QUANTAS ALEGRIAS TEM A NOITE

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Universidade Federal do Rio de Janeiro QUANTAS ALEGRIAS TEM A NOITE Heloise Cabral Santana 2008

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

QUANTAS ALEGRIAS TEM A NOITE

Heloise Cabral Santana

2008

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QUANTAS ALEGRIAS TEM A NOITE

Heloise Cabral Santana

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco.

Rio de Janeiro

setembro de 2008

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QUANTAS ALEGRIAS TEM A NOITE

Heloise Cabral Santana

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras

Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como

parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras

Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

Examinada por:

_________________________________________________

Dra. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco – UFRJ

_________________________________________________

Dra. Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva – UFRJ

_________________________________________________

Dr. Sílvio Renato Jorge – UFF

_________________________________________________

Dra. Gumercinda Gonda – UFRJ, Suplente

_________________________________________________

Dra. Edna Maria dos Santos – UERJ, Suplente

Rio de Janeiro

setembro de 2008

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Santana, Heloise Cabral O58qsa Quantas madrugadas tem a noite/ Heloise Cabral Santana. –

Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. 101 f. ; 30 cm

Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Vernáculas, 2008.

Referência bibliográfica: f. [89] – 95. 1. Ondjaki, 1977- (Ndalu de Almeida). Quantas

madrugadas tem a noite – Crítica e interpretação. 2. Ondjaki, 1977- (Ndalu de Almeida). Quantas madrugadas tem a noite – Personagens. 3. Alegria na literatura. 4. Literatura e sociedade - Angola. 5. Intertextualidade. 6. Memória na literatura 7. Espaço e tempo na literatura I. Secco, Carmen Lucia Tindó. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.

CDD A869.37

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SINOPSE

A alegria em Quantas madrugadas tem a noite, de Ondjaki: as memórias da infância do narrador em diálogo com o presente da narração. A cidade de Luanda como cenário principal, as personagens marginalizadas socialmente. A oratura recriada e o humor crítico. A poeticidade da linguagem e as intertextualidades. A alegria como forma de resistência às distopias do contexto angolano contemporâneo.

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Ao meu marido Santiago, companheiro de todas as horas...

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AGRADECIMENTOS

A Deus, o orientador da minha vida.

Aos meus pais, por todo amor, carinho e apoio.

Ao meu irmão, por ter sempre acreditado na minha vitória.

À minha cunhada Marta, por ser exemplo de disciplina e perseverança.

Ao meu grupo de oração Filhos do Rei, pela intercessão e torcida para que eu

conseguisse concluir este trabalho.

À professora Cinda Gonda, por ter-me ensinado, em suas aulas, o prazer da escrita.

À professora Ângela Beatriz Faria, por ter-me iniciado na pesquisa acadêmica.

À professora Cláudia Márcia Rocha, por ter-me apresentado às fascinantes Literaturas

Africanas de Língua Portuguesa.

À Renata Souza, minha amiga na longa caminhada do Mestrado, por suas palavras de

estímulo e conforto nas horas difíceis.

Ao Ondjaki, por suas obras e por sua disponibilidade em esclarecer algumas questões.

À professora Carmen Tindó, por ter-me encorajado e acreditado em mim. Por tudo que

aprendi com ela através de seus preciosos conselhos. Enfim, por ter sido uma verdadeira

ORIENTADORA.

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RESUMO

QUANTAS ALEGRIAS TEM A NOITE

Heloise Cabral Santana Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em

Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

Esta dissertação tem como objetivo central a análise do livro Quantas madrugadas tem a

noite, de Ondjaki. A leitura tem como fio condutor o tema da alegria, recorrente na obra do escritor. A inserção de memórias afetivas do “antigamente” na narrativa principal funciona como elemento essencial do repensar histórico e como estratégia de criar uma maior aproximação do leitor com as personagens. A linguagem poética, marcada por traços da oralidade recriada e pelas inúmeras intertextualidades empregadas pelo escritor, caracteriza o romance em questão. A importância histórica de Luanda como metonímia de Angola será analisada no decorrer desta dissertação. O humor e a ironia se fazem presentes como meios de crítica à sociedade. Será também objeto de estudo a opção do autor pela criação de personagens-tipo, carregadas de significados, que vivem à margem da sociedade, mas que conseguem resistir ao desencanto contemporâneo através da alegria. Palavras-chave: alegria / oralidade/ memória

Rio de Janeiro setembro de 2008

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RESUMEN

QUANTAS ALEGRIAS TEM A NOITE

Heloise Cabral Santana Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Resumen da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em

Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

Esta disertación tiene como objectivo central el análisis del libro Quantas madrugadas

tem a noite, de Ondjaki. La lectura tiene como un hilo portador el motivo de la alegría, recurrente en la obra del escritor. La inserción de memorias afectivas del "antaño" en la narrativa central funciona como elemento esencial del repensar histórico y como estrategia de crear una mayor aproximación del lector con los personajes. El lenguaje poético, referencia símbolo por choques de la oralidad recreada y por las inúmeras intertextualidades hechas por el escritor, marcan la novela en cuestión. La importancia histórica de Luanda como una metonímia de Angola será evaluada durante la escritura de esta disertación. El humor y la ironía se hacen presentes como medios de crítica a la sociedad. Será también objecto de estudio la opción del autor por la creación de personajes-tipo, cargados de significados, que viven a la margen de la sociedad, pero que logran soportar el desencanto contemporáneo vía la alegría. Palabras-llave: alegría / oralidad / memoria

Rio de Janeiro setembro de 2008

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO __________________________________________________11

2. ONDJAKI: UM POUCO DE SUA OBRA E SUA HISTÓRIA _____________ 24

3. CARTOGRAFIAS DE LUANDA: OS ESPAÇOS E AS PERSONAGENS____34

4. O NARRADOR E A ORATURA RECRIADA__________________________51

5. DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS______________________________________66

6. CONCLUSÃO____________________________________________________83

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS_________________________________89

8. ANEXO_________________________________________________________96

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Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.

Clarice Lispector*

Sendo todas as outras coisas iguais, o desejo que nasce da alegria é mais forte que o desejo que nasce da tristeza.

Baruch de Spinoza**

________________________ * LISPECTOR, 1980, p 22. ** SPINOZA, 2002, p 312.

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1. INTRODUÇÃO

A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio... Os suicidas tinham razão. Aurora, entretanto eu te diviso, ainda tímida inexperiente das luzes que vais acender e dos bens que repartirás com todos os homens. Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações, adivinho-te que sobes,vapor róseo, expulsando a treva noturna.

Carlos Drummond de Andrade1

No poema drummondiano “A noite dissolve os homens”, o período noturno

aparece marcado pela imagística sombria da escuridão tenebrosa, metáfora dos horrores,

do medo e do desencanto. Entretanto, a claridade promissora de um futuro prestes a

alvorecer surge como uma possibilidade de saída para o legado dos impasses vividos.

O vocábulo noite é, em geral, utilizado na literatura para marcar tempos

opressivos, de terror, habitados pelo silêncio e pela censura. Ou então para significar

tristeza, desilusão, angústia e morte. Ou ainda para representar as zonas sombrias do

inconsciente. A noite, quando metaforiza tempos amargos, funciona como uma

representação de pensamentos distópicos.

O termo distopia pode ser conceituado como “sinônimo de ‘anti-utopia’ e aplicado

a uma obra que põe em causa ou satiriza alguma utopia ou que desmitifica tentativas de

apropriação totalitária de um cenário utópico.” (NUNES, 2008). A distopia é um estado

de desencanto e desilusão. O pensamento distópico, em geral, advém do

enfraquecimento de uma utopia.

A sociedade angolana, a partir de meados dos anos 80, se viu permeada por um

espírito distópico, pois a independência não resolveu todos os problemas sociais de 1 ANDRADE, C. D., 1971, p 57.

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Angola e as promessas revolucionárias não foram todas cumpridas. O sonho de paz e

liberdade durou pouco. A situação política angolana se agravou com o início de uma das

guerras civis mais longas e violentas no continente africano, que só terminou em 2002.

Com relação a esta fase da pós-independência, a estudiosa Jane Tutikian, em seu

texto “Questões de identidade: a África de língua portuguesa”, considera esta Angola

distópica e denomina os intelectuais e escritores desse período de “a geração da ilusão

da independência.”(TUTIKIAN, 2006, p 40). Pepetela, autor angolano consagrado, no

romance A geração da utopia, discute a perda da utopia através da personagem Aníbal,

após a euforia da libertação:

[...] Costumo pensar que a nossa geração se devia chamar a geração da utopia. [...] éramos puros e queríamos fazer uma coisa diferente. Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos Cristãos, em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele. E depois... tudo se adulterou, tudo apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Cada um começou a preparar as bases de lançamento para esse poder, a defender posições particulares, egoístas. A utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em putrefacção. Dela só resta um discurso vazio (PEPETELA, 1993, p 202, grifo nosso).

Esse sentimento de desencanto foi sentido por muitos escritores que, em suas

obras, problematizaram a questão, buscando, por entre as sombras das distopias, feixes

de luz e esperanças. Ondjaki é um desses escritores que vem nos mostrar que a noite não

tem apenas uma conotação negativa. Ela pode simbolizar:

[...] o tempo das gestações, das germinações, das conspirações, que vão desabrochar em pleno dia como manifestação da vida. Ela é rica em todas as virtualidades da existência. Mas entrar na noite é voltar ao indeterminado, onde se misturam pesadelos e monstros, as idéias negras. Ela é a imagem do inconsciente e, no sono da noite, o inconsciente se libera. Como todo símbolo, a noite apresenta um duplo aspecto, o das trevas onde fermenta o vir a ser, e o da preparação do dia, de onde brotara a luz da vida. (CHEVALIER, 1999, p 640).

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A noite, portanto, não está relacionada somente às “trevas”, mas também à

“preparação do dia”. E é na madrugada que é gestada a aurora. O alvorecer é, pois, um

tempo fecundo, momento em que se plasma e se espera a aurora, cuja luminosidade

crescente se transformará na manhã. A madrugada acaba por ser este período de

transição das trevas para a luz, uma vez que se tece entre a noite e o dia. É o tempo que

compreende as últimas horas da noite, antecedendo o nascer do sol. É um espaço

intermediário, um “entre-tempo”.

Esse momento “entre” é enfatizado pelo autor através do narrador que chega a se

confundir: “gosto muito desta parte do dia, quer dizer da noite, a madrugada.”

(ONDJAKI, 2004, pp 120-121).

Noite, distopia e madrugada são imagens nucleadoras do romance Quantas

madrugadas tem a noite, de Ondjaki, que analisaremos nesta dissertação. O título da

obra é sugestivo e serviu de inspiração ao nosso estudo que intitulamos Quantas

alegrias tem a noite, porquanto demonstraremos ser a madrugada o espaço privilegiado

em que a alegria é semeada. Nosso objetivo é investigar de que maneira essa alegria se

manifesta na noite, adubada pela leveza e delicadeza de um “escritor-poeta” que também

escreve contos e romances: Ondjaki.

O que mais nos chamou a atenção inicialmente e fez com que optássemos pela

escolha deste corpus literário foram dois aspectos: o lirismo empregado pelo autor e a

atualidade histórica das matérias por ele narradas.

O cenário do romance Quantas madrugadas tem a noite é a cidade de Luanda

(capital de Angola), no ano de 2002, período correspondente ao fim da guerra civil. A

noite escura e turbulenta já começava a dar espaço a uma tênue madrugada. Os

pensamentos por mais distópicos que fossem (e continuaram sendo, mesmo com o fim

da guerra), começavam a conviver com algumas brechas de esperança, por mais sutis

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que essas pudessem parecer. Uma nova Luanda se esboçava tímida, sendo lentamente

rascunhada. Uma cidade ia ganhando corpo e voz nas descrições de Adolfo –

personagem principal do romance em questão – que demonstra, então, um sentimento

semelhante ao de João Vêncio (personagem criada pelo escritor Luandino Vieira) que,

estando fora de Luanda, confessa sua saudade pela capital:

Muadiê: eu gramo de Luanda - casas, ruas, paus, mar, céu e nuvias, Ilhinha pescadórica. Beleza toda eu não escoiço. Eu digo: Luanda - e meu coração ri, meus olhos fecham, sôdade. Porque eu só estou cá, quando estou longe. De longe é que se ama. (VIEIRA, 1981a, p 23).

Ondjaki escreve histórias em Luanda, para e sobre Luanda e seus habitantes: a sua

cidade aparece como o cenário principal de suas obras. O escritor declarou, em diversos

encontros e palestras, que a cidade é que o escolheu.

A ligação de Ondjaki com sua urbe é tão forte, que, numa entrevista concedida ao

site Carta Maior, nos revela que ter nascido em Luanda foi um fator fundamental para

que surgisse nele o desejo da escrita: “A minha trajetória inicia-se por nascer em

Luanda, uma cidade cheia de histórias, de ficção, de fantasia, também de pobreza e

muitas vidas diferentes”. (Ondjaki, site Carta Maior, 2006).

Ainda que a guerra tenha terminado, Ondjaki, em Quantas madrugadas tem a

noite, faz duras críticas a vários problemas sociais que continuaram a persistir em

Luanda. Com isso, ele nos mostra que o silêncio das armas não significou

necessariamente o fim do estado caótico que os muitos anos de luta armada provocaram

na sociedade angolana. Contudo, a par de injustiças sociais, da falta de estruturação

política e dos fantasmas da guerra a pairarem ainda sobre Angola, o autor consegue, em

seus livros, plantar singelas sementes de alegria a brotarem da terra plúmbea, marcada,

ainda, por minas enterradas em vários pontos do território angolano.

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Quantas madrugadas tem a noite é habitado por personagens que lutam para

enxergarem a beleza e a esperança por entre os destroços de uma longa guerra civil. E a

alegria aparece como uma das formas de resistência a essa dura realidade, pois, embora

o povo tenha motivos para querer até mesmo desistir da vida, não o faz. Usa, muitas

vezes, a imaginação que está quase sempre a serviço da sobrevivência e da busca de uma

vida mais digna.

Para nós, fica o espanto e o seguinte questionamento que tentaremos elucidar ao

longo desta dissertação: pode ser feliz um país com uma história singular, perpassada

por tantos sofrimentos provocados pela guerra?

No romance que escolhemos para análise, descobriremos que é possível alegrar-se,

ainda que tudo convide ao desânimo. Concluiremos que os que vivem uma realidade

difícil acabam por aprender a importância da resistência, em suas mais variadas formas.

Vale ressaltar que esta não é uma alegria alienante (que age como anestesia). O que a

professora Maria Teresa Salgado escreve sobre Bom Dia Camaradas – outro romance de

Ondjaki – serve também para refletirmos sobre Quantas madrugadas tem a noite:

Mas não pense que essa felicidade é fruto de uma visão ingênua ou alienada. Os esquemas, os desmandos e os mais diversos tipos de violências sociais não deixam de ser focalizados na narrativa [...] Na verdade, ao longo de toda a obra, vão se desenrolando os mais diversos tipos de mazelas e misérias da sociedade angolana. Contudo, o foco do texto de Ondjaki não se concentra em torno da crítica e da denúncia social, como acontece em tantas obras ficcionais angolanas contemporâneas, e sim em torno da recriação de um universo perdido. (SALGADO, 2008, p 310).

A capacidade de Ondjaki recriar a sociedade angolana através de suas histórias,

concebendo a vida sob um prisma diferente, mas nunca deixando de apontar e criticar a

realidade (com suas desigualdades sociais, violências, problemas burocráticos,

preconceitos raciais, guerra, etc.) foi mais um fator que corroborou para a nossa decisão

de escolher Quantas madrugadas tem a noite como centro de nosso trabalho. E, devido à

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presença constante da alegria neste romance de Ondjaki, elegemos essa temática como

fio condutor de nossa dissertação. Para definir teoricamente a alegria, recorreremos a

alguns estudos do filósofo Spinoza, citando também, por vezes, outros estudiosos do

assunto.

São diversos os conceitos de alegria. Mas é Spinoza que a conceitua como

“potência de ação”. Optamos por essa conceituação, entendendo o ato de alegrar-se

como “uma paixão pela qual a alma passa a uma maior perfeição” (SPINOZA, 2002, p

209), ou seja, “ uma afecção pela qual a potência de agir do corpo é acrescida ou

favorecida [...] [sendo] diretamente boa” (SPINOZA, 2002, p 325). Segundo tal visão, a

alegria se mostra de maneira ativa, pois, “quando a alma se considera ela própria e

considera a sua potência de agir, alegra-se” (SPINOZA, 2002, p 250).

Para Spinoza, a felicidade só existe quando é consciente; para ele, é impossível ser

feliz e não saber que o é. Ele afirma que “há homens inconscientemente infelizes. [...] E

há homens conscientemente felizes.” (SPINOZA, 2002, p 18). De acordo com esse

filósofo, o homem deve exercitar sua capacidade de ser pensante e agir sempre com

atenção neste sentido, para estar, cada vez mais, em contato com idéias claras. E a

alegria, de acordo com seu pensamento filosófico, faz aumentar a capacidade de refletir

e de agir. Sua filosofia é voltada para o combate à tristeza, visto que esta diminui a

potência do raciocínio humano. Conforme o especialista em Spinoza, Robert Misrahi,

“apenas o desejo da alegria pode motivar o trabalho da razão (seja reflexiva ou

intuitiva), e a própria razão só é libertadora porque permite aumentar a autonomia da

ação, isto é, a ‘potência’ ou ‘força de existir’.” (MISRAHI, 2001, p 12).

A liberdade, segundo Spinoza, geralmente não é almejada por si mesma, ela o é

como meio de alcançar a alegria, a vida feliz. Tais conceitos estão interligados, devendo

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a alegria ser vivida na liberdade, uma vez ser esta uma condição necessária para o pleno

exercício da vida.

Em consonância com o pensamento de Spinoza, o filósofo Deleuze sugere que

devemos “prestar sempre atenção ao que há de bom em cada coisa, a fim de sermos

determinados a agir por um sentimento de alegria” (DELEUZE, 1970, p 148).

Ondjaki, em Quantas madrugadas tem a noite, trilha caminhos parecidos aos

destes filósofos, relevando, em sua narrativa, “quantas alegrias tem a noite”. Mas é

preciso que estejamos de ouvidos atentos, de olhos bem abertos para conseguirmos

captar essas pequenas alegrias que o escritor apreende e ficcionaliza em seu texto. O

sorriso e o riso são algumas das manifestações concretas da alegria que encontraremos

em sua obra. O sorriso nos contagia ao olhar; e o riso, ao escutar. Ambos despertam uma

energia positiva interior, capaz de combater forças negativas exteriores. Funcionam

como munições de alegria, conforme podemos ver no seguinte trecho do romance, em

que o narrador, numa de suas divagações, conversa com seu interlocutor sobre o

problema das enchentes em Luanda:

[...] sofrimento aqui lhe maltratamos male!, ele desiste de nos maltratar, muangolê então é nervoso: a chuva era uma quase calamidade?, lhe tavam a receber mesmo assim, sorrisos, novas negociatas que as águas trouxeram, aprender a nadar agora na piscina de alcatrão, ex tua rua, ex teu trajecto dos pés poeirentos. Num duvida só, era muita chuva, só que: aqui somos muitos também: A união faz o reforço? Meu: é no sofrimento que o sorriso dum povo fica todo semelhado – uma única boca sem rosto a rir na cara da desgraça, a lhe amolecer. (ONDJAKI, 2004, p 24, grifo nosso).

Ondjaki demonstra como a alegria pode ser um antídoto ao sofrimento. O ato de rir

aparece nesse contexto como resistência ao desânimo, e, com forte traço irônico, efetua

críticas contundentes à desgraça reinante em seu país.

A ironia, conforme afirma Jankélévitch, “configura-se em avanço, e nunca apenas

[como] uma ilha de vã gratuidade: no lugar onde se passa ironia, há mais verdade e mais

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luz. Já que a ironia destrói sem reconstruir, ela sempre nos leva mais além [...]”

(JANKÉLÉVITCH, 1964, p 37).

No cerne da ironia está o sentimento do contrário, a “aresta cortante”

(HUTCHEON, Linda, 2000, pp. 63-72) de uma crítica ferina. Lola Xavier, em seu livro,

O discurso da ironia, no qual ela reúne conceitos de ironia de vários teóricos desse

assunto, nos alerta para perigos que um texto irônico pode conter, já que, por seu cunho

ideológico, pode não ser compreensível, sem uma contextualização espaço-temporal.

Toda ironia, para ser bem interpretada, deve ser contextualizada.

Na época, por exemplo, em que a doença da “vaca louca” era assunto praticamente

comentado no mundo inteiro, Ondjaki ironizou os problemas da fome e da guerra

sofridos em Angola, ao colocar seu narrador esclarecendo que essas “vacas loucas”

poderiam ser as soluções para algumas das dificuldades angolanas:

Tava a dizer, eu, nas europas tão abater vacas, [...] porra, se desconfiam que a vaca tá louca – vaca pode ficar louca? quando muito, tá confusa! – mas se desconfiam só, pronto, pode ser só uma, mas vão abater mais de mil. Meu, ouve só a minha ideia mesmo puramente: mandar todas as vacas aqui, vamos lhes receber no porto, festa e cortejo já e tudo. Vamos com as vacas pro campo, mandar gajas caminhar só aí bem à toa: festa das minas, mas não só – elas rebentam e ficam logo semigrelhadas. [...] todas as minas descobertas e carne pronta pra ser seca, guardada no mundo ou nos nossos estômagos...” (ONDJAKI, 2004, pp 34-35).

