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Ípsilon “A Rede Social” é o filme de David Fincher sobre o multimilionário mais jovem do momento, Mark Zuckerberg. Em pano de fundo, a criação da plataforma da internet pela qual todos comunicamos: o Facebook. “Like”? Mark Zuckerberg, o “geek”, o “rico mais pobre”, o solitário. Mas não estamos todos sozinhos? Dossier Ípsilon 21 pessoas gostam disto. 22 pessoas gostam disto. 24 pessoas gostam disto. Ípsilon Mark Zuckerberg, o criador da maior rede social do mundo, o Facebook, já admitiu que não gosta de aparições públicas. Para os padrões de quem declarou que “a era da privacidade acabou”, o “geek” sem dotes sociais tem-se mostrado recatado. É um produto de Harvard, o clube dos clubes americanos onde nas salas de aula se compete pelo comentário mais inteligente. Uma espécie de nação dentro da nação americana, que deixa um carimbo para a vida nos que lá entram. Viagem a Harvard à beira da estreia de “A Rede Social”, de David Fincher Ípsilon Os comportamentos e as relações entre as pessoas não mudaram com o aparecimento das redes sociais como o Facebook. Não vieram substituir as relações que temos com os outros, mas potenciar as que já existiam. Quem o diz é Gustavo Cardoso, investigador do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. “O que o Facebook conseguiu fazer bem tecnologicamente foi colocar em cima da mesa uma ferramenta que faz o que fazemos na nossa vida não mediada: a selecção” ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7512 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE Sexta-feira 29 Outubro 2010 www.ipsilon.pt

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Ípsilon “A Rede Social” é o fi lme de David Fincher sobre o multimilionário mais jovem do momento, Mark Zuckerberg. Em pano de fundo, a criação da plataforma da internet pela qual todos comunicamos: o Facebook. “Like”? Mark Zuckerberg, o “geek”, o “rico mais pobre”, o solitário. Mas não estamos todos sozinhos? Dossier Ípsilon

21 pessoas gostam disto.

22 pessoas gostam disto.

24 pessoas gostam disto.

Ípsilon Mark Zuckerberg, o criador da maior rede social do mundo, o Facebook, já admitiu que não gosta de aparições públicas. Para os padrões de quem declarou que “a era da privacidade acabou”, o “geek” sem dotes sociais tem-se mostrado recatado. É um produto de Harvard, o clube dos clubes americanos onde nas salas de aula se compete pelo comentário mais inteligente. Uma espécie de nação dentro da nação americana, que deixa um carimbo para a vida nos que lá entram. Viagem a Harvard à beira da estreia de “A Rede Social”, de David Fincher

Ípsilon Os comportamentos e as relações entre as pessoas não mudaram com o aparecimento das redes sociais como o Facebook. Não vieram substituir as relações que temos com os outros, mas potenciar as que já existiam. Quem o diz é Gustavo Cardoso, investigador do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. “O que o Facebook conseguiu fazer bem tecnologicamente foi colocar em cima da mesa uma ferramenta que faz o que fazemos na nossa vida não mediada: a selecção”

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Sexta-feira 29 Outubro 2010www.ipsilon.pt

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“Les Visages et les Corps” é o título geral do programa multidisciplinar que o Louvre inaugura já na próxima terça-feira, 2 de Novembro, e que se prolongará até 31 de Janeiro, mas é também uma espécie de obra de arte poliforme concebida pelo cineasta e encenador Patrice Chéreau, que sucede ao músico Pierre Boulez e ao escritor Umberto Eco como “grande convidado” do museu de Paris.

Filho de um pintor e de uma desenhadora, Chéreau “interessou-se desde muito novo pelas artes plásticas e o Louvre desempenhou um papel importante na construção da sua sensibilidade estética”, diz o director do museu, Henri Loyrette, acrescentando que convidou o realizador de “Intimidade” com a certeza de que “o seu envolvimento artístico seria total, no sentido em que se fala de obra de arte total”.

Feito de teatro e cinema, de exposições e leituras, de música e dança, o programa podia chamar-se simplesmente Patrice Chéreau, já que é esse o seu verdadeiro fio condutor. “Só sei

Patrice Chéreau total no Louvre

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Directora Bárbara ReisEditor Vasco Câmara, Inês Nadais (adjunta)Conselho editorial Isabel Coutinho, Óscar Faria, Cristina Fernandes, Vítor Belanciano Design Mark Porter, Simon Esterson, Kuchar SwaraDirectora de arte Sónia MatosDesigners Ana Carvalho, Carla Noronha, Mariana SoaresEditor de fotografi a Miguel MadeiraE-mail: [email protected]

Ficha Técnica

SumárioFacebook 6Todos ligados. E todos sozinhos?

Thierry Garrel 14Viu o futuro no documentário

John Lennon 16A vida depois dos Beatles

Tom Zé 22Um génio no laboratório da música brasileira

Gonçalo M. Tavares 28História de uma queda

Paul Gauguin 34O homem e o mito, revisitados em Londres

Edgar Martins 36Um português em Paris

40 objectos nos 40 anos do Arquivo da TateO arquivo da Tate celebra esta semana o seu 40.º aniversário mostrando ao mundo 40 objectos que contam uma história da arte britânica. Entre eles estão uma caixa de tintas de William Turner, o bloco de notas do historiador de

arte Kenneth Clark, pivô da série da BBC “Civilização”, a nota de suicídio do pintor Keith Vaughan, datada de 4 de Novembro de 1977 (“Não creio ter-me suicidado por nada se ter passado... 65 anos foram suficientes para mim... Não foi um completo fracasso”), uma carta de amor de Constable à mulher e outra de Bacon à agente Erica Brausen pedindo-lhe um adiantemento de 300 libras.

Ao jornal “The Independent”, o director da Tate, Nicholas Serota, explicou que o arquivo da instituição (com mais de um milhão de objectos) “é um tesouro de histórias da arte contemporânea britânica, dos artistas e dos seus círculos”. No ano do seu aniversário, a Tate enriqueceu substancialmente a colecção. Mais de 40 arquivos foram doados por artistas, instituições e cidadãos,

incluindo 30 mil fotografias tiradas por Gemma Levine, retratando, entre outras coisas, a ultima década da vida de Henry Moore. “Estamos profundamente agradecidos às muitas pessoas que generosamente nos ofereceram os seus arquivos”, sublinhou o responsável ao “The Independent”.

A exposição “40 Degrees of Separation” fica na Tate Britain até Fevereiro de 2011.

viver, ou produzir um objecto, um espectáculo, um filme, na primeira pessoa; estou em todo o lado, em todas as personagens, reconduzo tudo a mim mesmo e é isso que me dá energia para trabalhar”, explica o cineasta. Mesmo as muitas criações alheias que Chéreau convocou para este encontro no Louvre tornam-se, de algum modo, suas, peças de uma obra feita de muitas obras.

A destacar-se um centro neste estranho objecto sincrético que povoará, durante três meses, as salas e os corredores do Louvre, ele talvez possa encontrar-se na encenação de Chéreau para a peça “Sonho de Outono”, do norueguês Jon Fosse – o elenco inclui, entre outros, Valeria Bruni-Tedeschi, Marie Brunel, Pascal Greggory ou Bulle Ogier, que estará em cena no Louvre de 2 a 18 de Novembro, transitando depois para o Théâtre de la Ville.

Também o cinema não poderia faltar, com um programa

que cruza os filmes do próprio Chéreau com obras de várias épocas, desde o clássico “Aurora”, de Murnau, a “Hunger”, do cineasta e artista plástico Steve McQueen.

No domínio da música, um dos momentos mais

prometedores será o espectáculo “In der

Kindheit frühen Tagen”, uma

encenação de Chéreau a partir

das “Wesendonck

Lieder” de Wagner, interpretada pela

mezzo-soprano Waltraud Meier, que

cantará enquanto se desloca pelas

salas onde o Louvre concentra a sua colecção de pintura espanhola e

italiana do século XVII. O coreógrafo Thierry

Thieû Niang, colaborador regular de Chéreau, com uma peça criada expressamente para este programa, ou Mathilde Monnier, com uma recriação de “Um Americano em Paris”, são alguns dos contribuintes de “Les Visages et les Corps” em matéria de dança.

A acompanhar as várias iniciativas do programa, os visitantes do Louvre poderão ainda ver projecções de várias encenações de Chéreau, como as que realizou para “Fedra”, de Racine, “Lulu”, de Alban Berg, ou “Da Casa dos Mortos”, de Janácek. O Louvre exibirá ainda, a 6 de Novembro e em estreia absoluta, o documentário “Patrice Chéreau, le Corps au Travail”, de Stéphane Metge. Luís Miguel Queirós

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Chéreau preparou para o Louvre um programa à medida da sua personalidade de artista-sol

Bulle Ogier e Valeria Bruni-Tedeschi integram o elenco de “all stars” de “Sonho de Outono”, peçade Jon Fosse que Chéreau vai montar no museu

A nota de suicídio de Keith Vaughan e a caixa de pintura de William Turner

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medievais de Hidlegard von Bingen (Gramophone Award e o maior sucesso comercial da editora), as vozes de Matthias Goerne em “A viagem de Inverno” e de Ian Bostridge em “A bela moleira”, a escolha do guia Penguin para melhor gravação dos Quartetos com piano de Fauré pelo agrupamento Domus, a incontornável senhora

Bach, Angela Hewitt, com as Variações Goldberg, e diversos registos dos virtuosos Marc-

André Hamelin e Stephen

Hough. Entre as mais premiadas gravações contam-se ainda “Triodion”

de Arvo Part, a integral dos

Concertos para piano de

Rachmaninoff e concertos de Saint-Saens, os Trios com piano de Schubert pelo Florestan Trio, as Suites para violoncelo de Bach por Isserlis ou o Requiem de Victoria sob a direcção de David Hill. Todas as gravações passaram pelo crivo da crítica internacional e do passar dos anos: não desiludirão quem as ouvir.

A Hypérion faz 30 anos - e entra em saldosBoas notícias. São 30 CD, com grandes artistas, a metade do preço e vendidos avulso, para que o melómano possa usufruir apenas da música que lhe interessa. O motivo da edição são os 30 anos da Hypérion, considerada o Rolls-Royce das companhias discográficas por ser inglesa e ter uma grande qualidade técnica na captação do som, reconfirmada com o prémio Gramophone para melhor editora em 2010. Ao longo destas três décadas, ficou associada ao lançamento da carreira de grandes intérpretes do século XX e de algumas das mais recentes revelações no mundo da clássica, coleccionando prestigiados prémios da crítica especializada. A colecção que agora se apresenta reúne um historial digno de referência, com o disco de Emma Kirby dedicado às canções

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Salman Rushdie vai publicar as suas memóriasO romancista inglês de origem indiana Salman Rushdie vai publicar as suas memórias em 2012, com a chancela da Random House, que pagará uma pequena fortuna pelo privilégio. Os termos do contrato não foram divulgados, mas o jornal inglês “The Independent” garante que o valor em causa é da ordem dos milhões de euros. O anúncio foi divulgado na semana passada pela Random House, que tenciona publicar a obra simultaneamente em inglês, alemão e espanhol, distribuindo-a em diversos países, quer em versão impressa, quer nas modalidades de e-book e audiolivro.

Vencedor do Booker Prize e considerado um dos mais importantes ficcionistas da actualidade, Rushdie tornou-se mundialmente famoso no início de 1989, quando o então governante iraniano Ruhollah Khomeini lançou uma “fatwa” contra o escritor, apelando aos crentes muçulmanos para que o assassinassem. Rushdie

Estudantes querem salvar estúdio de Merce Cunningham

Os alunos do estúdio de dança de Merce Cunningham lançaram uma petição na qual apelam à organização responsável pelo legado do coreógrafo, o Merce Cunningham Trust, que crie uma nova estrutura para assegurar não apenas a continuidade da companhia de dança fundada por Cunningham, mas também a sobrevivência da escola onde a sua técnica vem sendo ensinada. Pouco antes de morrer, em 2009, Cunningham elaborou um detalhado plano para a protecção do seu legado artístico, que admitia a extinção da companhia que fundou e dirigiu durante décadas, mas deixava em aberto o destino da escola a ela associada. A petição agora lançada, que tem já perto de quatro mil assinaturas, preconiza a criação de um Centro Merce Cunningham, que englobaria quer a companhia, quer

o estúdio de dança, e que se manteria no local onde ambas sempre funcionaram: a residência de artistas Westbeth, em Nova Iorque, que acolhe, desde o início dos anos 70, companhias e artistas das mais diversas disciplinas.

Os estudantes que promoveram a petição afirmam-se convencidos de que o Merce Cunningham Trust pretende fechar em breve o estúdio e alertam para a necessidade de se preservar a única instituição onde futuros dançarinos poderão aprender a inovadora técnica criada pelo coreógrafo e pedagogo norte-americano.

E o melhor filme de todos os tempos é... “Chinatown”É um “underdog” - pelo menos um “underdog” das listas de melhores filmes de todos os tempos, onde normalmente vemos a reluzir um Hitchcock, um Ford, um Capra, eventualmente até um Spielberg, mas nunca um Roman Polanski. Na lista agora feita pelos críticos de cinema do “The Guardian” e do

“Observer”, Roman Polanski “it is”, e com “Chinatown” (1974), o filme que (e citamos o “Guardian”) “cimentou a reputação de Jack Nicholson como o melhor actor americano da sua geração”.

“Chinatown é uma poderosa peça mitológica, uma brilhante evocação de Los Angeles como deserto espiritual”, justificou o crítico Peter Bradshaw. Além de Nicholson, integraram o elenco Faye Dunaway, numa das suas mais magnéticas presenças no grande ecrã, e o

cineasta John Huston. O próprio Polanski tem um “cameo” no filme - pouco depois, nunca mais seria visto nos EUA, de onde fugiu, em desgraça, na sequência do seu envolvimento com uma menor (o penoso imbróglio judicial que se seguiu arrastar-se-ia longuíssimos anos, culminando em 2009 com a detenção do realizador na Suíça)

O filme de Polanski ficou à frente do “Psycho”, de Alfred Hitchcok, e do “Andrei Rubliev”, de Tarkovski, “ex-aequo” no segundo lugar da lista, e de “Annie Hall”, o terceiro melhor filme de todos os tempos. “2001: Odisseia no Espaço”, de Kubrick, “Breve Encontro”, de David Lean, e “Apocalypse Now”, de Coppola, ocupam os restantes três lugares dos “sete magníficos” da crítica do “Guardian” e do “Observer”, seleccionados a partir de sete listas temáticas (crime, romance, terror, cinema de autor, comédia, acção e guerra, ficção científica).

acabara de publicar “Os Versículos Satânicos”, livro que Khomeini considerou blasfemo e ofensivo para o Islão. Esta ameaça obrigou o romancista a viver anos numa quase clandestinidade, experiência de que nunca falou muito, mas que agora se dispõe a relatar no seu anunciado livro de memórias, no qual abordará também os seus sucessivos casamentos. A modelo, chefe de cozinha e apresentadora televisiva Padma Lakshmi, de quem se divorciou em 2007, era já a sua quarta mulher, depois da agente literária Clarissa Luard, que morreu com um cancro em 1999, de Elizabeth West, ex-

assistente editorial da Bloomsbury, e da escritora Marianne Wiggins.

Num comunicado enviado à imprensa inglesa, a Random House prevê que as futuras memórias de Rushdie sejam “uma evocação da vida pública e privada” do escritor, com capítulos dedicados à sua experiência como aluno estrangeiro em liceus e universidades britânicas, à sua evolução como escritor, às suas relações com as mulheres e filhos, e aos anos que viveu ameaçado pela sentença de morte decretada pelo ayatollah Khomeini.

Os anos da “fatwa” constituirão um dos capítulos mais ansiados das memórias que o escritor negociou por vários milhões de euros com a Random House

Trinta discos de referência da música clássica a metade do preço

A petição pela criação de um Centro Merce

Cunningham já tem perto de quatro mil assinaturas

“Chinatown” é “uma

brilhante evocação de Los Angeles

como deserto espiritual”

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Apoio:

EXPOSIÇÃO

PRÉMIO OJODEPEZ 2010A selecção das reportagens fotográficas premiadasA edição deste ano galardoou o trabalho de Giuseppe Moccia, fotógrafo italiano, que acompanhou odia-a-dia de Christopher, um jovem americano de 18 anos com Síndrome de Down.

AGENDA CULTURAL FNACentrada livre

APRESENTAÇÃO AO VIVO LANÇAMENTO EXPOSIÇÃO

Consulte todos os eventos da Agenda Fnac,assim como outros conteúdos culturais em http://cultura.fnac.pt

APRESENTAÇÃO

LIVROLivro de José Luís PeixotoEsta obra elege como cenário a extraordinária saga da emigração portuguesa para França.

MÚSICA AO VIVO

OS PONTOS NEGROSPequeno-Almoço ContinentalO single Rei Bã deu a conhecer este álbum com um vídeo que correu o país, via Internet, agradando a um público completamente transversal.

AO VIVO

PINTO FERREIRAPinto FerreiraEsta banda é responsável por canções que viajam por ambientes bipolares entre sentimentalismos ingénuos, amores obsessivos e a estupidez humana.

LANÇAMENTO

HOMENAGEM A ANTÓNIO SÉRGIOHenrique Amaro e Nuno Calado (Antena 3); Pedro Moreira Dias, Tiago Castro e Pedro Ramos (Radar); Nuno Galopim (DN / Radar) e Zé Pedro (Xutos & Pontapés) prestam homenagem ao “mestre” António Sérgio – radialista, produtor e divulgador de música portuguesa – numa emissão de rádio de 12 horas, ao vivo e em directo, no Fórum FNAC Chiado.

01.11. DAS 10H00 ÀS 22H00 FNAC CHIADO

26.09. - 05.11.2010 FNAC STA. CATARINA

30.10. 19H00 FNAC NORTESHOPPING31.10. 18H00 FNAC STA. CATARINA01.11. 18H00 FNAC GAIASHOPPING

30.10. 17H00 FNAC BRAGA PARQUE

29.10. 22H00 FNAC CASCAISHOPPING20.11. 17H00 FNAC NORTESHOPPING

20.11. 22H00 FNAC GAIASHOPPING21.11. 17H00 FNAC BRAGA PARQUE

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“Alien 3” (1992) passava-se numa pri-são psiquiátrica perdida no espaço. Em “Se7en” (1995) Kevin Spacey ha-bitava o seu próprio universo. Em “Fight Club” (1999) Edward Norton era um autista emocional. E em “Zo-diac” (2007) Jack Gyllenhaal fazia um tímido cartoonista que seguia obses-sivamente uma série de pistas que poderiam levar à descoberta de um assassino em série, enquanto a sua existência se ia desmoronando, até à solidão, ao isolamento.

Ao longo dos anos o realizador ame-ricano David Fincher foi criando ima-gens de clausura. Mas provavelmente nenhuma perdurará tanto na memória como a cena final de “A Rede Social”, quando vemos Jesse Eisenberg — no papel do criador do Facebook, Mark Zuckerberg – a fazer “refresh” do seu portátil, contemplando o ecrã, ou será mais apropriado dizer, o vazio?

É uma imagem forte pelo paradoxo que expõe: ali vemos o criador da maior rede social do mundo (500 mi-lhões de utilizadores, ou seja, se fos-se um país seria o terceiro mais po-puloso do planeta), alguém que

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o Facebook. “Like”? Mark Zuckerberg, o “geek”, o “rico mais pobre”, o solitário. Mas não estamos todos

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Nos anos 80 também os havia, nos fi lmes para adolescentes. Mas eram gentis. Agora querem mandar no mundo e não percebem porque é que as raparigas preferem sair com os bonitões e não com eles, que são capazes de reinventar a sociedade através das tecnologias: Mark Zuckerberg no fi lme (à esquerda) e na “vida real”

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colocou em ligação pessoas de 207 países e 70 línguas, o homem que transformou a forma como comuni-camos hoje, um solitário. Como se fosse o tipo mais sozinho do planeta, expondo a sua dificuldade – as rela-ções sociais, claro.

É uma representação irónica, da qual cada um retirará a sua leitura. A mais comum aponta para Zuckerberg ser um desastre com as mulheres. Para ser um disfuncional emocional incapaz de manter uma amizade. E por último, ter traído os que lhe eram próximos, ficando só. Uma outra ver-são possível é a de que é um desfecho que funciona como apaziguamento para o espectador.

Afinal é a prova que o rapaz que tinha 19 anos quando criou o Face-book — hoje tem 26 anos —, apesar de ser o mais jovem multimilionário do mundo, também tem fraquezas. Ou seja, o sucesso, o dinheiro, não é si-nónimo de felicidade. Ou noutra va-riação: as vidas simples têm por vezes mais sentido do que a dos ricos e fa-mosos. Mas essa é apenas mais uma leitura, num filme onde o estímulo advém dos níveis de interpretação possíveis. Sejam quais forem, Fin-cher, conhecido pelos filmes de vio-lência física, realiza aqui uma obra de violência emocional.

O hojeJá quase toda a gente o sabe. “A Rede Social” não é um filme sobre as impli-cações do Facebook – é-o tanto como “Touro Enraivecido” de Scorsese é um filme sobre boxe, por exemplo.

Não é sobre nós. É sobre ele, Zu-ckerberg. É um olhar sobre o momen-to de fundação da rede social e as condições em que se exerce a criação. É um filme sobre os conflitos em tor-no da propriedade intelectual, fun-cionando alternadamente como um filme para adolescentes (David Fin-cher já o descreveu como o “Citizen Kane dos filmes de John Hughes” ou “um filme adulto para adolescentes”), uma sátira social na linha das de Billy Wilder ou Joseph L. Mankiewicz ou uma alegoria da solidão.

Já foi comparado a “Citizen Kane” (1941), por contar a história de uma ascensão. Mas no filme de Orson Wel-les havia a subida e também a queda, ou a redenção se quisermos, do barão dos “media” William Randolph He-arst. No filme de Fincher apenas te-mos a ascensão. Ainda não houve tempo para uma possível queda. Essa é uma das marcas do filme. É o hoje. É este instante.

O ponto de partida foi o livro “Mi-lionários Acidentais“ do jornalista Ben Mezrich e uma pesquisa exaus-

tiva de Fincher e do argumentista Aaron Sorkin, o criador da série “Os Homens do Presidente”. Falaram com todos os protagonistas, com ex-cepção de Zuckerberg. Nesse sentido, é também o filme da versão dos acon-tecimentos daqueles que o colocaram em tribunal. E o próprio já veio a pú-blico afirmar que a sua vida não é tão dramática. “É ficção. Na minha vida não há tanto drama”, afirmou em Se-tembro no programa de TV de Oprah, a propósito do filme.

Talvez. Mas isso não significa que seja uma obra com as medidas de Hollywood. É um compêndio de ce-nas onde pessoas falam com pessoas em escritórios. E é centrado em com-putadores, sem grande dinamismo portanto, e sem perseguições de car-ros. Não há histórias de amor, embo-ra haja Erica (Rooney Mara), que cor-poriza o desejo de ascensão de Zu-ckerberg, que a tenta impressionar. Também não há estrelas, ok, do ci-nema, porque Justin Timberlake, que faz de Sean Parker, um dos criadores do Napster e um dos responsáveis

pelo triunfo do Facebook, é estrela da música.

Não há personagens positivas, da-quelas com que se cria empatia à pri-meira. O nosso herói, perdão, anti-herói, não sorri em nenhuma ocasião. E o final... Bem, o final. Quando mui-to nos últimos cinco minutos Zucker-berg converte-se em herói. Mas trá-gico.

É um filme dos personagens, do que dizem, do jogo entre elas, da for-ma rápida e perspicaz como o argu-mentista os faz falar. Os diálogos são como música, melodias em cascata, denotando uma extrema consciência da sociedade contemporânea e em simultâneo da memória das comédias da Idade de Ouro de Hollywood – Aa-ron Sorkin já afirmou que Howard Hawks foi uma das referências. E de-pois existe a câmara de Fincher. “O meu trabalho consistiu em dar aos actores o tempo de construírem a sua performance, dar-lhes tempo para explorarem”, afirmou.

Os ambientes também não são pro-priamente excitantes. A primeira

Em Harvard coabitam duas categorias de estudantes: os “genéticos”, que fazem parte de várias gerações de que ali foram parar, e “os inquietos”, com aptidões especiais, como Zuckerberg, que aspiram a frequentar os lugares exclusivos dos “genéticos”

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Drew Faust, presidente de Harvard, criticou “A Rede Social” pelo retrato que faz das mulheres. “As mulheres não parecem ser totalmente participantes na vida estudantil”, disse ao jornal da universidade “The Harvard Crimson”. E isso não corresponde à realidade que conhece, acrescentou.

Se Drew Faust tem razão nas críticas que faz ao fi lme, é matéria para outro debate. Mas a verdade é que ela é, desde 2007, a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da mais antiga universidade americana (fundada ainda antes do nascimento da nação, em 1636) e de uma das mais poderosas instituições académicas do mundo (tem o maior volume de doações do mundo, 26 mil milhões de dólares são os últimos dados). Ou seja, foram precisos mais de 371 anos para começar a mudar o género da cadeira do poder de uma universidade que pode ter tanto de génio como de conservadorismo.

O que da cultura masculina de Harvard aparece no fi lme, com os clubes, as festas, os concursos das raparigas mais giras feitos pelos rapazes nos seus dormitórios e as piadas sexistas é apenas uma parte da história. Essa hegemonia masculina não está tanto espelhada na demografi a estudantil, está mais na estrutura institucional. Ainda hoje, as mulheres representam apenas 24 por cento do corpo académico. E isso é uma das coisas mais visíveis quando se começa a ir às aulas e a ver, do lado de lá, quase apenas professores, quando do lado de cá, nas cadeiras, a demografi a é bastante mais heterogénea.

Não é apenas no retrato de género que o fi lme falha quanto a Harvard. Não agarra também o contexto em que Mark E. Zuckerberg aparece, fi cando-se, ao contrário, pelos clichés que retratam o “self-made man” americano.

O que faz de Harvard um sítio único não é o “status” social, com base no poder económico. O que faz de Harvard um sítio único é que nas salas de aula o que está em jogo é o poder da inteligência, a competição pelo comentário mais iluminado. Duas trocas de argumentos entre miúdos de 18 anos e fi ca-se arrumado (como raio vim aqui parar?). Mark E. Zuckerberg é também um produto deste ambiente...

O clubeNuma sociedade que se construiu com base na ideia de meritocracia, e que tem projectado a imagem de inexistência de classes sociais, Harvard funciona como um outro sistema de selecção, não dos melhores mas dos melhores dos melhores. É um elitismo que se orgulha ser baseado na competência intelectual. Com as suas onze faculdades, é O clube,

onde há os que lá estudaram e os que não estudaram, os que supostamente têm um segredo, o segredo do sucesso e da inteligência, e os que o querem saber. Lá dentro, cultiva-se este espírito com doses de confi ança maciça, misturada com a pressão para se ser o próximo Mark E. Zuckerberg.

Esta ideia de excepcionalidade faz parte da vibração diária da universidade e de Cambridge, a cidade onde fi ca, totalmente virada para a vida estudantil. Sabendo que, de facto, podem estar a formar o próximo Presidente americano, os professores lembram muitas vezes que Harvard não é só a universidade onde os futuros políticos americanos se vão formar – foi onde o Presidente Barack Obama estudou Direito –, é também onde actuais políticos do resto do mundo se querem formar.

Nas entrelinhas está a mensagem: “Quando vocês governarem o mundo...”. Porque o mundo passa por Harvard e o mundo quer ir a Harvard: o sistema de estrelato académico

– quem ensina, quem vai dar conferências, quem dirige o quê – faz muitas vezes lembrar a imagem de uma Hollywood intelectual.

Harvard projecta-se assim como um dos símbolos do orgulho Americano, uma espécie de América dentro da América, com o melhor que tem para oferecer. A “nação” Harvard deverá ser, aliás, das mais efi cazes armas do “soft power” americano (expressão cunhada pelo professor de Harvard Joseph Nye para se referir ao poder de atracção de um Estado). Tem os seus efeitos: quando foi à China, Drew Faust foi recebida com honras de Estado, num aparato que a deixou embaraçada, contou em Maio na Nieman Foundation for Journalism at Harvard.

Claro que é preciso ter dinheiro para estar em Harvard e a diversidade social da universidade tem sido debatida. Mas hoje, graças a imensas bolsas que pagam propinas (que variam entre os 22 mil e os 43 mil dólares anuais), o professor do secundário do Texas pode estar na mesma turma que o fi lho do ministro indiano ou que o sargento acabado de vir do Iraque.

Podia ser mais diversa? Podia, mas não deixa de o ser (então se compararmos com Portugal, não há legitimidade para críticas). E é essa diversidade, a diversidade racial e étnica, a diversidade de backgrounds, a diversidade intelectual que torna as salas de aula tão estimulantes.

Daí que para muita gente seja, de facto, uma experiência transformadora, daquelas que acontecem uma vez. Ir a Harvard é uma ligação para a vida, continuada na rede de Alumni e, hoje, dos endereços electrónicos – como se diz no fi lme, @harvard.edu é o mais poderoso e-mail do país. Isto para não falar da rede de contactos profi ssionais, feita com um intenso “networking” nas salas de aula, nos corredores e nos inúmeros eventos sociais organizados pela universidade.

Felizmente, a máquina tem consciência do poder da sua identidade e de como ela pode ser usada e abusada. Entre os vários cursos de liderança domina a ideia de responsabilidade social que o poder implica, uma mensagem constantemente repetida aos que entraram nesta bolha intelectual. Na sua aula fi nal, Ronald A. Heifetz, um dos mais cobiçados professores da Kennedy School of Government, não podia ser mais pés na terra. Basicamente, Heiftz lembrou que Harvard é um carimbo que se cola à identidade dos que lá estiveram e que pode, por isso, conferir uma autoridade merecida ou não, daí ser preciso manejá-la responsavelmente. Mas é apenas uma das muitas coisas que fazem parte da identidade da vida de alguém – é este mas que é para não esquecer. No fundo, não é para se

levar a máquina tão a sério.

Joana Gorjao Henriques esteve

em Harvard como Nieman Fellow em 2009-2010

A bolha intelectual de HarvardÉ o clube dos clubes americanos, onde nas salas de aula se compete pelo comentário mais inteligente. Uma espécie de nação dentro da nação americana, que deixa um carimbo para a vida nos que lá entram. Mark E. Zuckerberg é produto desse ambiente. Joana Gorjão Henriques

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Joana Gorjao Henriques esteve

em Harvard como NNiemie an Fellowow em 22009-22010

O que faz de Harvard um sítio único não é o “status” social, com base no poder económico. O que faz de Harvard um sítio único é que nas salas o que está em jogoé a competição pelo comentário mais iluminado

Drew Faust, presidente de Harvard, criticou o fi lme de Fincher pelo retratoque faz das mulheres

Harvard: o clube dos clubes americanos

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10 • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • Ípsilon

parte do filme é passada em Har-vard, onde coabitam duas categorias de estudantes, como disse recente-mente Fincher. Os “genéticos”, que fazem parte de três ou quatro gera-ções de familiares que ali foram parar e que estão destinados a grandes fei-tos – esses percebem todos os códigos e rituais da instituição, como os gé-meos Winklevoss (interpretados por Josh Pence) e o amigo Divya Narendra (Max Minghella), que acusaram Zu-ckerberg de lhes ter roubado a ideia original do Facebook. Depois existem os outros, “os inquietos”, os peque-nos génios, os que possuem aptidões especiais, como Zuckerberg. Os que tendem a inventar novas formas de vida social, que aspiram a frequentar os mesmos lugares exclusivos dos “genéticos”, mas que nunca perdem de vista o universo onde se sentem confortáveis: a quinze centímetros do ecrã do seu computador. São os novos “totós”.

Is this real?Nos anos 80 também os havia, nos fil-mes para adolescentes. Mas eram gen-tis. Agora querem mandar no mundo e não percebem porque é que as rapa-rigas preferem sair com os bonitões e não com eles, que são capazes de rein-ventar a sociedade através das tecno-logias.

A cena inicial é emblemática. Zu-ckerberg tenta impressionar a namo-rada, Erica, dizendo-lhe que as suas capacidades como programador aca-barão por fazer com que sejam aceites pela estratificada elite de Harvard. Na relação, ele mostra-se defensivo, con-descende, fanfarrão, e quando a con-versa derrapa, ela termina com ele, com este exclamando de forma indi-cativa: “is this real?”

Se o filme de Fincher é fiel à reali-dade, o Facebook nasceu a partir de uma série de acasos – mas não é sem-pre assim com as melhores ideias? Depois de ter sido afastado pela na-morada, Zuckerberg revela-se e “A Rede Social” passa a ser uma história de ressentimento, de ambição, de competição e de traição.

Depois de insultar Erica no seu blo-gue, com a ajuda do seu companhei-ro de quarto e melhor amigo, Eduar-do Saverin (Andrew Garfield), entra no sistema computorizado da univer-sidade, criando o sítio Facemash, que permite aos estudantes votarem na rapariga mais desejada. Em pouco mais de duas horas o tráfico entope o sistema, despertando a atenção dos gémeos aristocráticos Winklevoss, que acabam por contratar o progra-mador Zuckerberg para a criação de uma rede em Harvard.

Pouco depois, Zuckerberg acaba por fundar o Facebook com Saverin, que contribuiu com o capital inicial, criando uma infra-estrutura de comu-nicação que lhe permite ter a sua co-munidade virtual de “amigos”, como quem cria o que não tem.

É difícil perceber o que o motiva para além do óbvio – capital, fama, impressionar Erica? A partir de de-terminada altura, como as mentes verdadeiramente criativas, parece ser a ideia em si que o excita. Deixá-la crescer. Perceber os seus contornos, onde vai dar.

A partir da entrada em cena de Sean Parker e da mudança de cenário do filme (de Harvard para a Califórnia das festas, da droga e do champanhe) pa-rece ser o dinheiro a principal preocu-pação de Zuckerberg, acabando por deixar cair o melhor amigo, Saverin.

É difícil determinar o que é ficção e realidade. Não se sabe muito sobre a vida de Zuckerberg. Em diversas ocasiões negou-se a vender o Face-book, apesar das ofertas milionárias. Diz-se que sai com a mesma rapariga (Priscilla Chan), desde 2003, quando criou a rede social. Recentemente, um dos gémeos Winklevoss disse que era a “pessoa rica mais pobre que já conheceu.” Ao que parece vive numa casa modesta e vai a pé até ao traba-lho, onde passa 16 horas. O seu lema é: “fazer do mundo um lugar mais aberto.”

O Facebook, tal como a vida de Zu-ckerberg é exposta no filme, é

um paradoxo. É uma infra-estrutura de comunicação com uma áurea

d e i n -t i -

midade, mas baseada no con-forto que a distância acaba por potenciar. Como tudo o que emerge na internet e mexe com a vida dos indivíduos, é qualquer coisa causadora de ten-sões. Há dores de crescimento, aprendizagem, redefinição do que é comunicar.

É sempre assim com algo que é pro-fundamente modificador. Criam-se zonas de ambiguidade e quem não está suficientemente informado pode sofrer com isso. O que fazer? Ter bom senso. Definir o grau de exposição, partindo da ideia que o Facebook é espaço público. Porque o é, na verda-de. Em segundo lugar é negócio. Sem-pre que carregamos na tecla “Like” somos produto.

No Google ou YouTube acontece o mesmo. Os clientes pagam a publicidade, porque existimos nós, o produ-to. Quando se tem

O criador da maior rede social do mundo (500 milhões de utilizadores)como um solitário. Como se o tipo mais sozinho do planeta, expondo a sua dificuldade – as relações sociais, claro

É difícil perceber o que o motiva para além do óbvio – capital, fama, impressionar Erica? A partir de de-terminada altura, como as mentes verdadeiramente criativas, parece ser a ideia em si que o excita. Deixá-la crescer. Perceber os seus contornos, onde vai dar.

A partir da entrada em cena de Sean Parker e da mudança de cenário do filme (de Harvard para a Califórnia das festas, da droga e do champanhe) pa-rece ser o dinheiro a principal preocu-pação de Zuckerberg, acabando por deixar cair o melhor amigo, Saverin.

