopacfica de controvrsias, objetivos permanentes da poltica externade ambos os pases.

    Para marcar a celebrao destes quarenta anos de amizade erelacionamento diplomtico entre o Brasil e Angola, o Ministrio dasRelaes Exteriores, com o inestimvel apoio da Fundao Alexandrede Gusmo, organizou a edio deste livro, que busca lanar novasluzes sobre a deciso brasileira de reconhecer a Repblica de Angolano momento mesmo de sua independncia, em 1975. A obra, querene documentao dos arquivos do Itamaraty e testemunhosdos principais protagonistas, ilustra a rpida e decisiva evoluoda poltica externa brasileira para o continente africano.

    Esperamos que este livro possa despertar ainda mais o interessede pesquisadores e do pblico em geral por esse marco da histriada diplomacia brasileira. Um marco que legou a ns, brasileiros,algo inestimvel: o contnuo aprofundamento da amizade fraternaentre o Brasil e Angola.

    Mauro VieiraMinistro das Relaes Exteriores

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    O Brasil e a Independncia de Angola1

    Ao participar deste projeto de resgate da gnese das relaes

    polticas entre Brasil e Angola, com nfase nas circunstncias doreconhecimento de sua Independncia, a FUNAG cumpre a missoinstitucional de apoiar a preservao da memria diplomticado Brasil e de contribuir para a formao de uma opinio pblicasensvel aos problemas da convivncia internacional. O Brasil foi oprimeiro pas a reconhecer a independncia de Angola em 1975. Essadeciso, que, internamente, teve repercusses castrenses por chocar--se com a orientao ideolgica do regime militar (1964-1985),

    1 Na elaborao do presente ensaio, beneficiei-me de entrevista com o Embaixador Alberto Vasconcellosda Costa e Silva, um dos maiores africanistas brasileiros. Alm das informaes e sugestes, agradeo--lhe o rico material datilografado de sua autoria. Contribuiu ele para o amadurecimento de minhapercepo quanto ao papel do Brasil na luta pela descolonizao no mbito das Naes Unidas (anos50 e 60) e nos esforos bilaterais com o governo portugus durante a gesto do Chanceler GibsonBarboza, de quem Costa e Silva foi assessor poltico e autor da minuta de Exposio de Motivos aoPresidente da Repblica G/DAO/DOI/DEU/022 de janeiro de 1974, reproduzida na ntegra pgina 71.Agradeo tambm ao Embaixador Geraldo Holanda Cavalcanti as conversas em seu gabinete naABL, em 2014 e 2015, quando pude ouvi-lo a respeito de aspectos da poltica africana do Brasil sob oPragmatismo Responsvel, antes mesmo do incio da gesto Azeredo da Silveira e do reconhecimentode Angola em 11 de novembro de 1975.

    Srgio Eduardo Moreira Lima

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    Quarenta anos das relaes Brasil-Angola

    Srgio Eduardo Moreira Lima

    pelo menos com seus segmentos mais radicais, colocou o Brasil, noplano externo, pela primeira vez, como ator no complexo tabuleirogeopoltico da Guerra Fria na frica Austral. O propsito desteensaio contextualizar este importante marco da poltica externabrasileira com vistas a estimular a reflexo e o aprofundamento dapesquisa sobre o tema. Trata-se de uma das pginas mais reveladorastanto do pensamento estratgico, quanto dos meandros do processodecisrio de uma potncia emergente e de sua contribuio para a

    histria contempornea.

    A afirmao nacional antecedeu a democracia como um dosmais importantes acontecimentos polticos do sculo XX. O flagelode duas guerras mundiais no apenas redesenhou o mapa da Europa,mas exerceu tambm profunda influncia na definio de objetivos eprincpios que deveriam servir de base convivncia internacional.Entre eles, destacam-se a autodeterminao dos povos, a igualdadejurdica dos Estados, a paz, o primado do direito, consagrados na

    Carta das Naes Unidas e acompanhados de um novo humanismooriundo do reconhecimento dos direitos fundamentais. O fimdo colonialismo foi uma consequncia natural desse processohistrico, apesar da resistncia dos colonizadores2em um contextode prevalncia de interesses geopolticos das superpotnciasdurante a Guerra Fria. A descolonizao da frica se insere nessecontexto e representa captulo maior na restaurao da autonomiae da dignidade de povos que contriburam para a formao tnica,

    cultural e histrica do Brasil.

    2 A Conferncia de Berlim, realizada entre 19 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885, j davaa medida do alcance do colonialismo europeu. Seu objetivo foi organizar, na forma de regras, aocupao e explorao da frica pelas potncias coloniais. Dela participaram os chefes de Estadode Alemanha, ustria-Hungria, Blgica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Frana, Itlia, Gr--Bretanha, Pases Baixos, Portugal, Rssia Sucia, Noruega e Imprio Otomano. exceo da Etipiae da Libria, os territrios de todos os Estados que hoje compem frica foram divididos entre aspotncias coloniais, poucos anos aps o encontro.

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    O Brasil e a Independncia de Angola

    Embora o repdio ao colonialismo tenha razes profundas noBrasil, que se tornou independente em 1822, a estrutura econmicado Pas, desde o sculo XVI, foi organizada com base no latifndio, namonocultura e no trabalho escravo de mo de obra trazida da frica.Apesar de condenada por muitos brasileiros, entre eles o Patronoda Independncia, Jos Bonifcio, que a quis abolida de imediato,a escravido foi eliminada gradualmente, durante o Imprio, numprocesso lento, s concludo com a Lei urea, em 18883, o que

    concorreu para a queda da monarquia e a Proclamao da Repblica,em 1889. poca da Independncia, estimava-se que o nmero deescravos correspondia a quase metade da populao brasileira.De acordo com o ltimo censo, mais de 51% dos brasileiros possuemascendncia africana4. O Brasil se orgulha dessa miscigenaodo seu povo, resultado da necessidade, mas tambm da virtude,constituindo-se atualmente numa das maiores democraciasmultitnicas e multiculturais do mundo.

    O Brasil foi o nico pas colonial a tornar-se a sede de um Imprioeuropeu (1808-1821) e, no obstante a pesada indenizao a Portugal,beneficiou-se, aps a Independncia, da proximidade com sua ex--metrpole, como atesta a dinastia dos Braganas durante o Imprio.

    A monarquia contribuiu para a consolidao do Estado, a preservaode sua integridade territorial, a formao do povo e a construo daidentidade nacional. Esses fatores poderiam explicar por que o Brasilmostrou-se permevel a razes que orientavam a poltica ultramarina

    portuguesa e a escrupulosa observncia do ratado de Amizade eConsulta, de 1953 (na tradio do ratado de Amizade e Aliana de1825). Houve mesmo quem acreditasse na capacidade de Portugal

    3 Nos quase cinquenta anos frente do Imprio, D. Pedro II consolidou imagem de liderana napreservao da integridade territorial, na formao do povo e na construo de uma identidadenacional. No entanto, cobram-lhe seus crticos no ter feito a abolio da escravido no incio doSegundo Reinado.

    4 IBGE, 2013.

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    de repetir na frica o suposto xito de sua poltica nas Amricas.Igual crena firmou-se tambm quanto s possibilidades de o Brasilinfluir ou mediar o processo de descolonizao, sem perder devista a ideia da Comunidade Luso-Brasileira, constante do ArtigoOitavo do referido ratado. Esta seria substituda, mais tarde, pelanoo de uma grande comunidade de pases lusfonos de todos oscontinentes.

    Aps a Proclamao da Repblica, quando prevalece a opopelo americanismo, o distanciamento entre Brasil e Portugalacabaria levando, pela primeira e nica vez, ruptura das relaesdiplomticas, em 1894, no contexto da Revolta da Armada, nogoverno do Marechal Floriano Peixoto. Mais tarde, a Repblica sebeneficia do talento diplomtico do monarquista Jos Maria daSilva Paranhos Jnior, o Baro do Rio Branco. Durante sua gesto frente da chancelaria (1902 a 1912), o Brasil participou da SegundaConferncia de Paz da Haia, de 1907, onde se destacou na construo

    do multilateralismo por meio da atuao de Ruy Barbosa em defesade uma ordem internacional baseada no primado do direito.O insigne jurista ali resgatou o conceito vestfaliano da igualdadedos Estados perante a lei internacional, o que contribuiu para areabilitao e posterior consagrao desse princpio na Confernciade So Francisco, em 1945. Ao longo do sculo XX, o compromissocom o multilateralismo tornou-se uma das diretrizes centrais dapoltica externa brasileira.

