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1 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA INSTITUTO DE LETRAS A PEDAGOGIA DA AUSÊNCIA E OUTRAS ENSINANÇAS JUDITH GROSSMANN E A CENA DA ESCRITA LÍVIA MARIA NATÁLIA DE SOUZA SANTOS Orientadora: Profª Drª Antonia Torreão Herrera Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Salvador, primavera de 2004

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA

INSTITUTO DE LETRAS

A PEDAGOGIA DA AUSÊNCIA E OUTRAS ENSINANÇAS

JUDITH GROSSMANN E A CENA DA ESCRITA

LÍVIA MARIA NATÁLIA DE SOUZA SANTOS

Orientadora: Profª Drª Antonia Torreão Herrera

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Salvador, primavera de 2004

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A Nossa Senhora Aparecida,

A meus pais,

A Henrique.

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AGRADECIMENTOS

Todo trabalho de pesquisa precisa, para o seu pleno desenvolvimento, da

participação de inúmeras pessoas que nos sustentam emocionalmente, espiritualmente e

intelectualmente. Este é um trabalho que exigiu de mim algumas ausências que jamais

serão sanadas, exigiu, das pessoas que me cercaram, uma atenção e compreensão para

suportarem os meus silêncios e preocupações. Mas este trabalho mais me deu do que me

tirou. Ele me ofereceu, além da certeza de um caminho a ser trilhado, a certeza de que

terei sempre pessoas que, ao meu lado, me apoiarão nesta trilha. Este trabalho me

ofereceu a consciência da importância dos laços de amor que me unem a minha família

e a reafirmação da força dos amigos, família outra, a qual recebo com humildade e

gratidão.

Agradeço a minha querida mãe, exemplo de vida e fortaleza mais segura para

todas as minhas angústias. Ao meu pai, pelo carinho e cuidado de uma proteção que não

se acaba. Ao meu irmão, pelos anos de amizade e amor. Ao meu esposo, par eleito de

diálogo na vida, no amor e companheiro de angústias e reflexões, apoio indispensável

na confecção deste trabalho e na travessia de minha vida.

A minha avó, que se foi no decorrer desta caminhada.

Agradeço aos amigos que Sônia Simon, Marcos Botelho, Tatiana Lima e

Adriana Telles pela generosidade e disponibilidade a ouvir e a falar.

Aos meus alunos pelas suas perguntas que sempre me serviram como respostas.

Aos professores do Instituto de Letras, que me fizeram perceber aquela casa

como um lugar de aprendizado e de estabelecimento de teias amorosas.

Aos colegas do grupo de pesquisa, especialmente a Dalila e Juliana, pela força

da voz e da experiência.

A minha orientadora Antonia Torreão Herrera, pelos anos de diálogo e

companheirismo.

A Mestra Judith Grossmann que muito me ensinou e orientou, qual Ariadne,

nesta caminhada.

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É esta fulguração da vida na literatura, este revérbero, que faz mesmo da vida cada vez mais literatura, cada vez mais literária, é isto que vitaliza simultaneamente a literatura e a vida, o que faz que a vida não possa passar sem literatura para ser mais vida, e tudo então é literatura, e o resto é silêncio, antiliteratura, antivida.

Judith Grossmann, Memórias de Alegria –

Discurso.

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RESUMO

A dissertação intitulada A pedagogia da ausência e outras ensinanças: Judith

Grossmann e a cena da escrita busca, através da leitura analítica de depoimentos,

entrevistas, textos de crítica, teoria da literatura, romances e contos de Judith

Grossmann, observar como se dão os trânsitos de cenas e idéias entre estes textos e a

sua ligação com a prática acadêmica da autora. Este trânsito ilustra aquilo que

chamamos de “Pedagogia da ausência”, que é a discussão de temas e questões

pertencentes à Teoria da Literatura nos textos literários. Desta maneira, acreditamos que

Judith Grossmann faz do seu texto de lavra criativa cena de discussão e debate de

teorias da literatura que, comumente, encontram o seu local de reflexão nas salas de aula

e mesas de congressos. Assim, a literatura se converte em sala de aula, fazendo com que

a professora Judith Grossmann não deixe jamais de formar novos alunos e discípulos

sem que o texto perca o apuro estético indispensável à obra de arte.

Palavras-chave: Teoria da literatura, pedagogia, crítica Literária, texto criativo.

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ABSTRACT

This dissertation intends to comment the scenes and ideas sprung from the analytical

reading of Judith Grossman’s statements, interviews, romances, short stories, and

critical and theoretical texts and the relationship between these writings and Ms.

Grossman’s academic work. This transit illustrates what we call “Pedagogy of the

Absence” (Pedagogia da ausência) which is, in fact, a discussion of themes and

questions within the realm of Theory of Literature. We believe Ms. Grossman turns her

creative text a scene for discussion and debate of the theories of literature which usually

find its reflective place in the classrooms and seminars. Thus, literature converts into

classroom itself, and Ms. Grossman’s students can appreciate the aesthetical refinement

indispensable in a work of art.

Key words: Theory of literature, pedagogy, crítical texts, creative texts.

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SUMÁRIO

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INTRODUÇÃO

Um estudo que se dedique a discutir a obra de Judith Grossmann depara-se com

o desafio de englobar, em sua análise, um discurso multifacetado, resultante de um

intenso trânsito de idéias entre os dados biográficos, o exercício teórico-crítico e a

prática literária. Os territórios na obra de Judith Grossmann, pensada aqui como um

conjunto que encerra todos os seus textos, têm fronteiras muito tênues que, por vezes, se

diluem. Quando adentrei, em meados do ano dois mil, no grupo de pesquisa O Escritor

e seus múltiplos: migrações, não tinha, ainda, a idéia da complexidade da obra dos

intelectuais que ali estudaríamos. Desde o início, no sistemático contato com os textos

de Judith Grossmann, chamou-me a atenção a enorme versatilidade da autora, uma vez

que ela tanto escreve textos de crítica como ficciobais, e a possibilidade de encontrar

afirmações, quase que em sua total integridade, migrando de um depoimento ou artigo

de crítica para um conto ou romance. Este trânsito de idéias suscitava a desconfiança de

que devia haver, entre esses diversos textos, uma coerência discursiva. Coerência esta

advinda não simplesmente da marca autoral, mas de um algo que o conjunto de sua obra

parecia querer transmitir, como um conjunto orquestrado de falas que, unidos,

constroem um concerto.

Muitos caminhos de leitura da obra de Judith Grossmann são possíveis para o

estudioso que se debruce sobre seus textos. O caminho por nós escolhido deriva de uma

percepção da obra de Judith Grossmann como sendo sustentada por um projeto literário

que conjugará, em si, as faces crítica e pedagógica. Localizamos como eixo catalisador

das falas crítica, pedagógica e literária o texto ficcional de Judith Grossmann, pela

escolha metodológica de uma abordagem que busca demonstrar a especificidade desta

obra que é, simultaneamente, texto literário e reflexão sobre questionamentos da

literatura. Um outro motivo que nos fez escolher este caminho de estudo crítico é

mostrar que, no texto literário, há uma forte estratégia de permanência de uma voz

professoral e crítica. Todo texto literário é feito para a posteridade, para ser perenizado e

para perenizar o seu autor, e o texto de Grossmann não poderia ser diferente. Mas, esta

permanência discursiva ultrapassa as fronteiras do literário construindo uma voz crítica

e pedagógica que se quer ativa. A nossa principal hipótese de trabalho é a de que,

através da escrita criativa, Judith Grossmann permanece exercendo a sua prática crítica

e pedagógica. A obra de arte literária se coloca como infinita sala de aula, na qual

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cabem inúmeros alunos, se realiza como mesa interminável de debate em congressos

atemporais e atópicos, sem prescindir do encantamento e apuro estético da obra de arte.

Este projeto de Judith Grossmann é sinalizado em seus depoimentos, em suas

entrevistas, enfim, em todas as oportunidades que ela tem de falar sobre a sua literatura.

Podemos compreendê- lo como um jogo que engendra estratégias várias de permanência

de seu discurso, para que a sensação de sua presença vá além da verificação física.

Judith Grossmann busca a imortalidade, a perenização. O texto literário se converte em

sala de aula, em mesa de debate e em ambiente de elucubração crítica de maneira que,

ainda que afastada das salas de aula e dos congressos sobre literatura, Judith Grossmann

permanece exercitando a sua prática pedagógica e a sua reflexão crítica.

Este estudo buscará, então, discutir algumas obras de Judith Grossmann com

vistas a este projeto de permanência através do texto literário. Dentre os textos tomados

como base para a discussão da obra de Judith Grossmann, destaca-se Périplo Peregrino;

o perfil do artista na produção textual de Judith Grossmann1, de Lígia Guimarães

Telles. A relevância deste texto para o nosso trabalho é muito grande, uma vez que se

trata de um dos mais importantes estudos de fôlego sobre a obra de Judith Grossmann e

serve de alicerce para todo estudo que pretenda versar sobre a obra de Grossmann. Para

nós, ele foi indispensável para refletir, dentre outras coisas, o perfil do artista,

principalmente a partir do texto Outros Trópicos Romance, bem como a discussão sobre

o espaço pós-moderno do shopping center, no romance Meu Amigo Marcel Proust

Romance.

O estudo ora apresentado trabalhou com um número significativo de entrevistas

e depoimentos cedidos por Judith Grossmann a periódicos nordestinos vários2. E foi

esta leitura que embasou toda a discussão articulada no Capítulo I, intitulado Histórias

do ínterim – as múltiplas faces do sujeito erigido nos meandros do discurso. Nesse

capítulo, demos ênfase à análise de entrevistas e depoimentos para discutir a questão da

criação literária de Judith Grossmann como sendo construída a partir de um diálogo

crítico com outras obras. Consideramos as entrevistas e os depoimentos como

desdobramentos de um discurso e personalidade literária que a autora assume em seus

textos ficcionais. Desta maneira, buscamos esclarecer que tais textos podem ser

compreendidos, em certa medida, como ficcionais. Eles, juntamente com os seus

1 TELLES, Ligia Guimarães. Périplo Peregrino; o perfil do artista na produção textual de Judith Grossmann. Tese inédita, 2000. 2 Cf. Textos em anexo.

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arquivos3, são construções de fala sobre um sujeito que se erige nas linhas de um

discurso e que é, de certa forma, uma construção ideológica. Assim, no capítulo I,

buscamos cruzar facetas constantes na crítica, depoimentos e arquivos a fim de

vislumbrar o sujeito que se erige através desses discursos. Para tanto, retomamos

algumas reflexões de Ricardo Piglia em Ficção e teoria, o escritor enquanto crítico,

acerca das especificidades da produção literária de escritores-críticos e algumas

anotações extraídas da palestra de Eneida Maria de Souza acerca da crítica biográfica,

para discutir o arquivo como discurso sobre o sujeito. Na reflexão sobre os diálogos e

debates estabelecidos entre Judith Grossmann e a tradição literária, buscamos, como

eixos principais de discussão, T. S. Eliot, em Tradição e Talento individual, e Harold

Bloom, em A angústia da influência, como teorias que, em sua discordância, servem

para pensar a ambigüidade das relações entre a obra de Grossmann e a tradição.

No Capítulo II, Meu amigo Marcel Proust: salões pós-modernos em aulas

ficcionais, tomamos como ponto de partida o romance Outros Trópicos Romance como

exemplo de exercício teórico na cena ficcional, no que tange às reflexões acerca do

processo criativo da obra de arte. Entretanto, o capítulo se concentrará sobre o Meu

Amigo Marcel Proust Romance e procura investigar como a pós-modernidade será

discutida no romance. Para a análise da pós-modernidade utilizamos o texto de Andréas

Huyssen, Mapeando o pós-moderno. Utilizamos também, para falar sobre o

esmaecimento de afetos na pós-modernidade, o texto A lógica Cultural do Capitalismo

Tardio, de Fredrich Jamesson Consideramos que Judith Grossmann toma o romance

como ambiente para a discussão acerca das teorias do pós-moderno, vendo-o, não

apenas como fenômeno artístico, mas também o analisando como um motivador de

transformações comportamentais dos indivíduos. Colocando-se num lugar pós-moderno

por excelência, o shopping, a autora ambienta a sua narrativa dentro desta nova lógica

cultural, e, cercando-se de ícones de consumo, discute a massificação e a

desindividualização do ser humano nos corredores do tempo do consumo. Desta

maneira, ainda que se ambiente num dos não- lugares pós-modernos, a narrativa busca

recolher com o seu olhar amoroso esta realidade e transmutar a cadeia de

superficialidades e trânsitos em singularidades.

3 Referimo -nos aos arquivos constantes na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, e na Casa Ruy Barbosa, Rio de Janeiro. No arquivo de Salvador há um grande volume de textos inéditos livros de vários autores, fitas cassete com falas e entrevistas concedidas. No arquivo de Rio de Janeiro, além destes materiais, existe um certo número de obras que só podem ser publicadas após a morte de sua autora.

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No Capítulo III, a discussão continua e nele buscamos demonstrar como, através

de sua voz narrativa, Fulana Fulana reauratiza o ambiente e as pessoas que transitam no

shopping, fazendo com que, através da sua consagração na obra de arte literária, eles se

eternizem. Seguimos uma reflexão de Evelina Hoisel que, em seu texto Meu amigo

Marcel Proust no salão da pós-modernidade, afirma que Judith Grossmann inaugura

uma nova maneira de pensar o narrador pós-moderno. Acrescentamos que este narrador

se forma de uma mescla do narrador pós-moderno, conforme pensado por Silviano

Santiago, e o narrador tradicional de Walter Benjamin. Para nós, Fulana Fulana, ao

contrário do narrador constante na categoria pensada por Silviano Santiago, narra a

realidade como um espetáculo mas, principalmente, como vivência por ela

experimentada. Ela não apenas se projeta na narrativa falando do outro e,

simultaneamente, falando de si, como fala de si, e se coloca como alguém que tem uma

sabedoria a transmitir, e ela advém de sua experiência.

O narrador é, então, um híbrido do clássico com o pós-moderno, da vivência

com a observação e, desta maneira, Judith Grossmann coloca uma outra maneira de

pensar a pós-modernidade.

No Capítulo IV, Retratos do artista, discutiremos, um dos principais eixos

temáticos da obra de Judith Grossmann, o perfil do artista ali construído. Tomando

como ponto de partida os textos As tranças de Charlienne, Fausto Mefisto Romance e

Meu Amigo Marcel Proust Romance, observamos um retrato evolutivo do artista que

começa em sua mais tenra infância, quando nasce nele a consciência de sua diferença

em relação aos demais homens, representado por Charlienne; o início da adolescência,

momento no qual o gênio artístico se manifesta em toda a sua força dionisíaca,

conforme encontramos em Joris; e o fim da adolescência do artista, momento em que o

apuro estético é colocado em relevância e se começa a construção de uma teia dialógica

de escritores. É o momento em que se delineia o projeto literário.

Este trabalho buscou acionar, não apenas as obras ficcionais de Judith

Grossmann, mas também as suas obras críticas e registros de entrevistas e depoimentos,

a fim de tentar vislumbrar, em sua multiplicidade de vozes, uma consonância de falas e

idéias que irão desembocar na sua escrita criativa.

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Eu quero que a minha obra seja um copo de água fresca que alguém sedento bebe em pleno deserto. Eu quero que a minha obra seja como uma cadeira de balanço onde alguém exausto senta, é isso que eu quero de minha obra. Judith Grossmann, Com a palavra o escritor.

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CAPÍTULO I

HISTÓRIAS DO ÍNTERIM – AS MÚLTIPLAS FACES DO SUJEITO ERIGIDO

NOS MEANDROS DO DISCURSO

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Não tenho biografia, tenho grafias, caligrafias, dactiloescritos, textos, avatares, parábolas, alegorias, mitos, lendas, fábulas, sacadas e sacadas, varandas e janelas. E sincronias. Judith Grossmann, depoimento.

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Caleidoscópios da subjetividade: o escritor e a sua inserção na crítica literária

Nem todo escritor se dedica profissionalmente a crítica, mas eu diria que todos os escritores trabalham esta relação da escrita com a reflexão e com a teoria.

Ricardo Piglia. Ficção e teoria: o escritor enquanto

crítico.

Quando um indivíduo tem uma intensa participação no meio intelectual e

cultural, a sua biografia se constrói numa convergência tamanha em relação a sua

produção intelectual que se torna impossível uma narrativa do indivíduo afastada do

pensador. A sua história se conta a partir de seus textos, dos diálogos com os seus pares

e da memória de seus herdeiros. A narração do sujeito se constrói a partir de uma

subjetividade que emana da cena da escrita pois a sua vida íntima se imiscui na vida

intelectual, abrandando a noção de uma subjetividade erigida fora das margens do texto.

Assim, a fala e as atitudes deste indivíduo não podem ser compreendidas sem que sobre

elas se lance todo um cenário de vida que ultrapassa as referências correntes a uma

biografia do cotidiano e o religue a uma comunidade de fatos que levaram a formação

de seu lugar intelectual.

Assim, revela-se um jogo em que nada é autobiográfico, no sentido de uma

ligação deste indivíduo com fatos, datas e recortes de vida ligadas a uma história

familiar, e tudo é autobiográfico, à medida que o sujeito se corporifica numa imagem

emergente do papel.

A escritora carioca Judith Grossmann encaixa-se neste perfil de subjetividade

em que a interpenetração de saberes constrói um indivíduo múltiplo e infindável.

Entretanto, é importante notar que não é um privilégio da atualidade termos produtores

de arte que, concomitantemente, são produtores de questionamentos sobre a arte.

Intelectuais como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Paul Valéry, dentre outros, já

se apresentavam como expoentes de indivíduos instigantes: escritores que conjugavam

em si a figura do teórico e do crítico da literatura. Este entrecruzamento de campos do

desenvolvimento e expressão intelectual faz parte de um fenômeno que dá conta da

multiplicidade de feições que o sujeito pode assumir. Cientes deste acontecimento,

podemos resgatar e analisar as produções do passado e procurar atentar para tantos

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outros que estão, no momento, colhendo os frutos de sua plurivocidade intelectual, a

exemplo de escritores como Affonso Romano Sant'anna, Ruy Espinheira, Silviano

Santiago, João Carlos Teixeira Gomes e Judith Grossmann4.

Dentre as indagações que cercam as reflexões sobre a produção destes

indivíduos algumas se sobressaem: como se dá o processo criativo no qua l estão

imersos os seus textos? Que nova feição a sua literatura vêm oferecer aos

questionamentos sobre literatura? Como os diálogos entre produção e crítica literária se

organizam em torno do discurso ficcional? E a noção de Obra5, como compreender, a

partir destes sujeitos, tal conceito? Entretanto, acima de tudo, estas produções abrem um

campo, dentro dos estudos literários, que busca ser capaz de repensar os elementos

motivadores da criação artística, as fronteiras entre o ficcional e o autobiográfico, e a

reflexão sobre a literatura na própria cena do texto literário. Assim, a análise do texto

busca averiguar não só as peculiaridades da literatura, mas também o perfil do sujeito

produtor.

O escritor argentino Ricardo Piglia, em seu texto intitulado Ficção e teoria; o

escritor enquanto crítico6, discute os lugares ocupados pelo escritor que, segundo ele,

sempre será um crítico, um estudante e um professor. Mediando as formações destes

papéis está a leitura, que neste sujeito se dá de uma maneira distinta, uma vez que ele lê

em busca de modelos ou anti-modelos, que servirão de base para a construção de sua

obra. Desta maneira, quando Ricardo Piglia afirma que todo escritor, ainda que não

exerça a crítica, é crítico de literatura, ele nos chama a atenção para o caráter auto-

reflexivo da obra literária. Esta é a sua propriedade mais intrínseca e mais essencial.

Todo aquele que escreve tem, imanente ao movimento de sua escrita, a reflexão sobre o

próprio ato de escrever:

Provavelmente, na verdade, a maior parte do labor de um autor, ao compor a sua obra, é o labor crítico; trabalho de peneirar, combinar, construir, eliminar, corrigir, testar...Alguns escritores criativos são superiores a outros apenas porque a sua faculdade crítica é superior 7.

4 Ruy Espinheira, Silviano Santiago, João Carlos Teixeira Gomes e Judith Grossmann, são autores cujas obras ficcionais e críticas são estudadas por bolsistas de graduação e pós-graduação no projeto “O Escritor e seus múltiplos: Migrações” no qual a presente pesquisa se insere. 5 Referimo -nos aqui as reflexões e questionamentos trazidos por Michel Foucault em seu texto O que é um autor? .Cf.FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Trad. Antônio Fernando cascai; Edmundo Cordeiro. São Paulo: Passagens,1992. Col.Veja. 6 PIGLIA, Ricardo. Ficção e teoria: o escritor enquanto crítico.In: PIGLIA, Ricardo. TRAVESSIA33; Revista de Literatura. Florianópolis: Editora da UFSC, n1. p.47-59,1980. 7 ELIOT, T.S.19?? apud PERRONE-MOISÉS,Leyla. Valores modernos. S.l.: S.n., 199?? p.143.

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A crítica pode se manifestar na eleição de um cânone pessoal com o qual o

escritor dialoga, na escolha dos autores e obras dos quais deseja se afastar, as estratégias

de construção textual, a relação com o público receptor. Assim, o princípio que rege a

produção da literatura é a metacrítica e esta só se dá a partir da leitura das obras

anteriores. Daí nasce a tão conhecida asserção de que o bom escritor é um bom leitor.

Aquele escritor que adentra o terreno do crítico escrevendo textos reflexivos

sobre a obra de arte literária confronta-se com aquele que sabe da literatura pelo que

dela consegue fruir e analisar. Daí a querela interminável entre críticos e escritores-

críticos: os primeiros são comumente definidos como escritores que, frustrados pelo

pouco talento criativo para a invenção de suas próprias obras, analisam, à ponta de

brasa, a obra alheia; os segundos são vistos como críticos pouco confiáveis, uma vez

que a parcialidade oferecida pela experiência criativa os impediria de um juízo

criterioso sobre a obra, seja ela sua ou de outrem:

A crítica praticada pelos escritores é essencialmente parcial, pois ela está a serviço da prática de cada um... Essa parcialidade, Baudelaire a atribuía a toda boa crítica: "Para ter razão de ser, a crítica deve ser parcial, apaixonada e política, isto é, feita de um ponto de vista exclusivo, mas do ponto de vista que abre mais horizontes”8.

Leyla Perrone-Moisés, em seu texto intitulado Valores Modernos, afirma que os

escritores-críticos, diferente de críticos profissionais, quando tomam uma obra para a

apreciação, comumente falam de seus "eleitos", falam das qualidades da obra e não de

seus defeitos. Nos escritores-críticos o critério de escolha de textos a serem discutidos

são as afinidades de leitura e escrita. Assim, a crítica dos escritores-críticos toma o

aspecto de uma microcomunidade transnacional; a crítica feita pelos escritores é, assim,

muito mais o reconhecimento de linhagens criativas do que cena de depreciação da obra

do outro. Isto, é claro, engendra não uma bondade ou "piedade crítica", mas a eleição de

pares para diálogo, a formação de um cânone que exclui, com o poder do silêncio, todo

aquele que não deve ser citado.

Judith Grossmann encaixa-se na esteira de escritores-críticos recebendo sobre

esta peculiaridade ainda mais uma: o fato de ser também professora de Teoria da

8 PERRONE-MOISÉS,Leyla. Valores modernos. S.l.: S.n., 199?? p.143.

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Literatura, disciplina metacrítica por natureza. Estas três áreas do saber, que se

misturam no turbilhão da individualidade, oferecem à obra literária, pensada neste

trabalho como eixo primordial de exposição e teste de hipóteses, que tanto podem

nascer da crítica quanto do ensino, uma feição de um projeto a um tempo teórico e

crítico. Se observarmos o levantamento de seus textos críticos, perceberemos que boa

parte deles é resultado de trabalhos com grupos de pesquisa dentro da graduação na

Universidade Federal da Bahia, ou que nasceram no decorrer de disciplinas ministradas

por Judith nas turmas de graduação e pós-graduação da mesma instituição. Assim,

percebe-se uma evidente ligação entre a formação do sujeito crítico e a reflexão

provocada pelo ensino da disciplina Teoria da Literatura. Este diálogo ecoa na sua

produção literária fazendo com que a sua literatura, alegoricamente, discuta questões

várias que inquietam a crítica e a Teoria da Literatura.

Em seu texto intitulado O Cânone narrativo do século XX, apresentado no 5º

Congresso ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), em 1997, ela

busca, falando como teórico, escritor e leitor, refletir sobre como se dá, na escritora

Judith Grossmann, o trânsito entre estas três categorias tomando, inicialmente, a

formação do sujeito leitor:

O leitor a que me refiro, aos três anos de idade, e poderia ter sido antes, como hoje se sabe, já lia e escrevia, e iniciou maciçamente o que até agora nunca deixou de fazer, a leitura, a criação e a especulação, que mais tarde desembocaria, como um rio que corre, na atividade ensaística9.

