Protocolo cruel / A fotografia e a escultura / A produção da máscara

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Textos de sobre os trabalhos "Casal e Mayana -Rafael" para cat álogo do terceiro programa de aprofundamento do Parque Lage, janeiro de 2013. Protocolo cruel A pergunta que criticamente se deveria responder é o que a obra diz . O trabalho é o próprio dizer. Trata -se, no entanto, do di álogo como protocolo cruel, pois est á submetido à análise. Encena-se um di álogo, invertendo a escrita de DAF de Sade: em vez de descrever sucess ão de tableaux, perpetrando uma infinita escrita esc ópica, Jorge Soledar imagina a escrita todas as falas tornadas uma imagem apenas. O di álogo não aparece como fic ção ou poesia, n ão há qualquer dado contingente: foi dissecado em elementos puros que se tornam partes m óveis de uma escultura. A fala, que seria da ordem do ef êmero, do particular e do privado é representada sob forma gen érica. A mensagem é desprezada em troca da evidência de sua estrutura, que é materializada. Protocolo duplamente perverso, assim: o que foi dito particularmente ao outro é tornado público e geral pela institui ção de um c ódigo que fixa a fala como um objeto. A forma da fala, aparece como fala definitiva da fala, incum bida de ser alegoria. [Toda alegoria tem, assim, o sentido de uma perversidade ao assumir desnudar publicamente um segundo sentido, seu íntimo. Aqui esse segredo tornou-se público, e é tudo que interessa.] Há, no entanto, uma outra leitura poss ível desse trabalho. A psican álise não constituiu uma teoria psicanal ítica centrada no narcisismo. Ora, na projeção de si no outro e na exibi ção da rela ção para o olhar desencarnado da fotografia (reminiscente de uma problem ática racionalista, p ública e pedagógica própria do s éculo 18), percebe -se que pode ser mais. Poder íamos indagar se de fato h á uma condi ção hist órica imprevista: a contemporaneidade poderia ser tempo narc ísico narciso como norma(lidade). A fotografia e a escultura Não se trata simplesme nte de fazer uso da fotografia como aparato que inscreve ou que descreve, mas de materializar com a imagem. A dimens ão analítica da obra e a recusa de estetiza ção ou espetaculariza ção o evidencia. A forma existe tematizada como coment ário estrutural e simbólico. O cubo espacio -temporal é tornado prisma opaco que exibe tristemente uma condi ção de incomunicabilidade. O par é pensado como lugar primário de uma estrutura social contempor ânea na qual as utopias e as possibilidades de troca oferecem pouca esp erança, é, ao contr ário, local de instituição da autoridade.

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Textos de Cezar Bartholomeu sobre trabalhos de Jorge Soledar apresentados na terceira mostra do programa de aprofundamento da escola de artes do Parque Lage, janeiro de 2013.

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Textos de sobre os trabalhos "Casal e Mayana -Rafael" para catálogo do terceiro programa de aprofundamento do Parque Lage, janeiro de 2013.

Protocolo cruel

A pergunta que criticamente se deveria responder é “o que a obra diz ”. O trabalho é o próprio dizer. Trata-se, no entanto, do di álogo como protocolo cruel, pois est á submetido à análise. Encena-se um diálogo, invertendo a escrita de DAF de Sade: em vez de descrever sucess ão de tableaux, perpetrando uma infinita escrita esc ópica, Jorge Soledar imagina a escrita – todas as falas tornadas uma imagem apenas. O di álogo não aparece como ficção ou poesia, não há qualquer dado contingente: foi dissecado em elementos puros que se tornam partes m óveis de uma escultura.

A fala, que seria da ordem do ef êmero, do particular e do privado é representada sob forma genérica. A mensagem é desprezada em troca da evidência de sua estrutura, que é materializada. Protocolo duplamente perverso, assim: o que foi dito particularmente ao outro é tornado público e geral pela institui ção de um código que fixa a fala como um objeto.

A forma da fala, aparece como fala definitiva da fala, incum bida de ser

alegoria. [Toda alegoria tem, assim, o sentido de uma perversidade ao

assumir desnudar publicamente um segundo sentido, seu íntimo. Aqui esse segredo tornou-se público, e é tudo que interessa.]

Há, no entanto, uma outra leitura poss ível desse trabalho. A psican álise não constituiu uma teoria psicanal ítica centrada no narcisismo. Ora, na projeção de si no outro e na exibi ção da relação para o olhar desencarnado da fotografia (reminiscente de uma problem ática racionalista, pública e pedagógica própria do século 18), percebe-se que pode ser mais. Poder íamos indagar se de fato há uma condição histórica imprevista: a contemporaneidade poderia ser tempo narc ísico – narciso como norma(lidade).

A fotografia e a escultura

Não se trata simplesme nte de fazer uso da fotografia como aparato que inscreve ou que descreve, mas de materializar com a imagem. A dimens ão analítica da obra e a recusa de estetiza ção ou espetaculariza ção o evidencia. A forma existe tematizada como coment ário estrutural e simbólico. O cubo espacio-temporal é tornado prisma opaco que exibe tristemente uma condição de incomunicabilidade. O par é pensado como lugar primário de uma estrutura social contempor ânea na qual as utopias e as possibilidades de troca oferecem pouca esp erança, é, ao contrário, local de instituição da autoridade.

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Essa relação materializada pela fotografia – entre homem e mulher, entre escultura e fala, entre identidade de um e outro, necessariamente nos

levaria a referência no campo da fotografia com o escultura. No Brasil, seria o caso de mencionar como a obra de Mario Cravo Neto explora tal

relação a partir do retrato. Em seus trabalhos, os corpos s ão recortados e, ao mesmo tempo, institu ídos como forma escult órica pela fotografia. A partir da premissa mimética que imprime à imagem fotográfica realismo, cria-se forma nova. Não é o caso dessa escultura criada por Soledar, na qual a relação entre fotografia e escultura se estrutura a partir da condição de signo.

A produ ção de m áscara

Não se trata propriamente de retratos, mas de m áscaras. A máscara é, normalmente, produzida a partir da possibilidade de obliterar a identidade em troca de outra, que toma corpo. Essa outra coisa

incorporada, no entanto, é mítica. Ao dar vida ao mito, o uso ritua l da máscara permite reatualizar uma dimens ão simbólica cuja partilha forma uma comunidade.

No entanto, não há, no trabalho de Soledar, tentativa de propor transcendência ou utopia. O que é incorporado ao sujeito é a representação do outro. A fotografia, representa (e assim, é definida como) máquina de reproduzir o outro. No entanto, mais que a identidade assumida o problema

da máscara parece ser o de um estado anterior à existência da identidade, o que é indicado pela matéria em estado informe. A imag em, como máscara, parece existir como media ção no embate entre carne e linguagem.

“A suprema vilania consiste em disfar çar sua paixão como pensamento. O vilão, por sua vez, nunca acha no pensamento do homem honesto nada além do que o mascaramento de uma paix ão impotente.” Pierre Klossowski, Sade,