Com base em definições de alguns teóricos do assunto, Lola Xavier explica as

diferenças entre ironia e sátira, mostrando que esta tem uma função corretiva e

moralizante que aquela não tem. Segundo a autora, “a sátira afirma a necessidade e a

validade de normas e valores sistemáticos; a ironia, pelo contrário, coloca em dúvida,

faz vacilar as normas comumente aceites” (XAVIER, 2007, p 47). Ondjaki, em Quantas

madrugadas tem a noite, trabalha com a ironia e não com a sátira. Mas, seu discurso

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irônico, embora cortante no sentido de fazer críticas, não é agressivo nem pessimista,

pois consegue juntar à ironia um trabalho lúdico com a linguagem e a memória.

O humor, que, segundo Freud, em seu livro Os chistes e sua relação com o

inconsciente, é caracterizado pela transgressão e distorção entre imaginário e realidade,

também é utilizado por Ondjaki, principalmente como mecanismo de combate ao

sofrimento. Quando o narrador, num trecho já mencionado, revela que o povo angolano,

numa briga contra a desgraça, ganha dela por “bater mais forte”, percebemos que ele se

comporta como um humorista semelhante àquele definido por Freud: mostrando o

sofrimento como insignificante, com intuito de reduzir o efeito de piedade e alcançar a

liberdade positiva da dor. Essa idéia do humor funcionando como enfraquecedor do

sofrimento perpassa por todo livro. Outra passagem que ilustra esse tipo de humor é a

que narra a cena do tribunal, na qual os amigos de Adolfo resolvem besuntá-lo de mel

para que seu corpo não ficasse a cheirar mal, já que não era possível enterrá-lo: “[...] a

JuízaMeritíssima entendeu perfeitamente, tão perfeitamente que[...] autorizou

besuntarem o corpo com aquela espécie de mel que a KotaDasAbelhas tinha dado, e pra

espanto de todos assim aconteceu [...]” (ONDJAKI, 2004, p 87).

Uma característica ambígua do humor, que Linda Hutcheon enfatiza, é a de poder

alternar a solidariedade e a cumplicidade (rir com) com a exclusão e a distância (rir de).

Essas duas formas de riso estão presentes na obra de Ondjaki: o riso franco e libertador,

expressando alegria e fascínio; e o riso irônico, cortante e crítico. Este último se

apresenta, em Quantas madrugadas tem a noite, como se esta narrativa fosse uma

espécie de “grande estiga2” recriada pela sua ficção.

Mais adiante, em um dos capítulos de nossa dissertação, estudaremos mais

profundamente as estigas. Veremos que, por meio delas, Ondjaki usa a ironia e o humor

2 Conforme explicado no glossário do romance, é uma “forma de ridicularizar outrem através de um criativo e bem-humorado jogo de palavras”. (ONDJAKI, 2004, p. 200).

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como recursos críticos de denúncia social. Tal atitude é comum em Angola. Em uma

entrevista, o escritor angolano Pepetela, ao ser interrogado sobre a possibilidade de a

ironia ajudar contra a desgraça, explica:

Sim. Nós, os angolanos, agarramo-nos muito ao humor. É a nossa arma principal para sobreviver. Até a sátira em relação a nós próprios, o gozarmos, o rirmos conosco. Isso está aqui. A ideia foi pôr esse lado africano de ver o mundo. [...]O humor é uma característica angolana, então é lógico que os escritores deste país usem da ironia em seus livros para tratar qualquer assunto. (PEPETELA, Diário de Notícias, 2008).

Ondjaki parece ter uma concepção semelhante. Com ironia e humor, ele é capaz de

transmitir emoções e fazer críticas. Mas sabe combinar ludicidade a estas. Consegue

contar estórias usando, alternadamente, um modo poético e um modo irônico de narrar.

Por isso, o riso, em sua obra, não é usado de modo rude e grosseiro. Apresenta um

estatuto diferente, nada tendo a ver com a definição a seguir:

O riso nada teria, pois, de benevolente. Ele causaria sobretudo o mal para o mal. [...] O riso é antes de tudo um castigo. Feito para humilhar, deve causar à vitima dele uma impressão penosa. A sociedade vinga-se através do riso das liberdades que se tomaram com ela. Ele não atingiria o seu objetivo se carregasse a marca da solidariedade e da bondade. (BERGSON, 1983, pp 98-100).

Nos textos de Ondjaki, está mais presente um riso bem-humorado, pois o escritor

tem a mestria de trabalhar temas duros e pesados, de maneira leve e engraçada. Embora

exista, em seus livros, também o riso irônico, mesmo este é capaz de se diluir no outro,

de modo que as “arestas cortantes” da ironia são atenuadas. O riso agudo, muitas vezes,

se transforma em sorriso; os sofrimentos, em piadas: “Respeito muito minhas lágrimas/

mas ainda mais minha risada.” (ONDJAKI, 2004, p 83)3.

3 Ondjaki utiliza como epígrafe de um capítulo de Quantas madrugadas tem a noite estes versos da música Vaca profana, de Caetano Veloso.

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É nosso objetivo, portanto, ao final de nosso estudo, ter estabelecido as relações

existentes entre riso e alegria na obra de Ondjaki.

Outro traço recorrente nas narrativas ondjakianas é a intertextualidade4 com obras

de outros escritores. Drummond é um desses. No seu romance Bom Dia Camaradas, tal

procedimento também pode ser observado, conforme foi assinalado por Maria Teresa

Salgado:

É assim que os belos versos drummondianos de ‘Sentimento do mundo’, na montagem do escritor angolano, parecem ter sido escritos para Angola: ‘E tu, Angola: / Sob o úmido véu de raivas, queixas/ e humilhações, adivinho-te que sobes. / vapor róseo, expulsando a treva noturna. ’ (SALGADO, 2008, p 310).

Ao relacionar Angola à aurora, o autor, em intertextualidade com Drummond5, nos

mostra que, para além de uma semelhança fonológica entre as palavras, é criada também

uma semelhança semântica, visto que, por meio desta, ele atribui características ligadas

ao alvorecer de Angola, sugerindo o nascer de uma nova terra. Das entrelinhas do texto

emerge uma mensagem de esperança, como se Ondjaki escrevesse “para todos aqueles

que, a par do desencanto contemporâneo, ainda [tivessem] tempo e olhos, ouvidos e

sonhos para o saber e a magia das palavras.” (SECCO, 2003, p VII).

Logo após esta introdução, no segundo capítulo, situaremos historicamente o

escritor Ondjaki, traçando um panorama do contexto social e literário em que ele e seus

livros se inserem. A apresentação que faremos do escritor procurará evidenciar traços

biográficos relevantes que contribuirão para uma melhor compreensão de sua obra.

Explicaremos como se deu sua formação, que livros leu e como tudo isso se refletiu e se

reflete em suas produções literárias e artísticas.

4 Usaremos o conceito de intertextualidade, na acepção de Julia Kristeva, entendendo tal processo como significativo diálogo que põe dois ou mais textos em interação. 5 Ondjaki, no livro Bom dia camaradas, substitui aurora por Angola (cf. o poema de Drummond citado em nossa epígrafe).

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A partir do terceiro capítulo, nos centraremos na análise de Quantas madrugadas

tem a noite, romance acerca de uma instigante estória em que, segundo palavras da

contracapa, “não se sabe o que admirar mais, se a fulgurante imaginação do autor, se a

sua capacidade para a criação de tipos e situações carregados de significado, se a sua

capacidade para elevar a linguagem coloquial a um altíssimo nível literário”. (Texto da

contracapa de Quantas madrugadas tem a noite, 2004).

No terceiro capítulo, em particular, estudaremos as personagens da narrativa.

Analisaremos a forma como aparecem à margem da sociedade, avaliando a densidade de

cada uma, seus nomes e ações, pois, segundo o narrador da estória, “pra falar das

pessoas num é só dizer nome e cor da camisa” (ONDJAKI, 2004, p 53). Nesse capítulo,

iremos também tratar do espaço onde tudo se passa: a cidade de Luanda, com suas ruas,

seus bairros, seus estabelecimentos, suas estórias e suas paisagens.

No quarto capítulo, nos centraremos no estudo do narrador, suas peculiaridades no

modo de contar, repleto de traços típicos da oralidade – naturalmente, uma oratura

recriada pela ficção. Analisaremos como suas divagações e memórias da infância estão

inter-relacionadas com a estória principal, criando, assim, narrativas de encaixe6, e

monólogos interiores instigados pelo fluxo mental de suas lembranças.

Dedicaremos o quinto capítulo ao estudo da poeticidade da linguagem.

Perceberemos aí como Ondjaki também faz uso da intertextualidade, ora dialogando

com trechos e versos de outros escritores, ora recriando tais citações e alusões.

Verificaremos como várias de suas influências literárias eclodem em Quantas

madrugadas tem a noite. Autores como Luandino, Pepetela, Ruy Duarte, Pablo Neruda,

Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Jorge Amado, entre outros, se fazem presentes,

direta ou indiretamente, nesse romance.

6 TODOROV, T., 1970. p 124.

24

Para além das citações literárias, o autor faz referências a outras artes, como a

música, e a novelas televisivas brasileiras. Músicos como Man Ré e Dionísio Rocha, e a

personagem Odorico Paraguaçu, de O bem amado, são citados por Ondjaki.

Encerramos esta introdução com o que a poetisa angolana Paula Tavares diz sobre

a escrita de Ondjaki, na orelha de outro livro do autor, intitulado Os da minha rua: “É o

milagre das flores do embondeiro: habitam o mundo em concha por breves momentos e

vêem através da luz o milagre das pequenas coisas” (TAVARES, P. In: ONDJAKI,

2007, orelha do livro). Procuraremos comprovar, ao longo de nossa dissertação,

justamente isto: que, por intermédio da alegria, a desabrochar como “as flores do

embondeiro”, a narrativa de Ondjaki capta o “milagre das pequenas coisas”, apesar das

adversidades sociais ainda bastante presentes no contexto angolano, mesmo após a

assinatura da paz em 2002.

25

2. ONDJAKI: UM POUCO DE SUA OBRA E SUA HISTÓRIA

Escrevo porque tenho sonhos dentro de mim,

porque me é urgente contar coisas, como se um

livro fosse uma partilha. E também escrevo

porque tenho estórias para contar.

Ondjaki7

Contar estórias para Ondjaki, jovem escritor angolano, além de ser um prazer, é

uma necessidade imperiosa. Seus textos são produtos de “sonhos espremidos” 8, como

nos é revelado em seu conto infantil Ynari: a menina das cinco tranças. O autor nos

assevera que a tarefa de escrever estórias não é fácil, contudo, com a involuntária ajuda

de alguns amigos, consegue colher inúmeras gotas de sonhos.

Sobre a idéia de que suas estórias são marcadas por uma atmosfera de otimismo, o

autor afirma que:

Não é intencional. Não é que eu queira, mas acabo por ver que as minhas estórias não são pessimistas, não são em torno das coisas negativas da vida. Ou pelo menos as minhas estórias não são tratadas de um modo pessimista. Eu me considero um sonhador mais que um escritor. E me considero também uma pessoa ainda livre e perdida na sua criatividade. Não quero definir nem compreender, quero apenas viver. Ir sendo. Ir escrevendo, portanto. (ONDJAKI, entrevista inédita concedida à Heloise Cabral, em 2008).

Estórias ouvidas e vividas pelo autor passam por um processo artístico de

recriação, transformando-se em contos e romances de extraordinária grandeza, “porque

o tamanho das estórias não depende do número de páginas que se escreve, mas sim da

intensidade de um sonho”. (ONDJAKI, site da Ed. Caminho, 2007).

Ondjaki concebe a escrita como espaço de criatividade, local em que, na medida do

possível, podem ser feitas inúmeras “brincriações”9, que são expressões da vivacidade

7 ONDJAKI. Entrevista concedida à revista literária eletrônica Mafuá, 2006. 8 ONDJAKI, 2002a, p 43. 9 Termo criado pelo escritor moçambicano Mia Couto.

26

da língua portuguesa, já bastante angolanizada não somente pela hibridação do léxico,

mas também pela da sintaxe e da semântica. Ainda sobre seu modo de escrever, Ondjaki

nos diz: “A linguagem mais oralizada advém das minhas observações, e parte dela é

também fruto da minha criação.” (ONDJAKI, Revista Mafuá, 2006).

Outra qualidade da escrita de Ondjaki é a sua capacidade de dialogar com a

tradição literária de sua terra, retomando tópicos, renovando propostas, fundamentais ao

seu percurso literário que se consolida cada vez mais.

Além de ter publicado vários livros, na área da literatura, o escritor também se

dedicou a outros tipos de arte: cinema, pintura, teatro. É também autor de um

documentário cinematográfico sobre a cidade de Luanda intitulado Oxalá cresçam

pitangas (2006). Como artista plástico já expôs suas telas, tendo realizado uma

exposição individual no Brasil.

Polivalente, Ondjaki, numa entrevista concedida à editora Caminho, declarou que,

com relação às artes, “as outras formas [de arte, por ele praticadas] também podem ser

consideradas literatura.” (ONDJAKI, site da Ed. Caminho, 2007). Entretanto, ele

termina a entrevista, dizendo que há nele uma tendência de centrar-se mais na produção

literária propriamente dita.

Sua paixão pela escrita se iniciou na adolescência, tendo começado a escrever aos

dezessete anos. Chegou a receber no ano 2000 uma menção honrosa no prêmio António

Jacinto (Angola) pelo livro de poesia Actu sanguíneu. Em 2005, o seu livro de contos E

se amanhã o medo obteve os prêmios Sagrada Esperança (Angola) e António Paulouro

(Portugal). Com o livro Os da minha rua, recebeu o prêmio de conto Camilo Castelo

Branco – APE 2007. Além desses livros, publicou também: Momentos de aqui (contos,

2001), O assobiador (novela, 2002), Há prendisajens com o xão (poesia, 2002), Bom dia

camaradas (romance, 2003), Quantas madrugadas tem a noite (romance, 2004), Ynari:

27

a menina das cinco tranças (infanto-juvenil, 2004) e AvóDezanove e o segredo do

soviético (romance, 2008). Alguns de seus livros estão traduzidos para o francês, o

espanhol, o italiano e o alemão.

Este jovem autor angolano é, sem dúvida, um dos nomes promissores desta nova

geração de escritores de língua portuguesa. Com uma versatilidade que vai do romance à

poesia, passando pelo conto e pelo livro infantil, Ondjaki consegue nos fascinar com a

magia de sua linguagem.

Nascido em 1977, dois anos após a independência de seu país, Ondjaki viveu a

infância e parte da adolescência em Luanda, durante o período da guerra civil. Só saiu

de sua cidade em 1994 para fazer Sociologia em Portugal, profissão que nunca chegou a

exercer. Sobre a possibilidade de sua formação acadêmica contribuir para as suas

criações artísticas, o autor comenta: “É provável que a Sociologia me afecte a escrita,

mas também a música, as poesias que opto por ler, os filmes que opto por frequentar, e

até os livros que escolho não ler.” (ONDJAKI, entrevista inédita concedida à Heloise

Cabral, em 2008).

Ondjaki, filho de mãe professora e de pai militante ativo do MPLA, o comandante

Juju, é o pseudônimo de Ndalu de Almeida. Ele sempre estudou em colégios públicos,

porque, na época, imperava em Angola o socialismo, não havendo ensino privado.

Misturavam-se, então, os alunos mais abastados com os mais pobres. Esta convivência

com pessoas provenientes dos mais variados níveis sociais propiciou a Ondjaki poder

levar para sua escrita, de forma recriada, estórias contadas ou até mesmo vivenciadas

pelo seu círculo de relacionamento.

Amante dos livros desde cedo, Ondjaki leu estórias e poemas de escritores e poetas

de Angola e de outros países. Tais leituras muito contribuíram para sua formação

intelectual e artística. Teve, assim, influências variadas que vão desde seus conterrâneos,

28

como Luandino, Pepetela, Manuel Rui, até escritores da América Latina, como Pablo

Neruda, Gabriel Garcia Márquez, não deixando de falar dos brasileiros, como Guimarães

Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manuel de Barros.

Tendo participado do 53º Congresso da UNE, União Nacional dos Estudantes, no

Rio de Janeiro, em 2007, Ondjaki, refletindo sobre política e literatura, afirmou:

“Procuro escrever estórias literárias com conteúdos criativos e estéticas personalizadas.

Se depois disso, há um eco político, tudo bem. É normal.” (ONDJAKI, site da UNE,

2006). O autor não considera sua literatura panfletária, mas toda sua vivência em Angola

não lhe permite omitir-se diante de fatos sociais relevantes ocorridos em seu país. Seus

textos não são engajados no que diz respeito a uma política partidária, mas são

ideológicos, pois, conforme Roland Barthes afirma, em seu livro O prazer do texto, o

“texto tem necessidade de sua sombra: essa sombra é um pouco de ideologia, [...]”

(BARTHES, 2006, p 41).

Em Quantas madrugadas tem a noite, a diferença entre o tempo narrado e o tempo

da narração é bem pequeno, visto que o romance menciona a morte de Jonas Savimbi,

ocorrida em fevereiro de 2002, e o livro foi publicado em Portugal e Angola no ano de

2004. Em entrevista, Ondjaki revela que “o grosso do livro foi escrito entre 16 de fevereiro

e 1 de março de 2002”. (ONDJAKI, entrevista inédita concedida à Heloise Cabral, em 2008).

Contudo, Ondjaki não se prende somente a acontecimentos recentes, relembrando

constantemente o período de sua infância. O período estudantil por ele vivenciado foi

marcado pela forte presença dos professores provenientes de Cuba. Os angolanos se

beneficiaram do auxílio deste país não só na Educação, mas também nas guerrilhas e na

assistência médica à população.

A afetividade de Ondjaki pelos cubanos é grande; nas estórias dos livros Bom dia

camaradas e Os da minha rua, pelo fato de as narrativas se passarem exclusivamente no

29

período de sua infância, o autor demonstra esse carinho principalmente para com seus

professores cubanos, chegando a colocar como epígrafe deste último livro palavras do

professor Ángel: “não se esqueçam que vocês, as crianças, são as flores da humanidade”

(ONDJAKI, 2007, p 11).

Em Quantas madrugadas tem a noite, os cubanos são mencionados nas

recordações das personagens principais. Adolfo, por exemplo, ao divagar sobre suas

poesias, se lembra: “a poesia popular como iam dizer nuestros hermanos cubanos [...]”

(ONDJAKI, 2004, p 59). O uso da língua espanhola também aparece no grupo musical

do Burkina, intitulado “Burkina e sus muxaxos, é homenagem nos cambas dele cubanos

[...]” (ONDJAKI, 2004, p 67). O professor Jaí, por sua vez, se recorda de seus amigos ao

“olhar as fotografias dos cambas dele cubanos.” (ONDJAKI, 2004, p 170).

Ao avaliar pessoalmente a participação de Cuba em seu país, Ondjaki argumenta:

[...] a presença cubana em Angola foi fundamental para impedir que os sul-africanos tomassem o poder em Angola, nas várias ofensivas que fizeram durante os anos 80. A cooperação cubana também ajudou parte da população, com assistência médica e educacional. Só posso considerar essa presença como positiva. (ONDJAKI, entrevista ao site Carta Maior, 2006).

Também o MPLA recebeu um intenso apoio cubano para vencer os sul-africanos,

que, por sua vez, apoiavam a UNITA. No romance por nós analisado, encontramos

diversas referências a esses movimentos políticos. Cabe-nos, agora, contextualizar estes,

historicamente, e discorrer um pouco sobre suas intenções políticas.

O MPLA, Movimento Popular pela Libertação de Angola, foi importante na luta

pela independência de Angola; de inspiração comunista, foi apoiado pela URSS e se

transformou num partido político após a independência. Este movimento foi um dos

principais organizadores da luta armada contra o colonialismo, tanto que, terminada a

luta de libertação, foi o partido que subiu ao poder quando a independência do país foi

30

proclamada, mesmo sem que tivesse havido uma total pacificação interna em relação a

outros movimentos existentes em Angola. Nos dias atuais, é ainda este partido que

dirige Angola. Sua importância foi e ainda é bastante significativa para a sociedade

angolana.

Ondjaki, sutilmente, tece uma crítica, num tom de ironia, ao regime político

vigente em Angola, no tempo da narrativa, quando questiona a igualdade pregada por

este: “[...] mas dentro das igualdades parece há sempre uns mais iguais que outros [...]

cinco pães dum avilo podem não ser bem iguais a cinco pães doutro avilo, depende às

vezes se você é muito camarada ou pouco camarada [...]” (ONDJAKI, 2004, p 171).

Com isso, o autor desmascara a corrupção aí também presente.

Em Quantas madrugadas tem a noite, a personagem principal era considerada,

pela sua primeira esposa, como alguém de grande influência social e política, só porque

tinha um parentesco longínquo com um componente do MPLA. Vejamos:

[...]afinal a dama tava convencida que o Adolfo então tinha as puras influências, só porque era primo de um gajo aí do éme10 [...] Sabe o quê meter requisição, geleira pro cúbico e bina11 pros candengues, e assinar mesmo sem vergonha no dedo, a mulher do primo do camarada fulano de tal, do éme? (ONDJAKI, 2004, p 25).