Localizando todo o início do percurso de leitura nos contos de fada dos irmãos

Grimm e nas fábulas de Esopo, décadas mais tarde, por este caminho aberto, viria a

leitura de Primeiras Histórias, de Guimarães Rosa. E este leitor, que a esta altura já se

constituía criador, uma vez que Judith localiza todo o seu começo na primeira infância:

...desde que me lembro de mim, sempre estive escrevendo, isto vem do quarto de

brincar, com suas paredes inteiramente rabiscadas10,sente a descoberta de Guimarães

Rosa com o estranhamento e a familiaridade Freudianos11. Segundo a autora, não houve

9 GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: GROSSMANN, Judith. Et alli.Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997. vol.01.p.345. 10 GROSSMANN, Judith. Judith Grossmann: Entrevista. Entrevistadores: Alunos Universidade Católica do Salvador. Salvador: Biblioteca Reitor Macedo Costa, 1996. 1 cassete sonoro (60 min) documento parcialmente transcrito por Lívia Souza. 11 Cf. GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: GROSSMANN, Judith. Et alli. Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997.

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para ela os "fricotes iniciais dos recém-convertidos" e, em breve, já escrevia em diálogo

com Rosa:

E também assim pôde continuar a viagem, já como Criador, para ouvir coisas tais... "mas é Guimarães Rosa elevado a mil"...sim, a dois, a três mil, como queiram, ad libitum, porque Joyce é Joyce, Rosa é Rosa, cada um é cada um12.

Após a descoberta de Guimarães Rosa, chega o tempo de Machado de Assis,

visto como o "divisor de águas da narrativa", de quem a literatura sempre foi: a

predileta, a escolhida, a soberana, a hegemônica13. Machado vem como uma

preparação para a chegada de Clarice Lispector, dona de uma literatura na qual, segundo

Judith Grossmann, a máquina narrativa está perfeitamente azeitada, onde nada range.

Toda reflexão tecida nas malhas literárias e no campo da crítica, recupera um

perfil de leitor que, a partir da escolha de seus pares para diálogos e debates, levanta os

alicerces de todo o seu pensamento teórico, crítico e que se revela em sua escrita.

Reiteradamente, nas oportunidades em que concedeu entrevistas e depoimentos14, Judith

Grossmann chama a atenção dos ouvintes para uma rede familiar que inclui autores da

literatura de todos os tempos. A estes autores ela chama de "predecessores",

construindo, à moda borgiana 15 uma linhagem que inclui prioritariamente dois pais,

Guimarães Rosa e Machado de Assis e uma mãe, Clarice Lispector:

No início, como Leitor mesmo, aprendi o seguinte, que em Arte, como em Ciência, somente existe o grande trabalho coletivo, para que haja sempre grandes e novas novidades16.

vol.01.p.346. “Foi assim que este Leitor mencionado se preparou para lei, décadas mais tarde, uma obra como Prime iras estórias (1962) de João Guimarães Rosa, tendo simultaneamente uma sensação de estranhamento e de familiaridade, conforme analisa Freud”. Cf. FREUD, Sigmund. O estranho.In: FREUD, Sigmund. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Trad. José Luís Meuer. Et. Alli. Rio de Janeiro:Z -movie studio, 20??.Vol.XVII. “Direi, de imediato, que ambos os rumos conduzem ao mesmo resultado: o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar. Como isso é possível, em que circunstâncias o familiar pode tornar-se estranho e assustador.” 12 GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: GROSSMANN, Judith. Et alli.Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997. vol.01.p.346. 13 GROSSMANN, op. cit., loc. cit. 14 O levantamento das entrevistas e depoimentos utilizados neste trabalho encontram-se em anexo. 15 BORGES, Jorge Luis. Kafka e sus precursores. In: BORGES, Jorge Luis. Obras completas II. São Paulo:ed. Globo,1998. 16 GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997. vol.01.p.346.

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Sendo assim, a autora localiza, nestes três escritores, pares eleitos para o diálogo

que irá ser preponderante na formação de sua literatura.

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Pátria, Mátria, Frátria: Laços de sangue nas veias do papel

Porque nós, escritores, não temos o corpo fechado, nós temos o corpo vazado. Então, nós somos atingidos por todos os lados e isso não é um drama fictício, isso é um drama real.

Judith Grossmann

Ricardo Piglia afirma, em seu texto Ficção e teoria: o escritor enquanto

crítico17, que a leitura é forte motor para a escrita, uma vez que é através dela que se

extraem modelos e anti-modelos de construção de obra. A leitura, como interface da

criação, auxilia na formação de um modus operandi de escrita e insere o escritor numa

rede infinita de vozes que avança sobre as fronteiras espaciais e temporais, formando

uma comunidade criativa:

Em certo sentido, diria que a gente lê para escrever e, portanto, começa a ver nos outros textos marcas daquilo que a gente quer fazer. Aliás, essa leitura não tende a ser exaustiva. O escritor não busca ler toda a literatura mas quer armar uma espécie de rede com a qual ele constrói sua ficção literária - seu romance familiar e literário, suas tradições, suas fraternidades e inimizades18.

Judith Grossmann, conforme podemos observar em seus depoimentos e

entrevistas, cabe neste modelo de escritor elaborado por Piglia, uma vez que a sua

relação com a leitura começa muito cedo, simultaneamente à escrita, aos três anos de

idade. Em seu depoimento colhido na Oficina Amorosa, ocasião em que se organizou

uma homenagem à autora na Universidade Federal da Bahia, e talvez o depoimento

mais completo dentre todos, a Grossmann desvenda como se deu a sua relação com a

escrita e com a leitura, utilizando para tanto a metáfora do aleitamento. Segundo ela,

muito cedo houve o desmame e o fim do período de aleitamento materno dá início ao

aleitamento das letras:

Para compensar esse desmame precoce, que, segundo dizem, foi por minha culpa mesmo, minha mãe me alfabetizou muito cedo19.

17 PIGLIA, Ricardo. Ficção e teoria: o escritor enquanto crítico.In: PIGLIA, Ricardo. TRAVESSIA33; Revista de Literatura. Florianópolis: Editora da UFSC, n1. p.47-59,1980. 18 Idem, Ibidem, p47/48. 19 GROSSMANN, Judith. Oficina Amorosa: Depoimento. In: HOISEL, Evelina. (Org.)Estudos; Lingüísticos e Literários. Salvador, edUfba, nº15. p.47-71.1993.p48.

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Revela-se, assim, o início de uma relação de Phylia com a literatura, explorando

aqui a metáfora do aleitamento e da maternidade, alegorizada, agora, no texto literário.

A relação com a literatura se estende vida a fora, construindo uma leitora insaciável e

arguta. Toda a leitura era tocada pelo sentido do literário, uma vez que, tendo aprendido

a ler, passou a devorar os livros infantis com uma voracidade que desconcertava os pais:

Era comprar um livro num dia, no outro queria outro. E minha mãe dizia: - não, mas ontem eu comprei aquele. - Não, mas aquele eu já li! - então era necessário arranjar sempre novos livros 20.

Segundo a autora, já naquele tempo, vida e literatura se faziam acompanhar

como amigas inseparáveis: "realidade e letras, não havia lacuna, eu não entendia como

coisas separadas"; esta relação é confirmada quando a vida toma dois destinos:

primeiro, o desejo de, muito cedo, ser escritora; segundo, o encaminhamento para a

profissão de professora. A consciência sobre a vontade de escrever e o exercício da

escrita já são praticados na infância e, vida a fora, os seus escritos sempre foram bem

recebidos. Quando entra na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do

Brasil21 para se formar Professora de Literatura Anglo-germânica, a adolescente tem,

como professores, Alceu Amoroso Lima e Jorge de Lima; este último merece lugar de

destaque na trama de seus predecessores. Formava-se então, em torno dela, um círculo

de diálogo intelectual que irá influenciar sobremaneira o seu perfil de pensador. Isto se

nota por conta de que a sua primeira publicação, em lugar de ser um texto literário, foi

um texto crítico sobre Olavo Bilac. Desta maneira, chega-se à outra vertente do

pensamento Judithiano: a crítica.

Eu queria ser um grande crítico literário; um grande ensaísta, porque eu já tinha a postura. Eu acreditava, eu confiava que o crítico é que acabava de engendrar a obra22.

Esta inclinação para a crítica tem um reflexo na clínica. Grossmann, que antes de

ser professora, tinha por vocação a medicina, principalmente a psicanálise, conforme

afirma em inúmeros depoimentos, vê a crítica como forma de entrar em contato com o

20 GROSSMANN, op. cit,. loc. Cit. 21 Atual UFRJ. 22 GROSSMANN, Judith. Oficina Amorosa: Depoimento. In: HOISEL, Evelina. (Org.)Estudos; Lingüísticos e Literários. Salvador, edUfba, nº15. p.47-71.1993.

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outro, adentrar a alteridade e dialogar com ela: “... descobrir o universo do outro, e a

obra era essa moeda”. Então, assim como a leitura fascina, a escrita e a crítica vêm

completar as muitas faces desta menina que, segundo a sua mãe, numa definição muito

adequada de Judith Grossmann: "trabalha em todos os fronts".

Trabalhando, então, em todos os fronts, há uma complementação de um no

outro. A leitura desperta a crítica, que embasa o ensino, que favorece a criação. Esta

fórmula, na verdade, funciona, qual na matemática, sem que a ordem dos fatores

interfira no produto. Mas, o fato de poder praticar todas estas vertentes, oferece a Judith

Grossmann uma visão muito peculiar do texto literário.

A leitura constante e insaciável, tanto de textos literários como críticos e

teóricos, faz com que se construa um repertório de leitura amplo e um saber

"enciclopédico"; a produção crítica oferece uma possibilidade de refletir sobre a obra do

outro e a sua própria e, neste sentido, complementa tanto a leitura quanto a escrita. Esta

última se desenvolve com o cabedal de leitura e o desenvolvimento do pensamento

crítico e, finalmente, o diálogo de todos estes saberes é colocado em prática na sala de

aula:

A vida acadêmica como um alimento da obra literária, porque eu estava em contato com os maiores escritores da literatura brasileira e universal...eu sempre li muito dentro da Literatura Inglesa, dentro da Literatura Americana, dentro da Literatura Brasileira e isto é uma escola, é uma coisa insubstituível. Então eu adquiri assim um saber enciclopédico. Eu já li praticamente tudo. eu conheço todas as possibilidades estilísticas e no meu caso isto ajuda muito23.

A maioria dos escritores segue o que Piglia chama de escritos póstumos de

escritores, que seria a substituição da prática literária pela escrita privada do escritor, na

qual ele anotaria as suas convicções acerca de literatura, numa espécie de laboratório.

Judith tem algumas maneiras muito peculiares de exercitar este laboratório: em seus

prefácios, presentes em seus romances, nas salas de aula, nos seus depoimentos e

entrevistas e nos artigos de crítica.

Uma questão que sempre retorna nas reflexões de Judith em seus vários

laboratórios é a relação entre a obra de arte e os seus predecessores. É importante notar

a exposição, em vários dos seus textos, daquilo que a autora chama de "família": Nós,

escritores, possuímos uma vasta família, à qual pertencemos, e esta ilustre família é a

23 GROSSMANN, Judith. Judith Grossmann: Entrevista. Entrevistadores: Alunos Universidade Católica do Salvador. Salvador: Biblioteca Reitor Macedo Costa, 1996. 1 cassete sonoro (60 min) documento parcialmente transcrito por Lívia Souza.

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literatura de todos os tempos24, que seria um conjunto de autores eleitos com os quais

são estabelecidas relações de parentesco literário construídas a partir da história de

leitura de Judith Grossmann. Não podemos perder de vista que a percepção de leitura de

Judith Grossmann é aguda, deve-se levar em conta não só a variada gama de leitura que

ela detém, mas também a profundidade interpretativa a que esta pode alcançar. É ampla

a família da leitora/escritora Judith Grossmann, envolvendo irmãos Grimm, fábulas de

Esopo, Shakespeare, Jorge de Lima, Cecília Meireles, avançando sobre fronteiras

lingüísticas, temporais e espaciais.

O seu arcabouço contempla, igualmente, a psicanálise, filosofia e outras áreas do

conhecimento humano. No texto O Cânone narrativo do século XX25, a autora fala

sobre a sua história de leitura, e nos revela uma tríade de autores cujas vozes ressoam

em sua obra, são eles: Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Podemos, dentre os predecessores, apontar como exemplo das relações interfamiliares a

intensa relação existente entre a escritora/leitora Judith Grossmann e a literatura de

Clarice Lispector. Há, nos textos de Grossmann, um intenso diálogo com os principais

eixos temáticos de Lispector26. Quando Judith Grossmann retoma cenas e temas da

literatura de Clarice Lispector ela o faz a fim de suplementar a obra anterior, mostrando

possibilidades outras de resolução e de representação das personagens 27.

Neste diálogo são fortes dois movimentos antagônicos: por um lado a atração e a

admiração pela obra de Lispector e, por outro lado, o desejo de superação, de retomar a

fala de Clarice Lispector rasurando, reescrevendo e resolvendo problemas por ela

expostos oferecendo novas soluções.

Naturalmente, a convivência em família se realiza mediada por sentimentos

ambíguos. Amor e ódio caminham de mãos dadas de tal maneira que se tornam opostos

e complementares. Todos os sentimentos que dedicamos aos elementos da família são

“de fronteira”, periclitantes entre o sim e o não e sempre prestes a converter-se em seu

pleno oposto por um simples mover de peças, por uma palavra, um gesto. Mutatis

mutandis isto pode ser sentido nas relações que se estabelecem dentro da família

literária de Judith Grossmann. Inicialmente, percebemos que o Pai, Machado de Assis

24 GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: GROSSMANN, Judith. Et alli.Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997. vol.01. 25 Idem, Ibidem. 26 Temas como o dos irmãos, do roubo, das relações homem/mulher e da escrita estão presentes tanto em Clarice Lispector como em Judith Grossmann. 27 Cf. Capítulo VI deste trabalho.

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figura preservado; enquanto a Mãe, Clarice Lispector é foco, por vezes, da ojeriza da

comparação:

...toda vez que vai cuidar de minha obra, na ausência de um aparelho teórico, o crítico novo então recorre ao mesmo aparelho [a comparação com Clarice Lispector]. Isso não pode dar certo, não é?28

por vezes, do desejo de evidenciar a diferença que as separa:

Então, como um parâmetro quantitativo eu agradeço, mas quanto à natureza da obra, não sei, não se pode repetir obra, então são naturezas completamente diferentes...29

por vezes, da admiração:

Suas estruturas narrativas são leves, levíssimas tecelagens, com as quais ela vai movendo, construindo mundos30

Duas vertentes teóricas que estudam a relação da obra de arte com a tradição são

relevantes para se refletir as relações de Judith Grossmann com os seus predecessores: o

talento individual, de T.S.Eliot, e a influência, de Harold Bloom. Dentre as duas, aquela

que mais fortemente nos serve como instrumentalização para analisar a constituição da

família de Judith Grossmann é a visão de Eliot, uma vez que, de maneira reiterada, a

autora afirma uma relação de Phylia e proximidade dialógica com as obras anteriores.

T. S. Eliot, em Tradição e Talento Individual31, afirma o lugar incômodo que a

tradição ocupa na consciência dos críticos, uma vez que raramente ela é citada, a menos

que seja para de traçar uma reconstrução arqueológica32; mas, se ela servir de fonte de

comparação entre presente e passado, ela é rechaçada. Os motivos deste melindre no

uso da palavra advém da convicção de que para fazer um elogio ao trabalho de um poeta

28 GROSSMANN, Judith. Depoimento. In: Carlos Ribeiro (Org.) Com a Palavra O escritor . Salvador: fundação Casa de Jorge Amado; Braskem,2002.p28-38. p29. 29 Referindo-se a artigo de Samuel Ravet, Publicado no Jornal do Brasil, onde o articulista teria comparado o surgimento de O meio da pedra: nonas estórias genéricas ao surgimento de Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. Cf. GROSSMANN, Judith. Depoimento. In: Carlos Ribeiro (Org.) Com a Palavra O escritor . Salvador: fundação Casa de Jorge Amado; Braskem,2002.p28-38. p28. 30 GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: GROSSMANN, Judith. Et alli.Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997. vol.01.p.348. 31 ELIOT, T.S. Tradição e Talento individual. In: ELIOT, T.S. Ensaios. Trad. Invan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989. 32 Idem, Ibdem. p.37.

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é indispensável enaltecer os elementos trazidos por ele que menos se assemelham à obra

de outros escritores; busca-se descobrir algo que seja peculiar e mote de diferenciação

para, assim, afastá- lo da tradição. Segundo Eliot, este é um preconceito que nos impede

de ver que a peculiaridade de hoje só se realiza graças a reconfiguração de todo um

trabalho anterior. É necessário, então, se aproximar dos textos novos buscando perceber

que os seus traços mais individuais e julgados melhores são, na verdade, onde o poeta ,

verdadeiramente maduro, mostra a presença dos antepassados. A nova obra se

desenvolve num terreno já preparado pela tradição, ocupa um lugar e, quando ela entra

com este talento, modifica a tradição. Segundo Eliot o poeta maduro é aquele que tem

consciência de seu sentido histórico:

O sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura européia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea.33

Cotejando as reflexões de Eliot com afirmações de Jud ith Grossmann,

percebemos uma convergência:

O fato é que justo quando escrevo sou invadida por dezenas de textos que não só li como assimilei, em minha existência de leitor 34

Eliot afirma que é necessário que o poeta reconheça a sua obra como sendo um

dado marco no tempo e, simultaneamente, admita um diálogo com obras que gravitam

em outras temporalidades. Assim, o autor deve ter a consciência de seu lugar no tempo,

ou seja, de sua temporalidade mas também ele deve buscar compreender como e onde

ele se insere na linha do tempo e da história literárias. Por seu turno, Judith nos mostra

compreender a literatura como um sistema dialógico no qual a criação é sempre

mediada pela leitura. Esta oferece ao escritor uma rede de trocas possíveis na qual

articulam-se as vias de passagem para o novo:

Olhe, em cada momento vigora o moderno daquele tempo que já também é um pós-moderno sincrônico. Moderno, pós-moderno são sincronias [...] sempre quis escrever para o meu tempo num sentido

33 Idem, Ibdem. p.39. 34 GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.

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muito específico, apenas aparentemente contraditório: com uma das mãos, não ignorando nada do que foi escrito, e com a outra mão ignorando tudo que foi escrito.35

A obra se inscreve numa mesma história e, ao mesmo tempo, ilumina toda a

história. A grande pretensão é de que, através de Jud ith Grossmann, se leia Clarice

Lispector36.

Eliot entende tal movimento não apenas no sentido estético da criação da obra,

mas também como uma faceta crítica, uma vez que, a partir do contraste e da

comparação com os poetas mortos, o novo poeta estaria empreendendo um movimento

de revisão na literatura e repensando o seu lugar na órbita das obras:

Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a obra persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais foi sequer levemente, alterada: a desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados; aí reside a harmonia entre o antigo e o novo37.

Há aqui, uma convergência de falas entre T.S. Eliot e Judith Grossmann, o que

demonstra uma aproximação possível entre os pensamentos teóricos dos dois38.

E eu sou muito afeiçoada com a crítica literária, porque representa uma espécie de diálogo com o outro. Me interessa [sic]39 dialogar com meus antecedentes, com meus contemporâneos; não sou o tipo de escritor que, por ter uma obra própria, vai desconsiderar a obra do outro, mesmo porque isto é bom para mim, eu observo o que estão fazendo e o que foi feito para poder explodir o molde e conceber alguma originalidade.40 O que eu posso lhes dizer é que, nessa altura de minha vida, tudo continua o mesmo, cada livro novo que aparece, que é realmente

35 TAVARES, Ildásio. Midas da poesia: Entrevista com Judirh Grossmann.Tribuna da Bahi a, Salvador, 25 Jan,1997. 36 Anotações de Aula. Reunião de orientação com a Prof. Antonia Herrera. 37 ELIOT, T.S. Tradição e Talento individual. In: ELIOT, T.S. Ensaios. Trad. Invan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989.p.39. 38 No Capítulo VI veremos uma margem de discordância entre Judith e Eliot no que diz respeito à força narcísica necessária para a criação da nova obra de arte. 39 Este foi um depoimento oral que foi transcrito. Assim como na transcrição original, a citação decidiu por manter a espontaneidade do discurso oral. 40 GROSSMANN, Judith. Judith por Judith:Depoimento. In: CABRAL, Otávio; MAGALHÃES, Belmira da Costa. (Org) Sinfonia inacabada do amor ameno: Algumas reflexões críticas em torno de Meu Amigo Marcel Proust Romance, de Judith Grossmann. Maceió: EdUFAl,1999.p.176.

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inovador e que quebra, explode paradigmas e é isto que a arte faz...41

Percebemos, então, que há uma proximidade com as reflexões de T.S. Eliot, no

que tange a visão da tradição como um círculo que só pode ser reconfigurado por uma

obra verdadeiramente “inovadora”. Parece-nos, então, que o que rege as ligações entre

as obras literárias é a lógica do suplemento42. A novidade surge da reconfiguração da

fala anterior e, assim, a criação é sempre mediada pela memória de leitura e, no

momento da escrita, ela adentra no campo da criação ativando afastamentos e

aproximações que irão definir não apenas a obra, mas a relação de seu autor com os

seus predecessores:

Amo aqueles que são capazes de amar tanto predecessores quanto continuadores, compreendendo-se a si mesmos como um elo indispensável à grande construção universal da arte e do homem através da arte43.

Tem-se, então, uma visão das relações entre um autor e seus predecessores como

regida por um sentimento de Phylia, mediadas pelo diálogo e pela ocupação de um

espaço junto a obra precedessora. Neste sentido, o texto de Judith obedece a este

sentimento de Phylia através do reconhecimento do lugar e da importância de seus

predecessores para a sua literatura:

Romance é aquilo que os meus predecessores do século XX fizeram. Eu não inventei nada, apenas encontrei um caminho44.

Entretanto, conforme já dissemos, na ambigüidade que rege todas as relações

familiares reside o espaço para uma outra forma de encarar a tradição, tendo-a como

débito e obstáculo a ser superado. Harold Bloom apresenta a sua teoria, inicialmente

com o livro A angústia da Influência; uma teoria da poesia45, no qual se inicia uma

travessia crítica que só se encerraria com a publicação e Poesia e Repressão, obra

41 Idem, Ibidem.p168 42 No sentido Derridiano: Cf.: SANTIAGO, Silviano. (Org) O glossário de Derridá.s.l.:s.n., 199? 43 GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.p.234. 44LINS, Ênio.Letras no final do século XX.: Entrevista com Judirh Grossmann. Caderno B, Gazeta de Alagoas, Maceió, 17 Abr,1997. 45 BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da Poesia. Trad. Arthur nestroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

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publicada após os livros Um mapa da desleitura e Cabala e crítica, construindo, assim,

aquilo que poderíamos chamar de a tetralogia da influência. Para Bloom todo poema é

um desvirtuamento do poema-pai. Um poema não é a superação de uma angústia, mas

a própria angústia46. Para ele o poema é um ato de leitura, uma postura, um

movimento em direção ao poema anterior, sempre permeado pela angústia e pela sede

da superação.

Em A Angústia da influência, ele afirma ter dois objetivos básicos: desmentir as

idealizações das versões oficiais sobre como um poeta ajuda a formar o outro e

desenvolver uma poética que nos leve a uma forma mais adequada e pragmática de

crítica. Afirmando que a história da poesia é indivisível da história da influência

poética, ele separa os poetas em fortes e fracos, numa teoria que tem um tom darwinista

de seleção natural:

Os poetas fortes fazem a história deslendo-se uns aos outros, de maneira a abrir um espaço próprio de fabulação47.

O efebo ou poeta jovem, estará sempre exposto à possibilidade de repetir o seu

antecessor e é nesta luta que estará a angústia: ele deve matar o precursor para poder

viver e eternizar-se. O poeta forte é aquele que, no enfrentamento com o predecessor,

passa em visita as seis razões visionárias, que delimitariam os padrões de

desapropriação entre os poemas. São elas o Clinamen, a desleitura propriamente dita, o

desvio do poeta em relação ao seu predecessor; Tessera, complementação do precursor

na obra do novo autor; Kenosis que é a defesa contra a compulsão de repetição, através

de um esvaziamento do poeta; Demonização é a adoração ao avesso, o contra-sublime

do predecessor; Arkesis: movimento de purgação, diminuição de si mesmo que acarreta

a diminuição do precursor; Apophrade é o retorno dos mortos. O novo poeta sustenta o

seu poema aberto à obra do predecessor, sendo já uma reescrita deste.

Bloom faz, entre os movimentos revisionários e as figuras de linguagem, uma

analogia. O Clinamen seria a Busca, o equivalente a Ironia48, no seu sentido mesmo

desconstrutor, de arte de interrogar, com vista a provocar a maiêutica ou forçar o

surgimento idéias. O desvio se configura, então, no sentido de contestar o anterior e

apontar as suas falhas:

46 Idem, Ibidem. 47 BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da Poesia. Trad. Arthur nestroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991. 48 Neste trecho, todas as figuras de linguagem são estudadas segundo as definições de Massoud Moisés. Cf. MOISÉS, Massoud. Dicionário de termos literários . São Paulo: Cultrix,1974.

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O poema do precursor seguiu até um determinado ponto , mas depois teve de ser desviado, precisamente na direção em que segue o novo poema49.

Cotejando, mais uma vez com falas de Judith temos:

Então, em O meio da Pedra: nonas histórias genéticas, a forma está muito em evidência. É uma coisa que não herdei de nenhum predecessor meu brasileiro50.

Assim, o novo texto apontaria a falha e as limitações do anterior e traçaria, com o seu

próprio corpo, o caminho pelo qual o anterior deveria ter seguido.

A Tessera se identifica com a Queda e a Antítese, que é a conjunção do

contraste, da oposição, com a afirmação, este conceito já é encontrado no próprio étimo

da palavra: Anti = Contra; Thésis = Afirmação. Assim, na negação do anterior há a

afirmação do eu, é preciso que o predecessor caia para que o efebo se erga:

O poeta ‘completa’ antiteticamente seu predecessor, lendo o poema-pai de modo a reter seus termos, mas usando-os em outro sentido, como se o precursor não houvesse ido longe o bastante.51

A Kenosis é o Giro, é representado pela Metonímia que é “a substituição de um

vocábulo por outro, com o qual estabelece uma constante e lógica relação de

contigüidade52”, o poeta novo, de tão próximo do seu predecessor, precisa esvaziar-se

para que ele também se esvazie, seguindo a lógica metonímica da parte pelo todo e do

todo pela parte, tudo aquilo que atingir o efebo alcança também o predecessor:

O poeta que vem depois, aparentemente esvaziando-se de seu próprio estro, sua divindade imaginativa, parece submeter-se, como se estivesse deixando de ser poeta, mas esse refluxo é realizado em relação ao poema de refluxo do precursor de um modo que também esvazia o precursor, e assim, o poema de esvaziamento posterior não é tão absoluto quanto parece.53

49 BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da Poesia. Trad. Arthur nestroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 64. 50 GROSSMANN, Judith. Depoimento. In: Carlos Ribeiro (Org.) Com a Palavra O escritor . Salvador: fundação Casa de Jorge Amado; Braskem,2002.p28-38.p.32. 51 BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da Poesia. Trad. Arthur nestroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 64. 52 MOISÉS, Massoud. Dicionário de termos literários . São Paulo: Cultrix,1974. 53 BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da Poesia. Trad. Arthur nestroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 64.

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A Daemonização é a Progressão, na construção de um Contra –sublime em

relação ao sublime do precursor, é uma tentativa de desconstruir aquilo que é visto

como peculiar e único no precursor, apontando tais qualidades fora da obra do anterior

generalizando o que é visto como especial nele e encontrando tal traço nas obras de uma

época na qual o poema-pai se insere. Representado pela Hipérbole, que é uma figura de

exagero, o efebo realiza, com a Daemonização este excesso, deslocando e

democratizando um traço particular do poema-pai para uma comunidade inteira:

O poeta que vem depois abre-se para o que acredita ser um poder no poema-pai que não pertence ao pai mesmo, mas a uma gama de ser logo além de precursor. Ele faz isso, em seu poema, colocando a relação da obra com o poema-pai e modo a desfazer, pela generalização a unicidade da obra anterior54.

A Arkesis aproxima-se da Kenosis, mas, diferente dela, em lugar de esvaziar o

poema-pai, ele toma uma atitude de autopurgação passando por uma redução, abrindo

mão de parte de suas qualidades para afastar-se de uma gama de outros poetas, inclusive

de seu predecessor. Há, neste sentido, um Mascaramento, um jogo de disfarces que

objetiva produzir uma idéia de si que o afaste dos outros. Desta maneira, o sujeito

constrói uma Metáfora de si que faz com que se observe uma imagem menor e mais

humilde para que, exercitando o próprio conceito de metáfora possa-se ver, além da

máscara, um traço de diferenciação em relação aos demais escritores:

O poeta que vem depois não passa, como na Kenosis, por um movimento revisionário de esvaziamento, mas de redução; abre mão de parte de seu dom humano e imaginativo para separar-se de outros, incluindo seu precursor, e faz isso em seu poema deslocando-o em relação ao poema-pai de modo a fazer com que esse poema também passe por uma Arkesis; o talento do precursor é igualmente truncado.55

Na última fase tem-se a Apophrades, é o retorno dos mortos, o Combate que se

reconfigura numa preponderância aparente do poema-pai. Na verdade, engendra a

Melalespse, ou seja, a substituição do posterior pelo anterior, assim parece que foi o

efebo que escreveu antes do pai e não o contrário. Segundo Bloom:

54 Idem, ibidem, p 65. 55 Idem, Ibidem, p.25

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...o poema agora é mantido aberto ao precursor, quando antes estava aberto, e o efeito fantástico é que a realização de novo poema o faz parecer a nós não como se fosse o precursor a estar escrevendo-o, mas como se fosse o próprio poeta posterior houvesse escrito a obra característica do precursor.56

As reflexões de Bloom provocaram e provocam muitas divergências e, para nós,

não se aplicam de maneira completa nas relações entre a literatura de Judith e seus

predecessores.

Conforme já dissemos, compreendemos a relação das idéias de Judith com

T.S.Eliot e Bloom como as duas faces de um processo que é, por sua própria natureza,

ambíguo. Angústia e Phylia convivem no espaço criativo. Mas concluímos que relação

de Judith com os seus predecessores é muito mais regida por uma ambivalência, um

circuito descontínuo de idas e vindas entre prazer e desprazer; do reconhecimento e

agradecimento ao predecessor à vontade de soterrá- lo.

56 Idem, ibidem, p.25

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Não roubarás: A estética literária e a ética divina

A criação artística e literária é este ato de limpeza, de depuração, o aparecimento de uma linguagem ainda inexistente, nova. Mas o que é este novo arrancado do velho, novo, ovo, trisnovo, não rapinado? É assim a luta contra a biblioteca. Judith Grossmann, Ex-Hibit do laboratório de um conto .

Sarah Kofman, em seu livro intitulado A infância da arte: uma interpretação da

estética Freudiana, analisa toda a obra de Freud, discutindo o texto artístico e fazendo

uma leitura sintomal da teoria frediana de maneira que, seguindo o modelo da clínica

freudiana, coloca o texto para falar.

Baseando-se nos estudos de Freud, ela afirma a proximidade entre a técnica de

interpretação dos sonhos e da obra de arte, segundo ela:

Ele tem o mesmo objetivo, descobrir o arcaico sob o que parece novo. Permite compreender os temas das obras tirados de uma memória coletiva ou individual.57

Obedecendo às estruturas de dissimulação e recalque presentes nos sonhos, na

obra literária a "matéria primitiva das obras" está coberta por edificações que a

escondem a ponto de, muitas vezes, não ser reconhecida. Se entendermos esta matéria

primitiva não apenas como dados vividos, biográficos, mas também como sendo o

arcabouço de leitura, compreenderemos que, no texto ora escrito ecoam vozes a custo

silenciadas ou, como bem nos mostra Umberto Eco em seu texto Borges e a minha

angústia da influência58, vozes que emanam do texto à revelia da consciência de seu

escritor. Eco, neste ensaio, tenta nos mostrar como a literatura de Borges está presente

na sua obra desde detalhes de nomes a cenas inteiras de romances, e nos alerta para a

inconsciência em que estes fatos muitas vezes ocorreram, revelando-se para o autor

pelos olhos dos leitores ou por revisões feitas por ele mesmo a sua obra. Assim, Kofman

arremata:

57 KOFMAN, Sarah. A infância da arte; uma interpretação da estética freudiana.Trad. Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. 58 ECO, Umb erto. Borges e a minha angústia da influência. In: ECO, Umberto. Ensaios sobre a literatura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2003.

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A concepção de Freud é que a verdade só se oferece em suas deformações e é construída a partir delas. Não existe um texto originário traduzido por outros, mas sempre se é remetido de um texto a outro, de uma versão a outra, produzida pelo jogo diferencial de um mesmo fantasma universal que assim se estrutura59.

Na palavra escrita e apagada está uma escrita ulterior. Todo movimento de

escrita é, antes, uma rasura, uma tentativa de apagamento, de remodelação da escrita do

predecessor. O processo criativo engendra a negação do outro, a auto-afirmação, a

modulação de ecos, vozes e sussurros do predecessor no texto ora escrito. Segundo a

reflexão de Michel Schneider em Ladrões de palavras:

...Cada livro é feito de todos os livros, ou que todos os livros são um fragmento de um único livro infinito. A assinatura, a singularidade dos nomes é uma ilusão moderna que encobre o fato de que cada autor é muitos autores e que aquilo que constitui a literatura é muito mais a cadeia de repetições e a sucessão de formas impessoais do que o eco repercutindo nomes próprios. Escrever é perder o poder de dizer 'eu'60.

Assim sendo, Schneider reforça uma idéia já presente em muitos depoimentos e

prefácios de textos de Judith Grossmann. Destaco, neste momento, uma afirmação

presente no texto Exhibt: o laboratório de um conto61. Nele, a autora afirma que existe

não um livro, escrito por um autor, e sim O Livro Interminável: escrito por todos os

escritores que existiram, existem e que existirão. Assim sendo, Judith Grossmann

encarna a Penélope, uma vez que ela tece fio a fio a sua literatura durante o dia após o

trabalho traiçoeiro e taciturno de desconstrução do trabalho de seu predecessor,

entretanto é interessante refletir: os fios são os mesmos, ou seja, o mesmo livro

interminável, mas o novo escritor, segundo a concepção de Grossmann, tecerá, com

estes mesmos fios, um novo desenho. Tecerá o seu desenho:

Eu quero é continuar a estirpe que me precedeu, a genealogia , a raça, o laborioso trabalho de gerações e gerações de artistas, e ao

59 KOFMAN, Sarah. A infância da arte; uma interpretação da estética freudiana.Trad. Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. 60 SHNEIDER, Michel Ladrões de Palavras; ensaios sobre plágio, a psicanálise e o pensamento. Trad.: Luiz Fernando P.n. Franco. Campinas:UNICAMP,1990. 61 GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.

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mesmo tempo livrar-me de toda origem, tornar-me nesta raça agora que ambiciona fazer um texto puro em seu caráter destrutivo, que longe de ser todos os nomes da história, os elimina a todos - e nunca me ocorreria pronunciá -los no espaço do próprio texto.62

Numa outra fala de Grossmann percebe-se sede da remodelação, da destruição

para a construção do “novo”, como se querendo garantir um espaço de fala, de poder:

Apesar disto, o fundamental se mantém o que eu escrevi, e não o que o outro escreveu, sendo esta, de todas as verdades, a maior verdade63.

Podemos recuperar as reflexões de Sarah Kofman acerca do caráter edipiano, no

sentido mesmo de matar o pai e tomar o seu lugar, de toda a obra de arte:

...De todos os modos, admirar o herói é ainda admirar indiretamente o pai, pois o herói só o é por identificação com o pai e por desejo de substituí-lo. O 'assassinato' do pai pelo artista se realiza através de uma regressão ao estado narcísico64.

Judith Grossmann parte do pressuposto que toda obra vem para preencher o

vazio deixado pela anterior, e é neste movimento de suplementação que a sua obra

emerge. O seu investimento é na remodelação de temas, roubando e apropriando-se o

discurso anterior a fim de suplementá- lo.

Os rastros de leitura podem ser perseguidos pelas pistas deixadas no decorrer do

seu texto, ou numa visita ao "Acervo Judith Grossmann", pelos riscos, exclamações e

grifos efetuados por Judith em várias obras ali depositadas. Quem for ao acervo e

folhear as obras notará, em muitas delas, um traço sutil, como que temente de rasgar a

integridade branca da margem com as suas anotações e exclamações. O espaço da

margem escrita a próprio punho no livro de outrem tem uma forte simbologia de tornar

este texto "meu", apossar-se dele, marcá- lo com outra grafia e, ali mesmo, dentro de seu

espaço, corrigi- lo, criticá- lo; acariciando a fibra do papel, mas, na carícia, imprimindo a

62 GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.p.230. 63 GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.p.230. 64 KOFMAN, Sarah. A infância da arte; uma interpretação da estética freudiana.Trad. Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.

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cicatriz de uma outra fala. Acerca disto Antoine Compagnon afirma em seu texto O

trabalho da citação:

O grifo na leitura é a prova preliminar da citação (e da escrita), uma localização visual, material, que instrui o direito do meu olhar sobre o texto. Tal como um reconhecimento militar, o grifo coloca as marcas, localizadores carregados de sentido, ou de valor; ele superpõe ao texto uma nova pontuação, feita ao ritmo da minha leitura: são os pontilhados sobre os quais mais tarde farei recortes65.

Todo este processo de escrita notado em Grossmann, caracterizado pela marca

das leituras anteriores na escrita produzida, é discutido pela autora no texto Exhibt: o

laboratório de um conto66, não apenas buscando identificar o texto tomado para diálogo,

seja ele literário, pictórico ou musical, mas também o modo como este interferiu na

construção do conto intitulado O pelotão de fuzilamento. Entretanto, no bloco mágico

da memória, assim como naquele notado por Freud 67 existem marcas que não podem ser

decifradas. A página de papel em branco pode aceitar qualquer mundo68 mas, a

memória do sujeito que cria e escreve estes mundos, está imersa em lembranças de

mundos já constituídos que assaltam a cena da escrita e nela se intrometem. Pode ser

apenas um olhar, uma fala, um nome e, por conta desta sua discrição em ocupar os

lugares da escrita, muitas vezes, passam desapercebidos: sabe-se que há traços e riscos

que denunciam a leitura e a proximidade com os predecessores, entretanto a

inteligibilidade destas está comprometida pelos jogos de recalque e dissimulação que

engendram a criação literária.

Quando Grossmann constrói o Ex-hitb, inscreve-se numa tradição que discute

um dos temas mais importantes da teoria da literatura: o processo criativo. Edgar Allan

Poe, com a sua exposição dos passos para a criação de "O Corvo" é recuperado neste

65 COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P.B. Mourão. Belo Horisonte:UFMG, 1996. 66 GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.p.230. 67 “No entanto, é fácil descobrir que o traço permanente do que foi escrito está retido sobre a própria prancha de cera e, sob luz apropriada, é legível. Assim, o Bloco fornece não apenas uma superfície receptiva, utilizável repetidas vezes como uma lousa, mas também traços permanentes do que foi escrito como um bloco comum de papel: ele soluciona o problema de combinar as duas funções dividindo-as entre duas partes ou sistemas componentes separados mas inter-relacionados.” Cf. FREUD, Sigmund. O estranho.In: FREU, Sigmund. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Trad. José Luís Meuer. Et. Alli. Rio de Janeiro:Z-movie studio, 20??.Vol.XIX. 68 Parcialmente recortado de João Cabral e Melo Neto.

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exercício empreendido por Judith; não só ele, mas também Valéry e João Cabral. Estes

três escritores acreditaram na criação literária como uma construção, evocando, assim, a

imagem do poeta apolíneo que constrói a sua literatura a partir de exercícios puramente

racionais. E, assim que Apolo chega à cena das discussões sobre a criação, aparece

também o seu oposto complementar, Dionísio. Apolo e Dionísio, que no processo

criativo funcionam como metáforas para a razão e a emoção, são comumente pensados

como realidades excludentes. Nos estudos literários esta idéia só começa a ser

enfraquecida na metade do séc XX uma vez que, até então, se interpretava o processo

criativo como composto pelas dicotomias:

o poeta racional, o poeta possesso; o poeta apolíneo, o poeta dionisíaco; o poeta racional, o poeta irracional. De um lado, o poeta construtor, que trabalha arduamente na sua oficina...do outro, o poeta inspirado, que pode transitar por outras realidades independente de sua vontade e de seu querer.69

Entretanto, com a ascensão das reflexões sobre as relações estabelecidas entre

sujeito e a linguagem, revelam-se meandros que não permitem uma creditação da

criação exclusivamente a Apolo ou a Dionísio e, neste ponto, as reflexões de Freud70

sobre o conteúdo latente e manifesto de toda realização lingüística são indispensáveis. O

sujeito não apenas fala uma linguagem, mas é também falado por ela. Nela há sempre

uma camada do que é o dito e outra do que é interdito pelos movimentos de recalque e

dissimulação que adentram a cena da escrita. Compreende-se, então, que a dicotomia

Apolo x Dionísio deve ser convertida numa ambivalência.

Assim sendo, por mais que o exercício empreendido por Judith recupere traços

das falas dos "poetas artesãos", podemos perceber isto muito mais como um ato de

fingir, uma estratégia de criação, do que uma convicção ou postura acerca da criação

literária. Judith expõe com detalhes as condições de criação e as obras que inspiraram-

na. Todavia, ainda no início de seu texto Grossmann assume:

69 HOISEL, Evelina. O processo Criador: algumas reflexões. Revista da escola e Música da UFBA. Salvador: edUFBa, 1992. Ago. p.79-85. 70 “O intervalo, a idéia foi… Não sabemos o quê. Podemos dizer que esteve latente, e, por isso, queremos dizer que era capaz de tornar-se consciente a qualquer momento. Ora, se dissermos que era inconsciente, estaremos também dando uma descrição correta dela. Aqui ‘inconsciente’ coincide com ‘latente e capaz de tornar-se consciente”. Cf. FREUD, Sigmund. O estranho.In: FREU, Sigmund. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Trad. José Luís Meuer. Et. Alli. Rio de Janeiro:Z-movie studio, 20??.Vol.XIX.

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...escolhi um conto de minha autoria, O pelotão de fuzilamento, não por acaso escrito no Rio, no carnaval de 1994. Fica claro, contudo, que por mais que eu queira descerrar esta oficina, não poderei cabalmente chegar ao começo de meu dom, pois esta é a pedra de toque, a pedra fundamental, o mistério maior que permeia todas, ou qualquer capacidade71.

Então, o que se traça aqui é um exercício de recuperação de pistas de lugares,

situações e condições de produção. É um descortinar da criação que se dá

conjuntamente a uma consciência da impossibilidade da revelação de todo o processo.

A literatura de Judith erige-se, sim, através destes diálogos e debates mantidos

por ela com a Família Literária que ela assume como sendo sua, no entanto, é

indispensável perceber que estes movimentos de aproximação e afastamento muitas

vezes se esmaecem ou diluem no texto, como em O meio da pedra; Nonas Histórias

Genéricas72 . Na verdade, podemos perceber, através das visitas ao acervo e da leitura

de depoimentos, que isto se configura como uma estratégia de criação, como um

investimento de um projeto literário. Projeto este oriundo de uma professora e

pesquisadora de literatura que, com uma percepção aguçada de leitura, lança-se sobre a

obra do outro para esgarçar fragilidades e apontar novos caminhos de narração.

Poderíamos compreender, então, a criação literária de Judith como uma outra

estética do narrar: criar a partir do silêncio do outro, criar a partir da incongruência da

fala do outro, criar a partir as lacunas do discurso do outro, ocupando o lugar (inter)dito

utilizando-se, para tanto, da ética da criação literária.

O modus operandi da criação de Judith, na verdade, deixa à mostra os nervos da

literatura e um de seus maiores tabus. A proibição que recai sobre a apropriação da fala

do outro no discurso literário, sobre o "roubo de idéias", sobre o plágio. Isto nos conduz

a uma reflexão: o que é próprio (meu) e o que é do outro, no que diz respeito às idéias?

Será que existe realmente este fio do pensar que, possamos tomar em nossas mãos e,

acompanhando-o, consigamos descobrir a origem das idéias, ou serão todas as idéias

ditas originais não mais que o eco de falas e idéias distantes que, em algumas mãos

tomam novo fôlego e revelam-se?

Como o indivíduo se constrói senão a partir de pedaços do outro? Somos partes

de nossos pais, regidos, desde o início, pela herança, desta vez a genética, e através da 71 GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith Grossmann Rio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.p.228. 72 Cf. GROSSMANN, Judith. Depoimento. In: Carlos Ribeiro (Org.) Com a Palavra O escritor . Salvador: fundação Casa de Jorge Amado; Braskem,2002.p28-38.

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vida somos sempre herdeiros legítimos ou ilegítimos. Como aprendemos a falar, senão

por imitação? Como construíram-se os grandes intelectuais e as grandes descobertas

senão através da junção de coisas ouvidas, lidas, sentidas, enfim, aprendidas a partir do

que se pode tomar do outro? Por que, então, tanta vigília de velas e luzes acesas a fim de

evitar que o que é do outro adentre em meu discurso? Não se defende aqui o afanar de

autorias e o tomar, deliberadamente, a fala do outro como sendo totalmente “minha”,

mas de reconhecer o diálogo como indispensável à criação.

A imagem do criador isolado em seu claustro de criação é poética, mas esconde,

em sua beleza, uma angústia e uma impossibilidade: a anulação da influência da obra

do outro no texto, a ânsia de produzir aquilo que seja totalmente original. O eu é

construído por aquilo que se arrasta e que é atraente no discurso do outro e é a partir

disto que este eu se levanta. O eu não é uma cópia do outro, ele representa todas as

possibilidades de ser o que o outro não foi. Não queremos dizer que este

reconhecimento seja isento da angústia e da negação, mas o amor não é aquela coisa da

angústia, da controvérsia?73

Quando Judith declara quais são os autores que a influenciaram, discute em sala

de aula, em congressos e em eventos as obras destes autores e busca esclarecer sempre a

importância de cada um para a sua escrita, ela traça um estudo prático das teorias

levantadas acerca da recepção e da criação literária. O seu projeto literário toma o

alcance desta multiplicidade intelectual de professora-teórica-escritora, que se insere nas

discussões acerca do pensar a literatura e o fazer literário expondo-se como material de

estudo.

73 Cf. GROSSMANN, Judith. Depoimento. In: Carlos Ribeiro (Org.) Com a Palavra O escritor. Salvador: fundação Casa de Jorge Amado; Braskem,2002.p28-38.

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O arquivo como museu do imaginário

No meu entender, e dentro do um projeto de criação, publica-se tudo que se pode publicar em livros, em bons endereços, revistas suplementos literários, e deixa-se o legado para os pesquisadores e leitores.

Judith Grossmann

Parafraseando Judith Grossmann em seu prefácio Do Autor ao leitor no livro

Meu Amigo Marcel Proust Romance74, afirmo que, para tecer reflexões sobre este

sujeito multifacetado, são várias as portas pelas quais se pode adentrar: pela professora,

pensando em suas dezenas de orientandos de pós-graduação que, em seus trabalhos,

seguem e desenvolvem algumas reflexões da mestra, ou nos de graduação, em sua

maioria capturados pelo amor ao ensino e vocação da professora; pela escritora, em seu

labor artístico explorado em todo o seu virtuosismo em poemas, contos e romances

éditos e inéditos; pela crítica, que se mostra de maneira ativa e cheia de energia no

comentário de obras de outros autores e no estudo da literatura, ou ainda pelo sujeito

que se delineia por entre as brechas das várias faces deste indivíduo.

É esta a porta escolhida, a que menos se revela, avizinhada pelo silêncio tenso

que cerca todas as fronteiras e pelo porvir que antecede toda a travessia. Começamos

esquadrinhando, na impossibilidade de, como detetives, invadir os seus aposentos e

escarafunchar as suas gavetas de guardados, ficamos com a sombra disto: o arquivo

Judith Grossmann, na Biblioteca Reitor Macedo Costa, na Universidade Federal da

Bahia.

O arquivo é, por si, quando exposto, uma antítese: o guardado é o exposto, ali

passado e presente se digladiam na cena do arquivo. Aquilo que é particular, que é

próprio do alheio se torna bem comum, o arquivo é uma marca pessoal que só tem valor

e importância pelo seu poder de contar uma história, uma narração alegórica cuja chave

pertence a um único indivíduo. Quando chegamos ao arquivo a sensação é que, ao abrir

as páginas dos livros, ao escarafunchar as pastas, pegamos uma história pela metade e

não há como alcançar o seu começo. Isto se abranda por conta da metodologia acionada

por Judith na separação do material. Todo ele encontra-se datado, aos textos a autora fez

acompanhar pequenas informações que dão conta de quando, onde e porque eles foram

74 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro:Record,1997..

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produzidos. Aos eventos, além de folders com a propaganda informativa, ela coloca

recortes de periódicos vários noticiando o evento. Assim, ela consegue tornar o estranho

mais familiar e oferece, generosamente, pistas para os pesquisadores. Rompendo os

limites entre o privado e o público e expondo fragmentos de uma vida ao olhar do outro,

a lógica do arquivo finda por obedecer à lógica da obra literária: A minha literatura é a

minha vida transformada75 ressoa a fala de Judith. O arquivo é um fragmento de vida

que, imediatamente, se converte em texto exposto a uma interpretação. Assim como na

obra de arte, no arquivo um sujeito é colocado em exposição, há, em ambos, um caráter

de doação do “eu” ao estranho, ao outro, e esta é uma generosidade muito presente no

texto literário.

Assim sendo, podemos pensar que a relação entre leitor e autor é reecenada no

ambiente do arquivo, esta relação é discutida por Judith Grossmann em seu texto O

elogio da Diferença76. Neste texto, a autora chama a atenção para a solidão que permeia

tanto o ato de leitura quanto o de escrita, afirmando que ela é um gesto de exposição de

uma subjetividade e de um mundo diferente e incorrespondente com o mundo alheio. A

autora aponta a coragem e generosidade que estão imanentes ao ato da escrita: expondo

as suas fragilidades e a sua estranheza, o autor de literatura consola o leitor em sua

solidão. A obra é, então, expressão plena da outridade e revelação da solidão que é

universal:

Os escritores são aqueles que, aceitando cabalmente a sua individualidade, tornam-se capazes de aceitar a individualidade de todos, um por um.77

Assim, ao expor em suas obras seus monstros, sonhos e desejos, ao colocar na

escrita as suas angústias e fragilidades, o autor abre o espaço para a "naturalização"

destes impasses pessoais convertendo-se num espelho universal. Segundo Judith, o

autor torna-se um "semelhante" para os demais homens. Na medida em que a sua

singularidade é por ele mesmo aceita, ele está pronto para aceitar a individualidade de

todos os homens. Publicar e expor estas obras é, a um tempo, ato extremo de humildade

e heroísmo:

75 Cf. GROSSMANN, Judith. Judith Grossmann: Entrevista. Entrevistadores: Alunos Universidade Católica do Salvador. Salvador: Biblioteca Reitor Macedo Costa, 1996. 1 cassete sonoro (60 min) documento parcialmente transcrito por Lívia Souza. 76 GROSSMANN, Judith. O Elogio da Diferença. In:________. Estudos; Lingüísticos e Literários. Salvador:EdUFBa, n.18, p 71-75, dez. 1995.p.71 77 GROSSMANN, Judith. O Elogio da Diferença. In:________. Estudos; Lingüísticos e Literários. Salvador:EdUFBa, n.18, p 71-75, dez. 1995.p.71

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A obra literária é sempre o encorajamento de um indivíduo pelo outro, que naturaliza o expor-se, e que se expondo diante do outro, o leitor, torna claro que aceita o seu testemunho, por decorrência aceita-o como outro em sua diferença e em sua individualidade78.

Podemos, avançando um pouco sobre o texto, perceber que esta relação de

cumplicidade entre leitor e autor é retomada no âmbito do arquivo entre o visitante e o

material ali arquivado:

Esta simetria [entre o ato de ler e o de escrever] é o abre-te sésamo e também o fecha-te sésamo, porque tal mistério nunca inteiramente se revela, desta singular imantação no ato de ler. É que ela também existe no ato de escrever, quando uma subjetividade se mostra convidando, encantatóriamente, o outro a abrir-se, a mostrar-se, a deixar-se ver79.

O conteúdo do arquivo prenuncia um sujeito que se faz pressentir uma vez que

ele se erige a partir de uma seleção de recortes do eu. Ao adentrar no arquivo e folhear o

material, o visitante vê levantar-se, diante de si, a sombra de um indivíduo construída a

partir de papéis e objetos vários. O arquivo, local extremamente impessoal, simula uma

proximidade entre os sujeitos a partir da exposição da intimidade de um ao olhar curioso

sobre o outro. A identificação nasce do fato de que todos nós carregamos na memória

registros sensíveis que se revelam significativos cada vez que singularizados sobre um

objeto. Cartas, guarda-chuvas, papéis, enfim, tudo aquilo que aos olhos do outro se

reduzem a meros objetos, despojos do tempo, para o indivíduo são marcos da história

pessoal. História esta que só encontra onde se engastar dentro do sujeito que a viveu,

são fragmentos que atribuem sent ido a um ser:

... o relógio armário vacaniza com seu tic -estalos-tac a tempo iguais do pêndulo cá e já logo lá e a lua do mostrador me manda além das três e meia das horas, o sem-número de caras que as procuraram no tempo e que não procuram mais saber quantas são. Se fosse uma raridade de antiquário, não me diria nada. Mas é um de armário que bate as horas para minha gente há mais de cem anos80.

78 GROSSMANN, Judith. O Elogio da Diferença. In:________. Estudos; Lingüísticos e Literários. Salvador:EdUFBa, n.18, p 71-75, dez. 1995.p.71 79 GROSSMANN, Judith. Oficina Amorosa: Depoimento. In: HOISEL, Evelina. (Org.)Estudos; Lingüísticos e Literários. Salvador, edUfba, nº15. p.47-71.1993. 80 NAVA, Pedro. O Galo-das-trevas. Memórias 16. Rio de Janeiro:Nova Fronteira,1987. p.28.

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Segundo Eneida Maria de Souza 81, Pedro Nava, no texto O Galo-das-trevas,

elenca uma série de objetos que carregam uma carga significativa, uma vez que têm o

poder de contar a vida do indivíduo. Em lugar de carregar dentro de si os marcos

mnemônicos, o autor cerca-se de suas lembranças dando-lhes um corpo. Ao expor, num

texto, a história emocional destes objetos, o autor revela-se em suas fragilidades e abre o

espaço para a inevitável identificação do leitor. Esta é a sensação de quem adentra no

acervo Judith Grossmann, nele a vida intelectual de um indivíduo se revela carregando

consigo marcas da pessoalidade que não se constrói isoladamente da figura do pensador.

Entre um artigo e outro, prescutando, entre os envelopes, pastas e cartões, traindo o

insípido do ambiente, murmureja a história pessoal do indivíduo. Se refletirmos sobre o

fato de que foi a própria Judith que selecionou e organizou os materiais que compõem o

seu arquivo, perceberemos o quanto de subjetividade se esconde entre os livros e a

poeira das estantes.

Um sujeito que faz o seu arquivo, selecionando fragmentos de uma vida para a

exposição espera que aqueles materiais possam fazer sentido para o outro. Assim como

Pedro Nava escreve sobre as lembranças que inundam o presente com o passado, Judith

Grossmann faz, do âmbito do arquivo, seu museu pessoal, onde se misturam a leitora:

com uma pequena, mas variada, amostra de livros da literatura universal; a crítica e a

teórica: com uma série de artigos e ensaios sobre os mais variados autores; a professora:

com anotações de aula e o indivíduo: com o detalhe da escrita, dos marcadores de

página, recortes de jornal, enfim, revela-se, em sua multiplicidade, um sujeito

complexo, que se expõe, provocando no visitante uma sensação de reconhecimento e

identificação.

A construção e arquivos, imaginários ou não, é um traço inerente ao ser humano.

Todo indivíduo carrega dentro de si histórias, rostos e lembranças que circulam, como

demônios, nas periferias do ser e, cotidianamente, emergem numa dança absurda assim

que despertados. A ausência da lembrança é ausência de si. Um indivíduo que não tenha

o que recordar não se constitui em toda a sua complexidade: a impossibilidade de

lembrar é a impossibilidade de viver. Nossos baús de guardados são a forma de nos

preservar do tempo que nos devora. Ao conservar a memória em objetos vários o

homem tenta enganar a morte e trazer de volta à vida os desencarnados.

81 Anotações de aula durante palestra ministrada na Universidade Federal da Bahia.

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A imagem de Scherazade é, na verdade, arquétipo de todo indivíduo. Ao narrar

as suas histórias maravilhosas para o sultão, ela submetia a passagem do tempo e a

proximidade da morte a atemporalidade da narrativa. Assim, a morte não chegava nunca

pois, sem o tempo, não tinha por onde caminhar, Judith, tal como Sherazade, embala, no

ritmo da narrativa do arquivo, o caminhar do tempo e, por conseguinte, adia a morte.

Enquanto a maioria de nós constrói arquivos interiores e particulares, Judith

resolve não só expor, mas doar e selecionar os materiais que irão compor os seus dois

arquivos: um deles presente na Biblioteca Central Reitor Macedo Costa, na

Universidade Federal da Bahia e, o outro, na Casa Ruy Barbosa, no Rio de Janeiro. O

arquivo da UFBa, ao qual tivemos acesso, ocupa três ou quatro prateleiras baixas, atrás

de uma coluna que, a um tempo, as mostra e encobre, a depender do ponto de vista do

observador que adentre o local que, impondo-se com a sua ausência de poeira e de vida,

parece-nos um grande olho do tempo aberto sobre nós. O arquivo consta de um certo

número de livros, pastas-arquivo, fitas de cassete e papéis que nos dão a impressão de

estarmos invadindo a casa alheia. Somos como ladrões ou bisbilhoteiros que

esquadrinham os guardados de outrem abrindo os seus invólucros e abespinhando os

seus segredos. Na verdade, somos ladrões convidados a penetrar em dados lugares da

casa, como tias velhas, que nos visitam futucando os guardados que lhes revelamos

evitando, assim, que alcancem aquilo que verdadeiramente precisamos esconder. Sob a

aparente revelação de generosidade há uma estratégia de mostrar detalhes que pouco

comprometam os segredos que, no fim, permanecerão guardados. Todos os materiais

que constam no arquivo, foram selecionados buscando obter uma coerência discursiva

que nos aponta, não uma simples reunião de papéis num baú de guardados. Mas, a

sensação, é de termos em mãos uma fotografia íntima do sujeito. Fotografia, como as

demais, manipulada por um ângulo e comprometida por um modo de concepção do

mundo. No caso do arquivo Judith Grossmann, todo material foi selecionado pela autora

o que, de certa forma, os compromete. Assim como num testemunho autobiográfico o

sujeito escamoteia e recalca fatos desagradáveis e elege, destacando, acontecimentos

positivos.

A manipulação dos materiais para a construção do arquivo impõem a eles um

comprometimento ideológico na formação de uma auto- imagem que se deseja mostrar.

Se pensarmos o arquivo pessoal como um texto, perceberemos que tudo aquilo que ali

está armazenado são formas de narrar o sujeito. Judith Grossmann, que, ironicamente,

costuma chamar os seus depoimentos de memórias ficcionais, erige, para si, um

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monumento autobiográfico tão ficcional quanto os seus depoimentos. É notável a

ausência de cartas pessoais no arquivo, o que, de certa maneira confirma a nossa idéia

do recalcamento de fragmentos outros do sujeito a fim de manter uma harmonia

narrativa.

Inserindo-se nas reflexões acerca do que é a ficcionalidade na obra literária,

esteira comandada por Fernando Pessoa com a criação de seu heterônimos, Judith

Grossmann levanta tais reflexões a partir não apenas da obra, mas do arquivo.

Costumamos a compreender como pertencentes à obra ficcional do autor aqueles textos

marcados com a classificação do literário. Em Judith isto é muito presente, uma vez que

muitos de seus textos se fazem acompanhar da palavra que marca a tipologia a qual

pretensamente pertencem, a exemplo de Fausto Mefisto Romance82, Meu Amigo Marcel

Proust Romance83, Vária Navegação Mostra de Poesia84.

Isto ocorre de maneira marcante nos romances. Assim, com a ilusão da fácil

identificação da tipologia escrita na capa como nome de remédio, o leitor, que não

estiver atento às várias bulas, poderá “tomar” um livro no qual se misturam prosa e

poesia, naquilo que se convencionou chamar de prosa poética, como poesia pura. Desta

maneira, ludibriando os desavisados, a autora nos dá um ensinamento da Teoria da

Literatura acerca do hibridismo entre os gêneros literários. O romance não é só

romance, é tragédia e é poesia, a lírica toma para si o tema épico da navegação e o conto

pode adotar o modo dramático de narrar como em Navegando rio acima85. Assim como,

o depoimento não é mais, como se poderia pensar, o real sobre o sujeito, inserindo-se

nas discussões do real como construção de linguagem, a autora denomina as suas

memórias, mostradas em depoimentos de "memórias ficcionais", traindo a possibilidade

de compartimentalização do sujeito e, repetindo versos de Fernando Pessoa: "finge tão

completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente86".

O arquivo que poder-se-ia pensar como fora da obra é um lugar de continuação

da ficcionalidade na construção do indivíduo. Perde-se assim, a diferenciação entre

sujeito literário e sujeito humano. A disposição daqueles livros nos dá a impressão de

82 GROSSMANN, Judith. Fausto Mefisto Romance. Rio de Janeiro:Record,1999. 83 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust. Rio de Janeiro:Record,1999. 84 GROSSMANN, Judith. Vária Navegação; Mostra de poesia. Salvador: S.n., 199?. 85 GROSSMANN, Judith. Navegando Rio acima. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.p.228. 86 PESSOA, Fernando. Autopsicografia.In:_______. O eu profundo e os outros eus . Rio de Janeiro: Nova Frontira,2003.

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uma desordem íntima e silenciosa. Aparentemente apaziguados na arrumação artificial

da estante, registrados, numerados e friamente dispostos por ordem alfabética, por

ordem de assunto e, mais ainda: pela desordem das mãos que os manusearam e

organizaram construindo, assim, o simulacro da estante verdadeira, das mãos

verdadeiras, da ordem verdadeira que apenas a dona verdadeira destes livros poderia

oferecer.

O arquivo Judith Grossmann é uma ruína da biblioteca da casa do Rio

Vermelho, ou da Amaralina? É fácil dirimir esta dúvida: todos os textos manuscritos ou

datilografados, e ainda muitos livros, registram datas e locais e, em caso de perda ou

extravio, o endereço com telefone e aviso de gratificação com uma insistência

desconcertante. O arquivo é também uma alegoria da presença/ausência de Judith

Grossmann, ela mostra-se pela sua caligrafia, seus clipes de papel coloridos, seu

curriculum resumido, seu nome escrito a próprio punho com uma caligrafia professoral,

mas esconde-se pela invisibilidade de suas digitais e de seus sentimentos que apenas

podem ser pressentidos pelo visitante.

O arquivo de Judith, na verdade, encena uma luta entre a permanência e o

apagamento, a lembrança e o esquecimento de sua presença. O papel amarelecido

mostra-nos não só o tempo passado, mas também a distância que aqueles papéis

preservam entre o nome ali escrito, tão próximo e o indivíduo tão distante, entretanto,

não podemos deixar de nos lembrar das reflexões de Michel Foucault em seu texto O

que é um autor acerca do nome do autor:

O nome do autor não transita como o nome próprio, do interior do discurso para o indivíduo real e exterior que o produziu, mas, de algum modo, bordeja os textos, recortando-os, delimitando-os, tornando-lhes manifesto o seu modo de ser ou, pelo menos, caracterizando-lho. Ele manifesta a instauração de um certo conjunto de discursos no interior de uma sociedade e de uma cultura87.

O nome ali escrito “compromete” o material lido, lhes dá, não apenas um

donatário, mas uma história social, política, emocional, localizando-os e inserindo-os no

tempo e na cultura de um povo. Assim sendo, por mais que haja, no âmbito do arquivo,

jogos de mostrar e esconder, no momento em que se revela o nome se desfaz uma aura

87 Cf.FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Trad. Antônio Fernando cascai; Edmundo Cordeiro. São Paulo: Passagens,1992. Col.Veja. p0

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de mistério e se revela um sujeito. Um sujeito que, como no caso de Judith, não apenas

é o leitor daquelas obras, mas também é o escritor das suas próprias obras.

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CAPÍTULO II

MEU AMIGO MARCEL PROUST:

SALÕES PÓS-MODERNOS EM AULAS FICCIONAIS

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Pedagogia e permanência: Judith Grossmann e a narrativa de ensinança

Escreve-se sempre o último livro de todos os jamais escritos, e também o seu, último, se se pára de escrever, morre-se, apenas para renascer e recomeçar. Judith Grossmann, Meu Amigo Marcel Proust Romance.

A prática crítica, pedagógica e literária de Judith Grossmann resulta num

entrecruzamento de discursos que pode ser percebido tanto nos textos de crítica, quanto

nos manuais de Teoria da Literatura e textos resultantes de grupos e pesquisa na UFBa

e, igualmente, em seus contos e romances.

Nas salas de aula e nas discussões críticas, o saber de professor de Teoria da

Literatura e Criação Literária é adicionado ao saber de poeta, contista e romancista,

oferecendo a alunos, estudiosos e leitores de crítica literária, a um tempo, o

conhecimento das duas faces de um mesmo processo: criação e a reflexão sobre a obra

de arte. Entretanto, acreditamos que é no texto literário que este trânsito de idéias se

revela de maneira definitiva. Através da sedução e da beleza do texto literário, temas de

Teoria da Literatura recebem um tratamento estético e se carnalizam, não mais em

reflexões e debates de sala de aula, de congressos ou artigos de revistas críticas, mas no

corpo, na personalidade e nas ações das personagens. Assim, o ensino e os debates

teóricos e críticos, que outrora ficariam restritos aos alunos que com ela compartilharam

a aprendizagem de sala de aula, e leitores, que retiram das bibliotecas as discussões

aprisionadas entre mofo e o silêncio das estantes, agora pode ser fruído por um número

de incontáveis novos discípulos e pares de debate: os leitores de suas obras literárias.

Em suas entrevistas e depoimentos, Judith Grossmann nos aponta o que pode ser

entendido como um projeto literário: a formação de uma comunidade de leitores-

pesquisadores de sua obra e, subjacente a este, um desejo de continuar sendo a

Professora Judith Grossmann através da sua obra, assim, toda a obra de Grossmann

pode ser entendida como uma narrativa de “ensinança”. É na obra literária que se

imantam e perenizam-se as múltiplas faces deste sujeito.

A nossa hipótese de trabalho é que, ainda que afastada das salas de aula, Judith

Grossmann, através de sua obra literária, permanece ensinando e discutindo os vários

temas de teoria da literatura construindo, desta maneira, uma infinita cadeia de leitores-

alunos.

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Dentre as reflexões literárias que interpelam os teóricos e críticos de literatura,

aquelas que são mais recorrentes na obra de Judith Grossmann são as que dizem

respeito aos processos de criação literária, à construção da narrativa e à ligação entre o

ensino e a literatura. Na sua escrita isto pode ser percebido, por exemplo, no uso da

metáfora da literatura como a “velha senhora”.

O livro Outros Trópicos Romance88 pode servir de exemplo de como se dá este

processo de espelhamento crítico entre teoria e literatura. Este texto pode ser lido como

uma reflexão acerca do processo criador em suas faces apolínea e dionisíaca89. A

personagem principal, o engenheiro Simon, representa a face apolínea da criação, o

apuro formal e o prazer da medida. Dono de uma construtora de imóveis, leva uma vida

de aparências com as suas quatro esposas, com cada uma delas ele está num dado

momento do dia, convivendo com elas, mas sendo, antes de tudo, um solitário, uma vez

que não se envolve em nenhum destes relacionamentos:

Apesar de toda cooperação era difícil respirar, havia obtido aqueles cinco minutos de sursis, improvável intervalo por haverem se ausentado as donas de suas outras quatro moradas, que desta nada sabiam, o que não anulava a vigília, deveria estar em cada uma delas em diferentes horários, nos quais receberia telefonemas e notícias, segundo o que fora combinado, deixadas de fora as horas do escritório, onde prosseguia o seu combate.90

Uma vez que nutre um horror a todo tipo de profundidade, Simon coleciona as

quatro esposas: Lúcia, Magda, Norma e Sara e permanentemente mantém com elas um

jogo de aparências que sustenta a vida dos casais:

Simon entrou com sua chave no apartamento de Norma, encontrou o miolo do silêncio. Ninguém com quem contracenar.91

Desde a infância, Simon alimenta esta face apolínea. A força física e a saúde do

corpo o contrapunham ao irmão Francisco para sempre em seu casacos, seus tremores,

suas febres, seus calafrios92 o irmão representa, na sua fragilidade romântica, o perfil

dionisíaco da vulnerabilidade e da sensibilidade artística. Já Simon constrói-se, e a

metáfora do engenheiro não está aí à toa, como extremo oposto de Francisco, num

88 GROSSMANN, Judith. Outros Trópicos Romance. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. 89 Esta discussão já se apresenta de maneira mais detida na tese de doutorado da Profª. Drª Lígia G. Telles. Cf. Périplo Peregrino; o perfil do artista na produção textual de Judith Grossmann. Inédito. 90 GROSSMANN, Judith. Outros Trópicos Romance. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.p.06. 91 GROSSMANN, Judith. Outros Trópicos Romance. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.p.29. 92 GROSSMANN, Judith. Outros Trópicos Romance. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.p.05.

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espelho convexo no qual as enfermidades e fragilidades do irmão, nele convertem-se em

força e firmeza:

Como soubera deslizar de sua origem como um escorpião, um peixe, enquanto seu irmão Francisco, estirado no canapé, olhava pra dentro os olhos do pai, afogava-se nos da mãe, não dava nojo isto? ele queria voltar pra dentro...Menino quisera pôr-se fora, erigir a sua casa, obsessivo nome, casa, longe, sobre pedra, não sobre areia mesmo, ou sob, mais longe, a palavra era longe, de qualquer sítio antigo...com os bolsos virados pra fora cedo desembandeirou, enquanto Francisco lá ficava inteiriçado no divã, como precisavam de Francisco para isto! Entre pequenas xícaras, cobertas, papeizinhos e lágrimas. Como tinha força ele, Simon, até mesmo a que não tinha... 93

Entretanto, o comportamento de Simon modifica-se diante de seu grande oposto

complementar: Maier. Ele aparece, inicialmente, como um cliente, comprador de um

dos imóveis da construtora de Simon, contudo, desde que o engenheiro vê o cliente pela

primeira vez, movimenta-se nele um misto de curiosidade e desejo que o faz, seguidas

vezes, desejar e tentar obter a presença de Maier em seu escritório e em sua vida:

Não ousou perguntá-lo nada, porque sua pessoa era a resposta para todas as pergunta. Maier estava ali diante dele tranqüilamente sentado e desejaria que ele nunca mais se retirasse.94

Esta atração inicia uma busca obsessiva de Simon para alcançar Maier e esta se

estende por todo o romance:

Não alcançava Maier e era esta ininteligência que queria acentuar pela sua presença para negá-lo até o fim, caso pudesse ainda, visto que estava totalmente embebido dele, como um óleo ou um vinho. Desejava conviver com ele, deixar-se afogar nos seus olhos, ceder a ele, imergir, mergulhar, aceitá-lo, dizer-lhe sim sim sim...95

A força dionisíaca de Maier está na profunda mudança que ele promove no

comportamento de Simon. Quando o engenheiro começou a sua caminhada em busca de

seu cliente desejava, apenas, desfazer o contrato que, no contexto, toma um ar de pacto

fáustico, uma vez que o corretor que mediou a venda chama-se Demóstenes. Entretanto,

paulatinamente, revela-se que a busca é mesmo pelo que em Simon é faltante, e Maier é

a única maneira de completar esta lacuna:

93 GROSSMANN, Judith. Outros Trópicos Romance. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.p.04. 94 GROSSMANN, Judith. Outros Trópicos Romance. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.p.13. 95 GROSSMANN, Judith. Outros Trópicos Romance. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.p.61.

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Não se afastará deste último escândalo de amar Maier até que sua alma estoure, perseguindo-o à distância, o seu vulto magro, um gorro sobre a comprida cabeleira, Maier, que deve, finalmente, ser procurado onde se encontra, de modo a ser encontrado96.

E a cena final do romance nos dá a medida da eternidade da procura de Simon

por Maier:

Como um menino que equilibrando-se sobre altíssimos peitoris, Simon sobe as escadarias da Glória atrás de Maier.97

Outros Trópicos Romance problematiza o processo criativo na medida em que

metaforiza, através do relacionamento Simon-Maier, a relação entre razão e emoção,

trabalho e inspiração, Apolo e Dionísio. Pensadas até metade do século XX como

polaridades antagônicas, a depender dos critérios estéticos adodatos pela vertente

teórica vigente validava-se e privilegiava-se um ou outro modelo de criação literária. À

época havia uma crença na palavra do autor como sendo a final e definitiva sobre a sua

obra, entretanto, com os avanços da lingüística e da psicanálise, descobre-se que há, em

toda realização lingüística a camada consciente e a camada inconsciente, sendo assim,

toda produção de fala é processada pelo nível consciente do indivíduo mas, igualmente,

passa pelas estratégias de censura e autopreservação do inconsciente revelando que o

sujeito nunca teve nem nunca terá o domínio sobre as suas atividades mentais:

Pode-se, então, perceber que aquelas categorias, anteriormente concebidas como polaridades antagônicas, constituem etapas de um mesmo processo. As poéticas da modernidade afirmam a natureza simultaneamente irracional e racional, dionisíaca e apolínea da atividade criadora, sendo o poeta simultaneamente um possesso e um artífice98.

O romance, que data de 1980, é publicado após, na década de 60, os estudos

literários receberem a chegada do texto A morte do autor99, de Roland Barthes, texto

que rompe paradigmas já estigmatizados acerca da autoridade do autor diante da

significação da sua obra.

96 GROSSMANN, Judith. Outros Trópicos Romance. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.p.173. 97 GROSSMANN, Judith. Outros Trópicos Romance. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.p.174. 98 HOISEL, Evelina. O processo criador: algumas reflexões. In:________. ART: Revista da Escoila de Música da UFBa. N001. Abr/Jun. 1981. Art 019. 99 BARTHES, Roland. A morte do autor. In:______. O rumor da Língua. Trad. António Goançalves. Lisboa: Edições 70, 197-?.

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Assim sendo, aquelas polaridades que eram anteriormente entendidas como

meramente antagônicas, revelam-se como etapas do processo criativo. Revela-se, então,

que não é à toa que Judith Grossmann constrói a personagem de Simon e o configura

como um engenheiro. Há aqui um claro diálogo com João Cabral de Melo Neto que, no

ápice de sua defesa ao caráter apolíneo de sua arte literária, chega a comparar o poeta ao

engenheiro:

O engenheiro

A luz, o sol, o ar livre envolvem o sonho do engenheiro. O engenheiro sonha coisas claras:

superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número:

o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos

ao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam,

ganhava um pulmão de cimento e vidro).

A água, o vento, a claridade, de um lado o rio, no alto as nuvens,

situavam na natureza o edifício crescendo de suas forças simples100.

Em lugar de crer na possibilidade de uma obra comandada apenas pelo lado

apolíneo, Judith, seguindo ao pensamento de Baudelaire, prefere acreditar na “pose do

artista”.101 A autora acredita na escrita literária muito mais como uma vocação do que

como prática meramente racional e afirma que, no fundo de todo engenho, há a

inventiva.

A análise realizada aqui sobre a obra Outros Trópicos Romance foi feita apenas

para que, de maneira ilustrativa, se demonstrasse outros textos em que se repete este

movimento de aproximação entre a prática teórica e crítica e o texto de lavra criativa.

100 NETO, João Cabral de Melo. O engenheiro. In:_____. Obras completas . Rio de Janeiro: Aguilar, 1994 101 Declaração oral da Prof.ª Dr.ª Antônia Herrera que conviveu com Judith durante muitos anos e que com ela mantém laços de amizade ainda hoje.

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Escolhemos não nos aprofundar deveras na análise deste texto para tentar fazê- lo na

análise de seu texto Meu Amigo Marcel Proust Romance102.

102 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.

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Meu amigo Marcel Proust: a fantástica máquina de signos amorosos

O escritor naturalmente é um ícone. Contudo, tenho a pretensão não de caminhar sobre as águas, mas de caminhar com a maior leveza possível entre os homens. Judith Grossmann, Histórias de amor e ambrosia.

Meu Amigo Marcel Proust Romance103 é uma meta-narrativa construída em 1ª

pessoa por uma narradora chamada Fulana Fulana que conta, simultaneamente, duas

histórias: a história de amor entre ela e Victor e, em paralelo, desenvolve-se a escrita de

um romance, que toma como cenário principal o shopping center, especificamente o

Shopping Barra, em Salvador, na Bahia. Durante a feitura do romance Judith

Grossmann, efetivamente, deslocou-se de sua residência para, diariamente, ir à praça de

alimentação do shopping escrever o seu texto. Cercada de ícones do consumo, e

abrigada no próprio templo da sociedade consumista pós-moderna, a autora constrói

uma narrativa em que se tem como pontos fulcrais de discussão dois aspectos: A

construção de uma narrativa literária pós-moderna; O narrador pós-moderno.

No texto, Fulana Fulana, narradora do texto, apresenta ao leitor o desabrochar de

uma relação amorosa, que se constrói de maneira paulatina, passando pelos estágios da

aproximação, do flerte, da dúvida e da consagração final. Seu relacionamento com

Victor é contado no romance escrito por ela em paralelo ao diário exercício de

observação que pratica nas suas idas ao Shopping. Ao fim do texto, conhecemos Sérgio,

sobrinho de Victor, que representará a adolescência do artista, um dos temas recorrentes

da literatura de Judith Grossmann.

Dizemos que pode-se refletir sobre o narrador pós-moderno a partir da obra de

Judith Grossmann por motivos vários. O primeiro deles é o perfil da narradora Fulana

Fulana que, desde o seu nome demonstra uma violenta desindividuação do sujeito e

serve como metáfora para o indivíduo na multidão. Entretanto, Fulana Fulana se

particulariza na medida em que nos aproximamos de sua narrativa, pois ela é um sujeito

que faz a narrativa de si e se individualiza, traindo o vazio do nome que sempre indica

para o “qualquer”, para o “indefinido” se “unicizando” diante dos olhos do leitor. Em

segundo lugar, observaremos que o caráter de narrador da pós-modernidade pode ser

103 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.

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discutido pelo viés da negação do simples retratismo pós-moderno em favor de uma

inserção do narrador na cena narrada.

A narrativa, igualmente, se presta a pensar sobre a obra de arte na/da pós-

modernidade refletindo acerca de uma nova poética do espaço e sobre a própria

construção da arte na pós-modernidade.

O livro se inicia com um prefácio intitulado Do autor ao leitor, que busca

apresentar a narrativa resumindo-a nos seguintes termos:

Este romance acompanha, por alguns meses, o nascimento e o desabrochar de uma paixão amorosa, sangrada ao vivo numa escritura, para você bebê-la, como um vinho capitoso, de um graal, e espreitá-la como por um olho mágico.104

Neste primeiro momento, já temos duas interessantes afirmações a serem

analisadas. A primeira delas é a que diz: sangrada ao vivo numa escritura, ela nos

aponta a tênue linha da ambigüidade na qual se equilibra este romance, a autora narra

uma paixão sangrada ao vivo, satisfazendo, assim, à sede pós-moderna do agora, do

exclusivo, das alegrias e tristezas veiculadas nos media de maneira imediata, com ares

de “espetáculo da vida”. Entretanto, esta idéia da obsessão pelo agora se contrapõe a

escritura que, por sua própria natureza, eterniza o momento, consagrando, para sempre,

o instante que, nas telas de tv e nos jornais, se converte em espetáculo fugaz e, com o

passar do tempo, ou o repetir de imagens, se esvazia.

Um dos temas mais fortes da narrativa é a solidão. O indivíduo que, na multidão,

na massa humana homogênea traz, resguardada na sua interioridade, as suas angústias e

seus medos:

Neste mundo urbano em que ou ouvidos se encontram, em geral, indisponíveis para a interlocução, a arte e a literatura, como outdoors, a televisão, os luminosos, os semáforos, os shoppings, as firmas, as marcas, os produtos, coisas, objetos, se agigantam e dão um passo à frente para varar a nossa impenetrável solidão. 105

Meu amigo Marcel Proust representa, em alguns momentos, como o sujeito,

pela massificação e uniformização dos indivíduos, torna-se inacessível ao outro e que

constrói uma das mais fortes imagens da pós-modernidade: a solidão acompanhada.

104 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. 105 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.

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Assim, a narrativa traz consigo, através do seu tema maior, que é o amor, o mais forte

de todos os encontros, uma marca que Judith Grossmann acredita ser a função da obra

de arte: “romper os laços de solidão que são universais”.

Alguém se permite ver para que você se veja como num espelho...106

Esta idéia, exposta neste prefácio, na verdade é uma preocupação constante da

obra de Judith Grosssmann. Esta reflexão pode ser muito bem percebida em seu texto

intitulado O elogio da diferença107, no qual ela aponta a diferença com via de acesso

para a passagem do geral ao particular. Entre o geral e o particular está a diferença:

Somos todos seres estranhos, como os escritores, os artistas, diferentes, mas apenas eles, através de suas obras, se ocupam em afirmá-la, porque a diferença, isto é, a individualidade é a própria ética do universal, sua mais rigorosa moral, a da liberdade.108

A diferença como traço inerente ao homem, ou seja, todos são, efetivamente e

em alguma medida, diferentes uns dos outros. Isso coloca a todos na categoria de “seres

humanos”, o que nos faz retornar à generalização. Esta diferença, entretanto, apesar de

traço inerente ao individuo o lança num precip ício sem fim da solidão e da

incompreensão. A solidão só é quebrada pela obra literária. O autor de literatura, que é

tão solitário quanto todos os demais indivíduos, utiliza-se da obra de arte como forma

de expor as suas angústias e a sua singularidade, e, assim, quando o leitor se aproxima

da obra acontece um momento de identificação narcísica e, por conseguinte, as

diferenças põem-se em diálogo e se harmonizam:

Por isso a arte, sobretudo a arte literária, é a expressão mais plena da outridade de todos, universaliza esta outridade e a distribui liberal e equanimente, tornando todos, que são diferentes, em iguais. A igualdade vem através da liberdade de ser diferente ou individual109.

Segundo Grossmann, o escritor não apenas tem uma certeira noção do que seja a

diferença como promotora da igualdade, como também a elege como mote da criação e

tema de seu trabalho:

106 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. 107 GROSSMANN, Judith.revista estudos elogio da diferença. 108 GROSSMANN, Judith.revista estudos elogio da diferença.p.95. 109 GROSSMANN, Judith.revista estudos elogio da diferença.p.95

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A singularidade do outro é a singularidade do si-mesmo, a alteridade, o outro, é o próprio, ainda que não o mesmo, mas pode, através de um ato imaginativo, tornar-se o mesmo, igualar-se, como no amor, quando o sujeito, aceitando a sua própria singularidade, tem condições de aceitar a singularidade do outro, tornando-o num semelhante.110

Na continuidade do prefácio, surge o primeiro sintoma da importância de todo

processo narrativo para que a história contada não se converta num momento fugaz:

Sem as palavras que aqui se expõem, esta paixão seria exatamente nada111, assim a

autora retoma a idéia da relevância do registro escrito da história como maneira de

perenizar o momento e ainda afirma:

E, com elas, é uma usina, uma fábrica, uma máquina de produzir signos amorosos, , estes signos que todos querem degustar, como extraídos de uma luxuosa caixa de bombom. E esta máquina com suas engrenagens e manivelas bem lubrificadas, eu a certifico e garanto, já que nela me adestrei com o meu próprio corpo-espírito. 112

Revela-se, mais uma vez, a ambigüidade. Desta vez ela se evidencia na oposição

entre o que é automático e insensível: a máquina e o seu produto: signos amorosos,

ligada ao desautomatizado, à força singularizadora do amor. Há então um repensar do

amor como signo e, como tal, material exposto à interpretação, e também como produto

de massa, objeto de desejo da multidão. E acrescenta:

É ainda um monumento todo feito e palavras, erigido como uma dedicatória estendida, tanto ao ser amado, quanto à arte e à literatura dos predecessores, dentre os quais se avulta o interlocutor mais desejado: Marcel Proust, mestre insuperável da sensibilidade pós-moderna, possibilitando a continuidade do caminho113.

Marcel Proust é eleito como par privilegiado de diálogo e como um dos

precursores primordiais de sua literatura. São vários os motivos que aproximam Judith

Grossmann e Marcel Proust os principais deles podem ser observador no texto A

imagem de Proust, de Walter Benjamin114. Segundo Benjamin, À la Recherche du temps

perdu, obra maior de Marcel Proust, é o resultado de uma união inusitada entre

110 GROSSMANN, Judith.revista estudos elogio da diferença.p.95 111 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997 112 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. 113 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. 114 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In:_______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1985.

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elementos díspares como o místico, a arte do prosador, a verve do autor satírico, o

saber erudito e a concentração do monomaníaco se condensam numa obra

autobiográfica115 A obra de Proust é das menos classificáveis uma vez que conjuga

desde poesia a memória e frases torrenciais para Benjamin:

A imagem de Proust é a mais alta expressão fisionômica que a crescente discrepância entre poesia e vida poderia assumir.116

Diferente de Fulana Fulana, Proust, no fim de sua existência, substituiu a vida

pelo trabalho, isolando-se na escuridão para não ser perturbado, buscando não deixar

escapar nenhum dos “arabescos entrelaçados” resultantes do entrecruzamento entre a

memória e o esquecimento. O trabalho frenético de Proust na busca do perdido é igual a

angústia de todo o indivíduo o que faz com que:

Quando Proust descreve, numa passagem célebre, essa hora supremamente significativa, em sua própria vida, ele o faz de tal maneira que cada um de nós reencontra essa hora em sua própria existência.117

Esta identificação narcísica é, mutadis mutandis, aquela mesma percebida no

texto de Judith Grossmann e na fala de Fulana Fulana, sendo que, em Proust, esta

identificação pode ser melhor entendida se, na leitura analítica do autor da Recherche ,

utilizar-se da lógica do sonho:

E, assim como as crianças não se cansam de transformar, com um só gesto, a bolsa e o que está dentro dela, numa terceira coisa – a meia -, assim também Proust não se cansava de esvaziar com um só gesto o manequim, o Eu, para evocar sempre de novo o terceiro elemento: a imagem118.

A imagem saciava a nostalgia proustiana de um mundo que não estivesse

corrompido pela semelhança, buscando a singularização do momento e a recuperação

através das palavras de uma realidade frágil e preciosa.

115 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In:_______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1985.p. 36 116 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In:_______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1985.37 117 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In:_______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1985.p.38. 118 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In:_______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1985.p.39

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Benjamin, igualmente, nos chama a atenção para o lado “humorístico” de Proust,

não a graça tola advinda do riso fácil, mas aquele riso como objeto desconstrutor,

mostrando a fragilidade da sociedade de “ares feudais” do século XIX:

...Pelo riso, ele não suprime o mundo, mas derruba-o no chão, correndo o risco de quebrá-lo em pedaços , diante dos quais ele é o primeiro a chorar119.

O texto proustiano é marcado pelo que Benjamin chama de “tagarelice”, que

seria o elemento a partir do qual Proust reconstrói toda a estrutura da alta sociedade. O

humor é, na verdade, um poderoso meio de crítica social. A tagarelice também é vista

como sintoma de uma solidão que invade a sociedade. Assim, podemos concluir

tomando as seguintes palavras de Benjamin:

À La recherche du temps perdu é a tentativa interminável de galvanizar toda uma vida humana com o máximo de consciência. O procedimento de Proust não é a reflexão e sim a consciência. Ele está convencido da verdade de que não temos tempo de viver os verdadeiros dramas da existência que nos é destinada. É isto que nos faz envelhecer, e nada mais. As rugas e dobras do rosto são as inscrições deixadas pelas grandes paixões, pelos vícios, pelas intuições que nos falaram, sem que nada percebêssemos porque nós, os proprietários não estávamos em casa120.

Encerrando o prefácio do autor ao leitor, Judith diz:

Consumada a fábula, invoquemos, finalmente, como anjos propiciatórios, os predecessores, Marcel Proust, Marcel Duchamp, Alexander Caler, Andy Warhol, na linha de frente, pra que se juntem a nós e nos ajudem a compreender, sempre conceitos, a beleza nascente de um mundo que ainda não podemos vislumbrar senão vagamente.121

Os predecessores surgem, então, à moda das musas inspiradoras das epopéias,

como incentivadoras da construção artística. Imiscuindo nomes como Marcel Proust e

Marcel Duchamp ela realizará o que Andréas Huyssen classificará como a base do pós-

modernismo: a tensão e a convivência entre a tradição e o novo.

119 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In:_______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1985.p.41. 120 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In:_______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1985.p. 46. 121 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997

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Fulana Fulana e o cenário da pós-modernidade

Am Golde hähgt, zum Golde hängtdie postmoderne 122. Andreas Huyssen, Mapeando o pós-moderno. Esta narrativa, concebida como um conto de fadas pós-moderno, cujo cenário é, em grande parte, o de um shopping , inclinou-se, por si mesma, a ter a velocidade de uma tragédia grega, os rasgos de uma ópera e as improvisações de jazz... Judith Grossmann, Do autor ao Leitor.

O conceito de pós-modernidade talvez seja um dos mais discutidos e

controversos do pensamento teórico nos últimos tempos. Muitos foram os pensadores

que se debruçaram sobre ele e teorias das mais divergentes buscaram explicar este

evento, que estende os seus tentáculos pela cultura, política, meios massemidiáticos,

economia, etc. Não será nosso interesse, aqui, buscar definir a pós-modernidade uma

vez que, conforme dissemos, esta discussão parece estar longe de seu fim. Buscaremos

utilizar algumas reflexões sobre este fenômeno a fim de traçar uma teia de diálogo entre

estas e a obra de Judith Grossmann.

Para pensar acerca do uso da pós-modernidade no romance de Judith

Grossmann tomaremos como ponto de partida uma importante reflexão de Andréas

Huyssen:

Assim como Marx analisou dialeticamente a cultura da modernidade como portadora tanto de progresso quanto de destruição, da mesma forma a cultura da pós-modernidade deve ser compreendida em seus ganhos e perdas, em suas promessas e corrupções: além disto, pode bem ser uma das características do pós-moderno que a relações entre progresso e destruição das normas culturais, entre tradição e modernidade já não possa ser entendida hoje do mesmo modo que Marx a entendeu na aurora da cultura modernista 123.

Obedecendo a um traço da própria pós-modernidade, que é a autocrítica, a

narrativa se ambienta no shopping, realidade paralela criada pela sociedade de

consumo, e deposita sobre ele um olhar perspicaz, que busca chamar a atenção para a

dispersão e artificialidade de um mundo programado para “dar certo”. Sendo um local

122 Do outro depende, para o outro tende o pós-moderno. (tradução do autor).

123 HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: In: HOLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p.49.

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de derramamento de sonhos e desejos, o shopping não abre o espaço para a falência do

indivíduo ou do mundo. Neste lugar, esmaecem-se as sensibilidades, os sofrimentos e as

angústias do sujeito dão lugar às luzes, aos anúncios e aos imperativos de consumo. A

tagarelice dos salões proustianos é recuperada nos corredores deste lugar como sintoma

dos sujeitos e das relações ali estabelecidas.

Todavia, a reflexão sobre o pós-moderno precisa ser contemporizada e

compreendida na sua ambigüidade, o shopping, como templo do consumo, apenas

reencena a artificialidade do mundo externo a um só tempo achatando e destacando as

diferenças.

O consumo, comumente pensado como forma de alienação e achatamento do

sujeito, precisa ser repensado. Ele é constantemente ligado ao gasto banal, reforçando

os lugares sociais dos sujeitos, dividindo-os entre os que têm e os que não têm, e

destacando o “possuir” como padrão de divisão social. Entretanto, segundo Canclini124,

quando o gasto se alia a um momento celebrativo ele se ritualiza, perenizando o

momento e derramando sobre o objeto de consumo uma significação outra, este

movimento impede ou contém o “curso dos significados”. O consumo é, então, marcado

por um processo de investimento econômico e ritualístico e, assim, os bens são

convertidos em “acessórios rituais” sendo uma maneira que o homem encontra para

“dar sentido ao fluxo desordenado dos acontecimentos”. O consumo pode ser visto

como a sinalização de uma insatisfação diante do fluxo descontrolado dos significados

engendrados no cotidiano, a compra é uma forma de o sujeito se pensar:

Consumir é tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora125.

Desta maneira, quando se pensa o shopping, não podemos fazer o discurso da

total perda da individualidade uma vez que a própria noção de indivíduo precisa ser

reavaliada. A noção de indivíduo donatário de uma identidade fixa e imutável vem

sendo desconstruída em favor de se pensar, desde o fim do século XX, na fragmentação

de representações culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade

que representavam sólidas referências para o indivíduo, desconstituindo, assim, a noção

124 CANCLINI, Nestor Gracía. Consumidores e cidadãos ; conflitos multiculturais da globalização.Rio de Janeiro: Ed.UFMG,1999. 125 CANCLINI, Nestor Gracía. Cidades em globalização. In:________. Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais da globalização.Rio de Janeiro: Ed.UFMG,1999.

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de si como referencialidade apaziguada. O indivíduo que se constrói em casa, no

trabalho e nos mais variados ambientes sociais igualmente se constrói também nos

corredores do shopping center. Em Meu Amigo Marcel Proust Romance o que se sugere

é uma outra forma de pensar o sujeito singularizando-o ( ou reconstruindo-o) através de

um olhar amoroso:

... aprecio assim colher uma pessoa como uma rosa no bosque, ser assim colhida, praticar este contumaz namoro, a um só tempo universal e particular126.

Dentre os vários textos que discutem a pós-modenidade, escolhemos Andraes

Huyssen, que em seu texto, Mapeando o pós-moderno traz à tona questões que se

tornam relevantes para o estudo a que nos propomos. Ao contrário do que ocorre

comumente nos debates sobre o pós-modernidade em que se assume uma postura

dicotômica: ou se afirma que o pós-moderno é uma continuidade do modernismo ou se

afirma que há entre eles, um corte, uma ruptura, fazendo com que um e outro sejam

avaliados em termos positivos ou negativos, adotamos a posição de Huyssen que

prefere não definir a pós-modernidade compreendendo-a como um conceito relacional,

ele crê que o modernismo, vanguarda, neoconservadorismo e pós-estruturalismo são

camadas dela.

Buscando mapear o pós-moderno, Huyssen localiza a primeira ocorrência do

termo no fim da década de 50, quando o termo foi utilizado por Irving Home e Harry

Levin para criticar a queda do modernismo. Nos anos 60 ele serviu para se pensar a

literatura, em 70 passou a ser aplicado à dança, ao teatro, à pintura, ao cinema e à

música.

A pós-modernismo dos anos 60 tentou revitalizar a herança das vanguardas

européias dando a ela uma forma norte-americana quando identificada no eixo

Duchamp-Cage-Warhol. Em 70 este “pós-modernismo vanguardista” se arrefece uma

vez que o seu potencial se esgota:

O que havia de novo nos 70 era, de um lado, a emergência da cultura do ecletismo, um pós-modernismo amplamente afirmativo que abandonara qualquer reinvidicação de crítica, transgressão ou negação: e, por outro, um pós-modernismo alternativo em que

126 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.67.

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resistência, crítica e negação do status quo foram redefinidas em termos não-vanguardistas e não-modernistas, que se adequavam mais efetivamente aos avanços políticos da cultura contemporânea do que as antigas teorias do modernismo127.

Segundo Huyssen o pós-modernismo é um fenômeno prioritariamente Norte-

Americano uma vez que a Alemanha, na década de 60, ainda estava ocupada na

descoberta de seus próprios modernos e a França tinha, nesta época, um retorno do

Modernismo. Configurado desta maneira o pós-modernismo tinha, segundo Huyssen,

quatro características em sua fase inicial. A primeira é que o pós-modernismo dos anos

60 que buscava sempre o alcance de novas fronteiras, revelando-se em gestos de ruptura

e descontinuidade; a segunda é o ataque iconoclástico ao que se chamou de “arte

institucional” que é definida por Peter Büger128 como:

Os modos pelos quais o papel da arte na sociedade é percebido e definido e, em segundo lugar, ao modo como a arte é produzida, divulgada, distribuída, comercializada e consumida 129.

A vanguarda européia atacou a separação da arte em relação a vida cotidiana que

ocorre como resultado do esteticismo do século XIX, buscando, num sentido hegeliano-

marxista, fazer a negação da arte reintegrando-a com a vida. O modernismo sempre

manteve-se preso a uma noção tradicional de autonomia da arte em relação a vida:

O ataque iconoclasta das vanguardas históricas contra instituições e modos tradicionais de representação pressupunha uma sociedade na qual a grande arte tinha um papel essencial na legitimação da hegemonia, ou, em termos mais neutros, na sustentação de um establishment cultural e de suas pretensões ao conhecimento estético. O feito da vanguarda histórica foi desmistificar e solapar o discurso legitimados da grande arte na sociedade européia 130.

O Modernismo se converte, por conta da reprodução em massa e da indústria

cultural, numa arte institucionalizada. Apesar de ter surgido como cultura de oposição

127 HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: In: HOLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.p.31.

128 BÜGER, Peter. APUD: HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: In: HOLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 129 HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: In: HOLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p.37 130 HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: In: HOLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.p.38

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seu movimento ruptor foi, com o passar do tempo, assimilado. Tendo surgido com a

ênfase de resistir à institucionalização, ele torna-se uma “arte institucional” na medida

em que tem função de representação política nos anos Kennedy e que se massifica

graças à indústria cultural. O Alto Modernismo vem à tona na medida em que há esta

institucionalização da arte moderna. Esta canonização que se realiza com o

Modernismo engessa a sua força de ruptura e limita a sua potência crítica.

A terceira característica é o otimismo tecnológico oferecido pelos aparelhos de

TV, vídeo e computador, a febre dos meios de comunicação e a visão do computador

como “consciência substituta”, combinado com uma visão eufórica de uma sociedade

pós-industrial. A tecnologia dos meios de comunicação e o paradigma cibernético foi

abraçado pelos primeiros defensores do pós-modernismo de maneira acrítica; a quarta e

última é a tentativa vigorosa de valorização da cultura popular como um desafio a

grande arte modernista. Esta postura cresce com o contexto da contracultura e em

conseqüência de uma mudança na visão crítica Norte-americana em relação à cultura de

massa.

A década de 60, marcada pela euforia pós-moderna, é substituída, na década de

70, por uma postura mais sóbria e crítica diante dos avanços tecnológico, dos media e

das culturas populares:

A situação nos anos 70 parece caracterizar-se por uma dispersão e disseminação cada vez mais amplas das práticas artísticas, todas operando a partir das ruínas do edifício modernista, investindo contra ele na busca de idéias, saqueando seu vocabulário e suplementando-o com imagens e temas escolhidos aleatoriamente nas culturas pré-modernas e não modernas bem como na cultura de massas contemporâneas131.

Os críticos e artistas pós-modernos não levam mais em consideração a distinção

entre o alto modernismo e a cultura de massa. A segregação entre formas superiores e

inferiores de arte e cultura perdem terreno em favor de uma revisão e reapropriação do

vocabulário do primeiro modernismo. A cultura de massa é analisada agora abandonando

a visão modernista de que toda cultura e massa é monoliticamente kitsche:

131 HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: In: HOLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.p.43

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As possibilidades de acoplamentos e misturas experimentais entre cultura de massas e modernismo pareciam promissoras e produziram alguns dos mais bem-sucedidos e ambiciosos trabalhos de arte e de literatura nos anos 70132.

O texto de Huyssen, publicado no ano de 1984, afirma, sobre o pós-modernismo

do início da década de 80, que este não pode ser considerado simples seqüela do

modernismo. O pós-modernismo, posterior à década de 70 coloca, comumente, a questão

da tradição e da conservação cultural como tema estético e político fundamental. As

dicotomias não são uma estratégia de reflexão produtiva para a pós-modernidade, em

lugar dela surge a tensão e a ambigüidade:

... ele opera num campo de tensão entre tradição e inovação, conservação e renovação, cultura de massa e grande arte, em que os segundos termos já não são automaticamente privilegiados em relação aos primeiros133.

Conforme já afirmamos, as reflexões de Huyssen nos são úteis para analisar a

narrativa de Judith Grossmann utilizando, para tanto, a ambigüidade e a tensão pós-

moderna não apenas como crivo de leitura mas também como estratégia de inserção da

obra na pós-modernidade. Ao mesmo tempo em que se declara pós-moderno e parece

deslumbrado com a sua rapidez e dinâmica, o texto aponta alguns pontos nevrálgicos do

movimento como o esmaecimento de afetos, que pode ser lido na visão da narradora na

discussão sobre o amor na pós-modernidade e sobre o mascaramento das angústias e

dores individuais.

132 HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: In: HOLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.p.46. 133 HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: In: HOLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.p.74.

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Eros perdido nos corredores do shopping

Oh, que coisa forte é o amor! Judith Grossmann, Meu Amigo Marcel Proust Romance.

A teoria do esmaecimento dos afetos conforme pensada por Fredric Jameson em

seu texto A lógica cultural do capitalismo tardio134nos é útil para pensar a visão que

Fulana Fulana tem do amor na pós-modernidade definido por ela como sendo amor em

tempos de HIV:

... O que se quer contar é uma história outra, de ruptura absoluta, nova, inteiramente nova, que não se identifica com nenhuma já contada. Uma história de amor pós-moderno, pós-moderna a história, nestes tempos de HIV, tantas providências tomadas antes do simples beijo, a boca, os lábios, as asas do nariz, basta olhar em torno, são lugares de dolorosos ferimentos, mais mortais que a perfuração de uma jugular que produz a morte instantânea, e agora tratar-se-ia de uma morte lenta, submetida a inenarráveis sofrimentos, amor em tempos sombrios. Amor de risco135.

A imagem do HIV é aqui utilizada para representar o momento em Eros e

Thânatos se carnalizam como as faces de um mesmo impulso. O esmaecimento dos

afetos pode ser lido através do desaparecimento do amor apenas contaminado pela

loucura e busca de prazer dionisíacos, sendo, agora, amor de risco, amor sujeito à força

repressora da morte:

Neste tempos o que seria? O amor é uma mentalidade, uma conduta, cuidados, por isso o HIV, quando tudo mudar, sua missão transformadora cumprida, surgirá a vacina. Se matamos o outro que amamos já estamos mortos136.

Isto pressiona o sujeito a uma mudança de postura em relação ao outro,

impondo-se, através do medo, o limite e a desconfiança fazem com que o amor se

abrande e se intimide diante do seu maior inimigo.

134 JAMESSON, Frederic. A lógica cultural do capitalismo tardio. In: ______. Pós-modernismo; A lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 199-? 135 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.35. 136 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.68.

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Em seu texto Cânone amoroso e cânone literário em Meu Amigo Marcel Proust

Romance de Judith Grossmann137, Antônia Herrera discute o amor como força motriz

de realização do romance e como intermediário em todas as relações inter-pessoais e do

indivíduo com o mundo. Para a autora:

Não se trata do cânone amoroso do romantismo de amor metaforizado em amor-morte, amor-obstáculo, amor-drama, nem de amor conflito da mística do céu e da sensualidade corporal do Cânone barroco. São remodelados. O cânone medieval do amor cortês destaca-se na ritualística amorosa das etapas de aproximação. Esse novo cânone tem como traço o deslocamento da ironia corrosiva, do sarcasmo e da amargura da pós-modernidade, revalorizando o encantamento das coisas e do mundo enquanto tais, transmutados pela alegria e potencialidade do amor.

Esta ironia será o grande mote da representação do amor pós-moderno como

amor de risco, em tempos de HIV. A história do homem é, na verdade, a história das

repressões por ele sofridas. Durante toda a sua existência, o homem padeceu com as

limitações impostas aos seus desejos e a sua necessidade primordial de auto-satisfação.

A morte, que circunda o amor na pós-modernidade, pode funcionar como metáfora para

a repressão da sociedade sobre o homem, impondo a ele o princípio de realidade,

limitando a área de atuação de Eros e impedindo a sua realização descontrolada.

O amor abandona o seu caráter meramente prazeroso e irresponsável em favor

de uma postura temerosa que faz com o sujeito precise tomar inúmeras medidas antes

do contato primordial, do simples beijo. Obviamente, a visão da narradora é hiperbólica.

Conforme sabemos hoje, a chance de um indivíduo se contaminar com a Aids num

contato labial é mínima, desta maneira, a Aids surge aí muito mais como metáfora para,

de maneira irônica, denunciar o enfraquecimento das relações inter-pessoais e para o

abrandamento da presença de Eros como princípio de prazer e negação da morte138.

Eros representa aí não apenas o amor, mas também é colocado como impulsionador do

sujeito em direção ao mundo e a vida, é necessário, segundo Fulana Fulana, erotizar o

mundo, os corpos, os alimentos para que, com o seu impulso de vida e satis fação, Eros

137 HERRERA, Antonia Torreão. Cânone amoroso e cânone literário em Meu Amigo Marcel Proust Romance de Judith Grossmann. In: V ABRALIC; Cânones e Contextos. Anais. p. 301. 138 Cf.: FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer.In: FREU, Sigmund. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Trad. José Luís Meuer. Et. Alli. Rio de Janeiro:Z-movie studio, 20??.

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possa sublimar a morte. A doença e a falência individual advém da inabilidade ou

incapacidade do sujeito de erotizar o mundo em torno de si:

Um almoço para alguém que padece de anorexia, patologia tri-interessante que acomete os que não chegam a erotizar os alimentos 139.

A anorexia abarca o indivíduo que não apenas não tem apetite, mas que se

satisfaz em prescindir do alimento para compensar uma insatisfação ulterior. Podemos

lê-la como produtiva metáfora para pensar uma das facetas da pós-modernidade

percebida por Fulana Fulana. Dissemos uma das facetas uma vez que há, na fala da

narradora, uma ambigüidade na visão do pós-moderno que faz com que o seu texto

deambule, desde a ovação e derramamento da ode, ao desamparo e lamento da elegia.

Em dados momentos são festejados e reverenciados os novos tempos, em outros

a posição que se adota é de crítica e negação. Não acreditamos na ovação à pós-

modernidade haja uma ironia ou um esgar crítico apenas. Caso assim fosse

compreendido, veríamos no posicionamento da narradora sinais de uma personalidade

monolítica de crítica pura ao pós-modernismo. Desta maneira não percebemos como

irônica a homenagem e os “vivas” que são dados ao pós-moderno, uma vez que, como

já dissemos, é a tônica do pós-modernismo esta ambigüidade lancinante e espantosa. Se

afirmarmos ser uma ironia o elogio de Fulana Fulana, teríamos não só que admitir todo

o transcorrer do texto como uma resposta enviesada ao furor dos novos tempos, como

também perder a dinâmica das representações compostas no texto, abrindo mão de

pensar, inclusive, a própria narradora como um sujeito pós-moderno naquilo que

concerne a sua fragmentação e ambigüidade140.

A anorexia, assim, corresponde a uma das facetas desta nova lógica sócio-

cultural e dá conta de um dos pontos mais recorrentes da reflexão feita por Fulana

Fulana: a solidão pós-moderna. Podemos perceber que, em sua narrativa Fulana Fulana

fala, não apenas da compra e da venda de objetos, mas da desorganização das relações

pessoais. O shopping, como metonímia das sociedades em todas as suas estruturas, com

os seus sorrisos e cumprimentos artificiais, com a simulada disponibilidade ao desejo do

outro (penso na imagem das vendedoras de boutiques, que levam, verdadeiramente, a

139 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.41. 140 Esta reflexão será melhor desenvolvida no terceiro capítulo no qual discutiremos a categoria do narrador pós-moderno a partir de Fulana Fulana revelando, assim, pontos outros de ambigüidade.

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sério o slogan : “O cliente sempre tem razão!”), com a ilusão da satisfação das vontades

de maneira rápida e fácil, representa, de maneira hiperbólica, as relações inter-subjetivas

tecidas nas extensas malhas sociais:

É uma posição que se aproxima do hoje, quando prazeres (mais os correspondentes crimes) são enunciados para aluguel, ao lado dos imobiliários, em jornais ou em determinados prefixos telefônicos. E a tal ponto que a expressão...alugar uma pessoa..., quando não está para aluguel em troca de pecúnia, alastrou-se com um sentido pejorativo de desprezo pelos que nos interceptam os passos na rua ou ao telefone, oferecendo-nos o que devia ser tomado como a dádiva de seu cumprimentos e as sua conversação...141

Aquele indivíduo que percebe a fugacidade e a arbitrariedade do mundo em

torno a ele e não consegue reagir, perde a capacidade de se manter neste universo de

negociações e trocas vendo-se, assim, como sujeito de exceção.

Jameson toma, como ponto de partida para explicar a teoria do esmaecimento

dos afetos, que por nós é pensado como um momento em que se rompe a força

erótica142, uma obra canônica das artes visuais do Alto-Modernismo: o quadro Um par

de botas, de Vincent Van Gogh. O autor afirma que, para compreender a obra, é

indispensável reconstituir a situação inicial para a qual a mesma se configura como uma

espécie de resposta. O mundo que é tomado como referente é aquele que se servia da

miséria agrícola e da desolação da pobreza rural, um mundo onde o trabalho opressivo e

rudimentar lança o indivíduo ao seu estado mais brutal, primitivo e marginalizado. Duas

são as leituras oferecidas para a tela. A primeira aponta para a nova divisão do trabalho

no interior do capital, uma nova fragmentação que replica as especializações e divisões

da vida capitalista ao mesmo tempo em que busca, justamente nesta fragmentação, uma

compensação utópica:

A transformação violenta e proposital do mundo objeto opaco do camponês na mais gloriosa materialização de pura cor em pintura a óleo deve ser interpretada como um gesto utópico, um ato de

141 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.92. 142 Cf.: FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer.In: FREU, Sigmu nd. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Trad. José Luís Meuer. Et. Alli. Rio de Janeiro:Z-movie studio, 20??.

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compensação que acaba por produzir um domínio utópico dos sentidos totalmente novo143.

A segunda leitura acredita que a fratura entre a terra e o mundo pode ser

entendido como ausência de naturalidade do corpo e da natureza transferindo esta

“naturalidade” a história e ao social. Os sapatos do camponês, ora consagrados, recriam,

ao seu redor, o seu contexto original:

Por meio da mediação da obra de arte, que faz com que todo o mundo se ausente e a terra se revele em torno dela, ao lado do pisar forte da mulher camponesa, na solidão do atalho do campo, do casebre na clareira, dos instrumentos de trabalho gastos e quebrados na aradura e na fornalha144.

Para Jameson, ambas as interpretações são hermenêuticas, no sentido que a obra

é um objeto inerte tomado como indicação simbólica de uma realidade mais vasta que

se coloca como sua verdade última.

Deslocando a sua atenção para um segundo par de sapatos, os da obra de Andy

Warhol intitulada Diamond dust shoes, o autor declara-se tentado a afirmar que a obra,

ao contrário da anterior, não diz absolutamente nada. Inicialmente, parece não haver

modo de completar o gesto hermenêutico e reintegrá- lo ao contexto. Numa leitura

apressada poder-se-ia resumir a análise da obra a uma resposta a mercantilização e

massificação, questões centrais do pós-modernismo:

A obra de Andy Warhol é realmente centrada em torno da mercantilização, e das grandes imagens de outdoors da garrafa de Coca-cola ou da lata da sopa Campbell, que explicitamente enfatizam o fetichismo das mercadorias na transição para o capitalismo tardio, deveriam constituir forte crítica política145.

Entretanto, entre os sapatos de Van Gogh, que metaforizam e inserem-se no alto

modernismo, e os de Warhol que são reconhecidamente pós-modernos existem

diferenças que provocam a atenção do crítico. A primeira delas diz respeito ao

aparecimento de um novo achatamento, falta de profundidade e superficialidade vistos

pelo autor como característica formal de todos os modernismo. A segunda questão tem

143 JAMESSON, Frederic. A lógica cultural do capitalismo tardio. In:______. Pós-modernismo; A lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo:Ática,199-?p.32. 144 JAMESSON, Frederic. A lógica cultural do capitalismo tardio. In:______. Pós-modernismo; A lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo:Ática,199-?p.34. 145 JAMESSON, Frederic. A lógica cultural do capitalismo tardio. In:______. Pós-modernismo; A lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo:Ática,199-?p.35.

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a ver com o aspecto de morte da imagem de Warhol, a superfície das coisas coloridas

contaminada pelo falso brilho das imagens de propaganda é retirada a fim de mostrar o

seu negativo, em todas as acepções, tanto no que diz respeito à negação da vida e

aproximação da morte, tanto pelo sentido de a imagem imitar os negativos de

fotografia: preto e branco, anêmicos de cor:

Ainda que esta espécie de morte do mundo da aparência seja tematizada em alguns trabalhos de Warhol...penso que não se trata mais de uma questão de conteúdo, mas uma mutação mais fundamental, tanto no próprio mundo dos objetos – agora transformados em um conjunto de textos ou simulacros – quanto na disposição do sujeito146.

Chega-se, assim, a questão do esmaecimento dos afetos na pós-modernidade.

Não é que toda a subjetividade e capacidade emotiva do sujeito tenha de esvaído. Mas

há, nesta nova lógica dos objetos e dos sujeitos, o que poderia ser entendido como uma

objectualização do indivíduo e individualização do objeto (podemos recuperar, aqui, a

fala de Fulana Fulana: ...alugar uma pessoa...) acontece o “esmaecimento do afeto

através da figura humana” o que faz com que o indivíduo se converta em mercadoria e

se reduza a sua própria imagem.

A visão lançada por Fredric Jameson sobre o pós-moderno se afasta, de certa

maneira, da aqui adotada uma vez que o autor acredita no pós-modernismo como sendo

donatária de um modelo hermenêutico que rechaça as teorias do “de fora” e do “de

dentro”. Devemos dizer que, apoiados nas reflexões de Foucault147, acreditamos que as

dicotomias tais como as acima demarcadas são, na verdade, construções de discurso e,

como tais, devem ser colocadas em suspenso. Assim como as demais categorias

dicotômicas utilizadas por Jameson para tecer uma crítica contra a pós-modernidade, o

autor sugere, em seu discurso, ser o pós-moderno possuidor de uma indecibilidade

nociva e perigosa levando-o a concluir que a profundidade é, neste movimento,

substituída pela superfície ou por várias superfícies.

Todos os elementos dicotômicos escolhidos para a aná lise traçada por Jameson

para criticar o pós-modernismo, a saber: essência x aparência; latente x manifesto;

autenticidade x inautenticidade e significante x significado, devem ser lidos não pelo

crivo da confiança e entrega mas pelo da desconfiança, uma vez que todas estas 146 JAMESSON, Frederic. A lógica cultural do capitalismo tardio. In:______. Pós-modernismo; A lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo:Ática,199-?p.37. 147 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber .Trad.Luiz Felipe B. Neves. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2000.

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unidades tidas como díspares, na verdade, são extremamente relativas. Assim, em lugar

de escolher a dicotomia opositiva ou eleger esta ou aquela, o pós-modernismos acredita

muito mais na tensão da interação entre estes conceitos outrora pensados como

meramente dicotômicos. Desta maneira, nos Diamond dust shoes de Andy Warhol

convivem em tensão dialética a superficialidade do brilho fácil e das cores com a crítica

a este vazio de marcas e purpurinas.

Adotamos, aqui, o conceito de esmaecimento de afetos de Jamesson como sendo

um momento de rompimento, de abrandamento da força erótica que o indivíduo é capaz

de depositar sobre o mundo. Esta força erótica, como impulsionadora do indivíduo para

a vida, no amor pós-moderno se esmorece diante da força thanática da morte,

representada pela doença, que, durante os anos 80 impôs aos amantes um forte temor

trazendo consigo a repressão ao sexo livre e à consagração amorosa.

Concluímos, assim, que quando Fulana Fulana nos chama atenção para o amor

pós-moderno, de cuidados e receios, ela aponta para uma precaução que não deve servir

de impecílio ou limite para a consagração amorosa. Entretanto, em lugar de sucumbir a

este estilhaçamento da capacidade amorosa, a força erótica de Fulana Fulana se adensa e

faz com que, em sua narrativa, na qual o tema maior é o amor, este seja o amor feliz,

saudável, o amor do encontro: Fulana Fulana e Victor.

Não é por acaso que esta narrativa irá acompanhar desde o nascimento ao

desabrochar este amor que se torna, imediatamente, arquétipo de uma outra

possibilidade de amor na pós-modernidade:

... é deste amor, de um homem por uma mulher, e de uma mulher por um homem, que quero falar, do qual ninguém ainda falou, mais chamejante, mais livre, e que se ocupa inteiramente por todas as horas do dia e da noite, sem impedir a visão de outras coisas, pessoas, paisagem, obras de arte, seres da natureza148.

148 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.51.

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V. O shopping Center como salão da pós-modernidade

Uma equação pessoal, esta de trabalhar em trânsito, com os pés nos lugares sonhados, em vez de ficar sonhando com estes lugares em casa, quando se é um habitante da viagem. Judith Grossmann, Meu Amigo Marcel Proust Romance.

No prefácio Do autor ao leitor, se invoca, como “anjos propiciatórios”, não

apenas Marcel Proust, já apontado como interlocutor maior desde o título da obra, mas

também Marcel Duchamp, Alexander Calder e Andy Warhol. A autora os chama de

predecessores e, assim, amplia ainda mais a sua família. Conforme sabemos, esta filiação

é, na verdade uma escolha de pares para o estabelecimento de diálogos que irão ser

significativos na construção da narrativa.

A escolha do cenário no qual se passa a maior parte da narrativa já é uma

conseqüência do diálogo estabelecido. O shopping, lido na narrativa como um templo da

pós-modernidade, é visto por Fulana Fulana como seu verdadeiro “home”, significação

que ultrapassa o simples sentido de morada, abrigo útil. A esta palavra é adicionada uma

significação de acolhida e bem-estar que não se encontra na “house”. O shopping passa,

então, a substituir a solidão do quarto de escrita pela exposição da criação, misturando o

público do ambiente, com o particular dos segredos da construção da obra de arte:

Como é possível trabalhar assim?...este é o verdadeiro trabalho...à vista de todos, para que nada fique perdido, para que nada se oculte, tudo venha à tona. Homens trabalhando já é em si, uma obra de arte. O próprio sentimento da pós-modernidade149.

Recupera-se aqui uma imagem recorrente nos mass media acerca da realidade

como espetáculo. A escrita vista como ritual consagrado, um espetáculo privado, modelo

canônico do escritor isolado no seu quarto-catedral, não cabe na narrativa de Fulana

Fulana. O isolamento é visto como um elemento que, em lugar de favorecer, tolhe o

caminhar do fluxo narrativo:

Trabalho num shopping, em mesa em frente aos cinemas, em situação de namoro universal, envolvida por músicas pop que cantam o amor, beijos e abraços de jovens casais no cio, cheiro de

149 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.28.

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restaurantes e do fast food, crianças que esvoaçam como flores, trazendo prados da história da pintura...assim deve ser para eliminar a convencional solidão do ato de criar. Já até me foi possível, mas hoje, não, o heroísmo do quarto-catedral, preciso de tudo isso que é a própria essência, o extrato mesmo, o perfume da pós-modernidade150.

Colocando-se em posição estratégica, na praça de alimentação em frente aos

cinemas, Fulana Fulana assiste ao caminhar do mundo pós-moderno observando os

indivíduos e colocando-se exposta tanto a conquistar quanto a ser conquistada por um

olhar, um gesto, uma indagação. A escrita solitária apartada do furor das ruas não é

capaz de oferecer pra a obra as cores da pós-modernidade.

A narradora se configura como um flâneur na medida em que estabelece com o

ambiente uma relação de intimidade, entretanto, em lugar de caminhar pelo espaço

forjando a sua proximidade com ele, o flâneur grossmanniano está abancado nas mesas

dos restaurantes em posição de contemplação do mundo entorno 151:

A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no são do burguês; muros são a escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas152.

O shopping, assim como o Hotel Victória Marina no qual Fulana Fulana faz as

suas refeições, são lugares de passagem153. A figura do hóspede é simbólico para a

ausência de ligação de posse ou de apego afetivo entre o espaço e o indivíduo. Em lugar

de ter a marca da receptividade acolhedora da residência, em lugar de preservar o talho

individual na escolha dos objetos, nas cores e cheiros dos recintos, o hotel é o espaço de

todos e, ao mesmo tempo, de ninguém. O homem que adentra o hotel sabe-se dono

temporário de uma casa que lhe cabe tão bem quanto caberia a qualquer pessoa que ali se

hospedasse. O hóspede aquele que é estranho, alheio, peregrino.

Para Fulana Fulana, entretanto, o hotel passa de mero lugar de trânsito, para

ambiente favorecedor da escrita. Tal como o flâneur benjaminiano, ela ocupa o espaço

150 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.45. 151 Anotações de reunião de orientação. 152 BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In:______. Um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense,1989. 153 Este assunto foi estudado de maneira mais detida por Ligia G. Telles em sua tese Périplo Peregrino; o perfil do artista na produção textual de Judith Grossmann. Inédito.

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do hotel subvertendo a sua lei de impessoalidade, transformando o espaço do trânsito

com seus hóspedes e empregados em lugar de escrita:

Para melhor pensar Amor, inauguro breakfasts em hotéis, meus lugares prediletos, lugares de passagem, onde pousa ou até mora alguém, como um ganso selvagem, e até começo treinamento para me mudar para o meu hotel, é nele que estou, transeunte, lugar de visitantes que acordam cedo para seguir adiante, gente expedita, errante, às seis horas da manhã de malas prontas, banho tomado, gente perfumada e matutina com suas loções, onde desenvolvo minha concentração, nestes mosteiros tibetanos que ergo em qualquer lugar, invertendo o uso das coisas154.

Assim como o hotel, o shopping é o outro ambiente eleito por Fulana Fulana

como sendo seu. Seus corredores, luzes, cartazes e lojas são como os vários cômodos de

seu lar, a mesa do restaurante Saúde Brasil é a sua mesa de trabalho, as moças das lojas

suas vizinhas e amigas, assim, num lugar que é desprovido de memória e de registros

individuais converte-se em ambiente confortável e propício para a sua construção

literária.

Os afetos que se esmaecem nos corredores e alamedas do shopping retornam à

cena da narrativa com nova significação uma vez tocados pelo olhar de Fulana Fulana:

Sem mim, este shopping que me é um imenso corpo erótico, onde transfixada de beleza desmaio diariamente de êxtase, se esboroaria e não sobraria pedra sobre pedra, eu o reconstruí com o meu olhar de gozo, que agora o sustentam em sua verdadeira aparência155.

Desta maneira, tomando como precursores Marcel Proust e Fernando Pessoa da

escrita pós-moderna, no sentido de escrita/criação exposta ao olhar do outro, Fulana

Fulana adota o que poderíamos chamar de estética do roubo156, perambulando pelos

espaços do shopping e dele usurpando nomes, pessoas, olhares e história. Na verdade, a

“escrita pública” se assim a quisermos chamar, sempre ocorreu nos mais diferentes

ambientes e tempos, a diferença é que, agora informada pela idéia da arte pop, feita ao

vivo, a narradora pode identificá- la com a lógica pós-moderna de construção artística.

154 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.69. 155 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.100. 156 Esta idéia será melhor desenvolvida no Cap III, quando desenvolveremos uma análise da narradora.

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Marcel Proust e Fernando Pessoa, que são, para Fulana Fulana,, “pais” desta

lógica de construção artística, aparecem referenciados no romance seguidas vezes:

Pouco mais de setenta anos após a morte Marcel os salões proustianos se transferiram para o Shopping Barra, sobretudo para a área do fast food, em frente aos cinemas157.

Proust, comumente, aparece ligado aos salões dos quais ele era assíduo

freqüentador e a partir dos quais ele escrevia suas “crônicas da sociedade francesa”. A

presença de Proust é tão forte na narrativa que ele chega a se corporificar, aos olhos de

Fulana Fulana, num transeunte do shopping. Na imagem que se constrói muito

interessante, é como se, contemporaneamente, Proust e Fulana Fulana compartilhassem

do salão da Pós-modernidade que é o shopping:

Foi então que eu percebi, à custa mesmo dele não perceber, o seu lustro, a sua estirpe, verdadeiramente proustiana, parisiense, a sua elegância, não apenas material de suas roupas, mas de como as envergava, e da extraordinária e assombrosa semelhança de sua fisionomia com a de Marcel, os olhos admiráveis, lânguidos, ardentes, afetuosos, as pálpebras, conchas pombas pétalas, os mistérios que escondiam e revelavam como somente eles, ou os lábios de Mona Lisa, ou o coração do Hamlet, o rosto entre o oriente e o ocidente...precisei me afastar-me para melhor contemplá-lo, à distância, como se contempla uma obra de arte158.

Fernando Pessoa tem como um de seus retratos mais famosos uma tela pintada

por José de Almada Negreiros na qual ele está sentado à mesa do Café Irmãos Unidos

escrevendo. Segundo o escritor português Luís Machado, no livro À Mesa Com

Fernando Pessoa 159 o poeta cotidianamente caminhava pela Baixa, coração de Lisboa,

local onde ficavam vários cafés e restaurantes. Costumava a freqüentar o Café

Restaurante Martinho da Arcada, o qual fazia de seu escritório de fim de tarde:

Sentava-se à mesa (quase sempre a mesma) onde espalhava vários maços de papéis. Pedia o primeiro café, o bagaço inicial e começava a escrever. Outras vezes parecia entrar em transe,

157 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.107. 158 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.103. 159 MACHADO, Luís. À Mesa Com Fernando Pessoa. Lisboa: Pandora Edições, 2001.Apud Jornal estado de são Paulo. 03 de Janeiro de 2003 In: http://www.instituto-camoes.pt/escritores/pessoa/amesa.htm. Acesso em 10/11/2004.

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fixando um ponto indeterminado no teto do salão, alheio ao que sucedia em volta. A família Mourão, dona da casa, jantava numa mesa próxima. Ao vê-lo entornar tantos cafés e bagaços, sem comer nada, convidava-o para acompanhá-la. Quando Fernando Pessoa aceitava, tomava uma sopa juliana e saboreava bacalhau e uns ovos estrelados com queijo que velho Mourão, seu admirador, inventou para ele 160.

Segundo a Prof.ª Dr.ª Maria Thereza Abelha161, além de freqüentar o Café

Restaurante Martinho da arcada, Pessoa era cliente assíduo também do café A

Brasileira, em ambos os recintos o poeta exercia a sua literatura. Esta imagem do poeta

escrevendo nos cafés lisboetas é recuperada por Fulana Fulana a partir da pintura de

Almada Negreiros:

...Fernando Pessoa trabalhando/escrevendo no Café Irmãos Unidos, mutatis mutandis, eu, menina livre para sempre, sofrendo de claustrofobia de um lar, que, ao contrário dele... o “lar que nunca terei!”...não tenho nem quero ter, inventei esta nova família para mim, se não com dimensões tão amplas quanto as de uma megalópole, pelo menos bem mais amplas do que as de uma família habitual, a variada, móvel família do shopping, uma festa permanente em que a qualquer momento e sem torturas e esperas, você é bem-vindo e pode entrar, Natal, Ano Novo, Primavera o ano inteiro162.

O tema da escrita na pós-modernidade é, desta maneira, analisado por Judith

Grossmann na narrativa Meu Amigo Marcel Proust Romance como um discurso da

permanência da obra de arte como objeto atemporal e a-histórico, não num sentido de

estar ela imune aos tempos e momentos sócio-históricos num definitivo e empobrecedor

afastamento da arte em relação à vida, mas sim como um objeto que se realiza e se

presentifica mesmo quando tudo parece esvair-se, mesmo quando o próprio conceito de

arte é posto sob desconfiança, a arte persiste se realizando.

Definido pelas palavras da própria Judith Grossmann:

É um livro que não se parece com nenhum outro. Apesar disso tem toda uma anterioridade artística, não somente literária, mas das artes plásticas. O cenário é um shopping. É como um desenho à

160 MACHADO, Luís. À Mesa Com Fernando Pessoa. Lisboa: Pandora Edições, 2001. 161 Informação cedida em diálogo informal. 162 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.43.

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mão livre. O shopping foi tomado como um imenso ready-made de Marcel Duchamp, um móbilde de Alexander Calder, um grande museu de produtos, como em Andy Wahrol163.

Pensamos que, em verdade, a escolha do local e dos pares de diálogo entre

artistas da pós-modernidade é uma reflexão que em muito tem relação com a afirmação

seguinte:

Situação especial para escrever, para criar? Qualquer uma164.

Assim, Grossmann nos chama a atenção para percebermos que o escritor, o

criador de arte, seja ele pré, moderno ou pós-moderno, tem, na aspiração da construção

de um livro a mesma missão: a recherche. E esta procura pode tanto resultar no

encontro consigo mesmo, esquadrinhando os seus arquivos de memória, como no caso

de Proust, no encontro com as várias faces do eu, como nos heterônimos de Fernando

Pessoa e, igualmente, no encontro com o outro, no amor, momento de identificação

plena do eu com o outro: Eros e Psique, Victor e Fulana Fulana:

E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era

A Princesa que dormia 165.

163 LINS, Ênio.Letras no final do século XX.: Entrevista com Judirh Grossmann. Caderno B, Gazeta de Alagoas, Maceió, 17 Abr,1997. 164 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.52. 165 FERNANDO Pessoa. Eros e Psiquê

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CAPÍTULO III

EROS NARRADOR DA PÓS-MODERNIDADE

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Sem mim, este Shopping, que me é um enorme corpo erótico, onde, transfixada pela beleza, desmaio diariamente de êxtase se esboroaria e não sobraria pedra, eu o reconstruí com o meu olhar e o meu gozo, que agora o sustentam em sua verdadeira existência. Judith Grossmann, Meu Amigo Marcel Proust Romance.

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I. Fulana Fulana e o derramamento do afeto sobre os objetos da pós-

modernidade.

Em busca de materiais, imenso bric -à-brac, perambulo, como Picasso, pelo Shopping, suas mais escuras florestas, esperando apenas que as iscas me chovam nas mãos. Judith Grossmann, Meu Amigo Marcel Proust Romance.

A narradora do livro Meu Amigo Marcel Proust Romance, Fulana Fulana, instala-

se no shopping, ambiente comumente pensado como desprovido de afeto e memória, ali

se evola por ser ele um lugar de passagem, como os aeroportos, os hotéis e restaurantes

das mega-redes multinacionais. O shopping nos oferece a possibilidade de pensá- lo

como sendo uma realidade paralela, como um mundo construído de sorrisos e acenos

onde a individualidade só se constrói se mediada pelo consumo166.

Um dos estudos que podem nos auxiliar na reflexão do shopping como ambiente

“distópico”, esvaziado, é aquele empreendido por Marc Augé,167 que reflete sobre o

conceito e a formação de não- lugares naquilo que ele convencionou chamar de

supermodernidade. Para mais tarde estabelecer um contraponto entre a modernidade e a

supermodernidade, Augé inicia falando sobre a condição do lugar na modernidade a

partir de Jean Starobinski, que vê a conciliação entre passado e presente como a essência

da modernidade. Para ele, nela haveria um movimento em que o passado não só estaria

no presente, mas também o ultrapassaria e reivindicaria. Esta polifonia que marca o

cruzamento entre passado e presente pode ser entendida, por exemplo, em A busca do

tempo perdido, de Marcel Proust. A modernidade lida com lugares e ritmos passados

sem os apagar, mas os colocando como pano de fundo, estes lugares e ritmos funcionam

como indicadores do tempo que passa e sobrevive. Na arte, a modernidade preserva as

temporalidades do lugar como elas se fixam no espaço e na palavra:

166 Cf. CANCLINI, Nestor Gracía. Consumidores e cidadãos ; conflitos multiculturais da globalização.Rio de Janeiro: Ed.UFMG,1999. 167 AUGÉ, Marc. Dos lugares aos não-lugares. In:_____. Não-lugares;Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Papirus, 1994.

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O lugar se completa pela fala, a troca alusiva de algumas senhas, na convivência e na intimidade cúmplice dos locutores.168

Desta maneira, mesmo sendo colocado em segundo plano, o lugar é levado em

conta na modernidade, diferente do que ocorre na supermodernidade, termo adotado por

Marc Augé lido aqui como equivalente ao que nós optamos por chamar de pós-

modernidade. Na supermodernidade o lugar não pode se definir nem como identitário,

nem relacional, nem como histórico, se convertendo num não- lugar:

Um mundo onde se nasce numa clínica e se morre num hospital, onde se multiplicam, em modalidades luxuosas ou desumanas, os pontos de trânsito e as ocupações provisórias (as cadeias de hotéis e os terrenos invadidos, os clubes de férias, os acampamentos de refugiados, as favelas destinadas aos desempregados ou à perenidade que apodrece) onde se desenvolve uma rede cerrada de meios de transporte que são também espaços habitados, onde o freqüentador das grandes superfícies, das máquinas automáticas e dos cartões de crédito renovado com gestos do comércio ‘em surdina’, um mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero, propõe ao antropólogo, como aos outros, um objeto novo cujas dimensões inéditas convém calcular antes de se perguntar a que olhar ele está sujeito169.

O sujeito insere-se, então, numa lógica de superficialidades e transitoriedades que

fazem com que o mundo seja experimentado numa sensação de praticidade e rapidez que

iludem o indivíduo, uma vez que simulam a formação de comunidades e redes de

diálogo dissimulando e, ao mesmo tempo, construindo a solidão. A sensação da

existência do não- lugar como lugar se dá graças às astúcias do cotidiano, uma vez que o

sujeito vive e transita nestes não-lugares sem que se dê conta de sua superficialidade.

O não- lugar pode ser compreendido quando se reflete sobre as categorias de

superfície, volume e distância que se exemplificam nas rodoviárias, aeroportos, grandes

cadeias de hotéis, redes de comunicação hiper-potentes que fazem com que o indivíduo,

em lugar de interagir como o outro, se coloque em diálogo com uma auto- imagem, o que

reforça a sua solidão e o seu desabrigo. Para que se possa fazer a distinção entre os

lugares e os não- lugares, Augé toma a idéia de Michel Certeau acerca da oposição entre

lugar e espaço. Segundo Certeau o espaço é um “lugar praticado”, ou seja, dele se

utilizem e nele transitam pessoas e é este movimento que faz com que ele perca a sua

168 AUGÉ, Marc. Dos lugares aos não-lugares. In:_____. Não-lugares;Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Papirus, 1994.p.73. 169 AUGÉ, Marc. Dos lugares aos não-lugares. In:_____. Não-lugares;Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Papirus, 1994.p.73/74.

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passividade e adquira, pelo intenso trânsito dos indivíduos, as características de um

espaço. Assim, conclui-se que o lugar é a passividade, é a coexistência de dados

elementos que obedecem a certa ordem, já o espaço é a animação, o lugar em movimento

que se coloca em ação graças ao deslocamento de uma força motriz. Avançando um

pouco sobre Certeau, Augé pensa que o lugar antropológico, deve ter, além do

movimento, a possibilidade dos percursos que nele se efetuam, dos discursos que nele se

pronunciam e da linguagem que o caracteriza170.

O termo espaço é muito mais abstrato do que a noção de lugar, uma vez que este

pode se referir a um acontecimento, a um mito, a uma história, enquanto a noção de

espaço é aplicada a uma medida, a um intervalo; a sua abstração chega ao hiperbólico

quando se pensa na imagem do “espaço aéreo”. Para Certeau, o não- lugar pode ser

entendido como um lugar negativo que se produz graças ao nome do lugar que, por

pretender representá- lo, acaba esvaziando-o, uma vez que o nome não carnaliza o objeto,

apenas evoca-o. O viajante que, passando os olhos sobre os mapas e os roteiros de

viagem, escolhe o destino e analisa o percurso da viagem, apenas vislumbra ou imagina

o lugar, não o freqüenta, não o habita, não o conhece. Surge, assim, uma das feições do

não- lugar:

A viagem...constrói uma relação fictícia entre olhar e paisagem. E, se chamarmos de “espaço” à prática dos luares que define especificamente a viagem , ainda é preciso acrescentar que existem espaços onde o indivíduo se experimenta como espectador171.

Assim, o espaço do viajante seria o arquétipo do não-lugar. Os viajantes solitários

do século passado, os acidentais, de pretexto ou ocasião, são os que melhor representam

a idéia do não- lugar, eles transitam e se inserem num espaço desprovido de identidade,

relação e história. É um ambiente onde a individualidade é esvaziada em conseqüência

da solidão, desprovido de passado e de futuro.

O efeito do não- lugar, representado, conforme já foi colocado, em restaurantes,

aeroportos, shoppings, rodoviárias, lugares que representam a superficialidade e a

transitoriedade do espaço pós-moderno e impõem a consciência individual uma vivência

de solidão que é nova, que surge da perda do sujeito na multidão.

170 AUGÉ, Marc. Dos lugares aos não-lugares. In:_____. Não-lugares;Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Papirus, 1994.p.77. 171 AUGÉ, Marc. Dos lugares aos não-lugares. In:_____. Não-lugares;Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Papirus, 1994.p.80/81.

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Augé afirma lidar em seu texto com o conceito de não-lugar que designa duas

realidades complementares e distintas: uma delas é o espaço formado com certos fins

(transportes, trânsito, comércio e lazer) a outra é o tipo de relação que os indivíduos

mantém com estes espaços. Alguns lugares existem muito mais pelas palavras que o

evocam, sendo fruto de uma imaginação criadora uma vez que a palavra aproxima

objetos jamais vistos ou experimentados, como num plano de viagens. Mas, os não-

lugares da supermodernidade não são, necessariamente, produzidos por palavras, eles

são experimentados e vivenciados pelos indivíduos definindo-se e definindo o tipo de

relação que o indivíduo deve manter com ele pelas palavras e textos que os próprios não-

lugares criam e propõem. No shopping, tomado aqui como não- lugar, as palavras e as

imagens convidam o indivíduo ao consumo através de frases imperativas que exortam o

indivíduo a fruir da vida, num carpe diem que só pode ser oferecido pelo consumo.

Por conta de sua “distopia”, o shopping é um espaço em que se irá realizar o

esmaecimento de afetos, uma vez que as pessoas que, diariamente, transitam e trabalham

ali não conseguem imprimir a carga de sua pessoalidade e subjetividade sobre os seus

corredores e alamedas, pois, sendo ele um espaço prioritariamente de trânsito, ou, como

já foi colocado, um não- lugar, resiste a uma “pessoalização” que poderia rechaçar a

identificação geral e irrestrita. Todos os que ali entram precisam ser acolhidos e

satisfeitos em suas necessidades e anseios, o shopping, então, não terá um traço

exclusivamente seu, será mais um produto massificado e vulnerável às leis de

reprodutibilidade técnica. Os indivíduos que ali caminham alegorizam, com seus corpos,

sorrisos e gestos esta lógica da massificação e da reprodução em grande escala se

distinguindo, apenas, a partir das mediações de compra e venda.

É interessante notar que, mesmo elegendo o shopping como cenário privilegiado

do seu texto, não há, em todo o romance, o foco no sujeito consumidor, não existem

cenas em que se representem, exclusivamente, sujeitos pagando compras, carregando

sacolas ou adquirindo bens materiais. Quebrando esta lógica da individuação mediada

pelo consumo, lei máxima das avenidas do shopping, os sujeitos tomados como focos de

destaque para Fulana Fulana não estão consumindo, assim, a individuação é construída

pelo olhar afetuoso que a narradora derrama sobre os seus escolhidos. Este olhar é

contaminado pela força erótica como impulsionadora da vida, quebrando o

esmaecimento dos afetos e reconstituindo a unicidade das pessoas, uma vez que ele

atravessa a superficialidade das roupas e das fa las buscando adivinhar as angústias e

necessidades de cada um.

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Há, no texto, uma cena que é importante para se pensar como este olhar rompe

com o esmaecimento dos afetos na pós-modernidade reconstituindo-os. Victor e Fulana

haviam marcado de, juntos, assis tirem ao concerto de Luciano Pavarotti pela tevê, cada

um em sua casa, e, no momento do início da exibição do concerto, a narradora fala de tal

forma sobre este “encontro virtual” que temos a impressão de que o casal está,

realmente, sentado nas poltronas do teatro assistindo Pavarotti ao vivo:

Na hora do concerto, a enorme vitória -régia do telefonema se abriu completamente, a sensação de que ele seria fiel ao pacto, estaria assistindo em sintonia comigo172.

Então, através do pacto de fidelidade amorosa ao trato de estarem, ambos, ainda

que à distância, assistindo ao concerto, Fulana e Victor enganam tanto ao afastamento

entre eles dois quanto a distância de Pavarotti, através da televisão. O que se coloca em

debate aqui é a questão da autenticidade. A imagem de Luciano Pavarotti, hiper-

reproduzida ad infinitum pelos meios massemidiáticos, pode ser lida pelo que Walter

Benjamin chama de “Reprodutibilidade técnica173” que são as técnicas várias de

reprodução da obra de arte que findam por abrandar a sensação da distância entre

sujeito e objeto.

Com o advento da televisão e a sua capacidade de transmissão de

acontecimentos vários ao vivo, via satélite, a noção de distância e de tempo é

ressignificada. Isto pode ser representado e maneira emblemática em dois momentos:

com as imagens da chegada do homem à lua e, mais recentemente, com o ataque aéreo

às Torres gêmeas do World Trade Center.

Segundo Benjamin, a reprodutibilidade faz com que o indivíduo tenha, ao

mesmo tempo, uma sensação de proximidade e acessibilidade em relação à obra de arte

canônica, e perceba, de maneira ainda mais determinante, a distância que separa a obra

reproduzida da original. Assim, na medida em que as obras são massificadas na pós-

modernidade, produzindo uma ilusão de proximidade, mais o original tem adensado o

seu poder de culto, uma vez que a sua singularidade se destaca pela reprodutibilidade.

Segundo Benjamin o que se perde com a reprodução é o “aqui e o agora” da obra de

172 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. 173 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In:______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1985.

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arte, a sua existência única, esta é a autenticidade da obra de arte, um objeto “sempre

igual e idêntico a si mesmo”. A autenticidade escapa a todo tipo de reprodutibilidade.

Se por um lado Benjamin aponta para a destruição da aura na reprodução em

massa dos objetos artísticos, podemos perceber uma restituição da aura aos objetos do

mundo nas atitudes de Fulana Fulana. A esta pode ser entendida como uma

singularidade composta de elementos espaço-temporais, é a aparição única de uma

coisa distante, por mais perto que ela esteja174. O declínio atual da dela deriva

diretamente de conseqüências ligadas a crescente difusão e intensidade dos movimentos

de massas. A necessidade extrema que as massas têm de romper as distâncias, fazendo

com que tudo fique mais próximo acaba destituindo a aura de todos os lugares. O objeto

não pode estar distante do público de modo que, em nome da aproximação, o elemento

aurático é tocado pela reprodutibilidade.

Ainda que se utilizando da reprodutibilidade para exercer esta aproximação em

relação ao concerto e à própria pessoa de Pavarotti, Fulana Fulana reconstitui a aura

deste momento uma vez que a cena não se naturaliza aos seus olhos como mero

espetáculo. Na verdade, Fulana vê na obra de arte o seu valor de culto, sendo assim,

apesar da proximidade, e da intimidade a sacralização permanece:

Algumas vezes até me levantei pra enxugar-lhe o suor da testa com a ponta do meu dedo, atirar-lhe beijos. Ir ao concerto seria uma outra coisa, mas pela TV tem suas vantagens, a vantagem do seu próprio recolhimento, a dupla observação do artista e do público175.

Desta maneira, derramando sobre a cena o seu olhar amoroso, ao mesmo tempo

em que se aproxima de Pavarotti chegando a enxugar- lhe a transpiração com os seus

dedos, cada gotícula de suor permaneceu imune as mãos de Fulana Fulana, uma vez que

a proximidade é apenas ilusória. Assim, em lugar de abrandar a aura ela se reafirma de

maneira contundente pela impossibilidade de um contato real.

Podemos afirmar, então, que Fulana Fulana é uma espectadora diferenciada,

uma vez que, sob a sua vista, em lugar de abrandarem-se os afetos e de a aura esboroar-

se no ar da proximidade e da reprodutibilidade, os afetos se reforçam e a aura é

reconstituída. Isto não acontece apenas com os objetos de arte, mas, igualmente, com os

174 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In:______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1985. 175 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997.p.97.

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objetos do mundo. É desta maneira que a narradora se aproxima da multidão do

shopping. Resgatando os indivíduos do anonimato e da fugacidade do mundo e

lançando-os à literatura, com a entrada na obra de arte, estes indivíduos são auratizados

através da “consagração do instante” que se dá na escrita literária:

Aposso-me da multidão, com a qual nutro a maior intimidade, fazendo derreter uma a uma, as pessoas, pessoas como enormes, amorosos e doces blocos de gelo, sou o próprio Espírito encarnado da pós-modernidade ao qual não seria mais possível trabalhar num quarto catedral, utilizo as livrarias, nas quais sou tombada, somo imensas bibliotecas. Sim, as ruas176.

176 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.31.

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A poética da espera e a estética da rapinagem

Se eu roubo é para dar, e ter é a minha maior angústia, por não haver entrado em seu mistério, tanto me basta ter-me, o meu corpo, morada do que nele habita, palavras que escorrem fluidas azuis de uma caneta. Judith Grossmann, Meu Amigo Marcel Proust Romance.

Com a força revivificadora de Eros, Fulana ressignifica o mundo, as pessoas e os

objetos circundantes, isto acontece, primordialmente, no shopping center, local

privilegiado de sua escrita. Ali Fulana está, ao mesmo tempo, namorando e sendo

namorada, pois se expõe ao olhar do outro para ser por ele fisgada mas também leva

consigo a isca que irá fisgá- lo:

Ainda que um tanto incômoda, esta erotização permanente do corpo, ela é imprescindível para a existência do trabalho do artista, totalmente informado por Eros, mesmo se submetida a um processo alquímico, ou a uma simples eletrólise, transformadora das substâncias177.

Já que ela busca desenhar quadros de espera, encontros e desencontros nas

mesas do fast-food do Shopping Center Barra, a isca que ela atiça aos indivíduos é o

relógio. Por dois motivos, primeiro por que as pessoas que são retratadas na narrativa

estão, em sua absoluta maioria, à espera de um outro indivíduo. Comumente são

representados namorados e namoradas à espera de seu parceiro, depois, por conta de

não ser comum haver, nos shoppings, relógios. Isto é uma estratégia, muito conhecida,

utilizada pelos shoppings a fim de ludibriar a noção de tempo e inserir, no fluxo dos

acontecimentos diários, uma temporalidade desmarcada, fantasiosa. Caminhando pelos

corredores, comprando nas lojas o indivíduo perde a referência do tempo, ficando mais

exposto a possibilidade de consumo.

Mas, para as pessoas que aguardam o ser amado, o tempo custa a passar e a

ausência de relógios, em lugar de estimular a permanência, o consumo e a sensação de

conforto, reforça a angústia da espera. Então, quando Fulana coloca em seu pulso o

relógio, de certa maneira, ela se converte em par e testemunha da espera, comungado,

com estes indivíduos, a temporalidade do amor.

177 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.100.

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A relação entre a narradora e seus retratados pode ser pensada como uma

releitura do mito de Pigmaleão e Galatéia. Pigmaleão, grande escultor, constrói Galatéia

a sua maior e mais bela obra de arte, sente-se atraído por ela, mas encontra-se num

dilema: conservá- la pra a arte ou despertá- la para a vida. Pigmaleão encanta-se por

Galatéia e tenta, de toda a maneira, trazer a sua criatura à vida deixando que a arte

soçobre diante dela. De certa maneira Pigmaleão que ocupar de maneira definitiva o

lugar de demiurgo criando e dando vida a sua escultura. Segundo Jean Starobinski:

Pigmaleão não deseja apenas que a estátua ganhe vida. Quer ser amado e reconhecido por ela. Quer, portanto, recuperar a força que dispensou em sua obra. Pois é um artista avaro, que não pode esquecer-se naquilo que faz, e que não tem a disposição de consentir na perda que é uma obra acabada178.

Fulana Fulana reencena o mito de Pigmaleão e Galatéia ao contrário. Em lugar

de deixar os seus modelos permanecerem na vida, ela os consagra através da literatura,

impedindo que eles se percam. Quando Fulana Fulana abandona o catre de criação, onde

o escritor imaginativo recria, através de suas memórias e sensações, o mundo que ficou

aprisionado do lado de fora, ela adota uma estética da rapinagem. A imagem do

cleptomaníaco, que rouba tanto o insignificante quanto o precioso pode ser lida como

uma metáfora para Fulana Fulana que, sentada das cadeiras dos restaurantes, toma posse

dos indivíduos se cercando deles e sendo uma ladra de olhares, marcas, gestos, palavras:

No pátio de espera, junto às Pernambucanas, aspiro esta pequena multidão unida pelo desejo de entrar no shopping, inconsciente de que a gentil criatura que aqui está é a mesma terrível, e lhes tiraria uma foto para melhor tomar-lhes a alma179.

A tática do roubo é, então, estruturante para se pensar a prática de escrita de

Fulana Fulana, ela captura as cenas e pessoas para pintar retratos de espera, felicidade,

decepção, angústia mas, diferentemente do pintor, em lugar de apenas representar a

imagem ela consegue construí- lo tanto em sua aparência quanto em sua vida interior. É

através desta estética da rapinagem, na qual todos os subterfúgios são admitidos diante

da necessidade de roubar a alma daqueles indivíduos, que ela toma posse do mundo que

a cerca. O roubo, na verdade, é a lei da criação literária. Comumente a rapinagem é 178 STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau; a transparência e o obstáculo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 179 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.97.

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eufemizada com o uso da palavra “inspiração”. Quando o escritor recupera, na sua

escrita, a sua memória, ele a está roubando dos braços do esquecimento; se os fatos são

vivências de terceiros, o roubo se adensa, mas não costuma se realizar às vistas do

“assaltado”. Em Fulana Fulana a rapinagem se imiscui na esperteza e na precaução para

não ser descoberto. Entra aí a idéia do disfarce, a boa e simpática senhora que está todos

os dias no shopping, sentando-se na mesma cadeira e que passa todo o tempo escrevendo

no seu caderno Clik, com a sua caneta Kilométrica ultra ponta fina, é, na verdade, uma

grande e despudorada ladra.

O roubo se dá a todo o momento, neste imenso salão proustiano que é o

shopping, ludibriando a desindividuação corrente nas alamedas do shopping, os sujeitos

são capturados pelo olhar arguto de Fulana Fulana e eternizados pela literatura.

Apropriando-se da técnica do retratismo, a narradora desenha, com as palavras, seis

quadros de pessoas que por ali passaram. Em todos os quadros se desenham indivíduos

que estão à espera de alguém, e, assim, ergue-se o que chamamos de a poética da espera

que pode ser definida como uma reflexão acerca da solidão, da expectativa, decepções e

felicidades do indivíduo à espera do outro.

São seis quadros de espera que se constroem, todos são simbólicos para se

analisar tantos os rituais de espera, quanto a própria técnica narrava.

O primeiro a ser retratado pela narradora é um jovem alemão que está à espera da

namorada. A tortura se estende durante uma hora e quarenta minutos e, durante todo o

tempo, ele indaga, de vinte em vinte minutos, as horas para Fulana Fulana:

Um certo laço se estabelece entre nós, uma imperceptível troca de olhares, ele me pede desculpas com os olhos por me interromper, quando, pelo contrário, lhe sou imensamente grata por este workshop de espera que me proporciona 180.

A angústia do rapaz só se encerra quando finalmente, chega a moça pela qual ele

aguardava. Este rapaz será a matriz a partir da qual, mais tarde, se realizará a metafísica

da espera masculina.

Em seguida, será retratada a “Deusa Alessandra”, uma jovem de 18 anos que

puxa conversa com Fulana Fulana. Com uma pergunta banal, ela compra a passagem

180 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.43.

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para sair do mundo onde o transitório e o imediato marcam a fugacidade da vida, para

adentrar na narrativa, eternizando-se:

Esta é a mim que aborda, adivinhando-o em mim, adivinhando-me que deve, por desígnio meu, entrar em minha obra, em meu papel181.

Assim, eternizada em suas páginas, através da sua conversão de pessoa em

personagem, a Deusa Alexandra jamais morrerá, uma vez que será lançada sobre ela a

aura que a impedirá de morrer e de envelhecer:

Ò doce ninfa mitológica, acredito que de 1,75 de altura e 65 Kg de peso, diretamente descida do Olimpo para encantar com seus passos alados os flanantes baudelairianos e proustianos deste shopping...182

Alexandra conta para Fulana Fulana os seus sonhos, sobre o seu namorado, os

filhos que terão e, assim, já não mais importa se estes sonhos serão realizados ou não:

...eu a consagro, na juventude dos seus 18 anos, que aqui serão eternos, permanentemente gatinha em flor, e pela extrema retidão de suas intenções, recobrirei o seu caminho, em todos os meus sonhos, de pedras preciosas das mais variadas cores, de modo que a luz, solar ou noturna, natural ou artificial, quando nele refranja, traga um arco-íris. Obrigada pela prenda de sua escolha, que agora faço minha em definitivo183.

O terceiro é um dos orientandos da Professora Fulana Fulana, Roberto, lido como

arquétipo dos orientandos, o quadro de espera, aí se abranda em favor de um momento

de encontro. Em seguida o Marcel Proust pós-moderno, já comentando anteriormente

neste trabalho.

Em outro dia de escrita, a narradora depara-se com uma jovem impassível diante

de sua presença, a moça provoca em Fulana uma necessidade de aproximação e acolhida

que serão retomados com maior intensidade no último quadro:

181 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.93. 182 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.93/94. 183 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.94.

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Tenho receio apenas que esta, com um paninho amarelo, como nos quadros de Vermeer, que lhe deixa ver os admiráveis omoplatas, possa sentir frio no ar refrigerado do cinema, mas poderão servir-lhe de écharpe os abundantes cabelos, pesados até demais para este quase imaterial corpinho. Mas um artista não deveria envolver-se com os seus modelos, ainda mais estes que desfilam para o meu prazer sem que com nada lhes gratifique, senão com a carícia de meu olhar, do beijo invisível com que os envolvo a todos, e pelo fato de a todos, como numa escultura épica de Brecheret, em sua monumentalidade, imortalizá-los aqui, eu como ele movida por Amor184.

A última retratada é uma moça negra que pede licença para sentar-se à mesa com

Fulana e, sem saber, adentra na sua narrativa. A moça já espera há meia hora e,

furtivamente, lança olhares para o papel onde Fulana a registra:

E o pior é que poderá encontrar-se aqui, este corpo é mais fornido, em belo mármore ébano, de matriz dourado, o cabelo é maravilha em negro, terminando em cachos soltos...185

Fulana vê a sua escrita como maneira de impedir o fluxo da vida no qual,

certamente, se perderiam a sua beleza e toda a “paixão-tormento” que a consome e

servirá ela de única testemunha desta angústia e isto precisa ser registrado:

... e porque pinto ao vivo os que até incautamente se oferecem, arranjei este método de cobrir as linhas que escrevo com um papel, também para evitar que ela, vendo-se aqui, se ponha em fuga186.

A partir da observação desta jovem, Fulana traça a poética da espera masculina e

feminina. Segundo ela o masculino é mais conformado, uma vez que ele acostumado

está a esperar, já no feminino em pouco tempo a paciênc ia se converte em ira e, em

seguida, a desistência. Isto faz nascer nela o temor de que a jovem se enfureça e vá

embora:

184 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.105/106. 185 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.109/110. 186 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.110.

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...Mas não posso deixá-la ir, ela é no momento a única representante disponível de todas as pessoas que já esperaram, esperam e esperarão no mundo...187

E, juntamente com ela, Fulana espera, assim como a jovem está aprisionada no

seu tormento, fragilizada pela posição vulnerável que é a de quem espera, uma vez que

se está nas mãos do outro, a narradora também enlaçada está nesta mesma posição,

imobilizada pela necessidade de amparar a jovem moça que espera:

O Shopping só fechará às 10.00, se ela não me libera, terei de ficar aqui, ela nem desconfia, não posso ir à toilette...não posso tirar meu break , estou inteiramente perdida, a aflição dela se soma a minha tornando-se insuportável, mas não posso inventar finais, colocar aqui falsidades, sua casual presença desviou todo o curso da narrativa de hoje 188.

Até que, finalmente, a doce deusa de ébano ergue-se e, com mil mundos partidos,

vai embora, após uma hora e trinta minutos de espera.

Judith Grossmann, travestida de Fulana Fulana, adota a técnica do retratismo

como forma de transpor indivíduos que transitam pelo mundo real para o universo

literário e, com isto, ela acaba discutindo um dos conceitos básicos da teoria da literatura

que é a mímese. Na construção dos seis quadros deu-se processo de suprimir estes

indivíduos do real e lançando-os à obra literária, entretanto, para leitor desavisado, esta

transposição parece fazer nascer uma ilusão de fidelidade ao real Aparentemente, Fulana

retrata os indivíduos conforme eles são, apreendendo deles a sua existência real, mas a

narrativa conforme construída por Judith Grossmann, demonstra que, naturalmente,

muito escapa de seus olhos, na verdade, o que faz Fulana Fulana é registrar em palavras

uma visão do outro e tentar inferir, a partir de seus gestos e olhares, quais são os dramas

e angústias que o impacientam.

A ficcionalidade da literatura é discutida aqui de maneira provocativa, uma vez

que a narradora sai do seu catre de criação, lugar “perfeito” para o ficcionista criar a sua

obra e dirige-se ao Shopping onde a narrativa se constrói não mais a partir da

rememoração e sim a partir da observação. A “tradição”, ou o “modelo” de criação

187 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.111. 188 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance.Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.111.

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literária é aquele que suprime a ligação direta com o ambiente real e prima pela recriação

mnemônica dos fatos, impondo a eles a passagem pela reinvenção, base da construção

literária. Fulana nos mostra que lugar de criar, de escrever é, realmente, qualquer lugar e,

na verdade, o shopping se converte em laboratório de análise comportamental, matéria

prima, de onde nascerá a ficcionalidade da obra literária.

Quando questiona a determinação canônica do “ambiente propício” para a criação

literária a narrativa de Judith Grossmann finda por questionar igualmente o próprio perfil

do narrador. Surge, então, a questão: Fulana Fulana é uma narradora pós-moderna?

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Fulana Fulana e a hibridação da narrativa

...E afinal o que é o shopping, palácio da cultura ocidental e da modernidade? Senão?, expressão da sempre aventura humana, sempre a mesma e inteiramente diversa, fagulhas, fragmentos de uma multiplicidade, a perder de vista de caleidoscópios. Judith Grossmann, Meu Amigo Marcel Proust Romance.

A categorização do narrador pós-moderno foi pensada por Silviano Santiago em

seu texto O Narrador Pós-moderno189 como sendo um sujeito que narra a partir de sua

observação do mundo, se pensarmos assim, a técnica do retrato adotada por Fulana

Fulana poderia encaixá- la na categoria deste tipo de narrador:

Queria que o meu trabalho fosse, daqui por diante, a arte do retrato, mas retrato com palavras, dinâmico, dotado de movimento190.

O retrato pressupõe, além da necessária capacidade de observação e de

reprodução, a isenção do retratista da cena narrada, o seu olhar deve ser lançado de fora

para dentro da ação de modo a comportar-se como espectador que, pelo seu prisma de

visão, narra a cena.

Santiago coloca como mote para se pensar a posição do narrador em relação à

história contada a seguinte indagação: ele narra a partir de sua experiência ou de sua

observação? O narrador que conta a história de dentro dela, a partir do que dela

experimenta é o narrador clássico conforme pensado por Walter Benjamin em seu texto

O narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov191 aquele que narra como um

espectador da ação é o pós-moderno: é o movimento de rechaço e de distanciamento que

torna o narrador pós-moderno192.

Silviano Santiago trabalha com duas hipóteses iniciais acerca do narrador pós-

moderno. A primeira afirma que o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair de si

a ação narrada, contando-a como espetáculo que assiste; a segunda afirma que o narrador

189 SANTIAGO, Silviano. O Narrador Pós-moderno. In:_________. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. 190 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.183. 191 BENJAMIN, Walter. O narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:_____. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Obras escolhidas Vol.1 São Paulo: Brasiliense,1985. 192 SANTIAGO, Silviano. O Narrador Pós-moderno. In:_________. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.p45.

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pós-moderno é aquele que narra transmitindo uma sabedoria resultante da observação da

vivência alheia, desta maneira a sua capacidade de ficcionalizar a narrativa é

potencializada.

A primeira hipótese traz consigo uma dada passividade e uma postura de mera

observação diante do mundo. O narrador, assim, seria aquele que contempla a vida e a

reproduz no seu texto. O segundo narrador é aquele que elucubra acerca da ação

assistida, e transmite um saber resultante daquela observação. Poderíamos afirmar que a

narradora do romance de Judith Grossmann, a princípio, se filia a este perfil de

observação participativa, na qual quem narra o faz interferindo com a sua opinião na

cena narrada. A capacidade de, pela observância, dar autenticidade a uma história que

não é sua reforçando, assim, o seu caráter de ficcionista é um dos traços pertencentes a

Fulana Fulana e isto se evidencia nos quadros que ela faz dos homens e mulheres que

esperam:

Neste sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade 193.

O gosto pelo retratismo é percebido nos vários quadros pintados com palavras se

faz a partir de uma delineação de um perfil do outro por um viés da sensibilidade e da

identificação uma vez que quando Fulana narra as angústias e as alegrias dos outros ela

igualmente fala de si, desta maneira a narradora se aproximaria da categoria trabalhada

por Silviano Santiago uma vez que, segundo ele, o narrador pós-moderno, ao falar do

outro, terminaria falando, igualmente, de si. Projetando as suas experiências de vida na

observação e na reflexão sobre o indivíduo em espera. Fulana fala da vivência do outro

e, neste ponto, a ficcionalidade adensa-se.

Evelina Hoisel em seu texto Meu amigo Marcel Proust Romance no salão da

pós-modernidade, discute, baseando-se na categorização pensada por Silviano Santiago,

a configuração da narrativa de Fulana Fulana. A autora afirma que falta, a Fulana Fulana,

o perfil contemplativo e impassível do narrador pós-moderno, traço que o imobiliza

diante do meio e faz com que a sua narração seja apenas mero registro das situações:

193 SANTIAGO, Silviano. O Narrador Pós-moderno. In:_________. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.p46.

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O narrador pós-moderno, como mero observador distanciado, tem se limitado a registrar os signos da civilização tecnológica tal como eles são postos em circulação: na sua banalidade, no seu esvaziamento. Ele se configura apenas como um olhar que pode captar e constatar a vulgarização dos valores sacralizados, contudo sem interferir na preservação do que tradicionalmente constitui a especificidade dos signos artísticos-literários. Se os signos expostos, cotidianamente, dizem do fragmentário, do transitório, os signos literários ou artísticos, aglomeram esse material oriundo da sociedade industrial tecnológica, sintomaticamente contaminam-se com a perda da aura: perdem a sacralidade que caracterizou a arte tradicional. Em um mundo de valores degradados, a arte anuncia e constata friamente esta degradação194.

Evelina Hoisel afirma que neste texto não há a postura de mera observância e de

inação diante da dessacralização e da banalização pós-modernas. Isto foi por nós

demonstrado pela análise feita no segundo capítulo deste trabalho e no início o terceiro

capítulo do mesmo Fulana Fulana não apenas constata a degradação, o esmaecimento

de afetos e a dessacralização vigente no mundo pós-moderno como também preocupa-

se em reaver estes valores.

No segundo capitulo deste estudo trabalhamos com o conceito de “amor nos

tempos de HIV” colocado por Fulana como sendo a representação para o amor na pós-

modernidade. Este novo amor obriga o indivíduo a ter uma mudança de postura diante

da experiência e do contato amoroso uma vez que este pode resguardar a ameaça da

morte, como conseqüência dos cuidados e temores, há uma mudança na visão do

relacionamento uma vez que o amor tornou-se “amor de risco”. A esta lógica que impõe

o temor, o afastamento e a desconfiança Fulana contrapõe a idéia de um amor feliz,

onde o risco máximo é o de se entregar e o medo maior é o da rejeição, amor saudável

que padece de algumas saudades e ciúmes apenas, muito longe da possibilidade do risco

da morte.

Diante da permanente vulgarização da relação amorosa e de um discurso do

“contra-sublime” pertencentes a esta nova dinâmica amorosa, Fulana reage com a

sacralização do amor em forma de narrativa, ela não apenas narra a sua love story com

Victor, em cada um de seus passos: esse romance acompanha, por alguns meses, o

nascimento e o desabrochar de uma paixão amorosa195, mas também franqueia esta

“pedagogia do amor” que se multiplica em cada casal de namorados que passeia pelos

194 HOISEL, Evelina. Meu Amigo Marcel Proust no salão da pós-modernidade. In: V ABRALIC; Cânones e Contextos. Anais. p.94. 195 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.183.

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corredores do shopping e, finalmente, no título dado a sua narrativa, louva a maior das

formas de amor que é a amizade. Desta maneira, podemos dizer que a narrativa é uma

ode ao amor atemporal, suplantando os medos e as limitações pós-modernas ela

demonstra que ainda é possível amar.

Um outro ponto importante da narrativa é a visão do indivíduo na multidão.

Fulana não quer “apenas” gozar da multidão, tomar um banho de multidão196, a

narradora deseja adentrar nela e retirar, da massa homogênea, os traços de

individualidade que, no shopping, conforme vimos na discussão feita no segundo

capítulo, baseados em Canclini, só consegue se construir a partir do consumo. Fulana

não adota a lógica de “consumidores e cidadãos” de se pensar o indivíduo que se

constrói a partir do consumo, ela adota uma postura de se buscar o sujeito em sua

individualidade e o faz pousando sobre ele o seu olhar amoroso que busca destrinchar

os detalhes de sua subjetividade e, ao o destacar da multidão, ela restitui a ele a aura:

E como se aproxima a hora da abertura, vejo através dos vidros, as sacerdotisas do Shopping, geradas pelas páginas de Proust, embora no seu tempo não houvesse Shopping...descendo hieráticas como Sarah Bernhardt pelas escadas rolantes, em seus uniformes de ótimo design, fardas, como se diz aqui, trazendo a matiz militar, que cada uma delas individualiza [grifo nosso] com o seu corpo, seus penteados de vário comprimentos e feitios...197

Mas Fulana não se afasta do modelo do narrador pós-moderno apenas por conta

da questão da restituição da aura. O seu afastamento se dá também uma vez que ela

narra a história nascida da observação da vivência do outro, mas também narra a sua

própria história. Ela, ao contrário do El Mudo198 tem a capacidade de contar a sua

própria história de dizer de si pela sua própria experiência. E boa parte da narrativa é

ocupada pela história do romance entre Fulana e Victor. Assim, Fulana adiciona ao

perfil de espectadora intrusa, a capacidade de ser narradora-personagem, categorização

que se perde no narrador pós-moderno uma vez que ele se isenta da cena narrada.

Na verdade, Fulana Fulana em alguns pontos se assemelha ao narrador

benjaminiano no que diz respeito a capacidade que tem o narrador clássico de passar

196 Cf.: BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976. 132 pp. 197 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.98. 198 Personagem de uma obra de Edilberto Coutinho trabalhado por Silviano Santiago como arquétipo do narrador na pós-modernidade. Cf.: SANTIAGO, Silviano. O Narrador Pós-moderno. In:_________. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

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uma experiência, um ensinamento e é importante perceber que no prefácio Do autor ao

Leitor Judith afirma que aquela é uma narrativa de ensinança:

Mesmo sabendo tudo o que sei, e com que o instruo, amigo leitor, para que também você o possa potencializar em si mesmo, já que esta é uma narrativa de ensinança...199 Não. Sou aquela que detém o discernimento, e assim aquela a quem o gozo é acessível. Por ele, é bem pouco o que posso fazer, ensinar-lhe a pensar...200

Fulana recupera o saber tecido na malha da experiência que Benjamin define

como sendo uma sabedoria. Não sendo nem o navegante, nem o agricultor, ela

consegue ainda ocupar o lugar de quem tem uma sabedoria a ensinar, tem ainda algo a

dizer e, este algo é o próprio aprendizado do amor. A simbologia maior que ocupará

todo o romance é a capacidade de amar e de fazer este amor se multiplicar e se

distribuir ludibriando as fronteiras do silêncio e da solidão.

Evelina Hoisel afirma que, com Fulana Fulana, Judith Grossmann provoca uma

necessidade de se repensar a categoria do narrador pós-moderno. Concluímo que Fulana

é um misto de ninguém e de multidão, do vacante e do preenchido, do clássico e do pós-

moderno. Ela funda um narrador híbrido, paradoxal, mas que, ao mesmo tempo,

pressupõe uma simbiose entre os termos que são comumente pensados como

excludentes. Desta maneira Judith Grossmann discute a categorização do narrador

apontando como caminho de reflexão não a visão fechada, mas a incorporação de

características de um e de outro na formação na voz narrativa da pós-modernidade.

199 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.20. 200 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1997. p.23.

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CAPÍTULO IV: RETRATOS DO ARTISTA

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I. As representações do artista como tema literário

Isto é mais um dos meus temas, tudo eu transformei em temas.

Judith Grossmann, Oficina Amorosa; depoimento

Nos textos de Judith Grossmann encontramos algumas cenas e imagens que são,

na verdade, temas eleitos e recorrentes em sua literatura. Tais temas advêm de seus

dados biográficos201, das suas leituras de obras literárias e do próprio labor artístico.

Dentre os inúmeros temas recorrentes na obra de Judith Grossmann podemos

recuperar, entre os suscitados pelos elementos da biografia da escritora, os temas do

desmame precoce, da relação pai- filha e o da irmã gêmea perdida.

O desmame tem uma motivação biográfica, uma vez que cedo ela deixou, muito

cedo e por sua própria vontade, de alimentar-se através do seio materno. Este desmame,

seguido de um aleitamento metafórico por uma figura substituta, seja ela a literatura ou

a babá, representa um desligamento voluntário e decisivo em relação à figura materna.

Isto será retomado, por exemplo, no conto A Adolescente, em que, após a fuga da mãe

com o amante, a filha assume-lhe o lugar tomando conta das coisas da casa e do pai.

Isto nos abre espaço para o outro tema, as relações entre o pai e a filha. Elas são

comumente mediadas pelos sentimentos de encantamento e de sujeição. A figura

paterna, por vezes, representa para a menina porto seguro, local de abrigo, como em A

Adolescente e em A noite estrelada, em outros momentos, ele será o elemento castrador

e dominador, restringindo liberdades e impondo suas vontades às da filha. Contudo,

ainda assim, numa ambigüidade que passeia entre o ceder, o obedecer e o resistir e

rebelar-se, a relação manter-se-á numa harmonia tensa. Esta relação pode ser percebida,

por exemplo, em As tranças de Charlienne. Ainda de fundo biográfico, podemos citar o

tema da irmã perdida, comumente gêmea que não logrou êxito em seu nascimento

simbolizando, pelo seu “geminamento” a outra possibilidade, o que se perdeu. Este

tema advém de suas memórias biográficas de uma maneira um tanto enviesada, uma vez

que Judith não teve, realmente, uma irmã gêmea, mas esta idéia exerce sobre ela um

atração muito grande, o que pode ser verificado pela reincidência da ocorrência do tema

201 Todas as referências feitas à biografia da autora são extraídas de seus depoimentos. Eles são chamados por Grossmann de memórias ficcionais, o que já coloca em questão a ficcionalidade de qualquer discurso erigido sobre o “eu”. Cf. Depoimentos anexos.

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em seus depoimentos. No Fausto Mefisto Romance podemos encontrar este tema

retomado através de Leda Maria, que teve uma irmã gêmea natimorta.

Da leitura de obras de outros autores, são muitos os temas retomados, aqui

levantamos apenas uma amostra, uma vez que são inúmeras as obras revisitadas. A

traição feminina, tendo como representante maior Emma Bovary, da Mme Bovary de

Flaubert que retornará na imagem da mãe de Genoveva, personagem principal do conto

A Adolescente. Emma Bovary é nome da mulher que não suporta a vida conjugal e trái o

marido, Emma é também o nome da mãe de Genoveva, ela foge com um mocinho

agrimensor fazendo com que se releia e se enxergue, de certa maneira, o que viria

depois da fuga de Emma Bovary se esta não fosse abandonada pelo primo.

De Dom Casmurro pode-se dizer que se pinça a perspicácia e a malícia de

Capitu para depositá- la em Leda Maria, esposa do Doutor Fausto de Oliveira

Homem202, mulher aparentemente frágil e vulnerável, mas que, após a sua morte, revela

uma face manipuladora e dissimulada inimaginável para o marido. Aqui podemos dizer

que Capitu é recuperada em sua capacidade de falsear, de ludibriar, de utilizar-se do

benefício da dúvida, mantendo-se sempre na sombra da desconfiança. Aqui a sombra é

tão espessa que só se dilui após a sua morte através da leitura de seus diários. O próprio

Fausto já recupera o mito e a literatura criada acerca dele, resgatando tanto a visão de

Thomas Mann quanto à de Goethe:

Em sua caracterização própria não deixam de convergir os Faustos anteriores, seja o de Marlowe, que necessita de ajuda para o revanche de ser criatura, o de Goethe, em, busca de gozos e de realizações terrenas, o de Thomas Mann, em busca de inspiração para criar obras de arte.203

Neste caso, o pacto de Fausto é o daquele que se compromete com o outro, com

a cura do outro, assume como missão dedicar-se ao outro unindo em si as faces do

médico e do professor.

Os temas advindos da reflexão sobre o labor artístico estão freqüentemente

presentes nas obras ficcionais de Judith Grossmann. Destacamos três temas ligados ao

artista. O primeiro deles é o processo criativo da obra de arte204, o segundo o

202 Personagem de Fausto Mefisto Romance. Cf.: GROSSMANN, Judith. Fausto Mefisto Romance. Rio de Janeiro: Record, 1999. 203 GROSSMANN, Judith. Recepção ao leitor. In:____. