Psicologia Uma nova introdução

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Transcript of Psicologia Uma nova introdução

  • ISBN 978-8S-2B-0369-8

    9 788528 303698

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    PsicologiaUma (nova) introduo

    Lus Claudio M. FigueiredoPedro Luiz Ribeiro de Santi

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    LUS CLAUDIO M. FIGUEIREDOPEDRa LUIZ RIBEIRO DE SANTI

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICADE SO PAULO

    Reirora: Maura Pardini Bicudo Vrasvice-Reitora Acadmica: Badcr Burihan Sawaia

    EDUC - Editora da PUC-SP PSICOLOGIAUma (nova) introduo

    COl1selho EditorialUma viso histrica da psicologia como cincia

    Ana Maria RapassiBadcr Burihan Sawaia (Presidel1te)

    Bcrnardctc A. GattiCbclc Isaac Saad Rodrigucs

    Dino PretiMarcelo Figucrcdo

    Maria do Carmo GucdcsMaria Eliza Mazzilli PereiraMaura Pardini Bicudo VrasOnsimo de Oliveira Cardoso

    Scipione Di Picrro Netto (in memoriam)Vladmir O. Silveira

    3a edio

    So Paulo2008

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  • Lus Claudio Mendona Fgueiredo e Pedra Luiz Ribeiro de Santi.Foi feito o depsito legal

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouva Kfouri/PU(-SP

    Ftgucrcdo, Lus Claudio Mendona, 1945-Psicologia, uma (nova) introduo: uma viso histrica da

    psicologia como cincia / Lus Claudio M. Figueiredo; PedroLuz Ribeiro de Santi. - 3 cd. - So Paulo: EDUC, 2008.

    104 p. ; 18 em. - '(Srie Trilhas)

    Dados sobre os autoresISBN 978-85-283-03698

    1. Psicologia. 2. Pscologa - Histria. !. Santi, Pedro LuizRibeiro de. lI. Ttulo. Ill. Scric.

    CDD 150150-9

    1a edio (Psicologia. Uma introduo): 1991; 2" edio: 1997Reimpresses: 1998,1999,2000 (2), 2002, 2003, 2004, 2006, 2007

    Srie Trilhas coordenada porMaria Eliza Mazzilli Pereira

    EDUC - Editora da PUC-SP

    DireoMiguel Wady ChaiaProduo EditorialSonia Montonc

    Preparao e RevisoSonia Rangel

    Editorao Eletrnicade miolo e capa

    Waldir Antonio Alves

    CapaMaril Dardot

    SecretrioRonaldo Decicino

    ecJU(.'Rua Monte Alegre, 971 - sala 38CA

    05014-001 - So Paulo - SPTel./Fax: (ll) 3670-8085 e 3670-8558

    E-mail: [email protected] - Stc: www.pucsp.br/cduc

    Para Maria Patrcia, Carolina,

    Marina e Ynai.L.c.F.

    Para Alessanra.

    P. L. R. S.

  • SUMRIO

    PREFCIO 9

    A PSICOLOGIA COMO CINCIA INDEPENDENTE 13Uma viso panormica e crtica 13

    PRECONDIES SOCIOCULTURAlSPARA O APARECIMENTO DA PSICOLOGIACOMO CINCIA NO SCULO XIX 19

    A experincia da subjetividade privatizada 19Constituio e desdobramentos da noode subjetividade na Modernidade 24A crise da Modernidade e da subjetividademoderna em algumas de suas expressesfilosficas 33Sistema mercantil e individualizao .40Ideologia liberal iluminista, romantismoe regime disciplinar 46A crise da subjetividade privatizadaou a decepo necessria 48Sntese 52

    )< A PRTICA CIENTFICA E A EMERGNCIADA PSICOLOGIA COMO CINCIA 55

    Conhecimento cientfico: privacidadee diferena 55

    i os PROJETOS DE PSICOLOGIACOMO CINCIA INDEPENDENTE 61

    O projeto de Wundt : 61O projeto de Titchener 64A psicologia funcional 66O comportamentalismo 68Projetos de psicologia e condies de produo .. 71

  • A psicologia da Gestalt... 75O comportamentalismo diferenciado:o behavorsmo radical de Skinner 77A psicologia cognitivista de Pagete a psicanlise freudiana 80

    A PSICOLOGIA COMO PROFISSO E COMO CULTURA .. 89O psiclogo: funes e mitos 89

    BIBLIOGRAFIA COMENTADA 93

    QUESTES DE ESTUDO E DISCUSSO 95A psicologia como cincia independente 95

    x Precondies socioculturais parao aparecimento da psicologia como cinciano sculo XiX 95A prtica cientfica e a emergnciada psicologia como cincia 97Os projetos de psicologiacomo cincia independente 97A psicologia como profissoe como cultura : 100

    NOTA SOBRE OS AUTORES 101

    PREFCIO

    A primeira verso deste trabalho foiescrita no final da dcada de 1980, quandoum de ns (LCF) fazia o caminho que vai dolivro Matrizes do pensamento psicolgico suatese de livre-docncia na USP, publicada com ottulo A inveno do psicolgico. Quatro scu-los de subjetivao (1500-1900). "Matrizes"havia sido elaborado no incio dos anos 80 ej no final de seu ltimo captulo se formulavaa tarefa de pensar a constituio histrica do"psicolgico", ou seja, a formao ao longo dossculos desse campo de conhecimentos e prti-cas sui generis em que se instalaram os proje-tos de psicologia como cincia independente e,a eles associados, os psiclogos com suas ativi-dades profissionais e de pesquisa. Esse campo,embora abrigue questes muito antigas, sobalguns aspectos universais, s se delimitouplenamente ao final do sculo XIX.O problemaera o de compreender como se deu e por quefase passou esse processo de delimitao e, emseguida, o processo de ocupao desse novoterritrio. A isso foram dedicados muitos anosde pesquisa. Aproximadamente no meio desseperodo (1988), surgiu o convite para escrever

  • 10 PSICOLOGIA

    uma pequena introduo psicologia e emduas semanas estava pronto o presente-livro.As dificuldades editoriais fizeram com que,na hora das publicaes, toda essa cronologiaficasse embolada: Matrizes do pensamento psi-colgico e Psicologia. Uma introduo saramjuntos em 1991 e, logo em seguida, A invenodo psicolgico, em 1992.

    Os livros fizeram algum sucesso e as reim-presses comearam a ocorrer: "Matrizes" che-gou 4a edio, "A inveno" il 3a e Psicologia.Uma introduo recebeu uma nova reimpres-so a cada ano desde o seu lanamento. claroque todos esses livros poderiam ser revistos emelhorados, mas at hoje faltou-nos coragempara empreender a tarefa. Em vez disso, em1995, publicamos Revisitando as psicologias.Da epistemoloqia tica das prticas e discur-sos psicolgicos em que se acrescentaram mate-riais resultantes de novas pesquisas e reflexesposteriores. (Mais recentemente - 1997 -, umde ns - P.L.R.S. - publicou Elementos parauma histria da psicologia que, igualmente,retomava as questes de A inveno do psicol-gico enriquecendo-as com materiais provenien-tes de novas pesquisas.) No caso deste pequenolivro introdutrio, contudo, a necessidade deuma realmente nova e mais completa versosempre nos pareceu mais urgente. Para tornareste projeto vivel, foi necessria a colaborao

    PREFCIO 11

    de um segundo autor (P.L.R.S.)que tambm rea-liza pesquisas - inclusive a do seu doutorado -nessas mesmas reas. A estrutura do texto esuas finalidades didticas no foram alteradas ,mas todo o escrito foi revisto, muitas pequenascomplementaes puderam ser feitas e surgi-ram duas sees inteiramente novas e algunsacrscimos substanciais a sees existentes. Olivro continua, a nosso ver, de um bom tama-nho e nvel de complexidade capazes de torn-10 til para o incio da formao em psicologiae tamb_m para uma apresentao da psicolo-gia em reas afins. Pode, igualmente, comotemos notcia de j ter acontecido, servir paraapresentar a Psicologia a colegiais avanados.Nosso objetivo, enfim, foi o de torn-l o umpouco mais rico, mas sem restringir seus usos,e esperamos que ele continue podendo ser totil como parece ter sido at agora.

    So Paulo, novembro de 1997.

  • A PSICOLOGIA COMOCINCIA INDEPENDENTE

    Uma viso panormica e crtica

    muito freqente que os livros que tra-tam da histria da psicologia comecem falandoda filosofia ocidental desde os gregos e conti-nuem, j nas pocas mais recentes, com fsicos,fisilogos e filsofos em cujas idias podem serencontrados elementos que hoje fazem partedo domnio da "psicologia cientfica".

    O objetivo do presente texto, contrariandoa regra acima, apresentar resumidamente.uma viso panormica e crtica da psicologiacontempornea.

    Na verdade, s em poca muito recentesurgiu o conceito de cincia tal como hoje de uso corrente, e foi ainda mais recentementeque comearam a ser elaborados os prmerosprojetos de psicologia como cincia indepen-dente. Ou seja, s a partir da segunda metadedo sculo XIX surgiram homens que preten-diam reservar aos estudos psicolgicos umterritrio prprio, cujo xito se fez notar pelosdiscpulos e espaos conquistados nas institui-es de ensino universitrio e de pesquisa. S

  • 14 PSICOLOGIA

    ento passou a existir a figura do psiclogo epassaram a ser criadas as instituies volta-das para a produo e transmisso de conheci-mento psicolgico.,

    claro que o processo de criar uma novacincia muito complexo: preciso mostrarque ela tem um objeto prprio e mtodosadequados ao estudo desse objeto, que ela ,enfim, capaz de firmar-se como uma cinciaindependente das outras reas de saber.

    Para a psicologia, a questo era extrema-mente complicada, j que todos os grandes sis-temas filosficos desde a Antiguidade incluamnoes e conceitos relacionados ao que hoje fazparte do domnio da psicologia cientfica, comoo comportamento, o "esprito" ou a "alma" dohomem. J na Idade Moderna, fsicos, anatorns-tas, mdicos e fisilogos trataram de diversosaspectos dos comportamentos involuntriose mesmo de comportamentos voluntrios dohomem, ou seja, daqueles que, ao menos apa-rentemente, revelariam a presena de um "esp-rito" por detrs das aes humanas. Tambm naIdade Moderna, particularmente no sculo XIX,comearam a se constituir as cincias da socie-dade, como a Economia Poltica, a Histria, aAntropologia, a Sociologia e a Lingstica. Essascincias tambm tratavam das aes humanase das suas obras, em particular dos compor-tamentos humanos mais importantes para a

    A PSICOLOGIA COMO CINCIA INDEPENDENTE 15

    SOCiedade e que dependiam fundamentalmentedas condies histricas e sociais de uma dadacomunidade. Nesta medida, os temas da psi-cologia estavam dispersos entre especulaesfilosficas" cincias fsicas e biolgicas e cin-cias sociais. O que restaria para uma psicologiacomo cincia independente? Nada!