É difícil determinar o que é ficção e realidade. Não se sabe muito sobre a vida de Zuckerberg. Em diversas ocasiões negou-se a vender o Face-book, apesar das ofertas milionárias. Diz-se que sai com a mesma rapariga (Priscilla Chan), desde 2003, quando criou a rede social. Recentemente, um dos gémeos Winklevoss disse que era a “pessoa rica mais pobre que já conheceu.” Ao que parece vive numa casa modesta e vai a pé até ao traba-lho, onde passa 16 horas. O seu lema é: “fazer do mundo um lugar mais aberto.”

O Facebook, tal como a vida de Zu-ckerberg é exposta no filme, é

um paradoxo. É uma infra-estrutura de comunicação com uma áurea

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midade, mas baseada no con-forto que a distância acabapor potenciar. Como tudo oque emerge na internet e mexe com a vida dos indivíduos, équalquer coisa causadora de ten-sões. Há dores de crescimento,aprendizagem, redefinição do que é comunicar.

É sempre assim com algo que é pro-fundamente modificador. Criam-se zonas de ambiguidade e quem não está suficientemente informado pode sofrer com isso. O que fazer? Ter bom senso. Definir o grau de exposição, partindo da ideia que o Facebook é espaço público. Porque o é, na verda-de. Em segundo lugar é negócio. Sem-pre que carregamos na tecla “Like” somos produto.

No Google ou YouTube acontece o mesmo. Os clientes pagam a publicidade, porqueexistimos nós, o produ-to. Quando se tem

r rede social do mundo (500 milhões mo um solitário. Como se o tipo mais

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • 11

Perfi l

Este Verão, numa importante conferência de tecnologia em que estava a ser entrevistado por jornalistas do Wall Street

Journal, Mark Zuckerberg começou a suar

profusamente assim que

surgiram

perguntas sobre a privacidade dos utilizadores. Resultado: a imprensa escreveu mais sobre o suor do fundador do Facebook do que sobre o que quer que ele tenha dito.

Noutras vezes em que subiu ao palco, o discurso de Zuckerberg parecia automatizado e foi frequentemente comparado a um robot. O criador da maior rede social do mundo já admitiu que não gosta de aparições públicas, evita dentro do possível os contactos com a imprensa e, para os padrões de quem declarou que “a era da privacidade acabou”, tem-se mostrado uma pessoa recatada.

Mark Zuckerberg teve – como é típico de muitas estrelas do mundo tecnológico – contacto com os computadores quando era novo. O pai, dentista, tinha vários computadores em casa e no consultório, em Nova Iorque, e encorajou o fi lho a aprender programação informática. Zuckerberg começou cedo a criar pequenos videojogos para os amigos e, aos 12 anos, programou um sistema de comunicação interna para o consultório do pai.

Chegou à Universidade de Harvard, para estudar informática, já com uma aura de programador brilhante: ainda antes dos 18 anos tinha desenvolvido um sistema inteligente de recomendação de música, que conseguiu notoriedade na imprensa especializada e na comunidade dos entusiastas de tecnologia. Tanto a Microsoft como a Aol tentaram comprar o serviço

e recrutar Zuckerberg, mas este recusou (anos mais tarde, protagonizou outra surpreendente recusa: declinou uma oferta de mil milhões de dólares que o Yahoo estava disposto a pagar pelo Facebook).

Um milionário sem televisãoOs tempos na universidade – onde o Facebook arrancou como um site simples para conhecer pessoas do “campus” – são os mais nebulosos. Um grupo de colegas acusou-o de sabotar os planos para o lançamento de uma rede social e de se ter apropriado da ideia (o caso foi para tribunal, mas acabou com um acordo extra-judicial e um pagamento na ordem das dezenas de milhões de dólares). Há quem o descreva como o “geek” sem dotes sociais e difi culdades para conhecer raparigas, o que o terá levado a lançar o Facebook (embora tenha uma namorada desde 2003, que conheceu numa festa). E, recentemente, surgiram excertos de conversas num programa de chat em que Zuckerberg, então com 19 anos, chamava “imbecis” aos utilizadores de uma das primeiras versões do Facebook por confi arem nele e submeterem os respectivos dados e fotografi as.

Não acabou o curso. Decidiu transformar o site numa empresa e rodeou-se dos executivos experientes (que, nos primeiros tempos, eram

contratados e despedidos em questão de meses). Com 26 anos, é o mais jovem multi-milionário na lista da revista Forbes (a única pessoa com a mesma idade a surgir no “ranking”, mas muitos lugares abaixo, é um ex-colega de faculdade e actual vice-presidente do site). Mas a fortuna é, em boa parte, hipotética: atendendo aos valores que empresas de capital de risco já investiram, se o Facebook for lançado em bolsa, os 24 por cento que Zuckerberg tem da empresa signifi carão uma fortuna a rondar os cinco mil milhões de euros.

Seja como for, o fundador do Facebook é conhecido por não ligar muito ao dinheiro (recentemente, anunciou uma doação de 100 milhões de dólares a escolas). Nos primeiros tempos do Facebook dormia num colchão num pequeno apartamento. Agora, segundo um longo perfi l na revista New Yorker, tem uma casa de dois andares, com quatro quartos (pequena para os padrões dos milionários de Silicon Valley, mas que Zuckerberg considera demasiado grande) e conduz um Honda Acura TSX, cujo modelo mais caro não chega, nos EUA, aos 30 mil euros. Comprou-o depois de ter pedido a um amigo conselhos para um carro “seguro, confortável e não ostensivo”. Durante o Campeonato Mundial de Futebol, perguntou no seu perfi l no Facebook: “Há um site que transmita a fi nal do campeonato online? (Eu não tenho uma TV)”.

Mark Zuckerberg: um perfi l sem dotes sociaisO criador da maior rede social do mundo já admitiu que não gosta de aparições públicas. Para os padrões de quem declarou que “a era da privacidade acabou”, o “geek” sem dotes sociais tem-se mostrado recatado. João Pedro Pereira

Perfi l

Este Verão, numa importante conferência de tecnologia emque estava a ser entrevistadopor jornalistas do Wall Street

Journal, Mark Zuckerbergcomeçou a suar

profusamenteassim que

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O criador da maior rede socideclarou que “a era da privac

Mark Zuckerberg, ele próprio, e (à direita)

interpretado por Jesse Eisenberg

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O habitual é que um argumentista pegue num livro já escrito e o adapte ao cinema. Com “A Rede Social” não foi assim. Enquanto Ben Mezrich estava a escrever “Milionários Acidentais – A criação do Facebook: uma história de génios, sexo, dinheiro e traição” (ed. Lua de Papel) encontrava-se num hotel, em Boston, com o argumentista de “A Rede Social”, Aaron Sorkin, para partilhar com ele o que escrevia.

Ben Mezrich contou isto numa conferência a que o Ípsilon assistiu na Book Expo America 2009, em Nova Iorque, ainda “Milionários Acidentais” não estava nas livrarias norte-americanas nem o fi lme feito.

Antes de escrever o livro Ben Mezrich era obcecado pelo Facebook mas não sabia quase nada sobre a rede social (só sabia que tinha começado em Harvard onde se formou com distinção). Até que um dia, às duas da manhã, recebeu um e-mail de Will McMullen, um sénior de Harvard, que tinha uma história incrível para lhe contar: “O meu melhor amigo co-fundou o Facebook”, escrevia. O amigo chamava-se Eduardo Saverin.

Não foi por acaso que McMullen contactou Mezrich: este não era nenhum desconhecido. No início da sua carreira tentou escrever fi cção mas só fi cou famoso quando lançou “Bringing Down the House: The Inside Story of Six MIT Students Who Took Vegas for Millions” (“A última cartada”, ed. Presença) - a história de um grupo de estudantes do MIT que num esquema de contagem de cartas conseguiram ganhar milhões a jogar Blackjack em casinos, que foi

transformada em fi lme (“21”, com Kevin Spacey)

Quando McMullen se encontrou com Mezrich contou-lhe como foi criado o Facebook: tudo começara porque dois amigos queriam conhecer raparigas. Chamavam-se Eduardo Saverin e Mark Zuckerberg. O livro que Mezrich escreveu é contado do ponto de vista do brasileiro Saverin, que quando estudava em Harvard era o melhor amigo de Mark Zuckerberg e com ele fundou o Facebook fi nanciando o arranque da empresa (detinha 30 por cento) e acompanhando

a fase de lançamento. Os dois viriam a zangar-se e acabaram em tribunal. Também está no livro a história dos gémeos Tyler e Cameron Winklevoss, com quem Mark se comprometera (sem assinar papéis) a fazer um “site” de relacionamentos em Harvard. Mark desinteressou-se, lançou o Facebook com Saverin e os Winklevoss puseram-no em tribunal.

“Mark Zuckerberg recusou falar comigo sobre este livro,

apesar de lho ter pedido muitas vezes, e tem todo o

direito de o fazer”, escreveu Ben Mezrich no prefácio. Passou um ano a tentar falar com Mark, chegou a

enviar-lhe perguntas, ele quase respondeu, mas no

fi nal decidiu que não queria que fosse ele a escrever a sua biografi a autorizada.

Ben Mezrich quis escrever uma história

baseada em factos verdadeiros mas que fosse atractiva para as pessoas: recriou diálogos, fê-la ser divertida de ler, tornou-a excitante sem deixar de ser verdadeira. E voltamos ao principio deste texto: Ben Mezrich escreveu esta história como se fosse um fi lme. Isabel Coutinho

Ben Mezrich quis escrever uma históriabaseada em factos verdadeiros mas que fosse atractiva para as pessoas: recriou diálogos, tornou-a excitante sem deixar de ser verdadeira

consciência que não se está entre “amigos”, mas entre “contactos”, e se percebe que o Facebook é uma fer-ramenta onde as sociabilidades fun-cionam como oportunidade de negó-cio, os equívocos desaparecem, po-dendo transformar-se no melhor ou no pior dos mundos, dependendo da forma como é utilizado.

O Facebook, e as redes sociais em geral, podem favorecer a construção especulativa e colocam questões no-vas na relação entre público e priva-do. No limite, podemos interrogar-nos se não estaremos a criar uma geração que vive na ilusão de estar sempre conectada, sem perceber as virtudes, que as há, de estar só.

Mas é preciso não confundir o meio, com todas as suas imperfeições, com o seu uso. A escolha não é entre a vi-são que tende a ver as redes sociais como ameaça, espaço de exibicionis-mo, ferramenta para maquinações ou um sinal de desumanização, ou quem olha para ela como se fosse a salvado-ra da liberdade – como se viu aquando dos acontecimentos no Irão.

A escolha é não confundir o meio com as práticas. A opção é o discer-nimento, é compreender, é não ter medo do que não se conhece, é ver fragilidades mas também as muitas potencialidades. Um dia, talvez não muito distante, haveremos de rir do

tempo em que as redes sociais eram vistas com apreensão.

E Zuckerberg, a personagem, ou Zuckerberg, o cidadão, percebe isso perfeitamente. É por isso que ambos são impacientes com aqueles que, na sua visão, os fazem perder tempo. Para a personagem e para o autênti-co Zuckerberg a vida, com todas as imperfeições, é lenta. Eles estão sem-pre a ver à frente, não admira que os rituais da comunicação, ir de encon-tro ao outro, seja vivido como uma chatice. Afinal, construir uma relação leva tempo.

Durante o filme, a também na vida real, é como se passassem o tempo a dizer-nos: Isto é o Facebook, tansos! É uma grande ideia. É a minha ideia. Fui eu que fiz com que germinasse, tomem-na lá. E não é que o filha da mãe tem razão? Num mundo cada vez mais conectado, não estamos conde-nados a comunicar com estranhos, das mais diversas formas, a partir das infra-estruturas que temos à mão?

Sim, é possível que no fim de con-tas, Zuckerberg, ou Zuck para a sua multidão de “amigos” do Facebook como eu, esteja mesmo só, mas dei-xemo-nos de coisas, eu, você, nós, também estamos.

“A Rede Social”, de David Fincher, estreia na próxima quinta-feira

Sim, é possível que no fim de contas, Zuckerberg, ou Zuck para a sua multidão de “amigos” do FacebooK, esteja mesmo só, mas deixemo-nos de coisas, eu, você, nós, também estamos

Como se fosse um fi lme

grupo de estudantes do MIT que num esquema de contagem de cartas conseguiram ganhhara milhões a jogar Blackjack emcasinos,que foi

lançou o Facebook come os Winklevoss puseratribunal.

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Antes de escrever o livro Ben Mezrich era obcecado pelo Facebook mas não sabia quase nada sobre a rede social

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • 13

Uma rede social muito lá de casa?

Os comportamentos e as relações entre as pessoas não mudaram com o surgimento das redes sociais como o Facebook. Não vieram substituir as relações que temos com os outros, mas potenciar as que já existiam. Quem o diz é Gustavo Cardoso, investigador do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.

Sempre que falamos de redes sociais surge a questão da privacidade. Para a “geração Facebook” isso parece já não ser problema, mas pode sê-lo para outras. Estamos perante uma efectiva mudança de comportamentos?A privacidade é essencialmente um campo legal, normalmente associado à comunicação social e às pessoas públicas: tem a ver com o direito à privacidade e com o direito em se aceder ao que é público. Ao falarmos do Facebook discutimos o direito de reserva, que é aquilo que as pessoas defi nem para si próprias como sendo o que querem mostrar nos seus perfi s. O que me parece que existe é uma alteração da nossa forma de encarar a reserva. Não sei se é geracional, porque é uma atitude conjuntural, eventualmente com mais visibilidade nas questões de utilização das tecnologias de informação e comunicação, mas que também está presente noutros fenómenos, como os “reality shows”, onde aquilo que é culturalmente aceite não é tido como problemático.

Por outro lado, importa defi nir que não é uma questão de moda ou de as pessoas serem levadas a fazer coisas que não querem fazer. Os estudos demonstram que a utilização das redes sociais é extremamente racional. Na maior parte dos casos os utilizadores pesam isso muito bem, mesmo os adolescentes: o que é que podem ganhar ou perder ao abrirem mais a sua reserva. Eu sei que se abrir mais ganho “isto”. Estou a fazer uma decisão racional, não estou a agir como se não soubesse o que se passa.

Podemos argumentar que no início de tudo, quando se experimentavam as coisas, podia haver alguma incapacidade de ler o que se tinha pela frente. Mas não é esse o caso hoje. Falamos de um fenómeno massifi cado, com mais de 2 milhões de portugueses utilizadores, de 6 milhões no Brasil e de 141 milhões no EUA.Em que medida é que o Facebook criou um novo paradigma na relação que temos com a partilha de informação?As redes sociais têm regras diferentes. Há aquelas em que toda a gente pode ver os perfi s de toda a gente e outras, como o Facebook, em

que posso defi nir quem vê. Grande parte da utilização do Facebook não é uma utilização pública do “feed” de notícias, mas mensagens privadas de um para um.

Em 2003 fi zemos um estudo onde perguntávamos qual a dimensão da rede de relacionamentos de cada utilizador: em média, 50 pessoas. Em Junho fi zemos um inquérito e cerca de 50 por cento das pessoas tinha mais de 100 amigos. Se quisermos compreender o alcance e a transformação provocados pelo Facebook, não é tanto o facto de multiplicarmos o número de relacionamentos que constituem a nossa base de actuação social, mas, e é o factor que introduz a transformação, aquilo que os ingleses acham de “laços fracos”. Ou seja, pessoas com as quais temos uma relação episódica e sobre a qual, de vez em quando, sabemos o que

se passa. A grande transformação que as redes sociais trazem é essa multiplicação dos contactos com os quais podemos estar.Estamos perante um fenómeno e não uma mudança de paradigma...O paradigma é a rede social, o epifenómeno é o Facebook. Sendo que para que uma outra rede possa obter uma dimensão igual, terá que ter um factor atractivo que o Facebook não tenha. O que o Facebook conseguiu fazer bem tecnologicamente foi colocar em cima da mesa uma ferramenta que faz o que fazemos na nossa vida não mediada: a selecção.É diferente o uso do Facebook em cada país ou região?Se olharmos para o mapa do mundo os sítios onde não é rei são o Brasil, onde para quatro utilizadores do Orkut há um utilizador do Facebook, a Rússia, que tem um sistema que é quase uma cópia, o V-Kontakte, a China, que tem o QQ, o Japão com o Mixi. Há várias razões [para que isso aconteça], a principal é cultural. Ou tem a ver com o tipo de letra, como o cirílico, ou há uma massa crítica sufi cientemente grande para haver uma adesão [a uma rede local].

No Brasil o Orkut está mais presente, mas na Índia, onde também tem relevância, o crescimento do Facebook é maior, porque há muitas empresas internacionais e uma comunidade de expatriados maior e organizada. Isso faz com que essa população veja no Facebook uma ferramenta para criar e manter os laços entre

ela. No Brasil, a alternativa é entre um meio mais generalista como o Orkut, e um mais elitista que é o Facebook [porque neste a rede social individual constrói-se a partir de um processo de selecção].

Mas os padrões de utilização do Facebook são os mesmos do uso da Internet. Onde há mais gente a usar Internet, há mais gente a usar as redes sociais, não há uma diferenciação tão grande.E quanto às pessoas que escolhem não estar presentes, como é que se relacionam com estas redes?As pessoas não constroem a sua identidade dizendo que estão no Facebook, constroem-na utilizando-o e comunicando-a. Se é importante estar, estamos. Mas as redes sociais não mediadas já lá estavam antes destas de que estamos a falar. As redes sociais virtuais só aumentam a possibilidade de alcance, pluralidade e número de pessoas que incluímos nas nossas relações. Não acrescentam nada em termos substantivos ao que já existia antes. Em termos de incremento sim, em termos de base não. Não há uma obrigatoriedade nem uma lógica de “diktat” social que diga que se não estiver não sou boa pessoa. Cada um mede o que ganha e perde com a sua entrada. Eu posso usá-lo minimizando a minha presença. Não serei um cliente ideal, mas sou-o para os meus objectivos. Nas sociedades democráticas há uma maior equivalência entre o que não tem que estar escrito [no perfi l pessoal], o que sou e o que pode estar escrito sobre o que sou.

Afi nal o Facebook não é novidade, é apenas ferramenta melhor trabalhada do que já fazemos no dia a dia: relacionarmo-nos com os outros. Diz-nos um investigador do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Tiago Bartolomeu Costa

“A utilização das redes sociais é racional. Na maior parte dos casos os utilizadores pesamisso bem: o que é que podem ganhar ou perder ao abrirem mais a sua reserva”

Gustavo Cardoso: o Facebook, diz, apenas veio potenciar o que já existia

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Thierry Garrel não tem telemóvel e passa bem sem ele. Isto, nos dias que correm em que toda a gente não pas-sa sem o aparelho mágico, é uma ra-ridade. Ao longo de 16 anos (1992-2008), Garrel, oriundo de uma família ligada ao cinema (é irmão do realiza-dor Philippe e tio do actor Louis), di-rigiu o pólo de produção de documen-tários do canal televisivo ARTE, depois de ter feito o mesmo no canal ante-cessor La Sept e de ter trabalhado na televisão pública francesa e no Institut National de l’Audiovisuel.

À sua defesa apaixonada do género como central para a cultura das so-ciedades modernas, à sua crença que a televisão pública tem um dever so-cial de financiar obras que elevem o nível da discussão, devem-se o papel fulcral que o ARTE teve (e ainda tem) no desenvolvimento de uma produ-ção constante pan-europeia de filmes documentários (produzindo realiza-dores como Nicolas Philibert, Rithy Panh ou Raoul Peck).

Actualmente orientador de seminá-rios e workshops sobre o documentá-rio, Garrel esteve em Lisboa como presidente do júri da Competição In-ternacional do DocLisboa, e a opor-tunidade de abordar com ele o estado do género era demasiado boa para deixar passar. E, depois de 45 minutos de conversa à volta das suas ideias so-

bre o que foi, é e pode ser o documen-tário (e, por arrasto, a televisão públi-ca), percebemos que não ter telemóvel é apenas mais uma manifestação de uma cabeça que pensa por si e não vai atrás do que os outros acham.

O documentário tem vindo a desenvolver uma linguagem nova nascida das contaminações de outros géneros. Era já possível adivinhá-lo nos seus tempos do ARTE?Penso que sim. Com a Sept, e depois com o ARTE, pudemos afirmar que se trata de um género central, e sabe-mos agora que é a arte do século XXI. Quando as pessoas dizem com aque-le ar nostálgico “a idade de ouro já passou”, eu não acredito. Penso que a idade de ouro do documentário ain-da está por vir. É verdade que no iní-cio dos anos 1990 atravessámos o deserto. Mas nos últimos 15 anos, de-sabrochou uma tal riqueza de talen-tos, de diversidade de escritas, de temáticas...Mas isso encontra-se neste momento ameaçado pelas exigências de formatação da televisão e por dificuldades de financiamento. É verdade, mas acredito que essas dificuldades são algo de pendular, de cíclico. Há um desejo de controle que

existe sempre por parte das institui-ções; controle económico, ideológico, estético – mas quando se toma alguma distância e se olha a longo prazo, compreende-se que mesmo o que se diz hoje da formatação é apenas um mau momento do ciclo. Esta criativi-dade documental é uma das riquezas da nossa sociedade; é um presente que nos foi dado e que é preciso, co-mo sempre com a cultura, defender. Lutar pelo seu lugar no interior das televisões.

Digo isto porque penso que a chave económica do documentário hoje é a televisão. Não existe outra, porque as televisões públicas ainda existem, ainda têm financiamentos, capacida-de de produção e de difusão, um pú-blico a alimentar, a servir. Daí que pense que o essencial é trabalhar no interior do sistema para permitir este desabrochar que o público deseja, espera, do qual secretamente neces-sita para compreender o mundo...Mesmo que não o saiba?Mesmo que não o saiba. Mas esse é o eterno problema das expectativas do público: são sempre insondáveis, mas não paramos de tentar medi-las, não paramos de afirmar que sabemos aquilo que ele quer... Penso que o do-cumentário é uma ferramenta essen-cial na mobilização social. E, sobre-tudo, para lá das clivagens culturais

e sociais, para lá dos níveis de educa-ção, é também impressionante que o documentário fale uma língua univer-sal, com uma riqueza própria. Fala da televisão como chave económica do documentário. Mas a televisão e o cinema têm linguagens diferentes...Não acredito nisso. Penso que a tele-visão generalizou uma língua verna-cular muito pobre, à base de entre-vistas, ilustrações, imagens bonitas, música, directos, mas no fim de con-tas algo de muito primitivo... A tele-visão tem uma capacidade linguística muito maior. Não acredito na oposi-ção que foi desenvolvida entre o ci-nema como arte nobre e a televisão como prostituta na sarjeta. Na televi-são existe a questão da programação, como organizar o encontro entre a obra e o público – isso sim, é um pro-blema específico. Mas a capacidade de difundir obras elaboradas na tele-visão, de encontrar, suscitar e entre-ter um público, mantém-se intacta. Se aprendi alguma coisa na televisão, é que, quando se aposta no público, oferecendo-lhe obras novas, suposta-mente complexas, mas que falam es-sa tal língua universal, o público está lá sempre. Sempre. Não está lá ins-tantaneamente; a televisão comercial quer medir instantaneamente a pre-sença dos espectadores em frente ao

“O real não é aquilo que vemos; o real é sempre aquilo que alguém pensa. Sem autor não há real”

Uma dos responsáveis “na sombra” pela riqueza do cinema documental nos ú E falou ao Ipsilon do passado, do presente e do futuro de um género q

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“A idade de ouro do

documentário ainda está

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s últimos vinte anos, Thierry Garrel foi este ano presidente do júri do DocLisboa. o que considera central na paisagem cultural moderna. Jorge Mourinha

écrã, e isso não é possível. Mas preci-samente através de uma programação podemos construir um público. Pen-so que houve em relação ao documen-tário e à televisão pontos de vista aris-tocratas. Para uma grande parte da população, nos nossos dias, o acesso à cultura ainda é extremamente limi-tado, e a televisão continua a ser um meio de cultura único na sua acessi-bilidade. E o público merece o me-lhor.Portanto, a televisão continua a ser subaproveitada?Precisamente. A esse respeito, a situ-ação da televisão portuguesa é cons-ternante. Estive cá há dez anos e re-cordo-me que a RTP ainda tinha algu-mas pequenas veleidades... Que uma televisão nacional como a RTP não tenha blocos regulares de documen-tário de autor é um escândalo nacio-nal. Mas a França, com a sua defesa constante da excepção cultural, será o termo ideal de comparação? Sabe que, no campo do documentário europeu, a França está longe de ser o país mais criativo. Fomos, isso sim, o país que acolheu mais estrangeiros, que se naturalizaram ou se instalaram entre nós, e por isso temos a repre-sentação mais variada das culturas nacionais na produção dita francesa.

O sul da Europa é mais problemático; tem uma forte tradição cultural, mas penso que a demissão das televisões produziu nestes últimos 15 anos um obscurecimento da expressão docu-mental. Fiquei impressionado com a vitalidade que existe em Portugal, mas essa vitalidade supõe uma eco-nomia e a televisão abdicou do papel do financiamento. O que tem um du-plo efeito negativo: faz viver uma po-pulação documentarista na pobreza – e atenção, ela não é significativa-mente mais rica em França, só que há um volume de produção anual que permite a sobrevivência. E, em segun-do lugar, essa demissão faz com que a própria população não tenha a pos-sibilidade de descobrir obras docu-mentais fortes. É isso também que explica o sucesso considerável do Do-cLisboa – o Serge Tréfaut [director do Doc] falava de 35 mil espectadores, o que é mais que o festival Cinéma du Réel em Paris. Pode dizer que não passa de um sintoma, mas é um sin-toma de uma sede que existe.Mas, pelo menos em Portugal, essa sede mata-se nos festivais. Quando os filmes chegam às salas, as pessoas não acorrem...A sala de cinema inscreve-se numa economia de consumo cultural onde cada acção tem um custo que nem todos podem pagar. Quando ouço um

certo número de pessoas dizer que o cinema é a liberdade e a televisão é a restrição e a formatação, é falso; quando se faz um documentário para o cinema, as restrições de produção são muito mais selectivas que em te-levisão. E em termos de exibição, por cada filme que é um sucesso - e feliz-mente tem havido alguns nestes últi-mos anos - há 99 que não conseguem encontrar a sua economia.O que não é aliás muito diferente dos problemas da ficção...A ficção tem uma autonomia de eco-nomia, porque ao longo do último século constituiu-se uma indústria do cinema de ficção, mesmo nas mar-gens, enquanto no documentário to-da a população vive nas margens. A questão é: como é que se recolocam as margens no centro?E se a televisão deixar de financiar?Recordo-me que no final dos anos 1980 éramos uns quantos a estar pes-simistas. Receávamos que pelo ano 2000 as televisões públicas tivessem desaparecido. Não desapareceram. Continuam a existir, estão em crise, em reestruturação ou em reinterro-gação da sua missão; mas a sua legi-timidade não foi posta em causa. Fo-ram afectadas pela concorrência das televisões comerciais, pela lógica das audiências instaurada pelas televisões

privadas. Mas a legitimidade global da televisão pública continua a existir. Apesar dos novos meios e tecnologias nascidas da revolução digital - um mundo que é uma selva e que ainda não tem economia -, a televisão pro-gramada ainda vai viver muitos anos. O consumo de filmes vai também du-rar, e o documentário, que bem-en-tendido vai ser renovado e re-estimu-lado por estas novas formas, vai per-durar. Disse uma vez que “o documentário é a vida”. A partir do momento em que se introduzem elementos ficcionais e que o género se abre à contaminação de outras fontes, em que é que isso afecta essa marca de referência?Tenho tendência para dizer que ainda só estamos no princípio. Em qualquer caso, já abandonámos a ideia simplis-ta que o documentário é o que filma de maneira naturalista o real. O real não é aquilo que vemos; o real é sem-pre aquilo que alguém pensa. Sem autor não há real. Quanto ao meio de retranscrever na língua das imagens a experiência real e verdadeira que o autor fez do mundo, pouco interessa. Todas as imagens são imagens cons-truídas, e o que continua a ser essen-cial é a relação entre estas imagens construídas e a verdade da experiên-

cia que o documentarista teve. E aqui-lo que caracteriza cada vez mais o documentarismo contemporâneo é o empenho dos autores num proces-so que implica a sua própria vida du-rante muito tempo, e a tentativa de retranscrever essa experiência com maior ou menor talento, com imagens e sons mais trabalhados. Penso que existe uma confusão, como se só se pudesse interpretar o documentário, para usar uma metáfora musical, com violinos. Não! Pode-se interpretá-lo com qualquer instrumento porque o que interessa é a música que se vai tocar, é aquilo que se vai partilhar com o espectador.Estaria, então, mais próximo da noção de cinema do real...Sim, porque é a experiência do real que o documentarista filma. Ao mes-mo tempo, gosto da palavra docu-mentário. Como recordava [historia-dor e psicanalista] Pierre Legendre há alguns anos num artigo sobre Fre-derick Wiseman, a palavra documen-tário vem do latim “doceo”, “eu ensi-no por exemplo”. Um documentário nunca é mais do que um exemplo, e é sempre uma metáfora: fala do mun-do através de histórias.

A versão integral desta entrevista pode ser lida no site do Ipsilon em http://ipsilon.publico.pt

Cin

ema

Ao longo de 16 anos (1992-2008), Garrel, oriundo de uma família ligada ao cinema (é irmão do realizador Philippe e tio do actor Louis), dirigiu o pólo de produção de documen-tários do canal televisivo ARTE

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John Lennon subiu a escada da insta-lação que horas depois seria oficial-mente inaugurada. Estávamos em Novembro de 1966 e ele era o primei-ro visitante de “Unfinished Paintings And Objects”, de Yoko Ono, que vinha gerando curiosidade no meio artístico da “swinging London”. No centro de uma sala, a escada que Lennon subiu degrau a degrau. Acima dele, uma te-la aparentemente branca da qual pen-dia uma lupa. Lennon pegou na lente, dirigiu-a à tela e sentiu-se aliviado. Em letra minúscula, distinguia-se uma palavra e essa palavra era “Yes”.

John e Yoko como casal insepará-vel, John e Yoko como dupla irritante cuja relação destruiu os perfeitos Be-atles, só surgiriam depois, mas Len-non recuava várias vezes àquele sim-ples e enfático “sim”. Foi o “yes” de Yoko que o conquistou.

44 anos depois da exposição em que John Lennon e Yoko Ono se co-nheceram, 30 anos depois da violen-ta morte dele, voltamos a olhá-lo. Não o Beatle, mas o Lennon que sobrevi-veu aos Beatles e que matou os Bea-tles para poder caminhar sozinho.

Em 2010, John faria 70 anos e há toda uma série de reedições a relem-brá-lo. “The Hits” em CD single, uma

edição de quatro CD, “Gimme Some Truth”, com Lennon dividido em zo-nas temáticas (“Working Class Hero”, “Woman”, “Borrowed Time” e “Roots”), e, mais apetecível, a “Sig-nature Box” que reúne toda a obra a solo desde “Plastic Ono Band”. No topo da caixa, que é um cubo branco, lê-se “Lennon”. Abrindo-a, revela-se novamente, e agora para todo o mun-do, o mesmo “Yes” da Indica Gallery. É a porta de entrada no universo de Lennon, e “yes” faz todo o sentido observando-o pelo ângulo oficial, o de homem preservado no formol be-atífico de lutador pela paz, cantor de “Imagine” e “Give peace a chance”.

Mas, como nenhum outro músico da sua era (ou depois dela), Lennon transformou a sua vida em gesto ar-tístico exposto perante todos – foi o seu acto mais radical – para, em se-guida, se recolher ao famoso aparta-mento no Dakota Building, em Nova Iorque, onde se dedicou a ser “dono de casa”.

“Yes”? Depois dos Beatles, com Yoko Ono como mulher, amante, mu-sa, “mãe” (“mother”, chamava-lhe) e parceira artística, os nãos de John Lennon foram pelo menos tão sono-ros quanto os sins.

“E agora, mãe?”Em 1970, não eram só os Beatles que tinham acabado. Na verdade, para Lennon, a banda que fundara no final dos anos 50 não tinha realmente ter-minado. Era uma ferida aberta, a fon-te de todos os males que o atormen-tavam. A sua primeira entrevista após a conflituosa separação, à “Rolling Stone”, foi um exercício de terapia e um verdadeiro assassinato. Lento, cruel e meticuloso: descreveu a exis-tência da banda como “uma constan-te humilhação”, pelo convívio forçado a que estavam obrigados com políti-cos, mulheres de políticos ou figuras do jet-set que desprezavam; abriu uma pequena janela sobre as digres-sões, uma orgia de drogas e sexo nos antípodas da imagem “angelical” pro-jectada; falou com sinceridade desar-mante de tudo aquilo que o ligava aos Beatles e daquilo (o desprezo por Yoko Ono) que nunca lhes perdoaria. Matando-os, poderia libertar-se (pelo menos, assim o julgava).

Cinco anos depois dessa entrevista, em 1975, editava “Rock’n’roll”, mo-desto álbum de versões de clássicos da década de 50, e desaparecia de cena. Acordou com Yoko que ela se dedicaria a tratar dos negócios e da

Ele era um Beatle,

e depois foi John

Em 2010, faria 70 anos, se não tivesse morrido há 30. Com a reedição da sua discografi a, eis então John

Lennon, o que matou os Beatles para seguir em frente. Como nenhum outro músico, transformou a sua vida

em gesto artístico revolucionário exposto perante todos. Depois, recolheu ao Dakota Building e tornou-se

um simples “dono de casa”. Mário Lopes

sica

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papelada do império Lennon, en-quanto ele ficaria por casa a trocar as fraldas de Sean. O que ficava para trás, seis álbuns que se confundiam com aquilo que era a sua vida no pre-ciso momento em que os gravou, re-presenta na perfeição o percurso aci-dentado de alguém que só parecia estar verdadeiramente bem quando se atirava de cabeça para o turbilhão: turbilhão interior, turbilhão em seu redor.

O músico que encabeçava manifes-tações contra a Guerra do Vietname, que berrava aos ouvidos de Paul Mc-Cartney, no álbum “Imagine”, um acusador “How do you sleep?”, que se reuniu aos activistas Black e White Panthers em Nova Iorque para depois lhes virar as costas e se entregar à be-bedeira colectiva de Los Angeles com Ringo, Keith Moon ou Elton John era aquele que confessava: “Só sou uma estrela por causa das minhas repres-sões. Qqueria dizer ‘E agora, mãe, amar-me-ás?”

O fi m do sonhoTudo no percurso de Lennon decorre da sua posição única no mundo. Não era simplesmente um “entertainer”, uma das caras da banda mais famosa a pisar o planeta. Numa era em que a música não era simples reflexo do mundo – devia curar e transformar e revolucionar -, de Lennon esperavam-se respostas. E tudo nele, as letras que cantava, as respostas que dava em entrevistas, a roupa que usava ou os

filmes que via, era decifrado e ampli-ficado até escapar ao seu controlo, como a famosa tirada “os Beatles são maiores do que Jesus Cristo” tão bem ilustrara.

Nesse sentido, a entrada de Yoko Ono na sua vida não significou apenas a descoberta de um refúgio seguro (o único) disfarçado de amor obsessivo. Artisticamente, ela e o universo que representava apontaram uma saída. Se a privacidade era impossível, se a música seria indistinguível do seu au-tor, que se fundissem os dois. O single “Ballad of John & Yoko”, creditado aos Beatles e que era, basicamente, a no-tícia de um casamento em canção, tal como os “bed in” em Toronto e em Amesterdão ou os cartazes de boas festas espalhados por várias cidades em 1969, “The War Is Over (If You Want It)”, são disso um primeiro re-flexo.

Nos tempos finais dos Beatles, quando Lennon substituía o LSD de “Sgt Peppers” pela heroína que can-taria no single a solo “Cold turkey”, confundiu todos entregando-se ao experimentalismo de vanguarda dos discos “Two Virgins”, “Life With The Lions” e “Wedding Album”. Estes, porém, tornar-se-iam mais célebres pela controvérsia que a capa do pri-meiro gerou, com nu integral de John e Yoko, do que pela música. Com o fim dos Fab Four, Lennon, livre como desejara, podia recomeçar – e ser pro-vocador no seu próprio território.

No “Primal Scream” de Arthur Ja-

nov, psicoterapeuta que defendia co-mo origem de todas as neuroses a repressão de traumas da infância, Lennon encontrou o seu método. Saiu da terapia, inacabada, para Abbey Road e gravou “Plastic Ono Band”, álbum impressionante pela crueza do grito, pela forma como Lennon se ex-punha de forma tão despudorada. A sensação de abandono, o trauma do órfão, abria e fechava o disco ( Julia, mãe de Lennon, morrera quando ele tinha 16 anos; o pai, que o abandona-ra aos cinco, só reapareceu no auge da Beatlemania). Pelo meio, estavam canções de intervenção como “Working class hero”, mas ouvia-se, acima de tudo, um profundo desen-canto com os falhanços de tudo aqui-lo em que acreditara: “I was the Dre-amweaver / But now I’m reborn / I was the walrus / But now I’m John / And so dear friends / You’ll just have to carry on / The dream is over”, des-pede-se em “God” – essa, a do cres-cendo de negações: “I don’t believe in magic, in Hitler, Kennedy, Buddha, Elvis, Zimmerman, Beatles”.

No ano seguinte, “Plastic Ono Band” ganha um álbum irmão, “Ima-gine” - depois de tudo destruir, Len-non a imaginar um recomeço. “Ima-gine” fora gravado no casulo bucólico e familiar da sua mansão de Titte-nhurst, em Inglaterra. Quando em Setembro de 1971 aterra em Nova Ior-que, excitado com aquilo que o “cen-tro do mundo” tinha para lhe ofere-cer, a sua vida estava prestes a mudar para sempre. Não mais o ouviríamos tão próximo, tão hábil na transforma-ção das suas fraquezas em forças, tão firme numa defesa, sempre questio-nadora, nunca maniqueísta, das suas convicções. Porque Lennon, chegado a Nova Iorque, voltou a acreditar – pa-ra, pouco depois, perder as ilusões definitivamente.

O fi m-de-semana perdidoRevitalizados pela contracultura que encontrou em Greenwich Village, Lennon e Yoko tornaram-se apoiantes de todas as causas: Black Panthers, IRA, lutas estudantis, e os Yippies de Abbie Hoffman, ferozes opositores de Nixon e dos “powers that be”.

Em 1971, Yoko passeava com um cinturão de balas à cintura. John, a estrela pop mais famosa e influente no mundo, falava diariamente contra o Governo americano como um “mar-xista revolucionário”, segundo o FBI, que o pôs imediatamente debaixo de mira. Na ebulição activista de Nova Iorque, Lennon e Yoko levaram o mais longe possível a ideia de usar a sua música como acção directa. “Éra-mos dois rebeldes muito orgulhosos de o sermos”, escreve Yoko na reedi-ção de “Some Time In New York Ci-ty”, álbum corajoso que seria também o maior falhanço da carreira disco-gráfica de Lennon. “Nesse disco éra-mos o Kurt Weill e o Brecht dos anos 1970, na nossa cabeça éramos isso”, continua Yoko Ono.

Tentaram fazer de um disco rock um jornal diário, um panfleto debru-çado sobre as notícias do dia, mas acabaram com algo que não os repre-sentava verdadeiramente. Ao ouvir canções como “Woman is the nigger of the world” ou “The luck of the irish” e as suas letras básicas, sen-

Para Lennon, os Beatles eram uma ferida aberta. A sua primeira entrevista após a conflituosa separação foi um verdadeiro assassinato da banda. Matando-os, poderia libertar-se (ou, pelo menos, assim o julgava)

Lennon, o pai de família, e Lennon, o revolucionário: de 1970 a 1980, Lennon teve várias encarnações

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timos que John estava a servir de megafone para as palavras de outros. Naturalmente, não se demoraria mui-to nesse papel – até podia ser um fan-toche por causas justas, mas nada mais do que a sua própria voz lhe in-teressava.

Desiludido com os companheiros de luta, que o viam mais como fonte de financiamento do que como “guer-rilheiro” com causas comuns, e com o “dream is over” a regressar ao seu espírito, despediu-se novamente. Mudou-se de Greenwich Village para o prédio que habitaria até ao final da vida, o Dakota, e, ainda que surgisse, aqui e ali, algo do velho idealista dado a grandes proclamações – declarou a fundação de um novo país, “Nuto-

pia”, em “Mind Games”, álbum de 1973 -, ainda que a sua vida tenha continuado a ser a sua música, aquilo que tinha a dizer ao mundo eram relatos de amadurecimento, de euforias momentâneas ou cri-ses conjugais – a voz para a vida normal dos seus companheiros de geração. Acontece, claro, que Len-

non não tinha uma vida nor-mal.

E então, encontrámo-lo em Los Angeles em 1974,

separado de Yoko Ono, a viver com a secretária May Pang, e a fazer as de-lícias dos tablóides com os escândalos da sua bebedeira permanente. Deam-bulava de festa em festa, destruindo

salas, caindo pelas ruas, comportan-do-se como um turista descontrolado com dinheiro, drogas e álcool a mais.

Impedido de sair dos EUA, por estar envolvido numa luta interminável com as autoridades americanas – Nixon tinha ordenado directamente o início do seu processo de deportação, com base num processo por posse de ma-rijuana -, Lennon tropeçava sem ru-mo. Lennon tropeçava, diria depois, porque lhe faltava o equilíbrio que Yoko Ono proporcionava – viveu assim o seu famoso “fim-de-semana perdi-do”. Nesse período, gravou “Walls and Bridges” e, para resolver amigavel-mente uma acusação de plágio que pendia há anos sobre “Come toge-ther”, acordou com a detentora dos direitos da canção alegadamente pla-giada (“You can’t catch me”, de Chuck Berry), gravar um álbum de versões de clássicos rock’n’roll. Com Phil Spector como produtor, com sessões de gravação regadas a champanhe, num festim interminável que incluía visitas de Warren Beatty e Joni Mitchell ou Spector, tresloucado, a disparar tiros para o ar, terminou o “fim-de-semana perdido”. O álbum seria fina-lizado sem o produtor e chegaria às lojas pouco antes de tudo mudar no-vamente. Na capa de “Rock’N’Roll” estava o jovem John Lennon, rock’n’roller em casaco de cabedal nas ruas de Hamburgo. Regressando ao

início, fechava-se o círculo.Meses depois, era-lhe finalmente

atribuído o visto de residência. E a seguir nascia Sean, o seu único filho com Yoko. John Lennon, o homem de família, o dono de casa, fazia a sua aparição.

Tinha um disco preparado para edição, o primeiro depois de um si-lêncio de cinco anos. Chamava-se “Double Fantasy” e era o álbum de um homem de 40 anos a falar das an-siedades e da felicidade de um ho-mem de 40 anos. Numa das suas úl-timas entrevistas, comentava: “Os anos 70 foram uma seca. Vamos ten-tar que os anos 80 sejam melhores”. Não pudemos saber o que acharia de-les.

A 8 de Dezembro de 1980, Mark David Chapman disparou sobre John Lennon.

Ver crítica de discos na pág. 46 e se-gs.

Lennon não se demoraria muito no papel de megafone para as palavras dos outros - nada mais do que a sua própria voz lhe interessava

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Como foi maravilhosa a última pas-sagem dos californianos No Age por Portugal. Depois do primeiro concer-to, o público eufórico com a energia deles e eles, igualmente eufóricos, a partirem Lisboa fora, seres boémios em busca da boémia clássica da velha cidade. Fotos na zona do Castelo de São Jorge, que acabariam imortaliza-das na arte gráfica do novo álbum, “Everything In Between”. Fotos no blogue da banda e em blogues cá do burgo com uma parte da banda a exi-bir as marcas da sua passagem mete-órica pela cidade. Eis o que levaram para o Porto, onde tocaram depois: olhos roxos, lábios inchados e um mapa de sangue pisado espalhado pela cara.

Haverá certamente quem descreva um concerto dos No Age como “uma carga de porrada”, mas aquilo era ri-dículo. Ridículo? Nããã, factual: um porteiro de casa de diversão nocturna a extravasar competências em cima de músicos americanos.

“Foi incrível”, exulta Randy Ran-dall, guitarrista e vocalista do duo (Dean Spunt é o baterista/vocalista) que com “Nouns”, o álbum anterior, onde o legado dos Sonic Youth e o shoegaze dos My Bloody Valentine era transformado em canções à beira do descalabro, se transformou em microfenómeno. “Incrível?”, repeti-mos. “Sim, incrível, mesmo com os porteiros a baterem no pessoal todo. Também são essas coisas que tornam a vida interessante. Os maus tempos são tão importantes quanto os bons.

De certa forma, até é esse o tema que atravessa todo o disco”. Venha a vida, então. Abraçar tudo, aproveitar tudo: “Everything In Between”. Os No Age de antes, mas um bocadinho mais velhos.

“Nouns” soava como uma explosão de energia de dois punks formados no hardcore, com muitas e muito bo-as melodias na cabeça – agarrava-nos para que entrássemos na dança, não para nos espetar um murro no estô-mago. As canções curtas e incisivas e o contributo de uma comunidade de músicos e artistas diversos, inde-pendentes e muito empenhados, reu-

nidos em volta de um pequeno clube de Los Angeles, The Smell, davam ao álbum uma aura próxima de mani-festo “do it yourself” – algo potencia-do pelo interesse na banda, que ra-pidamente alastrou da blogosfera para o “New York Times”, a “New Yorker” ou a “Mojo”.

“Everything In Between” é diferen-te. Não soa a um fluxo contínuo jor-rando da mesma fonte, antes a uma banda explorando mais dimensões da sua criatividade, mais preocupada com canções do que com manifestos sónicos. “[Na gravação do álbum] abordámos cada canção individual-mente, encarando a composição um desafio que tínhamos de resolver. Por qualquer razão, privilegiar o ruído e ser mais barulhento não pareceu tão interessante desta vez”.

Quando lhe telefonámos, Randy Randall estava em Leeds, ponto de paragem na digressão britânica, e contou-nos como, concerto após con-certo, vem sentindo no público “uma exuberante vontade de celebração”. Recorda em especial uma noite em Bristol, “num espaço muito peque-no”: “Toda a gente estava insana, a cair de cabeça a centímetros dos meus pedais, e o primeiro pensamento é ‘porra, anda me vão estragar o equi-pamento’, mas à medida que se suce-dem as quedas isso transforma-se em medo. O medo de, a qualquer mo-mento, ver alguém surgir do fosso coberto de sangue”

Quem connosco conversa é um gui-tarrista que se refere à californiana

SST, “com a sua colecção tão ecléctica de bandas, dos Black Flag aos Minute-men, passando pelos Hüsker Du”, co-mo a “editora punk mais excitante de sempre”. É alguém com 29 anos que recua no tempo para recordar quando, nos concertos, “adorava ir para a con-fusão e levar um pontapé na boca de um gajo qualquer”. Compreendemos que a parte do pontapé seja retórica. Compreendemos igualmente quando explica porque já não aprecia tanto meter-se na confusão – basicamente, “been there, done that” – e porque não quer isso dizer que, dois anos depois da felicíssima energia de “Nouns”, os No Age prefiram agora festinhas e in-trospecção. Ouçamos a sua definição de punk: “Significa não encaixar, sig-nifica lançares as tuas próprias ideias e quebrar formas uniformizadas de pensar. Não encaixar. Essa é, verda-deiramente, a sua tradição”.

Andar para a frenteEm “Everything In Between”, álbum em que a ferocidade das melodias e o volume sonoro são submetidos a uma maior limpidez, e em que as can-ções procuram introspecção onde antes não se continham (explodiam ao fim de 30 segundos), foi uma ex-pansão, os No Age expandiram-se. E o disco expressa novas descobertas e marca o lugar onde Randy Randall e o baterista Dean Spunt se encon-tram agora.

“Enquanto gravava este disco, foi muito influente uma banda inglesa dos anos 90 chamada Disco Inferno,

que trabalhava samples de uma for-ma livre e orgânica”, descreve antes de acrescentar à equação “bandas pop neo-zelandesas da década de 80, como os Clean, os Tall Dwarfs ou os Go Betweens”. Já o método de traba-lho manteve-se: “Seis das canções foram gravadas na sala de ensaios e continuamos a seguir a ética ‘do it yourself’, tentando ter muito contro-lado tudo aquilo que fazemos.” Ética que, tal como antes, se reflecte em todo o funcionamento da banda: “Não temos manager ou equipa de management. Somos a nossa própria equipa, nós e a malta que connosco colabora na edição e no design dos discos ou na organização das digres-sões. Se roubarmos dinheiro, rouba-mos a nós próprios”.

O tom da música mudou apenas porque a vida andou em frente e eles não apreciam repetir-se. “Talvez es-tejamos a voltar a determinados pe-ríodos da nossa vida, a olhar para trás e a exprimir uma certa melancolia, bem como a vontade de olhar em frente”. “Porque os tempos eram me-lhores antes?”, arriscamos nós. “Não, os tempos nunca são bons enquanto os vivemos.”

Os tempos nunca são bons porque podem sempre vir a ser melhores, porque navegar é preciso. À distância de um ano, até a carga de porrada de um porteiro pode parecer experiên-cia útil para o futuro. Palavra de Ran-dy Randall.

Ver crítica de discos págs. 46 e segs.

No Age,

punksnum lugar diferente

“Nouns” soava a explosão de energia com aura de manifesto “do it yourself”. “Everything In Between”, o novo album dos No Age, põe a banda de Los Angeles num novo lugar, com outros sons na cabeça, a abraçar tudo. Na última passagem por Portugal, foram

espancados. “Foi incrível”, diz o guitarrista Randy Randall. Mário Lopes

sica

“Por qualquer razão, privilegiar o ruído e ser mais barulhento não pareceu tão interessante desta vez”Randy Randall

Os No Age são punks californianos sob influências neo-zelandesas

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • 21

Acontece quase sempre assim quando um projecto antes conhecido por criar música predominantemente instru-mental parte para a feitura de can-ções. Quem viu nascer esse projecto tende a conceber que os Darkstar es-colheram seguir uma via mais acessí-vel, de aproximação ao centro. Mas ler o percurso dos ingleses dessa for-ma é simplista. O seu álbum de estreia, “North”, é constituído por canções, mas não se pode dizer que sejam de um padrão facilmente assimilável. São recortadas, complexas, pop electró-nica de rendilhados instrumentais, com muito tempo e espaço à sua fren-te, com influências de linguagens ur-banas, e uma voz que parece neutra, robótica, mas capaz de expressar um naipe alargado de emoções.

Depois de uma série de lançamen-tos em formatos reduzidos, entre 2006 e 2009, para a editora britânica Hyperdub (a casa de Burial, Kode9 ou King Midas Sound), e de serem cono-tados com o dubstep, a linguagem britânica que é uma síntese mutante de electrónicas e ambientes densos, apresentam agora um álbum que é outra coisa, canções pop atmosféricas expressando inquietações humanas, através de variações computorizadas. Mas quando se fala de reinvenção com James Young – que lidera desde o princípio o projecto ao lado de Ai-den Whalley – este prefere a palavra continuidade, apesar de agora o gru-po contar com uma grande novidade: a voz de James Buttery.

“Já tínhamos trabalhado com can-tores no passado, não foi a primeira vez. Nesse sentido existiu um trabalho de continuidade, mas claro que com Buttery foi diferente”, diz James. “É uma progressão natural ter alguém connosco a cantar, apesar de ele ter chegado ao álbum já a meio, quando já tínhamos escrito todas canções. Para ele, a questão foi entrar nelas e sentir-se confortável com o que haví-amos desenvolvido. Da nossa parte tentámos apenas que o ambiente sin-tético não se perdesse por completo, daí que a voz muitas vezes pareça diluir-se na instrumentação, fazendo parte integrante dela.”

Infl uênciasA voz de James Buttler é isenta, con-funde-se com as texturas electrónicas, nesse movimento fazendo lembrar os conterrâneos The xx, embora a pop

A poesia dos Darkstar nasce no computador

Uma música electrónica solene, de grande elegância, exposta em canções que respiram através de uma poesia ambiental em “North”, o soberbo álbum de estreia dos ingleses

Darkstar. Vítor Belanciano

sica

“Existe cada vez mais gente a criar música em Inglaterra que não está preocupada com dinamismos rítmicos, mas sim em criar canções mais tranquilas, talvez porque a música de dança torna-se limitativa”James Buttery

digitalizada com laivos de romantis-mo dos canadianos Junior Boys ou a electrónica obsessiva dos suecos The Knife também possam ser uma porta de entrada para o universo Darkstar. Eles que têm sido identificados com uma série de nomes pós-dubstep, pós-Burial, ainda não conhecidos do gran-de público, mas alvo da atenção dos circuitos melómanos da internet, co-mo os Mount Kimbie do álbum “Crooks & Lovers”, o projecto Balam Acab (do fantástico EP “See Birds”) ou o jovem James Blake (do magnífico EP “Klavierwerke”).

“Sinto que existe cada vez mais gen-te a criar música em Inglaterra que não está preocupada com dinamis-mos rítmicos, mas sim em criar can-

ções mais tranquilas, talvez porque a música de dança a partir de determi-nada altura torna-se limitativa, pelo seu carácter funcional”, diz James, quando o convidamos a reflectir so-bre a realidade pós-dubstep, concluin-do que para isso acontecer foi impor-tante o primeiro álbum de Burial de 2006. “Esse disco acabou por abrir os horizontes de muita gente, inclu-sive os nossos.”

Curiosamente, durante o processo de feitura do álbum, James confessa que os Darkstar se fartaram de ouvir house e tecno. Mas não só. Enquanto a maior parte dos músicos tem relu-tância em expor influências, como se criar não fosse uma desordem, ele tem prazer em fazê-lo, enunciando que ouviram imenso Burial, Radiohe-ad, Japan, banda-sonoras de filmes ou Orchestral Manouvres In The Dark, “não para os reproduzir, claro, mas porque faz parte de um processo de procura que é importante.”

“North” não é um conjunto de fai-xas. É mesmo um álbum. É o tipo de obra que se ouve do princípio ao fim de assentada. Existe um ambiente geral que sustenta todas as canções. “Acima de tudo quisemos criar can-ções onde a noção de espaço estives-se presente. Gostamos dessa ideia de que qualquer um pode submergir na canção, deixar-se ir, retirar dela o que lhe apetece. Mesmo se esse algo é emocionalmente negro, ou melancó-lico.”

As letras são da responsabilidade do próprio James, que confessa pre-ferir manipular sintetizadores do que escrever para exprimir o que lhe vai na alma. “Para este álbum, a maior parte das canções foram compostas ao piano ou à guitarra, o que consti-tuiu novidade. Normalmente parto

para a escrita depois da música estar criada. É-me mais fácil assim. Escrevo sobre o que me rodeia, sobre como me sinto em determinado dia ou so-bre alguém em particular que conhe-ço, mas o ambiente que me é sugerido é importante. A canção ‘North’, por exemplo, foi reescrita várias vezes, porque a sua base sonora também foi sendo refeita.”

Os Darkstar vivem em Londres, mas as suas origens familiares provêm do Norte de Inglaterra. Do ponto de vista da música cidades como Man-chester ou Liverpool são referências. “Há um lado comunitário muito gran-de nessas cidades e isso sente-se nas cenas musicais que acabam por aí flo-rescer. Nos anos 80, por exemplo, toda a cena à volta da Factory, do Ha-çienda ou dos Joy Division era incrível em Manchester, o mesmo sucedendo em Liverpool.”

Também dos anos 80 são os Human League, alvo de uma admirável versão para “Gold”, um tema obscuro que o trio foi repescar, não necessariamen-te por admirarem o grupo em questão – “não gostamos de tudo, mas têm coisas interessantes” – mas meramen-te porque a versão criada lhes agra-dou. Nessa canção, como nas restan-tes, compõem uma pop serena, em estado de suspensão, com qualquer coisa de fantasmagórico.

James diz que o maior desafio foi resistir ao adorno desnecessário. “O disco demorou algum tempo a ser completado porque quisemos remo-ver todas as impurezas”, afirma. No final ficámos com uma pop solene, que parece passiva na sua forma pre-cisa de estar. Mas não o é. É apenas uma leve sensação.

Ver crítica de discos págs. 46 e segs.

Os Darkstar vivem em Londres, com origens familiares no Norte de Inglaterra. Do ponto de vista da música cidades como Manchester ou Liverpool são referências

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22 • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • Ípsilon

Tom Zé

Um útero cheio de p

Quando “Estudando o Samba” (1976), o terceiro disco a solo de Tom Zé, fez 30 anos, ele nem notou. Tinha esque-cido a data, como se não tivesse sido aquele o álbum que lhe havia quase destruído e depois, como uma Fénix tortuosa, salvado a vida – só que mui-tos anos depois.

Ele não deu por nada, mas outros sopraram as velas por ele: “Assinala-ram a importância do disco, houve uma comemoração nos jornais”, diz-nos Tom Zé, agora com 74 irrequietos anos, antes de diminuir a façanha de o seu disco ter entrado oficialmente para a lista dos álbuns históricos-e-a-comemorar. “Até é bonito haver co-memoração no Brasil, mas toda a minha carreira sempre viveu e conti-nua a viver das puxadas para cima que a Europa e os EUA lhe dão”.

E aqui está mais uma puxada: uma caixa temática, “Studies of Tom Zé –

Explaining Things So I Can Con-fuse You”, que come-

mora não os 30 ou

40 anos do lançamento des-

te ou daquele disco, mas sim os 20 anos da redescoberta e do lança-mento de “Explicando o Samba”, por David Byrne.

A caixa – luxuosa, magnífica, um objecto que provoca lacrima-gem em qualquer coleccionador – tem duas variantes, em vinil e

CD. Na “Studies of Tom Zé: Explai-nings Things So I Can Confuse You”

de vinil temos 3 LP de 180 gramas que incluem “Estudando o Samba”, “Estudando o Pagode” e “Estudando

a Bossa”. Além disso há três 7 pole-gadas com faixas inéditas grava-

das a meias com os Tortoise ao vivo em Londres e ainda um

CD com uma entrevista do David Byrne ao Tom Zé.

Na versão CD, as reedi-ções do fabuloso “Com

Defeito de Fabrica-ção”, de “Estudan-

do O Pagode” e de “Brazil Classics 4: The Best Of

Tom Zé”, que é, na realida-

de, uma es-pécie de

“o me-

Há 20 anos, David Byrne descobriu Tom Zé e o músico regressou da tumba para voltar a criar peças de génio. Uma caixa comemorativa reúne a trilogia

“Estudando...”, que dedicou ao samba, ao pagode e à bossa, a “namorada de três bocetas” que mudou a vida dele. João Bonifácio

“Em 82 ou 83, voltei a ouvir ‘Estudando oSamba’. E achei uma maravilha. Pensei ‘Eusou um condenado, como é possível ninguém ouvir isto?’”

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Quando “Estudando o Samba” (1976), o terceiro disco a solo de Tom Zé, fez 30 anos, ele nem notou. Tinha esque-cido a data, como se não tivesse sido aquele o álbum que lhe havia quase destruído e depois, como uma Fénix tortuosa, salvado a vida – só que mui-tos anos depois.

Ele não deu por nada, mas outros sopraram as velas por ele: “Assinala-ram a importância do disco, houve uma comemoração nos jornais”, diz-nos Tom Zé, agora com 74 irrequietos anos, antes de diminuir a façanha de o seu disco ter entrado oficialmente para a lista dos álbuns históricos-e-a-comemorar. “Até é bonito haver co-memoração no Brasil, mas toda a minha carreira sempre viveu e conti-nua a viver das puxadas para cima que a Europa e os EUA lhe dão”.

E aqui está mais uma puxada: uma caixa temática, “Studies of Tom Zé –

Explaining Things So I Can Con-fuse You”, que come-

mora não os 30 ou

40 anos do lançamento des-

te ou daquele disco, mas sim os 20 anos da redescoberta e do lança-mento de “Explicando o Samba”, por David Byrne.

A caixa – luxuosa, magnífica, um objecto que provoca lacrima-gem em qualquer coleccionador – tem duas variantes, em vinil e

CD. Na “Studies of Tom Zé: Explai-nings Things So I Can Confuse You”

de vinil temos 3 LP de 180 gramas que incluem “Estudando o Samba”, “Estudando o Pagode” e “Estudando

a Bossa”. Além disso há três 7 pole-gadas com faixas inéditas grava-

das a meias com os Tortoise ao vivo em Londres e ainda um

CD com uma entrevista do David Byrne ao Tom Zé.

Na versão CD, as reedi-ções do fabuloso “Com

Defeito de Fabrica-ção”, de “Estudan-

do O Pagode” e de “Brazil Classics 4: The Best Of

Tom Zé”, que é, na realida-

de, uma es-pépp cie de

“o me-

que mudou a vida dele. João Bonifácio

“Em 82 ou 8a ouvir ‘EstuSamba’. E amaravilha. Psou um condcomo é possninguém ou

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O fracasso de “Estudando o Samba”, em 1976, fez Tom Zé desistir da música e ir trabalhar para a gasolineira do sobrinho

lhor” de “Estudando o Samba” acres-cido de algumas faixas icónicas das obras anteriores de Tom Zé.

Como se torna óbvio pela data de lançamento, mais do que comemorar o génio de Tom Zé, comemora-se a sua salvação, a sua descoberta às mãos de um David Byrne que o recu-perou para a música.

Se pararmos para pensar, ainda há mais valor acrescentado: a trilogia “Estudando…” dedica-se a olhar para géneros muito determinados da mú-sica brasileira. Em cada um desses discos, Tom Zé procede a uma espécie de desconstrução, não por ser um grave intelectual que quer mostrar o potencial semiótico de cada tipo de música, mas sim porque não sabe “fa-zer música bem”.

Como “Estudando a Bossa” nem editado foi em Portugal (um crime que passou impune como uma eleição em Oeiras), isto para nós também é a oportunidade de se falar de um disco

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • 23

e pedras

estupendo que passou ao lado por-que, sabe-se lá, não é modinha.

Cada disco um suicídioToda a gente, por esta hora, devia co-nhecer a história: Tom Zé andou pelos caminhos do Tropicalismo, fazia par-te da pandilha, escrevia arranjos es-tranhos para os outros músicos, mas não punha cá para fora nada de gran-dioso. Enquanto se enredava em dú-vidas existenciais acerca do seu valor, os restantes tropicalistas tornaram-se estrelas. E o nome Tom Zé ficou de-vidamente esquecido em minúsculos rodapés da história, até que Byrne ouviu por acaso “Estudando o Sam-ba” e o reeditou.

Era inevitável perguntar a Tom Zé uma coisa: que relação tem ele hoje com um disco que teve vidas tão di-ferentes, como é que ele hoje o ouve e que músico vê ali, comparando com o músico que é hoje.

Resposta de Tom Zé, ao telefone de São Paulo, com aquele tom de inocên-cia infantil que o torna comovente e fascinante: “Ouvir esse disco ao longo dos anos foi-me causando as sensa-ções mais díspares”.

A primeira recordação do disco é, claro, desagradável: “Em 1976, quan-do o lancei, achei que estava a fazer algo de errado. Ninguém ligou, o que me causou muita angústia”.

A segunda recordação é de perple-xidade: “Em 1982 ou 1983, alguém me pediu uma cópia. Então, enquanto gravava, voltei a ouvi-lo. E achei uma maravilha. Pensei ‘Mas eu sou um condenado, como é possível ninguém ouvir isto?’ E decidi nunca mais ouvir o disco para não ficar angustiado”.

A desilusão com a recepção ao dis-co foi-se acumulando – e pouco de-pois Tom desistia da música para ir trabalhar para a gasolineira do sobri-nho em Irará, sua terra natal – “a 25 quilómetros da terra do Caetano, que

por sua vez fica a 25 quilómetros da terra do Gilberto – é toda uma conju-gação astral”, comenta.

O músico só voltou a ouvir o disco em 1990, e hoje já consegue fazê-lo “com distância”. “Como se fosse um homem morto, um homem de uma época passada”, diz. “Dizem que as células do corpo se renovam e de X em X anos já não resta nenhuma da original – talvez já tenha morrido a última célula que restava dessa época e agora sejam todas novas”.

De “Estudando o Samba” a “Estu-dando o Pagode” vão 30 anos e vai uma carrada de discos tremendos, em que se assiste a uma progressão tre-menda – entre os quais “No Jardim da Política” (98) e “Jogos de Armar” (2000). Tom Zé nota que com o tem-po se tornou “mais complexo” e “mais completo”, também porque se aper-cebeu das suas limitações.

“Cada disco, para mim, é um suicí-dio”, diz ele (nós respondemos-lhe que isso deve ser chato para a Neuza, a mulher, e Tom Zé ri como um garo-to). “É que eu não tenho a capacidade para fazer melodias belas para os con-templativos”. “Contemplativos” é como Tom Zé chama ao tipo de pes-soas que gostam de canções bonitas e arrumadas, em que o que é exigido ao ouvinte é apenas ficar com o rabo na cadeira e no fim bater palminhas. “Não sou um melodista”, conclui.

Aperceber-se dessa sua “qualidade” foi a grande ignição criativa de Tom Zé. “Afastei-me do mainstream e fui para a fronteira com o som e o ruído”, recorda. Mas isso não o satisfazia por completo – na realidade, confessa, em todo o disco que faz procura “criar música fluida e comercial”. Para que não restem dúvidas: “Há quem diga que quem faz êxitos se prostitui. Pois eu me prostituo a 120 por cento. Mas sou um incompetente da prostitui-ção”.

Há uma certa auto-ironia nestas palavras, mas Tom Zé é sincero quan-do diz: “Persigo fazer uma melodia simples, juro”. Aliás, quem já o viu a cantar “Tahí (Eu fiz tudo pra você gos-tar de mim)”, de Joubert de Carvalho e Eduardo Dusek, ou o “Trem das on-ze horas”, de Adoniran Barbosa, sabe bem da admiração dele pela música popular simples e directa. “Eu sou um sertanejo. Lá só tem violão. Mas eu não sei fazer música só com violão”, atira.

A hipótese mais provável não é a de Tom Zé não saber fazer melodias bonitas – tem-nas ao pontapé –, mas sim a de ter demasiada música na ca-beça, de cada melodia, nos seus neu-rónios, se fragmentar em várias. “É verdade, isso. Estou sempre a desdo-brar as melodias, a imaginar mais e mais harmonias, a mudar ritmos. É isso que eu faço”.

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24 • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • Ípsilon

Bossa nova, carne frescaNestes 30 e tal anos, Tom Zé foi fazendo música em que tenta “acumular significa-dos e estruturas, em-pilhando”. Um dia estava a voltar ao Bra-sil, vindo de Portugal, quando leu “uma matéria numa revista sobre assédio – e isso lembrou-me factos da vida brasi-leira”. Na altura estava na moda o pa-gode, “considerado uma estética in-culta e [que] tratava mal a mulher”. E disso nasceu “Estudando o Pagode”.

Tom queria “mostrar que nenhuma música é inculta, que isso só depende do tratamento que se dá”: “Sempre fui assim: música clássica tem melodia popular com um tratamento mais complexo”. Por uma vez sem falsas

modéstias, Tom admite ter “cons-ciência de que nesse disco [levou] o pagode a um grau de sofistica-ção muito grande”. Essa é a gran-de diferença entre o músico de há 30 e tal anos e o de agora.

Nesta altura, claro, Tom Zé já tinha noção do que funcionava consigo (embora pareça arris-

car mais e melhor com a idade). Já sabia que

“não [consegue] fa-zer um disco que não seja um de-safio sobre a vi-da brasileira”, por exemplo. É outra das mar-cas que Tom Zé

foi refinando, a de um músico

conceptual em todas as ver-tentes da pa-

lavra: os seus discos são meticulosos estudos melódicos, harmónicos, rít-micos e políticos sobre a cultura bra-sileira. “De vez em quando vejo que a alma brasileira elege uma direcção. O que eu faço é apenas um gesto que emula essa direcção, mas à minha ma-neira. Eu só faço o que ainda não está feito no caminho do que já se fez”.

Não admira portanto que com este grau de exigência Tom tenha tido de

“esperar até aos 70 anos para fazer uma melodia bossa nova”. “Eu não podia aproximar-me da bossa porque eu era o artista que trabalhava o gros-so, o bruto, que só escrevia sobre pro-blemas”.

E no entanto, a bossa é o maior mi-lagre que lhe aconteceu. “A bossa na minha vida foi como um sonho. Tinha 22 anos, veja só, 22 anos quando a Rádio Excelsa tocou o João Gilberto no “Chega de saudade”. Foi como uma namorada nova, que tinha duas ou três bocetas, carne fresca e dura e um sonho de perfume”.

Claro que “Estudando a Bossa”, como os discos anteriores, foi motivo para crispação. Caetano, o amigo-inimigo de Tom, escreveu no seu blo-gue que “Estudando a Bossa” era (ci-tamos Tom a parafrasear Caetano) “aquilo que ele sempre tinha achado que a bossa devia ser, ‘o nosso samba em progresso’”. Reacção de Tom:

“Nosso uma por-ra! Meu. Meu, que penei muito para o escre-ver”.

Tom admite que podia ter reagido de

outra forma, que tal-vez ainda tenha algum

rancor aos acontecimentos da Tropicália, que vendo bem as

coisas, mas que ficou magoado quando Caetano o descreveu como “um orga-nizador de festas e bebedeiras”.

Vendo bem as coisas, o que interes-sa é o que disco ficou “uma coisa bo-nita”. Olhando para trás, coisa estra-nha em alguém cujo cérebro nunca pára e que já está a congeminar um novo disco com um novo conceito, Tom Zé diz que é “um trabalhador, um sonizador” que só sabe “trabalhar com conceito”.

“Esse útero que eu tenho a dada altura já não aguenta mais e tem de pôr cá para fora. Por isso é que eu digo que faço música pelo canal do sofrimento. O sofrimento da pedra, que eu tenho de fazer sangrar”.

O mais curioso é que a pedra tam-bém dança e canta, ao som de Tom Zé. Mas não lhe contem isto.

Ver crítica de discos na pág. 46 e se-gs.

“Faço música pelo canal dosofrimento. Tenho de fazer sangrar [a pedra]”

Bossa nova, carne frescaNestes 30 e tal anos, Tom Zé foi fazendomúsica em que tenta“acumular significa-dos e estruturas, em-pilhando”. Um dia estava a voltar ao Bra-sil, vindo de Portugal,quando leu “uma matérianuma revista sobre assédio – e isso lembrou-me factos da vida brasi-

modéstias, Tom admite terciência de que nesse disco o pagode a um grau de soção muito grande”. Essa é de diferença entre o músic30 e tal anos e o de agora

Nesta altura, claro, Tomtinha noção do que funcconsigo (embora pareç

car mais e melhoridade). Já sab

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Tony Malaby saxofonesChes Smith bateriaIngebrigt Haker Flaten contrabaixo

Michael Formanek contrabaixoTim Berne saxofone altoCraig Taborn pianoGerald Cleaver bateria

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Chegaram a pensar titular todas as canções do disco com o nome de uma banda de hardcore estrangeira – o que poderia ter resultados hilariantes co-mo “Biscoitos de Gorila”. Ficaram-se por “Ameaça menor”, uma homena-gem sentida aos Minor Threat. Na ho-ra de olhar para a frente e começar a fazer o segundo álbum, os Linda Mar-tini mergulharam no seu passado.

“Numa fase inicial”, as raízes punk apareceram “de uma forma incons-ciente”, conta Hélio Morais, o bate-rista, ao Ípsilon. Mas, quando perce-beram o disco que começavam a ter em mãos, os Linda Martini decidiram “assumir a coisa” por completo. E, entusiasmados com o novo rumo, chamaram “Casa Ocupada” ao álbum, uma referência a um local mítico da cena punk e hardcore lisboeta.