    O apoio do Brasil descolonizao, alm de consequncianatural da condio do Pas de ex-colnia, decorre, assim, do seucompromisso com princpios e valores cuja consolidao no cenriointernacional ajudou a promover e que viriam a ser consagradosna Carta da ONU. Apesar da nfase no tratamento da questodo colonialismo nos foros multilaterais, a diplomacia brasileiraesforou-se at 1974, pela via bilateral, a que Portugal tomasse asdecises difceis e inadiveis que lhe cabiam. J a partir dos anos

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    O Brasil e a Independncia de Angola

    50, o Brasil acompanhava de perto o processo de descolonizaono mbito das Naes Unidas, desempenhando papel ativo nadenncia do colonialismo e do racismo5. Na dcada de 60, osdiscursos de chanceleres brasileiros nos debates na Assembleia Geraltestemunham o empenho do Pas na luta pela independncia dospovos africanos e no combate discriminao racial.

    nesse perodo que a formulao de ideias e o ativismo associados descolonizao ganha espao e expresso com a chamada PolticaExterna Independente (1961-1964). A correspondncia trocadaentre o Chanceler Afonso Arinos de Melo Franco e Jnio Quadros,logo aps a posse deste como Presidente do Brasil, j era ilustrativado dilema que o Brasil enfrentaria diante da imobilidade da polticaexterna portuguesa na matria sob o autoritarismo salazarista. Em15 de maro de 1961, o Chanceler Affonso Arinos dirige a seguintecomunicao ao chefe de Estado brasileiro, a qual reflete, de um lado,a defesa de um princpio (o anticolonialismo), a ser reafirmado nos

    foros multilaterais, de outro, as obrigaes decorrentes do ratadode Consulta com Portugal e a disposio de ajudar, no que estivesseao seu alcance, o processo decisrio portugus:

    Dada a gravidade da situao em Angola e considerando que

    temos com Portugal um Tratado de Amizade e Consulta,

    parece-me necessrio e urgente conversar no mais alto

    nvel, em carter secreto, com o governo portugus, sobre

    o problema dos seus chamados territrios ultramarinos,

    tendo em vista a posio que o Brasil ser chamado a adotar a

    respeito nas Naes Unidas. A menos que Portugal manifeste

    5 Entrevista com o Embaixador Alberto da Costa e Silva em 19 de junho de 2015. Vale citar fragmentode um dos seus escritos: desde o incio do funcionamento das Naes Unidas, os dois grandesassuntos de interesse prioritrio africano foram o apartheide a descolonizao. Nos debates sobreesses dois temas, procurou quase sempre o Brasil dar uma contribuio realista, objetiva e serena.Cita que: j em 1952, quando exercia a Presidncia da Comisso Poltica e de Segurana da VIIAssembleia Geral da ONU, o Brasil sustentava a competncia das Naes Unidas para discutir oproblema da discriminao racial na frica do Sul.

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    Srgio Eduardo Moreira Lima

    o propsito srio e inequvoco de procurar soluo imediata e

    adequada para o problema, creio que o Brasil deve desligar-se

    de uma poltica que no se coaduna com a firme orientao

    anticolonialista do governo de Vossa Excelncia. Mas, para

    isso peo licena para repetir , torna-se indispensvel uma

    conversa prvia com Portugal.

    O Presidente Jnio Quadros respondeu ao chanceler no dia

    seguinte:Inteiramente de acordo com o ofcio de Vossa Excelncia.

    O Brasil no se ligar poltica colonialista de Portugal na

    frica. Se o governo portugus tiver resolvido o problema dos

    asilados que se refugiaram em nossa Embaixada em Lisboa,

    convm Vossa Excelncia chegar por aquela capital para

    conversaes que esclaream nossa posio nessa matria,

    cujo contedo poltico em nada diminui nosso apreo, nosso

    respeito e a nossa solidariedade ao povo desse pas. Alis,proceder por essa forma, expondo os nossos pontos de vista,

    dever que resulta do Tratado de Consulta e Amizade6.

    Ao abrir o debate da Assembleia Geral em setembro de 1961,Affonso Arinos anteviu que o movimento da libertao dos antigospovos coloniais no retroceder. O Brasil, antiga colnia, estconstruindo uma nova civilizao, em territrio largamente tropical,habitado por homens de todas as raas. Seu destino lhe impe,

    assim, uma conduta firmemente anticolonialista e antirracista.Afirmou, em seguida, que nossas relaes fraternais com Portugal enossa amizade tradicional com a Frana no nos impedem de tomarposio clara [...] nas divergncias [...] a propsito do colonialismoafricano, [...] entre as Naes Unidas e aqueles pases, aos quais tantodevemos e com os quais tanto ainda temos em comum. E concluiu:

    6 ARINOS FILHO, 2001, p. 200-201.

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    O Brasil e a Independncia de Angola

    os dois Estados europeus devem assegurar a autodeterminao daArglia e de Angola. Nada deter a libertao da frica7.

    Em seguida, ao tratar de item especfico da agenda sobre aquesto de Angola e analisar o relatrio correspondente (A/4.978),

    Affonso Arinos fornece eloquente testemunho dos esforosdo governo brasileiro e de suas razes na busca de uma soluonegociada para o conflito. Cito alguns dos trechos mais elucidativos:

    1. A situao em Angola oferece aspectos crticos e tende a seagravar cada dia; a prolongao da luta armada, por sua vez,torna mais difcil entendimento entre as partes.

    2. As tentativas de soluo militar, alm de serem contrrias srecomendaes e decises da Assemblia Geral e do Conselhode Segurana, no resolveram, at agora, o problema angolanoe, seguramente, no o resolvero.

    3. Os acontecimentos de Angola constituem, como o reconheceuo Conselho de Segurana (S/4.835), uma causa atuale potencial de atritos internacionais, no somente nocontinente africano, mas ainda em outras partes do mundo,e so de natureza a pr em perigo a manuteno da paz e dasegurana internacionais.

    4. Ainda possvel, entretanto, encontrar soluo pacfica, anica capaz de no destruir os elementos positivos que

    a presena portuguesa trouxe ao pas e de salvaguardarrelaes proveitosas entre Portugal e Angola, anlogas sque se verificam, hoje em dia, entre antigas metrpoles eterritrios de alm-mar recm emancipados. Tal soluoseria certamente a melhor, para os interesses de Portugal ede Angola.

    7 CORRA, 2012, p 204.

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    Srgio Eduardo Moreira Lima

    5. Nesse sentido, o reconhecimento, por Portugal, do direito dopovo angolano autodeterminao, facilitaria a cessaoimediata da luta e do derramamento de sangue, bemcomo a preparao das profundas reformas legislativas eadministrativas, necessrias evoluo pacfica do territriopara a autonomia.

    Os laos especialssimos que existem e continuaro sempre

    a existir entre o Brasil e Portugal constituem um elemento amais para desejarmos que a situao de Angola seja resolvidapacificamente, o mais cedo possvel, de modo compatvel comos interesses de portugueses e angolanos e com a preservaode elementos culturais e humanos, que so caractersticos dapresena portuguesa na frica. O Brasil no pode ser alheio sorte desses elementos, que tambm so parte de sua vida e sesituam na fonte de sua formao histrica.

    Nisso tudo, tem o Brasil um grande interesse e, talvez mesmo,uma parcela de responsabilidade. O Brasil no pode aceitarcom indiferena que a lngua e a cultura portuguesas venhama desaparecer da frica [...]

    Por isso mesmo, o Brasil, caso se apresente oportunidade,no hesitar em prestar toda a cooperao e toda assistnciano encaminhamento da questo de Angola e aguarda com

    ansiedade o momento em que Portugal aceite a aplicabilidadedo princpio de autodeterminao e se mostre disposto aacelerar as reformas que se tornam indispensveis. O Brasilse julga no dever de fazer um apelo a Portugal para que aceitea marcha natural da histria e, com sua larga experincia ereconhecida sabedoria poltica, encontre a inspirao que h detransformar Angola em ncleo criador de ideias e sentimentose no cadinho de dios e ressentimentos. O Brasil exorta

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    O Brasil e a Independncia de Angola

    Portugal a assumir a direo do movimento pela liberdade deAngola e pela sua transformao em um pas independente,to amigo de Portugal quanto o o Brasil. Porque, no presenteestgio da histria, as convivncias internacionais profcuas humanidade somente vingam e prosperam entre povos livrese soberanos8.

    Em palestra aos alunos do Instituto Rio Branco sobre o

    tema Desenvolvimento e Poltica Exterior, proferida no Rio deJaneiro, em dezembro de 1962, o ento Chanceler San iagoDantas, sucessor de Arinos, estabeleceu o seguinte paralelo entrea luta pela autodeterminao e emancipao poltica e a busca dodesenvolvimento:

    O anticolonialismo converge para os mesmos fins que a

    autodeterminao protege e evidencia. Se a luta contra o

    subdesenvolvimento , acima de tudo, luta pela emancipao,

    e se esta importa em desvincular-se de toda sujeio a centrosde deciso e de influncia colocados fora do pas, bvio que

    a manuteno de laos de dependncia poltica a antigas

    metrpoles, seja qual for a qualificao jurdica que se lhes

    atribua, incompatvel com a conquista de rumos prprios

    de desenvolvimento e suscita a solidariedade dos povos em

    condies de prest-la. Qualquer transigncia com interesses

    colonialistas pode representar, no terreno das concesses

    mtuas, uma vantagem a curto prazo; mas, a longo prazo,quebra a coerncia da poltica externa de um pas em luta

    por sua prpria emancipao e compromete os laos de

    confiana que a identidade de objetivos tende a estabelecer

    entre ele e outros pases, no mesmo ou em estgio prximo

    de afirmao9.