    Embora, primeira vista, possa parecersurpreendente, esta foi exatamente a respostade um importante filsofo francs do sculoXIX, Auguste Comte (1798-1857). No seu sis-tema de cincias no cabe uma "psicologia"entre as "cincias biolgicas" e as "sociais". Oprncipal empecilho para a psicologia seria seuobjeto: a "psique", entendida como "mente" ,no se apresenta como um objeto observvel,no se enquadrando, por isto, nas exignciasdo positivismo. bem verdade que o prprioComte, num certo momento, reconhece a pos-sibilidade de uma psicologia, mas sempre comouma rea de conhecimento parcialmente depen-dente ou da biologia ou da sociologia. Aindahoje, aps mais de cem anos de esforos parase criar uma psicologia cientfica, os estudospsicolgicos mantm relaes estreitas commuitas cincias biolgicas e com muitas cin-cias sociais. Isso parece ser bom e, na verdade,indispensvel! Mas vrias vezes mais fcil,por exemplo, um psiclogo experimentalistaque trabalha em laboratrios com animais, tais

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    como o rato e o pombo, entender-se com umbilogo do que com um psiclogo social queestuda o homem em sociedade. Este, por suavez, poder ter dilogo mais fcil com antro-plogos e lingistas do que com muitos psi-clogos que foram seus colegas na faculdadee que hoje se dedicam clnica psicoterpica.E, quando o psiclogo se pe a estudar temascomo pensamento e soluo de problemas, eleinevitavelmente se aproxima da filosofia e, emparticular, da teoria do conhecimento.

    A situao da psicologia cientfica, por-tanto, curiosa. Por um lado, reivindica umlugar parte entre as cincias (e para issocriam-se faculdades e institutos de pesquisaem psicologia); ao mesmo tempo o psiclogoprtico exige que sua competncia especficaseja reconhecida (e para isso existem rgoscomo os conselhos de psicologia que excluema presena de outros profissionais nas reasde atuao legalmente reservadas ao psic-logo). Por outro lado, no conseguiu se desen-volver sem estabelecer relaes cada vez maisestreitas com as cincias biolgicas e com as dasociedade.

    Essa situao poderia justificar a primitivaposio de Comte de que no h lugar para umapsicologia independente e melhor faramos sedesenvolvssemos nossos estudos psicolgicosjunto a essas outras disciplinas, dentro de seus

    A PSICOLOGIA COMO CINCIA INDEPENDENTE 17

    centros de pesquisa. E, no entanto, algo parecese opor a essa disperso e exigir que se pensea psicologia de maneira mais integrada, respei-tando-se, claro, essa multiplicidade de ngu-los e abordagens.

    H, realmente, muitas dvidas acerca doproblema, e prefervel, por enquanto, noestabelecer nenhuma concluso. De qualquermaneira, a psicologia est a com suas preten-ses de autonomia e, independentemente daconcluso a que cheguemos, importante ten-tar compreender as origens e as implicaesda existncia dessa disciplina, por mais caticaque ela seja ou nos parea.

  • PRECONDIESSOCIOCULTURAIS PARAOAPARECIMENTO DA PSICOLOGIACOMO CINCIA NO SCULO XIX

    A experincia dasubjetividade privatizada

    Para que exista um interesse em conhecercientificamente o "psicolgico", so necessriasduas condies (alm, naturalmente, da crenade que a cincia com seus mtodos e tcni-cas rigorosas um meio insubstituvel para oconhecimento): a) uma experincia muito clarada subjetividade privatizada; e b) a experinciada crise dessa subjetividade. Isso, primeiravista, pode parecer muito obscuro, mas tratare-mos de clarificar essas idias.

    Ter uma experincia da subjetividadeprivatizada bem ntida para ns muito fcile natural: todos sentem que parte de suasexperincias ntima, que mais ningum temacesso a ela. possvel, por exemplo, ficar umlongo tempo pensando se vamos ou no fazeruma coisa, quase decidir por uma e, no final,acabar fazendo a outra, sem que ningumfique sabendo de nada. Com freqncia, senti-

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    mos alegrias e tristezas intensas e procuramosescond-Ias. A possibilidade de mantermosnossa privacidade 'altamente valorizada porns e relacionada ao nosso desejo de sermoslivres para decidir nosso destino. A experinciada solido, ansiada ou temida, tambm alta-mente expressiva daquilo que acreditamos sernossa individualidade.

    Ainda com maior freqncia, temos asensao de que aquilo que estamos vivendonunca foi vivido antes por mais ningum, deque a nossa vida nica, de que o que sentimose pensamos totalmente original e quase inco-municvel. Pois bem, historiadores e antrop-logos com suas pesquisas mostram que essasformas de pensarmos e sentirmos nossa pr-pria existncia no so universais. Essa expe-rincia de sermos sujeitos capazes de decises,sentimentos e emoes privados s se desen-volve, se aprofunda e se difunde amplamentenuma sociedade com determinadas caracters-ticas. Nossa preocupao identificar sumaria-mente essas caractersticas.

    Ao lermos com ateno as obras de histo-riadores, veremos que as grandes irrupes daexperincia subjetiva privatizada ocorrem emsituaes de crise social, quando uma tradiocultural (valores, normas e costumes) contes-tada e surgem novas formas de vida. Em situa-es como estas, os homens se vem obrigados

    PRECONDIES SOCIOCULTURAIS ... 21

    a tomar decises para as quais no conseguemapoio na sociedade. Nessas pocas, as artes e aliteratura revelam a existncia de homens maissolitrios e indecisos do que em pocas nasquais dominam as velhas tradies e no exis-tem graves conflitos. Quando h uma desagre-gao das velhas tradies e uma proliferaode novas alternativas, cada homem se v obri-gado a recorrer com maior constncia ao seu"foro ntimo" - aos seus sentimentos (que nemsempre condizem com o sentimento geral), aosseus critrios do que certo e do que errado(e na sociedade em crise h vrios critrios dis-ponveis, mas incompatveis). A perda de refe-rncias coletivas, como a religio, a "raa", o"povo", a famlia ou uma lei confvel obriga ohomem a construir referncias internas. Surgeum espao para a experincia da subjetivi-dade privatizada: quem sou eu, como sinto, oque desejo, o que considero justo e adequado?Nessa situao, o homem descobre que capazde tomar suas prprias decises e que res-ponsvel por elas. A conseqncia desses con-textos o desenvolvimento da reflexo moral edo sentido da tragdia.

    Uma tragdia se d quando um indivduose encontra numa situao de conflito entreduas obrigaes igualmente fortes, mas incom-patveis. , tambm, numa situao como essaque os homens so levados a se questionar

  • 22 PSICOLOGIA PRECONDIES SOCIOCULTURAIS ... 23

    acerca de que certo e do que errado e a pro-curar na sua prpria conscincia uma respostapara essa questo.

    No campo das artes, alm do surgimento edesenvolvimento do gnero "tragdia", observa-se, na literatura, o aparecimento da poesialrica. Nela o poeta expressa seus sentimentos edesejos como sentimentos e desejos particula-res e muitas vezes opostos ao que a sociedadedele espera, como amores socialmente norecomendados ou mesmo proibidos.

    As artes plsticas tambm testemunham oaprofundamento da experincia subjetiva priva-tizada, seja realando os traos particulares deseus modelos, na escultura ou na pintura repre-sentativas, seja expressando de forma cada vezmais individualizada a subjetividade do artista,de forma que, pela anlise das obras, podemosidentificar com muita segurana seu autor emesmo especular com alguma base sobre queme como ele era. Finalmente, no podemos dei-xar de mencionar que o pensamento religiosoacompanha esse processo de subjetivizao eindividualizao e que nos momentos de crisede desagregao sociocultural surgem novossistemas religiosos, ou variantes de antigos, eheresias que enfatizam a responsabilidade indi-vidual e atribuem conscincia e s intenesmais valor que aos prprios atos e obras.

    preciso ter claro que esse movimento nadireo de um aprofundamento da experinciasubjetiva privatizada no foi um processo linearpelo qual tenham passado todas as sociedadeshumanas. So muito importantes os estudos deantroplogos que se dedicaram a descrever ea analisar sociedades no ocidentais em que asubjetivizao e a individualizao da existnciapermaneceram em nveis muito menos elabo-rados. Mesmo nas sociedades ocidentais, pro-venientes das tradies judaica, grega e latina,o processo foi repleto de ziguezagues. No con-junto, porm, pode-se dizer que ao longo dossculos as experincias da subjetividade priva-tizada foram se tornando cada vez mais deter-minantes da conscincia que os homens tm dasua prpria existncia. Ou seja, nos primrdiosda nossa histria, eram poucos os elementos deuma sociedade que podiam gozar de liberdadepara se reconhecerem como seres moralmenteautnomos, capazes de iniciativas, dotados desentimentos e desejos prprios. Hoje, ao con-trrio, esta se tornou a imagem generalizadaque temos de ns mesmos. Alis, boa parte dens se sente bastante incomodada quando essacrena colocada em dvida; resistimos idiade que no tenhamos controle de nossas vidas.A crena na liberdade dos homens um doselementos bsicos da democracia e da socie-dade de consumo e no estamos dispostos, em

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    geral, a pr em risco nossos valores. Como sever a seguir, em alguns aspectos importantesessa imagem completamente ilusria, e umadas tarefas da psicologia ser talvez a de reve-lar essa iluso.

    Constituio e desdobramentosda noo de subjetividadena Modernidade

    Como foi dito acima, por estranho queparea, nosso modo atual de entendermosnossa experincia como indivduos autnomosno natural nem necessrio, mas sim partede um movimento de amplas transformaespelas quais o homem tem passado em sua his-tria, sobretudo na Modernidade.

    De forma simplificada, podemos dizerque nossa noo de subjetividade privada dataaproximadamente dos ltimos trs sculos:da passagem do Renascimento para a IdadeModerna. O sujeito moderno teria se consti-tudo nessa passagem e sua crise viria a se con-sumar no final do sculo XIX.

    Em A inveno do psicolgico, desenvol-vemos a idia de que, no Renascimento, teriasurgido uma experincia de perda de refern-cias. A falncia do mundo medieval e a aber-

    PRECONDIES SOCIOCULTURAIS ... 2S

    tura do Ocidente ao restante do mundo teriamlanado o homem europeu numa condio dedesamparo.

    A experincia medieval fazia com que ohomem se sentisse parte de uma ordem supe-rior que o amparava e constrangia ao mesmotempo. Por um lado, a perda desse sentimentode comunho com uma ordem superior trazuma grande sensao de liberdade e a possi-bilidade de uma abertura sem limites para omundo, mas, por outro, deixa o homem per-dido e inseguro: como escolher o que certo eerrado sem um ponto seguro de apoio?

    O Renascimento foi, por tudo isso, umperodo muito rico em variedade de formas eexperincias e de produo intensa de conheci-mento. O contato com a diversidade das coisas,dos homens e das culturas imps novos modosde ser.

    No podendo esperar pelo conselho deuma figura de autoridade, o homem viu-seobrigado a escolher seus caminhos e arcar comas conseqncias de suas opes. Nesse con-texto, houve uma valorizao cada vez maiordo "Homem", que passou a ser pensado comocentro do mundo.

    A crena em Deus no desapareceuento, mas parece que Ele se distanciou e secolocou "sobre" o mundo: Ele foi o criador daordem do mundo e cabe ao Homem admir-Ia,

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    conhecendo e controlando a natureza. Assim,o mundo passou a ser considerado cada vezmenos como sagrado e mais como objeto deuso - movido por foras mecnicas ~ a serviodos homens. Essa transformao parte essen-cial da origem da cincia moderna.

    A grande valorizao e confiana noHomem, geradas pela concepo de que ele ocentro do mundo e livre para seguir seu cami-nho, fazem nascer o humanismo moderno.

    O sculo XVI v surgirem diversos perso-nagens, reais ou fictcios, donos de um "mundointerno" rico e profundo. Leonardo da Vinci,Dom Quixote, Harnlet, entre muitos. Alm disto,os personagens literrios contribuam tambmpara a construo da interioridade dos leitores.Segundo Philippe Ares, em Histria da vida pri-vada (Companhia das Letras, v. 3,1991), o sur-gimento da imprensa proporcionou uma dasexperincias mais decisivas da modernidade: adifuso da leitura silenciosa. Ela possibilita quese escape ao controle da comunidade e cria umdilogo interno que desenvolve a construo deum ponto de vista prprio. O trabalho intelec-tual passa a ser progressivamente um ato indi-vidual e mesmo a religiosidade pde se tornaruma questo ntima, j que cada vez mais pes-soas podiam ter acesso diretamente aos textossagrados, sem a intermediao de sacerdotes.

    PRECONDIES SOClOCULTURAIS ... 27

    Certamente, essa experincia foi fundamental Reforma protestante, movimento essencial naformao do sujeito moderno.

    O pensador francs Michel de Montaigned um testemunho clssico da valorizao dainterioridade. Na introduo de seus Ensaios,diz ao leitor que tomar a si mesmo comoassunto, ainda que sua vida seja comum, total-mente desprovida de feitos hericos ou not-veis. O "eu" de Montagne ser o assunto dolivro e, enquanto o livro vai sendo escrito (aolongo de quase vinte anos e mais de mil pgi-nas), esse "eu" vai se transformando. O livrofoi muito criticado com o argumento de queuma vida comum no mereceria ser objeto detal obra, mas a questo que nos interessa jus-tamente o surgimento da valorizao de cadaindivduo, da construo de cada individuali-dade nica.

    A obra de Montaigne tambm foi consi-derada fruto de uma extrema vaidade. Mash a um paradoxo: ao mesmo tempo em queindubitavelmente o autor valoriza seu "eu", eledenuncia a grande iluso do homem ao se pre-tender um ser privilegiado na natureza capazde conhec-Ia e domin-Ia.

    Toda a falta de referncias absolutas aque nos referimos mais acima fez renascertambm uma escola da filosofia grega chamadaceticismo. Os cticos achavam impossvel que

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    pudssemos obter algum conhecimento segurosobre o mundo: a qualquer afirmao pode seroposta outra de igual valor; qualquer impres-so que tenhamos pode ser um engano de nos-sos rgos dos sentidos.

    Assim, podemos considerar que a consti-tuio do sujeito moderno contempornea aoincio da crtica a esse mesmo sujeito: autorescomo Montaigne, Erasmo e Shakespeare vodenunciando desde ento a vaidade do homem,que passa a assumir os atributos at ento pr-prios a Deus (cf. Santi, 1997).

    A descrena ctica, somada ao grandeindividualismo nascente, acabaram por produ-zir uma reao que, na verdade, assumiu duasfeies bem distintas: a reao racionalista e areao empirista. Em ambas, contudo, tratava-se de estabelecer novas e mais seguras basespara as crenas e para as aes humanas, eprocuravam-se essas bases no mbito das expe-rincias subjetivas.

    J no sculo XVI surgiram tentativas deconter e circunscrever as aes dos homens. como se houvesse o desejo de poder voltarao mundo medieval, em que uma nica ordemreinava. Mas, como no possvel voltar notempo, a ordem a ser buscada a partir de entotinha que levar em considerao uma srie denovas crenas do homem, sobretudo a recm-adquirida crena na liberdade. A Igreja Catlica

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    e as novas Igrejas Protestantes (Luteranos eCalvinistas) fizeram um esforo enorme emarticular a crena num Deus onipotente e olivre-arbtrio humano.

    Uma soluo - bastante precoce, mas cujoesprito foi muito duradouro - foi dada pelohumanista Pico Della Mirandola que, ainda nofinal do sculo XV, reescrevendo a Gnese, che-gou concepo de que a liberdade teria sidoo grande e exclusivo dom que Deus teria dadoao homem, j que este teria sido o ltimo dosseres a ser criado e nenhuma matria originalrestara para forj-lo, Tendo o dom da liberdade,o homem pode ser recompensado se fizer umbom uso dela e punido caso se deixe perder dobom caminho. Essa articulao importante namedida em que, preservando a crena na liber-dade humana, coloca-se a imposio de dirigiressa liberdade com muita disciplina a um cami-nho reto. O sujeito deve "sujeitar-se", uma vezmais, a uma ordem superior, desvalorizandoseus desejos e projetos particulares. Da surgeum regime onde o corpo, sobretudo, deve sercontrolado e desvalorizado, pois ele sempre fonte de desejo e disperso (cf. "O silncio e asfalas do corpo", em Figueiredo, 1995).

    Essa reao disperso surgiu, primeira-mente, como era de se esperar, no mbito reli-gioso, embora tenha se espalhado para muitoalm dele. Entre a Reforma e a Contra-Reforma

  • 30 PSICOLOGIA

    vo nascendo tanto a individualidade quantoos modos de controle do indivduo que conhe-cemos at hoje .:

    A maior parte dos estudos sobre a moder-nidade costuma identificar como seu marco deincio o pensamento de Descartes, o fundadordo racionalismo moderno. Certamente, a cons-tituio da modernidade foi altamente com-plexa e longa, mas, se preciso estabelecer ummarco, Descartes se presta bem a isso.

    Descartes pretende estabelecer as condi-es de possibilidade para que obtenhamos umconhecimento seguro da verdade. Ele se alinhaentre aqueles que quiseram superar a grandedisperso do Renascimento e, o que talvez omais importante, superar o ceticismo.

    Ao lermos as primeiras pginas do Discursodo mtodo, vemos o depoimento de um homemnascido no limite do Renascimento, em meioa uma profuso tamanha de idias e opinies,que se via levado a desacreditar todas elas. Noquerendo entregar-se ao ceticismo, imps-seo projeto de buscar alguma verdade sobre aqual no pairasse a menor sombra de dvidae pudesse, assim, tornar-se o fundamento paratoda a construo de conhecimento vlido.Para isso, curiosamente, utilizou o instrumentoctico: a dvida. Sua inteno era submetertoda e qualquer idia, impresso ou crena auma dvida metdica: as idias erradas seriam

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    descartadas; as incertas seriam igualmente des-cartadas, ao menos provisoriamente; somenteidias absolutamente claras e distintas pode-riam ser consideradas verdadeiras e servir debase para a filosofia e as cincias. Tudo aquiloque se mostrasse incerto teria que ser anali-sado a partir do elemento verdadeiro reveladoao final do processo.

    O procedimento parece conduzir Descartesao ceticismo. Seus mestres, os livros, as leis eos critrios morais de cada cidade, tudo pareceincerto. Seus rgos do sentido tambm se mos-tram passveis de enganos e seus sentimentosainda mais, por serem to mutveis. Conformea dvida se aprofunda, Descartes se v cadavez mais acuado, at imaginar a existncia deum "gnio maligno", capaz de engan-lo emtoda e qualquer idia que fizesse do mundo.Nesse ponto extremo da dvida, quando pareceque ela insupervel, Descartes inverte a ques-to e acredita ter superado a dvida e encon-trado um fundamento inquestionvel para oconhecimento. Ele diz: parece que tudo o quetomo como objeto de meu julgamento se mos-tra incerto, mas, no momento mesmo em queduvido, algo se mostra como uma idia indubi-tvel; enquanto duvido, existe ao menos a aode duvidar, e essa ao requer um sujeito. Danasce a famosa frase "penso, logo existo". Todoo movimento de duvidar traz a evidncia de

  • 32 PSICOLOGIA

    que, ao menos enquanto um ser que pensa (eduvida), eu existo. Esta minha nica certeza:eu ainda no sei se os outros existem e mesmose meu prprio corpo existe. A evidncia pri-meira a de um "eu" e ele ser a partir de agorao fundamento de todo o conhecimento.

    Descartes tomado como inauguradorda modernidade no sentido em que ele marcao fim de todo um conjunto de crenas quefundamentavam o conhecimento. O homemmoderno no busca a verdade num alm, emalgo transcendente; a verdade agora significaadquirir uma representao correta do mundo.Essa representao interna, ou seja, a verdadereside no homem, d-se para ele. O sujeito doconhecimento (o "eu") tornado agora um ele-mento transcendente, "fora do mundo", purarepresentao sem desejo ou corpo, e por issosupostamente capaz de produzir um conheci-mento objetivo do mundo.

    O filsofo Francis Bacon, contemporneode Descartes, pode ser apresentado como ofundador do moderno empirismo. Sua preocu-pao, como a de Descartes, era a de estabele-cer bases seguras para o conhecimento vlidoe, tambm como Descartes, ele as procuravano campo das experincias subjetivas. A dife-rena era que para Bacon a razo deixada emtotal liberdade pode-se tornar to especula-tiva e delirante que nada do que produza seja

    PRECONDIES SOClOCULTURAIS ... 33

    digno de crdito. necessrio dar razo umabase nas experincias dos sentidos, na percep-o, desde que essa percepo tenha sido puri-fica da, liberada de erros e iluses a que estsubmetida no cotidiano. Bacon escreveu umasrie de obras importantes, entre as quais oNovum orqanum, em que elabora suas propos-tas de como se livrar do erro e encontrar a ver-dade tendo como base a experincia subjetivasensorial e racional. Bacon, como Descartes, um dos grandes pioneiros na preocupaocom o Mtodo na produo de conhecimen-tos filosficos e cientficos que marcou toda aModernidade ocidental desde o sculo XVII atos dias de hoje.

    A crise da Modernidade e dasubjetividade moderna em algumasde suas expresses filosficas

    A crena de que o homem pode atingir averdade absoluta e indubitvel, desde que sigaestritamente os preceitos do Mtodo correto,seja ele o racional de Descartes ou o empricode Bacon, acabou por ser criticada no sculoseguinte no interior do Iluminismo, o movi-mento filosfico que, no sculo XVIII,represen-tava o que havia de mais avanado e progressistano terreno das idias. No Iluminismo, as gran-

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    des conquistas do racionalismo cartesianoeram articuladas com a valorizao das expe-rincias individuais tal como promovidas pelosfilsofos empiristas, que formavam a outragrande corrente da Modernidade. Por diversoscaminhos, no sculo XVIII,a quase onipotnciado "eu", da razo universal e do mtodo seguroafirmada no sculo XVII foi criticada. Por umlado, isso representou uma conscincia maisprofunda, slida e complexa de toda a proble-mtica do conhecimento, mas, de toda a forma,comeou a se colocar em xeque a soberania do"eu", seja o "eu" da razo, seja o "eu" dos senti-dos purificados.

    Hume, um dos grandes filsofos dapoca, chega a negar que o "eu" seria algo est-vel e substancial que permanea idntico a simesmo ao longo da diversidade de suas expe-rincias: ele seria muito mais o efeito de suasexperincias do que o senhor de suas expe-rincias; somos, para Hume, algo que se formae se transforma nos embates da experincia ej no podemos nos conceber como base e sus-tentao dos conhecimentos e de ns mesmos.Nessa medida, o conhecimento entendido comodominio dos objetos por um sujeito soberanono pode mais se sustentar.

    Outro filsofo iluminista do sculo XVIII,Emanuel Kant, procura opor-se a essas formu-laes to radicais, mas aceita a problematiza-

    PRECONDIES SOCIOCULTURAIS ... 3S

    o da crena em conhecimentos absolutos. EmA crtica da razo pura, afirma que o homem stem acesso s coisas tais como se apresentampara ele: a isso ele chama "fenmeno". A nicaforma de produzirmos algum conhecimentovlido nos restringirmos ao campo dos fen-menos, pois as "coisas em si" (independentesdo sujeito) so incognoscveis. verdade que,ao mesmo tempo, Kant leva ainda mais longeas pretenses do "sujeito": se, de um lado eleno cr na capacidade de o homem conhecer averdade absoluta das "coisas em si", de outro,toda a questo do conhecimento radicalmentecolocada em termos subjetivos, pois tudo que "conhecvel" repousa na subjetividade humana.Essa subjetividade, contudo, no a subjetivi-dade particular de cada indivduo, a subjeti-vidade transcendental e universal do Homem.Embora essa subjetividade universal seja man-tida e valorizada como "condio de possibi-lidade" de todas as experincias, as outras, assubjetividades empricas e particulares de cadaum de ns, devem aprender a viver em ummundo de incertezas e hipteses nunca plena-mente confirmadas, procurando, sempre commuita dificuldade, exercer o controle racionalsobre seus impulsos, seus desejos, suas pro-penses. Para Kant, a soberania do sujeito, suaautonomia, uma tarefa supremamente dese-jvel - a meta de todo esforo tico - e ainda

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    possvel, mas sempre muito problemticaporque as necessidades, os desejos e os impul-sos nunca podero ser definitivamente sosse-gados pela razo.

    Alm da autocrtica iluminista, o sculoXVIII trouxe outras formas de crtica s preten-ses totalizantes do "eu", da razo universal edo Mtodo.

    O Romantismo nasceu no final dosculo XVIII exatamente como uma crtica aoIluminismo e, mais particularmente, vertenteracionalista do Iluminismo (com a vertenteempirista, os romnticos puderam at estabe-lecer uma convivncia muito mais amistosa).Ou seja, idia cartesiana de que o homem essencialmente um ser racional (o ser pen-sante do Cogito) contraposta a idia de que ohomem um ser passional e sensvel.

    Quando pensamos hoje em Romantismo,vem-nos mente algo suave, delicado e ligadoao amor, o que tambm no deixa de ser ver-dade. Mas a origem do movimento na.Alemanhateve um sentido bem distinto: uma primeiramanifestao romntica teve o nome de"Tempestade e mpeto", o que j sugere melhora caracterstica dessa sensibilidade. Trata-se deevidenciar a potncia dos impulsos e foras danatureza, em muito superior da conscinciaou do homem como um todo. A valorizao da

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    natureza ope-se, como algo mais original everdadeiro, civilizao com suas regras, seusmtodos e sua etiqueta.

    O Romantismo toma os mais diversosaspectos, o que torna muito difcil sua defini-o precisa, mas parece que ele regularmenterepresenta uma crtica modernidade e umanostalgia de um estado anterior perdido.

    Aquilo que na "fundao" da modernidadedeve ser excludo do "eu" ou mantido sob o fr-reo controle do Mtodo parece agora invadi-Ia.A razo destronada, o Mtodo feito em peda-os e o "eu" racional e metdico deslocado docentro da subjetividade e tomado agora comouma superfcie mais ou menos ilusria queencobre algo profundo e obscuro.

    Uma imagem clssica disso a pintura doingls Turner, que freqentemente pinta tem-pestades no mar, nas quais mal se definemos limites entre cu, mar, chuva e neblina; emalguns casos aparece um barco totalmente merc das foras naturais. O barco representa oempreendimento humano de controle racionale metdico do mundo, e a imagem no deixadvidas quanto sua impotncia.

    Assim, o Romantismo um momentoessencial na crise do sujeito moderno pela des-tituio do "eu" de seu lugar privilegiado desenhor, de soberano.

  • 38 PSICOLOGIA

    Alm disso, a Romantismo traz a expe-rincia de que a homem possu nveis de profun-didade que ele mesma, na entanto, desconhece.Paradoxalmente, portanto, h uma grande vala-rizaa da individualidade e da intimidade. Aidia de "gnio." expressa bem essa valorizao:ele seria um indivduo. naturalmente especial,dana de um dom nica que tem a obrigao derealizar; par outro lado, par seu mergulha emsi, ele tem uma grande ndsposo e dificul-dade em sua vida prtica. Trata-se de uma sen-sibilidade intimista e ao. mesma tempo. crentena grandosidade de sua misso. Quando. pen-sarnas na alta grau de individualismo. e solidopresentes na sculo. XX, inevitvel pensarmosna presena em ns da sujeita romntico.

    Ao.longo da sculo. XIX,afrmou-se a partirde diversas fontes a deposio da "eu" de seulugar privilegiada. Par exemplo: a idia de quea comportamento da homem determinadapar leis que no. pode controlar e que freqen-temente nem mesma conhece est presente napensamento. de Marx, entre outros: na mesmasentida vai a afirmao. da teoria da evoluode Darwin de que a homem um ser naturalcama as demais, no. possuindo uma origemdistinta ( imagem e semelhana de Deus).

    Mas talvez a ponto mais aguda dessa crisetenha sido. a filosofia de Nietzsche. Nela, asidias de "eu" ou "sujeita" so. interpretadas

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    cama fices (na que d continuidade crticade Hume suposta substancialidade e esta-bilidade da sujeita). Com seu procedimento,chamada "genealoga", Netzsche procura des-construr as fundamentas de toda a filosofiaacidental desde Plata. Basicamente, trata-sede mostrar cama cada elemento. tornado camafundamenta absoluto ou causa primeira de tudo.a que existe foi tambm, par sua vez, criadanum determinada momento com uma determi-nada finalidade. Se alga foi criada ao. longo datempo, no. eterna ou causa primeira. Assim,a "idia" platnica, Deus, a sujeita moderno deDescartes ou de Bacon so. reveladas cama cria-es humanas. Nossas crenas e valores esto.comprometidos com a perspectiva em que nascolocamos a cada instante. A crena em algafixa e estvel seria uma necessidade humana,na tentativa de crer que tem controle sobre adevir. Netzsche d um passa bem larga e radi-cal: no. s a homem deslocado da posio decentro. da mundo, cama a prpria idia de quea mundo. tenha um centro. ou uma unidade destruda. Assim, quando. Netzsche denunciaa carter ilusria e no. necessria de ta da afazer humana, isso. no. representa a defesa daabandono da iluso. em favor de outro modo.de ser mais legtima ou bem fundamentada(cama na crtica catlica ou romntca ma der-nidade). A iluso. no. pode ser substituda par

  • 40 PSICOLOGIA

    nada melhor por que simplesmente no existenada melhor. A questo para Nietzsche sabero quanto cada iluso em cada contexto se mos-tra til expanso da vida.

    No s o privilgio do "eu" na moderni-dade, mas toda a metafsica ocidental pareceser colocada em xeque a. Mas, como veremos,o projeto cientfico dos sculos XIX e XX e ohumanismo ressurgido no sculo XX mantmesse projeto vivo.

    A seguir, retomaremos o caminho daconstituio e dos desdobramentos da noode "subjetividade privada" por outro vis, odas condies socioeconmicas que deram sus-tentao ao processo de individualizao noocidente moderno. Ser a partir desse outroreferencial que poderemos compreender asdimenses culturais da modernidade por umoutro ngulo que nos ser bem til para enten-dermos o nascimento das psicologias.

    Sistema mercantil e individualizao

    No inicio da seo anterior, estivemosrelacionando a importncia qualitativa e quan-titativa das experincias da subjetividade priva-tizada aos' perodos de desagregao e conflitossocioculturais (sem nos preocuparmos com asorigens desses perodos, tarefa que competeaos historiadores). Convm assinalarmos, neste

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    momento, a existncia de um sistema social eeconmico que, talvez pela carga de conflitose transformaes que carrega consigo, apro-funda e universaliza aquelas experincias:referimo-nos ao sistema mercantil plenamentedesenvolvido.

    Em quase todas as sociedades, h algumaatividade de troca comercial, principalmenteem termos de trocas entre comunidades. Oproduto excedente de uma famlia, de um clou de uma aldeia pode ser de tempos em tem-pos trocado pelo produto excedente de outrasfamlias, cls ou aldeias "especializadas" emoutro tipo de produo. Nesses casos, a pro-duo efetuada para atender s necessidadesde quem produz, quer dizer, cada comunidadeprocura ser auto-suficiente. At recentemente,se fssemos ao interior do Brasil, observara-mos como inmeras grandes fazendas conti-nuavam produzndo muito daquilo que seusmoradores consumiam, e esses produtos noeram produzidos para serem trocados.

    Esse quadro muda quando se desenvolveuma produo para a troca, em que cada umpassa a produzir aquilo a que est mais capaci-tado. J encontramos a um forte motivo para aexperincia da subjetividade privatizada: cadaum deve ser capaz de identificar a sua especia-lidade, aperfeioar-se nela, identificar-se comela. Mas isso no basta. Os produtos produ-

  • 42 PSICOLOGIA

    zidos para a troca devem ser levados ao mer-cado. Neste, os produtores vo vender o quefazem e comprar aquilo que no produzem,mas de que necessitam para viver. Todo mundoque comprou ou vendeu conhece a situao debarganha: cada um querendo ser mais esperto,vender mais caro e comprar mais barato. O mer-cado cria inevitavelmente a idia de que o lucrode um pode ser o prejuzo do outro e que cadaum deve defender seus prprios interesses.Quando o mercado toma conta de todas as rela-es humanas, isto , quando todas as relaesentre os homens se do por meio de compra evenda de produtos elaborados por produtoresparticulares, unversalza-se a experincia deque os interesses de cada produtor so para elemais importantes do que os interesses da socie-dade como um todo e assim deve ser. Ora, essa exatamente a situao numa sociedade mer-cantil plenamente desenvolvida como a nossa.Mas nem sempre foi assim, nem preciso quesempre o seja. Enquanto for, o objetivo conti-nuar sendo, como dizia um comercial de tele-viso, "tirar vantagem".

    Porm ainda h mais a dizer. O mercadode produtos no tudo: h tambm o mercadode trabalho. Para este vo os homens que notm meios prprios para produzir e sobreviver,necessitando alugar sua capacidade de traba-lho para receber em troca um salrio com o

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    qual devem comprar os produtos de que neces-sitam. Como esses homens foram reduzidos dependncia dos proprietrios dos meios deproduo uma histria triste de exploraes eviolncias, roubos e guerras, mas que no cabeaprofundar neste momento. O importante agora avaliarmos os efeitos da experincia do indi-vduo no mercado de trabalho, quando este segeneraliza, sobre a subjetividade privatizada.

    Em primeiro lugar, o que se disse sobrea conscincia de sua especialidade como pro-dutor, de sua habilidade, destreza e rapidezaplica-se igualmente ao trabalhador assala-riado, embora muitas vezes esse trabalhador,pelo carter da atividade que exerce, venha aser submetido a uma atividade de tal modopadronizada que pouco lhe resta de seu. Masisso j uma outra histria a que voltaremosadiante.

    De forma a entender com mais profundi-dade o significado da economia mercantil paraa individualizao, devemos considerar commais ateno as condies que antecedem aprpria formao do regime assalariado. Paraque existam trabalhadores necessitados degarantir a prpria sobrevivncia, alugando suafora de trabalho, preciso que eles tenhamperdido suas condies mais antigas de vida eproduo. Isso significa a ruptura dos vnculosque nas sociedades tradicionais pr-capitalistas

  • 44 PSICOLOGIA

    uniam os produtores uns aos outros e todosaos meios de produo. A produo era sem-pre diretamente social: embora pudesse haveralgumas especializaes entre os membrosde uma famlia ou entre os membros de umapequena comunidade, a existncia de cada umdependia fundamentalmente de sua vinculaocom o grupo. Muitos dos meios de produopodiam ser de uso comunitrio, como florestase pastagens. E aqueles meios de produo par-ticulares eram to rsticos que o acesso a elesno encontrava problemas. Alm dos vnculoscom os meios de produo e da interdependn-cia comunitria, havia relaes entre senhorese servos ou escravos que se, por um lado conti-nham um elemento de explorao de uns pelosoutros, por outro lado, estabeleciam obrigaesde proteo, defesa e apoio dos fortes em rela-o aos fracos.

    Tudo isso precisa desaparecer para quesurja o trabalhador livre, que pode e necessitair ao mercado de trabalho para arranjar umaocupao. Essa liberdade, contudo, muitoambgua. Ela principalmente uma liberdadenegativa, isto , o sujeito, ao ganh-Ia, perdeuma poro de apoios e meios de sustentao.Perde a solidariedade do seu grupo: a famlia oua aldeia deixam de ser auto-suficientes, e cadaindivduo vai isoladamente procurar o seu sus-tento. Perde a proteo de um senhor: o patro

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    que emprega o assalariado no o manter seele ficar doente, por exemplo (isto hoje fica porconta do sistema da previdncia, que a formade fazer com que um assalariado pague a contada doena, da invalidez ou da aposentadoria dooutro). A sociedade fica, dessa forma, atomi-zada, quer dizer, em vez de comunidades pro-dutivas, temos indivduos livres produzindo ouvendendo sua fora de trabalho a proprietriosprivados. Mas esse indivduo livre um desam-parado. Ele pode escolher (at certo ponto),mas, mesmo que a escolha seja real, ele passaa conviver com a indeciso: seu destino, pelomenos teoricamente, passa a depender dele, desua capacidade, de sua determinao, de suafora de vontade, de sua inteligncia e, tam-bm, de sua esperteza, de sua arte de vencer,de passar por cima dos concorrentes, de chegarprimeiro - e de sua sorte. Ele tem, verdade, aliberdade de lutar por condies melhores, demudar de posio na sociedade (nasce pobre,mas pode morrer rico), o que, numa sociedademais tradicional, quase impossvel. Todavia,se pode subir, pode tambm descer, pode che-gar misria sem que ningum se preocupecom ele - e isso numa sociedade tradicionaltambm muito improvvel.

  • 46 PSICOLOGIA

    Ideologia liberal iluminista,romantismo e regime disciplinar

    Nos sculos XVIII e XIX desenvolveram-se na cultura ocidental duas formas de pensa-mento que refletem muito as experincias dasubjetividade privatizada numa sociedade mer-cantil em pleno processo de desenvolvimento:a ideologia Liberal Iluminista e o Romantismo.De acordo com a ideologia Liberal, cujas prin-cipais idias manifestaram-se na RevoluoFrancesa, os homens so iguais em capacidadee devem ser iguais em direitos. Sendo assim,todos devem ser livres. Contudo, para que essaliberdade no redunde em caos, todos devemser solidrios uns com os outros, sem renunciara essa liberdade. Se todos so iguais, naturalque devam ser livres para defender seus inte-resses sem limitaes. Entretanto, como todosso iguais, possvel supor que, em ltimaanlise, possam ser fraternos. Como veremosadiante, essa ltima suposio, infelizmente,ainda no se realizou ...

    No Romantismo do incio do sculo XIX,movimento que se expressou intensamenteno campo das artes e da filosofia, como vimosanteriormente -, reconhece-se a diferena entreos indivduos, e a liberdade exatamente aliberdade de ser diferente. Apesar de todosserem diferentes e nicos, l no fundo poss-

    PRECONDIES SOCIOCULTURAIS ... 47

    vel buscar uma comunicao entre esses seresdiferentes: nas artes, na religio e no patrio-tismo, por exemplo, as diferenas se anulam.

    Vemos, assim, que tanto na IdeologiaLiberal como no Romantismo se expressamos problemas da experincia subjetiva priva-tizada: segundo a Ideologia Liberal, todos soiguais, mas tm interesses prprios (indivi-duais); segundo o Romantismo, cada um diferente, mas sente saudade do tempo emque todos viviam comunitariamente e esperapelo retorno desse tempo. Enquanto isso novem, os romnticos acreditam que os grandes eintensos sentimentos podem reunir os homens,apesar de suas diferenas. J os liberais apos-tam na utpica fraternidade.

    Parece que de fato a liberdade individualacabou no sendo vivida como to boa assimporque, de um jeito ou de outro, todos parecemse defender contra o desamparo, a solido e aimensa carga de responsabilidade que implicaser livre, ser singular, ter interesses particu-lares e ser diferente. na busca de reduzir os"inconvenientes" da liberdade, das diferenassingulares, etc. que se foi instalando e sendoaceito entre ns, ocidentais e modernos, umverdadeiro sistema de docilizao, de domes-ticao dos indivduos, sistema que colocaem risco tanto as idias liberais como as romn-ticas, embora tente se disfarar mediante algu-

  • 48 PSICOLOGIA PRECONDIES SOCIOCULTURAIS ... 49

    Bem, at agora falamos principalmente deuma das condies para que surjam projetos de

    psicologia cientfica: uma clara idia da expe-rincia da subjetividade prvarzada. Mas houtra: preciso que essa experincia entre emcrise, e algumas das manifestaes filosficasdessa crise j foram apontadas nos itens ante-riores. Enquanto a subjetividade prvatzadano est sendo contestada (e o Liberalismo eo Romantismo no a contestam, pelo contrrioa afirmam como dado nquestonvel), no hpor que se fazer cincia psicolgica. Fazer cin-cia sempre ir alm das aparncias. Para isso, preciso que eu desconfie delas, que elas nosejam compreendidas facilmente. No comeodo conhecimento h sempre uma desconfianae no fim h sempre uma decepo. Mas' o queter levado os homens do sculo XIX a descon-fiarem de suas prprias experincias?

    A subjetividade privatizada entra em crisequando se descobre que a liberdade e a dife-rena so, em grande medida, iluses, quandose descobre a presena forte, mas sempre dis-farada, das Disciplinas em todas as esferas davida, inclusive nas mais ntimas e profundas.A crena de que a fraterndade seria possvel,ainda que todos defendessem seus interessesparticulares, no .sobrevveu por muito tempo.Os interesses particulares levam a conflitos;a liberdade para cada um tratar de seu neg-cio desencadeou crises, lutas e guerras. Ostrabalhadores no sculo XIX foram aos pou-

    mas alianas com o Liberalismo e com o prprioRomantismo. Esse sistema que envolve a ela-borao e aplicao de tcnicas "cientficas"de controle social e individual ser chamadode Regime Disciplinar ou, mais simplesmente,"Disciplinas" e pode ser encontrado muitofacilmente nas prticas de todas as grandesagncias sociais, como as escolas, as fbricas,as prises, os hospitais, os rgos administra-tivos do Estado, os meios de comunicao demassa, etc. Embora essas Disciplinas reduzamem muito efetivamente o campo de exerci-cio das subjetividades privatizadas, impondopadres e controles muito fortes s condutas, imaginao, aos sentimentos, aos desejos es emoes individuais, faz parte de seu modode funcionamento dissimular-se, esconder-se,deixando-nos crer que somos cada vez maislivres, profundos e singulares. claro, porm,que vai se instalando um certo mal-estar evo se criando condies para a suspeita doshomens em relao a si mesmos. disso, docrescimento das Disciplinas e de seus efeitossubjetivos que trataremos no prximo item.

    A crise da subjetividade privatizadaou a decepo necessria

  • 50 PSICOLOGIA

    cos descobrindo que se defenderiam melhorunidos em sindicatos e partidos do que sozi-nhos. O Estado, a administrao pblica noficaram inertes. Para combater os movimentosoperrios reivindicatrios, para pr um poucode ordem na vida social - em que cada umdefendia o que era seu sem pensar nas conse-qncias para todos - e para defender os inte-resses dos produtores de uma nao contra osdas outras, a administrao pblica cresceu,cresceram o Estado, a burocracia, cresceramas foras armadas. A partir da, como ficavaaquela idia de liberdade individual? Ainda nosculo XIX, conjuntamente com as burocracias,cresce a grande indstria baseada na produopadronizada e mecanizada, cresce o consumode massa para os produtos industriais. Ondeficava, ento, aquela idia de que cada um nico e diferente dos demais?

    Quando os homens passam pelas expe-rincias de uma subjetividade privatizada e aomesmo tempo percebem que no so to livrese to singulares quanto imaginavam, ficamperplexos. Pem-se a pensar acerca das cau-sas e do significado de tudo que fazem, sen-tem e pensam sobre eles mesmos. Os temposesto ficando maduros para uma psicologiacientfica.

    Ao lado dessa necessidade que emergeno contexto das existncias individuais, de se

    PRECONDIES S~)cIOCULTURAIS .. 51

    saber o que somos, quem somos, como somos,por que agimos de uma ou outra maneira, surgepara o Estado a necessidade de recorrer a pr-ticas de previso e controle: como lidar melhorcom os sujeitos individuais?; como educ-los deforma mais eficaz, tren-los, selecon-los paraos diversos trabalhos? Em todas essas questesse expressa o reconhecimento de que existe umsujeito individual e a esperana de que poss-vel padroniz-Io segundo uma disciplina, nor-matz-lo, coloc-Io, enfim, a servio da ordemsocial. Surge, desse modo, a demanda por umapsicologia aplicada, principalmente nos camposda educao e do trabalho. Ou seja, o RegimeDisciplinar, em si mesmo, exige a produo deum certo tipo de conhecimento psicolgico deforma a tornar mais eficazes suas tcnicas decontrole. Mas tambm as subjetividades for-madas pelos modelos liberais e romnticos,sentindo-se contestadas e problemticas, soatradas pelos estudos psicolgicos.

    assim que no final do sculo XIX estodadas as condies para a elaborao dos pro-jetos de psicologia como cincia independente epara as tentativas de definio do papel do psi-clogo como profissional nas reas de sade,educao e trabalho. Toda aquela vertente dafilosofia moderna que, como estivemos vendoanteriormente, vinha pondo em questo desdeo sculo XVIII a soberania do sujeito - alguns

  • 52 PRECONDIES SOCIOCULTURAIS ...PSICOLOGIA

    filsofos iluministas (principalmente os ernp-ristas) e os filsofos romnticos - dar subs-dios importantes para a tarefa de construiruma psicologia como rea especfica de pes-quisa e conhecimento.

    cia se generaliza com o colapso da ideologiaLiberal Iluminista e do Romantismo que, cadaum sua maneira, mantinham inquestionvel anoo de subjetividade individual, embora j seencaminhassem para posies muito crticas arespeito. Esse colapso est associado ao desen-volvimento e ao domnio crescente do RegimeDisciplinar e se expressa em elaboraes filo-sficas que pem em questo a soberania, aautonomia e a identidade dos indivduos.

    3) A suspeita de que a liberdade e a sin-gularidade dos indivduos so ilusrias, a qualemerge com o declnio das crenas liberais eromnticas, abre espao, finalmente, para osprojetos de prevso e controle cientficos docomportamento individual. Esse ser um dosprincipais objetivos da psicologia como cin-cia a servio das Disciplinas. Mas abre espao,tambm, para problematizaes tericas e pr-ticas das subjetividades totalmente avessas aoregime disciplinar e que alimentaro muitasdas escolas contemporneas do pensamentopsicolgico e, principalmente, suas incidnciasna clnica e na educao.

    Sntese

    Convm, a ttulo de sntese, recapitular-mos as idias expostas nesta seo antes depassarmos ao tpico seguinte.

    1) A experincia da subjetividade priva-tizada, em que ns nos reconhecemos comolivres, diferentes, capazes de experimentarsentimentos, ter desejos e pensar independen-temente dos demais membros da sociedade uma precondio para que se formulem proje-tos de psicologia cientfica. Embora para nsessas experincias sejam bvias, os estudos his-tricos e antropolgicos revelam que nem sem-pre assim em outras sociedades e culturas.

    2) Outra precondio para a formulao deprojetos de psicologia cientfica a experinciade que no somos assim to livres e to diferen-tes quanto imaginvamos. a suspeita de queh outras "foras invisveis" nos controlandoe de que no conseguimos espontaneamentever com clareza as causas e os significados denossas aes que nos leva a investigar o queh por detrs das aparncias. Essa experin-

    53

  • A PRTICA CIENTFICA EAEMERGNCIA DA PSICOLOGIACOMO CINCIA

    Conhecimento cientfico:privacidade e diferena

    As condies socioculturais at agora refe-ridas foram o terreno sobre o qual puderamser elaborados os projetos de psicologia comocincia independente e, o que ainda maisimportante, o terreno propcio ampla difusodesses projetos e sua assimilao crescentepelo conjunto da sociedade.

    Para entendermos, contudo, o comeo dapsicologia "cientfica" precisamos considerarmais de perto o que se passava entre os cientis-tas e os filsofos do sculo XIX,pois foram elesque, levados por preocupaes com a prpriacincia, iniciaram a demarcao desse novodomnio de conhecimento.

    As cincias naturais, tal como as conhe-cemos hoje, so formas bastante recentes deproduo de conhecimento. Foi apenas a partirdos quatro ltimos sculos que se criaram osatuais modelos de cincia da natureza.

  • 56 PSICOLOGIA

    Nas prticas cientficas modernas a posi-o do sujeito que produz o conhecimento bastante contraditria.

    Por um lado, o cientista sente-se com opoder e com o direito de lidar com os fen-menos naturais para conhec-los, desvendarseus mistrios, domn-los, manpul-los emexperimentos bem controlados, etc. Nenhumadessas atitudes e procedimentos possvel,por exemplo, enquanto subsista um respeitomstico e religioso pela natureza - caso em quedevemos apenas am-Ia, apreci-Ia, respeit-Ia. Em outras palavras: a cincia moderna estbaseada na suposio de que o homem osenhor que tem o poder e o direito de colocar anatureza a seu servio. Essa suposio est cla-ramente associada ao que dissemos acerca doaprofundamento da experincia subjetiva indi-vidualizada, j que esta enfatiza a liberdadedos homens para decidir e agir de acordo comsua prpria cabea e sem qualquer tipo de limi-tao, elaborando suas crenas e avaliando-asa partir de suas experincias pessoais, de suasconvenincias e interesses, livres das restriesimpostas pelas tradies.

    Por outro lado, os procedimentos cientfi-cos exigem que os cientistas sejam capazes de"objetividade", isto , que deixem de lado seuspreconceitos, seus sentimentos e seus desejospara obterem um conhecimento "verdadeiro".

    A PRTICA CIENTFICA E A EMERGNCIA:. 57

    Como disse Francis Bacon (1561-1626) - o fil-sofo ingls que, como vimos anteriormente, foium dos precursores do novo esprito cientficoe contemporneo de Descartes -, "a naturezano se vence seno quando se lhe obedece".Para vencer preciso obedecer e para obedecer preciso disciplinar a mente, eliminar todos os"subjetivismos". A metodologia cientfica quevem se desenvolvendo desde os quatro lti-mos sculos representa exatamente o esforode disciplinar o esprito para melhor obedecer natureza.

    Ora, essa disciplina no fcil e foi o pr-prio esforo para imp-Ia que levou os cientis-tas a reconhecerem a fora e a profundidadedos fatores subjetivos. difcil no confundiro que se espera encontrar com o que "de fato"se encontra no fim de uma pesquisa, o que sequer ver com o que se v "de fato", Pode, tam-bm, ser difcil conciliar o que um indivduoconclui com as concluses de outro indivduoque observou o mesmo fenmeno; e mesmo oque o indivduo observou com o que foi obser-vado pelos demais. Enfim, a prpria liberdadedos sujeitos e suas diferenas que ficam acen-tuadas no momento em que se faz um enormeesforo para ser objetivo.

    Nessa medida, as prticas cientficas con-triburam para o reconhecimento, entre osprprios cientistas, com seus ideais de objetvi-

  • 58 PSICOLOGIA

    dade, de que h fatores subjetivos e individuaispermanentemente em ao. Bacon chamou-osde "dolos do conhecimento", e a denncia des-ses dolos a primeira obrigao do filsofo edo cientista. Isto refora a idia de uma expe-rincia subjetiva individualizada, privada, aces-svel apenas a quem a vive.

    Mas para a cincia progredir seria neces-srio conhecer e controlar essa subjetividadee essas diferenas individuais, e assim queo homem, o sujeito individual, deixa de serapenas um possvel pesquisador para vir a setornar um possvel objeto da cincia. A episte-mologia (teoria do conhecimento) e a metodo-logia (regras e procedimentos da produo doconhecimento vlido) desembocam na psico-logia: a denncia e o expurgo dos "dolos doconhecimento" exigem um estudo prvio dasubjetividade e de seus subterrneos.

    Os estudos psicolgicos cientficos come-aram e se desenvolveram sempre marcadospor essa contradio: por um lado, a cinciamoderna pressupe sujeitos livres e diferen-ciados - senhores de fato ede direito da natu-reza; por outro, procura conhecer e dominaressa prpria subjetividade, reduzir ou mesmoeliminar as diferenas individuais, de forma agarantir a "objetividade", ou seja, a validadeintersubjetiva dos achados. Em contraposi-o, como veremos adiante, muitos psiclogos

    A PRTICA CIENTFICA E A EMERGNCIA .. 59

    repudiam essa meta de conhecer para dominaros meandros da subjetividade e afirmam, aocontrrio, que o que interessa conhecer essesaspectos profundos e poderosos do "eu" paradar-lhes voz, para expand-los, para faz-losmais fortes e livres. claro que os que pensamassim querem fazer da psicologia uma "cin-cia" sui qeneris no s por ter um campo e umobjeto prprios, mas por adotar, em relaos demais cincias, outros mtodos e outrasmetas.

    Diante disso, estamos agora em condiesde entrar no domnio das psicologias "cien-tficas" (ou nem tanto!) para tentarmos com-preender os principais projetos de psicologiaque a foram elaborados com toda a sua ator-doante diversidade terica, metodolgica e depropsitos.

  • OS PROJETOS DE PSICOLOGIACOMO CINCIA INDEPENDENTE

    O projeto de Wundt

    o alemo W. Wundt (1832-1920) costumaser reconhecido como um pioneiro na formula-o de um projeto de psicologia como cinciaindependente, na criao de instituies desti-nadas pesquisa e ao ensino da pscologa ena formao de inmeros psiclogos no salemes, mas tambm de outras nacionalida-des. Para Wundt, a psicologia era uma cinciaintermediria entre as cincias da natureza eas cincias da cultura. Sua obra se estende dapsicologia experimental fisiolgica psicolo-gia social. Ou seja, desde seu inicio, o lugar dapsicologia entre as cincias um tanto incerto,e um dos mritos de Wundt foi o de concebera psicologia nessa posio intermediria. Oobjeto da psicologia , para Wundt, a experin-cia imediata dos sujeitos, embora ele no estejaprimordialmente interessado nas diferenasindividuais ent~e esses sujeitos. Experinciaimediata a experincia tal como o sujeito avive antes de se pr a pensar sobre ela, antesde comunic-Ia, antes de "conhec-Ia". , em

  • 62 PSICOLOGIA OS PROJETOS DE PSICOLOGIA. .. 63

    outras palavras, a experincia tal como se d.Contudo, Wundt no reduz a tarefa da psicolo-gia descrio dessa experincia subjetiva. Elequer ir alm e tenta faz-lo de duas formas: a)utilizando o mtodo experimental, ele pretende

    . pesquisar os processos elementares da vidamental que so aqueles processos mais forte-mente determinados pelas condies fsicasdo ambiente e pelas condies fisiolgicas dosorganismos. Com o mtodo experimental, emsituaes controladas de laboratrio, Wundtprocura analisar os elementos da experinciaimediata e as formas mais simples de combi-nao desses elementos. Mas isso apenas ocomeo da psicologia, e no o mais impor-tante para Wundt; e b) por meio da anlise dosfenmenos culturais - como a linguagem, ossistemas religiosos, os mitos, etc. -, segundoWundt, manifestam-se os processos superioresda vida mental - como o pensamento, a ima-ginao, etc. A psicologia social de Wundt nousa o mtodo experimental, mas os mtodoscomparativos da antropologia e da filologia, eseu objetivo a investigao dos processos desntese, porque para Wundt a experincia ime-diata no nem uma coisa desorganizada nemuma mera combinao mecnica de elementos:a "experincia imediata" seria o resultado deprocessos de sintese criativa, em que a subje-tividade se manifestaria como vontade, como

    capacidade de criao. Ao lado da causalidadefsica, Wundt reconhecia a existncia de umacausalidade psquica, ou seja, de princpios davida mental independentes dos princpios queexplicam o comportamento dos corpos fsi-cos e fisiolgicos. A dificuldade de Wundt eraa de entender como, no homem - que umaunidade psicofsica, em que o corpo e a menteno existem separados -, as duas causalidadesse ligavam uma outra. Wundt acaba criando,assim, duas psicologias (embora ele prpriopense que est fazendo uma coisa s): a) apsicologia fisiolgica experimental, em que acausalidade psquica reconhecida, mas no enfocada em profundidade - e nesse sentidono se cria nenhum problema mais srio paraligar essa psicologia s cincias fsicas e fisio-lgicas; e b) a psicologia social ou "dos povos",cuja preocupao exatamente a de estudar osprocessos criativos em que a causalidade ps-quica aparece com mais fora. Como esses pro-cessos so essencialmente "subjetivos" - mass ocorrem claramente na vida social -, no sepodem fazer experimentos controlados comeles, apenas estud-los por meio de seus pro-dutos socioculturais.

    Para Wundt, o domnio da psicologia eravasto e complexo, porque explicar e compreen-der a experincia imediata exigiam tanto umaaproximao com as cincias naturais como

  • 64 PSICOLOGIA OS PROJETOS DE PSICOLOGIA. ..

    uma aproximao com as cincias da sociedadee da cultura. Mas, na hora de juntar os doisenfoques metodolgicos e de juntar as duasimagens de homem no conceito de "unidadepsicofsica", as dificuldades eram imensas, e osdiscpulos de Wundt, em sua maioria, desisti-ram de acompanhar o mestre e foram procurarsolues menos complicadas, embora, talvez,muito mais pobres.

    psicolgicos, mas a explica em termos empres-tados de uma cincia natural. Com isso, a psi-cologia deixa de ser to independente comopretendia Wundt. Em compensao, comea adesaparecer o problema com a unidade pscof-sica: Titchener defende a posio denominadaparalelismo psicofsico, em que os atos mentaisocorrem lado a lado a processos psicofsolg-coso Um no causa o outro, mas o fisiolgicoexplica o mental. Como a mente e o corpoandam lado a lado, possvel fazer psicologiausando exclusivamente, segundo Titchener, osmtodos das cincias naturais: a observao ea experimentao. A nica diferena seria a deque, na psicologia, a observao se daria sob aforma de auto-observao ou introspeco, emque os sujeitos experimentais seriam tre,inadospara observar atentamente e descrever comtotal objetividade suas experincias subjetivasem situaes controladas de laboratrio. Nessamedida, Titchener deixa de lado toda a obra deWundt orientada para a psicologia dos povos.

    Uma lio importante que se pode tirarquando se pensa na relao entre Wundt eTitchener a seguinte: Wundt, ao procurarser fiel concepo da psicologia como cin-cia intermediria, mete-se numa grande enras-cada metodolgica, mas preserva para a suaspropostas uma potencialidade a que semprepodemos retornarcomo fonte de inspirao.

    o projeto de TitchenerDepois de Wundt so inmeros os autores

    que tentaro colocar a psicologia no campo ape-nas das cincias naturais. o caso de Titchener(1867-1927) - um dos mais famosos alunos deWundt e principal responsvel pela divulgaoda obra deste nos EUA -, que rede fine o objetoda psicologia como sendo a experincia depen-dente de um sujeito - sendo este concebidocomo um puro organismo e, em ltima anlise,como um sistema nervoso -, e no mais a expe-rincia imediata. Isso significa que ir alm daexperincia do sujeito, para elucd-la, acarre-taria a busca de justificativas fsolgcas paraos fenmenos da vida mental. Titchener nonega a existncia da mente, mas esta perde suaautonomia: depende sempre e se explica com-pletamente em termos do sistema nervoso. Opsiclogo descreve a experincia em termos

    65

  • 66 PSICOLOGIA

    O que aconteceu 100 anos depois da funda-o do famoso .laboratrio de Leipzig, quando,nas comemoraes do acontecimento, redesco-bru-se o pensamento de Wundt como esteio damoderna psicologia cognitivista, da nova psico-logia social, da psicolingstica, etc. Titchener,ao contrrio, tornou a "encrenca" metodol-gica muito menor quando colocou a psicologiatotalmente subordinada ao campo das cinciasnaturais. Mas isso a custo de uma reduo dealcance e de interesse para as suas propostas. Eesse fenmeno parece se repetir muitas vezes:os projetos de psicologia mais interessantesso os que mais dificuldades tm de se afir-mar plenamente em termos epistemolgicos emetodolgicos.

    A psicologia funcional

    Em oposio psicologia titcheneriana,mas tambm situando os estudos psicolgicosentre as cincias naturais, surgiu nos EUA omovimento da psicologia funcional, represen-tado por autores como]. Dewey (1859-1952),]. Angel (1869-1949) e H. A. Carr (1873-1954).

    Os psiclogos funcionalistas definem apsicologia como uma cincia biolgica interes-sada em estudar os processos, operaes e atospsquicos (mentais) como formas de interaoadaptativa. Partem do pressuposto da biolo-

    OS PROJETOS DE PSICOLOGIA .. 67

    gia evolutiva: os seres vivos, e entre eles osanimais, sobrevivem se tm as caractersticasorgnicas e comportamentais adequadas a suaadaptao ao ambiente. Um certo nvel de adap-tao envolve as capacidades de sentir, pen-sar, decidir, etc., ou seja, o nvel propriamentepsquico. As operaes e processos mentaisseriam, assim, instrumentos de adaptao e seexpressariam claramente nos comportamentosadaptados. Para os psiclogos funcionalistas,o objeto da psicologia so os processos e ope-raes mentais, mas o estudo cientfico dessesprocessos exige uma diversidade de mtodos.No excluem a auto-observao, embora noaprovem a introspeco experimental no estilotitcheneriano, porque esta seria muito artificial.No confiam totalmente na auto-observao,dadas as suas dificuldades cientficas: impos-svel conferir publicamente se uma auto-obser-vao foi bem-feita e, por isso, difcil chegar aum acordo baseado em observaes desse tipo.Em compensao, se os processos e operaesmentais se expressam em comportamentose estes so facilmente observveis, podemosestudar indiretamente a mente a partir doscomportamentos adaptativos. Convm obser-var que, apesar do movimento funcionalistacomo um movimento parte e independenteter se dissolvido, vrias das idias fundamen-tais dessa escola esto presentes em muito

  • 68 PSICOLOGIA

    do que se faz at hoje no campo da pesquisapsicolgica. Na verdade, a maior parte do quese produziu e se produz no campo da psicolo-gia, entendida como cincia natural, pode serinterpretada como diferentes verses do pen-samento funcional.

    o comportamentalismoEm completa oposio psicologia de

    Titchener e em relativa oposio ao funciona-lismo - mas devendo a ele alguns pressupostosbsicos - surgiu, no comeo do sculo XX, umoutro projeto de psicologia cientfica: o com-portamentalismo. Segundo esse projeto, elabo-rado originalmente pelo psiclogo americano ].B.Watson (1878-1958), o objeto da "psicologia"cientfica j no a mente (por isso o termo psi-cologia foi colocado entre aspas). O objeto oprprio comportamento e suas interaes como ambiente. O mtodo deve ser o de qualquercincia: observao e experimentao, mas sem-pre envolvendo comportamentos publicamenteobservveis e evitando a auto-observao.

    Apesar de se apresentar como uma opo-sio s correntes dominantes na psicologia, ocomportamentalismo foi criado com base emmuitas das posies defendidas por aquelasmesmas correntes que, de uma certa forma,criaram as condies favorveis para o seu

    os PROJETOS DE PSICOLOGIA .. 69

    desenvolvimento. Por exemplo, a doutrina doparalelismo psicofsico tirava da vida mentalsua especiflcidade e sua importncia: o ps-quico apenas acompanharia o fsico e seriaexplicado por ele, mas ambos no interagiriam(no exercendo influncia sobre o comporta-mento). Ora, neste caso, qual o sentido de secontinuar estudando a mente? Se Titchener jassumia a posio de que os mesmos mtodosdas cincias naturais experimentais podem seradotados pela psicologia, no seria mais sen-sato ir at as ltimas conseqncias e acabarcom a nica diferena (a auto-observao emvez da observao externa e pblica)? Metadedo caminho j fora percorrido pelos psiclo-gos funcionais, que aprovavam o uso de mto-dos objetivos no estudo psicolgico. SegundoWatson, era preciso dar outros passos, abando-nando de vez a auto-observao. Redefinindo apsicologia como "cincia do comportamento",Watson podia no s se livrar do mtodo daauto-observao, to discutvel, mas resolvia,tambm, a questo que desde Wundt vinha per-turbando os psiclogos: a questo da "unidadepsicofsica". A partir de agora, supunha Watson,j no seria necessrio dizer que mente e corpointeragem ou que somente caminham lado alado: vamos estudar o comportamento, isto ,s movimentos do corpo e suas relaes com

    o ambiente. Com o comportamentalismo, pela

  • 70 PSICOLOGIA

    primeira vez, os estudos psicolgicos "deramas costas" experincia imediata. Tudo aquiloque faz parte da experincia subjetiva indivi-dualizada deixa de ter lugar na cincia, sejaporque no tem importncia, seja porque no acessvel aos mtodos objetivos da cincia.

    Nessa medida, o "sujeito" do compor-tamento no um sujeito que sente, pensa,decide, deseja e responsvel por seus atos: apenas um organismo. Enquanto organismo, oser humano se assemelha a qualquer outro ani-mal, e por isso que essa forma de concebera psicologia cientfica dedica uma grande aten-o aos estudos com seres no humanos, comoratos, pombos e macacos, entre outros. Essessujeitos no falam, mas isso no representaum obstculo para o comportamentalismo deWatson, j que ele no tem o mnimo interessena "vvncia" do sujeito, na sua experincia ime-diata. O comportamentalismo watsoniano inte-ressa-se exclusivamente pelo comportamentoobservvel, com o objetivo muito prtico deprev-l o e control-lo de forma mais eficaz. Ofuncionalismo est presente tanto nessa nfasepragmtica - o que interessa o conhecimentotil - como na idia bsica de que comportar-se interagir adaptativamente com o meio.

    A perspectiva de controle sobre o compor-tamento de Watson enquadra-se na busca deuma sociedade administrativa e estritamente

    OS PROJETOS DE PSICOLOGIA. .. 71

    funcional. A literatura do incio do sculo XXconstruiu utopias (ou ant-utopias"), como1984, O processo, Admirvel mundo novo ou,nos anos 60, A laranja mecnica, que talvezrepresentem o temor pela possibilidade de efe-tivao de tal controle.

    Projetos de psicologiae condies de produo

    Antes de prosseguirmos, convm teceralguns comentrios relacionando esses projetosde psicologia s condies sococulturas quepermitiram e incentivaram seu aparecimento.

    Recordemos que as condies para aemergncia de projetos de psicologia cientficaeram duas: a) um alto nvel de elaborao daexperincia subjetiva privatizada; e b) a crisedessa experincia, com o reconhecimento deque o sujeito no to livre como julga, nemto nico como cr. isso que leva necessi-dade de superar a experincia imediata paracompreend-Ia e explic-Ia melhor.

    Em Wundt, Titchener e nos psiclogosfuncionalstas, vimos tentativas de partir daexperincia imediata rumo a explicaes fisio-lgicas, biolgicas ou socioculturais. Com ocomportamentalismo de Watson, a experinciaimediata totalmente desprezada: a finalidade

  • 72 PSICOLOGIA

    da psicologia agora seria o estudo do compor-tamento independentemente do que o sujeitopensa, cr, sente ou deseja.

    Vimos, tambm, que essa posio foi pre-cedida de alguns passos j dados pelos autoresque haviam reduzido o papel da vida mental(como Titchener) ou que haviam posto em ques-to a auto-observao (como os funcionalistas).Se a mente no interage com o fsico - que a posio do paralelismo psicofsico - e se aintrospeco no um bom mtodo cientfico,a concluso necessria a comportamentalista:estudemos apenas os comportamentos adapta-tivos e adotemos apenas os mtodos objetivos.Com isso, todavia, a psicologia propriamentedita acaba.

    O comportamentalismo, na verdade, no um projeto de psicologia cientfica, maso projeto de uma nova cincia - a cincia docomportamento - que viria ocupar o lugarda psicologia. Essa nova cincia deveria ser,segundo Watson, uma cincia natural, umramo da biologia. O comportamentalismo levas ltimas conseqncias a tarefa cientfica deir alm das aparncias, ou seja, de ir alm daexperincia tal como se d. Essa uma tarefade desiludir e, sem dvida, o comportamen-talismo a cumpre rigorosamente: toda a ricaexperincia subjetiva dos indivduos expulsada cincia do comportamento, todas as nossas

    OS PROJETOS DE PSICOLOGIA ... 73

    crenas de que somos seres livres, autocons-cientes, responsveis e nicos so ridiculariza-das; somos apenas organismos sujeitos s leisgerais do comportamento na sua interao como ambiente.

    S que o comportamentalismo cumpreessa tarefa de desiludir sem conseguir expli-car a experincia imediata, ou seja, nega-a, masno a compreende. O problema que ela nodeixa de existir por causa disso, e esta acabasendo a razo por que ningum consegue seidentificar com a imagem de homem propostapelo comportamentalismo watsoniano. Todossentem que, apesar da crise e das dvidas, huma experincia da subjetividade individuali-zada que, embora em crise, no pode ser sim-plesmente negada.

    o reconhecimento da experincia ime-diata subjetiva que sustenta o esforo dospsiclogos que definem a psicologia como oestudo da subjetividade individualizada e daexperincia imediata. Muitos psiclogos e fil-sofos, contemporneos de Wundt e Titchener,dos psiclogos funcionalistas e de Watson, vminsistindo na necessidade de a psicologia dedi-car-se ao estudo da experincia imediata dossujeitos, sem deform-Ia. Nesse sentido, elestambm negam a auto-observao controladaem situao experimental, como era efetuadapor Titchener - e assim se aproximam dos psi-

  • 74 PSICOLOGIA

    clogos funcionalistas. Menos, ainda, admitema aplicao dos mtodos objetivos de observa-o. O objetivo desses psiclogos a compre-enso dos seres humanos mediante a captaode suas "vvncas", de suas experincias ime-diatas, subjetivas e individualizadas.

    Ou seja, se no contexto da crise da expe-rnca.da subjetividade individualizada ocorreuma ciso entre a vivncia e o comportamento,sendo que o que eu vivo, sinto, penso, desejo,etc. no se expressa diretamente na minha ao,e esta, que j no to minha assim, passa aser controlada por outras foras, abre-se umespao para uma opo fundamental: o com-portamentalismo deixa de lado a vvnca paratentar identificar as foras biolgicas e ambien-tais que controlam o comportamento, enquantoas psicologias "hurnanstas" procuram captaras vvncas na sua intimidade e na sua priva-cidade. Ao f'az-lo, porm, tornam-se incapazesde duas coisas: em primeiro lugar, de explicaros comportamentos, pois s esto interessadosna compreenso de como o sujeito "vive", masno em por que ele age assim e no de outraforma. Em segundo lugar, de ultrapassar aexperincia imediata, de question-Ia, explic-Ia e compreend-Ia em maior profundidade.Tornam-se, enfim, incapazes de fazer psico-logia cientfica. Em conseqncia, essas psico-logias humanistas, que so antigas, mas esto

    OS PROJETOS DE PSICOLOGIA .. 75

    sempre em moda, longe de desfazerem iluses,muitas vezes contribuem para que as ilusesde liberdade e singularidade sobrevivam nummundo em que, concretamente, h cada vezmenos liberdade e cada vez mais massificao.Apesar de tudo, necessrio reconhecer que,ao insistir na subjetividade individualizada, ospsiclogos "humanstas" chamam a atenopara um aspecto que o comportamentalismo deWatson rejeita e que, assim fazendo, em vez defundar uma psicologia cientfica, tenta mat-Iae enterr-Ia.

    A psicologia da Gestalt

    Passemos agora aos projetos de psicologiacientfica que, sem negar a experincia subje-tiva, procuram compreend-Ia e explic-Ia.

    Ainda no comeo do sculo XX, sur-giu outro projeto de psicologia cientfica naAlemanha. Essa escola psicolgica denominou-se "psicologia da Gestalt", palavra alem dedifcil traduo: ora traduz-se por psicologiada estrutura, ora por psicologia da totalidade,ora por psicologia da forma, e freqentementeconserva-se o termo alemo no traduzido ouaportuguesado, como na denominao "gestal-tismo". Os psiclogos gestaltistas mais impor-tantes - M. Wetheimer (1880-1943); K. Koffka(1886-1941) e W.Kohler (1887-1967) partiam da

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    experincia imediata e adotavam, como proce-dimento para captao da experincia tal comose dava ao sujeito, o mtodo fenomenolgico.Esse mtodo consiste na descrio ingnua dosfenmenos tais como aparecem na conscincia,antes de qualquer reflexo ou conhecimento,ou de qualquer tentativa de anlise. Aplicandoo mtodo fenomenolgico, os gestaltistas des-cobriram que todos os fenmenos da percep-o, da memria, da soluo de problemas, daafetividade, ete. eram vividos pelo sujeito sob aforma de estruturas, isto , sob a forma de rela-es entre partes que faziam com qu a formaresultante fosse mais que a mera soma dassuas partes. Assim, aproximavam-se da idia deWundt de que a experincia imediata produtode processos de sntese em que os elementosse fundem e adqurem novos signficados. Essaidia, porm, estava particularmente presentena sua psicologia dos povos, que no conquis-tara muito respeito na comundade cientfica.Ao contrrio de Wundt, os gestaltistas chegama essas concluses experimentalmente e, dessamaneira, procuram demonstrar o carter estru-tural dos fenmenos da experincia. Mas noficam nsso: eles procuram transpor a experin-cia imediata e relacion-Ia com o mundo fsicoe fisiolgico. Para eles o conceito de "Gestalt"permite unificar todas as cincias fsicas, bio-lgicas e da cultura, de forma que a psicologia

    os PROJETOS DE PSICOLOGIA. .. 77

    no precisa se repartir entre elas para existir.A undade psicofsica no apresenta proble-mas para os gestaltistas, j que eles crem quea natureza fsica, social e psicolgica conce-bvel em termos de estruturas isomrficas, ouseja, de estruturas formalmente equivalentes.No podemos, neste captulo, aprofundar acompreenso do isomorfismo proposto pelosgestaltistas. O que convm enfatizar aqui ocarter do projeto de psicologia cientfica dosgestaltistas, que comporta dois aspectos essen-ciais: a) o reconhecimento da experincia ime-diata; e b) a preocupao de relacionar essaexperincia com a natureza fsica e biolgica ecom o mundo dos valores socioculturais.

    o comportamentalismo diferenciado:o behaviorismo radical de Skinner

    Um outro projeto de psicologia cientficafoi desenvolvido pelo psiclogo americanoB. F. Skinner (1904-1990). Embora se trate deum comportamentalismo, o projeto de Skinnerafasta-se imensamente do de Watson, sendoum erro absurdo reuni-Ias numa mesma an-lise. Skinner deu enormes contribuies aoestudo das interaes entre organsmos vivose seus ambientes, adotando de forma rigorosaos procedimentos experimentais. No entanto,no a essa parte de sua obra que nos referi-

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    mos quando atribumos ao projeto de Skinnerum lugar de destaque no campo da psicologia.Skinner torna-se importante para a psicolo-gia, alm da sua importncia para o estudo docomportamento dos organismos -, quando sepe a falar da subjetividade: do mundo "pri-vado" das sensaes, dos pensamentos, dasimagens, etc. Skinner no rejeita a experinciaimediata, mas trata de entender sua gnese esua natureza. Ele no duvida de que os homenssintam sem expressar seus sentimentos, queos homens se iludam, alucinem, reflitam sobreas coisas e sobre si mesmos, relatem temores,aspiraes e desejos. Tudo isso real, mas,segundo Skinner, devemos investigar em quecondies a vida subjetiva privatizada se desen-volve. A resposta do autor remete s relaessociais. em sociedade que se aprende a falare uma parte da fala pode referir-se ao prpriocorpo e ao prprio comportamento do sujeito.Contudo, essa capacidade para falar de si aprendida na convivncia com os outros. Todalinguagem , assim, social, mesmo quando serefere ao "mundo privado". Por isso mesmo, omundo privado de cada um uma construosocial. O que eu sinto, vejo, pressinto, lembro,penso, desejo, etc. sempre depende da maneiracomo a sociedade me ensinou a falar e a pres-tar ateno aos estados do meu organismo.Numa condio social em que os sentimentos

    OS PROJETOS DE PSICOLOGIA. .. 79

    e as intenes de um sujeito passam a ser fato-res socialmente importantes para o controledo comportamento, j que outras formas decontrole esto reduzidas, natural que a socie-dade se preocupe muito com a "vida privada"e desenvolva em cada sujeito uma habilidadeespecial para falar e "pensar" em si mesmo,para preocupar-se consigo e relatar claramentesuas experincias "imediatas" a fim de formu-lar seus projetos, etc. O uso de aspas em ime-diatas justifica-se porque, de fato, segundoSkinner, as experincias subjetivas no tmnada de imediato; so sempre construdas pelasociedade. O projeto de psicologia skinnerianopode ser, ento, caracterizado como o do reco-nhecimento e crtica da noo de experinciaimediata a partir de um ponto de vista social. clara a a inteno de desiludir: aquilo queaparentemente mais nos pertence no nosso,mas apenas um produto social.

    A inteno desilusora dos valores huma-nistas modernos na obra de Skinner explic-tada por ele prprio, alis, em seu livro O mitoda liberdade. Nele, a crena de que nossas aesso causadas pelo "eu" ou tm motivos internos denunciada como a ltima das supersties.O homem antigo acreditava que os fenmenosnaturais eram causados pela Inteno de seressuperiores, os deuses. O avano da observaosobre a regularidade das leis da natureza teria

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    feito recuar cada vez mais esse modo antro-pomrfico de compreenso' do mundo: onde acincia chega, a crena em que uma conscinciateria causado intencionalmente os fenmenosvai desaparecendo, a religio recua.

    A Modernidade teria acabado com quasetodas as formas de crena dessa natureza, tendorestado apenas a crena numa ltima alma: anossa. A crena de que nossa conscincia acausa de terminante de nossas aes deveriaser tratada como um ltimo preconceit ouignorncia. A simples existncia de uma alma(mente) independente do corpo ou do ambientej no faria qualquer sentido. Assim, a noomoderna de sujeito, que trabalhamos nos cap-tulos anteriores, como aquilo que "subjaz" atudo e livre para determinar seu destino caitotalmente por terra com Skinner.

    A psicologia cognitivista de Piagete a psicanlise freudiana

    Outra proposta de psicologia cientficafoi desenvolvida pelo psiclogo suo]. Piaget(1896-1980). Ao lado dessa proposta, com umdesenvolvimento totalmente independente,com outros pontos de partida e outras finali-dades, encontramos a psicanlise concebida edesenvolvida por S. Freud (1856-1939).

    OS PROJETOS DE PSICOLOGIA .. 81

    O que une esses dois autores apenas- mas isso no pouco - a perspectiva deestudar a gnese do sujeito, levando em con-siderao sua experincia imediata, mas nose restringindo a essa experincia na buscade compreenses e explicaes mais profun-das. Isso poderia aproxm-los de Skinner. Noentanto, h uma diferena decisiva. A crtica deSkinner experincia imediata, subjetiva e indi-vidualizada conclui pela "colonizao social dontimo". A vida privada continua existindo, sque ela s privada na aparncia. De fato, ela de "cabo a rabo" social. O indivduo no nada, a sociedade tudo. Explica-se, por exem-plo, a nossa conscincia de sermos seres livrese responsveis, mostrando exatamente que nosomos nem uma coisa nem outra.

    Piaget e Freud fazem o caminho inverso:do ser biolgico ao ser moral. Ambos partem,em suas teorizaes, de certos pressupostosbiolgicos, mas em nenhum dos casos a expe-rincia imediata dos sujeitos reduzida a seuscondicionantes naturais. Nessa medida, ambosretomam, com todas as dificuldade sabidas, oprojeto de Wundt que no renunciava nem sdeterminaes biolgicas nem s determina-es socioculturais na delimitao do campode estudos da psicologia. Na verdade, os cami-nhos desses dois autores so bem distintos.

  • 82 PSICOLOGIA

    Paget, ex-bilogo, estuda o desenvolvi-mento das funes cognitivas (da inteligncia) eda moralidade (da capacidade de julgar e com-portar-se moralmente) pelo chamado "mtodoclnico". Ele observa o comportamento de crian-as e pede a elas que descrevam o que estofazendo; pede, tambm, que justifiquem o quee como esto fazendo, prope a elas algumastarefas para desenvolverem, sempre as obser-vando e conversando com elas. Seu objetivo, antes de tudo, tentar entender a experin-cia imediata das crianas, como elas "vivem",percebem e pensam sobre o mundo. Com basenisso, ele procura construir uma teoria queexplique essas experincias e por que, ao longodo crescimento, as experincias da criana vomudando e ela vai "vivendo" o mundo de formacada vez mais complexa e adaptativa.

    Freud, como Piaget, veio da biologia, mas,depois de abandonar o laboratrio de fisiologia,cria e se dedica clnica psicanaltica. Como sabido, Freud teve sua formao em neurolo-gia. Ao receber em sua clnica certos pacien-tes - denominados histricos - com sintomasde paralisias e anestesias localizadas, ele sedefrontou com a falta de instrumental neurol-gico para responder ao sofrimento deles. Seusmestres no reconheciam a existncia de umadoena nesses pacientes, na medida em queno podiam identificar neles leses orgnicas -

    os PROJETOS DE PSICOLOGIA .. 83

    se no havia leso, no poderia haver doena.Alm do que, esses pacientes eram altamentedramticos e as paralisias de que reclamavamno correspondiam ao mapeamento nervosoou muscular do corpo, o que fazia com queos mdicos simplesmente no reconh