A herança punk estava já em “Olhos de Mongol” (2006), mas mais diluída, em longas incursões instrumentais, devedoras do pós-rock, do pós-hard-core, do pós-qualquer-coisa. “Casa Ocupada” dá-lhe um maior peso. “Es-te disco teve dois discos pelo meio, o ‘Marsupial’ e o disco ao vivo, o ‘Inter-valo’, que, de uma forma ou de outra, por oposição ou por sugestão, acaba-ram por defini-lo um pouco”, diz Hé-lio. Pelo meio houve também a saída do guitarrista Sérgio Lemos.

Em “Marsupial”, um EP lançado em 2008, havia melódicas, trompetes,

retalhos de electrónica - apesar de “fazer bastante sentido” no percurso do grupo, “não foi muito explorado ao vivo”; “Intervalo”, editado há pou-co menos de um ano, deu-lhes “von-tade de fazer uma coisa mais ‘rough’”, a pensar nos palcos. “Não há nada que dê mais gozo do que tocar ao vivo. Não faz mal nenhum direccionar as coisas para isso”.

Dito e feito. “Casa Ocupada” foi gra-vado quase todo com a banda a tocar ao mesmo tempo em estúdio. Só o guitarrista Pedro Geraldes, que “tem sempre mil ideias para uma música”, teve liberdade para acrescentar ca-madas à matéria bruta, gravada em apenas dois dias. O método, “bastan-te diferente” da habitual gravação individual de cada músico, mostrou ter vantagens: “Gravas e ficas logo com uma percepção daquilo a que as músicas te soam. Vais para casa e vais pensando em coisas [para melhorar as canções]”.

“Casa Ocupada” não é exactamen-te um novo começo, mas “é uma fase diferente”. “Enquanto banda, esta-mos mais coesos do que alguma vez estivemos. Acho que chegamos a uma espécie de maturidade - não enquan-to pessoas, mas enquanto banda. Li-darmos com egos uns dos outros, tudo isso”, refere Hélio.

Uma maturidade que lhes dá con-fiança para chamarem a uma canção

“Juventude sónica”. “Sempre levamos com a comparação aos Sonic Youth. Não é uma coisa que nos aborreça, porque cada um tem consciência do que faz, como faz e porque faz. Quan-do fizemos esta música, o ‘riff ’ inicial soava a Sonic Youth e decidimos: já que temos o rótulo, vamos assumir. Agora já têm todos os elementos para nos associarem aos Sonic Youth”, diz. E ri-se.

Uma subcultura“Casa Ocupada” é uma homenagem ao caldeirão criativo do qual os Linda Martini saíram para, algures em 2006, se tornarem uma das mais pro-missoras e versáteis bandas rock por-tuguesas, capaz de entusiasmar pro-les juvenis em queimas das fitas e “nerds” especialistas no rock instru-mental pós-Mogwai - o mesmo cal-deirão que gerou a maioria dos mú-sicos por trás dos Paus, Riding Pânico e If Lucy Fell.

Foi na Kasa Enkantada - como al-guns chamavam à casa abandonada da Praça de Espanha, em Lisboa, ocu-pada pela comunidade punk e hard-core entre 1997 e 2002 - e em espaços como o extinto Ritz que este grupo de músicos se formou, em bandas co-mo Shoal (onde militavam Hélio Mo-rais e André Henriques, vocalista dos Linda Martini), As Good As Dead (com Cláudia Guerreiro, baixista dos Linda

Martini, e Hélio), Renewal (onde an-dava, por exemplo, Joaquim Alberga-ria, dos Paus) e Croustibat (com Bru-no Cardoso, ex-Vicious Five, hoje Xi-nobi). A homenagem chegou à sessão fotográfica para o novo disco - os qua-tro Linda Martini envergam t-shirts destes quatro grupos.

“Todos os membros de Linda Mar-

tini tocaram na casa ocupada”, recor-da Hélio Morais. Havia uma bibliote-ca, onde se faziam jantares vegetaria-nos, e uma exígua sala onde havia concertos quase todos os fins-de-se-mana.

“Não tinha nenhum ‘glamour’. Há quem romantize muito a coisa. A úni-ca parte romântica daquilo era o em-penho com que as pessoas faziam aqueles concertos. Tinha montes de pessoas a fazerem ‘zines’ [revistas feitas artesanalmente, geralmente policopiadas], montes de pessoas a fazerem comida vegetariana e a ven-der lá, pessoas com ‘distros’ [distri-buidoras, também artesanais] a ven-derem discos e cassetes. Era o ponto de encontro de uma subcultura que havia em Lisboa, mais em Lisboa do que noutras cidades portuguesas”, descreve.

Em 2002, a Câmara de Lisboa des-pejou os “okupas” e demoliu a casa. A comunidade hardcore encontraria novo poiso, outra casa ocupada perto do Estádio de Alvalade.

No local da Kasa Enkantada, “ainda está o buraco”, diz Hélio. Nada foi construído no lugar daquele micro-cosmos, mas o essencial está cá fora, a mexer: miúdos (ou adultos com co-rações de miúdos) com vontade de fazer coisas.

Ver crítica de discos págs. 46 e segs.

Linda Martini de regressoà casa encantadaInspirados por uma já desaparecida casa ocupada de Lisboa, onde se formaram em bandas hardcore, os Linda Martini voltaram aos discos. Nada foi construído no lugar que ela deixou

vago, mas cá fora os miúdos que lá cresceram continuam a mexer. Pedro Rios

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“Todos os membros de Linda Martini tocaram na casa ocupada. Não tinha nenhum ‘glamour’. A única parte romântica daquilo era o empenho das pessoas”Hélio Morais

Com a saída de Sérgio Lemos, os LInda Martini são agora quatro

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Entrevistar Gonçalo Tavares é muito parecido com ler Gonçalo Tavares: já sabemos que não vai haver espaço para trivialidades, que tudo será ques-tão de energia e pensamento. A pro-pósito do romance “Uma Viagem à Índia” (ver recensão na última edição do suplemento), o escritor respondeu por e-mail às perguntas do Ípsilon, mas o romance recentemente publi-cado pela Caminho é apenas o ponto de partida para uma introdução à obra de Gonçalo Tavares. Escrita pe-lo próprio.Escreveu um romance em verso que de algum modo glosa “Os Lusíadas”, e ficamos com a sensação de que só o Gonçalo Tavares é que se podia permitir um projecto tão ambicioso. De onde lhe vem essa confiança para um projecto que a outros pareceria uma ousadia impossível?Uma parte do meu trabalho é um di-álogo com os clássicos. O projecto do “Bairro” e também o livro a “Biblio-teca” têm este espírito. As minhas aproximações são sempre amorosas, aproximo-me apenas daquilo que ad-miro. “Uma Viagem à Índia” insere-se nesta forma de dar atenção ao passa-do. O escritor tem uma responsabili-dade, não apenas em relação ao mo-mento presente e ao que aí vem, mas, antes de mais, em relação ao passado. As gerações passadas deixaram-nos muitos sinais. É responsabilidade do escritor contemporâneo estar atento aos sinais que os escritores clássicos nos deixaram. Os clássicos – como “Os Lusíadas” - são isso mesmo, livros que querem interferir no dia de hoje, que nos estão a fazer sinais importantes. E Camões é tão central, é tão impor-tante para a língua portuguesa que só por acaso ou má sorte não nos cruza-mos a fundo com a sua obra.Independentemente do génio de Camões, como se relaciona com “Os Lusíadas” na sua dimensão “ideológica”?“Os Lusíadas” é uma obra fabulosa, de uma grande riqueza; e ainda hoje dá enorme prazer ficar diante daqui-lo que percebemos que não envelhe-ce. O meu prazer na leitura, ainda mais em relação aos clássicos, é, aci-ma do mais, estético, e não ideológico – refere-se a esse prazer que é difícil perceber e analisar racionalmente.

Este livro resulta de meses dedicados a esse fascínio. Poderia desta dedica-ção resultar um ensaio académico, mas tentei dirigir para outro mundo completamente distinto. O de uma ficção centrada numa personagem, Bloom, puramente ficcional, comple-tamente afastada, em termos de con-teúdo, deste mundo clássico. Uma personagem com os problemas do século XXI.Embora exista algum diálogo com “Os Lusíadas”, o romance ignora quase por completo as

questões históricas e identitárias portuguesas, tal como acontece nos seus romances. Neste caso, tendo em conta o livro para o qual remete, não é uma provocação adicional?O ponto de partida é logo completa-mente outro, o da fuga. “Uma Viagem à Índia” conta as aventuras, mais men-tais mas também físicas, de uma per-sonagem que foge de Lisboa em 2003. O seu conteúdo não é apenas uma ficção, que está portanto muito longe da realidade - é uma ficção que não

quer parecer verdadeira. É uma ficção ao quadrado ou ao cubo. Há muitas formas possíveis de entrar neste livro e uma delas, como é referido no pre-fácio, é a partir de Borges. Bloom po-de ser visto como uma personagem de ficção borgesiana - as questões his-tóricas e identitárias portuguesas são de um outro contexto, que não o des-ta viagem. O mundo da personagem Bloom, nome de uma herança literá-ria moderna, é completamente outro. Esta é uma ficção da ordem do irreal. Há então muitos desvios que têm a

ver com a unidade narrativa do per-curso de Bloom, mas “Uma Viagem à Índia” acompanha passo a passo, frag-mento a fragmento, por vezes linha a linha, os conflitos físicos, os relatos sobre o passado, os tumultos, os en-ganos, as entradas em cena do narra-dor, etc, de “Os Lusíadas”. É como se, passo a passo, Bloom seguisse o per-curso dos Lusíadas. Mas acompanha-o como se partisse de um mapa de um outro mundo, um mapa que vai di-zendo: agora há aqui um conflito, ago-ra alguém mostra os objectos que

O romance Mais do que a história de uma viagem, o último romance de Gonçalo M. Tavares é a história de u

é o momento mais ambicioso de uma obra pessimista que não a

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SGonçalo M Tavares screveu um romance em verso que glosa “Os Lusíadas”, e ficamos com a sensação de que só ele se podia permitir um projecto tão ambicioso

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e ensina a caire uma queda. Inspirado pelos clássicos e assombrado pelo séc. XX, “Uma Viagem à Índia” o abdica da memória e da exigência. Pedro Mexia

Liv

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trouxe de longe, etc. E esses aconte-cimentos são passados para 2003, para uma personagem de ficção que parece ela mesma saber que é perso-nagem de ficção. E nesta passagem tudo se altera: na viagem de Bloom todos os acontecimentos são míni-mos, a sua mesquinhez e a mesqui-nhez do que lhe acontece está sempre presente. Não é um herói antigo, é uma personagem de ficção moderna, com as misérias modernas e com a ironia como arma que utiliza para se defender do mundo. Este Bloom, em

2003, está num outro mundo, não no mundo das grandes conquistas e das grandes descobertas colectivas. Pelo contrário, e é logo a diferença essen-cial – Bloom é uma personagem de ficção que age totalmente sozinho. É um individualista do século XXI. Al-guém que foge sozinho, decide ape-nas pela sua cabeça e regressa, no fim, também sozinho. Para além da referência a Camões e à epopeia, o que é que justifica formal e esteticamente a opção pelo verso? Há muitas

passagens no romance que podiam ser em prosa sem nenhuma perda de sentido.A forma de “Uma Viagem à Índia” não é exactamente a forma da poesia em verso e por isso o sentido adquire-se também de maneira distinta. Aqui a forma tem uma outra lógica, impõe pausas e cortes e com isso dá um rit-mo de leitura que é completamente distinto: condiciona o modo de ler. Por outro lado este ritmo de escrita, com esta partição, foi determinante no momento de escrita inicial. Foi ela que determinou, de certa maneira, o conteúdo, os desvios, etc. Sem esta forma eu não escreveria este livro, mas um outro certamente. Outra questão, é a do género. Não sei se é romance se é outra coisa. “Uma Via-gem à Índia” em termos de género é muitas vezes uma coisa e o seu opos-to. É também, em parte, um ensaio.“Uma Viagem à Índia” é uma tragédia? Ou uma epopeia em 2010 é forçosamente uma farsa?“Uma Viagem à Índia” tem diferentes portas de entrada. Eu não tenho nem uma chave, nem uma classificação e não gosto de interpretar demasiado. Penso que é um livro para ser digeri-do lentamente. De certa maneira, é verdade, o humor e ironia aqui são trágicos. Este livro é uma ficção hiper-consciente. Nesse sentido, está mui-tíssimo afastado de qualquer questão trágica realista. O que acontece po-deria acontecer, no limite, num so-nho. É até uma hipótese de interpre-tação: a viagem à Índia de Bloom não ter realmente acontecido de forma física e tudo se ter passado na cabeça de Bloom. Um percurso mental ou um sonho. É uma hipótese.Do Gama a Bloom, passámos do herói ao “homem sem qualidades”?Esta personagem Bloom está com os pés na terra mais baixa. De facto, não se distingue dos outros em nenhuma particularidade excepcional. Só se distingue porque olhamos para ele. Porque o narrador foca o olhar nessa personagem e tenta segui-la. Mas o narrador poderia fixar-se noutra per-sonagem. É protagonista não porque é uma personagem grandiosa. É como se tivesse sido empurrado para o cen-tro da cena, sem saber porquê. Como uma personagem à Jacques Tati que, sem saber bem como, abre uma por-

ta e subitamente está no centro do palco. E a partir daí, cada um dos seus gestos, até o mais mesquinho, é se-guido pela narrativa. Bloom e as personagens de “Uma Viagem a Índia” parecem não ganhar nada com a experiência. Não acredita no valor moral da experiência, como Camões acreditava?A experiência tem um forte valor mo-ral e intelectual. Mas a modernidade alterou um pouco o valor e os termos dessa experiência. Classicamente a experiência pressupunha deslocação física. Se possível, a grande viagem. Na modernidade, a experiência é mui-tas vezes mental e, neste sentido, es-ta epopeia ou anti-epopeia é muito mais mental do que física. Mas a ques-tão também é que a experiência, qual-quer que ela seja, não implica neces-sariamente mudança, pois esta é de-terminada pelos movimentos da personagem. E a personagem de fic-ção, Bloom, mantém sempre uma dupla distância em relação aos acon-tecimentos - distância que lhe é dada pela ironia/por vezes cinismo, mas que lhe é dada também por algo meio irreal, pela noção, que o próprio Bloom tem, de ser uma personagem. Estes dois posicionamentos mentais dificultam a hipótese de aprendiza-gem directa. Acho que, se há uma aprendizagem em Bloom, os resulta-dos podem em parte ser estes. Apesar de tudo não voltou igual, multiplicou por dois a sua decepção inicial. É justo dizer que em “Uma Viagem à Índia” os homens são exactamente iguais em todas as latitudes? Qual é o papel da cultura na formação do carácter?Pensando nesta ficção, o tédio forta-lecido com que Bloom regressa no fim da viagem à Índia vem em parte disso. De ter ido muito longe para encontrar o outro e afinal ter encontrado o mes-mo. Até mesmo em relação aos inimi-gos. Bloom desejaria talvez encontrar na sua viagem inimigos diferentes – mas não. Encontra apenas inimigos e obstáculos semelhantes. Em “Uma Viagem à Índia” aparece várias vezes a ideia de que o progresso material não traz consigo o progresso ético. A aliança entre a ética protestante e o capitalismo fracassou?Esta viagem de Bloom parece ser

Por vezes aparecem uns leitores que leram tudo. Mas são poucos e são “malucos”. Fico-lhes muito grato

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feita na horizontal. Sai de Lisboa vai a Londres, a Paris, a Praga, depois Índia, etc. Porém, na verdade, os mo-vimentos de Bloom são mais os de uma queda. Um movimento na ver-tical, de cima para baixo. Como se a personagem estivesse já neste século XXI em que o mundo está todo des-coberto e mais ou menos domestica-do, como se estivesse portanto num solo muito baixo e mesmo assim ain-da caísse mais. Os seus movimentos ao longo da viagem são muito os mo-vimentos de alguém que está a cair. Uma personagem sem qualidades, mas em queda. E o que parece é que é uma personagem que se entedia com a queda. Não tem medo, não fi-ca desesperado, não faz um balanço último da sua vida. Não passa tanto por questões políticas, colectivas, por eventuais falhanços ideológicos ou do capitalismo. É muito mais uma questão centrada no indivíduo. O grande movimento do século XXI parece-me, é o da queda. A escolha da Índia é também uma crítica a um certo misticismo fraudulento a que o Ocidente por vezes recorre?Sim. Essa é uma das leituras possíveis. E essa leitura é quase oposta à leitura da questão anterior, de uma possível crítica ao materialismo. O Ocidente materialista e funcionalista, exempli-ficado em Bloom, acaba finalmente por ser enganado e roubado pelo Oriente místico e ético. A ovelha tro-ça do lobo, e rouba-o. No momento em que é roubado, diz-se, com ironia, que Bloom passa “directamente, sem intermediários,/verbas da ignóbil Eu-ropa/para a sábia, sensata, receptiva Índia”.O seu pessimismo antropológico é total, é difícil encontrarmos nas suas personagens ou atitudes humanamente decentes; não há o risco de esse negrume se tornar programático, determinista?“Uma Viagem à Índia” é atravessado pela ironia e humor que deslocam e boicotam a tensão. Bloom é alguém que não se leva a sério. De qualquer maneira, a questão principal é que em 2010 escrevemos depois de ver-mos e compreendermos o século XX. A brutalidade dos acontecimentos do século XX exige, a qualquer escritor, um pessimismo antropológico firme.

É uma responsabilidade moral e lite-rária. Mesmo que utilizemos a ironia e o humor, de que tanto gosto, mes-mo que apresentemos personagens com a delicadeza do Bloom que está fascinado por ter erva de Paris nos sapatos, mesmo quando fazemos is-to, o essencial é não esquecermos a potencial maldade e violência que existe em cada pessoa, em cada ani-mal humano. O espaço da literatura pode ser tudo e mais alguma coisa, mas antes de mais é um espaço de vigilância à distância, de uma atenção constante. É um pouco como estar a repetir constantemente: atenção!, não te esqueças do século XX, não te esqueças do século XX. Tendo em conta o seu pessimismo cultural, considera que o projecto iluminista falhou, que o homem contemporâneo continua a ignorar a racionalidade, a ciência e o progresso?Não me parece que seja um pessimis-ta cultural. Em termos colectivos, acho que a racionalidade, as ciências e o progresso tecnológico marcam por completo o mundo do homem contemporâneo. É talvez um sucesso sem precedentes. A questão é que a certa altura os progressos técnico e científico esbarram por completo contra coisa básicas e antigas - as ne-cessidades primárias. A já clássica destruição das máquinas no início da revolução industrial por parte de ope-

rários que temiam perder o emprego, por as suas funções serem substituí-das, a menor custo, por máquinas – é uma imagem do passado que cada vez é mais actual. O optimismo cultural, tecnológico e científico esbarra por isso em algo biológico, a que não há forma de dar a volta.Mais do que convicções religiosas ou princípios éticos, a sua visão do comportamento humano move-se por “forças” e “energias”. Isso vem de Nietzsche, ou é uma compreensão científica do mundo?A questão religiosa é muito central para mim. Quando estou diante de uma pessoa crente sinto-me sempre mais fraco do que ela. Em relação ao comportamento humano, vejo-o em parte como forças e energias, mas essas forças e energias são ética. O sítio onde se actua e a intensidade com que se aplica uma força revelam a ética de quem faz essa acção. Onde se aplica a energia, para que objecto se canaliza mais tempo, tudo isso dá o posicionamento moral. A força não é uma questão apenas muscular, de vontades ou atracções e repulsas, é também, quase sempre, uma síntese de decisões éticas. E, sim, a ciência interessa-me bastante – é algo a que dou muita atenção; e há depois inú-meros autores da filosofia que são marcantes nesta questão da força e da energia. Mais até do que Nietzs-

che, penso em Junger. Os livros de Sloterdijk acompanham também es-sa linha. E é curioso que são todos autores muito perto de um extremo perigoso, são uns pessimistas antro-pológicos terríveis – mas, é interes-sante constatar que talvez esta famí-lia de autores seja a que consegue um diagnóstico mais próximo e mais pro-fundo da realidade.Parece menos interessado no tema do amor romântico, e mais focado na sexualidade como função, como mecanismo, quase como higiene. Isso significa que não se revê na tradição romântica que vê o amor acima de tudo como uma emoção?O amor romântico já foi descrito sob todos os ângulos, mostrado em cine-ma, em televisão, em fotografia, etc., etc... Nos “fragmentos de um discur-so amoroso” fala-se precisamente deste impudor, bem maior que o im-pudor colocado na descrição do de-sejo, que é descrever o amor român-tico na sua fase embriagada. A tradi-ção romântica do amor coloca-o numa espécie de círculo em redor de duas declarações – amo-te/eu tam-bém te amo ou amo-te/não te amo – e estas duas declarações impõem-se a tudo o resto: o mundo desaparece. Esta embriaguez não permite o des-vio do olhar, nem a desatenção míni-ma. E estarmos obcecados por uma parte é estarmos desatentos a tudo o resto. Mas, apesar de tudo, a perso-

nagem Bloom, ironicamente chama-da de herói, é alguém que começa o seu movimento de fuga e aprendiza-gem até à Índia por uma fractura amorosa; é um amor não romântico, quase desinteressado, mas é um amor.É talvez o único assumido “escritor de ideias” da sua geração. Diria que isso tem a ver sobretudo com a sua personalidade ou mais com as suas leituras?É impossível distinguir personalidade e leituras, ou personalidade e expe-riências. E neste particular, é claro que as leituras são uma experiência muito importante. Detesto a ideia de que a leitura não seja uma experiência de vida. Como se saíssemos da vida para ler um livro e, depois da leitura, voltássemos desse sítio obscuro, de novo para a vida. Como se o acto de leitura fosse realizado num gabinete fechado. Acho que todos sabemos que não é assim. Há livros, e o conjunto de livros que se leu ainda tornam isto mais intenso, que mudam radical-mente a personalidade. É evidente também que há experiências de vida, biográficas, com uma dimensão de-cisiva no meu percurso – e no percur-so de todos. Sobre isto guardo um certo pudor. Pode parecer estranho, pois tenho a imagem de alguém mui-to cerebral, mas escrevo instintiva-mente. Quando as coisas correm bem escrevo sem pensar em nada. Nunca

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penso antes de escrever. Tento que o pensamento coincida exactamente com o acto de escrita - não estão se-parados no tempo. Nunca planeio ou projecto. Quando começo um livro não sei que personagens vão existir, não sei o que lhes vai acontecer. Se já sei o que vou escrever, não escrevo. A minha escrita é claramente para mim um acto de investigação, tentar descobrir o que não sei.Os seus textos estão cheios de reflexões e divagações, aforismos; essas passagens “filosóficas” perdem força se extraídas do contexto?Eu não dou essa informação explici-tamente no livro, mas julgo que há duas formas de ler “Uma Viagem à Índia”. A forma habitual, em que se começa na primeira página e se aca-ba na última. E há ainda a leitura ao acaso, quase como uma digressão perdida por uma cidade. E gostava que este livro, em parte, pudesse vir a ser lido como um livro de consulta. Uma espécie de I Ching, bem mais terreno, que, aberto ao acaso, em qualquer página, pudesse dar indi-cações, instruções por vezes contra-ditórias – mas que permitissem per-ceber melhor o momento e as situa-ções em que cada leitor está. Não vejo as frases fora do livro, mas vejo-as disponíveis - como um manual meio delirante, que se pode abrir em qualquer momento. Em geral, escreve numa estilo “neutro”, numa prosa que não chama a atenção para si mesma. Considera o “estilo” um perigo, ou a secura de linguagem é a forma que melhor serve as suas ideias?Parece-me que, às vezes, um estilo espampanante é um meio de tentar tapar a ausência completa, já não di-go de uma ideia, mas de um naco de uma ideia. Quando eliminamos o su-pérfluo, o que não é mesmo necessá-rio, a frase fica nua e aí sim, percebe-se se a frase tem algo para dizer ou não. Muito do meu trabalho sobre o texto é eliminar. Se tenho 10 palavras que tentam dizer algo numa frase, eu penso se posso passar para cinco pa-lavras, mantendo a essência da frase. E este é o ofício mais difícil: trabalhar para o texto ser cada vez mais peque-no e forte. Ganhar força à medida que perde palavras. Gosto que as frases

sejam exactas e ambíguas, ao mesmo tempo, o que é um pouco paradoxal – mas tem algo a ver com isto: elimi-nar o explicativo e o que adoça a fra-se. Assim, julgo que fica mais espaço para o leitor. Este é o seu opus 27. Sabe se há muito gente que leu tudo aquilo que publicou? E sente que um conhecimento integral é importante para compreender a sua obra?Por vezes aparecem uns leitores que leram tudo. Mas são poucos e são “malucos”. Fico-lhes muito grato. É claro que não posso querer que leiam todos os livros, mas para mim é evi-dente que há ligações, afinidades, complementariedades entre todos eles. Mesmo nos livros que são muito distintos, há algo que os une. Vejo muitas vezes cada livro como se fosse um ponto, e como se os livros do mes-mo mundo traçassem linhas e essas linhas cruzadas formassem um dese-nho. Um desenho que está a ser feito, que não sei como terminará, que li-nhas terá e o que representará – mas sim, todos os livros pertencem ao mesmo desenho.Além das traduções já publicadas, há 160 traduções de obras suas em curso. Isso envaidece-o, assusta-o, ou acha simplesmente natural?O ritmo das traduções é surpreenden-te. As traduções são muito dirigidas a um público leitor, que se interessa e conhece. Tanto a possibilidade de ter leitores que não têm acesso à lín-gua portuguesa, como o facto de ter pessoas brilhantes a responderem criativa e intelectualmente aos meus livros agrada-me muito, claro. Mas isso não diminui um milímetro da mi-nha vigilância sobre o meu trabalho, nem o entusiasmo dirigido para o que quero fazer. Quantos livros tem terminados ou no prelo? Em Novembro vai sair “Matteo per-deu o emprego”, onde me interessa muito o híbrido; é um livro, de início, muito narrativo, composto de peque-nas histórias que se ligam entre si. O tom da narrativa vai depois mudando - e interessava-me muito esta deslo-cação do livro que começa a parecer uma coisa e termina num chão muito distinto. Sairá também “O Senhor Eliot e as Conferências”.

O espaço da literatura pode ser tudo e mais alguma coisa, mas antes de mais é um espaço de vigilância à distância

BLINDDATE

SÃOLUIZNOV~1O

SÃOLUIZNOV~1O

8 A 13 NOVBLIND DATEOLGA RORIZ coreografia e interpretação

CLÁUDIA VAREJÃO filme

IRENE LIMA violonceloJARDIM DE INVERNOCO-PRODUÇÃO DUPLA CENACLASSIFICAÇÃO ETÁRIA A DEFINIR

ensaios públicos8 A 1O NOVSEGUNDA A QUARTA ÀS 21H00

apresentações finais12 E 13 NOVSEXTA E SÁBADO ÀS 23H30

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPALRUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 [email protected]; TEL: 213 257 640

www.teatrosaoluiz.pt BILHETEIRA DAS 13H00 ÀS 20H00TEL: 213 257 [email protected]

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Projecto financiado com o apoio da Comissão Europeia

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programação em www.teatrosaoluiz.pt e http://colectivo84.blogspot.com

se fores apanhado nos sonhos dosoutros, estás feito.

O Colectivo 84 é uma estrutura financiada por

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Com a relutância dos heróis, e o me-do de condenar em vez de salvar, o príncipe, num primeiro momento, vacila. Beijará ele a Bela Adormecida para a acordar? Devolverá ele à prin-cesa do conto de Charles Perrault es-se despertar e, com ele, a consciência de que esteve adormecida quase cem anos, afinal perdidos, porque sobre o seu corpo passaram? E, ao beijá-la, irá ele condená-la, a ela e a todo o palácio posto a dormir pela maldição da fada má, a essa dolorosa verda-de?

Depois da terrível profecia de Ca-rabosse, determinando que, quando fizesse 16 anos, a princesa Aurora pi-caria o dedo num fuso e morreria, Lilás, a mais nova das sete fadas con-vidadas pelo Rei e pela Rainha para a grande festa que celebrava o nasci-mento da princesa, corrige o feitiço: em vez de morrer, a princesa será to-mada por um sono profundo. E com ela todo o palácio – Rei, Rainha, aias e amas, convidados do grande baile do 16.º aniversário da princesa –, até ao dia em que um jovem príncipe a venha acordar.

No tradicional conto de fadas, o tempo não passou nesses anos de es-quecimento. Aurora desperta para a vida, com juventude. O beijo conden-sa felicidade e redenção. Na “Bela Adormecida” escrita e encenada pelo dramaturgo Tiago Rodrigues para pe-ça inaugural da nova Companhia Maior – que ontem se estreou no Cen-tro Cultural de Belém (CCB) –, não é bem assim. A verdade cola-se à fanta-sia, põe carga em cada gesto, e os ponteiros sublinham o “tiquetaque” do relógio. Não para que deixemos de acreditar em fadas. Ao contrário: para que acreditemos, mesmo peran-te a inelutável passagem do tempo.

Depois de vacilar, o príncipe (An-tónio Pedrosa) decide-se e beija a princesa (Kimberley Ribeiro). Cede à fantasia, personificada pela fada Lilás (Isabel Millet) que lhe aparece en-

quanto, já velho, ele pensa em voz alta e se rende à pressão das raízes que lhe nascem no cérebro e lhe ocu-pam todo o corpo. Dos sonhos, diz, não podemos libertarmo-nos: mais vale segui-los para que não sejam eles a perseguir-nos mais tarde.

É já no fim da vida que o príncipe vai ter com a Bela Adormecida. A me-mória já lhe falha, depois de uma vida passada a fazer tudo o que o reino queria (um reino que podia ser de outros tempos, mas que parece ser deste): estudar Medicina e casar, ir para a guerra em África e voltar. “Aca-bei sempre por aceitar o que os outros queriam para mim. Estudei, namorei, bebi, fui à guerra, casei, trabalhei, ti-ve filhos. Tudo o que quiseram para mim. Fiz o melhor que pude para me

esquecer de que era um príncipe.” Mas não esqueceu a história que,

provavelmente, ouviu em criança. Mensagem: a fantasia é necessária – inevitável – na vida.

Um projecto “maior” A moral da “Bela Adormecida” de Tiago Rodrigues é também a história desta companhia. Criada na Primave-ra deste ano, a Companhia Maior jun-ta pessoas cujo percurso está (ou não) ligado às artes (teatro, pintura, músi-ca, dança) e que a vida afastou (ou não) dos palcos ou dos microfones da rádio e dos ecrãs de televisão. Têm mais de 60 anos e transportam mar-cas do tempo e da memória, mas tam-bém têm espaço para uma segunda oportunidade. Noção que o encena-

dor quis aqui ver tratada, como mar-ca de identidade a deixar num espec-táculo que se quer fundador de uma estrutura com estas características.

Também aqui há começo, segunda oportunidade, e futuro. Depois dos espectáculos no Pequeno Auditório do CCB, onde estará até domingo, a peça parte numa longa digressão que a levará a Bragança (27 de Novembro, Teatro Municipal), Estarreja (11 de De-zembro, Cineteatro), Portimão (22 de Janeiro, Teatro Municipal), Viseu (28 e 29 de Janeiro, Teatro Viriato), Porto (3 a 6 de Fevereiro, Teatro Carlos Al-berto), São Miguel (26 de Fevereiro, Teatro Micaelense) e Torres Novas (26 de Março, Teatro Virgínia). E, para o próximo Outono, está garantida uma segunda produção. É um projecto

para continuar. Para que seja “maior”, como o nome indica e como é desejo da sua mentora e actual directora, Luísa Taveira, criará raízes com uma produção de um encenador ou core-ógrafo diferente todos os anos.

O dom da memóriaO tempo passou para os intérpretes, que chegam a esta “Bela Adormecida” depois dos 60, e passou também pa-ra as personagens. “Pó novo sobre pó antigo, sobre pó antiquíssimo.” Pas-saram “uma vida inteira a dormir”, constata o príncipe, questionando o direito que tem de os acordar. “O tem-po deles passou enquanto dormiam. Digo-lhes isso? Digo-lhes que os reló-gios continuaram a contar o tempo enquanto dormiam? Que desperdiça-

O tempo passou, para os intérpretes e para as personagens desta “Bela Adormecida”: “Digo-lhes que os relógios continuaram a contar o tempo enquanto dormiam? Que desperdiçaram a vida (...)?”, pergunta o príncipe

A Bela Adormecida tem uma segunda oComo no conto de fadas, quem dá corpo à peça “Bela Adormecida”, que ontem se estreou no

Centro Cultural de Belém, em Lisboa, é uma companhia a acordar para o mundo - o que já não é da ordem do conto de fadas é que aqui o tempo passa, mesmo quando estamos a dormir.

É por isso que, na Companhia Maior, menores de 60 não entram. Ana Dias Cordeiro

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a oportunidade

Tea

tro

A Companhia Maior acordará uma vez por ano para um espectáculo novoram a vida enquanto eu vivia a minha? Talvez sonhem e pensem que estão a viver. Talvez sejam felizes assim. Se a beijar, roubo-lhes isso.”

O sonho é-nos dado a ver já fora do tempo, como recordação da vida lon-gínqua que tinham antes de adorme-cer: nos passos de dança da princesa quando acorda; na música do acor-deão do príncipe estrangeiro (Michel); nos versos dos poemas de Paul Éluard que recita no estado inicial de encan-tamento (“j’entends vibrer ta voix dans tous les bruits du monde”); na ementa da festa que, também em francês, poeticamente desvenda; no brilho nos olhos da namorada do sol-dado (Isabel Simões); e na sua inaba-lável esperança de que este regressa-rá da guerra, num comboio que não se vê partir a não ser na expressão do seu olhar. Aurora (a actriz foi bailari-na da Companhia Nacional de Baila-do) recorda o “grand adage à la rose” que, quase cem anos antes, dançou no grande baile dos seus 16 anos. E, lembrando o momento anterior a es-se, o da festa do baptizado da prince-sa, as convidadas (Diana Coelho, He-lena Marchand, Manuela de Sousa Rama) invocam cada gesto, cada pas-so. Como o fazem a ama de Aurora (Celeste Melo) e outra das habitantes do palácio (Iva Delgado). “Eles criam esta ficção de que o tempo não pas-sou”, sintetiza Tiago Rodrigues.

Cada recordação é um gesto, uma forma de representar, em texto, com o corpo ou numa canção. E cada ges-to é escolhido e distribuído para fazer sobressair o melhor de cada intérpre-te. “Tentei aproveitar no elenco as pessoas certas para as personagens certas”, explica o encenador.

O Rei e a Rainha (Carlos Nery e Júlia Guerra) representam essa “lição de como é improvável voltar ao presen-te” (“Que razão teremos para escolher a verdade se queremos ser felizes e que Aurora seja feliz?”). O mestre de cerimónias (Vítor Lopes) move-se pe-lo tormento – sente-se responsável por se ter esquecido de convidar Carabos-se (Cristina Gonçalves) para a festa do nascimento da princesa, sujeitando todo o palácio à vingança da fada má. E é esta, vestida com um longo vestido preto, que o persegue, na própria pe-ça, lendo-lhe o texto das suas falas, e transformando essa assumida neces-sidade de ter um ponto num trunfo – em mais um elemento de composi-ção da personagem, que amplia a ex-pressão da culpa, e amplifica, na ca-beça, os sons do seu tormento.

Carabosse entra no palco antes de entrar em cena. E quando já é Cara-bosse e não voz que ressoa na cabeça do mordomo real, lembra o feitiço que por ela, a todos, foi lançado: “Neste dia em que se esqueceram de mim, eu vou marcar-vos com o meu nome para sempre.” É esse o dom da memória: o passado nunca morre.

Ver agenda de espectáculos na pág. 55.

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Associação de ideias: pense em cores saturadas, mulheres polinésias, Noa Noa, boémia, pintura, colonialismo, morte por sífilis. Se chegou a Paul Gauguin (1848-1903), é o espectador ideal para a exposição “blockbuster” deste Outono da Tate Modern. “Gau-guin - Maker of Myth”, com cerca de 150 obras do autor e duas salas-con-texto para nos explicar, afinal, que mundo era este o das viagens, das co-lónias, do paraíso perdido tropical e dos mitos fundadores. E gravar Gau-guin novamente.

O “rewind” começa logo à entrada. Paul Gauguin como personagem e as personagens de Paul Gauguin - auto-retratos. Gauguin com óculos, Gau-guin com ídolo, Gauguin jovem, Gau-guin mais velho, Gauguin no sótão a tentar vingar na arte, Gauguin de cha-péu Fez (ou “tarbush”) negro - retrato do artista enquanto jovem corrector da Bolsa que tinha um hobby. Gauguin no Taiti, Gauguin esculpido num tiki, versão ídolo. E Gauguin moribundo, afectado pela sífilis. É a sala mapa - ali estão os elementos essenciais para a exposição. “Gauguin através do ponto de vista da sua mitificação de si mes-mo e do uso que faz de mitos e histó-rias no seu trabalho”, ajuda-nos a curadora principal da exposição, Be-linda Thomson, historiadora de arte da Universidade de Edimburgo.

Bad boyDa biografia às imagens que nos dei-xou (ou do que pensamos que sabe-mos sobre ela), dos relatos que fica-ram da sua crescente rudeza, das de-clarações radicais, dos ataques contra as autoridades coloniais, do desgosto perante a cristianização da Polinésia francesa, Gauguin parece ser um “bad boy” primordial da cena artística mo-derna. “Até certo ponto ele usava essa atitude para se proteger. Ele era indu-bitavelmente sensível às reacções que tinha da família, dos amigos, dos crí-ticos, e usava essa imagem para refor-çar a sua ‘persona’. Ele realça a sua má reputação”, diz Thomson.

No fundo, desde aquela primeira sala, quer-se que a relação com Gau-guin nunca mais seja a mesma. Ali está “um artista que se está a reima-ginar à medida que se pinta”, essen-cial para a nossa ideia de Gauguin hoje, atalha Thomson. E para a nossa ideia da arte de Gauguin. “O que de-fendo é que isto vai além do aspecto ligeiramente embaraçoso [desta “per-sona” pública de artista mal compor-tado] - esta auto-dramatização bom-bástica é essencial, era o que o ajuda-va a realizar a arte que ele imaginava produzir”, diz-nos a comissária, lon-ge das salas repletas de visitantes, com entradas esgotadas logo no pri-meiro dia.

Como quando se auto-retrata como Jesus Cristo em “Christ in the Garden

of Olives” (1889). O “Telegraph” re-corda como descreveu essa ousadia ao seu “pen pal” Van Gogh: “Há um caminho para o calvário que todos os artistas têm de percorrer”. Van Gogh, com quem dividiu casa em Arles, não gostou do afastamento de Gauguin em relação às representações mais realistas. Gauguin não tinha gostado da relativa indiferença da comunida-de artística de Paris e fez de si um Cristo.

Thomson fala-nos de um dos seus grandes objectivos ao montar, ao lon-go de três anos, muitas negociações, cruzes e riscos na sua lista de desejos esta exposição: “Queria fugir da ideia de que Gauguin se torna um artista porque vai para o Taiti, que é por isso que ele se torna um artista interessan-te. Claro que esse elemento é vital para o que o torna um artista maior. Mas para ele o Taiti era uma continu-ação, uma conclusão lógica para o rumo que tinha tomado na vida; e é certo que o seu estilo, a sua forma de trabalhar esses elementos estavam completamente desenvolvidos. Se ele tivesse ido para o Taiti só para pintar certos temas e matérias, não nos lem-braríamos dele hoje”. Ou seja, pode-mos tirar Gauguin do Taiti, mas não podemos tirar o Taiti de Gauguin.

Porque ele, nas colectâneas, nas histórias breves da pintura, nos pos-tais “souvenir” é isto: cenas da vida quotidiana nas ilhas, a vida com e so-bre as mulheres do Pacífico Sul, mu-lheres como que hipnotizadas pelo pintor no momento de posar, a ob-sessão pelo “selvagem”, pelo primiti-vo. O viajante global que não conhecia fronteiras - só imagens em potência.

Mas se ele também é a Martinica ou as ilhas Marquesas, é Paris e a Breta-nha, toda uma fase na sua obra que o “mainstream” secundarizou e em que procurou a paisagem e a inocência, subvertendo-a com a sua própria pa-leta e composição. A forma como construía as narrativas na sua pintura era diferente – uma linguagem visual simplificada em que combinava his-tórias locais com a sua visão subjec-tiva.

São naturezas mortas com vida ao fundo (a presença fugaz de uma rapa-riga em “Still Life With Fruit”, de 1888), retratos, peças esculpidas em madeira, a amizade quase rival com Van Gogh ou um “Cristo Amarelo” de 1889 (um momento no primeiro dia de “Gauguin” na Tate: uma menina ruiva de totós lê sílaba a sílaba o título sob incentivo do pai; pensa por uns segundos, olha para o Cristo, olha pa-ra o pai, tenta perceber o que acabou de ler e pergunta ao pai “Como nos Simpsons?). Gauguin é um construtor do ícone de si próprio, o “selvagem do Peru” por cujos olhos queria ver o mundo (viveu os primeiros anos de vida no Peru, marca indelével), mas

sobretudo um apaixonado por moti-vos, padrões e mitos. Dos temas sa-grados, que abraçou logo na Bretanha (“Vision of the Sermon”, de 1888, em que Jacob luta com o anjo, foi, como escreveu a Van Gogh, um avanço por-que conseguiu “retratar uma visão mais estilizada transformada pela ima-ginação”), ao cristianismo passando pelos ritos do Pacífico Sul. E as mulhe-res, sempre as mulheres. Nos painéis de madeira esculpida que adornavam

a entrada de sua casa no Taiti, que estão na Tate, lê-se “Maison du Jouir”, Casa do Prazer/ do Orgasmo, propo-sitadamente para irritar o vizinho, um bispo. As mulheres habitam as suas obras num transe arquetipal, quase são figuras e não indivíduos. Elas in-tegram o seu mito primordial do pa-raíso perdido, o encantamento pela viagem, sintoma de uma cultura que se galvanizava frente aos cartazes “vintage” de cruzeiros dos grandes

“Ele não é um ‘naif’, mas usa a ingenuidade e a simplicidade, a coragem como estratégia artística consciente para abrir novas áreas para a expressão artística”Belinda Thomson, curadora

Era uma vez

Paul Gauguin“Gauguin - Maker of Myth” é uma colecção de obras em vários suportes

na Tate Modern, em Londres. Gauguin volta a apresentar o seu caso ao tribunal da opinião pública. Joana Amaral Cardoso, em Londres

Two Tahitian Women

1899

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Exp

osiç

ões

navios, alusivos às fotos exóticas e à pesquisa etnográfica.

Artista on the roadGauguin em 2010. Porquê, Tate Mo-dern? Plantamo-nos frente a “The little one is dreaming/Clovis Asleep” (1881). As imagens da criança que so-nha fundem-se com as do papel de parede do seu quarto, passando do onírico ao simbólico e fazendo pontes com outros movimentos artísticos. “O que é interessante é que ele abre a porta, em termos de estilo, a uma série de movimentos subsequentes como o fauvismo, o expressionismo e também o surrealismo. E mesmo

algumas estratégias que reconhece-mos hoje noutros artistas, em termos de usarem a sua própria vida, a sua biografia, inscrevendo-se a si mesmos na sua arte”, defende Belinda Thom-son.

O que ficou de Gauguin? “Ele deu [ao mundo artístico], talvez mais dra-maticamente, o direito de tudo expor, e estou a citá-lo - o sentido de liberta-ção. Se olharmos para o que os artis-tas estavam a fazer na altura, havia uma grande sensação de que para se ser moderno tinha que se imitar a re-alidade, competir com a fotografia, mostrar a capacidade de anotar cada detalhe. E ele vai contra isso, o que

foi uma enorme libertação para a ge-ração seguinte. E fê-lo consciente-mente. Acho que ele não é um ‘naif’, mas usa a ingenuidade e a simplicida-de, a coragem como uma estratégia artística consciente para abrir novas áreas para a expressão artística”, prossegue a comissária. No fundo, Gauguin é “um artista de acção, não é só um sonhador que vai para o Tai-ti em busca de um mundo ideal. Es-tava sempre mais ou menos afastado da moda, das correntes em alta”.

A maior obra de Paul Gauguin será mesmo a ideia de Paul Gauguin. Cui-dava da sua imagem, escolhendo o chapéu Fez para se assinalar como membro da comunidade artística, personalizava as suas bengalas e socas de madeira, era um “dandy”. Sabia o que era ser um trota-mundos - os anos no Peru, o casamento com uma dina-marquesa, os seis anos na Marinha Mercante, a guerra no mar em 1870 - e cultivar diferentes personagens. O

marinheiro, o marido próspero, o corrector e, enfim, o artista.

A história de Gauguin é modernis-ta, mas “on the road”: a história esta-va nele e não necessariamente na sua obra. Ele continha a sua própria his-tória, como defende Thomson no ca-tálogo. Paul Gauguin era “um artista completo. Era perseverante nas ideias que perseguia”, remata Belinda Thomson.

Sendo esta a primeira grande ex-posição dedicada ao pintor no Reino Unido nos últimos 50 anos, a impren-sa saudou-a como uma hipótese de Gauguin apresentar novamente o seu caso ao tribunal da opinião pública britânica. Outra vez a boémia, o tro-picalismo, a luxúria, até a orelha de Van Gogh. Na Tate, os visitantes, iso-lados com os seus audioguias, serpen-teiam entre as peças de olaria ou ma-deira e as telas, algumas demasiado familiares, como assume a curadora. Vieram, como os visitantes, de vários museus e partes do mundo.

Ainda assim, há faltas. “Não é a maior exposição que podíamos ter feito. É relativamente contida, tem 150 obras e já houve exposições num passado não muito distante com cer-ca de 300 obras”. Mas numa era de cortes institucionais para a Cultura e sabendo-se que a organização deste tipo de mostra está limitada a um nú-mero restrito de entidades, o que sig-nifica o investimento da Tate neste “blockbuster” de Outono? “Maker of Myth” “parece apelar a um grande número de pessoas e isso é em si uma justificação. É muito difícil saber qual será o futuro das exposições a esta escala será, mas a viagem faz parte do mundo moderno. Gostaria que as ex-posições deste tipo, como fenómeno, não desaparecessem só porque esta-mos em tempos de dificuldades eco-nómicas”, diz Belinda Thomson.

Self-portrait with Manao tu Papau

1893-4

Vision of the Sermon ( Jacob wrestling with

the angel)

1888

Merahi Metua no Tehamana

1893

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Edgar Martins estou Filosofia em Ma-cau e Fotografia em Londres, onde ainda vive, e tem vindo a afirmar-se no meio internacional com um traba-lho que se revela como uma ponte entre essas bases: um interesse pelo mecanismo de captar a realidade nu-ma imagem e, posteriormente, a sua extensão para um estudo crítico e es-tético sobre a vida dos locais. A expo-sição “The Wayward Line”, apresen-tada no Centro Cultural Calouste Gul-benkian em Paris e organizada no âmbito da Paris Photo, a feira inter-nacional de fotografia da capital fran-cesa, reúne os principais motivos da obra do português. “O meu trabalho lida com o impacto da modernidade no meio ambiente e no meio urbano construído pelo ser humano”, diz. É uma pesquisa que procura reflectir sobre “a existência da fotografia en-quanto processo de representação.”

Divididas por séries, as fotografias

apresentam, assim, retratos directos de lugares feitos e vividos pelo ho-mem: as paisagens nocturnas de uma pista de aeroporto (“When Light Casts no Shadow”, 2008), de uma praia e das construções do lazer humano (“The Accidental Theorist”, 2006-2008), de um bairro-modelo constru-ído para os treinos da polícia metro-politana britânica (“A Metaphysical Survey of British Dwellings”, 2010) ou de casas construídas na paisagem americana e deixadas ao abandono, vítimas da crise imobiliária do país (“This is not a House”, 2008). São imagens de exteriores reais: paisagens naturais tocadas pela intervenção efé-mera humana ou construções mate-riais onde o homem organiza a sua existência diária. São ambientes mo-vidos por um silêncio perturbador.

“Ao nível estético, o meu trabalho é o mais simples possível”, diz Edgar Martins. “Tento reproduzir a visão e

a perspectiva do olhar humano: a má-quina é sempre colocada à altura do meu olhar e da forma mais objectiva possível.” Deste modo, afirma, depa-ramo-nos “com uma situação aparen-temente limpa e redutora.”

Como eventosO enquadramento estético das fotos — uma marcação precisa da imagem cercada por uma escuridão nocturna profunda (“pois na noite tudo se tor-na difícil de quantificar”, afirma) — é o primeiro passo para confundir a transparência aparente das imagens. “O meu trabalho define-se sobretudo por aquilo que omite. Sempre fiz re-ferência a janelas para outras dimen-sões, motivo pelo qual não costumo representar directamente pessoas, de forma a que o leitor consiga pro-jectar as suas experiências e emo-ções.”

Cabe ao espectador, portanto, dei-

Não sabemosexactamente o que se está

a passar aquiO fotógrafo apresenta, no Centro Cultural Calouste Gulbenkian

em Paris, a primeira retrospectiva da sua obra. É um olhar sobre espaços construídos pelo homem. Mas não sabemos

exactamente o que se está a passar. Francisco Valente em Paris

Exp

os

“Sem título” da série “This is not a house”e “Sem título” (Phoenix, Arizona)

“The Wayward Line”, éapresentada no Centro CulturalCalouste Gulbenkian em Paris e organizada no âmbito da Paris Photo, a feira internacional de fotografi a da capital francesa

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xar-se suspender pela inquietação presente nas imagens, lendo os rastos dos seus locais e preenchendo o seu espaço imaginário. Os cenários sur-gem como quadros da realidade onde o espectador vive a sua ficção. “Estas fotografias são imagens de constru-ções espaciais, como palcos em que um número variado de narrativas, possivelmente até incompatíveis, po-de ser encenado.” Os locais fotogra-fados são, portanto, mais do que re-tratos da realidade. “O que os torna o que são vem da técnica das longas exposições e do que utilizo enquanto processo para produzir as minhas imagens. Não vejo os objectos, as pai-sagens e os prédios como tais, mas como eventos.”

O encontro do espectador com uma imagem da realidade vive, assim, na intemporalidade de locais sem nome, referências geográficas ou títulos. Se-gundo Sérgio Mah, comissário da ex-posição, “o cuidado e o rigor formal da fotografia de Edgar Martins, como qualquer esforço de organizar a rea-lidade em torno de uma matriz com-posicional, leva a que haja uma abs-tractização do próprio assunto, tor-nando-se intemporal.”

A ideia de movimento surge, deste modo, como uma das bases da pes-quisa. “Tem a ver com um desacele-ramento do tempo que é um contra-ponto ao mundo em que vivemos”, diz o fotógrafo. “É um movimento diferente do dia-a-dia, que quer en-contrar algo ínfimo na essência das coisas”. É nessa tensão que a fotogra-fia joga com a percepção do especta-dor. “O momento mais alto que se pode atingir na leitura de um trabalho é a suspensão da incredulidade. Ou seja, quando sabemos que estamos a olhar para uma imagem, equipados dos nossos mecanismos, e tomamos consciência que, afinal, não sabemos exactamente aquilo que se está a pas-sar.” No fundo, como quem realça uma falha na forma como percepcio-namos o mundo.

O real é imensurávelSérgio Mah sublinha a função crítica da fotografia de Martins e de uma obra que valoriza a necessidade de discutir a realidade. “Trata-se de al-guém que assimilou o debate da ques-tão do documental na fotografia e que levanta questões similares a como se debate o documental no cinema.” Ou seja, como a apresentação do real a partir da perspectiva ficcional de uma lente levanta, necessariamente, fric-ções críticas. A fotografia de Edgar Martins responde, segundo Mah, a essa insuficiência na descrição do re-al. “A fotografia continua a ser um meio com capacidade para descrever a realidade exterior de uma forma muito precisa”, diz-nos, “mas ao mes-mo tempo essa descrição já não é su-ficiente”.

Segundo o fotógrafo, esta exposi-ção “procura fazer uso de uma com-binação inquietante de realismo e ficção, e a ficção, como dizia [o filó-sofo] Jacques Rancière, é essencial para compreender o real.” O real não pode ser traduzido por si. “A nossa experiência do real é fragmentária”, diz Martins. O uso da fotografia passa, então, não apenas por um trabalho ficcional sobre a aparência das coisas, mas também por uma ideia de mani-pulação, indissociável da presença do olhar do espectador. “Sempre defen-di que o real não pode ser conhecido em si mesmo”, diz-nos. Em “Dwarf Exoplanets & Other Sophisms” (2007) usa scanners médicos de alta resolu-ção para fotografar microcosmos, mostrando que as imagens que conhe-

cemos da nossa realidade mais ínfima não são as da realidade visível, mas aquelas que conseguimos captar atra-vés de mecanismos mutativos, como a fotografia. “A ideia de manipulação tem de estar presente porque o olhar já manipulou o real, estando cons-ciente disso ou não, tal como o olhar de quem fotografa já é, em si, uma manipulação.”

Fricções de uma perturbaçãoUm caso paradigmático dessa fricção é a série “This is not a House” (2008), encomendada pelo “New York Times Magazine” para um trabalho sobre a crise imobiliária nos EUA. O fotógra-fo percorreu vários locais e captou o abandono de casas construídas no meio das largas paisagens america-nas, um falhanço da intervenção ur-bana do homem, constrangido pelas insuficiências e contradições do sis-tema económico que montou.

“Pensei que seria uma boa oportu-

nidade para produzir um trabalho com vários tipos de leitura, uma con-tra-proposta ao documentário mais tradicional”, diz Martins. Contudo, e após ter publicado as fotografias, o jornal retirou-as da sua página online, evocando que tinham sido manipu-ladas digitalmente. “Com esse traba-lho, percebi que existem contextos onde é difícil abordarmos assuntos sem debater outro contexto histórico e político”, diz o fotógrafo. “O que acho difícil de compreender é a sim-plicidade do debate e do argumento que foi colocado.” Esse debate sobre a validade das suas fotografias, que surgiu sobretudo na blogosfera (sem a intervenção de “nenhuma autori-dade no domínio artístico ou da teoria da imagem que oferecesse um pensa-mento”, segundo Sérgio Mah), veio levantar uma questão já antiga no meio da imagem: as fronteiras da ma-nipulação fotográfica e do que surge como “verdadeiro” e “falso”. O fotó-grafo vê a reacção do jornal como o sinal de “uma condição muito parti-cular sobre uma sociedade em crise e bastante sensível sobre as suas pró-prias crises.”

Sérgio Mah acredita que esse deba-te já se encontra ultrapassado. “Na forma como a fotografia é utilizada no meio artístico não existe qualquer pudor no trabalho da manipulação e da encenação e, se quisermos ser mais rigorosos, nunca existiu em toda a história da fotografia.” As reacções mais fortes às fotografias de Martins representam, segundo o comissário, “um último resquício da pureza no campo do jornalismo, e o trabalho de um artista, por ser de um nível com-pletamente distinto, não deveria ser colocado no mesmo monte.”

O Ípsilon viajou a convite do Centro Cul-tural Calouste Gulbenkian em Paris.

“A fotografia continua a ser um meio com capacidade para descrever a realidade exterior de uma forma muito precisa, “mas ao mesmo tempo essa descrição já não é suficiente”Sérgio Mah, curador

“Poppets” (2010) e “Sem título” (Atlanta, Georgia)

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O século XX acordou estremunhado na grande cidade (uma coisa nunca antes vista, a crescer na vertical, in-terminável: finalmente o Novo Mun-do) e a banda-desenhada, rapariga da metrópole, já lá estava. As ruas de Chicago (cidade-laboratório integral-mente transfigurada depois do gran-de incêndio de 1871) e de Nova Iorque (onde os imigrantes europeus não paravam de chegar directamente dos “decks” apinhados dos transatlânti-cos para os quartos apinhados dos “tenements” do Lower East Side) fo-ram o recreio dos primeiros heróis dos “comics”, que se empoleiravam nos arranha-céus como dantes, no Velho Mundo, se teriam empoleirado em árvores, e logo aí se percebeu que ia haver espaço para duas narrativas urbanas paralelas na BD: as cidades vividas (desde logo antecipadas pela

Hogan’s Alley de Richard F. Out-cault, verdadeiro “ghetto” de imi-grantes onde um miúdo, o Yellow Kid, era rei) e as cidades imagi-nadas (com a iniciática Slumber-land de Winsor McCay, a cidade dos sonhos e dos pesadelos de Little Nemo).

Essas duas histórias paralelas estão frente-a-frente até 28 de Novembro em “Archi & BD: La Ville Dessinée”, na Cité de

l’Architecture et du Patrimoine de Pa-ris. Mas mais do que se confrontarem uma com a outra, confrontam-se so-bretudo, ao longo do labirinto incan-descente projectado pelo atelier Pro-jectiles, com as cidades (verdadeiras e imaginárias, aqui também) inventa-das pela arquitectura. Em parte, des-cobriram os comissários Jean-Marc Thévenet, ex-director do Festival In-ternacional de Banda-Desenhada de Angoulême, e Francis Rambert, direc-tor do Instituto Francês de Arquitec-tura, a banda-desenhada e a arquitec-tura são siamesas: “Os arquitectos e os autores de BD são, fundamental-mente, visionários. Pessoas como Enki Bilal e François Schuiten têm o mesmo valor de Rem Koolhaas como sismógrafos de uma época. A BD co-locou há muito a questão do mundo que há-de vir com uma pertinência espantosa. E, claro, os seus autores têm a liberdade de inventar utopias, enquanto os arquitectos têm uma obrigação em relação aos resultados”, aponta Thévenet na entrevista inclu-ída no catálogo da exposição.

Reunindo mais de 350 obras – in-cluindo pranchas originais, excertos

de filmes, esboços e maquetas de pro-jectos de arquitectura –, “Archi & BD: La Ville Dessinée” ilustra o vaivém constante entre as duas disciplinas. Sublinhando o modo obsessivo como a BD se fixou na cidade (e sobretudo em certas cidades-fétiche: Nova Ior-que, Paris, Tóquio) como cenário e como protagonista (nomeadamente em séries como “As Cidades Obscu-ras”, de François Schuiten e Benoît Peeters), mas também a maneira co-mo o seu vocabulário influenciou ge-rações sucessivas de arquitectos, de Mies van der Rohe, cujo mítico pro-jecto para a Friedrichstrasse ocupa lugar de destaque, a Christian de Port-zamparc, o autor do Museu Hergé de Louvain-La-Neuve, passando por Pa-trice Novarina e pelos suíços Herzog & DeMeuron, que executaram em banda-desenhada, com quadradinhos e balões, os seus projectos para, res-pectivamente, a reconversão dos es-túdios Babelsberg, em Potsdam, e a expansão urbana de Basileia.

Euforia e desencantoAs visões fantásticas do espaço urba-no, tanto na sua versão utópica como na sua versão distópica, são dominan-tes ao longo do corredor da exposição: muito depressa a Metropolis do Super-Homem e a Gotham City do Batman, verdadeiro “walk on the wild side” onde parece ser sempre de noite (e que Dennis O’Neill, autor e editor mí-tico da série, descreveu como “Ma-nhattan abaixo da rua 14, onze minu-tos depois da meia-noite, na noite mais fria de Novembro”) se impuse-ram como ficções representativas do imaginário associado à grande cidade. “A razão pela qual a grande cidade se presta à BD é que ela permanece um lugar rico em aventuras. Um teatro. Um drama atrás de cada janela. Mi-lhões de janelas”, dirá Will Eisner a Frank Miller, muitos anos depois do aparecimento do Super-Homem, em 1938. “A cidade é o lugar ideal para contar histórias. E é o cenário natural da BD. Graças às ruas, às paredes, às janelas, ela organiza o suspense: as personagens sabem que se podem esconder”, contrapõe o holandês Jo-ost Swaarte, figura fundamental do estilo “ligne claire” e autor do guião em que Christian de Portzamparc se baseou para projectar o Museu Hergé, “provavelmente o único exemplo de uma banda-desenhada que se trans-formou em arquitectura” (o inverso aconteceu milhares de vezes).

A banda-desenhada acompanhará o entusiasmo do século XX pelos ar-ranha-céus, nas décadas de 20 e 30, e depois, no pós-guerra, pelo confor-to e pelo design, em que a BD franco-belga investe particularmente após a Exposição Universal de Bruxelas, em 1958 (e um óvni chamado Atomium). Mas o que veio a seguir, com a expan-são desgovernada dos subúrbios e a degenerescência dos centros urba-nos, também encontrou o seu cami-nho no desencanto das cidades-fan-tasma de Enki Bilal e da Suicide Alley da saga “O Incal”, de Moebius e Ale-jandro Jodorowsky. E, chegada ao século XXI, a cidade da banda-dese-nhada também se globalizou, de Tó-quio, camaleonicamente imortaliza-da pela manga japonesa, à Beijing “in progress” de Zou Jian, que documen-tou a reconversão forçada pelos Jogos Olímpicos, com a Torre CCTV de Rem Koolhaas em primeiro plano.

Há coisas, como essa torre de duas pernas a que os chineses deram o no-me de “grandes calças”, o Atomium de Bruxelas ou o Museu de Arte Con-temporânea de Niterói, que parecem mais da ordem da banda-desenhada do que da realidade. Por acaso exis-tem. Mas se não existissem teriam de ser inventadas.

A cidade

desenhadaDa Gotham City de Batman às múltiplas Chicagos de

Chris Ware, a banda-desenhada fez quase tanta cidade como a arquitectura. Em Paris, uma exposição mostra

como essas cidades imaginárias confi guram uma história alternativa do urbanismo - e do século XX. Inês Nadais, em Paris

“A cidade permanece um lugar rico em aventuras. Um drama atrás de cada janela. Milhões de janelas”Will Eisner

Exp

osiç

ões

Realista, fantasmática, onírica, simbólica, a cidade atravessa, camaleónica, a banda-desenhada

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John Lennon Em todos os estados, na discografia a solo. Pág. 46

Tom Zé O verdadeiro génio da música brasileira Pág. 46

John Fante A obra-prima de um escritor abandonado pela literatura. Pág. 41

Saul Bellow Um judeu descendente da imigração russa no Quebeque chega a Chicago e escreve o grande romance americano. Pág. 40

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Depressão –, é um testemunho da grandeza e da mestria de Saul Bellow, que, aos 38 anos, munido de todas as armas de que dispunha, se lançou a relatar as errâncias de um rapaz que se torna homem num espaço fértil, produtivo e monstruoso, tanto para o amor, as boas causas e as melhores intenções, como para os negócios escuros, as traições e o crime. Na primeira frase do romance, Augie March apresenta-se não pelo nome próprio – como acontece em “Moby Dick” com a famosa invectiva “Chamem-me Ismael” –, mas sim como americano, nascido em Chicago…”, marcando desta forma a sua especificidade. É verdade que estes dois atributos são os que determinam o seu destino num universo repleto de gente traiçoeira e manipuladora (Bellow começou por chamar ao seu romance “Vida entre os Maquiavélicos”), gente essa que ele defronta com habilidade e bravura, até mesmo com verve e doses maciças de chutzpah.

Augie pertence a uma lista de heróis, de Tom Jones (o seu “irmão” mais dilecto) a Harry Potter, passando por Pip, Oliver Twist, Huckleberry Finn, Heathcliff e muitos outros, para quem a orfandade é um trunfo que abre a porta para infinitas possibilidades. É certo que Augie começa por falar na família, no tempo em que é ainda um rapaz de calções a fazer recados e a esgueirar-se pelos quintais; mas o pai

abandonou-os, a mãe está cega, um dos irmãos é autista (o mais velho, Simon, é uma versão dele próprio com a vantagem de alguns anos) e a temível “avó” Lausch não está ligada a eles por qualquer parentesco, embora seja determinante – pela negativa – na sua “formação”. Com os seus rígidos princípios de educação aristocrática – que incluem defraudar a Segurança Social –, a fria senhora representa o Velho Mundo, hipócrita e matreiro, feito de sonhos de grandeza fanada e de recordações de tenebrosas travessias atlânticas. Augie não quer saber dessa herança de “pogroms” e de mansões abandonadas – embora regresse à Europa, no fim do livro – e persegue destemidamente os ditames do seu “eu” profundo, fruto de um espírito comum – o americano – e de uma cidade, Chicago, que é a sua verdadeira mãe, protectora, educadora e provedora.

Apesar do seu olhar cristalino, March não é inocente e está à vontade na companhia de gangsters e de marginais, nesse submundo de uma metrópole generosa que lhe oferece, também, o vislumbre da riqueza e do poder, nem que seja pelas frestas que dão para a rua, na cave dos armazéns onde, a certa altura, trabalha. Mas a inquietação de Augie, que o leva a pular de emprego em emprego, de amigo em amigo, de paixão em paixão, o seu perpétuo movimento de aceitação e confronto de, e com, aqueles com

quem se relaciona, são uma garantia de independência num universo fervilhante a abarrotar de uma “multidão bíblica” – judeus oriundos do Leste europeu, italianos, irlandeses, ingleses, russos, mexicanos, alemães – que se afirma como uma verdadeira família. O seu habitat natural é a rua, que lhe facilita os movimentos de um lado para o outro, entre estações, bares, antros de bilhar, apartamentos sombrios, barbeiros, vãos de escadas, agências de apostas e traseiras de prédios.

Bellow, um admirável estilista da linguagem, não deixa escapar nenhum pormenor: descreve, com uma insistência quase erótica, o crescimento de March, a forma como os seus membros se distendem, como as suas passadas se tornam mais firmes, como os seus músculos se desenvolvem, como o seu olhar endurece, como a sua postura se agiliza e liberta. Ficamos a saber como ele ouve, cheira, sente, vê, tacteia, como se veste (com as roupas, cada vez mais elegantes, fornecidas pela senhora Renling), como se apaixona. Bellow possui um gosto compulsivo pela elaboração de listas – de objectos, de acções, de adjectivos, de lugares, de nomes, de sensações – que ele desfia, entrelaçadas na narrativa, criando uma imagem poderosa de abundância, de grandeza e de desperdício, nesse caos que resiste alegremente a qualquer tentativa de ordem.

O ritmo “jazzístico” de Bellow impõe-se a cada momento, quando descreve os movimentos de Augie, a velocidade da cidade, o frenesim do acto amoroso, o troar do tráfego, o zumbido das máquinas, a excitação das apostas, as subidas e descidas na Bolsa e essa incomparável capacidade do povo americano para se reinventar a cada momento, mudando de nome, de lugar, de emprego, explorando ao máximo um território vasto e fecundo.

Críticos de reconhecida competência têm comparado, ao longo dos anos, Augie March a Tom Sawyer e a Huckleberry Finn, referindo a chamada “literatura de fronteira”, embora essa etiqueta seja mais apropriada quando aplicada a autores como James Fenimore Cooper ou, mais recentemente, Larry McMurtry ou Cormac McCarthy. É claro que Bellow escolheu o título, “As Aventuras de Augie March”, com um propósito específico, mas o que ele pretende – e consegue – é demarcar-se de um certo traço cru e violento desse vago género literário, utilizando personagens mais complexas e subtis do que as de Mark Twain e um estilo narrativo que se aproxima mais da poesia de Walt Whitman. Poderá eventualmente ser comparado a Twain pela veia cómica que partilham, mas Augie está bem mais

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Liv

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Ficção

Chicago bluesO “grande romance americano” de Saul Bellow inventa um herói (o próprio Bellow?) descendente de Huckleberry Finn e Jay Gatsby. Helena Vasconcelos

As Aventuras de Augie MarchSaul Bellow(Trad. Salvato Telles de Menezes)Quetzal

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Foi preciso um judeu, filho de imigrantes russos, nascido em Lachine, no Quebéque, e transplantado para Chicago, para que o grande romance

americano do século XX ganhasse um novo fôlego. A história de Augie March, passada no período entre as décadas de 20 e 40 do século passado – com a eclosão de grandes fortunas e a subsequente Grande

Saul Bellow reproduz, na sua escrita compulsiva e abundante, o frenesim dos anos que antecederam a Grande Depressão e essa incomparável capacidade do povo

americano para se reinventar, mudando de nome, de lugar, de emprego

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • 41

desenvolvida na interioridade das personagens, e a violência com que eclode e produz real. Essa lenta, quase invisível acumulação de sentimentos e acções minúsculas, aparentemente inofensivas, e a posterior libertação de energia, com o impacto duma explosão, é uma arte que sobrevive no cinema de Tarantino e Scorsese.

Fante, em vez da espiral da violência, segue a espiral da consciência. O episódio da mãe (e do seu olhar) na mercearia, sem dinheiro para fazer compras; os tormentos de Arturo com o pecado (em particular os episódios do assassínio da galinha e dos dez mandamentos, que termina no confessionário); a sua paixão por uma rapariga virtuosa e as sacanices que comete para tentar agradar-lhe; o processo de entrada num estado de depressão da mãe dele, devido à ausência do marido; a cena em que Bandini regressa com botas novas e dinheiro; a refeição com a sua rica e apetitosa cliente… este livro é um festim, o “Do Céu Caiu Uma Estrela” da literatura, o melhor presente de Natal. É o próximo livro que vou reler, para meu deleite.

A bem da NaçãoNarrativa escorreita sobre as vicissitudes da emigração portuguesa em África e o mito dos brandos costumes da Pátria. Eduardo Pitta

O Anjo BrancoJosé Rodrigues dos SantosGradiva

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Traduzido em 17 idiomas, José Rodrigues dos Santos (n. 1964) vendeu mais de um milhão de exemplares dos seus livros. O último em data, “O Anjo Branco”,

é sobre a vida dos portugueses em Moçambique, tendo como epicentro o massacre de Wiriyamu, ocorrido a 16 de Dezembro de 1972. Assunto familiar: foi o pai, médico e presidente da Cruz Vermelha de Tete, quem denunciou as atrocidades do Exército português. Epítome da bestialidade, Wiriyamu horrorizou a opinião pública internacional, alertada pelos missionários combonianos e pelo padre Hastings, que o pôs na primeira página do “Times” de Londres. Este romance

próximo do Holden Caulfield de “À Espera no Centeio” ( J.D. Salinger publicou o seu “best-seller” dois anos antes do de Bellow) e de Jay Gatsby, embora o herói de Scott Fitzgerald seja uma personagem trágica, alguém que nunca chega a pertencer a um lugar, a uma paixão, a um meio social, enquanto Augie March navega com subtileza e desenvoltura no grande caldo da identidade americana.

Bellow chamou a este seu romance uma “narrativa expansiva, optimista, exuberante e celebratória” e é possível que Augie seja tão semelhante ao seu autor como duas gotas de água: a mesma substância, a mesma composição química, em formas variadas de acordo com o espaço, o tempo e a inclinação. “As Aventuras de Augie March” é, sem dúvida, uma longa ode à liberdade, a transpirar de energia por todos os poros, com um herói que se deixa arrastar pelo mundo que o rodeia, sempre com a esperança de que os acidentes de percurso o empurrem para um destino melhor.

(Uma menção ao trabalho do tradutor: embora haja sempre a possibilidade de discutir uma ou outra escolha de palavras ou de expressões, o resultado não poderia ser melhor. A dificuldade em verter Bellow para outras línguas é enorme; no entanto, aqui, a sua voz, o seu ritmo e a sua especificidade não se perdem.)

Delícias e torturas de ser católicoO pecado e as privações causadas pelo desemprego, numa obra-prima da literatura italo-americana.Rui Catalão

A Primavera Há-de Chegar, BandiniJohn Fante(Trad. Rui Pires Cabral)Ahab Edições

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O livro mais celebrado do norte-americano John Fante é “Pergunta ao Pó” (1939), com tradução portuguesa pela Ahab Edições e que já este ano foi

alvo de uma adaptação cinematográfica protagonizada por Colin Farrel e a cargo de Robert Towne (que nos anos 70, depois de

escrever o argumento de “Chinatown”, comprou os direitos do livro). Admirado pela Geração Beat, Charles Bukowski foi o seu grande porta-estandarte. No início dos anos 80, deu-o a ler ao seu editor John Martin, que reeditou os seus quatro livros na Black Sparrow Press, assim como dois originais (o primeiro romance que escreveu, “The Road to Los Angeles”, e o último, “Dreams from Bunker Hill”).

Nascido e criado em Boulder, pequena povoação do Colorado, filho de imigrantes italianos, John Fante (1909-1983) mudou-se ainda jovem para Los Angeles, teve a sorte de casar com uma mulher inteligente e culta ( Joyce Smart, editora e poeta), publicou três livros em três anos (“A Primavera Há-de Chegar”, “Pergunta ao Pó” , “Dago Red” ), constituiu família (o filho Dan também é escritor) e instalou-se como argumentista no complexo sistema de trabalho de Hollywood, que lhe ofereceu uma vida de classe média e nenhum filme digno de registo (trabalhou com Orson Welles no projecto inacabado “It’s all true”).

Consumido pela diabetes, que lhe levou as duas pernas e o cegou (“Dreams from Bunker Hill”, que conclui a tetralogia do seu alter-ego Arturo Bandini, foi ditado à mulher), acabaria por abandonar a literatura por não lhe dar dinheiro para sustentar a família. Em “Small Conversation in the Afternoon with John Fante”, Bukowski fez uma espécie de elegia a esse homem que se suicidou como escritor ainda na juventude: “Ele disse ‘Eu estava a trabalhar em Hollywood quando o Faulkner trabalhava em Hollywood e ele era o pior de todos: ao fim da tarde já estava tão bêbado que nem se aguentava de pé e eu tinha de metê-lo num táxi todos os dias. Mas quando deixou Hollywood eu deixei-me ficar, e embora não bebesse tanto se calhar era o que deveria ter feito, se calhar tinha-me dado coragem para ir atrás dele e sair dali para fora.’ Eu disse-lhe: ‘Escreves tão bem como o Faulkner’. ‘Estás a falar a sério?’, perguntou-me, a sorrir, na cama do hospital.”

O tema principal de “A Primavera Há-de Chegar, Bandini”, originalmente publicado em 1938, é exactamente o de como trazer dinheiro para casa quando o ofício de Svevo Bandini só lhe dá trabalho no Verão e ele vive numa povoação do Colorado coberta de neve durante o Inverno?

Svevo Bandini caminha pela neve que odeia com um buraco na sola, depois de perder no póquer o dinheiro que lhe restava, e as dez primeiras páginas descrevem a sua demora até chegar à cama onde a mulher dorme. Bandini enumera o que tem e não tem, ferve na frustração de ser pobre e na desconfiança de que as opções que tomou foram as erradas. (Descrito

assim, parece que nos metemos num beco neo-realista). Caminha, pisa a neve maldita, remói na consciência, regressa ao passado, analisa a situação, faz planos, maldiz a vida, maldiz o que tem e não tem, pensa na casa por pagar, na mulher, uma “fanática religiosa” “sempre à espera de paixão”. Julga-se tão desgraçado e está tão furioso ao ponto de ser cómico. Nem as frases de consolo da mulher o impedem de ferver. Só então nos apercebemos de que Fante esteve a cozinhar lentamente um coito. Abram-se as aspas: “‘Che sara, sara’ - disse ela. - O que tem de ser, tem de ser. Chamava-se Maria e esperava-o com tanta paciência, tocando-lhe os músculos dos quadris, tão paciente, beijando-o aqui e ali, e então a grande onda de desejo acometeu-o e ela deitou-se de costas. ‘Ah, Svevo! É maravilhoso!’. Ele amava-a com uma ferocidade tão doce, tão orgulhoso de si, sempre a pensar: não é tola nenhuma, esta Maria, sabe muito bem o que é bom. O grande balão que perseguiam juntos em direcção ao sol explodiu entre os dois, e ele gemeu com deleite e alívio, como um homem feliz por ter podido esquecer por momentos tantas ralações, e Maria, muito calada na sua estreita metade da cama, escutava o bater acelerado do seu próprio coração e perguntava-se quanto dinheiro teria ele perdido no salão de Jogos Imperial. Bastante, sem dúvida – possivelmente dez dólares. Maria não tinha acabado o liceu, mas sabia medir a infelicidade daquele homem pela força da sua paixão.”

A odisseia invernal da família de Arturo Bandini (alter-ego de Fante, filho mais velho de Svevo, aqui retratado aos 14 anos e com tão mau carácter como o pai) não alude aos anos da depressão, como já li em vários textos grosseiros sobre o livro: a depressão económica nos Estados Unidos acontece nos anos 30, na sequência da queda da bolsa em 29, e o livro reporta-se à adolescência de Fante, nascido em 1909. O problema da família Bandini (com tem três filhos para educar) é o da

sazonalidade num pequena cidade de província.

Bandini é trolha (ou “assentador de tijolos”, na tradução de Rui Pires Cabral para “bricklayer”), não tem encomendas de trabalho durante o Inverno, a segurança social não existe e a mulher, sem estudos, não sabe fazer outra coisa para além de cuidar da casa (e de ter o olhar mais lúcido que alguma vez vi descrito num livro). Sobram as ajudas: da gordíssima mãe de Maria, que não perde a chance de envenenar o casal a troco de alguns dólares; do calvo merceeiro que reduz Maria à invisibilidade, obrigando-a a humilhar-se a troco de fiado; da viúva Hildegarde, a mulher mais rica da cidade, a troco de companhia…

A temática social, ou económica, se preferirem, tem a sua importância, e é nas relações de poder, egoísmo, submissão, humilhação e desejo que as personagens se reflectem mutuamente, em gestos, olhares, pequenos apontamentos da sua consciência silenciosa. Mas para gozar muito do que o livro tem para dar, o melhor é atentar nos pormenores descritivos, no engenho com que Fante, um católico educado por católicos numa sociedade laica, monta as cenas onde se cruzam as percepções e o mundo interior de cada personagem, e na malícia (ou subtileza) que as personagens usam entre si. Nem as crianças são ingénuas. Ainda no primeiro capítulo, na cena do pequeno almoço, Bandini fica a saber que o filho mais velho, Arturo, atirou o filho mais novo, Federico, contra a janela, partindo vidro e cabeça: “Com um simples olhar de soslaio, percebeu que a mãe o tinha chibado. Jesus! Traído pela própria mãe!” Federico, que nem tinha chorado com o incidente, fica agora horrorizado ao relembrar a cena. A refeição continua e Arturo concentra o seu ódio no rosto do pai, com gema de ovo no queixo: “Precisava de se sujar daquela maneira? Não conseguia acertar na boca?” Voltamos a Federico: “O martírio da noite anterior deixara de o interessar. Tinha encontrado uma migalha de pão a boiar no leite, o que o fez pensar num barco a motora atravessar o oceano. Drrrrrrr, fazia o barco, drrrrrrr.”

A cena cresce dramaticamente, a tensão acumula-se e estabiliza depois num planalto de humor. Fante faz transições admiráveis entre a interioridade das personagens e as implicações externas das suas acções. Do ponto de vista de construção, o livro avança degrau a degrau, mas é nesse curto intervalo entre a dimensão subjectiva (dos pensamentos) e a objectiva (das acções) que Fante cria o efeito de escândalo entre o indivíduo e o real. Fante (então com 29 anos) explora magistralmente a relação entre a longa duração duma cena a ser

da famíliaBandini (com tem três filhosparaeducar) é o da

John Fante abandonou a literatura por esta não lhe

permitir sustentar a família, tema de resto central

neste livro

Confissão

Agatha Christie estava farta de Hercule Poirot, o herói da sua mais bem-sucedida série de policiais. E tê-lo-ia muito simplesmente feito desaparecer (coisa em que era certamente perita, depois de tantos anos a escrever sobre assassinos) se o detective belga não fosse

o seu maior ganha-pão, confessou o neto da

escritora, Mathew Pritchard. O entusiasmo dos agentes e editores de Christie por Poirot impediu-a de fazer “um auto-exorcismo” para se livrar da personagem até 1975: só um ano antes da sua própria morte é que a escritora teve carta branca para levar o detective ao suicídio, em “Cai o Pano - O Último Caso de Poirot”.

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é a história do combate solitário do homem que fundou o Serviço Médico Aéreo de Tete e foi o primeiro civil a encontrar os corpos calcinados, decapitados e mutilados (mais de 400) de homens, mulheres e crianças das aldeias de Wiriyamu, Chawola e Juwau.

Não é a primeira vez que a ficção portuguesa se ocupa de Wiriyamu, “o maior embaraço público de Portugal na guerra em África”. José Rodrigues dos Santos afiança nunca ter lido o relatório dos acontecimentos feito pelo pai (o qual, em consequência, foi levado sob prisão de Tete para Nampula e mantido incomunicável durante meses), mas, como tratamos de literatura, o detalhe é irrelevante.

A narrativa tem uma clareza exemplar. Estabelecee de forma inequívoca o nível de intervenção da DGS, facto que não exonera (mas matiza) a intervenção da 6.ª Companhia de Comandos de Moçambique, de ordinário citada como responsável única do massacre. Contudo, o relato das execuções peca por esquematismo: “O interrogador [da DGS] pôs um pé sobre o corpo inerte e depois o outro e, para espanto geral, começou a saltitar em cima do cadáver. Os comandos riram com o inusitado da situação; só mesmo da mente daquele homem poderiam vir ideias assim.” Mais interessante é a descrição das sequelas: o espanto do médico face à extensão da barbárie; a perplexidade da população branca; o complexo equilíbrio de fidelidades: “Não lhe peço que negue. Peço-lhe apenas que se cale. A bem da Nação.” Sob custódia da polícia política, José Branco não cede: “O que embaraça Portugal não é o meu relatório, mas o comportamento dos nossos soldados.” O inspector-chefe da DGS não entende. Assim que se sabe que foi à aldeia, vendo o que viu, o director do hospital torna-se inimigo da comunidade. Mimicas, a mulher, é ostracizada pelo bispo, o governador e vizinhos: “Estou farta de ligar a toda a gente e ninguém quer falar comigo. Pessoas que eram minhas amigas...” Acento tónico no desconcerto: Mimicas não percebe.

Mas o livro não se esgota nesse trágico episódio. O pano de fundo é a emigração portuguesa para África e, em concreto, a vida dos colonos em Moçambique, nos anos 1960-70. Tudo começa em Penafiel, em 1936. Portugal é um país pobre e atrasado. O nacional-socialismo alemão está em alta. Lisboa começa a encher-se de refugiados em trânsito para o outro lado do Atlântico. Para assombro da família, José Branco, que tem Moçambique no horizonte, torna-se médico e especializa-se em medicina tropical.

O casal Branco faz parte dos que podem emigrar para Moçambique. O capítulo dedicado à viagem a bordo do “Infante D. Henrique, a jóia dos paquetes da carreira de África”, permite reflexões sobre a política colonial. Nesse microcosmo, José Branco e a mulher conhecem e confraternizam com Domingos Rouco, advogado negro, e Aniceto Silva, o pide. (Domingos Rouco, ou seja, Domingos Arouca, conhecido oposicionista moçambicano: tenho ideia de que estaria preso à data em que o autor o coloca no navio, mas o pormenor não belisca a intriga.) O racismo confunde José Branco, em particular o estatuto dos “assimilados”. Domingos Rouco esclarece: “Qualquer negro pode ter os mesmos direitos de um branco desde que faça prova de que é civilizado. Chamam-nos assimilados. Um negro tem de provar que goza de estabilidade económica e de um nível acima da média portuguesa. Tem de viver como um europeu, pagar impostos, cumprir o serviço militar e ler e escrever correctamente o português. Se fizer tudo isto, será classificado como assimilado e terá os mesmos direitos que um branco.” José Branco não pode deixar de pensar no elevado índice de analfabetismo da “Metrópole”. A chegada do casal Branco a Moçambique coincide com o início da guerra em Angola.

Em nenhuma circunstância o narrador profere juízos de valor. Podemos apenas intuir que a lembrança do massacre do Quanza Norte (Angola), onde centenas de colonos portugueses foram

chacinados (em Março de 1961) por guerrilheiros da UPA, sirva de contraponto ao massacre de Wiriyamu. São conjecturas.

Num livro de 670 páginas, onde, em situação-limite (a guerra), coexiste todo o tipo de gente, as cenas de sexo são naturais. O contrário é que seria estranho. Verdade que a primeira frase é sobre o “pénis enorme” de uma criança acabada de nascer (a primeira frase e as nove páginas seguintes). Mas não o devemos atrelar ao anedotário da “mingalhinha” do bebé. Afinal, “O Anjo Branco” é muito mais e melhor do que isso. Mesmo porque, doravante, tem lugar cativo na bibliografia essencial da guerra em África.

Ensaio

Ideias contra a correnteO testamento político de um historiador que, mais do que ter vivido o último meio século, o estudou a fundo.Manuel Carvalho

Um Tratado Sobre os Nossos Actuais DescontentamentosTony Judt(Trad. Marcelo Felix)Edições 70

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Um ensaio de filosofia política, uma reflexão sobre a ética pública, uma divagação sobre a História política do Ocidente do último meio século, um

manifesto pessoal sobre a era da social-democracia e do Estado-Providência que está a acabar, uma carta aberta aos cidadãos, especialmente os jovens, para que mantenham o seu papel histórico na luta por políticas progressistas? Sem ser nada disto em concreto, a última obra de Tony Judt, “Um Tratado Sobre Os Nossos Actuais Descontentamentos”, é feita com um pouco de tudo isto. Não pode ser lida como um ensaio académico com vocação científica, mas não deve ser igualmente ser vista como uma simples divagação subjectiva de um dos mais importantes historiadores da História europeia contemporânea, que faleceu no dia 6 de Agosto deste ano vítima da doença de Lou Gehring. É aliás neste cruzamento da experiência de alguém que viveu uma era, mas que, ao mesmo tempo,

Liv

ros aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

“O que significa ser dono de um livro impresso? Ele não dura para sempre; perdêmo-lo, oferecêmo-lo, deixamos que caia no banho”

Isabel Coutinho

Ciberescritas

“Comprem uma vez, leiam em toda a parte”. Este é o novo slogan da Amazon, que parece mesmo ser uma resposta ao slogan que a Google lançou há um ano na Feira do Livro de Frankfurt, quando

explicou aos editores e jornalistas o seu projecto Google Editions: “Compre em qualquer lugar, leia em qualquer lugar”.

O projecto da nuvem da Google permitirá que as pessoas acedam e leiam os livros que compram a partir de qualquer lugar: computador, telemóvel, ecrã de televisão, iPad, Sony Reader, etc. Mas, ao que se sabe, para já não funcionará no Kindle.

Esses livros não nos pertencerão. O consumidor não é dono do livro, não o terá fi sicamente; ele estará sempre albergado na nuvem, funcionará como se se tratasse de uma espécie de “leasing”. Para algumas pessoas, isto pode ser um grande problema. Se a Google falir, o que acontecerá aos livros que comprámos, mas que não temos? Chris Meade, do if:Book London, uma organização britânica que explora as potencialidades criativas dos novos média e está ligada ao Institute for The Future of the Book de Nova Iorque, esteve em Lisboa na semana passada e não o vê assim. “Estamos a ser muito duros. O que signifi ca realmente ser dono de um livro impresso, o que é esse sentimento de pertença? Ele não dura para sempre; perdêmo-lo, oferecêmo-lo, deixamos que caia no banho e não o podemos ler mais. Num dos nossos projectos, colocámos uma piada: o Google desliga uma fi cha e toda a nossa cultura desaparece. Talvez o grande perigo seja esse: o da perda do digital”, disse.

A base de dados do Google Editions, que irá ter 400 mil títulos para venda e dois milhões de livros em domínio público, deve começar a funcionar ainda este ano nos EUA e em 2011 na Europa. Segundo noticiou a “The

Bookseller”, fi zeram acordos com 35 mil editores em mais de 100 países.

Esta semana, numa das discussões online da comunidade Kindle, a equipa da Amazon divulgou que com a próxima actualização de “software” para os seus aparelhos vai ser possível ler os jornais e revistas que assinamos através do Kindle

mesmo quando não temos o aparelho à mão (poderemos fazê-lo em computadores, telemóveis e tablets através da aplicação Kindle).

A outra novidade é que quem tiver um aparelho para ler livros electrónicos Kindle ou as aplicações grátis que permitem ler esses e-books no PC, no Mac, no iPad, no iPhone ou nos BlackBerries vai poder emprestar o livro uma única vez, e esse empréstimo pode durar até 14 dias. Enquanto o livro estiver emprestado, tal como aconteceria se se tratasse de um livro em papel, o dono não terá acesso a ele. Mas nem todos os livros poderão ser emprestados. Tal como nem todos os livros Kindle podem ser transformados em audiolivros quando descarregados para o e-reader. Essa decisão cabe exclusivamente à editora ou aos proprietários dos direitos de autor. Esta ideia não é nova. Quando a cadeia de livrarias norte-americana Barnes & Noble lançou o seu aparelho para ler e-books, o Nook, já permitia o empréstimo de livros.

Amazonhttp://www.amazon.com

Google Bookshttp://books.google.com

[email protected]

(Ciberescritas já é um blogue http://blogs.publico.pt/ciberescritas)

Ser ou não ser dono de um e-book

José Rodrigues dos Santos escreveu um livro que a partir daqui será peça essencial na literatura da guerra em África

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a estudou a fundo que se encontram as melhores razões para ler este livro imprescindível de Tony Judt.

A sua tese essencial é que depois dos anos 70, concretamente após a agitação da era pop e do Maio de 68, uma viragem cultural e política alterou radicalmente o modo como os cidadãos da Europa democrática e dos Estados Unidos se relacionavam com a esfera pública e com o Estado. “Muito do que hoje nos parece ser ‘natural’ data dos anos 80: a obsessão com a criação de riqueza, o culto da privatização e do sector privado, as crescentes disparidades entre ricos e pobres. E acima de tudo a retórica que as acompanha: a admiração acrítica dos mercados livres, o desdém pelo sector público, a ilusão do crescimento eterno”, escreve. A redução da esfera pública e a hegemonia do individualismo colocam as sociedades ocidentais perante uma grave ameaça: a da dissolução das causas que orientaram a procura do bem-comum da esquerda democrática entre o pós-guerra e os anos 80. Ora para Judt, apesar de todos os erros e de todas as más experiências, a instância que melhor garante esse bem-comum é o Estado. E o Estado está em grave crise. “Libertámo-nos em meados do século XX da assumpção – nunca universal, mas muito espalhada – de que o estado é provavelmente a melhor solução para um determinado problema. Temos agora de nos libertar da noção oposta: a de que o estado – por definição e em todos os casos – é a pior opção disponível”.

Para Judt, foi através da acção do Estado gerido no contexto das democracias ocidentais que melhor se garantiram as liberdades individuais, se “restaurou o orgulho e a auto-estima dos perdedores da sociedade” e se desenvolveram bens públicos cujo valor é de uma admirável perenidade, como as “estações ferroviárias construídas há mais de um século e meio – Gare De l’Est em Paris (1852), Paddington Station, Londres (1854), Keleti pályaudvar, Budapeste (1884), Hauptbahnhof de Zurique (1893)”. Agora que deixou de se pensar o

Estado e se considera o sistema providencial que dele derivou como a fonte de todos os problemas, Judt pede que se questionem estes tabus, se aprenda de novo “a falar da mudança” e se recuperem valores e princípios das políticas progressistas do pós-guerra. Chegado a este ponto, o historiador deixa um caminho já conhecido para trilhar: “A social-democracia não representa o futuro ideal; nem sequer representa o passado ideal. Mas entre as opções hoje disponíveis para nós, é melhor do que qualquer outra coisa ao nosso alcance”.

Ainda que este programa esteja ao alcance de todos, o principal agente da mudança que Judt considera imperiosa são os jovens dos dois lados do Atlântico. Porque eles são vítimas de “uma frustração nas suas vidas” como a que “a desinspiradora falta de sentido do mundo” causou nos jovens dos anos 20; também porque “a divergência e a dissidência são fundamentalmente trabalho dos jovens”.

Obra de um evidente desencanto, testemunho de alguém que cresceu e viveu o idealismo progressista dos anos 50 e 60 na Europa, este tratado está longe de ser objectivo. Pelo contrário, assume um carácter apologético, quase panfletário. Ignora os problemas que o modelo social-democrata enfrenta em sociedades envelhecidas, as realidades sociais impostas pelo progresso tecnológico que acentuam o individualismo e dificultam projectos socializantes, ou até a competição global que obriga o modelo social alemão, por exemplo, a competir com o capitalismo desregulado e exploratório da China.

Mas, lendo-o como ele é e pretende ser, este livro polémico e provocador é uma experiência que vale a pena. Pelas ideias, pela limpidez do texto, pela paixão, mas também pela nostalgia. Olhando em perspectiva, desde os anos gloriosos do cresci-mento do pós-guerra até estes dias em que os Estados se desagregam na dívida e no défice, é interessante regressar a esses tempos em que, como disse Ralph Darherndorf, “nunca tantos viveram tão bem”.

O último livro de Tony Judt é testemunho de um evidente desencanto com a deriva liberal do mundo ocidental, e também de uma nostalgia pelo glorioso crescimento do pós-guerra

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seja no território dos desejos. No seu prefácio à edição americana de “O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia”, escrito em 1972 por Gilles Deleuze e Félix Guattari, o filósofo francês Michel Foucault fala desse livro como sendo uma espécie de introdução a uma “vida não-fascista”, a esse espaço de liberdade antagónico aos diferentes tipos de poder: “Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como libertar o nosso discurso e os nossos actos, os nossos corações e os nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado no nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que estariam alojados nas redobras da alma. Deleuze e Guattari, por seu lado, espreitam os traços mais ínfimos do fascismo nos corpos.”

Na galeria, a estrutura que sobrevive à acção inaugural – nessa performance, o artista, com recurso a uma “stepper”, pedala num crescendo de intensidade até ao esgotamento físico – serve de suporte para imagens obtidas a partir do Second Life. Nelas, observa-se o jovem avatar de Silvestre Pestana, Vito Flores, num permanente exercício, de onde todo o cansaço foi expulso – o visitante tem também a possibilidade, através de um “joystick”, de assumir o seu próprio papel na realidade virtual e percorrer os espaços expositivos, assistindo assim aos acontecimentos num mundo paralelo à realidade. Deleuze, em “Diferença e Repetição” (Relógio d’Água, 2000), diz-nos, contudo, que o virtual não se opõe ao real, mas apenas ao actual: “‘O virtual possui uma plena realidade enquanto virtual’. Do virtual é preciso dizer exactamente o que Proust dizia dos estados de ressonância: ‘Reais sem serem actuais, ideais sem serem abstractos’, e simbólicos sem serem fictícios. O virtual deve ser mesmo

definido como uma estrita parte do objecto real – como se o objecto tivesse uma das suas partes no virtual e aí mergulhasse como numa dimensão objectiva.”

A estrutura em que as performances decorrem – a real e a virtual – é uma estufa, com todas as questões simbólicas a ela associadas, sobretudo aquelas relacionadas com criação de um ambiente ideal para a sobrevivência de uma espécie. O osso dessa “casa” é constituído por néons azuis, traços que desenham esse limite habitado por um corpo “socialmente reprovado por envelhecimento prematuro”, subtítulo da primeira apresentação do projecto, a 1.0, no fim do ano passado, no espaço A Certain Lack of Coherence, também no Porto. Dizia-se então que este projecto de Silvestre Pestana – um dos nomes fundadores, em Portugal, quer da arte vídeo, quer da performance –, se apresentava “como uma reflexão artística sobre a construção social dos comportamentos narcísicos, ditados pela mitologia das vivências funcionais.”

Os eternos retornos do habitarCarlos Bunga e Nuno Cera estão na Trienal de Arquitectura de Lisboa. Luísa Soares de Oliveira

A temporalidade do espaçoDe Carlos Bunga.

FuturelandDe Nuno Cera.

Lisboa. Avenida 211. Av. Liberdade, 211. Até 31/12. 5ª a Sáb. das 15h às 19h.

Escultura, Desenho, Vídeo, Fotografia.

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A obra de Nuno Cera e a de Carlos Bunga que são apresentadas no espaço Liberdade 211 possuem em comum o conceito de habitar. Esta

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Exp

osiç

ões

Segunda vidaSilvestre Pestana entre a mitologia clássica e a realidade virtual. Óscar Faria

Fénix 2.0De Silvestre Pestana.

Porto. Galeria Alvarez. Av. Boavista, 707. Tel.: 226065771. Até 10/11. 2ª a Sáb. das 15h às 20h

Instalação.

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Renascer das cinzas, viver uma outra vida, eterna, se possível: este é o mito da Fénix, uma ave mitológica, fabulosa, originária do Iémen. Esta narrativa lembra os episódios bíblicos relacionados com a ressurreição, um milagre apenas ao alcance de santos e profetas. Pode ainda evocar-se ainda Fausto, que negoceia com Mefistófeles 24 anos da sua vida sem envelhecer. O desejo de imortalidade, muitas vezes associado a um estado de perpétua juventude, remonta às primeiras epopeias literárias, como a de Gilgamesh, e nunca mais deixou de fazer parte do imaginário humano. Hoje, o Second Life possibilita simular uma performance infinita, feita de imagens virtuais: o corpo é apenas uma representação, um plano habitado por avatares, que, em si, prolongam essa vontade de se ser um outro em vez de um mesmo, mortal, de todos os dias.

A exposição “Fénix 2.0”, de Silvestre Pestana (Funchal, 1949), faz a ponte entre a mitologia clássica e a realidade virtual. O artista evoca a ave renascida das suas próprias cinzas para nos falar de um lugar-comum: a ditadura à qual o corpo está sujeito na sociedade contemporânea, nomeadamente a permanente performatividade/competição a que ele parece estar obrigado, seja na esfera do trabalho,

InauguramBayonets Replacing ToothpicksDe André Lemos. Porto. Dama Aflita. R. da Picaria, 84. Tel.: 927203858. De 30/10 a 27/11. 2ª a Sáb. das 15h às 19h.

Ilustração.

FacetasDe Gustavo Fernandes. Lisboa. Museu da Água - Reservatório da Mãe D’Água das Amoreiras. Prç. das Amoreiras, 10. Tel.: 218100215. De 04/11 a 27/11. 2ª a Sáb. das 10h às 18h.

Pintura.

Trabalhos RecentesDe Helena Lapas. Lisboa. Galeria Ratton. Rua da Academia das Ciências, 2C. Tel.: 213460948. De 04/11 a 30/12. 2ª a 6ª das 10h às 19h30. Inaugura 4/11 às 21h30.

Outros.

ContinuamOs ProfessoresDe Álvaro Lapa, Ângela Ferreira, Eduardo Batarda, entre outros. Lisboa. Centro de Arte Moderna - José de Azeredo Perdigão. Rua Dr. Nicolau Bettencourt. Tel.: 217823474. Até 02/01. 3ª a Dom. das 10h às 18h.

Pintura, Escultura, Outros.

Res Publica - 1910 e 2010 Face a FaceDe Bruce Nauman, Nuno Maya, Gabriel Orozco, Guillermo Kuitca, Joana Vasconcelos, entre outros. Lisboa. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian. Avenida de Berna, 45A. Tel.: 217823700. Até 16/01. 3ª a Dom. das 10h às 18h.

Pintura, Fotografia, Vídeo, Outros.

Agenda

Wall Piece De Gary Hill. Lisboa. MNAC - Museu do Chiado. Rua Serpa Pinto, 4. Tel.: 213432148. Até 21/11. 3ª a Dom. das 10h às 18h.

Temps d’ Images 2010. Instalação.

SilvaeDe João Queiroz.Lisboa. Culturgest. Rua Arco do Cego - Edifício da CGD. Tel.: 217905155. Até 09/01. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª das 11h às 19h. Sáb., Dom. e Feriados das 14h às 20h.

Pintura, Desenho.

MontageDe Filipa César. Vila do Conde. Solar - Galeria de Arte Cinemática. Solar de S. Roque. Tel.: 252646516. Até 26/12. 3ª a 6ª

das 14h30 às 18h. Sáb. e Dom. das 10h às 18h.

Outros.

Falemos de Casas: Quando a Arte Fala de Arquitectura [Construir, Desconstruir, Habitar] Lisboa. MNAC - Museu do Chiado. Rua Serpa Pinto, 4. Tel.: 213432148. Até 21/11. 3ª a Dom. das 10h às 18h.

Trienal de Arquitectura de Lisboa. Arquitectura, Outros.

Falemos de Casas: Projecto Cova da Moura Lisboa. Museu da Electricidade. Avenida Brasília - Edifício Central Tejo. Tel.: 210028120. Até 16/01. 3ª a Dom. das 10h às 18h.

Trienal de Arquitectura de Lisboa. Arquitectura, Outros.

A House in Luanda: Patio and Pavillion Lisboa. Museu da Electricidade. Avenida Brasília - Edifício Central Tejo. Tel.: 210028120. Até 16/01. 3ª a

“Fenix 2.0” aborda a ditadura a que o corpo está sujeito na sociedade contemporânea a partir de um dispositivo em forma de casa que abriga um avatar do artista, Vito Flores

André Lemos na Dama Afl ita

Em Berlim

A galeria berlinense Künstlerhaus Bethanien inaugurou ontem uma colectiva

que inclui obras dos artistas portugueses Gabriela Albergaria, Maria Lusitano, Nuno Cera,

Rui Mourão e Vasco Araújo, entre outros de nacionalidade alemã ou a viver na Alemanha. “O Jardim como Espelho” mostra uma série de vídeos organizados em torno do tema dos espaços verdes e pode ser vista até 14 de Novembro.

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palavra é propositadamente vaga, o que convém a dois tipos de trabalhos tão distintos que, na realidade, se concretizam em duas exposições individuais: Nuno Cera ocupa as salas à direita de quem entra, e Carlos Bunga as que se situam à esquerda. Ambos trabalharam também com diferentes comissários ( João Pinharanda no caso do primeiro, Filipa Oliveira no do segundo). Mas não é possível desligar um de outro trabalho. O espaço Liberdade 211, que fica num antigo apartamento de habitação, guarda ainda todas as características dessa antiga função. Não existe privacidade nem isolamento total entre salas. As contaminações entre um e outro trabalho são constantes, e talvez essa contaminação entre as construções efémeras de um e as cidades frias de outro sejam necessárias e contribuam para a riqueza de significados que captamos no trabalho destes dois artistas.

A obra de Carlos Bunga, desde que em 2003 ganhou o Prémio EDP Novos Artistas, tem-se desenvolvido sobretudo no estrangeiro. Nessa época, revelaram-se marcantes as suas construções de cartão que eram posteriormente destruídas. “A temporalidade do espaço”, nome que deu à presente exposição, esclarece o pensamento subjacente a este processo, e revela-nos uma obra muito mais rica e diversificada, que se articula em torno do pensamento sobre a organicidade da construção.

O artista possui a peculiaridade de construir as suas esculturas, e só depois realizar desenhos sobre essa construção. O desenho, de que aqui podemos ver alguns exemplos, perde totalmente a sua condição subordinada à obra final e revela-se como o resultado da transformação dessa obra. Tudo no trabalho de Carlos Bunga está, aliás, sujeito à mutação entrópica: não só as plantas, as maquetes, os labirintos que coloca no chão acentuando a fragilidade dos materiais, mas os próprios objectos, a linguagem (onde assume o erro ortográfico como sinal de mudança)

e até mesmo a casa. Numa peça feita propositadamente para este espaço, interfere sobre uma das paredes, acentuando o carácter de quase ruína que todo o apartamento possui. Na obra deste artista, ao contrário do que se poderia supor, nada releva de uma invocação da morte; mas tudo se refere à permanente transformação, como se o construído e o habitado possuíssem uma vida própria.

O projecto de Nuno Cera, “Futureland”, que se concretiza através do vídeo e da fotografia, resulta da viagem por grandes cidades de todo o mundo, de Los Angeles ao Dubai, de Hong-Kong a Jacarta. As imagens escolhidas incidem sobre a descaracterização provocada pela adopção de modelos internacionais de estruturas de circulação – pontes, viadutos, auto-estradas, terminais rodoviários -, da arquitectura contemporânea mais banal e massificada, do design urbano convencional (estações de serviço, candeeiros de rua, cabines telefónicas). O projecto possui uma vocação documental evidente. E o resultado é um retrato assustador da globalização dos modelos urbanísticos. Quer se trate de uma estação de serviço na Turquia, de uma viagem de carro pelos subúrbios de Los Angeles ou de um bairro de classe média na Índia, o espectador depara-se com um mundo onde as diferenças não existem, um mundo de onde a natureza é excluída ou permanece domesticada em hortas e jardins urbanos. Há aliás um jogo de identificação do visível que Nuno Cera exacerba na montagem e a que nenhum espectador se furta: excluídos os clichés turísticos, todas as cidades se assemelham, não foram os painéis e sinais que, na língua de cada lugar, indicam direcções e estabelecem proibições e sentidos. Aquilo a que o fotógrafo nos convida é afinal a uma imensa viagem de ida e volta, de regresso sempre ao mesmo, de nenhum lugar para nenhum lugar.

Dom. das 10h às 18h.

Trienal de Arquitectura de Lisboa. Arquitectura, Outros.

Falemos de Casas: Entre o Norte e o Sul Lisboa. Museu Colecção Berardo. Praça do Império - Centro Cultural de Belém. Tel.: 213612878. Até 16/01. Sáb. das 10h às 22h. 2ª a Dom. das 10h às 19h.

Trienal de Arquitectura de Lisboa. Arquitectura, Outros.

Victor Willing: Uma RetrospectivaCascais. Casa das Histórias. Av. da República, 300. Tel.: 214826970. Até 02/01. 2ª a Dom. das 10h às 20h.

Pintura.

Paula Rego Anos 70 - Contos Populares e Outras HistóriasCascais. Casa das Histórias. Av. da República, 300. Tel.: 214826970. Até 16/01. 2ª a Dom. das 10h às 20h.

Pintura, Desenho.

There is no World When There is no Mirror De Ana Rito. Lisboa. Carpe Diem Arte e Pesquisa. R. de O Século, 79. Até 18/12. 4ª a Sáb. das 14h às 20h.

Festival Temps d’ Images 2010. Instalação.

ColectivaDe Claire de Santa Coloma, Laura Vinci, Rui Calçada Bastos, Santiago Sierra, Ana Rito, Susana Guardado. Lisboa. Carpe Diem Arte e Pesquisa. R. de O Século, 79. Até 18/12. 4ª a Sáb. das 14h às 20h.

Instalação, Desenho, Outros.

Julian OpieBraga. Galeria Mário Sequeira - Parada de Tibães. Quinta da Igreja. Tel.: 253602550. Até 29/01. 2ª a 6ª das 10h às 19h. Sáb. das 15h às 19h.

Pintura, Escultura, Outros.

“Futureland” é um retrato assustador desta globalização

que faz com que, excluídos os clichés turísticos, todas as

cidades se assemelhem

// MORADA Praça Marquês de Pombal nº3, 1250-161 Lisboa

// TELEFONE 21 359 73 58

// EMAIL [email protected]

// HORÁRIO Segunda a Sexta das 9h às 21h

artista convidado

/// ENTRADA LIVRE LIMITADA À LOTAÇÃO DA SALA/// HORÁRIO DE ABERTURA DE PORTAS | 20H00

// 17 DE NOVEMBRO_CONCERTO | 21H30

Um concerto com clássicos e temas inéditos do novo álbum da banda

que conta com a participação de Rui Pregal da Cunha.

apresentam

COULEURS SUR PARIS

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e como elas não pertencem obrigatoriamente à bossa.)

Esta caixa que reúne a trilogia de “Estudando…” (“O Samba”, “O Pagode” e “A Bossa”) tem essa particularidade de mostrar a grandeza de Tom Zé: ele chega quando a cultura já foi partida, e, qual menino autista genial que está a aprender a usar as mãos, diverte-se a encaixar os cacos – o grosso do mundo olha com desdém, quem sabe que para ver é preciso olhar de viés abraça esta realidade retorcida. Peguemos no estranho caso da mutação de “Estudando o Samba”. Nesta caixa surge como um “Best Of” da obra de Tom Zé até então (o disco era de 76) escolhido pelo músico e por David Byrne. Alguém consegue resistir a “Augusta, Angélica e Consolação”, alguém consegue dizer que isto não é samba (mesmo que a voz e as harmonias não sejam propriamente diatónicas e usem melismas em barda, ou, como se dizia na altura, sejam desafinadas)? Tom Zé foi nitidamente afastando-se da proximidade aos géneros, foi gradualmente recolhendo deles a raiz primária para criar um novo mundo possível, acima de tudo harmónico, que (opinião estritamente pessoal) atinge o seu ponto máximo em “Estudando o Pagode”, uma obra-prima de complexidade, como é verificável numa canção como “Ave Dor Maria”: há umas gaitas (feitas de uma folha qualquer brasileira), um tremendo trabalho de caixa, loops de vozes, flautas, linhas melódicas a vogar, coros para cima e para baixo, e desta complexidade nasce um ritmo irresistível, não propriamente dançável, antes capaz de nos fazer ficar de queixo caído, como quem pergunta: “Como é isto possível?”. Pois é: com Tom Zé é tudo possível. Um génio, o grande génio da música brasileira.

Pequenos grandes acontecimentos

DarkstarNorthHyperdub, distri. Flur

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A música actual é cada vez mais feita de inúmeros micro-acontecimentos a que é difícil

atribuir um sentido geral. Como entrar em “North”, o álbum de estreia dos ingleses Darkstar?

Dizendo que lançaram antes uma série de máxi-singles na Hyperdub, uma das aventuras editorais mais progressistas nascidas em terras britânicas nos últimos anos, conhecida pelas movimentações

dubstep, personificadas por Burial, Kode9 ou King Midas Sound? Pode ser. Mas ao mesmo tempo não é.

Referindo que na feitura do álbum algumas das influências confessas do trio são provenientes da pop electrónica dos anos 80, expressas por Human League, Japan ou Orchestral Manouvres In The Dark, apesar dos Blue Nile parecerem mais presentes? Pode ser. Mas ao mesmo tempo não é nada disso.

Dizendo que fazem parte de um aglomerado infinito de jovens músicos e produtores que parece ter sido tocado pela música soturna de Burial revelada há cinco anos, erguendo uma realidade pós-dubstep? Pode ser. Mas eles são tantos. E tão variados nas suas disposições, da criação de ambientes (Balem Acab, Mount Kimbie, Baths, James Blake) às inclinações dançantes (Pariah, Scuba, Joy Orbinson), que mais vale não tentar ir por aí.

No fim ficaremos com um objecto que tem um pouco de tudo isso, mas ao mesmo tempo não é nada disso. O experiente Paul Morley, ao entrevistá-los recentemente para o “The Guardian”, dizia que era essa estranha familiaridade que o fascinava.

É quase sempre assim com a melhor música e com os Darkstar não é excepção. Na sua música cruzam-se as heranças clássicas da pop, os mecanismos preguiçosos do ritmo e uma sucessão de subtis acontecimentos em que a contenção minimalista, uma voz que nunca procura sobrepor-se ao edifício sónico e uma filigrana de elementos são arrumados com grande elegância.

Cada canção é uma sucessão de pequenos grandes acontecimentos, mas esse facto não contribui para que “North” se deixe descobrir de uma assentada. Exige digestão, aprofundamento, uma relação fiel e verdadeira. Depois, no desenlace, deixar-se-á relevar em toda a sua dimensão. Vítor Belanciano

O sublime e o descartável

John LennonSignature BoxEMI Music

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John Lennon era o mais complexo e contraditório dos Beatles. O que correu mais riscos, o mais provocador, o

mais empenhado artisticamente – apesar de ter sido McCartney, que muito justamente nunca se cansou de o recordar, a introduzi-lo ao mundo das vanguardas. O seu percurso a solo reflecte-o. Está tudo em “Signature Box”, a caixa de design irresistível que reúne os seus oito álbuns a solo (excluindo os experimentais gravados com Yoko no final da década de 1960), acrescidos de uma colecção de singles extra-álbum (com as grandes “Instant karma!” e “Cold turkey” e

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Dis

cos

Pop

O grande génio da música brasileiraUma caixa comemora os 20 anos da redescoberta de Tom Zé reunindo a trilogia de Estudos em vinil. Soberbo. João Bonifácio

Tom ZéExplaining Things So I Can Confuse YouLuaka Bop; distri. Popstock

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“Se João Gilberto tivesse um processo aberto e fosse nos tribunais cobrar direitos autorais por todo o samba-

canção que com a sua gravação passou a ser bossa-nova, qualquer juiz de toga (…) lhe dava ganho de causa”. Isto é “João nos tribunais”, bossa de “Estudando a Bossa” em que Tom Zé traça a génese da bossa-nova. Ele não consegue evitar isto: reflectir, em cada disco, a cultura

brasileira no sentido lato do termo “cultura”.

Não apenas os objectos, mas sim toda a quantidade de circunstâncias que faz com que num

determinado período de tempo determinado grupo de

gente se comporte de determinada maneira. E fá-lo torcendo sempre – musicalmente – as coordenadas que tem à sua disposição, como é nítido

em “Roquenrol Bim-bom”: estão lá

o violão, a caixa, mas dos coros às repetições às harmonias estranhas Tom

Zé faz bossa-torta, bossa-tonta, bossa-tela-em-branco

para usar à sua vontade. (Notem só ali pelos dois minutos

a quantidade de harmonias em jogo

que Tom Zé traça a génova. Ele não consegureflectir, em cada disc

brasileira nodo term

Não apobjectodade cquenu

d

cdmtosm– cqdco

emBim-b

o violão, a cacoros às repeharmonias es

Zé faz bossa-totonta, bossa-tel

para usar à sua vo(Notem só ali pelos

a quantidade de harm

Tom Zé revolve as coordenadas dos grandes géneros da música popular brasileira, levando-as a lugares nunca dantes navegados

Os Darkstar são estranhamente

familiares

O bom, o mau e o médio na caixa que compila todo o John Lennon pós-Beatles

MA

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O R

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SI

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • 47

arranque à modorra dos dias que passam. “Nouns” era, resumidamente, qualquer coisa a acontecer perante nós. Coisa tão aparentemente simples quanto transformadora: canções que se revolviam sobre si próprias com sofreguidão, que nos ofereciam versões compactas do abandono sónico de Thurston Morre e companhia com a concisão de uma canção pop de dois minutos.

Os No Age de “Everything In Between” não são exactamente isso – apesar de encontrarmos no álbum uma “Fever dreaming” que arrasa tudo à sua passagem, com guitarra em correria desenfreada e o refrão berrando o título em delírio febril, passe a redundância. Os No Age de “Everything In Between”, apesar de “Fever dreaming”, não são tão excitantes quanto foram antes. Procurando mais, explorando novas texturas sonoras (“Positive amputation”, ainda que não seja particularmente inspirada, soa a Brian Eno a flirtar com dinâmicas pós-rock), mais comedidos na criação da massa sonora distorcida que era a sua imagem de marca, os No Age mostram mais sinais de futuro e uma saudável

os standards “Power to the people” e “Give peace a chance”) e de curiosidades como gravações caseiras ou “takes” de estúdio alternativos.

John Lennon começou de forma insuperável, caiu gloriosamente por ambicionar alto de mais e, depois disso, pôs de lado a ambição para ser, muito simplesmente, um compositor de canções, com a sua idade e do seu tempo, que sobressai mais pelo apelido mítico (somos obrigados a prestar-lhe atenção) do que por aquilo que alcançavam álbuns como “Mind Games”, o último “Double Fantasy” ou o póstumo “Milk Honey”, irmão gémeo e ainda menos inspirado do que o seu antecessor.

Em “Plastic Ono Band”, tudo está à flor da pele. É um álbum visceral e incrivelmente honesto. Equilibrado entre a versão minimalista do “wall of sound” de “Mother” – tudo a voz, aquela voz que arranha, dorida, desesperada, sobressaindo sobre a melodia do piano e a discreta secção rítmica – e um blues-rock lamacento, agressivo e questionador – “I found out” e “Well well well” são canções enormes -, reúne na perfeição o brutalmente introspectivo e o desejo de agir sobre o mundo. Nesse aspecto, destacam-se a niilista “God” (“is a concept by which we measure pain”) e a acústica “Working class hero”, onde o Lennon activista recusa maniqueísmos de propaganda – o verso “but you’re still fucking peasants as far as I can see” inclui todos, não é acusação dirigida ao outro lado da barricada.

Com “Imagine”, acentua-se a presença de Phil Spector enquanto produtor, mas mantém-se o tom. A canção título, gasta por sobre-exposição, está hoje desvirtuada de qualquer força vital (nada imaginamos para além multidões entoando-lhe os versos em manifestações, celebrações, recepções a embaixadores, casamentos, baptizados ou concertos de Jack Johnson). O resto, porém, está incólume: a melodia perfeita de “Jealous guy”, com “Sinatra quality” (ainda que Sinatra nunca expusesse tamanha fragilidade), o boogie com orquestração expressionista de “It’s so hard” ou a neurose blues de “I don’t wanna be a soldier mama I don’t wanna die” (George Harrison na guitarra slide, o brilhante Nicky Hopkins no piano, a lenda King Curtis no sax e os Stones de “Exile On Main St” ali tão perto). Com estes dois álbuns, John Lennon saía da corrida pós-Beatles num imaculado primeiro lugar – apesar da perfeição pop dos primeiros passos a solo de McCartney, apesar da extraordinária cascata de canções de “All Things Must Pass”, de George Harrison, apesar de Ringo nunca ter deixado de ser Ringo. O que se seguiria, porém, seria um percurso errático

de onde não mais sobressairia, de forma tão evidente, o seu génio.

“Some Time In New York City”, gravado com os nova-iorquinos Elephant’s Memory e editado em 1972, revela o Lennon mais politizado que ouviremos em disco, mas também o menos convincente – chega a ser constrangedor ouvi-lo falar de “leprechauns” sobre flautinhas para turista ver em “The luck of the irish”. Dividido com Yoko, que canta metade das canções, é, sob qualquer ponto de vista, um disco falhado – rock’n’roll formulaico à Chuck Berry, pop activista que parece saída da cabeça da Sandie Shaw de “Puppet on a string” (mas Yoko canta, “wisdom, o wisdom, that’s what we ask for”) e, para que não se perca tudo, uma óptima “We’re all water” marcada pelo boogie de piano e pelo teatro ululante de Yoko, que surge como a cantora pós-punk que poderia ter sido anos mais tarde – o álbum inclui ainda uma actuação ao vivo com Frank Zappa, curiosidade histórica.

Encerrado o capítulo mais declaradamente activista, Lennon entraria em piloto automático. “Mind Games” e “Milk And Honey” são álbuns de um génio pouco interessado em grandes proclamações, entre o surto de inspiração e a navegação em piloto autmático. Claro que “Mind Games” tem “Mind games”, grande canção, serena canção de um Lennon elogiando o tumulto que faz o mundo e o amor avançar, e claro que “Milk And Honey” tem “#9 Dream”, actualização 70s da sua obra psicadélica nos Beatles, mas seria despropositado perante a dimensão do seu autor considerá-los sequer próximos de essenciais.

Sobra então “Rock’n’roll”, o modesto álbum de regresso ao passado, às versões de Chuck Berry, Buddy Holly ou Little Richard, onde se prova o amor que Lennon tinha pela primeira explosão rock’n’roll (é, declaradamente, um álbum feliz e enérgico) e onde se revela, uma vez mais e definitivamente, a sua voz magnífica. E sobra, por fim, “Double Fantasy”, o álbum de regresso em 1980. De produção datadíssima, soa hoje envelhecido e particularmente desinspirado. Se algo há a reter, são as canções de Yoko que, bem mais do que as odes à vida familiar e à esposa cantadas por John, estão perfeitamente adequadas a um mundo que vivia então a new-wave e as experiências do pós-punk – “Kiss kiss kiss” destaca-se particularmente.

Para além da “Signature Box”, foram editadas em paralelo as colectâneas “Power To The People – The Hits” e “Gimme Some Truth”, onde a obra de Lennon é organizada tematicamente em quatro CDs (“Woman”, “Borrowed Time”, “Roots” e “Working Class Hero”). Mário Lopes

Directos ao assunto

Linda MartiniCasa OcupadaLisboagência; distri. iPlay

mmmnn

Depois do rock com tendência para grandiloquências instrumentais, pontuado por

descargas rock, os Linda Martini viram a receita ao contrário no seu segundo longa duração. Em “Casa Ocupada”, prevalece o lado mais rock e directo dos lisboetas, sem mexidas de fundo na curiosa fórmula que encontraram (algures entre o rock instrumental e a canção, sem nunca se fixar totalmente num dos lados da contenda).

Entre “Olhos de Mongol” (2006) e o novo disco, os Linda Martini ficaram sem um guitarrista (o que ajuda a explicar a maior simplicidade de “Casa Ocupada”) e experimenta-ram novos caminhos (no EP “Marsupial”) e o primado da energia (num EP ao vivo, “Intervalo”).

Pensado para ser apresentado em concerto, “Casa Ocupada” é um conjunto de temas mais curtos e mais centrados na voz de André Henriques, entre a declamação sofrida e o grito. Estes são uns Linda Martini com vontade de se meterem em pancadarias punk rock (“Cem metros sereia”, com direito a coros a várias vozes no final) ou de fazerem canções com as influências escarrapachadas no título (“Juventude sónica”). “Mulher a dias” impressiona pelo jogo entre as guitarras e a bateria feita em picadinho por Hélio Morais (um comboio de força), enquanto “Belarmino vs” lembra a intensidade clássica do hardcore.

“Casa Ocupada” é dono de menos

momentos altos do que “Olhos de Mongol”, mas é também mais parco em momentos baixos. Sobra um álbum mais coerente e despretensioso, uma confiante confirmação do caso sério que são os Linda Martini. Pedro Rios

No AgeEverything In BetweenSub Pop; distri. Popstock

mmmnn

“Nouns” era uma granada de alegria aos nossos ouvidos sempre sedentos de algo que nos

Confi rmaçâo: os Linda Martini são um caso sério

Uns furos abaixo do álbum anterior, este novo dos No Age

BERTOLT BRECHT VERSÃO JOÃO LOURENÇO | VERA SAN PAYO DE LEMOS DRAMATURGIA VERA SAN PAYO DE LEMOS

COM ANTÓNIO PEDRO LIMA | CÁTIA RIBEIRO

CARLOS MALVAREZ | CARLOS PISCOCRISTÓVÃO CAMPOS | FRANCISCO PESTANA

JOÃO FERNANDEZ | MAFALDA LENCASTREMAFALDA LUÍS DE CASTRO | MARTA DIAS

MIGUEL GUILHERME | MIGUEL TAPADASPATRÍCIA ANDRÉ | RUI MORISSON

SARA CIPRIANO | SÉRGIO PRAIASOFIA DE PORTUGAL

VASCO SOUSA

ESTRUTURA PATROCINADA PELO

ENCENAÇÃO e REALIZAÇÃO VÍDEOJOÃO LOURENÇO

MÚSICA MAZGANI

CENÁRIO ANTÓNIO CASIMIROJOÃO LOURENÇO

FIGURINOS BERNARDO MONTEIRO

COREOGRAFIA CLÁUDIA NÓVOA

SUPERVISÃO AUDIOVISUAL AURÉLIO VASQUES

LUZ MELIM TEIXEIRA

[ m/12 ]

TOLT BRECHT VERSÃO JOÃO LOURENÇO | VERA SAN PAYO DRAMATURGIA VERA SAN PAYO

ANTÓNIO PEDRO LIMA | CÁÁCARLOS MALVAREZ | CA

CRISTÓVÃO CAMPOS | FRANCISCJOÃO FERNANDEZ | MAFALDA MAFALDA LUÍS DE CASTRO | M

MIGUEL GUILHERME | MIGUEPATRÍCIA ANDRÉ | RU

SARA CIPRIANO | SÉSOFIA DE

VA

CINADA PELO

QUARTA A SÁBADO 21H30 DOMINGO-MATINÉE 16H00

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Michael Formanek rodeou-se de especialistas neste disco fascinante

abrangência. Não imaginávamos que conseguissem sintonizar o folk-rock danificado dos Elf Power seguindo instruções de Major Tom, como em “Common heat”, ou que transformassem a alegre fúria anterior na planagem introspectiva de “Glitter”, assombrada pela estática constante de guitarras e maquinaria avulsa.

É certo que sentimos falta daquele felicíssimo caos que trauteámos há um par de anos, e é certo que a nova pele dos No Age, depois do impacto da novidade, corre o risco de nos parecer algo gasta, mas enquanto andar por ali “Fever dreaming” ou a incrivelmente solar “Valley hump crash”, encontro perfeito entre os No Age de ontem e os que conhecemos agora, impedimo-nos de lhes apontar o que quer que seja. M.L.

Clássica

O refi namento sedutor da música renas-centistaA música de Roland de Lassus e dos seus contemporâneos em primorosas interpretações da Capilla FlamencaCristina Fernandes

Roland de Lassus“Bonjour mon coeur”Capilla FlamencaDirk Snellings (direcção)Ricercar RIC 290

mmmmm

A Capilla Flamenca é um dos mais extraordinários grupos actuais no domínio da

música renascentista, possuindo uma valiosa discografia. Uma das suas últimas realizações na etiqueta

Ricercar compreende um criterioso conjunto de peças de Roland de Lassus e de alguns dos seus contemporâneos ( Jean de Castro, Bernhard Schmidt, Willaert, Pierre Sandrin, Pierre Certon, entre outros), sob o título “Bonjour mon coeur”, correspondente ao poema de Pierre de Ronsard, que deu origem a uma das mais belas canções polifónicas do grande compositor franco-flamengo. As peças são organizadas por temáticas evocativas (Manhã: o amor nascente; Meio-dia: o amor exuberante; Entardecer: o amor eterno; Noite: o amor adormecido), mas também através do material musical comum. Por exemplo a melancólica canção “Doulce Memoire” de Pierre Sandrin foi usada por Lassus como tema de uma Missa e deu origem a uma resposta musical de Pierre Certon. Nesta perspectiva, o disco é também um excelente compêndio das práticas musicais do Renascimento, incluindo a interpretação dos originais para vozes, execuções mistas com vozes e instrumentos e versões puramente instrumentais, com variações e ornamentações baseadas nas fórmulas e estilos da época, frequentemente designadas por “diminuições” (preenchimento de um intervalo melódico com valores rítmicos mais rápidos). Outras práticas incluíam a “paródia”, ou seja, o recurso a um modelo admirado para realizar uma nova composição, e a “contrafacta”, na qual um novo texto era aplicado a música pré-existente. Este elenco de práticas não surge como algo demonstrativo ou como uma listagem académica, mas sim como uma selecção musical de extremos bom gosto e refinamento, dotada de uma grande variedade de discursos, estilos e emoções. As quatro vozes masculinas que formam a Capilla Flamenga são de uma grande pureza expressiva e a componente instrumental (alaúde, cistre, viola da gamba e flauta de bisel) contribui com um exuberante colorido. Associando a profundidade de concepção do programa e o conhecimento das práticas de composição e interpretação históricas a um resultado musical sedutor, este é um CD susceptível de agradar tanto aos especialistas como aos melómanos menos familiarizados com este tipo de repertório.

As fontes do jovem Bach

“Die Quellen des jugen Bach”Obras de Bach, Buxtheude, Froberger, Reinken e KerllCéline Frisch (cravo)Alpha 149

mmmmn

A aprendizagem musical de J. S. Bach e a sua notável assimilação dos diferentes estilos

do Barroco baseou-se em grande parte na cópia de partituras de outros compositores como método de estudo. De acordo com o célebre relato do seu filho Carl Philip Emanuel Bach, depois de ter ficado órfão o pequeno J. S. Bach copiava todas as noites, às escondidas e à luz de uma vela, um livro com peças para instrumentos de tecla que o seu irmão mais velho se recusava a emprestar-lhe e que continha obras de mestres como Froberger, Kerll ou Pachelbel. Bach copiou também música de compositores italianos e franceses, mas a cravista Céline Frisch resolveu construir um programa em torno dos compositores alemães que influenciaram Bach nos seus primeiros anos, centrando-se sobretudo no género da Suite (colecção de danças) e da Tocata, exemplo privilegiado do chamado “Stylus phantasticus”, assente na liberdade da composição e em extravagantes passagens virtuosísticas de carácter improvisatório. As Tocatas BWV 914 e 915 e o “Capriccio sopra la lontananza del fratello deiletissimo”,

de J. S. Bach, são combinadas com Tocatas de Reincken e Froberger e com Suites de Buxtheude, Froberger e Kerll, igualmente representado por uma bela “Passacaglia”. São obras de grande qualidade que valem por si mas que também ajudam a iluminar o génio criativo de Bach através de estreitas afinidades. Céline Frisch interpreta-as com uma técnica segura e grande sensibilidade, fazendo por vezes “cantar” o instrumento de forma poética. O equilíbrio da execução e o seu elegante sentido de estilo contrastam com a decepcionante apresentação ao vivo da cravista e do seu agrupamento Café Zimmermann na última temporada Gulbenkian. C.F.

Jazz

MisteriosoDenso, contido e angular, o novo registo do contrabaixista Michael Formanek revela os seus mistérios a cada nova audição. Rodrigo Amado

Michael FormanekThe Rub and Spare ChangeECM; distri. Dargil

mmmmn

O contrabaixista norte-americano Michael Formanek tem vindo a desenvolver uma

carreira particularmente atípica. Tendo colaborado com inúmeros nomes de topo como Freddie Hubbard, Joe Henderson, Dave Liebman, Fred Hersch, Greg Osby, Lee Konitz, Uri Caine, Dave Douglas, e até mesmo Elvis Costello, Formanek começou cedo a sua actividade como lider. Em 1990 editava o notável e visionário “Wide Open Spaces”, com um quinteto que integrava Greg Osby, Mark Feldman, Wayne Krantz e Jeff Hirshfield. Manteve-se desde então como um requisitado “sideman”, gravando de dois em dois anos durante a década de 90 para depois interromper durante toda a década seguinte. Doze anos após “Am I Bothering You?”, álbum a solo de 98, “The Rub and Spare Change” representa o poderoso regresso de um contrabaixista que constrói as suas bases na sombra, evitando expor-se demasiado, mesmo nos seus próprios projectos, e que possui um raro talento para equilibrar forma e liberdade, composição e improvisação. Neste registo, mais próximo do trabalho desenvolvido com o extraordinário quarteto de Berne, Bloodcount, do que das suas anteriores gravações, Formanek opta por realizar uma música extremamente densa, angular, por vezes sombria e narcótica, outras simplesmente misteriosa, reunindo a seu lado um trio de especialistas neste universo: Tim Berne no saxofone alto, Craig Taborn no piano e Gerald Cleaver na bateria. O resultado, embora avesso a uma percepção imediata (a densidade dificulta a comunicação de emoções) é fascinante e progressivamente envolvente. Após um tema de abertura que funciona como introdução à visão cinemática de Formanek, surge a introdução de “The rub and spare change”, tema-título que nos coloca no centro da actividade febril do quarteto: uma densa malha de acentuações, arranques repentinos, súbitas inflexões de direcção e, sobretudo, grandes improvisações de Berne e Taborn colocadas em destaque por uma secção rítmica que faz da subtileza poder. Quando atingimos “Tonal Suite”, opus com cerca de 17 minutos de duração, já não é possivel voltar atrás.

Dis

cos aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

rodeou-se de especialistasneste disco fafff scinante

A Capilla Flamenca é exemplar na reanimação das práticas musicais do Renascimento

Céline Frisch mostra-se melhor em disco do que se mostrou na sua apresentação ao vivo na última temporada da Gulbenkian

Espaço Público

Este espaço vai ser seu. Que fi lme, peça de teatro, livro, exposição, disco, álbum, canção, concerto, DVD viu e gostou tanto que lhe apeteceu escrever sobre ele, concordando ou

não concordando com o que escrevemos? Envie-nos uma nota até 500 caracteres para [email protected]. E nós depois publicamos.

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com que se transfigure num intérprete diferente em função de cada compositor. As suas interpretações são por vezes muito pessoais e, como tal, não consensuais, mas é indiscutível que se trata de um pianista que conhece todos os segredos do seu instrumento. É também bem conhecida a sua generosidade no que diz respeito aos “encores”, chegando por vezes a tocar seis ou sete peças extra-programa. Avesso à atmosfera estéril dos estúdios, Sokolov prefere as gravações ao vivo como forma de captar momentos únicos. Alguns deles foram registados pelas etiquetas Melodya e Op. 111 (centrando-se sobretudo em obras de Bach, Beethoven, Chopin, Brahms, Rachmaninov, Prokofiev, Scriabin, Schubert e SchumannI), mas nada substitui a experiência de o ouvir ao vivo.

Contar uma ópera no São Carlos

Contar uma Ópera: Cavalleria RusticanaDirecção Musical de Martin André. Com Sónia Alcobaça, Maria Luísa de Freitas, Laryssa Savchenko, Fernando del Valle, Luís Rodrigues, Beatriz Batarda, Coro do Teatro Nacional de São Carlos, Orquestra Sinfónica Portuguesa. Lisboa. Teatro Nacional de São Carlos. Lg. S. Carlos, 17. 4ª, 3, e 5ª, 4, às 20h. Sáb., 6, e Dom., 7, às 16h. Tel.: 213253045. 5€ a 15€.

Em tempo de cortes orçamentais, o Teatro Nacional de São Carlos recorre nesta temporada à apresentação de algumas obras apenas em versão de concerto,

fazendo-as

acompanhar por comentários de carácter pedagógico. O projecto “Contar uma Ópera” inicia-se quarta-feira, dia 3, com a “Cavalleria Rusticana” de Pietro Mascagni (1863-1945), dirigida pelo maestro Martin André, e conta com a participação da actriz Beatriz Batarda na contextualização histórica e dramatúrgica.

É discutível a iniciativa de tentar captar novos públicos para a ópera privando-a da sua especificidade — afinal de contas a ópera é “teatro por música” e não música de concerto —, mas o enquadramento pode tornar a experiência proveitosa (e acessível, dado o preço dos bilhetes).

Estreada em 1890 no Teatro Constanzi, em Roma, a “Cavalleria Rusticana” é um dos exemplos mais famosos da ópera verista, retratando a vida numa aldeia da Sicília onde o amor, a traição e a honra são os ingredientes de uma tragédia anunciada. O libreto é de Giovanni Targione-Tozzetti e Guido Menasci segundo a peça de Giovanni Verga. Mascagni terminou esta ópera em um acto em Maio de 1889, enviando-a a Puccini que, por sua vez, a deu a conhecer ao editor Giulio Ricordi, que revelou um imenso entusiasmo pela partitura. A obra teve também um enorme êxito

junto do público, passando a fazer parte das temporadas dos principais teatros de ópera.

Mascagni recria elementos

sonoros que evocam o ambiente siciliano e motivos musicais recorrentes

associados às personagens e às suas emoções extremas. Parte do sucesso da obra deve-se à exuberante invenção melódica do compositor, apoiada por uma

orquestração e por uma linguagem harmónica relativamente convencionais.

Jazz

Catalisa-doresDuas formações ponta-de-lança do jazz de vanguarda norte-americano visitam a Casa da Música num concerto duplo. Rodrigo Amado

Michael Formanek Quartet + Tony Malaby’s TamarindoCom Michael Formanek (contrabaixo), Tim Berne (saxofone), Craig Taborn (piano), Gerald Cleaver (bateria), Tony Malaby (saxofone), Ingebrigt Haker Flaten (contrabaixo), Ches Smith (bateria). Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho de Albuquerque. Dom., 31, às 21h. Tel.: 220120220. 20€.

Não é comum ter a oportunidade de presenciar, no mesmo palco e na mesma noite, um tal agrupamento de talentos. Michael Formanek, contrabaixista notável cujo último registo analisamos neste Ípsilon, visita-nos com um quarteto de eleição que empurra a sua música para territórios do impressionismo e da abstracção, numa estética bem própria dos músicos que o acompanham – Tim Berne no saxofone alto, Craig Taborn no piano e Gerald Cleaver na bateria. Para Formanek, que esteve 12 anos sem gravar como líder, é uma formação que funciona como um regresso ao fascinante universo dos Bloodcount, celebrado projecto de Berne que o contrabaixista integrou no final dos anos 90.

Abstracção, sem filtro e com um fortíssimo nervo, é também aquilo que podemos esperar de Tony Malaby, um dos mais fascinantes saxofonistas em actividade. Malaby, aqui com o seu projecto

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Con

cert

osClássica

Um pianista fora de sérieGrigory Sokolov regressa à Gulbenkian com um programa composto por Bach, Brahms e Schumann. Cristina Fernandes

Grigory SokolovLisboa. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian - Grande Auditório. Av. Berna, 45A. Dom., 31, às 19h. Tel.: 217823700. 15€ a 40€.

Obras de Bach, Brahms e Schumann.

O Ciclo de Piano da temporada Gulbenkian volta a receber um dos mais extraordinários pianistas vivos e um dos intérpretes predilectos do público português. Grigory Sokolov regressa no domingo ao Grande Auditório para interpretar um programa constituído pela Partita nº 2, em Dó menor, BWV 826, de J. S. Bach; pelas Sete Fantasias op. 116, de Brahms; pela “Grosse Humoreske” op. 20 e pelo “Scherzo, Gige, Romanze e Fughetta” op. 32, de Schumann. Estas últimas peças, escritas em 1838 e 1839, são raramente apresentadas em recital e combinam a paixão de Schumann pelos compositores barrocos e clássicos com a sua vivência pessoal da linguagem romântica.

Vencedor do Concurso Tchaikovsky de Moscovo com apenas 16 anos, Sokolov é detentor de uma forte personalidade e de uma poderosa imaginação, sustentadas por uma técnica exímia e uma capacidade fora do comum para extrair diferentes cores da sonoridade do piano. O seu apurado sentido estético e a plena consciência do universo sonoro que deu origem a cada obra fazem

Espaço Público

Portland, cidade do estado de Oregon nos E.U.A., tem sido destino frequente das minhas navegações na world wide web, sempre por águas tranquilas. Nesta cidade, conhecida como “Cidade das Rosas” tem brotado música da melhor qualidade.

Muito eu tenho ouvido música dessas bandas. Não sou o único. Ricardo Mariano, através do seu excelente programa Vidro Azul (rádios RUC e Radar), tem sido um entusiasmado divulgador destas sonoridades. Vou educando o meu

ouvido com a música dos fabulosos irmãos Broderik (Peter e Heather Woods), Benoît Pioulard (alter-ego de Thomas Meluch), Marco Mahler, Matthew Robert Cooper (o sr. Eluvium) e tantos outros...João Semog, 40 anos, artista plástico

gues, o tra

Carlos,16h.

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Grigory Sokolov é um pessoalíssimo pianistaque se transfi gura em função de cada compositor

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Con

cert

os

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Sexta 29Linda Martini Lisboa. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique- Armazém A, às 23h. Tel.: 218820890.

Ver texto na pág. 26.

Seu Jorge & AlmazLisboa. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96, às 21h30. Tel.: 213240580. 29€.

Marina Gasolina + WhoMadeWho + Jimmy Edgar + Hang em HighLisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24 - Cais do Sodré, às 23h30. Tel.: 213430107. 12€.

Jameson Urban Routes 10.

MarfulPorto. Casa da Música - Sala 2. Pç. Mouzinho de Albuquerque, às 22h. Tel.: 220120220. 15€.

David FonsecaPorto. Pavilhão Rosa Mota. R. D. Manuel II - Edifício Palácio de Cristal, às 23h. Tel.: 225430360.

Nuno PrataCoimbra. Arte à Parte. R. Fernandes Tomás, 17 - 1º, às 22h. Tel.: 936065686.

FonzieLisboa. Teatro da Comuna. Pç. Espanha, às 22h. Tel.: 217221770. 7,5€.

Fado Antigo, Fado NovoCom Mafalda Arnauth, António Pinto Basto, Maria Ana Bobone, entre outros.Lisboa. Aula Magna. Alam. Universidade, às 21h30. Tel.: 217967624. 15€ a 35€.

Marco RodriguesLisboa. Teatro Municipal de S. Luiz - Jardim de Inverno. R. Antº Maria Cardoso, 38-58, às 23h30. Tel.: 213257650. 7€.

OrchestrUtopicaLisboa. Centro Cultural de Belém - Grande Auditório. Pç. do Império, às 21h. Tel.: 213612400. 10€.

Tony Malaby’s Tamarindo Seixal. Fábrica Mundet - Espaço Cultural. Lg. 1º de Maio, às 23h00 e 24h. Tel.: 212226413. Entrada gratuita.

Seixal Jazz 2010.

Steve Wilson QuartetSeixal. Fórum Cultural do Seixal. Qta. dos Franceses, às 21h30 e 23h30. Tel.: 210976100. 15€.

Seixal Jazz 2010.

John BlumPonta Delgada. Teatro Micaelense. Lg. S. João, às 21h30. Tel.: 296308340. 10€ (dia) a 25€ (passe).

Jazzores’10.

MKF TrioTorres Vedras. Teatro-Cine. Av. Tenente Valadim, 19, às 21h30. Tel.: 261338131. 5€ (dia) a 20€ (passe).

Acordeões do Mundo - VII Festival Internacional de Acordeão de Torres Vedras.

Sábado 30Nicola Conte + Marc Hype + Jim Dunloop + The Groovy KidsLisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24, às 0h. Tel.: 213430107. 12€.

Jameson Urban Routes 10.

Jane MonheitVilamoura. Casino. Pç. Casino, às 22h30. Tel.: 289310000. 60€.

CamanéCaldas da Rainha. Centro Cultural e Congressos. R. Doutor Leonel Sotto Mayor, às 21h30. Tel.: 262889650. 12,5€ a 17,5€.

MoonspellLisboa. Cinema São Jorge - Sala 1. Av. Liberdade, 175, às 22h. Tel.: 213103400. 22,5€.

Rita RedshoesTorres Vedras. Expotorres. R. Gonçalo de Lagos, às 22h. Tel.: 261335950. 8€.

Os Pontos NegrosGuimarães. São Mamede - Centro de Artes e Espectáculos. R. Dr. José Sampaio, 17-25, às 21h30. Tel.: 253547028. 8€.

Smix Smox SmuxMaia. Tertúlia Castelense. R. Augusto Nogueira da Silva, 779, às 23h30. Tel.: 229829425. 5€.

Fonzie + XMRRPorto. Hard Club. Pç. do Infante, 95, às 22h30. 7,5€.

Amélia MugeMonte de Caparica. Convento dos Capuchos. Rç Lourenço Pires de Távora, 42, às 21h. Tel.: 212919342. Entrada gratuita.

Orquestra Sinfónica do Porto Casa da MúsicaDirecção Musical de Christoph König. Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho de Albuquerque, às 18h. Tel.: 220120220. 20€.

Áustria 2010. Um Hino à Liberdade - obras de Beethoven e Schöenberg.

Orquestra de Câmara PortuguesaDirecção Musical de Pedro Carneiro. Com Adrian Florescu (violino). Lisboa. Centro Cultural de Belém - Grande Auditório. Praça do Império, às 21h. Tel.: 213612400. 5€ a 17€.

Em Ré Maior - obras de Beethoven e Brahms.

Orquestra Sinfónica PortuguesaDirecção Musical de Moritz Gnann. Lisboa. Teatro Nacional de São Carlos - Salão Nobre. Lg. S. Carlos, 17, às 18h. Tel.: 213253045. 10€.

Bernardo Sassetti e Orquestra Filarmonia das BeirasDirecção Musical de Vasco Pearce de Azevedo. Pombal. Teatro-Cine de Pombal. Praça Manuel Henriques Júnior, às 21h30. Tel.: 236210540.

Odean’s List - Odean Pope OctetDirecção Musical de James Carter. Seixal. Fórum Cultural do Seixal. Qta. dos Franceses, às 21h30 e 23h30. Tel.: 210976100. 15€.

Seixal Jazz 2010.

Tony Malaby’s Tamarindo Seixal. Fábrica Mundet - Espaço Cultural. Lg. 1º de Maio, às 23h00 e 24h. Tel.: 212226413. Entrada gratuita.

Seixal Jazz 2010.

Robert Glasper TrioPonta Delgada. Teatro Micaelense. Lg. S. João, às 21h30. Tel.: 296308340. 10€ (dia) a 25€ (passe).

Jazzores’10.

Tamarindo – Ingebrigt Haker Flaten no contrabaixo e Ches Smith na bateria – possui um enorme talento para conjurar forma, foco e direcção, por entre um complexo tecido de fraseados angulares e “extended techniques” do saxofone. É ele um dos músicos que estão, permanentemente, a alargar e

metamorfosear as fronteiras do jazz. Dois projectos que fundem composição e improvisação numa linguagem única, original e profundamente inspiradora.

Agenda

24h. Tel.:a gratuita.

010.

sper

atro João, às 8340. 10€ .

Tony Malaby é um dos mais fascinantes

saxofonistas no activo

Nuno Prata leva “Deve Haver” a Coimbra

e Guimarães

Linda Martini com álbum novo no Lux

m x

Pop

Os Terrakota no topo do mundoO novo disco, “World Massala”, mostra-se em primeira mão no Hard Club. Mário Lopes

Terrakota + Twin TurboPorto. Hard Club - Sala 1. Pç. Infante, 95. Amanhã, às 21h. 15€ a 17,5€.

Os Terrakota são uma interpretação literal de “world music”. Expliquemo-nos. Não são “world music” por representarem ou reproduzirem a música de um local

específico, apresentada ao mundo enquanto folclore intocado pela modernidade. São o mundo alegre e furiosamente tricotado

Nicola Conte no Kameson Urban Routes

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • 51

fvdvd

Domingo 31MoonspellLisboa. Cinema São Jorge - Sala 1. Av. Liberdade, 175, às 22h. Tel.: 213103400. 22,5€.

Pinto Ferreira + Glam Slam Dance

Lisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24, às 0h. Tel.: 213430107. 8€.

Os Pontos NegrosEstarreja. Cine-Teatro Municipal. R. Visconde de Valdemouro, às 22h. Tel.: 234811300. 8€.

Halloween: Tatsumaki + Waste Disposal Machine + Eden Synthetic CorpsPorto. Hard Club - Sala 1. Pç. do Infante, 95, às 22h. 7,5€.

Terça 2Evan Parker TrioPonta Delgada. Teatro Micaelense. Lg. S. João, às 21h30. Tel.: 296308340. 10€ (dia) a 25€ (passe).

Jazzores’10.

Ton KoopmanPorto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho de Albuquerque, às 19h30. Tel.: 220120220. 20€.

Ciclo Piano EDP/ À Volta do Barroco.

Greg DulliLisboa. Café Teatro Santiago Alquimista. R. Santiago, 19, às 21h30. Tel.: 218884503. 20€.

AnathemaLisboa. Teatro Tivoli. Av. Liberdade, 182, às 21h. Tel.: 213572025. 25€.

Mendes & João SóPorto. Passos Manuel. R. Passos Manuel, 137, às 22h. Tel.: 222058351.

Quarta 3Greg DulliPorto. Hard Club - Sala 2. Pç. Infante, 95, às 21h30. 20€.

AnathemaPorto. Hard Club. Pç. Infante, 95, às 21h. 25€.

em canção, até que o Senegal e a Jamaica, o Brasil e Cabo Verde, Angola e a Catalunha se tornem um só som.

O quarto álbum, com edição marcada para a próxima segunda-feira, tem inscrito no título essa primeira ideia fusionista. Ao mesmo tempo, revela a mais recente fonte de inspiração da banda de Romi, Júnior, Nata, Alex, Davide, Francesco e Marc. No recentemente reaberto Hard Club, agora no Mercado

Ferreira Borges, no Porto, os Terrakota apresentarão “World Massala”. Massala que é a famosa mistura de especiarias da gastronomia

indiana: ou seja, mantém-se a mistura como

elemento

fundamental e, agora, sobressai como nunca antes a influência da música indiana, resultado da viagem que, em Agosto de 2009, levou a banda ao topo do mundo, aos Himalaias.

Contando com a colaboração de uma diversidade de músicos (o angolano Paulo Flores, os Rajasthan Roots e a cantora e actriz Vassundara Das, os Cool Hipnoise ou os Cacique 97), “World Massala” mostra os Terrakota a prosseguir um caminho em que os desvios de rumo são o caminho. Reconhecemo-los imediatamente, quer se entreguem ao afrobeat como explicado por Fela Kuti, quer misturem dança baiana com cítaras ou percussões caribenhas com guitarras flamenco, mas de cada vez que os vemos é como se a viagem os tivesse conduzido a uma nova descoberta. Neste preciso momento, encontramo-los assim: “World Massala”. Bem apurado.

Danças OcultasTorres Vedras. Teatro-Cine.

Av. Tenente Valadim, 19, às 21h30. Tel.: 261338131. 5€.

Acordeões do Mundo - VII Festival Internacional de Acordeão de Torres Vedras.

Wadada Leo Smith & Louis Moholo-MoholoPonta Delgada. Teatro Micaelense. Lg. João, às 21h30. Tel.: 296308340. 10€ (dia) a 25€ (passe).

Jazzores’10.

Quinta 4Crystal Castles

Porto. Teatro Sá da Bandeira. R. Sá da Bandeira, 108, às 21h. Tel.:

222003595. 23€.

V Gala AmáliaCom Camané, Aida de Castro, Kátia Guerreiro, Ana

Sofia Varela. Lisboa. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96, às 21h. Tel.: 213240580. 20€ a 45€.

Nuno PrataGuimarães. Centro Cultural Vila Flor - Café-Concerto. Avenida D. Afonso Henriques, 701, às 0h. Tel.: 253424700.

Adrian Belew TrioLisboa. Café Teatro Santiago Alquimista. R. Santiago, 19, às 21h15. Tel.: 218884503. 20€.

Orquestra GulbenkianDirecção Musical de Lawrence Foster. Com Detlef Roth (barítono), Michael Barenboim (violino), Saleem Abboud Ashkar (piano). Lisboa. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian

- Grande Auditório. Av. Berna, 45A, às 21h. Tel.: 217823700. 10€ a 20€.

Obras de Wagner, Berg, Mahler/Berio e Schubert.

anuel. R. Pasasa sos Manuel, 137,7,7 às àà 22h.

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- Sala 2. Pç. h30. 20€.

Michael Barenboim (Saleem Abboud AshkLisboa. Fundação e Museu Ca

- Grande Auditório. Av. Bern217823700. 10

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Crystal Castles de volta, agora no Porto

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Lisboa. MusicB24, às 0h. Tel.:

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O novo dos Terrakota exibe muitos sinais da recente viagem da banda aos Himalaias

Seu Jorge chega hoje a Lisboa

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essas coisas por causa da irmã mais velha (que, digamos, “cresceu” e começou a perder sangue uma vez por mês) e da sua amizade, durante umas férias de Verão nas Pampas, com um rapazito chamado Mario – que por sua vez tem um “segredo”, igualmente relacionado com sangue.

A graça do filme está na relativa casualidade com que põe os garotos a lidarem, ou a tentarem meramente perceber, com as coisas que pressentem nos seus corpos. É muito mais difícil aos adultos explicarem-lhes o assunto do que a eles encontrar uma explicação – mesmo sem terem as palavras certas, é apenas “natureza”, ainda sem o enquadramento (ou o preconceito) de ordem “moral”. Que virá ao de cima no desenvolvimento (e revelação) da história de Mario, quando mais evidente surge o papel daquele cenário (o masculinizado mundo das Pampas e dos seus “cowboys”) como moldura desta narrativa (é a “sociedade argentina”, de que, seja verdade ou não, se ouve frequentemente dizer que se trata de uma das mais machistas de todas). Inteligente e corajoso, “O Último Verão da Boyita” trabalha em contemplação, rigoroso no seu ponto de vista (à altura das crianças), fazendo dos silêncios um elemento fundamental dos diálogos, entre outros traços reconhecíveis do rasto do “novo cinema argentino”. Justeza, a todos os títulos, tem para dar e vender. O que quebra o entusiasmo é que, como tantos filmes contemporâneos, se é capaz de ter um “tom”, ou mesmo um “estilo”, não chega a ter uma “forma” – ou como queiram chamar a qualquer coisa que se imponha, com toda a força da necessidade, para além de tudo o resto.

Continuam

36 Vistas do Monte Saint-Loup36 Vues du pic Saint-LoupDe Jacques Rivette, com Sergio Castellito, Jane Birkin , André Marcon, Jacques Bonnaffé, Julie-Marie Parmentier. M/12

MMMMn

Lisboa: Acarte: Sala Polivalente: ; CinemaCity Campo Pequeno Praça de Touros: Sala 7: 5ª 6ª 3ª 4ª 14h15, 16h35, 18h20, 20h05, 22h05 Sábado Domingo 2ª 12h, 14h15, 16h35, 18h20, 20h05, 22h05

Jacques Rivette e o seu universo autoreflexivo nunca constituíram área de fácil acesso, de tal modo a rarefacção faz parte do programa de transformação dos modos criativos do cinema clássico americano que tão bem entendeu e criticou. Em “36 Vistas do Monte-Loup”, o cineasta cristaliza as suas reflexões sobre a

comédia “screwball” com uma maestria rara e com o sentido absoluto de que a teatralidade do gesto se recompõe a cada instante. O absurdo domina a cena e a serenidade de fim de vida constrói as formas do olhar. Filme-testamento? Súmula de uma obra complexa e rigorosa? Talvez, mas sem o ar funéreo que tal reflexão costuma assumir; apenas os gestos, os silêncios, a beleza radical do momento repetido à exaustão e simultaneamente irrepetível. Como Cézanne a olhar fascinado para os múltiplos aspectos da Montanha Sainte-Victoire e a descobrir novos ângulos. Mário Jorge Torres

Mistérios de LisboaDe Raoul Ruiz, com Adriano Luz, Maria João Bastos, Ricardo Pereira, Clotilde Hesme, Afonso Pimentel, João Luís Arrais, Albano Jerónimo, João Baptista. M/12

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Lisboa: Medeia King: Sala 3: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 15h15, 20h30; Medeia Monumental: Sala 4 - Cine Teatro: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 11h, 16h, 21h; Medeia Saldanha Residence: Sala 5: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h30, 19h30; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h30, 20h30; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 15h, 21h10

Porto: ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h45, 21h

Raul Ruiz sempre esteve no seu melhor quando aderiu de “braços abertos” ao romanesco clássico, alicerce fundador do seu cinema lúdico e mistificador fascinado pelos jogos narrativos. Daí que a estrutura folhetinesca dos “Mistérios de Lisboa” fosse feita à sua medida: esta super-proto-telenovela sobre um jovem órfão que, ao descobrir a sua verdadeira identidade, dá por si no centro de uma série de segredos e mistérios da alta sociedade lisboeta do século XIX é o pretexto ideal para os jogos lúdicos de Ruiz entre a forma e a função. Construído como

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Cin

ema

Estreia

No mundo das PampasA graça do filme está na «casualidade com que põe os garotos a lidarem com as coisas que pressentem nos seus corpos. Luís Miguel Oliveira

O Último Verão da BoyitaEl Último Verano de la BoyitaDe Julia Solomonoff, com Guadalupe Alonso, Nicolás Treise, Mirella Pascual, Gabo Correa. M/12

MMnnn

Lisboa: Medeia King: Sala 2: 5ª Domingo 3ª 4ª 14h, 16h, 18h, 20h, 22h 6ª Sábado 2ª 14h, 16h, 18h, 20h, 22h, 24h

“O Último Verão da Boyita” tem feito algum furor no circuito internacional dos festivais “gay” ou “queer” (o prémio ganho no recente Queer Lisboa é só mais uma peça no palmarés). Não seria justo circunscrevê-lo tematicamente e ainda menos limitá-lo a um contexto de recepção, mas de facto as razões de um tal acolhimento são facilmente perceptíveis. O filme da argentina Júlia Solomonoff trata, com sensibilidade e alguma coragem, da descoberta da identidade sexual (ou de um princípio de tomada de consciência da identidade sexual) entre muitos jovens adolescentes ou pré-adolescentes. É a história de uma rapariguita, recém-desperta para

“O Último Verão da Boyita”: rigoroso no seu ponto de vista, à altura das crianças

“36 Vistas do Monte Saint-Loup”: Rivette e Jane Birkin

Sexta,5 Novembro,

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por mais 1,95€.

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • 53

4ª 13h30, 16h15, 19h, 21h45 6ª Sábado Domingo 13h30, 16h15, 19h, 21h45, 24h; Medeia Monumental: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h30, 17h, 19h30, 22h, 00h30; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 18h50, 00h20;

Porto: ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h05, 15h50, 19h, 21h50, 00h35

Um retrato afectivo de Serge Gainsbourg, como o realizador confessa nos créditos finais e parece informação desnecessária de tão evidente ficara claro durante o filme. Há uma virtude insuperável, a excepcional composição de Eric Elmosnino (que se transforma num perfeito sósia de Gainsbourg), e outras virtudes agradáveis, como o sabor de época, muito teatralizado, de certas sequências (como as com Juliette Greco e Brigitte Bardot). Mas também há bastante cabotinismo – e não no sentido em que Gainsbourg era, ou se tornou, ele próprio, um “cabotino” – e a certa altura toda aquela “magia” de cartoon põe-nos no espírito a impressão de que esta “Vida Heróica” transforma a personagem numa Amélie Poulain

uma série de narrativas episódicas, ora encadeadas ora concêntricas, envolvendo o espectador numa sedutora teia folhetinesca, “Mistérios de Lisboa” é capaz de ser a síntese perfeita do cinema do chileno, trabalhada de um modo significativamente mais acessível do que lhe é habitual. A experiência aproxima-se da de ler um livro, para o que contribui a sua duração desmesurada – ao mesmo tempo fraqueza e força, porque só com esta

duração se conseguiria desenvolver o ritmo que a história exige, sem que isso evite alguma fadiga para o espectador, sobretudo porque a própria divisão interna em duas partes sugere dois filmes, interligados mas autónomos. O que não invalida que estas quatro horas e meia passem com mais interesse e mais justeza do que muito filme de hora e meia que nunca vai a lado nenhum... Jorge Mourinha

O RefúgioLe RefugeDe François Ozon, com Isabelle Carré, Louis-Ronan Choisy, Pierre Louis-Callixte, Melvil Poupaud. M/12

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Lisboa: UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 3: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 14h25, 16h50, 19h25, 21h35, 00h05 Domingo 11h30, 14h25, 16h50, 19h25, 21h35, 00h05

Porto: Arrábida 20: Sala 7: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 14h20, 16h45, 19h, 21h30, 00h20 3ª 4ª 16h45, 19h, 21h30, 00h20

François Ozon oscila, muitas vezes, entre a completude de uma perfeição inacabada e o risco assumido de olhar para as muitas faces do vazio, sempre com o mundo feminino no centro da representação. “O Refúgio” está

longe dos fulgores de “Sous le Sable” ou

mesmo de “Oito Mulheres”, mas

possui a coerência mínima necessária para reconhecermos o toque de um “autor”. O problema principal reside na dificuldade de unificar uma narrativa fragmentária e algo descosida, sem o delírio que a matéria de partida parecia exigir. Persiste uma frieza cirúrgica que se preocupa mais com o pormenor que com o todo. E, no entanto, só para ver o modo como Ozon transfigura uma história que lhe interessa pouco e o rosto de Isabelle Carré já justifica o esforço. Um pequeno Ozon já é alguma coisa, nos tempos que vão correndo. M.J.T.

Gainsbourg: Vida HeróicaGainsbourg (Vie Héroïque)De Joann Sfar, com Éric Elmosnino, Lucy Gordon, Laetitia Casta, Doug Jones, Anna Mouglalis, Sara Forestier, Mylène Jampanoï, Yolande Moreau, Kacey Mottet Klein. M/12

MMnnn

Lisboa: Castello Lopes - Londres: Sala 2: 5ª 2ª 3ª

Jorge Mourinha

Luís M. Oliveira

Mário J. Torres

Vasco Câmara

Uma Família Moderna mmnnn nnnnn mmnnn nnnnn

A Cidade mmnnn nnnnn nnnnn nnnnn

Deixa-me entrar mmmnn nnnnn nnnnn nnnnn

Gainsbourg: Vida Heróica mmmnn mmnnn mmnnn mmmnn

Lola mmmmn nnnnn mmmmn mmmmm

Mistérios de Lisboa mmmnn mmmnn mmmmm nnnnn

O Pai das Minhas Filhas mmnnn mmmnn mmnnn mmnnn

36 Vistas do Monte Saint-Loup mmmnn mmmmn mmmmn mmmnn

O Refúgio mmnnn nnnnn mmnnn nnnnn

O Último Verão da Boyita mmmnn mmnnn nnnnn nnnnn

As estrelas do público

Sexta, 29Quando os Sinos DobramBlack NarcissusDe Emeric Pressburger, Michael Powell. Com Deborah Kerr. 99 min.15h30 - Sala Félix Ribeiro

Pays de CocagneDe Pierre Étaix. 80 min.19h - Sala Félix Ribeiro

Fora D’’água + O MedoDe Catarina Mourão. 47 min.19h30 - Sala Luís de Pina

Pays de CocagneDe Pierre Étaix. 80 min.21h30 - Sala Félix Ribeiro

Noite de Nevoeiro no Japão

De Nagisa Oshima. 107 min.22h - Sala Luís de Pina

Sábado, 30Mulher de Duas CarasTwo Faced WomanDe George Cukor. Com Greta Garbo. 94 min.15h30 - Sala Félix Ribeiro

A Princesa com Pele de BurroPeau d’âneDe Jacques Demy. Com Catherine Deneuve, Jacques Perrin, Jean Marais. 90 min.19h - Sala Félix Ribeiro

Casa Solarenga

Gunnar Hedes SagaDe Mauritz Stiller. 75 min.19h30 - Sala Luís de Pina

Nosferatu, o VampiroNosferatu, Eine Symphonie des GrauensDe F.W. Murnau. Com Max Schreck. 87 min.21h30 - Sala Félix Ribeiro

WandaDe Barbara Loden. Com Barbara Loden. 102 min. M16.22h - Sala Luís de Pina

Terça, 02Não Se Fala Noutra CoisaThe Whole Town’s TalkingDe John Ford. Com Edward G. Robinson, Jean Arthur, Wallace Ford. 95 min.15h30 - Sala Félix Ribeiro

Sobre as Canções Brejeiras JaponesasNihon shunka koDe Nagisa Oshima. 103 min.19h - Sala Félix Ribeiro

O Profi ssionalThe DriverDe Walter Hill. Com Ryan O’Neal. 91 min.19h30 - Sala Luís de Pina

História ImortalThe Immortal StoryDe Orson Welles. Com Jeanne Moreau, Orson Welles. 58 min.21h30 - Sala Félix Ribeiro

Les Soeurs BrontëDe André Téchiné. Com Isabelle Adjani, Marie-France Pisier, Isabelle Huppert. 115 min.22h - Sala Luís de Pina

Quarta, 03Três CamaradasThree Comrades

Cinemateca Portuguesa R. Barata Salgueiro, 39 Lisboa. Tel. 213596200

De Frank Borzage. Com Franchot Tone,

Robert Taylor. 98 min. M12.15h30 - Sala Félix Ribeiro

O Regresso dos Três BêbedosKaettekita YopparaiDe Nagisa Oshima. 80 min.19h - Sala Félix Ribeiro

O Lacrau + Fregoli TransformistaThe BlackbirdDe Tod Browning. Com Lon Chaney. 86 min.19h30 - Sala Luís de Pina

Não Dou BeijosJ’embrasse PasDe André Téchiné. Com Emmanuelle Béar. 115 min.21h30 - Sala Félix Ribeiro

Les Intrigues de Sylvia CouskiDe Adolfo Arrieta.22h - Sala Luís de Pina

Quinta, 04O Sinal do ZorroThe Mark of ZorroDe Rouben Mamoulian. Com Linda Darnell, Tyrone Power. 94 min. M12.15h30 - Sala Félix Ribeiro

Cerimónia SoleneDe Nagisa Oshima. 123 min.19h - Sala Félix Ribeiro

Oncle VaniaDe Pierre Léon. Com Jean-Claude Biette. 80 min.19h30 - Sala Luís de Pina

BietteDe Pierre Léon.21h30 - Sala Félix Ribeiro

Lancelote do LagoLancelot du LacDe Robert Bresson. M12.22h - Sala Luís de Pina

“Wanda”, de BarbaraLoden

“Mistérios de Lisboa”: a experiência aproxima-se da de ler um livro

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54 • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • Ípsilon

em versão decadente. Impressão que se torna muito difícil de remover, infelizmente, e nos faz chegar ao fim da projecção com uma ligeira, mas nada despicienda, irritação. LMO

A Cidade + Shoot MeThe TownDe Ben Affleck, com Ben Affleck, Rebecca Hall, Jeremy Renner, Jon Hamm, Blake Lively, Pete Postlethwaite, Chris Cooper, Titus Welliver, Slaine. M/12

MMnnn

Lisboa: Atlântida-Cine: Sala 2: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 15h45, 21h45 Sábado Domingo 15h45, 18h30, 21h45; Castello Lopes - Loures Shopping: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 15h50, 18h20, 21h10, 23h50; CinemaCity Alegro Alfragide: Sala 5: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 21h30, 00h20; CinemaCity Alegro Alfragide: Sala 3: 5ª 6ª 3ª 4ª 13h30, 16h20, 19h10; CinemaCity Beloura Shopping: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 15h45, 18h40, 21h30, 00h20; CinemaCity Campo Pequeno Praça de Touros: Sala 4: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 16h15, 18h50, 21h40, 00h15; CinemaCity Campo Pequeno Praça de Touros: Sala 6: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 21h20; Medeia Fonte Nova: Sala 3: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h40, 19h05, 21h45; Medeia Saldanha Residence: Sala 8: 5ª 6ª

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h45, 16h25, 19h05, 21h45, 00h30; UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 9: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 14h05, 16h40, 19h15, 22h, 00h30 Domingo 11h30, 14h05, 16h40, 19h15, 22h, 00h30; UCI Dolce Vita Tejo: Sala 6: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h40, 16h10, 18h45, 21h20 6ª Sábado 13h40, 16h10, 18h45, 21h20, 00h20; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 16h50, 21h20, 00h20; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 17h20, 20h50, 23h50; ZON Lusomundo CascaiShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 16h40, 21h10, 00h10; ZON Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h35, 16h45, 21h, 00h10; ZON Lusomundo Dolce Vita Miraflores: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 21h10 6ª Sábado 21h10, 00h10; ZON Lusomundo Odivelas Parque: 5ª 2ª 3ª 4ª 15h, 18h, 21h 6ª Sábado Domingo 15h, 18h, 21h, 24h; ZON Lusomundo Oeiras Parque: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 17h, 21h10, 00h15; ZON Lusomundo Torres Vedras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 16h30, 21h, 24h; ZON Lusomundo Vasco da Gama: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 17h, 21h, 00h05; Castello Lopes - Fórum Barreiro: Sala 3: 5ª 2ª 3ª 4ª 21h10 6ª Sábado Domingo 21h10, 23h40; Castello Lopes - Rio Sul Shopping: Sala 3: 5ª 6ª 3ª 4ª 15h40, 18h10, 21h, 23h30 Sábado Domingo 2ª 12h50, 15h40, 18h10, 21h, 23h30; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h05, 17h30, 20h50, 24h; ZON Lusomundo Fórum Montijo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h15, 16h30, 21h15, 00h10

Porto: Arrábida 20: Sala 12: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 13h45, 16h20, 19h05, 21h50, 00h40 3ª 4ª 16h20, 19h05, 21h50, 00h40; Vivacine - Maia: Sala 3: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10, 15h50, 18h40, 21h30, 00h10; ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª 6ª Sábado

Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 17h10, 21h10, 00h20; ZON Lusomundo GaiaShopping: 5ª 2ª 3ª 4ª 12h40, 15h40, 18h40, 21h35 6ª Sábado Domingo 12h40, 15h40, 18h40, 21h35, 00h30; ZON Lusomundo MaiaShopping: 5ª 3ª 4ª 14h30, 17h40, 21h10 6ª Sábado 14h30, 17h40, 21h10, 00h25 Domingo 11h10, 14h30, 17h40, 21h10, 00h25 2ª 11h10, 14h30, 17h40, 21h10; ZON Lusomundo Marshopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h30, 15h20, 18h30, 21h40, 00h35; ZON Lusomundo NorteShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 13h30, 17h, 20h50, 00h05 4ª 13h30, 17h, 00h30; ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h10, 17h20, 21h50, 00h30; Castello Lopes - 8ª Avenida: Sala 3: 5ª 3ª 4ª 15h40, 18h30, 21h20 6ª 15h40, 18h30, 21h20, 00h05 Sábado Domingo 12h50, 15h40, 18h30, 21h20, 00h05 2ª 12h50, 15h40, 18h30, 21h20; ZON Lusomundo Fórum Aveiro: 5ª 2ª 3ª 4ª 14h20, 17h20, 21h 6ª Sábado Domingo 14h20, 17h20, 21h, 24h

E se Ben Affleck fosse muito mais interessante como realizador do que como actor? A questão não é retórica, a julgar por esta sua segunda realização depois de “Vista pela Última Vez...” (2007), adaptação de um romance de Chuck Hogan em tom de policial moderno sobre um ladrão de Boston tentado pela vontade de abandonar o crime e mudar de vida mas acorrentado pelo meio em que vive. Affleck é, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza do filme: enquanto realizador, define em três pinceladas um ambiente, dirige um bom elenco ao ponto em que mesmo os papéis mais ínfimos têm uma ressonância e uma espessura invulgares neste tipo de produções de estúdio, filma as cenas de acção de modo nervoso e classicamente legível, e nada disto é de somenos nestes tempos em que a maior parte dos filmes de estúdio tomam os espectadores por parvos. O problema, depois, é que Affleck-actor bem se esforça mas não consegue ter a gravidade que o papel central exige – parecendo que não, é capaz de ser essa a razão pela qual aquilo que, com um actor com outra tarimba e outra presença, poderia ter sido um “ersatz” proletário mas honesto de Michael Mann se fica por uma série B cumpridora e anónima. “A Cidade” estreia acompanhado de “Shoot Me”, curta portuguesa de André Badalo que não passa da anedota empolada, sem outra razão de existir que uma demonstração impessoal de “savoir-faire” correctíssimo. J. M.

Cin

ema aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Cineclubes para mais informações consultar www.fpcc.pt

Cine-teatro S. PedroLargo S. Pedro - Abrantes

O Caso Farewell De Christian Carion, 2009, M/123/11, 21:30h

Casa das Artes de Vila Nova de FamalicãoParque de Sinçães – Famalicão (CC de Joane)

ShirinDe Abbas Kiarostami, 2008, M/1204/11, 21:30h

Cinemas Ria Shoping – Sala 3Estrada Nacional 125, 100 – Olhão

EmbargoDe António Ferreira, 2010, M/1202/11, 21:30h

Cine-teatro António PinheiroR. Guilherme Gomes Fernandes, 5 - Tavira

Entre IrmãosDe Jim Sheridan, 2009, M/1631/10, 21:30h

Teatro VirgíniaLargo José Lopes dos Santos – Torres Novas

Muitos Dias Tem o Mês

De Margarida Leitão, 2009, M/1203/11, 21:30h

Teatro Municipal de Vila do CondeAv. João Canavarro - Vila do Conde

LíbanoDe Samuel Maoz, 2009, M/1631/10, 16:00h e 21:00h

Auditório do IPJ (Viseu)R. Dr. Arestides de Sousa Mendes, 33 - Viseu

O Segredo Dos Seus OlhosDe Juan José Campanella, 2009, M/16 02/11, 21:00h

O Segredo Dos Seus Olhos

O Segredo Dos SeusOlhos

“Gainsbourg: Vida

Heróica”: uma magia de

“cartoon”

“A Cidade”: e se Ben Affl eck fosse mais interessante como realizador do que como actor?

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • 55

de comunicação do humor e da banda sonora. “A maneira mais prática de pôr duas companhias que não falam a mesma língua a trabalhar juntas é reforçando o que pode ser dito com o corpo. Fomos obrigados a reflectir sobre a maneira como usamos o texto no teatro. E a verdade é que o usamos como um dado adquirido. Tivemos de dar um passo atrás e perguntar para que serve o texto, e até que ponto ele é realmente necessário”, continua o encenador.

A lição é que não é assim tão necessário. Quando viajar para Inglaterra, depois da digressão que levará “Belonging” a Viseu, Ílhavo, Vila Real, Portalegre e, claro, Campo Benfeito, o Dr. Mamba (Paulo Duarte) continuará a ser uma

personagem sinistra - não haverá dúvidas, mesmo do lado de lá do Canal da Mancha, sobre as suas ligações ao submundo escondido atrás do balcão do talho. Em Campo Benfeito, “Belonging” também pode parecer um espectáculo “estrangeiro”. Não por causa do inglês (o TRSM teve sempre uma costela “bife”, para continuarmos dentro do talho), mas porque este é o primeiro espectáculo da companhia que se passa na galáxia completamente diferente da grande cidade. Steve Johnstone não está muito preocupado: “As pessoas reconhecerão o TRSM neste espectáculo. Mas também perceberão que houve mudanças, que é o que se espera quando se sai de casa”.

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Hansel e Gretel à porta do talhoO Teatro Regional da Serra de Montemuro e o Foursight Theatre, de Wolverhampton, encontram-se em território neutro para tocar nos nossos medos mais profundos. Inês Nadais

BelongingDe Peter Cann. Pelo Teatro Regional da Serra do Montemuro e o Foursight Theatre. Encenação de Naomi Cooke e Steve Johnstone. Abel Duarte, Eduardo Correia, Frances Land, Lucy Tuck, Paulo Duarte, Samantha Fox.

Porto. Teatro Carlos Alberto. R. Oliveiras, 43. De 28/10 a 31/10. 5ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. 5€ a 15€.

Há sete anos, uma companhia de teatro vinda de uma aldeia entre Castro Daire e Lamego com não mais do que 60 habitantes (45, descontando a equipa do teatro e as suas famílias) e outra companhia de teatro vinda de uma das maiores cidades britânicas encontraram-se em Campo Benfeito, na Serra do Montemuro, para trocar galhardetes. Não falavam a mesma língua e continuam a não falar, agora que se encontraram outra vez para montar o espectáculo que se estreou ontem em território neutro, o Teatro Carlos Alberto, no Porto. “Belonging”, acreditam o Teatro Regional da Serra do Montemuro (TRSM) e o Foursight Theatre, tem essa vantagem de não pertencer exactamente a lado nenhum, e de assim pertencer a todo o lado. A história não podia ser mais universal: vem do mesmo lugar que

contos populares como o de Hansel e Gretel e notícias de última hora como o desaparecimento de Maddie McCann. Só que agora isto passa-se num talho.

Também é um lugar comum, o talho. E foi lá que a equipa de “Belonging” foi ter logo nos primeiros ensaios: “Começámos por tentar perceber o que significa pertencer a um lugar e depois explorámos assuntos universais. Às tantas chegámos ao tráfico de crianças e percebemos que é um medo primitivo, que está nos contos populares e no folclore de várias culturas. Olhámos para eles, e também para notícias verdadeiras de crianças desaparecidas em todo o mundo. E, já não sei muito bem como, decidimos que o local do crime ia ser um talho”, explica ao Ípsilon Steve Johnstone, forasteiro que é visita muito regular em Campo Benfeito e que encena o espectáculo a meias com Naomi Cooke. Um talho “é um sítio onde as pessoas traficam carne”, e portanto a metáfora é clara em qualquer parte do mundo. Tinha mesmo de ser: num espectáculo bilingue (três actores portugueses, três actores ingleses) feito para espectadores que, na esmagadora maioria dos casos, só falarão umas das línguas, não pode haver demasiada ambiguidade, sob pena de se perder tudo na tradução. “Para que isto funcione, o espectador tem de aceitar uma certa suspensão da realidade. Um actor inglês fala em inglês, um actor português responde-lhe em português: não é verosímil. Muitos espectadores não perceberão tudo, mas todos irão perceber o suficiente”, garante Johnstone.

Há, de resto, uma parte substancial de “Belonging” que está muito para além do texto: tanto o Foursight Theatre como o TRSM têm uma tradição de trabalho multidisciplinar que cruza os recursos do teatro físico com um investimento substancial no poder

Teatro

EstreiamNatureza MortaDe e com Dinis Machado. Lisboa. Teatro Taborda. Costa do Castelo, 75. De 29/10 a 07/11. 6ª a Dom. às 21h30. Tel.: 218854190.

Festival Temps d’Images 2010.

TemporáriaDe e com Catarina Vieira, Solange Freitas. Lisboa. Centro Cultural de Belém. Pç. do Império. De 30/10 a 31/10. Sáb. e Dom. às 19h. Tel.: 213612400.

Festival Temps d’Images 2010.

RipDe Bruno de Almeida, Francisco Camacho. Encenação de Francisco Camacho. Com Mariana Tengner Barros, Rafael Alvarez, Tiago Cadete, Francisco Camacho. Lisboa. Centro Cultural de Belém - Pequeno

Auditório. Pç. do Império. De 03/11 a 04/11. 4ª e 5ª às 21h. Tel.: 213612400.

Festival Temps d’Images 2010.

That’s the Story of My LifeCom Macarena Recuerda Shepherd, Mónica del Castillo, Lorea Uresberueta. Guarda. Teatro Municipal da Guarda. R. Batalha Reis, 12. Dia 29/10. 6ª às 21h30. Tel.: 271205241.

Festival Y #08 - Festival de Artes Performativas.

Um Monólogo De Gregory Motton. Pelo Crinabel Teatro. Encenação de Marco Paiva. Com António Coutinho.Lisboa. Teatro da Comuna. Pç. de Espanha. De 4/11 a 7/11. 5ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 17h. Tel.: 964693527.

ContinuamA Bela AdormecidaDe Tiago Rodrigues. Pela Companhia Maior. Encenação de Tiago Rodrigues.

Agenda

Com Carlos Nery, Iva Delgado, Kimberley Ribeiro, entre outros. Lisboa. Centro Cultural de Belém - Grande Auditório. Pç. do Império. Até 31/10. 5ª a Sáb. às 21h. Dom. às 17h. Tel.: 213612400. 10€ a 12,5€.

Ver texto na pág. 32.

Dramoletes 1 / O CoveiroDe Thomas Bernhard. Pelo Teatro da Rainha. Encenação de Fernando Mora Ramos. Com Isabel Lopes, Elisabete Piecho, entre outros.Caldas da Rainha. Teatro da Rainha. Antiga Lavandaria do Centro Hospitalar. Até 30/10. 4ª a Sáb. às 21h30. Tel.: 262283302. 4€ a 10€.

Um Precipício no MarDe Simon Stephens. Encenação de Jorge Silva Melo. Com João Meireles. Lisboa. Soc. de Instrução Guilherme Cossoul. Av. D.Carlos I, 61 - 1º. Até 07/11. 5ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 17h. Tel.: 213973471.

A GaivotaDe Anton Tchékhov. Encenação de Nuno Cardoso. Com Cristina

Carvalhal, João Castro, João Pedro Vaz, entre outros. Lisboa. Teatro Municipal Maria Matos. Av. Frei Miguel Contreiras, 52. Até 31/10. 5ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 18h. Tel.: 218438801. 6€ a 12€.

Dança

ContinuamLadrões de Almas + MecanismosDe Joana Providência. Com Ainhoa Vidal, António Júlio, entre outros. Coimbra. Teatro da Cerca de S. Bernardo. Pátio da Inquisição. Dia 29/10. 6ª às 21h30. Tel.: 239702630. 10€.

Sábado 2De Paulo Ribeiro. Com Leonor Keil, Peter Michael Dietz, Romulus Neagu, entre outros.Viseu. Teatro Viriato. Lg. Mouzinho Albuquerque. De 29/10 a 04/11. 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.: 232480110. 7,5€ a 15€.

“Belonging” levará o Teatro Regional da Serra do Montemuro

de Campo Benfeito a Wolverhampton

“Temporária” e “Rip”: duas estreias no Temps D’Images

Joana Providência regressa a “Mecanismos” em Coimbra

“Dramoletes / O Coveiro” no Teatro da Rainha

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