Mais adiante, nesse mesmo romance, as viúvas da personagem, com a finalidade

de receberem pensão do Estado, forjaram um documento que atestava ter sido o marido

delas combatente do MPLA no Namibe. Ondjaki ironiza o fato, já que nunca houve

guerra em tal província angolana:

dissemos que ele combateu no Namibe gargalhada que o Burkina desconseguiu de evitar no Namibe?!, porra, no Namibe nunca houve guerra! (ONDJAKI, 2004, p 91).

10 Como é chamado, vulgarmente, o MPLA. 11 Biclcleta.

31

A UNITA, União Nacional pela Independência Total de Angola, representou o

contraponto do MPLA. Teve como líder Jonas Savimbi, que foi seu fundador e lutou

durante a guerra civil contra o MPLA. Após a independência em 1975, principalmente

durante a Guerra Fria, Savimbi foi apoiado pelo governo do apartheid sul-africano e

pela CIA. Depois de ter estado próximo da vitória pelas armas, no início da década de

1990, Savimbi ficou desacreditado completamente quando refutou os resultados das

eleições em 1992, relançando a guerra em todo o território angolano. Esta foi a última

tentativa do "Galo Negro"(como era chamado Jonas Savimbi) para tomar o poder.

O líder da UNITA foi considerado um feiticeiro. Sua etnia tinha muito medo dele,

não só por ser comandante desse partido, mas, principalmente, pelos seus poderes

mágicos. Julgavam que o “Galo Negro” sabia tudo o que eles pensavam e faziam.

Estavam completamente dominados por essa crença que o próprio Savimbi alimentava.

Ondjaki ironiza sua fama de “ngapa” 12, quando comenta sobre um gato preto feiticeiro,

que entendemos como clara alusão ao “Galo Negro”:

Gatos pretos aí lhe atirávamos pedras, feiticeiros da merda [...]Eu mesmo chutei a cabeça dum umas quatro vezes, mais o Burkina que lhe ajeitou uns três chumbos no nguimbo, dele, do gato, então, faz lá as matemáticas, isso num já são sete? Qual quê, aquilo é feiticeiro mesmo, puramente insistente, dá medo e não podes ter medo: como nos filmes de cobói, quem parar primeiro, morre. Corre só, meu; kibídi de cão, já apanhaste de madrugada? (ONDJAKI, 2004, pp 59-60).

Em 22 de fevereiro de 2002, Jonas Savimbi foi morto na província do Moxico.

“Tavam a falar a morte do mano mais velho, kota Savimbi [...]” (ONDJAKI, 2004, p

35). Ele faleceu em conseqüência de uma perseguição feita por cães policiais, a que

Ondjaki se referiu anteriormente. Após a morte de Savimbi, a UNITA tornou-se um

partido civil e abandonou a luta armada.

12 Palavra que significa feiticeiro.

32

Como já dissemos, a UNITA foi apoiada pelo governo sul-africano, marcado pelo

apartheid, um dos regimes de discriminação mais cruéis de que se tem notícia no

mundo, que existiu de 1948 até 1991. Na antiga constituição sul-africana, era clara a

discriminação racial entre os cidadãos, mesmo os negros sendo a maioria na população.

O apartheid atingia a habitação, o emprego, a Educação e os serviços públicos.

A partir de 1975, a comunidade internacional e a ONU fizeram pressão pelo fim da

segregação racial. Em 1991, o apartheid foi condenado oficialmente e líderes políticos,

como Nelson Mandela (primeiro presidente eleito da África do Sul), foram libertos. Este

regime segregacionista é duramente criticado pelo narrador de Quantas madrugadas tem

a noite:

África do Sul – lembras, por que aparteide, porque brancos e pretos e indianos e coloridos? Estupidez, meu, tu já galaste mesmo, te tocarem uma sirene nos ouvidos para tu bazares na tua buala13? O quê, eu, mentira? Num sabias? Janesburgo? Fim de tarde, o puro cenário, vais pensar que é filme, não, era realidade dura mesmo, as sirenes a tocar e tu mesmo, bléque, só podias ir no maximbombo14 dos bléques; se eras apanhado, chicotada!, bofa, ou cadeia mesmo. Tiro também, de vez em quando – brancos maldispostos. Duvidas? Violência, avilo, loucura das raças, uns mais que outros? Onde é que isso tá escrito na Bíblia? (ONDJAKI, 2004, p 29).

A intervenção da ONU em solo africano não se restringiu apenas à África do Sul.

A UNAVEM15 foi criada para ajudar o governo angolano e a UNITA a restabelecerem a

paz e alcançarem a reconciliação nacional. Diversas variantes foram criadas ao longo

dos anos, culminando com a UNAVEM III. Seus missionários eram conhecidos como

capacetes azuis. Mais uma vez, a ironia se faz presente na obra ondjakiana, ao ser

mencionada uma UNAVEM IV que nunca chegou a existir: “É só chamar a UNAVEM

13 Lugar. 14 Ônibus. 15 United Nations Angola Verification Mission, que traduzida para o português significa Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola.

33

quatro, num é assim que tamo a resolver os prubulema aqui na buala? [...] Yá, kota, tem

mesmo que trazê os puro capacete azul, ché, posterados!” (ONDJAKI, 2004, p 71).

Depois de enfrentar muitas dificuldades, a ONU foi restringindo seu papel apenas

a operações humanitárias em prol dos direitos humanos. Contudo, a presença estrangeira

em África não chegou com a ONU; há muito se fez presente com a chegada dos

colonizadores. Um marco profundo, um divisor de águas da organização social africana

foi a Conferência de Berlim. Realizada entre finais de 1884 e início de 1885, a

conferência teve como objetivo organizar, na forma de regras, a ocupação de África

pelas potências coloniais e resultou numa divisão que não respeitou nem a história, nem

as relações étnicas e familiares dos povos do continente africano. Na colonização, a

África foi retalhada de acordo com os interesses dos europeus; etnias amigas foram

separadas e etnias inimigas, unidas. Este é um dos motivos de tantas guerras civis

travadas entre países africanos. O autor de Quantas madrugadas tem a noite refere-se à

conferência de Berlim, avaliando criticamente suas conseqüências: “[...] as divisões lá

não são assim regra com esquadro da conferência de Berlim, a impor as fronteiras todas

[...]”. (ONDJAKI, 2004, p 187).

Ondjaki é o pseudônimo literário de Ndalu e significa guerreiro. E é com uma

atitude guerreira que o autor faz críticas em seus livros; suas armas são as palavras.

Nossa dissertação Quantas alegrias tem a noite se propõe investigar de que modo são

denunciadas pelo narrador e pelas personagens as distopias sociais presentes em Angola.

Contudo, o escritor procura incutir, em suas narrativas, um certo otimismo, semeando

suas mensagens de nesgas de esperança, que sobrevivem, a par do clima de desencanto a

seu redor. O que o escritor busca semear em suas narrativas nada mais é do que o seu

real pensamento em relação ao futuro de seu país:

34

Imagino que [os próximos anos] serão melhores e diferentes. Melhores porque a guerra terminou e vivemos agora um outro tempo, tanto externo como interno, com outras condições. E serão também tempos diferentes porque as condições sociais e políticas alteraram-se, e estamos muito próximos de conseguir entrar num ciclo de eleições políticas que eu espero que venha a ser regular e saudável. Não sei como será o país nos próximos anos, mas desejo que haja mais justiça e que os bens naturais do país possam ser melhor divididos. (ONDJAKI, site da Ed. Caminho, 2007).

Feita essa breve apresentação de Ondjaki e de sua obra, passaremos ao estudo

propriamente dito de Quantas madrugadas tem a noite, analisando as recorrentes

metáforas da alegria presentes nesse romance.

35

3. CARTOGRAFIAS DE LUANDA: OS ESPAÇOS E AS PERSONAGENS

Luanda é a cidade

que não sabe se é cidade

se é país.

Tanto país se encontra nela

tanta cidade compõe este país

tão país e tão cidade

Costa Andrade16

Em Quantas madrugadas tem a noite, Luanda é o espaço que Ondjaki escolhe, de

forma exclusiva, para cenário da narrativa. É recorrente, na literatura angolana, essa

cidade aparecer como metonímia de Angola, não só por ser esta a capital do país, mas

por ser refúgio dos que vieram do interior, onde as lutas foram travadas.

No poema de Costa Andrade, o poeta nos chama atenção para a contraditória

ambivalência de Luanda ser, ao mesmo tempo, “tão país e tão cidade”. Ou seja, a capital

representa o país, com seus problemas, paradoxos, belezas e misérias. A cartografia de

Luanda é marcada por misturas arquitetônicas de estilos pré e pós-coloniais, por

paisagens naturais e culturais, físicas e humanas, revelando um forte hibridismo, próprio

de uma urbe que, durante séculos, foi palco de confronto entre colonizados e

colonizadores, o que se reflete na literatura angolana, conforme afirma Tânia Macedo

em seu ensaio “Luanda: violência e escrita”:

Não causa espécie, portanto, que a cidade seja referência obrigatória no imaginário nacional e cenário privilegiado da literatura produzida no país. Desta forma, cremos que estudar a literatura produzida em Angola é obrigatoriamente referir-se a Luanda, sua história e sua gente. (MACEDO, 2006, p 178)

Observamos também que, para além da representação do território angolano,

Luanda representa a nação. A identidade nacional angolana está intimamente ligada a

16 COSTA ANDRADE, F. Luanda. 1997.

36

esta cidade, de tal modo, que já não podemos tomar esse lugar apenas como o cenário

onde se passam as narrativas. Torna-se imprescindível considerar “o espaço

preponderante que essa cidade ocupa no imaginário e na vida nacionais angolanos

contemporâneos”. (MACEDO, 2006, p 179).

Nas narrativas de Ondjaki, Luanda se faz presente não apenas pelas paisagens, mas

também pelos costumes e pensamentos das personagens e do narrador. Em Quantas

madrugadas tem a noite, as imagens geográficas da capital angolana surgem ao lado de

sua gente e de sua história.

Em A imagem da cidade, Kevin Lynch sustenta que a leitura da paisagem urbana é

construída a partir da percepção de seus habitantes. Ou seja, as interpretações das

imagens geográficas são o resultado de um processo pessoal entre o interpretador

(habitante) e o interpretado (cidade). Angel Rama, em seu livro A Cidade das Letras,

meditou sobre a história latino-americana a partir do período colonial, procurando

desvendar seus significados simbólicos em meio às especificidades literárias, estéticas e

culturais. Rama, com capacidade, construiu uma visão totalizante da cidade como

resultado de uma multiplicidade de signos e identidades culturais. Para Renato Cordeiro

Gomes, em seu ensaio “Cartografias urbanas: representações da cidade na literatura”,

para além dos aspectos físico-geográficos, os dados culturais, os costumes, os tipos

humanos, juntamente com a cartografia simbólica – em que se cruzam o imaginário e o

real – também devem ser levados em consideração ao lermos as cidades narradas nos

livros literários.

Carregada de significados, essa cidade começa então a não ser vista apenas como

mera localização geográfica, mas como a grande personagem de muitas narrativas.

“Mapear seus sentidos múltiplos e suas múltiplas vozes e grafias é uma operação poética

37

que procura apreender a escrita da cidade e a cidade como escrita, num jogo aberto à

complexidade.” (GOMES, 1997, p 180).

Luanda é uma cidade contrastiva: marcada pelos belos cenários naturais de suas

praias e de seus deslumbrantes poentes fortemente amarelados – “[...] tenho paixão por

esta cor amarela, especialmente essa assim amarela bem torrada [...]” (ONDJAKI, 2004,

p 57) – e por imagens de uma dura realidade composta de ruas esburacadas, de

musseques17, de mosquitos e de estranhos castelos18. Ondjaki elege especificamente as

ruas e os bairros periféricos luandenses como cenários de suas estórias, repletas de

personagens marginalizadas, discriminadas pela sociedade em geral. Interessante,

porém, é que, mesmo em tais espaços, podemos, quase sempre, enxergar manifestações

de alegria, por entre a lama do chão, os buracos nas ruas, os mosquitos da tristeza.

Ondjaki descreve cinematograficamente a cidade, citando nomes de ruas, bairros,

estabelecimentos. Deste modo, o autor nos situa, tornando-nos mais íntimos da cidade:

Maianga pra baixo, pra Baixa, inda se circulava, mesmo assim, andar bem só de jipe, e alto, que aquilo tava então a ficar perigoso, buracos que não se viam, mesmo a António Barroso já tinha engolido duas viaturas, desaparecidas assim só, conforme os testemunhos dos populares nas janelas da assistência, prédios dali [...](ONDJAKI, 2004, p 130).

Para além dos bairros da Maianga e da Baixa, mencionados na citação anterior,

lugares como a Praia do Bispo, o largo Primeiro de Maio, o hospital Maria Pia (que após

a independência passou a ser chamado Josina Machel), o bairro Corimba, a ilha de

Luanda, o mercado popular Roque Santeiro, entre outros são também referidos no

romance. Sobre a mudança do nome do hospital, ainda não há uma padronização quanto

à escolha de como deve ser chamado, isto vai variar de acordo com a posição individual

17 As favelas de Luanda. 18 Barracas de papelão onde moram os meninos de rua.

38

dos angolanos em relação à independência do país: “Lá estavam, no Hospital Maria Pia,

aliás, Josina Machel, a tentar encontrar alguém...” (ONDJAKI, 2004, p 27). Ao fazer a

cartografia da cidade, Ondjaki escreve a história não só de Luanda, mas também a de

Angola.

A imagem que vemos na citação anterior é a de uma Luanda tomada

completamente pelas águas da chuva que há tempos não cessavam. Quantas madrugadas

tem a noite encena, diversas vezes, uma Luanda marcada por períodos chuvosos, o que

só se modificará ao final da narrativa. No decorrer da estória, várias dificuldades

ocasionadas por estas ininterruptas águas pluviais enfrentadas pelo povo angolano vão

sendo registradas:

Falta d’água nos canos, falta de distribuição do píter19, falta das higienes que tava a rebentar febres-amarelas e tifóides e de todas as cores e feitios nos bairros, os hospitais estavam cheios de pessoas vivas e mortas que tavam a dizer na rádio pra irem só nos postos de saúdes locais, num valia pena irem no hospital que já tava sem condições [...] a chuva, muadiê20, já te disse, num tava dar tréguas. (ONDJAKI, 2004, p 128).

A intensidade dessa chuva era tamanha, que chegava a se estender para fora da

capital, abarcando outras províncias angolanas, onde drásticas conseqüências também

apareciam: “dois bairros do Lobito, um do Huambo e um do Moxico já tinham

desaparecido” (ONDJAKI, 2004, p 129). A chuva alegoriza o auge dos problemas que,

como uma tempestade, caíam sobre a cidade. Ondjaki faz uma dura crítica social,

quando revela, através de uma personagem, que, antes da chuva, Luanda já vivia numa

calamidade imensa e que só agora as autoridades tomavam conhecimento. A tempestade,

portanto, foi o estopim. A água da chuva funciona metaforicamente, na narrativa, como

se estivesse a lavar as vistas de quem não queria enxergar o caos estabelecido na urbe.

19 Comida. 20 Moço, rapaz.

39

“[...] é preciso vir a chuva pra verem que esta merda está na calamidade total?”

(ONDJAKI, 2004, p 71). A água, de simbologia ambígua, alegoriza morte e vida,

destruição e reconstrução. A tempestade inunda, traz lama; as chuvas, contudo, lavam os

olhos, conscientizando os que, antes, não enxergavam os problemas de falta de

urbanização da cidade, agravados com a guerra longa que travou o desenvolvimento de

Angola.

O que caíra sobre Luanda era uma espécie de dilúvio – chuva que assinala,

metaforicamente, o fim de um ciclo e o início de outro. Ondjaki chega a colocar como

epígrafe de um dos capítulos o seguinte provérbio kimbundu: “Múkua-kâfua ûfua, o

kâfua ni kabue. [= tem que morrer o defeituoso, para que o defeito acabe.]”. (ONDJAKI,

2004, p 165). Por analogia, observamos a alegoria do dilúvio que afoga a cidade,

matando o que é defeituoso, mas, ao mesmo tempo, lavando a cidade, irrigando a terra

para que possam germinar novas sementes.

Essa chuva também pode ser interpretada como uma metáfora da guerra civil, visto

que o próprio Ondjaki faz tal alusão em uma de suas entrevistas: “A guerra é uma

tempestade que nunca ninguém quer e que todos desejam que passe o mais rapidamente

possível. A nossa tempestade durou tempo demais.” (ONDJAKI entrevista In: CORI,

2004, p 190).

Em Quantas madrugadas tem a noite, o cessar da chuva foi muito comemorado por

todos de Luanda, ao ponto de o considerarem feriado nacional: “Ali, na esquadra, todos

tinham ouvido tiros lá fora e gritarias tipo Carnaval da Vitória.” (ONDJAKI, 2004, p

176). “Carnaval da Vitória” é uma alusão alegórica a outro episódio da história

angolana, quando os sul-africanos foram definitivamente expulsos de Angola: “[...]

aquele era o Carnaval da Vitória porque a 27 de março se comemorava o dia em que as

40

forças armadas tinham expulsado o último sul-africano de solo angolano [...]”

(ONDJAKI, 2006, p 63).

O carnaval que, em Angola, tradicionalmente, sempre fora festejado em fevereiro,

passou, por sugestão do presidente Agostinho Neto, a ser comemorado a 27 de março,

data que marcou a retirada definitiva das tropas sul-africanas do território de Angola,

acontecida em 1976. Nascia, assim, o Carnaval da Vitória que, na sua primeira edição,

fez desfilar mais de uma centena de grupos na Marginal de Luanda, durante horas a fio,

até ao anoitecer.

Eventos como este não são as únicas manifestações culturais referidas em Quantas

madrugadas tem a noite. Músicas, danças, brincadeiras, alimentação e demais costumes

locais se fazem presentes ao longo da narração. Desse modo, ao descrever Luanda e seus

habitantes, o narrador vai reescrevendo a história de Angola. Demonstra como traços

peculiares do modo de ser angolano podem causar espanto e críticas por parte de

observadores de outras culturas:

Mas depois, considera só: eles também a nos verem dançar e vestir e pôr cu duro, num vão falar dança dos bêbados?, a dar bungula puramente e pôr açúcar e as kabetulas todas, num vão dizer estamos a ficar parecidos com os macacos?, xinguilamentos musicais? Olhos deles, muadiê, tou ta pôr, e os nossos olhos todos de cada um: culturas!, num enorme plural e final de contas. (ONDJAKI, 2004, p 116).

Através dessa reflexão, o narrador tenta explicar que, em se tratando de culturas

diferentes, não existem as dicotomias “certo x errado”, “bonito x feio”. O que é estranho

para alguns, para outros é natural. As danças: açúcar, kuduro, bungula e kabetula –

mencionadas na citação anterior – são tipicamente angolanas; o kuduro foi reconhecido,

a partir da década de 90, também como um estilo musical (semelhante ao rap e ao funk

carioca) que faz grande sucesso principalmente entre os jovens. No romance, a dança

aparece como uma das formas de manifestação da alegria, presente não somente na dança

41

dos corpos, como nas “do olhar também, das mãos, da vida, do discurso”. (ONDJAKI,

entrevista inédita concedida à Heloise Cabral, em 2008). Em Quantas madrugadas tem a

noite, a música desempenha importante função: não só caracteriza hábitos e ritmos

locais, mas também dá leveza à narração, visto que “a música, todo mundo sabe, aquece

as veias da alegria e te faz rir à toa” (ONDJAKI, 2004, p 139).

A comida também aparece relacionada a momentos festivos: “[...] aperitivos todos,

chamuça de mel, rissol de camarão com mel, salada com mel, kitaba com mel [...] aquela

alegria só de estarem muitos angolanos que já ninguém consegue falar baixo [...]”

(ONDJAKI, 2004, p 145). A kitaba, espécie de pasta feita com amendoim torrado, é uma

comida tradicionalmente angolana. O funji, semelhante ao nosso pirão, e a kizaca, feita

com folhas da mandioca, são outros exemplos de pratos típicos angolanos citados no

texto. “Sabores de Angola vão também passando os saberes locais, efetuando, assim,

uma cartografia urbana tecida não só por fatos e descrições, mas também por paladares e

odores”. (SECCO, Carmem Tindó. Apontamentos das aulas, 2006).

Não só os lugares, as ruas, os costumes, os ritmos, as comidas caracterizam o

cenário de Luanda. Contracenando aspectos e locais da cidade, no presente, com cenas e

paisagens do passado, nos anos 1980, o narrador traz pela memória várias personagens.

Muitas dessas dão uma lição bem angolana, a de que a alegria pode subverter

sofrimentos e funcionar como forma de resistência:

[...] assim é que eu entendo a vida, muadiê – o campo das seriedades misturado com o campo das infantilidades várias, essa nossa maneira africana de rir na cara da guerra, de estar mesmo a cantar na hora da morte, de dançar no suor do corpo, catinga e tudo incluído já, corpos juntos, a se esfregar, [...] (ONDJAKI, 2004, p 23, grifo nosso).