    8 FRANCO, 2007, p. 266-271.

    9 FRANCO, 2007, p. 385-386.

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    Quarenta anos das relaes Brasil-Angola

    Srgio Eduardo Moreira Lima

    Em setembro de 1963, em pronunciamento que marcou aabertura do debate geral nas Naes Unidas, o Chanceler Joo

    Augusto de Arajo Castro advertiu que se a ONU vai conservarseu carter universal, dever manter-se representativa de todas asideias e concepes de humanidade. Teceu fortes crticas situaodas Naes Unidas como refm da luta ideolgica e defendeu aarticulao parlamentar no seio da organizao em torno de trstemas fundamentais: Desarmamento, Desenvolvimento Econmico

    e Descolonizao, os chamados 3 Ds.

    A luta pelo Desarmamento a prpria luta pela paz e pela

    igualdade jurdica dos Estados que desejam colocar-se a salvo

    do medo da intimidao. A luta pelo Desenvolvimento a

    prpria luta pela emancipao econmica e pela justia social.

    A luta pela Descolonizao, em seu conceito mais amplo, a

    prpria luta pela emancipao poltica, pela liberdade e pelos

    direitos humanos.

    Nas dcadas de 60 e 70, a estrutura do sistema internacionalera bipolar, e a Guerra Fria dominava a agenda. Na formulao dapoltica externa, a primeira tarefa doutrinria era estabelecer, emrelao aos diversos temas da disputa Leste-Oeste, uma compreensoprpria e, ao mesmo tempo, tomar posies naqueles aspectos doconflito que nos afetavam mais diretamente. Apesar da ambiguidadeque marcou a posio do Brasil durante o incio do regime militar,

    principalmente sob o Presidente Castelo Branco, entre 1964 e 1967,trata-se de um perodo considerado atpico10com o alinhamentoautomtico aos EUA, formalmente dentro da concepo de fronteirasideolgicas da Doutrina de Segurana Nacional. Registrou-se, ento,ntido refluxo diplomtico para o mbito hemisfrico e recuo dasiniciativas esboadas pela Poltica Externa Independente, com aprimazia para a ordem interna. Mais tarde, o Pas retomaria, no

    10 VIZENTINI, 2004, p. 10.

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    O Brasil e a Independncia de Angola

    entanto, a posio em favor da independncia, com particularateno s naes africanas de lngua portuguesa.

    O reconhecimento da Independncia de um pas no umadeciso trivial. Trata-se de questo essencialmente poltica decididano mais alto nvel do governo e que pode ter graves consequnciastanto externas quanto internas. No se deve esquecer, porm,que o reconhecimento parte tambm de pressupostos objetivospara averiguar a legitimidade do fato poltico com base no direitointernacional. papel da diplomacia a avaliao correta dessescenrios e fatores, bem como a orientao quanto aos riscos e asoportunidades envolvidas.

    No caso de Angola, ambos aspectos mostravam-se complexos.A opo poltica se confundia com a ideolgica, o que lanava oBrasil no meio do jogo das superpotncias em plena Guerra Friana frica, agravado pela informao da presena de foras cubanasem Angola. Internamente, a deciso seria vista como apoio aoscomunistas, ou seja, aqueles contra os quais o golpe militar de1964 fora planejado. Por outro lado, quanto aos fatores objetivosligados ao direito internacional, no havia certeza sobre as forasque prevaleceriam em novembro de 1975, tampouco quanto aocontrole efetivo do territrio e de sua aceitao pela totalidade danao angolana dividida, ento, em trs Movimentos de Libertao,entre os quais no parecia haver qualquer perspectiva de unidade.

    bem verdade que a liderana de Agostinho Neto, suapersonalidade e seu histrico, na luta pela autodeterminao, suarespeitabilidade pessoal, estimulavam a crena de que o MovimentoPopular pela Libertao de Angola (MPLA), apoiado pela UnioSovitica, teria condies de prevalecer. Mas havia argumentos emfavor da Frente Nacional de Libertao de Angola (FNLA), de HoldenRoberto, ou da Unio Nacional para a Independncia Total de Angola(Unita), de Jonas Savimbi.

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    No exame desses cenrios no se pode perder de vista que oBrasil vivia num regime militar e sob a autoridade de um Presidenteque pretendia promover uma transio sem prazo determinado parao restabelecimento do poder civil e da democracia. O projeto, aindaque de abertura gradual, encontrava resistncias na linha duradentrodas Foras Armadas. A questo sucessria era motivo de tenso ehavia quem apostasse no endurecimento do regime. Recorde-se que omovimento de 64 marcou o fim do papel tradicional dos militares na

    poltica e o aparecimento de novos padres. At ento, os militaresatuavam como poder moderador. Derrubavam o Presidente, masno ocupavam o poder. Esse conceito tradicional de seu papel napoltica brasileira resultava de uma confiana relativamente altana habilidade dos civis para governar11. Essa confiana desapareceem 1964, quando os prprios militares assumem o poder. Apesar dapromessa de abertura poltica feita nos primrdios de seu governo,Geisel foi o Presidente que mais usou o AI-5 e o que menos transigiu

    com os abusos de oficiais de alta patente12.No plano internacional, o conflito entre rabes e israelenses

    em outubro de 1973, conhecido como a Guerra do Yom Kippur,estimulou o processo de nacionalizao das empresas de petrleono Oriente Mdio e de utilizao do produto como arma poltica.

    Assim, as consequncias do conflito iriam muito alm da geopolticaregional e representariam duro golpe ao capitalismo. O boicote rabe,articulado no seio da OPEP contra os pases que apoiaram Israel,

    provocou, de outubro de 1973 a maro de 1974, a quadruplicaodos preos do barril com impacto na economia global no que

    11 SILVA, 1984, p. 29.

    12 Em meio malograda tentativa de golpe, o demissionrio Ministro do Exrcito, General SylvioFrota, emitiu uma extensa nota-manifesto contra a orientao ideolgica do Governo, que, a seu

    juzo, se afastava dos ideais do Movimento de 1964. Nela consta referncia crtica a quatro decisesrecentes de poltica externa, entre elas o estabelecimento de relaes diplomticas com a Chinae o reconhecimento da Independncia de Angola: o reconhecimento precipitado do governocomunista de Angola, s explicvel pela nsia ideolgica de prestigi-lo (SILVA, 1984, p. 523).

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    ficou conhecido como a Crise do Petrleo. O Brasil foi duramenteatingido dada sua alta dependncia das importaes do produto(80%), sobretudo de fornecedores rabes e africanos, e de capitaisexternos para investimento. No caso de um boicote, o transportede mercadorias no interior do Brasil era feito por caminhes combase no consumo de leo diesel, ou seja, a eventual interrupode fornecimento de petrleo constituiria srio problema para acomunicao interna e o abastecimento nacional, o que prejudicaria

    a credibilidade do regime.

    No plano hemisfrico, h que recordar o impacto regionale global duradouro da ecloso, em 1962, da crise dos msseissoviticos em Cuba com capacidade nuclear para atingir osEUA. ratava-se de situao que punha em risco efetivo a paz ea segurana internacional e ameaava uma hecatombe nuclear.Foi nesse quadro que se desenvolveu uma doutrina de segurananacional, orientada para evitar a expanso comunista e que acabou

    por promover a militarizao dos sistemas polticos nacionais naAmrica Latina. Em seu depoimento ao CPDOC, indagado sobre seexistia um alinhamento ideolgico entre o Brasil e os EUA apesar dasdivergncias, Geisel respondeu afirmativamente e aduziu: o Brasilestava de acordo em no permitir a expanso do comunismo dentroda Amrica Latina e, nessa ao, sempre foi coerente. O Brasil noreatava relaes com Cuba, entre outras razes, por solidariedadecom os Estados Unidos13.

    As condicionantes geopolticas afetavam tambm a evoluodos fatores objetivos internos que assegurariam a legitimidade dosfuturos governantes angolanos, na medida em que o apoio financeiroe militar por parte da frica do Sul, dos EUA e da Unio Soviticaaos Movimentos de sua preferncia pesavam nos clculos polticose na avaliao das probabilidades no desfecho do processo. No

    13 DARAJO e CASTRO, 1997, p. 344.

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    havia tampouco certezas absolutas quanto aceitao por partedos demais movimentos de libertao angolanos daquele que viessea assumir a chefia do novo Estado, muito menos era pacfico o juzoquanto reao dos interesses internacionais que o apoiavam. Africa do Sul poca, ancorada no regime do apartheid, constituamotivo de preocupao e incgnita por ser fora pondervel naregio, por ocupar regio limtrofe, e pelo apoio que supostamenterecebia da Agncia Central de Inteligncia dos EUA (CIA).

    A preocupao inicial do Embaixador Antonio Francisco Azeredoda Silveira ao assumir o Ministrio, em 15 de maro de 1974, erarenovar o Itamaraty e sua poltica externa a fim de ajudar o Brasil asuperar seus obstculos e faz-lo com velocidade e fluidez. O mundono perdoar quantos forem estticos e andinos, disse Silveira em seudiscurso de posse. Segundo ele, no ser possvel ao Brasil alhear-seao que ocorre em outras reas, ao que emerge como novas urgnciasna frica(o grifo nosso), no Oriente Mdio, na sia e na Europa.

    A poltica externa deve ser instrumental para o desenvolvimentoeconmico e social do Pas, deve abrir para o Brasil as opes dofuturo. medida que o Pas se transforma e se engrandece surgemnovas oportunidades e imperativos e assim que no pode cessaro esforo de reviso dos objetivos da nossa diplomacia (grifo nosso).

    No seu pronunciamento inaugural na primeira reunioministerial em 19 de maro, Geisel utilizara a expresso pragmatismoresponsvel como rtulo para a poltica externa14. Ressaltou a

    determinao de conferir relevo especial ao nosso relacionamentocom as naes irms da circunvizinhana de aqum e alm-mar,incluindo, pela primeira vez, expressamente, a frica entre as

    14 O pragmatismo responsvel foi cunhado na gesto Geisel-Silveira como expresso que traduzia aprevalncia do interesse nacional sobre condicionantes ideolgicas (Guerra Fria) para justificarimportantes mudanas na orientao da poltica externa em meio a uma conjuntura internacionaladversa (crise do petrleo), num Brasil, sob o regime militar, com dificuldades crescentes paramanter o chamado milagre econmico brasileiro. Dessas condies adversas, nasceu uma estratgiadiplomtica que marcou a evoluo da diplomacia brasileira contempornea.

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    prioridades da poltica externa brasileira, consolidando a noo devizinhana no Atlntico Sul. Declarou seu propsito de impulsionar

    a ao diplomtica alerta sempre para a deteco de novas

    oportunidades e a servio [...] dos interesses de nosso comrcio

    exterior, da garantia do suprimento adequado de matrias-

    -primas e produtos essenciais e do acesso tecnologia [...],

    fazendo para tanto, com prudncia e tato, mas com firmeza,

    as opes e realinhamentos indispensveis.Esses pronunciamentos j tinham em mente uma poltica

    ecumnica, na expresso ento utilizada pelo Itamaraty, ou seja,universalista, de ampliao das relaes do Brasil com o mundo,a comear pela Amrica do Sul (integrao energtica, tratado decooperao amaznica e superao do contencioso com a Argentina),estabelecimento de relaes diplomticas com a China, com pasesrabes e africanos, presena desinibida e cooperativa na frica,

    inclusive com os futuros pases africanos lusfonos, intensificaodas relaes comerciais e flexibilizao da poltica de vistos comos pases do leste europeu, sem prejuzo das relaes tradicionaiscom os pases ocidentais, com acordos de transferncia detecnologia (Alemanha Ocidental), a negociao de memorandosde entendimento de consultas polticas entre chancelarias (EUA,Reino Unido e Frana), que cumpriram seu papel, inclusive noprocesso de consultas para o reconhecimento de Angola.

    Em janeiro de 1974, a necessidade de restabelecer suascredenciais anticolonialistas e separar o problema da descolonizaoda questo bilateral com Portugal j ficara patente na Exposiode Motivos do Ministro Mario Gibson Barbosa ao Presidente daRepblica Emlio Garrastazu Mdici, no final de seu mandato.O documento constitua a p de cal no esforo do Brasil em tentarinfluir no encaminhamento da questo do colonialismo portuguspara evitar uma ruptura com as naes emergentes da frica.

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    A Revoluo dos Cravos (25 de abril de 1974), que muda o regime emPortugal, e o Acordo de Alvor (15 de janeiro de 1975) acabariam porcumprir o papel de fazer avanar o processo de descolonizao emnegociao com os movimentos de libertao nacional em Angola.A deciso do novo governo brasileiro de mudar sua poltica j haviasido definida nas conversas entre Geisel e o Chanceler Azeredo daSilveira antes do incio do novo governo.

    No Gabinete do Chanceler Azeredo da Silveira em fins demaro, j era possvel perceber com clareza os documentos quematerializavam as decises de separar o relacionamento com Portugaldo tratamento da questo da descolonizao no plano multilateral ede expandir as relaes do Brasil com a frica, atribuindo aos pasesdo Atlntico Sul importncia estratgica. O ento Ministro GeraldoHolanda Cavalcanti, chefe da assessoria especial do Gabinete, umdos conselheiros mais influentes do chanceler e seu ghost writer,confirmou que, antes mesmo do incio da gesto, Silveira j inclura

    entre os oito pontos apresentados a Geisel no processo de formulaodo pragmatismo responsvel as mudanas da poltica em relao frica, ao Oriente Mdio e China15.

    Os jornalistas Merval Pereira e Andr Gustavo Stumpf, quecobriam, ento, o Palcio do Planalto, relatam em livro:

    a rapidez com que se desenvolveu a fulminante modificao da

    posio brasileira no cenrio internacional [...] nos primeiros

    dias do governo, quando o regime de Marcelo Caetano aindaestava no poder, o General Golbery do Couto e Silva j falava

    na reviravolta da diplomacia brasileira em relao a Portugal.

    A queda do regime Marcelo Caetano foi, no entanto, mais

    rpida, e poucos analistas chegaram a perceber que, antes

    15 Entrevistas ao autor em 2 de maro, 20 de abril, 18 de junho e 8 de julho de 2015.

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    da Revoluo dos Cravos, o Brasil j via a situao da ex-

    -provncia de ultramar [Angola] de maneira diversa16.

    Em seu depoimento ao CPDOC da FGV, o Embaixador e ex--Chanceler Luiz Felipe Lampreia, ento Primeiro-Secretrio eassessor econmico de Azeredo da Silveira, e um dos seus maisprximos colaboradores, recorda que o 25 de Abril ocorrera 40dias aps a posse de Geisel e a reao de alvio de Silveira: Ns

    nos livramos de um grande abacaxi. Os rumos da poltica externabrasileira de apoio descolonizao j estavam traados, bem comooutras decises para elevar o perfil diplomtico do Brasil no mundo17.

    Em 7 de maio de 1974, o Itamaraty expediu instruo aospostos no exterior autorizando-os a comunicar no mais alto nvel Chancelaria local a nova posio do Brasil na questo (a ntegrada circular-telegrfica 9821 se acha reproduzida pgina 121).O documento elimina suposta ambiguidade ao desvincular a posio

    do Brasil do tratamento que Portugal dispensava ao processo dedescolonizao e deixa claro o propsito de apoiar na ocasiooportuna e no foro apropriado, aquelas manifestaes legtimas deaspiraes nacionais dos pases africanos. Declara ainda que apenascom base no respeito autonomia e vontade de pases soberanos possvel constituir uma autntica comunidade afro-luso-brasileira18.

    O Brasil muda de orientao diplomtica e busca comunicaressa evoluo de forma inequvoca, mas com cautela de modo a

    no contribuir para o agravamento da crise interna em Portugale evitar fossem exacerbadas as presses das elites portuguesasque emigraram para o Brasil. Com a Revoluo dos Cravos, a

    16 STUMPF e PEREIRA FILHO, 1979, p. 81.

    17 SPEKTOR, 2010, p. 57. Sobre o tema, ver tambm LAMPREIA (2009, p. 80-82).

    18 Circular-telegrfica nmero 9821, de 7 de maio de 1974, com o ndice: Territrios portugueses nafrica. Posio brasileira. Transmitida s Misses Diplomticas do Brasil em Abdijan, Nairbi, Kinshasa,Acra, Dacar, Lagos e Cairo, com retransmisso para a Embaixada em Lisboa e para as Representaes

    junto ONU em Genebra e Nova York.

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    indicao, como chanceler, de Mario Soares, respeitado intelectuale lder poltico portugus, que regressara do exlio, facilitaria aretomada do dilogo com o governo de Lisboa. Essa necessidadetornar-se-ia evidente em 16 de julho de 1974, quando o Brasilreconheceu a independncia da Guin-Bissau, sendo o primeiropas no socialista a faz-lo. Segundo Silveira, em seu depoimentoao CPDOC, essa foi a primeira e mais violenta [no sentido dedrstica] correo na nossa poltica africana, que, na realidade,

    comeou a ser corrigida desde 15 de maro, o dia da posse do novogoverno19. A deciso fora antecipada, nas palavras do chanceler,

    pela elaborao de uma circular, aprovada pelo Presidente

    Geisel, que dava conta de uma mudana total em nossa

    poltica. No teramos mais nenhuma solidariedade

    colonialista... no compactuaramos mais com a guerra

    portuguesa na frica e partiramos para o relacionamento

    com todos os pases africanos20.

    A deciso foi considerada por Portugal incompatvel com oesprito do ratado de Amizade e Consulta, pois surpreendeuo governo de Lisboa, que sequer recebeu aviso sobre oreconhecimento, muito menos consulta. O gesto da chancelariabrasileira causou mal-estar junto s autoridades portuguesas eacabaria por mostrar a utilidade de canal de comunicao entreos dois chanceleres. A preocupao de Silveira era evitar a reao

    negativa da comunidade lusitana no Brasil, que aumentara com avinda de imigrantes portugueses, representantes de sua elite polticae econmica, prejudicados inclusive com ameaas de confisco a suaspropriedades na fase inicial da Revoluo dos Cravos. Esses fatores,alm da deciso inicial do governo portugus de negar agrmentao general Carlos Alberto Fontoura como Embaixador do Brasil,

    19 SPEKTOR, 2010, p. 94.

    20 Ibidem, p. 93-94.

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    demonstravam a utilidade de um canal fluido de comunicao diretacom o Chanceler Mrio Soares, com quem Silveira trocou dura efranca correspondncia nesse perodo.

    Em 15 de agosto de 1974, Azeredo da Silveira assinou oComunicado Conjunto sobre o Estabelecimento das RelaesDiplomticas entre o Brasil e a China, no Palcio do Itamaraty.A deciso de normalizar as relaes com Pequim foi medida de grandeimpacto. Repercutiu negativamente em parte da mdia e em setorescom posies ideolgicas anticomunistas, em particular nos meiosmilitares. As mudanas na poltica externa brasileira comeavama gerar forte reao pblica entre os militares mais extremados.O Chanceler Azeredo da Silveira ter compreendido bem nessesmomentos todo o alcance das palavras que lhe dissera Geisel aoconvid-lo para assumir a chefia do Itamaraty, aps conversas emque ficou clara a coincidncia de pontos de vista entre os dois: querodizer ao senhor que se atirarem pedras no seu telhado eu estarei do

    seu lado. Segundo Silveira, no atiraram pedras nele, e sim, desdeo incio, na poltica externa21. O caso do reconhecimento da Chinaj antecipava a reao interna na questo de Angola.

    Ao inaugurar o debate na Assembleia Geral das Naes Unidas,em 1974, o Chanceler Azeredo da Silveira declarou que o Brasil temsobre a questo da descolonizao uma posio de absoluta clareza.O Brasil acredita, sem restries, que no se justificam protelaesou subterfgios na conduo do processo descolonizatrio. Avanou

    afirmando que o Brasil prestar seu apoio a que os povos aindasujeitos a formas de dominao colonial possam alcanar, no maiscurto prazo possvel, a independncia nacional. Nesse sentido,prosseguiu Silveira, to importante o apoio que se preste emancipao, quanto ao junto aos Governos metropolitanos,

    21 Idem, p. 87.

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    para que se desliguem, com rapidez e convico, de suas polticasde dominao colonial.

    No mesmo pronunciamento, em que sobressaem as referncias urgncia da autodeterminao dos povos africanos, o chancelerbrasileiro sublinhou o sentimento de fraternidade que nos ligaa Moambique e a Angola, cuja independncia desejamos verconcluda. Acentuou ainda o repdio ao apartheide a qualquerpretenso da comunidade internacional de querer colonizarculturalmente as naes da frica. Prosseguiu:

    s naes africanas de lngua portuguesa e s outras naes,

    o que desejamos que sejam autnticas na expresso de sua

    rica e variada cultura. O Brasil que tanto deve a diferentes

    culturas africanas s podemos desejar que elas se revigorem

    no clima de liberdade que a independncia nacional lhes

    propicia.

    Cada vez mais, a orientao da poltica externa brasileiraparecia divergir da posio das principais potncias ocidentais, emparticular a dos Estados Unidos, sobretudo com relao a Angolae Moambique. A deciso de Lisboa e do MPLA de estabelecer umperodo de transio ao fim do qual o governo seria transferido quelemovimento de emancipao colocou os dirigentes brasileiros diantede uma opo que, no quadro poltico da poca, era sensvel. Tratava--se de estabelecer desde logo um relacionamento poltico com o MPLA

    ou de aceitar a linha defendida por Washington, que, juntamentecom a frica do Sul, apoiava o movimento independentista rival, aUnita. Tambm em Moambique, um grupo de orientao marxista,a Frente de Libertao de Moambique (Frelimo), preparava-se paraassumir o poder. Assim, os acontecimentos em Portugal e na fricacolocaram o novo governo brasileiro, logo nos primeiros meses doseu mandato, diante de um teste de coerncia com o seu discursopoltico-diplomtico.

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    Dentro da nova tica do governo brasileiro, a situao era clara.Negar ou hesitar em reconhecer os futuros Estados seria repetir oserros do passado, dando prioridade solidariedade com o Ocidentesobre as aspiraes nacionais dos povos angolano e moambicano.al atitude certamente no seria compreendida nem nos pasesdiretamente interessados nem nas demais naes da fricasubsaariana. A opo era, portanto, entre uma divergncia, talvezum atrito passageiro, com alguns pases ocidentais, especialmente

    os Estados Unidos, ou um dano maior s relaes com a frica possivelmente o seu comprometimento por vrios anos.

    A intensificao dos contatos com os EUA por meio de umcanal aberto entre o Chanceler Azeredo da Silveira e o Secretriode Estado norte-americano Henry Kissinger foi uma opoestratgica para evitar atritos e obter as informaes necessriaspara a avaliao dos riscos e das oportunidades com vistas aoprocesso decisrio da chancelaria brasileira. A relao entre os dois

    Ministros motivou estudo publicado, em 2009, pelo professor MatiasSpektor, responsvel tambm pela edio, em 2010, de Azeredo daSilveira, um depoimento. Segundo Spektor, referindo-se a essesentendimentos de amplo alcance, o chanceler:

    props a Kissinger um projeto mais ambicioso por meio do qual

    os Estados Unidos aceitariam instituir novos procedimentos e

    protocolos que selariam a igualdade formal entre os parceiros.

    O objetivo de Braslia era utilizar a retrica da parceria para

    mitigar o poder americano sobre o Brasil e convencer as

    grandes potncias de que o pas merecia status especial nas

    relaes internacionais22.

    O Memorando de Entendimento sobre Consultas em Questesde Interesse Comum acabaria sendo firmado com Washington em

    22 SPEKTOR, 2009, p. 10.

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    fevereiro de 1976, mas antes disso, Silveira j mantinha dilogocada vez mais fluido com Kissinger, inclusive sobre o processo dedescolonizao de Angola. Preocupava Silveira eventual intervenoamericana, sobretudo diante das informaes que comeavam a filtrara respeito da presena de foras cubanas em territrio angolano.Nem sempre essas consultas constavam de cartas trocadas entreos dois, por vezes no observavam as formalidades diplomticase transcorriam no curso de encontros sociais no exterior e eram

    conduzidas com o humor caracterstico do chanceler brasileiro.O prprio Geisel em seu depoimento refere-se utilidade dessemecanismo de consulta de iniciativa de Silveira e ao fato de quenem sempre os EUA se pronunciavam objetiva e diretamente, masdavam a entender23.

    A maneira de evitar os dilemas internos, dentro do espectro dasforas que sustentavam o regime militar; e externos, de naturezageopoltica, previsveis na questo de Angola, seria tornar, na

    medida do possvel, automticoo processo de reconhecimento daindependncia. Tal possibilidade facilitaria a adeso da comunidadeinternacional e aliviaria as crticas de grupos insatisfeitos dentrodas Foras Armadas, no mbito da comunidade portuguesa no Brasile por parte da prpria mdia. A maneira de faz-lo era anteciparo reconhecimento com base no Acordo de Alvor, firmado em10 de janeiro de 1975, entre o governo portugus e os movimentosde libertao nacional de Angola, onde se estabelece que a

    Independncia e a soberania plena de Angola sero solenementeproclamadas em 11 de novembro de 1975 (artigo 4). Quanto evacuao das tropas portuguesas, o artigo 35 definia a data de1 de outubro como incio do prazo para sua retirada do territriodas antigas colnias. As eleies gerais para uma AssembleiaConstituinte seriam realizadas no prazo de nove meses a partir de

    23 DARAJO e CASTRO, 1997, p 345.

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    31 de janeiro de 1975. Enfim, o vencedor do processo interno emAngola seria reconhecido como legtimo.

    nesse cenrio que emergem dois diplomatas, cujo zelo,experincia e competncia foram instrumentais no processo dearticulao com os representantes dos movimentos nacionais:o novo chefe do Departamento da frica, sia e Oceania, Ministrotalo Zappa, que, vindo da delegao brasileira na OEA, foraconvidado por Silveira para essa posio, e o Conselheiro Ovdio deAndrade de Mello, ento lotado no Consulado em Londres e amigode Zappa. Este lhe informou que Silveira pretendia antecipar orelacionamento poltico do Brasil com as colnias portuguesas quese encaminhavam para a Independncia, de modo que seria crucialobter o consentimento de bom grado dos prprios movimentosemancipacionistas africanos. Para tratar com os movimentos quePortugal qualificasse como candidatos ao poder, ainda no perodo detransio, planejava-se abrir nas capitais de Angola e de Moambique

    embries de representao diplomtica. Segundo Zappa, estavamsendo firmados entendimentos a esse respeito entre Silveira e MrioSoares, ento Ministro das Relaes Exteriores de Portugal. Nessecontexto, para apresentar tal proposta aos movimentos nativistasangolanos, Silveira havia cogitado o nome de Ovdio. Essas consultasso narradas em detalhe no testemunho que presta Ovdio, em livropublicado pela FUNAG, em 2009, e cujo texto sobre esse dilogo seencontra reproduzido pgina 165 da presente publicao24.

    Numa primeira etapa, Zappa, como Chefe do Departamento,iria frica, visitar os lderes daqueles movimentos, apenas paraquebrar o gelo de eventuais ressentimentos que pudessem tercom a pregressa poltica brasileira de apoio velado ao colonialismoportugus. Depois, Ovdio iria especificamente para fazer aproposta da criao de duas Representaes Especiais, uma emLoureno Marques (atual Maputo), outra em Luanda. E, se as

    24 MELO, 2009, p. 96-100.

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    propostas fossem aceitas, poderia escolher a chefia de uma delas,o que corresponderia ao comissionamento como Embaixador queOvdio pretendia. Em suas palavras, O convite vinha de Silveira,como Zappa fazia questo de frisar25.

    A partir dos contatos com os trs Movimentos de Libertao deAngola e obtido seu assentimento, bem como o do governo portugus,para o estabelecimento de uma Representao Diplomtica emLuanda que representasse os interesses do Brasil no processo detransio para a Independncia, prevista para 11 de novembrode 1975, o Itamaraty logrou manter uma posio absolutamenteisenta, equnime, neutra e respeitosa frente ao processo polticointerno em Angola. Segundo Zappa:

    o Brasil no tinha inteno alguma de moldar Angola

    independente a desgnios da antiga metrpole. Nem tinha

    qualquer propsito de favorecer a um ou outro dos movimentos

    de libertao que em Angola disputariam o poder

    26

    .Assim, com o intuito de recuperar o terreno perdido no passado

    e de assegurar-se presena poltica e econmica no novo pas, oBrasil, ainda durante a transio de uma autoridade portuguesapara outra angolana, estabeleceu representao poltica especialem Luanda, que se transformaria, formalizada a independncia, emEmbaixada. Braslia reconheceu a independncia de Angola nomesmo dia em que foi proclamada, 11 de novembro de 1975.

    A Representao Especial em Luanda recebeu, dois dias antes dasfestas da Independncia, a histrica deciso para ser comunicadaao governo local. O reconhecimento seria objeto de declarao a serdada imprensa em Braslia, s 20 horas do dia 10 de novembro,correspondente meia noite em Angola. Em 31 de dezembro de

    25 MELO, 2009, p. 97.

    26 MELO, 2009, p. 98.

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    O Brasil e a Independncia de Angola

    1975, o Presidente Geisel assinou o decreto criando a Embaixada doBrasil em Luanda, alm de cinco outras embaixadas no continenteafricano.

    Durante visita oficial a Londres, em maio de 1976, em entrevistaconcedida imprensa, Geisel foi perguntado por um jornalistabrasileiro se a sua colocao de que o Brasil deveria manter presenaativa no continente africano, sobretudo em Angola, significavasugesto ao Ocidente. O Presidente respondeu afirmativamentee declarou:

    acho que se o Ocidente estiver mais presente na frica, e,

    sobretudo, em Angola e Moambique, temos uma maneira de

    nos contrapormos, evidentemente dentro de certos limites,

    ao comunista. Se a Frana, se a Inglaterra, se os Estados

    Unidos e os outros pases se fizerem ali mais presentes, sem

    dvida isso vai trazer dividendos para o Ocidente27.

    A declarao original fora feita no contexto da visita doPresidente Frana. Interessa observar a atitude construtiva eno dogmtica do Chefe de Estado brasileiro e o fato de que estavacompartilhando essa percepo com as autoridades dos pasesmencionados, como testemunham os discursos e os comunicadosconjuntos respectivos.

    Em 25 de maio de 1976, o Embaixador Rodolpho Godoy deSouza Dantas apresentou em Luanda as credenciais ao Presidente

    Agostinho Neto como primeiro Embaixador do Brasil em Angola.O grande lder da independncia angolana declarou em seu discurso:

    estamos certos de que, entre os povos brasileiro e angolano,

    haver uma aproximao rpida e frutfera, resultado dos

    fatores j enunciados (ligados h sculos por laos de sangue,

    27 Assessoria de Relaes Pblicas da Presidncia da Repblica.Viagem do Presidente Geisel a Inglaterra.Braslia, maio 1976, p. 52.

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    de cultura e pela prpria histria), e ainda do interesse

    comum. Este tambm o resultado da nossa independncia,

    da luta vitoriosa do nosso povo, da vitria da frica sobre

    o colonialismo28.

    Por sua vez, o Embaixador Souza Dantas, em seu discurso, citoua seguinte declarao do Chanceler Azeredo da Silveira:

    Com a frica nos empenhamos em instaurar o dilogo direto

    e a solidariedade operativa, que estava no nosso destino emrazo de profundas afinidades histricas, tnicas e culturais

    que temos com seus povos. Era uma imperdovel herana

    do colonialismo a distoro que nos isolava dos povos

    africanos, que deram origem a to considervel parte de

    nossa populao. Como ainda sua triste consequncia que,

    s custas de tanto sofrimento, tenham de se construir como

    Estados os povos recm-libertados29.

    No h dvida de que o estreitamento das relaes com africa e a luta em favor da descolonizao ganharam expressono contexto da Poltica Externa Independente (PEI)30durante osgovernos dos Presidentes Jnio Quadros (1961) e Joo Goulart(1961-1964). Segundo Souto Maior, as aes do Brasil na PolticaExterna Independente e aquelas esboadas durante o governo Mdiciconsolidaram-se como poltica de Estado durante o pragmatismo

    28 MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES,1976.

    29 MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES,1976.

    30 A Poltica Externa Independente (PEI) foi uma doutrina das relaes internacionais do Brasil, inauguradacom a posse de Jnio Quadros como Presidente do Brasil em janeiro de 1961 e continuada, porm comoutros aspectos de conduo e implementao, pelo sucessor na presidncia, Joo Goulart (1961--1964). Dentro de um programa de desenvolvimentismo, tinha como princpio bsico uma atuaoindependente frente bipolaridade EUA-URSS existente na poca, visando proporcionar ao Brasil osbenefcios de uma ampliao do comrcio internacional. Livre do engessamento provocado pelasrestries ideolgicas, o Brasil poderia manter relaes comerciais no somente com os pases dobloco capitalista, mas tambm com aqueles que adotavam o regime socialista. Essa nova atitude eradefendida como um caminho para o desenvolvimento econmico e social.

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    O Brasil e a Independncia de Angola

    responsvel. O mrito da gesto Geisel-Silveira ter sido livrar apoltica brasileira das inibies ideolgicas que, na prtica, tinhamprejudicado, at ento, uma aproximao efetiva entre o Brasil e suacircunvizinhana de alm-mar31.

    O desafio para a estratgia desenhada pelo Itamaraty consistiaem superar a percepo dos que reduziam a posio do Brasil amero histrico de apoio ao colonialismo portugus. O alcance e arepercusso domstica e internacional da deciso do Pas como oprimeiro a reconhecer a Independncia de Angola tornaram-na noapenas marco fundador das relaes diplomticas com o governoangolano, mas tambm referncia para o relacionamento comMoambique, Guin Bissau, Cabo Verde e So Tom e Prncipe. Graasao simbolismo do gesto inaugural, foi possvel estabelecer a confianae o respeito mtuos sobre os quais se tem erguido a cooperao entreBrasil e Angola e entre os pases de lngua portuguesa no mbitoda Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa (CPLP), fundada

    em 1996.

    O episdio do reconhecimento de Angola ilustra o sentido deautonomia do governo brasileiro, no somente em suas relaescom a frica, mas tambm diante das grandes potncias ocidentais.A aproximao com as naes africanas no deveria ficar, porm,restrita a iniciativas simblicas, por importantes que fossem aocontexto da poca. Houve esforo efetivo para conferir alcanceprtico a tal aproximao, com abertura de Embaixadas e agncias,

    a promoo do comrcio e da cooperao tcnica. Assim, o governobrasileiro oferecia aos africanos oportunidades de complementaoeconmica inexistentes poca da Poltica Externa Independente.

    Como se pode observar deste episdio emblemtico doreconhecimento de Angola, a poltica externa no decorre apenasdas convices pessoais de estadistas, chanceleres, mas aproveita

    31 MAIOR,1996.

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    de igual modo o conhecimento produzido e acumulado dentrodas instituies responsveis por sua formulao e execuo.O agregado de pesquisas, debates e tradies amadurece espera dascircunstncias propcias para ser eventualmente resgatado e se tornarinsumo para aes, diretrizes e polticas. Nas relaes internacionais,nem sempre h uma evoluo linear. Fatores internos e externosgeram inflexes que marcam determinado perodo e respondem pelacontinuidade ou ruptura na conduo da poltica externa.

    O reconhecimento de Angola representou alento concluso doprocesso de emancipao dos povos africanos. O resgate da hipotecados anos de apoio ao colonialismo portugus teve o mrito adicionalde recolocar o Brasil na posio de prestgio que lhe cabe nasNaes Unidas, reforando suas credenciais histricas, inclusive ocompromisso com o multilateralismo. Esse crdito seria importantede imediato tanto na questo dos recursos hdricos compartilhados,quanto na liderana do Brasil na negociao da Conveno do Direito

    do Mar. As caractersticas de autonomia da poltica externa brasileiraganharam relevo, imprimindo maior capacidade de manobra einfluncia ao Pas num cenrio internacional ento marcado pelahegemonia das superpotncias, em plena Guerra Fria. A presenainternacional do Brasil comea a refletir mudanas dos parmetrosnacionais de interpretar o mundo e uma atitude de renovadaconfiana por parte de sua diplomacia.

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    O sentido do reconhecimento da

    independncia de Angola pelo Brasil

    A publicao pelo Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil,atravs da Fundao Alexandre de Gusmo FUNAG, de umabrochura espelhando os contornos do reconhecimento pioneiroem 1975 do ento nascente Estado independente de Angola, peloGoverno da Repblica Federativa do Brasil, s pode refletir quoimportante para os nossos irmos brasileiros e para Angola orelacionamento bilateral.

    Esta obra, lanada num momento em que a Repblica de Angolacelebra quarenta anos de independncia e, igualmente, comemoraquarenta anos do estabelecimento das relaes poltico-diplomticascom o Brasil, no s reflete o ato visionrio eousadode solidariedadedo Brasil para com o povo angolano e com o continente africanono geral, expresso num contexto global de plena Guerra Fria, mastambm serve de reflexo sobre os benefcios que este ato pioneirotrouxe para a Repblica de Angola pois, o reconhecimento pelo Brasil

    * Embaixador Extraordinrio e Plenipotencirio da Repblica de Angola no Brasil.

    Nelson Manuel Cosme*

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    Quarenta anos das relaes Brasil-Angola

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    impulsionou outros pases a tambm fazerem-no, abrindo assim,uma nova pgina e novas perspectivas para a histria de Angola.

    Assim, o reconhecimento de Angola pelo Brasil, atravs dasua declarao divulgada pela imprensa s 20 horas do dia 10 denovembro de 1975 (zero hora de Angola do dia 11 de novembro),momento em que era arreada a bandeira portuguesa e hasteadaa bandeira da Repblica Popular de Angola com a partida daadministrao portuguesa e a proclamao perante a frica e omundo da independncia nacional pelo saudoso mdico e poetaDr. Antnio Agostinho Neto, constitui marco histrico importante.

    Esta deciso ousadaem situao poltica complexa, com amplosenvolvimentos internacionais, conferiu bastante peso e um valoragregado posio assumida pelo Brasil e teve influncia dandoconsistncia aos subsequentes xitos diplomticos angolanos,nomeadamente:

    Admisso de Angola como 46 Membro da Organizaode Unidade Africana OUA, atual Unio Africana UA,em 12 de fevereiro de 1976.

    A admisso de Angola como 148oMembro da Organizaodas Naes Unidas ONU, a 1 de dezembro de 1976.

    Importa recordar que estas vitrias ocorreram num perodo degrande perspiccia e tenacidade diplomtica angolana, marcado pela

    vontade e firmeza de sobreviver em plena Guerra Fria.Na arena internacional, o mundo estava dividido em dois blocosopostos e Angola confrontava-se com uma guerra atroz que dividiuprofundamente o pas, instigada por adversrios que queriam alienara independncia de Angola impondo a sua viso ideolgica. Nestecenrio a diplomacia angolana, dirigida pelo ento Ministro dasRelaes Exteriores e atual Presidente da Repblica, Jos Eduardo dosSantos, alm das importantes vitrias diplomticas conseguidas na

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    O sentido do reconhecimento da independncia de Angola pelo Brasil

    OUA e na ONU, logrou que oitenta pases entre os quais 40 africanosreconhecessem o ento governo da Repblica Popular de Angola.

    Passados quarenta anos, podemos constatar que a polticaexterna de Angola e a sua diplomacia so produtos de todas as fasespolticas cheias de obstculos e ensinamentos que marcaram a nossahistria desde 1975.

    A deciso de ambos os pases de realizar Seminrio de alto

    nvel comemorativo dos quarenta anos do estabelecimento dasrelaes diplomticas para Angola um gesto de reconhecimento dasexcelentes relaes mantidas com o Brasil, e consideramos merecidoque, quarenta anos depois, se reflita sobre a gesta gloriosa da aoda diplomacia brasileira e de todos aqueles brasileiros que diretaou indiretamente se empenharam para o reconhecimento da justaluta do povo angolano, pela sua autodeterminao e independncia.

    No momento em que atravs deste livro descortinamos a

    coragem e a ousadia dos atores centrais do reconhecimento deAngola pelo Brasil, somos impulsionados e influenciados a dar maiorconsistncia a nossa relao edificada sobre os alicerces visionrioserigidos pela diplomacia brasileira, e que tiveram seu desfecho napresidncia Geisel, sob o Chanceler Antnio Azeredo Silveira, e tendocomo representante em Angola o Embaixador Ovidio de Melo, queneste livro so lembrados, sem esquecermos das contribuies deoutros heris annimos brasileiros e angolanos, homens da poltica,das letras e da cultura.

    O mote para a elaborao desta obra surgiu da decorrncia deuma necessidade de melhor conhecimento do passado e de avaliaro balano do percurso das nossas relaes bilaterais, entender assuas bases para poder compreender como as mesmas que, de incio,eram tnues, evoluram para o grau atual de relaes distintas, muitointensas e diversificadas.

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    As relaes entre Angola e o Brasil so histricas e sefundamentam em laos de consanguinidade. A Repblica de Angolatem a Repblica Federativa do Brasil como um parceiro estratgicoe como tal, pretende manter vivasas memrias dessa parceria quese vem fortalecendo ao longo dos anos e que tem vindo a se tornarindispensveis para ambos os pases nos vrios domnios.

    A realizao de um Seminrio de alto nvel, onde se abordamas relaes poltico-diplomticas, econmicas e comerciais,educacionais e culturais e no domnio da Defesa, completar estamagnfica obra, pois ser oportunidade de trocarmos impresses,resolvermos problemas e abrir os caminhos do amanh.

    De onde viemos, onde estamos e para onde queremos ir? Soindagaes que a diplomacia angolana e a brasileira esto preparadaspara responder.

    Do lado de Angola, consideramos que os quarenta anos de

    relaes com o Brasil foram caracterizados por vrios momentos:momentos de incerteza quanto ao futuro, vividos nos anos 70,precisamente no perodo em que se deu a independncia de Angola,com atores nos dois pases que no comungavam os mesmosinteresses e at mesmo ideologias; momentos de letargia, como osvividos nos anos 80, pois no obstante a assinatura de um AcordoGeral de Cooperao em junho de 1980 os interesses polticos nemsempre convergiam; momentos de manifestaes de intenesporm sem o acompanhamento de aes concretas, como os vividosnos anos 90, uma vez que mesmo comeando a haver um forteintercmbio comercial e a participao brasileira ativa nos grandesdesafios de reconstruo de Angola, os interesses polticos aindaestavam desencontrados; e momentos de grande intensidade doponto de vista da concertao poltico-diplomtica e uma clara einequvoca vontade poltica expressa pelos altos dignatrios dos doispases em estreitar e aprofundar cada vez mais as relaes polticas

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    bilaterais na base do respeito mtuo e da reciprocidade de vantagens,que marcaram os anos 2000 e se estendem at o presente.

    O contexto internacional e as especificidades prprias dosnossos pases influenciaram diretamente na evoluo das relaesbilaterais.

    Enquanto Angola tinha como prioridade sua sobrevivnciacomo nao num contexto de Guerra fria e num mundo bipolar, e

    promover a segurana regional e a soberania dos Estados vizinhosante uma poltica de agresso e expansionista do regime doApartheidna frica do Sul, e ainda gerir os efeitos nefastos de um conflitointerno devastador, o Brasil, por sua vez, tambm, vivia os desafiospara a afirmao de uma sociedade equitativa e a redemocratizao.

    Estas diferentes etapas que marcaram as relaes entre os nossospases, de uma maneira geral, contriburam para que o modelo decooperao evolusse ao nvel estratgico com resultados palpveis

    nos vrios domnios de cooperao quer poltico-diplomtico,econmico e cultural.

    com olhos no futuro que Angola v a relao com o Brasil.Angola necessita do conhecimento e da tecnologia brasileiros paracriar as bases e se tornar uma economia em condies de atender asnecessidades internas de alimentos e de muitos bens manufaturados,ao mesmo tempo em que pode absorver indstrias brasileiras queabasteam para alm do mercado angolano, outros mercados na

    frica.A viso de futuro e o pragmatismo devero ser os ingredientes

    a adotar nas relaes bilaterais para sermos fiis memria daquelesque lutando pelo reconhecimento de Angola pelo Brasil, lanaramas sementes de uma relao que hoje no mundo um modelo decooperao Sul-Sul, particularmente, no continente africano.

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    Como disse o Presidente da Repblica de Angola, Eng JosEduardo dos Santos em 20 de outubro de 2011, quando recebia emLuanda, a Presidente Dilma Rousseff,

    [...] apesar de existir a parceria estratgica desde 23 de

    junho de 2010, a nossa cooperao pode ser ainda mais

    alargada para outras reas como as definidas pelas Naes

    Unidas como metas do Milnio, ou seja, erradicar a pobreza

    extrema e a fome, universalizar o ensino, valorizar o gnero,reduzir a mortalidade infantil, melhorar a sade materna,

    combater as grandes endemias, garantir a defesa sustentvel

    do ambiente e criar parcerias para o desenvolvimento visando

    a prazo a integrao produtiva das nossas duas economia e a

    sua melhor insero competitiva ao nvel internacional [...]

    No plano internacional, as relaes entre Angola e o Brasildevero continuar a conhecer a concertao de posies no domnio

    poltico e diplomtico, no quadro de uma nova ordem mundial esobre as questes que ainda preocupam a humanidade, como a fomee a pobreza, o terrorismo, os crimes transfronteirios, as alteraesclimticas, as grandes endemias e os desafios da segurana martimae energtica.

    Das sementes do reconhecimento brotaram frutos de umacooperao mutuamente vantajosa e relaes de amizade que serepercutem nas organizaes internacionais e regionais em que

    os nossos pases esto inseridos, adotando ambos uma polticade cooperao pacfica, assente em valores democrticos e emeconomias abertas voltadas para o desenvolvimento.

    assim que esse esprito tem presidido a nossa convivnciae cooperao no quadro da Comunidade de Pases de LnguaPortuguesa (CPLP).

    Angola apoia desde o incio e continua a apoiar a justa e legtimaaspirao do Brasil de se tornar Membro Permanente do Conselho

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    de Segurana das Naes Unidas. Essa seria uma possibilidade dese dar voz no apenas a um dos pases com maior estabilidade ecrescimento a nvel mundial, mas tambm a um dos que tem vindo adar uma efetiva contribuio para a soluo de alguns dos principaisproblemas do mundo atual. A presena do Brasil no Conselho deSegurana da ONU seria igualmente uma garantia de uma melhorcooperao Sul-Sul e de que a voz de outros pases emergentes, entreos quais, Angola se inclui, seria tambm tida em considerao na

    hora de se tomarem decises de interesse global.

    Retiremos pois as mais sbias lies do processo doreconhecimento da Repblica de Angola pelo Brasil, parafortalecermos as nossas relaes bilaterais para que sejamos dignosdos esforos dos nossos compatriotas que trilharam este caminho.

    Pesquisar sobre os quarenta anos das relaes entre Angola e oBrasil e navegar sobre as pginas gloriosas da histria contemporneados nossos pases uma tarefa prestigiante, pois encontraremosimportantes relatos e testemunhos dignos de dois povos irmos.Que esta temtica possa ser objeto de estudo e intercmbio para asuniversidades dos dois pases.

    Regozijamo-nos finalmente pela pronta e incondicionalcolaborao da Secretaria-Geral, Subsecretaria-Geral de PolticaIII, Fundao Alexandre de Gusmo (FUNAG) e naturalmente doGabinete do Ministro das Relaes Exteriores do Brasil, assimcomo da Direo Amrica, do Gabinete do Ministro das Relaesde Angola, e da Assessoria Diplomtica da Presidncia de Angola queno mediram esforos para que se presenteasse os leitores, polticos,diplomatas e pesquisadores com esta magna obra.

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    Nota sobre a documentao

    O gesto de ter sido o primeiro pas a reconhecer a independncia

    de Angola, ocorrida no primeiro minuto do dia 11 de novembro de1975, com justia considerado um marco fundamental nas relaesdo Brasil com Angola e com a frica e, por consequncia, na prpriahistria recente da poltica externa brasileira. At o incio do anoanterior, o Brasil apresentava-se, nos fruns internacionais, comoum dos ltimos pontos de apoio para o colonialismo portugus,na desconfortvel companhia do regime racista ento vigente nafrica do Sul. Muitas vezes, a posio brasileira no era partilhada

    nem mesmo pelas antigas potncias colonialistas europeias e pelosEstados Unidos, que preservados seus interesses estratgicos emrelao a Portugal mostravam-se crticos posio intransigente deLisboa. No Brasil, por sua vez, com o Pas governado por presidentesmilitares, a diplomacia sofria os constrangimentos da Guerra Friae a presso de grupos internos simpticos ao regime salazarista.A retrica oficial centrava-se na vigncia de uma relao especialentre o Brasil e Portugal, que aparecia como justificativa para o apoio

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    a Lisboa nos fruns internacionais, ainda que em posio de quasecompleto isolamento.

    A postura anacrnica de Portugal em relao a suas colniasseria radicalmente transformada com a ecloso da Revoluo dosCravos em 25 de abril de 1974. A partir dessa data, a independnciados domnios coloniais lusitanos na frica deu-se rapidamente, combase em solues negociadas com a nova democracia portuguesa.

    primeira vista, o fim do longo perodo salazarista em Portugal parececoincidir com uma nova postura brasileira frente independnciados pases africanos de lngua portuguesa. Inclusive, alguns analistaschegam a apresentar essa mudana como o simples reconhecimento,at mesmo tardio, da nova situao imposta pela reverso da posturada antiga metrpole colonial. Contudo, a verdade mais complexae rica, como atesta a documentao que se publica a seguir e cujosoriginais esto disponveis para consulta no Arquivo do Itamaraty,em Braslia.

    No primeiro dos documentos apresentados, a Exposio deMotivos, datada de 22 de janeiro de 1974, o ento Chanceler MarioGibson Barbosa resumiu ao Presidente Emlio Garrastazu Mdici aevoluo das relaes entre o Brasil e Portugal e a postura brasileirafrente ao problema da descolonizao dos domnios lusitanos nafrica. O Chanceler Gibson historiou e desenvolveu a questo parareconhecer a necessidade da alterao do rumo at ento adotado echegou a deixar a sugesto para uma nova poltica para o Governo

    do Presidente Geisel, que tomaria posse meses depois. H revelaesimportantes como as tentativas brasileiras, durante o GovernoMdici, de mediar encontros entre o Governo portugus e pasesafricanos para buscar a sada negociada de Portugal de suas colniase a frustrao brasileira com a inflexibilidade de Lisboa. O aparenteapoio irrestrito do Brasil a Portugal explicava-se pela tentativa depromover o dilogo entre as partes, em entendimentos secretos, e odocumento revela o desencanto com essa estratgia e a concluso que

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    Nota sobre a documentao

    se chegou sobre a necessidade de revelar publicamente a oposiobrasileira poltica colonial portuguesa, apoiar a independncia dascolnias portuguesas e, posteriormente, promover a criao de umacomunidade luso-afro-brasileira de pases soberanos e autnomos,em grande medida uma anteviso da Comunidade dos Pases deLngua Portuguesa (CPLP) criada dcadas depois.

    O texto da Exposio de Motivos comea reconhecendoo apoio que o Brasil tem dado a Portugal, na ONU e em outrosforos, durante os ltimos 15 anos e o crescente desgaste queisso vem causando posio parlamentar do Brasil em diversasorganizaes internacionais e s relaes do nosso pas com Estadosde crescente importncia na comunidade internacional. Ao analisardesenvolvimentos ento recentes, o Chanceler brasileiro explicou queo Governo Marcello Caetano deu passo atrs na poltica que pareciavir desenvolvendo e fechou a porta a qualquer soluo negociada doproblema ultramarino, pelo menos a curto prazo, e reclamou que

    o Governo portugus entenderia que a ao do Brasil tem o limitepreciso da adeso sistemtica e irrestrita s teses portuguesas, oque implica uma espcie de satelizao da nossa poltica externa poltica externa lusitana. Assim, disse o Chanceler Gibson aoPresidente Mdici, seria oportuno e indispensvel recapitular aslinhas polticas adotadas no Governo de Vossa Excelncia no que dizrespeito s relaes com Portugal metropolitano e ao problema deseus territrios de ultramar, bem como submeter, alta considerao

    de Vossa Excelncia, linhas de ao futura.Por um lado, a evoluo das relaes com Portugal metropolitano

    foi considerada plenamente satisfatria: De tal forma, com talinteresse e com tamanho empenho, trabalhou-se para dar o mximode densidade s relaes entre o Brasil e Portugal que, ao trminodo Governo de Vossa Excelncia, nada ou quase nada restar porfazer no campo institucional para dar realidade plena e objetiva Comunidade Luso-Brasileira, dentro dos parmetros impostos pela

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    diferena de peso especfico entre os dois pases independentes quea compem e resguardada a soberania de cada um.

    Por outro lado, com relao s colnias portuguesas, apoltica foi a de evitar todo e qualquer envolvimento poltico ousobretudo militar no problema colonial lusitano e o de incentivaro desenvolvimento de relaes comerciais e culturais, sempre queestivessem isentas da conotao de apoio poltica portuguesa em

    Angola, Moambique e Guin ou da aceitao da fico jurdica de queconstituem provncias de um Estado unitrio. Contudo, reconheceuo Chanceler Gibson que, nos diversos fruns internacionais, o Brasil:

    [...] ops-se a todos os projetos de expulso de Portugal desses

    organismos. O voto brasileiro, geralmente acompanhado por

    apenas cinco ou seis pases e s vezes menos no tem