A alegria, diante das adversidades, pode ser ilustrada pela expressão popular “um

tapa sem mão”. Nem a guerra, nem a morte, nem o fedor de catinga têm forças

42

suficientes para abafar o riso, o canto e a dança do angolano – isso nos demonstra a

narrativa de Quantas madrugadas tem a noite.

O romance começa com um homem entrando em um bar e propondo a um outro

que lá estava a troca de algumas cervejas por uma “pura estória daquelas com peso de

antigamente” (ONDJAKI, 2004, p 13). Esta, ele, o narrador, é que iria contar. E parece

que sua proposta foi aceita, pois, logo a seguir, uma estranha estória começa a ser

narrada. A narrativa gira em torno da personagem AdolfoDido – o morto que regressa à

vida. O narrador, então, volta à sua infância, lembrando seus cambas21 : Burkina Façam,

Jaí e AdolfoDido. Somente mais tarde, ao final da obra, o narrador revela ser ele o

próprio Adolfo: “o morto, esse morto que lhe bebemos aqui..., tou ta pôr: esse morto sou

eu!, AdolfoDido, eu mesmo!” (ONDJAKI, 2004, p 188). Indo, então, ao passado, a

narrativa, através da memória do narrador, passa a relembrar o cotidiano desse grupo de

amigos.

AdolfoDido é considerado um azarento. Mesmo depois de morto, não conseguira

encontrar descanso. Por causa da dúvida sobre o que teria ocasionado sua morte, mesmo

depois da autópsia, ele se vê impedido de ser enterrado. Com seu caixão itinerante,

começa a se locomover mais do que quando era vivo. Adolfo é, portanto, uma alegoria

crítica da própria morte social que entravou o desenvolvimento de Angola.

Com duas mulheres dizendo cada uma ser sua esposa oficial, ambas visando à

pensão, com seus parentes a “ralhá-lo na missa de corpo ausente” e com toda burocracia

que não permitia o seu sepultamento, entre outros impasses, conseguimos constatar que

AdolfoDido é uma representação figurada dos cidadãos angolanos que nada conseguiram

na vida: “[...] e o muadiê mesmo nem sabia, esse nome é que ia lhe bezuntar toda a vida

21 Amigos.

43

de gente a lhe foder toda hora, tipo quarra mesmo, um gajo de azar na pele, fazer mais

como então!” (ONDJAKI, 2004, p 18).

A morte, na sociedade africana tradicional, não era separada da vida. Havia a

crença de que os mortos podiam voltar para aconselhar, zangar, advertir. No romance

em questão, o narrador, já regressado à vida, volta para ironizar, usando o humor para

criticar os problemas graves enfrentados por Angola.

Outra personagem importante é Burkina Façam, o amigo de longa data de Adolfo,

que “na escada do tempo, esqueceu de crescer” (ONDJAKI, 2004, p 15). Chegou a

largar os estudos quando garoto, por não agüentar as estigas todas que lhe faziam por ser

um anão. Mas isso não chegou a prejudicá-lo financeiramente. Morador da Corimba –

um bairro nobre luandense – e dono de uma frota de lotadas – com direito a motorista e

placa exclusiva em seu carro –, Burkina, entre todos os amigos, foi o que conseguiu ter

melhor condição de vida. Ele fazia sucesso com as damas, pois, embora considerado de

aparência pouco atrativa, era tido como um bom conquistador: “Mas era potente nas

damas, xaxeiro22 de competência reconhecida até na Ilha, único que num era

kiungueiro23, só o kijango24 dele, avilo25!, tava a nos meter respeito quanto mais nas

damas!”(ONDJAKI, 2004, p 16). Burkina chega a fundar um Sindicato Nacional das

Prostitutas para agradar suas amigas meretrizes e também para obter certas vantagens

neste ramo.

Assim como Burkina, o outro amigo de Adolfo, Jaí, tinha uma característica física

bem marcante: era albino. Devido a esta sua peculiaridade, chegou até mesmo a ser

ameaçado de morte, pois, na época, havia a crendice de que albinos tinham um líquido

no cérebro que curava a AIDS:

22 Galanteador; conquistador. 23 Indivíduo circuncidado. 24 Órgão sexual masculino. 25 Amigo; companheiro (o mesmo que camba).

44

Mambos da estupidez, meu: lembras quando tavam a caçar albinos para curar sida? [...] Época da caça total, albinos a gastar cumbú na tinta para cabelo e bigode, uns já não saíam de casa mas de três meses, outros bem agasalhados só, catinga aí no pleno meio dia, ai uê, a cor é um problema, avilo! (ONDJAKI, 2004, pp 28-29).

Jaí era professor de português. Leitor assíduo dos jornais de Angola, ele tinha forte

consciência social, chegando a participar de ONGs. Com seu caráter íntegro, chegou a se

afastar do MPLA, quando percebeu pequenos indícios de corrupção no partido. Decidiu-

se pelo professorado, mesmo sabendo dos baixos salários oferecidos a esta classe. Por

ser albino, era estigado: “kilombo, toma graxa de sapato, uê” (ONDJAKI, 2004, p 14);

por sua remuneração, também o era: “coitado, salário dele só dá mesmo para nós lhe

estigarmos” (ONDJAKI, 2004, p 26).

Percebemos que, de alguma forma, essas personagens estão todas unidas não só

pela amizade, mas, principalmente, pelas estigas relacionadas às suas características. Ao

lermos os nomes de cada uma delas, verificamos que não são de batismo:

Lá, muito antigamente, todos tinham nome: eu num sei quem pôs o Façam no Burkina, familiares talvez; o Adolfo foi num primo dele que lhe pusera, só para diversão dele, do primo, de ver a cara dos mais-velhos a chichilar26 pra dizer o nome do Adolfo assim rápido Adolfodido; e o Jaí, fomos todos nós, os do futebol [...] na hora dos futebóis, frase preferida na boca dele venho já aí! (ONDJAKI, 2004, pp 27-28).

Ondjaki, através da onomástica risível das personagens, nos revela sua escolha

pela criação de tipos, já que nenhum destes era conhecido pelo nome próprio, todos já

traziam em sua alcunha um atributo pessoal ou um traço marcante da própria vida. Esse

procedimento aplica-se não só aos nomes dos protagonistas, mas também aos das demais

personagens do romance.

26 Passar mal; ter dificuldades.

45

A alegoria, segundo Flávio Kothe, é uma “representação concreta de uma idéia

abstrata. [...] É uma metáfora continuada, como tropo de pensamento, consistindo na

substituição do pensamento em causa por outro, ligando ao primeiro por uma relação de

semelhança. (KOTHE, 1986, p 90).

Podemos, então, afirmar que as personagens principais são alegóricas, uma vez

que, figuradamente, revelam traços reprimidos socialmente. A alegoria, para Walter

Benjamin, significa “dizer o outro”; se, as personagens de Quantas madrugadas tem a

noite apontam para traços censurados socialmente, elas se comportam alegoricamente.

Uma é a que não vence economicamente; outra, não cresce fisicamente; a terceira é um

albino, cuja pele branca mascara sua condição de negro. São personagens fracassadas

que espelham o fracasso do próprio país.

Através das características destas personagens percebemos que são exemplos de

seres à margem da sociedade, vítimas do preconceito, pois se afastam dos padrões

sociais esperados. Mas, mesmo assim, conseguem encontrar motivos para se alegrarem.

A forte amizade entre estas personagens iniciou-se ainda na infância. Houve, inclusive,

ocasiões em que umas salvaram a vida das outras. AdolfoDido, por exemplo, no

antigamente, salvou a vida de Burkina, quando este mergulhou no mar da Ilha de

Luanda, mesmo sem saber nadar, só para não ser mais estigado: “Aquilo foi puro

instinto, eu acho, ele [Adolfo] não é nada das coragens[...] Saltou, mergulhou, demorou:

a vida é bonita de lhe voltar a ver, eu vi duas, e o Burkina sem ares para respirar, só aí

na areia [...]”(ONDJAKI, 2004, p 21).

Em outra ocasião, já adultos, desta vez foi o Burkina que salvou um amigo. Graças

a este, Jaí não foi morto em uma emboscada tramada por pessoas que queriam o líquido

da cabeça dele para, teoricamente, curar a AIDS: “[...] o Jaí tava inda a apanhar ar para

46

respirar, e riu as gargalhadas do morto que volta [...] rir como as crianças, único riso

possível.” (ONDJAKI, 2004, p 32).

Além desses amigos, também tem destaque na narrativa a senhora chamada

KotaDasAbelhas – reconhecida desta forma por ter matado uma abelha rainha em sua

casa e assumido seu posto. Vizinha de Adolfo desde muito tempo, a kota27 morava num

casarão com uma mangueira no quintal, onde as crianças roubavam as frutas como se ela

não estivesse vendo: “[a kota] mesmo fingia não nos ver, nós bué28, fim de tarde, no

quintal dela a gamar mangas.” (ONDJAKI, 2004, p 17). Depois de viúva, ficou sendo

sustentada pelo labor das abelhas que produziam, em sua varanda, um mel apreciado por

muitos: “[...] desde moto simson até carro de deputado a parar no passeio dela, buracos e

tudo [a perguntarem] dona, tem mais daquele mel bom?” (ONDJAKI, 2004, p 17). Além

das abelhas, vivia com ela também um cão temido por todos, mais conhecido como o

Cão, que habitava a melhor parte da casa. Tais criaturas também aparecem na narrativa

como seres alegóricos. As abelhas acabam por representar a massa trabalhadora. Seriam

iguais às formigas se “não tivessem asas e canto, e não sublimassem em mel imortal o

frágil perfume das flores” (CHEVALIER, 1999, p 3). Isso fazia com que seu local de

trabalho mais parecesse um “alegre ateliê” (CHEVALIER, 1999, p 3), onde era

produzido o mel: “símbolo de todas as doçuras” (CHEVALIER, 1999, p 604). Oposto ao

mel produzido pelas abelhas, o Cão alegorizava medo e terror, chegando a ser

comparado, até mesmo, ao demônio. Todos tinham pavor de olhar o animal. Jaí chegou a

espreitá-lo uma vez e sentiu um horror assim descrito:

[...] o universo do Cão, que dói nas vistas só de espreitar e me dói na boca só de falar, o medo todo [...] o Cão mais bigue que ele já tinha visto, nem conseguia imaginar na cabeça dele qual era a marca, pra te pôr aqui se era dobermén ou rotevailer, num sei, só sei que era mais que enorme, Cão gigante, negro e escuro com as orelhas de parecer chifres

27 Diminutivo de “dikota” que significa mais velho. 28 Muito

47

em pé [...] tudo aquilo lhe lembrava masé o inferno [...] (ONDJAKI, 2004, pp 142-143).

O espaço domiciliar da KotaDasAbelhas pode ser lido, assim, como alegoria da

cidade de Luanda, já que em ambas há a presença do medo, do terror, do inferno: [“o

inferno fica longe, uí? Abre masé os olhos...” (ONDJAKI, 2004, p 128)]; mas, nas duas,

se faz também presente a doçura e o perfume a exalar pela casa inteira: “[...] cheiro

daquela casa é o céu e o paraíso aqui na terra.” (ONDJAKI, 2004, p 65). A casa

lembrada, metonímia de Luanda, fazia com que esta emergisse, doce e amarga, alegre e

triste, da memória do narrador.

O candengue29 PCG (Pisa com gêto30) é outra personagem que leva este nome por

ter uma falha numa das pernas, o que o faz andar mancando. Depois de ter sido

atropelado pelo motorista do Burkina, o garoto conquistou o coração do anão com seu

jeito divertido e ingênuo, próprio de sua idade. Ele aparece na narrativa representando

os problemas sofridos pelas crianças de rua, que viviam, em castelos de papelão, nas

avenidas de Luanda, trabalhando como guardadores de carros ou esmolando para

ganharem alguns poucos trocados: “[...] esses putos nem sempre são miúdos de rua [...]

[mas] miúdos na rua, coisa bem diferente, que virou salo31 deles aqui na city, estarem

mesmo a pedir, fim do dia fazem as contas e te põem hoje facturei, avilo!” (ONDJAKI,

2004, p 94).

Também as prostitutas, amigas do Burkina, tinham nomes significativos.

Chamavam-se Eva e Madalena, remetendo às personagens da Bíblia que representam o

pecado e o prazer carnal: “[...] essa Eva, que até tinha trazido amigas que não eram da

profissão mas que depois daquela reunião se calhar iam ver aquilo como um ramo

29 Criança, miúdo. 30 Forma oralizada da palavra “jeito”. 31 Trabalho.

48

vantajoso [...]” (ONDJAKI, 2004, p 105). Eram, como as demais personagens do

romance, seres à margem, vivendo da prostituição do próprio corpo:

[...] miúdas engraçadas, gente nova, só que foder não é mais assunto da intimidade, pensas o quê, foder é profissão muito antiga, toda gente fala, fala, mais é só um assunto nenhum, principalmente quem não fode pra sobreviver num devia falar das outras, profissão delas que custa é no corpo delas, ninguém mesmo calcula – porra, muadiê, te pergunto: você dava o cu pra alimentar teus candengues? Não davas, né, mas essas gajas dão, dão tudo, porque é modo de vida já, profissão delas [...] (ONDJAKI, 2004, p 41).

Dona Divina, a primeira esposa de Adolfo, recebe este nome por justamente não

ter nada de santa. Era uma mulher que sofreu com as misérias da vida, mas não chegou a

aprender nada com estas: “[...] já passou fome, já comeu comida de lata pra cão [...]

limpava cu com plantas, mas porra, num aprendeu merda nenhuma – das simplicidades

da vida” (ONDJAKI, 2004, p 25). Logo após a separação matrimonial, sua situação

financeira melhorou consideravelmente de forma misteriosa. Com o tempo, esbanjando

dinheiro, acabou por empobrecer novamente, fato não aceito por esta, que passou a viver

de aparências. Viu na morte de Adolfo a possibilidade de se tornar viúva do Estado:

[...] ela já andava a gastar nas contas do que ainda nem tinha recebido, porque modista daqui e unhas d’acolá, cabeleireiro das lacas pulverizadas, celular novo e outros apetrechos sociais, aí lhe vemos, a madama fênix ressurgir-se das lamas e querer aparecer nas páginas frontais do niuspeiper eu é que sou a primeira viúva do estado! (ONDJAKI, 2004, pp 125-126).

Nesta altura, porém, DonaDivina já estava “desdivinada”32. Desta forma, podemos

perceber que a alegoria, neste caso, se dá de forma irônica, uma vez que, segundo

Hansen, “a alegoria inclui também a ironia, como tropo de oposição, uma vez que ela

afirma para dizer outra coisa, isto é, para negar, e vice-versa [...]” (HANSEN, 1986, p

13).

32 ONDJAKI, 2004, p 27.

49

A personagem Kibebucha também tem seu nome marcado por seu tipo físico, já

que a palavra “bebucha” significa mulher que, mesmo acima do peso, é desejada pelos

homens: “[...] carnes aqui e ali bem postas nas contracurvas do corpo [...]” (ONDJAKI,

2004, p 100). Moradora da Ilha de Luanda, Kibebucha é considerada a segunda esposa

de Adolfo, embora não tenha nada oficializado. Após a morte dele, disputa com

DonaDivina o posto de viúva do Estado.

Outras personagens como a JuízaMeritíssima, a advogada tipa, o padre e o

subintendente Gadinho aparecem na narrativa representando alegoricamente suas

profissões. Gadinho, por exemplo, carrega no nome um diminutivo com conotação

pejorativa, denotando o seu baixo posto na hierarquia militar. Com seus bigodes

“maiombeiros” 33 e sua barriga protuberante, tal personagem é uma representação

caricata da polícia angolana:

[...] saiu o sub Gadinho do carro dele, sem guarda-chuva nem nada, todo molhado tipo rambo que ele queria parecer assim vestido de preto nas missões especiais da operação fodido, só lhe arruinava o pôster era aquela barriga a querer empurrar o colete prova-de-bala.(ONDJAKI, 2004, p 162).

O Sete, motorista do anão, é chamado desta forma por já ter batido sete vezes no

mesmo local – a esquina dos baleizões34 e na mesma época: no fim de ano. É chamado

diversas vezes de camelo pelo seu impaciente patrão Burkina, por conta de sua

estupidez: “[...] e o anão até se benzeu na burrice do outro” (ONDJAKI, 2004, p 153).

Marcadas pela rejeição social, essas personagens do romance, entretanto, não se

deixam abater pela discriminação; ao contrário, têm uma postura ativa em suas

vivências. A certa altura, o narrador pergunta a seu interlocutor sobre a sua passividade

em relação à vida: “Qual é a tua inclinação? Nada, nada mesmo? Pra ti pôr do sol e pôr

33 Idem, p 84. 34 Sorvetes; sorveterias.

50

de merda nenhuma é a mesma coisa? [...] Porra, meu, dás pena, quer dizer, estás neste

mundo só pra o que der e vier, não queres meter o corpo e o coração nele?!” (ONDJAKI,

2004, p 60). Pela indignação do narrador diante do alheamento do outro, percebemos a

tendência de uma intensa participação quanto às atitudes e aos pensamentos das

personagens. Se para Spinoza, a alegria aumenta a potência de pensar e agir, de forma

consciente, observamos que, também em relação às personagens de Ondjaki, o fato de se

alegrarem as torna resistentes e críticas. Exemplo disso, entre outros, é Adolfo que volta

ao mundo dos vivos e, narrando a própria história, faz uma análise alegórica e bem-

humorada da sociedade angolana dos anos 2000.

Além das personagens mencionadas, o kota cego Diarabí e os avós de Adolfo

representam, através de seus conselhos, estórias e pensamentos, a figura do velho sábio

em África, mais especificamente, em Angola. Sobre a importância dos anciãos nas

narrativas angolanas, falaremos no capítulo a seguir, no qual estudaremos a importância

da oratura e das estigas. Antes de passarmos a esse estudo, desejamos fechar o presente

capítulo com parte das conclusões a que chegamos: por meio do humor e da alegria, o

narrador e as personagens efetuam críticas e cartografam a cidade de Luanda, cujos

problemas são metonímias do que, em maior escala, acontece em Angola.

A memória, segundo Walter Benjamin, é “a faculdade épica por excelência”

(BENJAMIN, W. In: BOSI, Eclea, 1994, p 14). Ora, ao contar as estórias vividas, o

narrador reativa a própria memória subjetiva, conseguindo apreender traços que

caracterizam a sua identidade, a do povo angolano, a de Luanda e a de Angola. A

recordação de costumes, ritmos, comidas, danças vai reconfigurando a percepção do

país, que, em muitos momentos, as conseqüências terríveis dos anos de guerra tinham

obliterado. As misérias vivenciadas pelos amigos fracassados são lembradas com humor

51

crítico: o rir da desgraça faz com que esta possa ser melhor enfrentada, mesmo quando o

riso é ferino e dói profundamente.

A alegria em Quantas madrugadas tem a noite também, por vezes, é dolorida.

Mas, conforme vimos com Spinoza, é “potência em ação”. Assim, ela age como uma

força que impede o imobilismo cultural, levando ao riso, à graça, às estigas que instigam

os seres e os fazem resistir, à cata de madrugadas, mesmo em meio a escuras noites.

O autor acredita realmente ser possível, ainda hoje, encontrar alegrias em meio ao

desencanto social, como ele próprio nos responde, comentando sobre a importância da

alegria: “Mudam as dificuldades, os tempos, os desafios, mas o povo segue enraizado nesse

modo de ser que é quase uma ficção constante, diária, contrariando o que não interessa, o que

tira a força, o que impede de dançar.” (ONDJAKI, entrevista inédita concedida à Heloise

Cabral, em 2008). Continuemos nosso estudo a pensar que se “a tristeza é como chuva,

quando cai, molha toda gente” (ONDJAKI, 2004, p 44), a “felicidade, irmão, não é sol de

procurar, se evita é nuvens que lhe escondem [...]” (VIEIRA, 1981b, p 27).

52

4. O NARRADOR E A ORATURA RECRIADA

No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto.

Manuel Rui35

Manuel Rui, em seu texto “Eu e o outro – o invasor”, defende que não é o texto

oral que se adapta ao escrito, mas, sim, um novo texto que se forma na escrita, trave da

ficcionalização de traços da estrutura oral. Este tipo de procedimento é recorrente em

grande parte da literatura angolana.

Consoante o pensamento de Manuel Rui, Ondjaki, em Quantas madrugadas tem a

noite, “mina” a escrita, reinventando-a com elementos do texto oral também recriados.

Desde o léxico até a sintaxe, são perceptíveis traços da oratura popular que são

dramatizados pela escrita. Em dado momento na obra, o narrador chega a divagar sobre

a forma coloquial escolhida para se escrever a estória: “[...] eu num ligo nada nessas

coisas de português correcto e sabes porquê?, te ponho, muadiê: porque se o mundo ta

torto como tá, deixa lá o português ser uns coche36 massacrado também.” (ONDJAKI,

2004, p 114).

Tradicionalmente, a África, de um modo geral, sempre foi marcada pela cultura da

oralidade na transmissão dos conhecimentos, de geração a geração. É notadamente

sabido que, nas comunidades africanas ancestrais, os velhos desempenhavam importante

função na formação de seu povo, assumindo o papel de difusores das tradições e

mantenedores dos referenciais culturais da sociedade em que se encontravam inseridos.

Como essas sociedades eram ágrafas, os velhos acabavam sendo a maior fonte histórica

local, uma espécie de memória viva. Em relação a isto o filósofo malês Hampâté Bâ

35 RUI, M. 1987, p. 309. 36 Um Pouco.

53

afirmou: “cada vez que um velho morre, uma biblioteca se queima” (BÂ, apud

KABWASA, 1982, p 14). Observamos, assim que sabedoria do velho era pautada por

sua experiência e por sua capacidade de se comunicar com seus antepassados. Por essa

razão, o escritor zairense Nsang O’Khan Kabwasa, escrevendo sobre a velhice, disse que

esta “é a idade da sabedoria, do ensinamento, e não do descanso, pois ‘mesmo que o

corpo dos velhos desfaleça, seu espírito não descansa’.” (KABWASA ,1982, p14).

Devido ao saber que transmitiam, os velhos eram, desse modo, dignos de muita

veneração, sendo suas lições merecedoras de credibilidade. Segundo Rita Chaves, o

ancião “é dono de um saber que merece respeito e, por isso, deve ser ouvido sempre,

sobretudo nos momentos de crise de seu meio social” (CHAVES, 1999, p 105).

Em Quantas madrugadas tem a noite, o narrador comenta que, por mais que todos

estivessem sem paciência de ouvir as estórias dos sonhos de KotaDasAbelhas, querendo

apenas escutar a conclusão, ninguém se atrevia a apressá-la:

[...] todos ali tavam a pôr respeito é na idade da kota, como é que você vai mandar um sekulu37 mesmo abreviar uma estória? Você ouve só, ouvidos da atenção, olhos que nunca viram coisas que eles, mais-velhos, te falam assim tipo coisas normais, e que eram mesmo normais!, lá no outro lado do tempo, nos antigamentes. (ONDJAKI, 2004, p 165).

Além da personagem KotaDasAbelhas, outros velhos têm sua importância dentro

do romance: a personagem kota Diarabí e os avós do narrador. Em relação à infância

deste, todos esses anciãos tiveram grande relevância. O próprio narrador confessa isso:

“Gosto muito de estar preso na infância e sei muito mal desprender-me de lá. Mais das

vezes acaricio lembranças [...] avô, avó, e os bichos da rua [...]” (ONDJAKI, 2004, p

109). O tempo de criança era, assim, o da aprendizagem. Fazia-se, então, uma união

perfeita: quem tinha muitas memórias a reviver e tempo para contá-las juntava-se com

quem estava ávido por ter memórias, tendo tempo para ouvi-las. As pontas da existência

37 Expressão em umbundu que significa “mais-velho (a)”.

54

se ligavam: velhos e crianças representavam a dinâmica da vida e a transmissão das

tradições.

O kota Diarabí é uma figura que apresenta duas características comumente ligadas

à sabedoria, pois, além de ancião, é cego. Para Chevalier, a cegueira nos velhos

simboliza o saber da idade avançada: “Os adivinhos são geralmente cegos, como se

fosse preciso ter os olhos fechados à luz física a fim de perceber a luz divina.”

(CHEVALIER, 1999, p 218). Ora inventando estórias – como a de que a mangueira era

regada a chá de caxinde38, justificando a doçura do seu fruto –, ora citando provérbios:

“Sede é quando não temos água!”( ONDJAKI, 2004, p 81), Diarabí aparece ao longo da

narrativa como detentor das tradições. Sentado “em baixo do imbondeiro como ele

sempre ficava” (ONDJAKI, 2004, p 172), o kota cego metaforiza, juntamente com esta

árvore, a resistência e a longevidade. Como o velho, o imbondeiro funciona como

símbolo cultural de força e sobrevivência. Contudo, essa atitude de resistência não

precisa significar, necessariamente, a negação do novo. Para Laura Padilha, “[...]

também aparecem velhos resistentes à mudança, mas a grande maioria está empenhada

nela, daí porque eles vão interagir com os mais novos, criando um espaço de fecundação

que engravida o devir angolano.” (PADILHA, 2007, p 26).

É interessante lembrar aqui a simbologia universal da árvore. Pelo fato de suas

raízes mergulharem no solo e de seus galhos se elevarem para o céu, a árvore simboliza

as relações entre o céu e a terra. (CHEVALIER, 1999, p 84). Destarte, os velhos, na

tradição africana ancestral, funcionavam como elos entre os vivos e os seus

antepassados, sendo os intermediários entre os mundos visível e invisível.

O narrador de Quantas madrugadas tem a noite, a certa altura da estória,

referindo-se ao imbondeiro, mostrou que este apresenta pontos positivos ou negativos,

38 Erva cidreira.

55

dependendo do ponto de vista de quem o observa: “[...] o imbondeiro pra ti pode ser

uma árvore cambuta-seca39, feia. Mas!, e se eu te emprestar outras vistas: árvore antiga-

rija, bonita de ilustrar muitas vezes o sol-poente?”(ONDJAKI, 2004, p 24). Acreditando

que o melhor é prestar atenção no que há de bom em cada coisa, o narrador faz com que

os pontos positivos sobressaiam, em geral. Exemplo disso é, no romance de Ondjaki, a

cegueira do kota Diarabí não ser vista como uma deficiência, mas, sim, como uma

característica até mesmo positiva que lhe permitia aguçar outros sentidos – como a

audição e o tato –, sendo-lhe possível alegrar-se, ainda que em meio à escuridão.

Percebemos isso pelo seu riso e sorriso apreciados pelo narrador:

[...] ficava só assim, comer e sorrir nos sorrisos bonitos que os cegos põem na boca, nunca reparastes, meu? [...] nunca galaste o riso dos cegos?, é riso de mel então, a doçura toda da escuridão deles que só vivem nos ouvires do mundo, e tocares também[...] (ONDJAKI, 2004, p 146).

O jogo narrativo é feito de encaixes movidos, muitas vezes, pelas lembranças do

narrador que, como um autêntico contador de estórias, vai trazendo à cena as

personagens por meio de sua memória. Para a escritora Lucilia Delgado, em seu livro

História oral: memória, tempo, identidades, os melhores narradores “são aqueles que

deixam fluir as palavras na tessitura de um enredo que inclui lembranças, registros,

observações, silêncios, análises, emoções, reflexões, testemunhos.” (DELGADO, 2006, p 44).

Os avós, por exemplo, aparecem, principalmente, de forma indireta, através das

falas do narrador. Apesar dos avós não serem fisicamente tão presentes quanto as demais

personagens, seus ensinamentos, passados na infância ao neto, ainda perduram em seu

modo de pensar. Em alguns momentos do romance, o narrador recorre a pensamentos de

seu avô para dar as seguintes lições: “[...] vai devagar pra chegares depressa!”

(ONDJAKI, 2004, p 113) e “[...] na rebentação da onda é que a concha brilha mais tas a

39 Cambuta, em quimbundo, é “de baixa estatura”.

56

captar, avilo?” (ONDJAKI, 2004, p 123). Por sua vez, a avó o aconselha, ainda criança,

a comer formigas, pois estas seriam boas para a vista. Tal conselho é aceito como

verdade e seguido pelo neto, conforme podemos observar na seguinte citação:

[...] toda formiga que encontrava no jardim eu pitava, um dia apanhei uma diarrumba séria mesmo, e a minha avó quis saber se eu tinha comido doces ou o quê, e eu me lembrei só se for das formigas ela riu, meu, riso dela lindo na velhice, dos lábios dela, e aqueles olhos também, riso das velhas mesmo, todas nossas avós, ela riu bué, e aí, eu já era mais crescido, me falou tu já tens uns olhos tão bonitos, não comas mais formigas Foi só por isso muadiê que eu deixei de comer, porque ela mesmo me garantiu que as formigas já tinham feito todo salo que tinham pra fazer nos meus olhos. (ONDJAKI, 2004, pp 54- 55).

Esse riso da avó é comparado ao típico da maioria das avós: velhas sábias e

contadoras de estórias lúdicas aos seus netos. A alegria, mais uma vez, se faz presente

na narrativa por meio deste tipo de riso: o dos velhos e o das crianças que, por serem

cheios de pureza e inocência, no decorrer da estória, assemelham-se e expressam essa

“potência de vida” que, muitas vezes, acaba por contagiar outras pessoas. As que

recebem esta alegria oferecem-na de volta, pois, para Spinoza, “se alguém fez alguma

coisa que imagina afetar de alegria os outros, será, ele próprio, afetado de uma alegria

concomitante à idéia de si mesmo como causa [...]” (SPINOZA, 2002, p 227).

A infância aparece na memória do narrador, muitas vezes, ajudando a melhor

entender o presente, pois, como Beatriz Sarlo afirma em seu livro Tempo passado, o

retorno do passado “nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um

advento, uma captura do presente.” (SARLO, 2007, p 9). Ainda esta autora teoriza sobre

a força interna que move as lembranças, explicando como são capazes de tornar vivo o

passado:

Propor-se não lembrar é como se propor não perceber um cheiro, porque a lembrança, assim como o cheiro, acomete, até mesmo quando

57

não é convocada. Vinda não se sabe de onde, a lembrança não permite ser deslocada; pelo contrário, obriga a uma perseguição, pois nunca está completa. A lembrança insiste porque de certo modo é soberana e incontrolável (em todos os sentidos dessa palavra). Poderíamos dizer que o passado se faz presente. (SARLO, 2007, p 10).

Ondjaki, em Quantas madrugadas tem a noite, revela como as amizades fundadas

na infância têm importância na vida adulta das personagens: “[...] pessoas que são as

sementes da nossa infância [...] ficam anjos pra sempre [...] se lhes vemos sorrir,

sorrimos só também [...]”(ONDJAKI, 2004, p 169). O narrador, ao lembrar de “infâncias

da cueca na rua”, mais um “passado se faz presente” – o das brincadeiras de rua: “[...]

nossa memória, jogos de ficô40 e bica-bidôn41 de não ir jantar só pra ficar na rua a jogar

[...]” (ONDJAKI, 2004, p170). Deste ingênuo período de sua vida, até mesmo os

momentos de humilhação eram recordados com saudosismo pelo narrador: “Venho de

muito longe..., tão longe que me deu saudade até de ir mais caçar gambozino42...”

(ONDJAKI, 2004, p 194).

Pudemos perceber que Ondjaki, em sua ficção, com a presença da criança e do

ancião, sem ignorar o que é novo, valoriza o cultivo da tradição. Desta forma, presente e

passado complementam-se mutuamente, criando um ambiente propício ao porvir, pois,

conforme afirma Laura Padilha, assim como nos missossos, “também contracenam nas

modernas narrativas literárias, mais velhos e mais novos que, juntos, procuram

reconstruir, dialogicamente – o velho, pela memória e pela palavra, e o novo, pela

esperança e pelo jogo –, o mundo angolano fragmentado.” (PADILHA, 2007, p 25).

Como sabemos, tradição e oralidade, embora façam parte de outras culturas

ancestrais, estão sempre muito presentes nas literaturas e manifestações culturais

40 Jogo infantil semelhante ao pique - pega. 41 Jogo infantil praticado em espaço aberto, semelhante ao pique - esconde. 42 Seres imaginários da cultura portuguesa. A caça aos gambozinos é tradicionalmente feita à noite, onde o ingênuo é levado para um lugar pelos mais velhos, que se divertem ao ver o esforço da procura por algo inexistente.

58

africanas. Para o filósofo Walter Benjamin, em geral, são os mais velhos os que

costumam transmitir aos mais jovens grande parte da sabedoria proveniente de suas

experiências de vida:

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das historias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos[...] podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante. (BENJAMIN, 1992, pp 198-199).

Benjamin ainda acrescenta que a melhor narrativa escrita é aquela que mais se

aproxima do registro oral, embora saiba que entre este e aquela há uma cisão jamais

preenchível. Ondjaki e outros escritores angolanos, criativamente, compõem suas

narrativas com a consciência “de que é preciso gestualizar o texto, griotizá-lo, para que

ele possa gritar a alteridade de sua voz duplamente.” (PADILHA, 2007, p 26).

Em seu texto, “O narrador”, Walter Benjamim afirma que a narrativa é a forma

originária da comunicação, que narrar significa conhecer essencialmente. Benjamim

distingue o romance da narrativa, pois, nesta, o narrador retira da experiência aquilo que

conta, sua própria subjetividade ou a alheia. O narrador incorpora as coisas narradas às

experiências daqueles que o ouvem. O romancista, por outro lado, segrega-se, estando só

diante do papel. A origem do romance é o indivíduo isolado.

Quantas madrugadas tem a noite mescla características das narrativas orais com a

estrutura de romance. Ondjaki é, assim, um romancista-contador de estórias.

Benjamin, em seu ensaio, aborda dois tipos de narradores: o sedentário e o

viajante, ambos representados pela figura do velho contador de estórias. No romance de

Ondjaki, o narrador reflete sobre o que vem a ser um viajante:

Um viajante é o quê?, num é aquele que vem de mais longe, quantos caminhos é que você cruzou, quantas pessoas e o mundo delas, quantas visões você viu, quantas magias? O tempo, avilo, o tempo é essa estrada

59

comprida que eu te falo, e quem vem de longe sempre já tropeçou em mais pedras e enfrentou mais lacraus43. Mentira? (ONDJAKI, 2004, pp 165- 166).

O velho é um viajante no tempo, pois percorre a estrada das lembranças, trazendo

ao presente memórias do antigamente. Ondjaki também se vale do recurso de lembrar o

passado. Em Quantas madrugadas tem a noite, ao colocar o narrador num bar, a contar

estórias de forma coloquial, dizendo serem estas puras estórias “daquelas com peso de

antigamente” (ONDJAKI, 2004, p 13), busca tornar este contar natural, mesmo que, para

isso, tenha sido necessário um esforço artificial para passar tal impressão ao leitor. Aí

temos exemplo da conjugação de procedimentos modernos e tradicionais. Há um jogo de

modernidade no romance, pois cria uma ilusão da coloquialidade. Para isso, os

elementos empregados no texto, como o vocabulário com expressões em kimbundu, a

sintaxe dramatizando a fala cotidiana do povo angolano, demonstram o empenho do

autor em tornar a narrativa fluída, o mais próximo possível do oral, griotizando44 seu

modo de narrar como fazem os velhos contadores orais africanos, com o diferencial de

basear a sua escrita numa fala moderna urbanizada. Imitando a sintaxe e a regência

comumente empregadas no falar oral luandense, Ondjaki imprime um tom coloquial à

sua narrativa, quando esta encena os diálogos travados entre suas personagens: “[...]

num sabes que num se buzina na JuízaMeritíssima?” (ONDJAKI, 2004, p 96, grifo

nosso). Neste caso, percebemos que, lexicalmente, o vocábulo “não” é substituído por

sua forma coloquial “num”, e, sintaticamente, a preposição “para” é substituída por

“na”. Dentro da coloquialidade das falas recriadas, percebemos nuances que ocorrem,

por exemplo, na fala da mãe do PCG, que mostra uma variante lingüística mais popular:

“mas se ali que vão terrare estão caire, magina inda aqui onde estão subire... Deixa só,

43 Designação popular que significa escorpiões. 44 Neologismo criado a partir de griot. Este termo não existe em Angola, mas em outros países, significa “contador de estórias”. Logo, “griotizando” quer dizer “dando tom de estórias narradas oralmente”.

60

melhor é mesmo ansim [...]” (ONDJAKI, 2004, p 99). Outra variante lingüística que

aparece na narrativa é a do sotaque estrangeiro do zaicô45: “[...] kota conzinharre muito

ben ficarre deliciozo, maravilhas de mel, ah? Eu querrro aprrenderre...” (ONDJAKI,

2004, p 147).

Além desses procedimentos, Ondjaki, em sua narrativa, recria estigas e provérbios,

elementos característicos da oratura angolana. Sobre as estigas, Manuel Rui diz:

Uma brincadeira infantil em que um tenta gozar o outro e vice-versa, tudo em conversa inventada e simuladamente real com adivinhas pelo meio. Começa com uma provocação para diálogo que em princípio visa a vitória do estigador mas pode acontecer ganhar o estigado, tudo pela capacidade oral de velocidade e representação perante um público. (RUI, texto ainda não publicado cedido à professora Carmen Tindó, 2006).

Em Quantas madrugadas tem a noite, o narrador busca estigas, principalmente do

tempo de sua infância, chegando a reinventar, na escrita do romance, algumas como

estas: “foste roubar pecado na igreja com carro de mão!”, “no tô cubíco46 compraram

um rafeiro47 em segunda mão que já num ladra!” (ONDJAKI, 2004, p 112) e “[...] no tô

cubíco tem dois ratos mulumbeiros48 que te dão aula de jeová.”(ONDJAKI, 2004, p

113).

Os provérbios também têm sua importância dentro do romance, ora aparecendo de

forma tradicional na língua nativa: “Uatono, mona: ku Alunga, ku eniê kumona. Anga:

Uatono, dia: kubadikinya kîma ki nangiê.”49 (ONDJAKI, 2004, p 113); ora parodiando

provérbios existentes de forma a adaptar à realidade do narrador: “a pressa também é

inimiga da cerveja.” (ONDJAKI, 2004, p 83).

45 Cidadão zairense. 46 Expressão coloquial que significa casa muito pequena. 47 Vira-lata. 48 Corcundas. 49 Provérbio kimbundu. Tradução: Estás acordado, vê: no Além não há vistas. Ou: estás acordado, come: o pestanejar é coisa breve.

61

O narrador de Quantas madrugadas tem a noite tem características bem

específicas: aparece ao longo de toda estória como sendo de terceira pessoa, mas, no

fim, nos revela ser ele o Adolfo, a personagem principal, o que também o torna um

narrador-personagem, ou seja, um narrador autodiegético.

Carlos Reis, no Dicionário de narratologia, define o narrador em primeira pessoa

como “[...] a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica:

aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como

personagem central dessa história.” (REIS, 2002, p 259). Reis ainda esclarece que, por

mais natural que possa ser o registro de primeira pessoa gramatical neste tipo de

narrativa, devido a essa coincidência narrador/protagonista, ela não é obrigatória. Ele

exemplifica: “[...] em La peste, de Camus, o narrador que finalmente se revela como

autodiegético opta por um registro de terceira pessoa.” (REIS, 2002, p 260). Assim

também se caracteriza o narrador de Quantas madrugadas tem a noite.

Ao explicar sobre tal possibilidade de onisciência num narrador autodiegético,

Carlos Reis adverte que esta não se dará de forma plena como acontece no narrador

heterodiegético. Já o narrador de Ondjaki dá aos leitores a ilusão de ser plenamente

onisciente, pois, do mundo dos mortos, pôde visitar o íntimo dos vivos. Observemos o

que ele diz:

O bom de ir e voltar e ter estado lá são as paredes que espreitei em mim – o que tinha esquecido das infâncias, Luanda nos antigamentes [...] e tudo que eu quis espreitar no coração das pessoas estava lá – e eu vi. Agora me é difícil odiar alguém [...]. (ONDJAKI, 2004, p 191).

Esse fingimento criado pelo jogo narracional é bastante moderno. Ondjaki tece o

romance entrelaçando lembranças em monólogos que parecem diálogos. Com relação ao

primeiro momento do livro, vemos que este começa com uma conversa, num bar, entre o

narrador e seu interlocutor. Mas a estória se desenrola e este não se pronuncia, o que

62

torna o texto um monólogo. Tal procedimento é semelhante ao usado por Luandino

Vieira, no romance João Vêncio: seus amores, como observado por Carmem Tindó: “Na

verdade, João Vêncio não dialoga, pois seu interlocutor, ‘Muadiê’, é mudo [...] exerce o

papel do ouvinte imparcial, do narratário ideal, sendo um artifício narrativo por

intermédio do qual os narradores [...] reatualizam o próprio narrar.” (SECCO, 2003, p

71).

Contudo, apesar da passividade do interlocutor, certas características deste nos são

fornecidas durante a narrativa: trata-se de uma pessoa com recursos para bancar bebida

para ambos durante toda noite, não tem família e não participa da vida, segundo palavras

do próprio narrador.

Outra característica importante presente no modo de Ondjaki contar estórias é o

fato de o narrador se reconhecer fictício, ao mencionar o seu criador em dado momento

da obra: “[...] se não comé que o gajo ia mesmo pôr nome de capítulo missa de corpo

ausente?[...]” (ONDJAKI, 2004, p 161). Através desse trecho, percebemos o narrador

saindo da estória e lembrando a nós, leitores, que ele nada mais é do que um “ser de

papel”.

Durante todo o tempo, o narrador diz ser verdade tudo o que relata, mas dá pistas

de que pode tratar-se de uma estória de bêbado: “[...] pensas que tou grosso já; mas não,

tou em plena forma do levantamento de copo, neste caso garrafa [...]” (ONDJAKI, 2004,

p 124). Em mais uma de suas divagações, o narrador compara a sua forma de criar à de

um oleiro, que por sua vez, aparece, muitas vezes, como metáfora da criação divina.

Deste modo, o dom divino de criar é compartilhado com o artista. Ao explicar do que é

composta a sua estória, o narrador de Quantas madrugadas tem a noite mostra a

diferença entre ele e o oleiro:

63

Pouca inventice, transformo só o material para lhe dar forma, utilidade. O artista molha as mãos pra trabalhar o destino do barro? Eu molho o coração no álcool pra fazer castelo das areias em cima das estórias..., e o mô espelho são as madrugadas. (ONDJAKI, 2004, p 110).

Ao mesmo tempo em que o narrador relata quase não haver “inventice” em sua estória,

ele, paradoxalmente, revela estar toda a sua narrativa sob o efeito do álcool. Segundo o autor,

é preciso estar atento, e “levar em conta todos os estados de desequilíbrio mental e etílico de

AdolfoDido.” (ONDJAKI, entrevista inédita concedida à Heloise Cabral, em 2008).

A noite, aí, em que os dois bebem no bar enquanto conversam, pode ser entendida

como um entre-lugar de sonho e realidade; não podemos precisar até onde vão os fatos e

as invenções, o que é real dentro da estória e o que é exagerado ou mesmo inventado:

“Amanhã, cuidado!, depois do sono, não vale a pena acordares maluco a pensar que aqui

saiu só sonho, mas também num é pra ires aí no mundo desbocar a nossa conversa

...”(ONDJAKI, 2004, p 196). Vemos que o narrador chama a atenção para uma

possibilidade de “inverdades”.

Como em situações orais comandadas pelo prazer das recordações, a narrativa se

dá de forma fragmentada; o narrador vai-se lembrando dos acontecimentos, à medida em

que estes lhe vêm à memória. Ao refletir sobre a fugacidade do tempo presente, ele

filosofa sobre passado, presente e futuro, metaforizando-os desta forma:

[...] pra mim é tudo a mesma rede: pontas dela são os dias, bóias dela são os passados, atirar rede na água são os futuros, e o peixe, o peixe? – o peixe vindouro somos nós mesmo, apanhados nas correntes marítimas do presente. Falei bonito, muadiê? (ONDJAKI, 2004, 102).

A sua forma de narrar é não-linear, e, por vezes, confunde seu interlocutor. As

informações vão aparecendo numa rede enorme de assuntos e pessoas, mas vai-se tudo

afunilando, mais para o fim, para a sua realidade pessoal, emocional.

64

Ando a pensar estes dias: tanta coisa anda a me acontecer na minha vida, mesmo incluindo esta minha conversa contigo aqui, que ficas só a me deitar olhares desses, tipo eu sou maluco de ficar a te contar bué de mambos, várias direcções da conversa, às vezes num capitas, né?, pensas que eu avario, mudo sulinorte nos poentes e nascentes, trocadilhos dos personagens, é isso? Calma só, muadiê, como eu digo: pra saber q’a maré tem quatro comportamentos, é preciso olhar o mar um dia inteiro, tais a capitar? O que eu te ponho aqui, dica ou recordação, vais precisar pra entender tudo. Portanto, desculpa só, eu sei: meus devaneios todos, minhas outras lembranças, mas tá tudo ligado, num dá pra fugir, os assuntos tão todos aqui [...] (ONDJAKI, 2004, p 116).

Tal procedimento é semelhante ao do narrador de Grande sertão: veredas, que

“estilhaça a narrativa em idas e vindas, ao sabor da memória; uma memória subjetiva,

que traz as experiências emotivas do vivido e incorpora também a oralidade ao seu

discurso.” (SECCO, 2003, p 74). Também Luandino Vieira se vale dessa estratégia

narrativa. Vemos, portanto, que, em Quantas madrugadas tem a noite, outro recurso

bastante usado pelo autor são as intertextualidades, que estudaremos mais adiante.

A narrativa ondjakiana, além de fragmentada, é múltipla, pois entrecruza várias

pequenas narrativas, que se encaixam umas às outras, à maneira de uma Matrioshka50,

formando, entretanto, um tecido coeso que dá coerência ao enredo. Como se fosse um

jogo de “estória-puxa-estórias”, o narrador, ao apresentar a estória de uma determinada

personagem, se vê obrigado a narrar outras, para que esta primeira seja plenamente

entendida. Este recurso, ao mesmo tempo que cria um certo retardamento do contar

central, o enriquece. Todorov, em seu livro As estruturas narrativas, ao definir este tipo

de narração, cria o termo “narrativa de encaixe”, mostrando como esse procedimento é

comum em narrativas de oralidade:

A aparição de uma nova personagem ocasiona infalivelmente a interrupção da história precedente, para que uma nova história, a que explica o “eu estou aqui agora” da nova personagem, nos seja contada. Uma história segunda é englobada na primeira; esse processo se chama

50 Brinquedo tradicional da Rússia, constituída por uma série de bonecas, que são colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior) até a menor.

65

encaixe. (TODOROV, 1970, p 123).

Utilizando, também, esse conceito de Todorov, Ana Mafalda Leite o aplica ao

estudar a narrativa de Mia Couto, demonstrando que as personagens

[...] vivem das histórias que contam, existem porque têm uma narrativa a partilhar, uma experiência de vida, um ensinamento, figurado ou não. A personagem é uma história virtual, que é a história da sua vida. Existe mediante a sua capacidade fabular, o seu testemunho; mais do que um ser, com psicologia, é potencialmente lugar narrativo de encaixe. As muitas narrativas encaixadas, das diversas personagens, servem de argumento à narrativa englobante. (LEITE, 2003, p 72).

Em Quantas madrugadas tem a noite, o narrador, ao final de toda a estória

contada, pergunta ao seu interlocutor se ele (narrador) morrera, ou seja, se chegara a

esgotar-se depois de ter finalizado a narrativa. Imaginando que o interlocutor não

houvesse compreendido sua angústia e indagação, o narrador explica: “[...] queria era tar

morto, quer dizer, calma então!, morto só de afirmar isso nas palavras artísticas que te

ponho. É que um mô camba um dia me falou: pra contar uma estória, um gajo deve

morrer nela.” ( ONDJAKI, 2004, p 196).

A respeito de semelhante idéia – a de que o narrador deve morrer após o término

de sua estória –, Todorov se posiciona, alertando para o fato de que: “O homem é apenas

uma narrativa; desde que a narrativa não seja mais necessária, êle pode morrer. É o

narrador que o mata, pois êle não tem mais função.” (TODOROV, 1970, p 129).

Também a estudiosa Ana Mafalda Leite é partidária de tal reflexão, explicando:

“Narrador e Narrativa em simultâneo, [e] logo que deixa ser necessária a sua palavra,

pode morrer, desaparecer.” (LEITE, 2003, p 72). Ao finalizar a narrativa, Ondjaki nos

apresenta seu narrador também ávido de uma resposta a esta instigante dúvida: “Quero

só saber se posso ir no mô camba Vêncio lhe dizer que morri tudo, ou se ainda sobrei

66

mais em mim, um poucochito51 e as esquebras...”( ONDJAKI, 2004, p 196).

É recorrente, portanto, a intertextualidade João Vêncio, personagem de Luandino

Vieira. Outras intertextualidades também são freqüentes nesta obra ondjakiana,

conforme demonstraremos mo próximo capítulo, em que trataremos também de analisar

a poeticidade da linguagem do autor.

Observamos que a ficção de Ondjaki se constrói por intermédio de diálogos

constantes entra as tradições e a modernidade, entre presente e passado, entre as vozes

da memória e as letras da própria escrita:

O moderno texto ficcional angolano situa-se, desse modo, em uma outra margem – jamais passível de ser confundida com periferia; margem plena de significação, construída como um lugar outro, interseccional e liminar, situado entre voz e letra. (PADILHA, 2007, p 26).

Ondjaki, ao recriar estigas, provérbios e a oratura, acaba por imprimir em suas

narrativas uma dose de alegria que enfrenta o desencanto social, pois, ao efetuar a

reinvenção da narratividade oral, consegue ter a “lucidez de desvelar outras versões da

História”. (SECCO, 2003, p 15), sem, contudo, perder a graça, capaz de manter acesa “a

potência da vida”. O riso, portanto, nas estórias narradas, não é mero mecanismo de

escape, mas forma lúcida e lúdica de denunciar problemas existentes na sociedade.

51 Pouquinho.

67

5. DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS

Este jovem, este Ondjaki, experimentou muito cedo essa embriaguez. Bebeu dessa poção e agora se tornou em estório-dependente. Se tivesse que ser punido teria que responder não apenas pelo consumo mas pela produção e distribuição dessa droga.

Mia Couto52

A poção, a que Mia Couto se refere na epígrafe acima, nada mais é do que a

própria literatura. Essa que, segundo o autor moçambicano, é sagrada para a maioria dos

escritores que fazem da criação um momento de se igualarem aos deuses, partilhando do

prazer divino de inventar. Quando Mia nos revela que Ondjaki “bebeu dessa poção”,

acaba por confirmar o interesse deste jovem por viajar através dos livros. Não se

contentando em, somente, ler e ouvir estórias, Ondjaki passa a produzir as suas próprias

narrativas, enriquecidas por visitações, reveladoras do prazer de fazer seus textos

dialogarem com outros. Ao visitar obras de vários escritores, Ondjaki traz para seus

livros elementos, cujas funções se assemelham às dos souvenirs que assinalam sua

passagem por mundos literários criados por outros autores, fazendo, dessa forma, um

rico jogo intertextual. Este se tece como uma viagem por palavras: “[...] o escritor é um

ser que deve estar aberto a viajar por outras experiências, outras culturas, outras vidas

[...] E é isso que um escritor é – um viajante de identidades, um contrabandista de

almas.” (COUTO, 2005, p 59).

O termo intertextualidade, segundo Julia Kristeva, refere-se, fundamentalmente, ao

modo pelo qual se estabelecem o diálogo e a interatividade entre textos de um autor ou de

autores diversos:

A linguagem poética aparece como um diálogo de textos: toda seqüência se faz em relação a uma outra proveniente de um outro corpus, de maneira que toda seqüência está duplamente orientada: para o ato de reminiscência

52 COUTO, M., 2001, p 11.

68

(evocação de uma outra escrita) e para o ato de intimação (a transformação dessa escritura). (KRISTEVA, 1977, p 90).

Entendemos, então, a intertextualidade como um "diálogo" entre textos,

pressupondo amplo universo cultural. O tecido intertextual implica a identificação e o

reconhecimento de remissões a trechos de obras conhecidas por determinados públicos.

Esse diálogo entre obras pode ocorrer em diversas áreas do conhecimento, não se

restringindo única e exclusivamente a textos literários.

Em Quantas madrugadas tem a noite, Ondjaki começa o livro, dedicando-o a João

Vêncio: “esta estória é muito para ti, joão vêncio” (ONDJAKI, 2004, p 7); e, ao final,

como já visto, o autor volta a mencionar a personagem de Luandino, agora por

intermédio do narrador que diz que irá encontrar-se com o próprio. João Vêncio, tal

como Adolfo, é um contador de estórias nato, sendo mais um apaixonado por Luanda.

Essa visitação configura-se numa homenagem de Ondjaki a Luandino, cuja produção

literária foi tão importante em sua formação como escritor.

O diálogo entre os textos de Ondjaki e Luandino não se restringe à personagem

principal do romance João Vêncio: seus amores. Deste mesmo autor, outros livros são

referenciados por Ondjaki, valendo destacar A cidade e a infância, obra que estréia a

produção literária de Luandino. O conto “Encontro de acaso”, publicado nesse livro, se

passa num bar durante uma noite quente, quando dois amigos se reencontram e

relembram o passado. Luandino começa a narrativa com a seguinte frase: “–Olá, pá, não

pagas nada?” (VIEIRA, 2007, p 11). Similarmente, mas não por acaso, Ondjaki vai ao

encontro dessa obra luandina, quando nos mostra que, em Quantas madrugadas tem a

noite, a estória também tem um bar como ambiente propício à narração de memórias, e a

personagem Adolfo, como a do conto de Luandino, pede a seu companheiro de bar que

lhe pague algo para beber: “Mas, epá, vamos só desequilibrar umas birras; sentas aí, nas

calmas, eu te pago em estórias [...]” (ONDJAKI, 2004, p 13).

69

O livro A cidade e a infância é composto por contos que marcam a infância de

Luandino em Luanda; assim também, Ondjaki, em Quantas madrugadas tem a noite,

relata diversos momentos baseados em sua meninice passada no mesmo local.

Sabemos que é característico dos contadores de estórias gostarem de dar

credibilidade às suas narrativas, por mais inverossímeis que estas possam parecer. Em

Luandino não é diferente: no livro Lourentinho Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, o

narrador também assume esta postura de defender sua estória contra possíveis acusações

de inverdades: “[...] não troco nomes; não invento cenas, casos. Isto, irmão, é só a toda

verdade por extenso.” (VIEIRA, 1981b, p 16). Como já foi dito, o narrador de Quantas

madrugadas tem a noite também defende suas estórias, seguindo esta mesma orientação.

Nesse livro de Luandino, percebemos mais uma característica que também é

presente no romance de Ondjaki – a fragmentação do discurso: “[...] fio de missangas,

sem emendas, nunca se sabe é o princípio, meio, fim.” (VIEIRA, 1981b, p 27).

Outro escritor que influenciou a geração de Ondjaki foi Pepetela. Um de seus

livros, Parábola do Cágado Velho, é exemplo de intertextualidade com a obra de

Ondjaki por nós analisada. No livro de Pepetela, o cágado simboliza o sustentáculo do

universo: “Não são eles o alicerce do mundo, as bases de todos os tronos, a forma de

Mussuma, a capital lunda? Sabedorias antigas [...]” (PEPETELA, 1996, p 39). Essa

simbologia desse animal, na tradição africana, é muito difundida, pois o cágado

representa sabedoria, força, resistência ancestral.

Em Quantas madrugadas tem a noite, a referência a Pepetela, chamado

carinhosamente de kota Pepe e a alusão ao cágado mítico ficam evidentes no seguinte

trecho do romance:

O mundo, eu lhe olho, eu lhe sinto: está bem torto de se viver nele, mesmo me pergunto qual será a causa de ele estar assim – avariado... Num será que o cágado do kota Pepe apanhou bitacaia numa das quatro

70

patas e está assim coxo no caminhar, vintinovetrinta, pisa com jeito? (ONDJAKI, 2004, p 195).

O narrador levanta a hipótese de que os problemas enfrentados pela humanidade

seriam reflexos de uma anomalia no andar do animal, uma forma de buscar na tradição

uma resposta para as dificuldades contemporâneas.

Um outro autor angolano que é citado no romance de Ondjaki é Ruy Duarte de

Carvalho. Além de aparecer na epígrafe de um dos capítulos do livro, quando a região

do Namibe é mencionada por Ondjaki, o leitor que conhece Ruy Duarte,

automaticamente, faz ligação entre o escritor e este local, uma das regiões descritas

detalhadamente no seu livro Vou lá visitar pastores. Esta obra, da autoria de Ruy

Duarte, deixa marcas na escrita de Ondjaki, o que percebemos claramente na seguinte

passagem:

Qual mata é esta, nos desertos lindos do Namibe?, o outro mais-velho que fala nos livros dele, este com nome de ipslon – Ruy, todos kuvales e leites de cabra das anotações dele, meu, muadiê tipo dos filmes[...] Meu, esse kota, no antigamente das minhas leituras, é que me mostrou – ir conhecer as pessoas, todos hábitos delas, tradições e casamentices, não basta só sentar e perguntar, você tem que entrar dentro das pessoas, táis a galar, e isso demora quanto tempo? ( ONDJAKI, 2004, p 103).

O fato de Ondjaki referir-se a este Ruy como aquele com “nome de ipslon” tem a

finalidade de distingui-lo de Manuel Rui, outro escritor angolano que influencia a

produção de Ondjaki e é xará do primeiro, diferenciando-se daquele pelo i no nome.

A escritora angolana Paula Tavares tem relação muito próxima com Ondjaki, tendo

escrito várias notas e comentários sobre seus livros. No romance em questão, cita

nominalmente esta autora, como uma lembrança afetiva da pessoa: “[...] massambalas53

53 Milho de sorgo ou milho miúdo, que serve para fazer fubá, mas também para alimentar aos animais.

71

da Kota Tavares [...]” (ONDJAKI, 2004, p 190). Em conversa com o escritor, ele

referiu-se à Paula como sua “mãe da Huíla54”.

Ondjaki não somente visita outros escritores, mas também músicos como os

angolanos Man Ré e Dionísio Rocha. Este primeiro é homenageado por Ondjaki ao ser

citado em Quantas madrugadas tem a noite: “[...] o Man Ré mesmo é que sabe: a

mulher tem muito gêto [...]”( ONDJAKI, 2004, pp 26-27). Este artista fez sucesso como

cantor na década de 70, mas morreu na miséria e viveu os últimos anos de vida tocando

sua viola nos mercados a troco de esmolas. Ondjaki tenta, assim, resgatar um pouco de

seu passado de sucesso, visto que, na época que o livro foi escrito, o músico já estava na

pobreza.

Ao aparecer no romance como sendo um amigo da personagem Burkina, Dionísio

Rocha é também ficcionalizado por Ondjaki: “[...] ele ia mesmo chamar camba dele –

kota Dionísio Rocha – para lhes pôr uns conselhos na percussão e nos ritmos da viola

[...]” (ONDJAKI, 2004, p 139).

Além destes músicos angolanos, até mesmo o grupo musical brasileiro Demônios

da garoa é relembrado através da semelhança do discurso do narrador com a música

Trem das onze: “[...] como num vives em jassanã nem aqui tem nenhum comboio das

onze horas, vou-te pôr uns passados [...]” (ONDJAKI, 2004, p 111).Também são citados

o português Jorge Palma e o brasileiro Caetano Veloso, através de epígrafes, retiradas de

suas músicas Eternamente tu e Vaca profana, respectivamente.

Suas outras epígrafes, trechos do sociólogo francês Pierre Bourdieu, do escritor

grego Nikos Kazantzakis, da escritora mineira Adélia Prado, nos fazem concluir que as

visitações intertextuais de Ondjaki não se deram, apenas, nos arredores angolanos, mas

foram mais longe: o autor trouxe, na bagagem de suas viagens, experiências adquiridas

54 Província localizada no sul de Angola, onde nasceu a escritora Ana Paula Tavares.

72

com a vivência de outros mundos distantes. Parafraseando o escritor chileno Pablo

Neruda, Ondjaki, através de seu narrador, em dado momento da narrativa, afirma: “[...]

como o kota Pablo – também confesso que vivi.” (ONDJAKI, 2004, p 117).

Com relação a autores brasileiros, Ondjaki revela ter tido também grande

influência, sobretudo de Guimarães Rosa e Manoel de Barros, cuja artesania da

linguagem tanto o encantou. Do escritor mato-grossense chegou a receber elogios: “Há

em você a consciência plena de que poesia se faz abandonando as sintaxes acostumadas

e criando outras. São as palavras que guardam a poesia, não os episódios. Palavra

poética não serve para expressar idéias – serve para cantar, celebrar.” (BARROS, In:

ONDJAKI, 2002b, p 67).

Em Quantas madrugadas tem a noite, percebemos esta preocupação que o autor

tem com a estética poética, valorizando cada palavra, à medida em que seu texto vai

tomando forma. As palavras criadas, reinventadas por Ondjaki, mostram sua

“discipularidade” em relação a Guimarães Rosa, que tem trechos do conto “Páramo”, do

livro Estas Estórias, e do conto “Famigerado”, do livro Primeiras Estórias citados

respectivamente: “Muadiê, já dizia o kota Guimarães, rosa no apelido e olhar dele: cada

criatura é um rascunho a ser retocado sem cessar...” (ONDJAKI, 2004, p 109); “O medo

é a ignorância em momento muito agudo” (ONDJAKI, 2004, p 178). Ondjaki se apropria

de algumas brincriações rosianas, como as presentes no conto “Famigerado”: “[...]

fasmigerados, faz-megerados, falmisgeraldos [...]” (ONDJAKI, 2004, p 37).

Observamos aí que os narradores de Rosa e Ondjaki compartilham idéias e

procedimentos artesanais de escrita.

Percebemos, ainda, um forte diálogo entre Quantas madrugadas tem a noite e o

livro do escritor Jorge Amado A morte e a morte de Quincas Berro D’água, por terem

personagens “mortas” que voltam à vida. Atentando-se para a associação que o seu

73

interlocutor (ou o próprio leitor) poderia fazer, o narrador Adolfo se adiantou e tentou

explicar que qualquer semelhança com outro romance seria mera coincidência: “[...]

versão angolana do morto que volta? Não, avilo, verdades só [...]” (ONDJAKI, 2004, p

174).

As narrativas de Ondjaki e Jorge Amado são povoadas por personagens

marginalizadas, a começar pelas próprias figuras principais das estórias, e depois, se

estendendo aos amigos destas. Notamos que, tanto em relação a Quincas, como a

Adolfo, os seus vínculos amistosos são muito mais fortes que os familiares. Há a

valorização de sinceras amizades, tanto na novela de Jorge Amado como no romance de

Ondjaki. Ambos, romance e novela, têm como temática principal a “morte” de seus

protagonistas. Nos dois casos, tais momentos são cercados de muitas dúvidas em relação

aos motivos das “mortes”. Jorge Amado deixa claro, desde a primeira página de sua

novela: “Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das

testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira.”

(AMADO, 1983, p 15). Ondjaki, por sua vez, demonstra sua incerteza ao longo do

romance, pois a personagem não é enterrada, devido às dúvidas quanto às razões de seu

falecimento.

Diferente do que se possa pensar, ambas estórias não são depressivas, pelo

contrário, Adolfo e Quincas são dois boêmios de sorriso fácil, que chegam a sorrir

mesmo depois de mortos. “Quincas sorria deitado no catre [...] era seu sorriso acolhedor

[...]” (AMADO, 1983, pp 22-23).

Outra coincidência curiosa é o fato de nem Quincas, nem Adolfo beberem água. Os

dois gostam de bebidas alcoólicas, sendo Quincas amante da cachaça, e Adolfo, da

cerveja.

74

A estória de Quincas se passa na periferia de Salvador, capital da Bahia. O escritor

baiano Jorge Amado tinha verdadeira paixão por sua terra natal. O narrador desta

novela, ao contar sobre como a personagem Joaquim Soares da Cunha ficou sendo

conhecida como Quincas Berro D’água, revela sua aversão por beber água:

Sobre o balcão viu uma garrafa, transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a placidez da manhã no Mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte, de um homem traído e desgraçado: – Águuuuua! (AMADO, 1983, pp 58-59).

Embora haja todas estas semelhanças, em sua obra, Jorge Amado não explica o

porquê de Quincas não ingerir água. Ao contrário, Ondjaki mostra, no desenrolar da

estória, as causas reveladoras de tal atitude de Adolfo:

[...] eu receio água, muadiê, e esse meu receio tem fundamentos altamente antiquados no tempo contabilizado pelas bíblias: se o próprio Jesus, nessa festa que eu te pus, gastou milagre a transformar água em vinho, eu mais é que vou ser o teimoso, Judas da tibaria? Nem pensar!, água pra mim só da praia, bem salgada mesmo, e quando lavo os dentes faço o possível para num engolir, inda essa merda vai me fazer mal nas veias. (ONDJAKI, 2004, p 158).

A intertextualidade não se dá apenas com romances e estórias escritas; as novelas

televisivas brasileiras também têm grande influência na atual sociedade angolana. A

novela Roque Santeiro fez tanto sucesso em Luanda, que, hoje em dia, é nome do

mercado popular mais famoso de Angola. Ondjaki confessa ter assistido a várias novelas

brasileiras durante sua juventude, mas confessa que gostava mesmo era das estórias

lendárias: “[...] seres das novelas todas, cravo na canela do antigamente e Roque

Santeiro dos lobisomens cantantes [...]” (ONDJAKI, 2004, p 61).

Em Quantas madrugadas tem a noite, as marcas mais evidentes dessa

intertextualidade são as expressões que o narrador revela serem de Odorico Paraguaçu,

75

personagem de novela O Bem Amado. Expressões como: “apesarmente do dito e do

redito” (ONDJAKI, 2004, p 38); “as iludências aparudem!” (Idem, p 63); “retórica

criativa ou derrapagens discursistas” (Idem, p 111); “um tantomente enormístico”

(Idem, p 178); entre outras. As criações neologísticas da personagem brasileira chamam

atenção de Ondjaki que resolve distribuí-las e recriá-las ao longo de sua narrativa. Em

certo momento, o narrador, então, explica quem era o kota Odorico, de quem sempre

pegava emprestado algumas frases de efeito:

[...] até aparecer na televisão esse kota mesmo que eu te falo de vez em quando, o Odorico,quer dizer, sempre essa mania, ali não era mais Odorico, era outro, mas porra, num ficou já pra sempre Odorico?, acho que ficou, melhor personagem que já assisti. Kota mesmo sou fã dele – chorei na morte dele com minhas lágrimas sem vergonhas nenhumas. (ONDJAKI, 2004, p 80).

Ondjaki, no romance por nós analisado, não só dialoga com obras artísticas de

outros autores, mas também com alguns de seus outros livros e com suas obras de artes

plásticas. Um exemplo de intertextualidade com esta última é um de seus títulos, Pôr do

Sonho, ser tanto o de uma exposição de quadros seus, feita em 2000, como o de um dos

capítulos de Quantas madrugadas tem a noite. São freqüentes os diálogos,

principalmente com os livros Momentos de aqui, Os da minha rua e Bom dia

camaradas, sendo estes dois últimos baseados em sua vida, segundo confessou o próprio

Ondjaki. Gadinho, por exemplo, que surge, no romance Quantas madrugadas tem a

noite, como policial, antes, em Os da minha rua, aparecia como amigo de infância de

Ndalu.

Personagens, como o sr. Tuarles, dono das tibarias55, e suas filhas, aparecem em

todos os três livros. No romance analisado, encontramos uma possível continuação da

narrativa do conto “Padre Inácio o mata anjos”. Neste, se descobre que o padre abusara

55 bares

76

de Paurlete, uma das filhas do kota Tuarles, e que, por causa disso, o pai dera uma surra

no reverendo, e a igreja da Praia do Bispo chegara a ser fechada: “[...] da verdadeira

Praia do Bispo restou o nome, a poeira e a igreja fechada. Essa mesma igreja viria a ser

aberta com o famoso enterro do Sankara. Numa outra geração, numa outra realidade.”

(ONDJAKI, 2001, p 76). Fazendo parte desta “outra geração”, durante a missa de corpo

ausente de Adolfo, com seu pai e suas irmãs, Paurlete se apresenta “agora já com um

nené no colo” (ONDJAKI, 2004, p 152). Isto dá a entender que esta criança pode ser

filha deste mesmo padre que voltou lá para celebrar esta missa especial. “[...] o kota

Tuarles a se despedir das pessoas, só não fala mesmo com o padre, mas a Paurlete foi lá

mais outra vez pro padre pôr bênção na testa do miúdo.” (ONDJAKI, 2004, p 158).

Quando Ondjaki menciona o “famoso enterro do Sankara”, automaticamente

fazemos uma relação entre Sankara e Adolfo. Através do conto “O Nitó que também era

Sankarah”, presente no livro Os da minha rua, descobrimos que Nitó era um primo mais

velho de Ndalu. Professor de inglês, na escola, ele era conhecido por “stôr Sankarah”.

Sabemos também que este mesmo primo o chamava de Adolfo: “– Adolfo – como ele

me chamava em brincadeira e ternura só dele.” (ONDJAKI, 2007, p 126). A partir daí,

sobram hipóteses e faltam clarezas. Não sabemos até onde os acontecimentos deixam de

ser reais e passam a fazer parte da ficção, ou seja, da criativa imaginação do autor.

Percebemos, então, que, em Quantas madrugadas tem a noite, algumas personagens,

para além de já terem aparecido em outros livros, são construções ficcionais do autor

feitas a partir de pessoas reais, conhecidas de Ondjaki. Por isso, observamos que o

diálogo do escritor não se dá apenas com suas obras, mas com sua vida, como se esta

também fosse um livro.

Em Quantas madrugadas tem a noite, Ondjaki cita passagens da sua própria

história pessoal, falando de seus amigos, parentes e viagens, entre outras coisas,

77

ficcionalizando-as através da fala do narrador. Conta sobre o tempo em que viveu em

Portugal, onde esteve a estudar, mas não fala sobre sua vida acadêmica. Tece

considerações sobre as pessoas que lá conheceu, sobre suas culturas, diferentes da dele,

e sobre seus preconceitos: “Ouve, uí, eu bazei da tuga56 por causa disso então, os olhos

dos outros tavam a me querer ensinar outra coisa que não era eu [...]” (ONDJAKI, 2004,

p 115). Durante o tempo em que viveu fora, diz ter sentido muitas saudades de sua

terra, e, principalmente, das belas mulheres de Angola. O narrador, que é um duplo do

autor, confessa que, para ele, as mulheres portuguesas não eram nada atraentes: “[...] o

rabo das tugas... Meu, tábua d’engomar, a xoetice57 toda? Rabo foi aonde então,

Nzambi58 lhes castigou assim porquê?” (ONDJAKI, 2004, p 115).

Por meio desse narrador, Ondjaki também comenta sobre sua viagem ao Brasil –

até então, só tinha vindo uma vez. Primeiro esteve na Bahia. Lá, ele fez críticas à

ignorância do povo com relação à localização de Angola: “[...] mas lhe pergunta inda

onde é Luanda, onde fica Angola? Vai pensar tás a falar é dança” (ONDJAKI, 2004, p

117). O narrador ainda nos conta que, em conversa com o poeta brasileiro Manoel de

Barros sobre poesia, este pediu para que ele contasse algumas estórias de Angola. Após

ouvi-las, o poeta brasileiro transformou-as rapidamente em poesia: “[...] nossas estórias

ali logo bem reinventadas nos dons da poesia, o kota era craque então!” (ONDJAKI,

2004, p 119). Ao ser questionado sobre a veracidade deste encontro com o escritor

Manoel de Barros, Ondjaki nos explica: “Para a personagem, ocorreu, claro. É isso que

esta diz, acredita quem quiser.” (ONDJAKI, entrevista inédita concedida à Heloise Cabral,

em 2008).

Os jogos intertextuais dão, por conseguinte, uma grande riqueza às narrativas de

Ondjaki, deixando bastante evidentes os muitos elos existentes entre a literatura dele e a

56 Gíria que pode significar Portugal ou portugueses. 57 Desprovimento de nádegas salientes. 58 Deus em kimbundu.

78

brasileira, o que reafirma algumas semelhanças culturais entre o Brasil e Angola, cujas

histórias e costumes dialogam em determinados períodos históricos e em algumas obras

literárias.

Voltando à epígrafe deste capítulo, percebemos que, uma vez seduzido pela

literatura, Ondjaki passa, então, a não somente consumir, mas a também produzir e

distribuir magias literárias. O fato de visitar outras obras e reconfigurá-las pela escrita

constitui uma das características de sua ficção.

Outra marca importante, e, talvez, a mais intensa, presente nas obras de Ondjaki, é

o seu modo poético de compor. O autor sabe da importância do conteúdo, assim como

reconhece o valor estético de sua escrita. Por isso, ele se esforça voluntariamente para

que seu texto consiga passar graça e leveza, recriando a fala coloquial, com um tom

poético por excelência.

Em Quantas madrugadas tem a noite, há várias passagens em que o autor utiliza,

por intermédio do narrador, uma metalinguagem, tecendo, desta forma, comentários

acerca de seu estilo de escrever, cujo encantamento despertado levou alguns críticos a

denominarem sua linguagem de “proesia: essa fusão e confusão de gêneros no ponto em

que a razão se afoga.”. (OLIVEIRA, 2006).

Seguindo o conselho de Manoel de Barros sobre a palavra poética, o narrador

ondjakiano, em meio às próprias divagações, reflete: “[...] as palavras são as que nós

quisermos, significado delas tá no nosso coração.” (ONDJAKI, 2004, p 32). As palavras,

para Ondjaki, têm uma pluralidade de significados e ritmos, pois ganham nova vida a

partir de cada contexto em que são empregadas. Tal pensamento se assemelha ao da

menina Ynari, protagonista do livro infantil do autor, sempre apaixonada pelas palavras,

porque sabedora de que os sentidos desta são relativos: “Ynari aprende que a palavra é

um instrumento vivo, que se transforma e renasce a cada dia.” (SANTANA, 2007, p 96).

79

Os sons são muito importantes na escrita de Ondjaki. Dão um grande ritmo poético

ao seu estilo, cheio de assonâncias: “Saltou, mergulhou, demorou” (ONDJAKI, 2004, p

21); onomatopéias: “chiuuu”, “bzzz-bzzz”, “zumb-zumb, zum-zum e zain-zain” (Idem, pp

15, 17, 140); pontuações expressivas: “ó!, mô Jaí?!,”, “ahhhhhhhhh!!!” (Idem, p 163,

176); anáfora: “nosso mar, nossa canoa, nós dois – nossa amizade nesta mesa” (Idem, p

46), entre outras figuras de linguagem.

Há muitas figuras poéticas, como, por exemplo, a descrição dos cheiros. Até

mesmo “o fedor da catinga”, segundo o narrador, não é encarada com asco, mas como

uma característica que ajuda na recriação mental da cena, por mais que não seja um

cheiro agradável, remete a algo bom, seja um lugar, uma pessoa, ou certa ocasião. Essa é

uma característica sempre presente nas obras ondjakianas.

Muita das vezes, entretanto, para perceber conscientemente o cheiro, a pessoa tem

que estar propícia a senti-lo. Não é possível, se estiver fechada às sensações; é

necessário um grau de entrega à natureza; é preciso contemplar o meio. Somente assim é

possível perceber “outros cheiros deliciosos na terra do depois de chover.” (ONDJAKI,

2004, p 96).

Ondjaki nos mostra que, em suas andanças literárias, o pó das sandálias trazido de

todas as partes serviu para ser transformado em poesia. No romance por nós analisado

nesta dissertação, o narrador explica: “Minhas poesias são minhas viagens, umas e

outras, verdadeirosas e imaginadas, brilho dentro de mim, entornado.” (ONDJAKI,

2004, p 59). Mais uma vez, a escrita de Ondjaki revela estar num entre-lugar, entre a

ficção e o real. A palavra “verdadeirosa” pode ser entendida como a mistura dos

vocábulos “verdadeira” e “mentirosa”. Com isso, podemos interpretar que, no texto,

nada é verdadeiro por excelência; por mais que seja baseado no real, sempre há um juízo

de valor por trás do que se escreve, e o conceito de “verdade” também pode ser muito

80

relativo e perigoso. Em Quantas madrugadas tem a noite, ao se utilizar de pessoas

conhecidas para compor suas personagens, o autor se justifica, através do narrador,

asseverando que: “[...] e ninguém que venha aqui nos falar dos respeitos se estamos a

falar dos outros ou não, porque isto também é um acto artístico [...]”(ONDJAKI, 2004, p

171).

Contudo, por mais inventadas que possam ser, suas estórias são fundamentadas em

suas vivências, em tudo o que já leu, sentiu, ouviu, viu e cheirou. Por isso, a idéia de

que a poesia deve ser vivida e não feita, conforme o narrador comenta: “[...] a poesia

não se faz, se vive; a poesia não se procura tipo diamante, se encontra tipo arco-íris: ou

há ou não há – sorte e azar dos olhos no depois da chuva.” (ONDJAKI, 2004, p 121).

Ondjaki se sente privilegiado por conseguir encontrar o “arco-íris” depois da chuva. A

poesia, nesse sentido, pode ser vista como pequenas alegrias, cujas cores podem ser

encontradas em meio às tempestades da vida.

Para explicar bem a idéia de que a “poesia não se faz, se vive”, o autor insere, em

sua obra, vários momentos em que o narrador divaga sobre a vida, criando metáforas

para esta ao compará-la com diversos tipos de arte, como, por exemplo, a carnavalesca

[“A vida não é um carnaval? Vou te mostrar alguns dançarinos, damos e damas, diabo e

Deus, a maka59 da existência.” (ONDJAKI, 2004, pp 13-14)], a teatral [“E a vida?,

esqueceste esse palco puramente verdadeiro a acontecer todos os dias[...]” (ONDJAKI,

2004, p 35)], a musical [“Vida? – piano das teclas e das músicas desconhecidas, nós só

aqui sentados bitôuvens desta tarde mulata, ou essa parte do dia não pode ser mestiça?”

(ONDJAKI, 2004, p 57)] e a novelística [“A vida é mesmo uma novela, em vários sítios

do mundo, no Brasil também, mas principalmente aqui em Angola [...]”(ONDJAKI,

2004, p 80)].

59 Questão, problema.

81

Ao dar sentido artístico à vida, Ondjaki dilui as fronteiras entre o real e a ficção,

mostrando que, assim como a arte “imita” a vida, a vida também pode “imitar” a arte. A

realidade, muitas vezes, pode ser menos passível de credibilidade do que o ficcional:

“Quer dizer, agora eu te ponho: a vida sempre é mais complicada mas também mais

mágica que o imaginado.” (ONDJAKI, 2004, p 182). Não se pode afirmar o que

realmente aconteceu ou não em seu romance, e isso é um dos pontos que faz a leitura ser

interessante, pois deixa vários sentidos em aberto.

Segundo o escritor e ensaísta mexicano Octavio Paz, em seu livro A dupla chama:

amor e erotismo, “a relação entre o erotismo e a poesia é tal que se pode dizer, sem

afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal”. (PAZ,

1994, p 12). Com esta afirmação, podemos constatar que o erotismo é mais uma forma

de poeticidade, que também se faz presente em Quantas madrugadas tem a noite. Ao

tecer comentários acerca dos tipos de linguagens existentes, Ondjaki privilegia a

corporal, afirmando ser esta a melhor forma de comunicação humana:

Meu, verdade mesmo pra falar, não é mais na boca das palavras – é nos corpos, ou não é assim? Você quando nasce sabe falar? Não. Mas sabe gritar, espernear, quer dizer, usa as cordas vocais do grito nisso que é a tua urgência – mamar na tua mãe, por isso que eu digo, o nené encosta ali, mama e adormece nas primeiras felicidades dele, calor de xuxa60 na boca, nenhum frio mais – sonha só, primeiro sonho estreado neste nosso mundo das aventuras verídicas que eu te ponho. Muadiê: o corpo é que sabe e nenhumas outras linguagens lhe ganham – sentir é sentir, comer é comer, e foder é foder, ou tou a falar errado? (ONDJAKI, 2004, pp 107-108, grifo nosso).

Quando o narrador ondjakiano comenta sobre as “primeiras felicidades” do

indivíduo ainda bebê, ao ter a experiência de mamar no seio materno, ele relaciona este

momento ao que Freud denomina como fase oral, visto ser esta o primeiro estágio do

desenvolvimento humano. Nela, as necessidades, percepções e modos de expressão do

60 Seio materno.

82

bebê estão originalmente concentrados na boca, lábios, língua e outros órgãos

relacionados com a zona oral. E estas necessidades, segundo Freud, são libidinais, ou

seja, eróticas por excelência. E, referindo-se a essa teoria freudiana, Ondjaki apresenta o

erotismo – essa poética corporal – como algo presente desde as primeiras necessidades

do indivíduo.

A necessidade da comunicação através da linguagem corporal amadurece na fase

adulta e o erotismo aparece de modo mais evidente:

Mulheres, avilo? Nossa outra metade de nós, no mundo, e na cama nos encontramos, ou não é assim?, os corpos, os tantos líquidos, sexo das liberdades do nosso corpo na felicidade de nos virmos só assim, colados, ser humano dentro da ser humana, kinjango61 bailando na kibiona62 suave do amor, ai uê, felicidades, muadiê, felicidades mesmo! (ONDJAKI, 2004, pp 50-51).

Neste balé entre os corpos, há uma pulsação, um desejo de criação. E isto gera

prazer. O erotismo tem embutido em si um intenso sentimento de força vital. Assim

também acontece com a palavra africana, pois, de acordo com o filósofo Hampâté Ba,

“uma vez que a palavra é exteriorização das vibrações das forças, toda manifestação de

força [...] será considerada sua palavra. Por isso no universo tudo fala, tudo é palavra

que toma corpo e forma.” (BÂ, 1993, p 16). Erotismo e palavra (principalmente a

poética) estão fortemente ligados à vida; por isso, Octavio Paz consegue estabelecer

perfeitamente a relação entre estes termos. E ainda com relação a esta similaridade entre

escrita poética e erotismo, Roland Barthes vai-nos dizer que a escritura é “a ciência das

fruições da linguagem, seu kama-sutra [...]” (BARTHES, 2004, p 11).

Por ser relacionada à vida, a poesia, muitas vezes, é vista como feminina: local

fecundo, terreno muito propício para gestação de idéias. Poeticamente, em mais uma das

várias divagações do narrador, são tecidas comparações entre a lua e a mulher:

61 Órgão sexual masculino. 62 Órgão sexual feminino.

83

Muadiê: vais-me dar de maluco s’eu te disser que a lua é uma mulher? Mambo que eu gosto mesmo com força – ficar só aí, deitado na noite, olhar a lua: branca, marela, vermelha também já vi, cheia, cheiina, invisível, triste, húmida-molhada, escondida nas nuvens, a desaparecer no mar, a aparecer na tarde, as formas todas. Mambos dos chineses, conheces?,tão a falar sempre nas divisões in-iangue, assim pesado-leve, cheio-vazio, claro-escuro, a lua pros chineses é in, quer dizer feminina... (ONDJAKI, 2004, p 41).

O erotismo está latente nesta passagem, onde as fases lunares são apreciadas e

vistas como semelhantes às femininas. A lua é contemplada durante a noite, que, além

da conotação negativa a que já nos referimos anteriormente, pode significar, para a

poesia, o tempo do nascimento, pois o período noturno é o preferido pelos poetas para

suas criações. O narrador comenta a certa altura da narrativa: “[...] de noite é que perco

vergonha de ser eu mesmo e abro as torneiras do imaginado [...]” (ONDJAKI, 2004, p

110). Desta forma, mulher e noite estão ligadas à poesia por serem, respectivamente,

espaço e tempo fecundos, locais férteis para a imaginação criadora.

Como já vimos, a poesia está ligada à vida; e, para Misrahi, um estudioso de

Spinoza, “é esse prazer existencial e consciente de ser e de existir como sujeito e como

vida que chamamos de alegria”. (MISRAHI, 2001, p 33).

Traços de alegria estão presentes em Quantas madrugadas tem a noite, não só nas

experiências contadas. Conseguimos encontrar alegrias também na noite, já que “os

olhos brilham mais é na escuridão [...]” (ONDJAKI, 2004, p 110).

Chegando ao fim de nossa análise, passaremos, a seguir, às conclusões, onde

buscaremos deixar claras as metáforas, imagens e estratégias narracionais que, na ficção

de Ondjaki, transformaram a noite em madrugadas e estas, em alegrias.

84

6. CONCLUSÃO

Para mim, um camaleão solitário de rosto virado para o chão não esqueceu nunca a cor do Sol. Ele apenas busca a certeza daquilo que já pressentiu: que é num chão profundo que o arco-íris esconde e inventa as suas raízes.

Ondjaki63

Ao final de nossa análise, concluímos que os textos de Ondjaki, embora focalizem

problemas existentes em Luanda, não passam desânimo e pessimismo. A visão otimista

do escritor, mais uma vez, pode ser percebida na epígrafe que escolhemos para esta

parte de nossa dissertação: um animal que, à primeira vista, parece cabisbaixo e

solitário, é interpretado como esperançoso e sonhador, pois consegue ver, num chão

desértico, a possibilidade de encontrar as raízes do arco-íris, embora, para isso, precise

fazer uso da imaginação. Este arco-íris, que surge no deserto, é outra metáfora para a

idéia de alegria em meio ao desencanto. Suas cores podem ser comparadas aos vários

matizes das diversas alegrias existentes em Quantas madrugadas tem a noite.

Mesmo que o camaleão não encontre, naturalmente, o arco-íris, seu imaginário é

capaz de criá-lo. O ato de inventar em si é movido pela alegria: o impulso de tentar

concretizar um sonho anima a criação. Assim, Ondjaki é motivado a criar suas estórias;

suas personagens são construídas artesanalmente, sendo únicas em suas características.

E os cenários são moldados em torno desses seres de papel que povoam as estórias.

Todo livro é movido por uma vontade de escrever, cuja alegria se dá pelo próprio

prazer de contar a estória. Ao escrever esta, o autor também se torna leitor, o primeiro

da obra que nasce. Há uma sensação de encantamento na leitura que o impulsiona a

continuar produzindo: se ele não acreditar naquilo que narra ou descreve, ou recomeçará

63 ONDJAKI. In: PADILHA e RIBEIRO, 2008, p 51.

85

todo o livro ou simplesmente parará de escrevê-lo. Não há a possibilidade de criar um

bom livro por obrigação. A alegria de escrever se estenderá enquanto o livro estiver

sendo elaborado; mas, ao mesmo tempo, quando a obra estiver terminada, haverá a

alegria de ter criado o livro, algo que ninguém pode tirar do autor, já que é um trabalho

feito. Ainda sobre o prazer da escrita, Mia Couto, em seu livro Pensatempos, nos atenta

para o fato de que “o escritor não é apenas aquele que escreve. É aquele que produz

pensamento, aquele que é capaz de engravidar os outros de sentimento e de

encantamento.” (COUTO, 2005, p 63).

Também a alegria de ouvir é considerada, por Ondjaki, um verdadeiro dom. O fato

de o interlocutor do romance Quantas madrugadas tem a noite ser apenas um ouvinte

não o desmerece; o próprio narrador percebe a importância deste na narrativa: “Ouve

inda, quero te agradecer puramente, ouviste bem a minha estória. Afinal, não só aquele

que conta que conta: quem escuta calado também faz a estória.” (ONDJAKI, 2004, p

188). A cultura oral angolana sempre foi muito forte em Luanda e em outros locais,

remetendo a raízes muito longínquas. Ondjaki tenta recriar o prazer da escuta, uma vez

que este dom tem sido desvalorizado na Angola de hoje, que, em grande parte, fica, em

silêncio, a assistir televisão, perdendo o hábito de ouvir estórias contadas pelos mais

velhos.

Assim como existe a alegria em ouvir, cada um tem uma estória para contar.

Ninguém é só ouvidos, e ninguém é só contador – esta é uma lição que podemos

depreender deste romance de Ondjaki. Nele, as narrativas se misturam, as experiências

de outros são matéria-prima para o escritor ampliar as suas próprias estórias.

No conto "No galinheiro, no devagar do tempo", do livro Os da minha rua,

Ondjaki diz que o melhor momento do dia era quando, terminado o capítulo da novela,

desligavam a televisão e iam para fora para contar o que havia ocorrido, cada um

86

aumentando e modificando a estória à sua maneira, criando, dessa forma, o prazeroso

ato de narrar, próprio da tradição oral.

Em Quantas madrugadas tem a noite, encontramos a alegria de amizades

verdadeiras. A relação entre as personagens não é só de coleguismo, algo meramente

casual. Todas as personagens sabem um pouco da vida das outras, conhecem ou

vivenciaram suas histórias. A amizade aparece, neste contexto, isenta de falsidade, não

sendo conveniente por fatores como dinheiro e demais interesses. Ao contrário, essa

amizade se constrói, sem preconceito de raça, credo, opiniões. O afeto por pessoas de

caráter diametralmente oposto é possível, como no caso do anão malandro com o albino

honesto. Assim como acontece nesse tipo de relacionamento, muitas amizades têm

também suas raízes na infância, não se desfazendo na idade adulta. Os laços afetivos são

tão fortes, no romance analisado, que chegam a ser mais importantes que os sanguíneos.

PCG, por exemplo, era considerado como um parente por Burkina. O amor entre Jaí e

KotaDasAbelhas também é livre de qualquer preconceito, visto que ambos não dão

importância ao albinismo de um, nem à velhice da outra, uma vez que, segundo o

narrador, “o amor tem retalhos que a razão num sabe costurar.” (ONDJAKI, 2004, p 68).

E o amor, segundo Spinoza, nada mais é do que “uma alegria concomitante à idéia de

uma causa exterior”. (SPINOZA, 2002, p 211).

Outras formas de extravasar a alegria são a dança e o canto, tradicionalmente

presentes na cultura africana. Em Quantas madrugadas tem a noite, Burkina cria uma

música em homenagem ao amigo morto, para cantar em seu enterro. Mesmo num

momento de tristeza, ele sentiu alegria em compor a música e prestar sua homenagem ao

seu grande amigo. A dança pode ser vista como um modo de exteriorizar sentimentos

reprimidos. Em alguns momentos da história angolana, não se podia ir contra uma série

de situações políticas: regras rígidas eram impostas, limitando as ações do povo. E era

87

na dança que os povos encontravam um momento de serem eles mesmos, se expondo,

sem regras delimitadoras.

A alegria de viver pode ser considerada a mais importante dentre as analisadas. A

luta pela vida é uma constante em locais atingidos pela guerra. O narrador tem vontade

consciente de viver, e viver em Luanda – não queria estar ou ter nascido em outro lugar.

Ele e o povo são apaixonados pela cidade, trabalham e torcem para que ela cresça e

prospere. Não têm o hábito de compará-la com outras cidades do mundo, considerando-a

a melhor cidade existente: “Meu, sabes qual foi o mô maior susto nestas mortes

temporárias? Foi não poder voltar mais [...] saudade da minha terra [...]” (ONDJAKI,

2004, p 192).

Com relação à alegria de viver, pensamos como Misrahi, que defende, em seu livro

A felicidade, ensaio sobre a alegria, a seguinte opinião sobre o projeto de uma

existência feliz: “Esse projeto não é inviável, muito menos impensável: a reflexão,

quando transfigura o desejo, coloca a felicidade à nossa porta.” (MISRAHI, 2001, p

122). As estórias de Ondjaki tecem reflexões, transfigurando o real vivenciado e

colocando as alegrias em destaque. Assim, todas as cores do arco-íris dessas pequenas

alegrias conseguem se sobrepor à aridez caótica da realidade social de Luanda, devido à

esperança presente em Quantas madrugadas tem a noite.

O filósofo Ernst Bloch, na obra O princípio esperança, concebe a esperança como

ativa e maior do que o temor, visto que este é passivo; segundo o filósofo, a “espera,

colocada acima do ato de temer, não é passiva como este, tampouco está trancafiada em

um nada. O afeto da espera sai de si mesmo, ampliando as pessoas, em vez de estreitá-

las” (BLOCH, 2005, p 13). Bloch ainda afirma que todo ser humano, na medida em que

almeja, vive do futuro. Isto quer dizer que a esperança não é, portanto, uma propensão a

perder-se na crença de um futuro melhor; ao contrário, ela nos impulsiona para frente,

88

criando em nós o desejo de construir, no presente, o futuro. A desesperança, para Ernst

Bloch, é insuportável às necessidades humanas, uma vez que a esperança amplia os

horizontes dos seres humanos, fazendo-os agir, no presente, para alimentá-la, com o

intuito de transformar as dúvidas em certezas.

E é essa esperança ativa, funcionando como um motor da vida, que aparece em

Quantas madrugadas tem a noite. A esperança de ver chegar “a paz não só das armas

pararem de cuspir fogo, mas a paz de todos sentarmos mais outra vez numa só

fogueira e rirmos, rirmos só de nenhum assunto especial, rirmos sabendo no coração

que estamos mesmo só a rir de coisa nenhuma, se a paz pode ser chamada de coisa

nenhuma ou se aqui devíamos masé chamar a paz de a coisa toda.” (ONDJAKI, 2004, p

194, grifo nosso). Percebemos nessa passagem que Ondjaki tem a esperança de

reinventar o tempo das crianças em volta da fogueira, aprendendo “coisas de sonho de

verdade” (MINGAS, Rui; RUI, Manuel e VILA, Martinho da, 1975).

Sabemos que a alegria e a esperança são apenas duas das muitas e inesgotáveis

temáticas sugeridas por este romance de Ondjaki que analisamos. Mas, esperamos ter, de

alguma forma, contribuído com esta nossa leitura de Quantas madrugadas tem a noite,

embora sabendo que esta se abre a múltiplas interpretações. Acreditamos, contudo, que

nossa dissertação poderá ser útil aos próximos estudos sobre esta obra de Ondjaki.

Partindo da idéia de que uma conclusão pode recuperar idéias propostas na

introdução, observamos que Ondjaki resolve “obedecer” a esta regra, retomando seu

pensamento inicial, pois o narrador, antes de começar a contar sua estória, revela

poeticamente: “Sabes o que é não sentir o coração e sentir o coração, tud’uma batida só,

sangue leve no peito e lágrimas limpas a escorrer? Faz conta foste na pesca, rede e tudo,

em vez do peixe grande meteste a rede na água e te veio uma nuvem?” (ONDJAKI,

2004, p 13). Nuvem surge aí com duplo sentido: ao mesmo tempo em que aparece,

89

porque, quando estava morto, era só o que podia pescar no céu, também significa sonho,

podendo sua estória ser baseada nesta nuvem pescada inicialmente, conforme desvenda

aos leitores, na conclusão do livro:

O lagrimar dos olhos? Meu novo nascimento: sabes o que é não sentir o coração e sentir o coração, tud’uma batida só, sangue leve no peito e lágrimas limpas a escorrer? Assim foi voltar e acreditar na estória de ir na pesca e apanhar nuvem em ver do peixe para grelhar. Poesias, estórias de sentar na revolta duma fogueira...? (ONDJAKI, 2004, p 195, grifo nosso).

Terminamos, aqui, nossa dissertação, a refletir sobre as alegrias encontradas na

noite, verdadeiros “brilhos da madrugada”. (ONDJAKI, 2004, p 110). Madrugadas de

esperança, que, nas noites de guerra, levaram “brilhos” e centelhas de alegria aos

corações dos meninos que ouviam estórias e brincavam em meio à fome e aos inúmeros

ódios ali presentes. Concluindo, observamos, portanto, que as estórias e as alegrias

despertadas por estas constituíram-se em fortes elementos de resistência que fizeram a

vida triunfar, apesar de tantas mortes e de tantas destruições ao redor. Fechamos nosso

estudo a pensar sobre as madrugadas que, assim como as alegrias, podem ser

encontradas na noite, pois afinal, “uma noite, quantas madrugadas tem? [...] uma só

noite tem bué de madrugadas; cada uma dessas madrugadas tem bué de brilhos”

(ONDJAKI, 2004, p 110).

90

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTI, Verena. O riso e o risível: na história do pensamento. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2002. ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião de 10 livros de poesia de Carlos

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97

8. ANEXO

Entrevista com Ondjaki, realizada por e-mail, em 12 de julho de 2008.

Olá, Ondjaki,

Seguem abaixo algumas perguntas sobre o livro Quantas madrugadas tem a noite,

pois se trata do romance em que se centra a minha dissertação. Gostaria de que

explicitasse a relação de algumas personagens deste romance com outras obras suas,

pois reservo um capítulo não só à intertextualidade, mas à intratextualidade que ocorre

em alguns de seus livros.

HELOISE: Sua escrita é permeada por um tom poético. No livro Quantas

madrugadas tem a noite, o narrador explica que a poesia não se faz, se vive. Comente

um pouco sobre essa concepção de poesia.

ONDJAKI: Não sei como comentar. Sinceramente. AdolfoDido é que tem essas

frases como sonho de verdade ou verdades sonhadas, o que vai dar ao mesmo. Mas

penso que seria algo em torno de que não adianta fazer-se um grande esforço para se ser

poeta. Acho que ele acha que a poesia vem, aparece, e, sobretudo, brota de dentro. Vai-

se vivendo para depois escrever, não se pensa para depois escrever poesia. Mas é preciso

levar em conta todos os estados de desiquilíbrio mental e etílico de AdolfoDido.

HELOISE: Sabemos que Quantas madrugadas tem a noite foi publicado pela

Editora Caminho em 2004. Este livro chegou a ser editado anteriormente em Luanda?

Em que ano ele foi escrito?

ONDJAKI: QMTN foi publicado simultaneamente em Angola (Nzila) e Portugal

(Caminho). O grosso do livro foi escrito entre 16 de fevereiro e 1 de março de 2002.

Logo após ter concluído o livro Ynari...

98

HELOISE: Em Bom dia camaradas e Os da minha rua, as personagens que

habitam as narrativas são pessoas reais ficcionalizadas. Já em Quantas madrugadas tem

a noite, a presença de personagens-tipo é mais constante. Essas personagens também são

baseadas em indivíduos reais?

ONDJAKI: Há situações que derivaram directamente da vida real. A estória central

do livro, o enterro de AdolfoDido, foi-me contada por telefone, pela minha mãe. Alguém

próximo da família tinha ido a um enterro onde se debatia justamente a questão de quem

seria a viúva mais oficial, se a senhora que se havia casado no civil com o morto, se a

actual amante. Também é verdade que um homem morreu num hospício em Luanda, e

que foi raptado da morgue do hospital para receber uma segunda autópsia no Hospital

Militar de Luanda. A partir daí começa a minha viagem de escritor.

A personagem PCG também é baseada numa criança de rua que eu conheci muito

bem e que tinha uma estória semelhante à que se passa no livro. Por outro lado, a

KotaDasAbelhas é uma personagem directamente baseada numa mais-velha, angolana,

mas que vivia em Portugal, num apartamento, com um cão enorme que lhe ocupava,

sobretudo, a sala.

As abelhas também são de inspiração real, uma vez que a nossa casa de praia

esteve, por duas ocasiões, completamente tomada por abelhas, impedindo-nos, mesmo,

de a frequentar. Lembro-me de que íamos à praia, e íamos ver se as abelhas “estavam

em casa”. Se elas estivessem, fazíamos na praia, perto da água, pousávamos as coisas, as

bebidas, as comidas, e não entrávamos em casa. Até que um dia o meu pai e um amigo,

vestidos com imensa roupa e capacetes de moto, foram exterminar as abelhas com o

inseticida próprio. A quantidade de mel encontrada no texto falso da casa impressionou-

me, eram litros e litros de mel, muito bom. Chegamos a comer desse mel.

99

HELOISE: No desfecho do conto “Padre mata anjos”, do livro Momentos de aqui,

é dito que a igreja da praia do Bispo só reabriria com o enterro de Sankara. Essa

personagem tem ligação com o primo do narrador do conto “Nitó que também era

Sankara” de Os da minha rua? Para além disso, esse primo apelidou o narrador de

Adolfo. Qual a relação desta personagem com AdolfoDido de Quantas madrugadas tem

a noite?

ONDJAKI: Na realidade, Nitó, ou Sankarah, ou ainda Nilton João (seu nome de

baptismo e civil) era um primo meu que morreu muito jovem, de câncer, quando eu era

um miúdo. Justamente, eu devia estar a concluir a 9ª classe quando o Nitó faleceu. Dois

anos antes, ele chegou a viver na minha casa. E ele tinha essa brincadeira de me chamar

de Adolfo, e daí retirei apenas o nome. Quando o narrador diz que a Igreja só reabriria

anos mais tarde, com o enterro do Sankarah, essa informação não corresponde à

verdade, porque a Igreja nunca foi encerrada. Mas é verdade que havia um Padre na

Praia do Bispo que foi expulso da paróquia devido a comportamentos pedófilos.

HELOISE: O padre, que foi acusado de ter violado a personagem Paurlete, no

conto “Padre mata anjo”, é o mesmo que, no livro Quantas madrugadas tem a noite,

aparece dando bênção ao filho da própria Paurlete? E mais, há a possibilidade desse

padre ser o pai da criança?

ONDJAKI: Não se diz que se trata do mesmo Padre. Dificilmente seria o mesmo.

E também não tenho informações, verídicas ou literárias, que o filho da Paurlete possa

na realidade ser também filho do Padre Inácio.

100

HELOISE: Em Quantas madrugadas tem a noite, a citada visita ao sítio de Manuel

de Barros ocorreu de fato?

ONDJAKI: Para a personagem, ocorreu, claro. É isso que esta diz, acredita quem

quiser. Pelos vistos, antigamente, houve alguma delegação que visitou o Brasil, e por

alguma razão, esteve com o mais-velho Manoel de Barros.

HELOISE: No conto “Os óculos da Charlita”, do livro Os da minha rua, Gadinho

aparece como amigo de infância da personagem principal. Em Quantas madrugadas tem

a noite, uma personagem também se chama Gadinho. Há alguma relação?

ONDJAKI: Provavelmente, deve ser a mesma pessoa...

HELOISE: No recente encontro com os escritores Pepetela e Inês Pedrosa,

realizado dia 9 de julho, estes divergiram quanto ao que é mais importante para a

escrita: o conteúdo ou a forma. E para você? Qual a sua principal preocupação: com a

forma ou com o conteúdo? Ou com os dois? Concorda com a idéia de Inês Pedrosa de

que todas as estórias já foram contadas?

ONDJAKI: A minha preocupação costuma ser com a estória. Ter uma boa estória,

ou pensar que tenho uma boa estória, ajuda-me a escrever. Não gosto de escrever por

planejamento lógico, gosto mais de ser invadido pelo gosto literário de escrever para

contar. Preciso dessa energia para seguir escrevendo. Não penso que haja apenas uma

escolha: ou forma ou conteúdo. Julgo que a forma de contar muitas vezes se transforma

também em conteúdo, isso é nítido em Guimarães Rosa, em Luandino, em Mia Couto,

em Manuel Rui.

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Sim, quase todas as estórias já foram contadas, passaram-se demasiados anos e

demasiados livros até a nossa época. O desafio, hoje em dia, talvez seja o de saber

recontar o que já havia sido dito. Ou de contar com texturas mais contemporâneas.

HELOISE: Assim como Pepetela, você é formado em Sociologia. Pepetela disse

que sua formação o ajudou a pensar melhor o coletivo para ficcionalizá-lo. Ser

sociólogo também faz diferença para você em suas criações artísticas?

ONDJAKI: Ainda não sei responder a esta questão. Mas é provável que sim. Como

indivíduo, mais do que como escritor, a Sociologia deu-me novos instrumentos e modos

de ver e pensar a sociedade. Deu-me ferramentas de análise e de comparação. E o

escritor é também o indivíduo que eu sou, com algumas das coisas que sei. É provável

que a Sociologia me afecte a escrita, mas também a música, as poesias que opto por ler,

os filmes que opto por frequentar, e até os livros que escolho não ler.

HELOISE: Você se considera um escritor otimista? Por quê? E suas estórias

também são otimistas?

ONDJAKI: Não saberia responder a isto... Não é intencional. Não é que eu queira,

mas acabo por ver que as minhas estórias não são pessimistas, não são em torno das

coisas negativas da vida. Ou pelo menos as minhas estórias não são tratadas de um modo

pessimista. Eu me considero um sonhador mais que um escritor. E me considero também

uma pessoa ainda livre e perdida na sua criatividade. Não quero definir nem

compreender, quero apenas viver. Ir sendo. Ir escrevendo, portanto.

HELOISE: Qual a importância da alegria em Quantas madrugadas tem a noite?

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ONDJAKI: Eu acho que a raiz da vida luandense tem muito a ver com a alegria,

com uma celebração que é constante e criativa. Acho que QMTN é um livro sobre vidas

em Luanda, sobre vidas angolanas. É nesse sentido que as celebrações caluandas64

tinham que aparecer, e apareceram.

HELOISE: Você acredita realmente ser possível, ainda hoje, encontrar alegrias em

meio ao desencanto social?

ONDJAKI: Sem dúvida. Os angolanos não fizeram outra coisa durante séculos e

séculos. Mudam as dificuldades, os tempos, os desafios, mas o povo segue enraizado

nesse modo de ser que é quase uma ficção constante, diária, contrariando o que não

interessa, o que tira a força, o que impede de dançar. Não é só a dança dos corpos, é do

olhar também, das mãos, da vida, do discurso. A guerra sempre foi a mancha nos nossos

prazeres...

64 Luandenses.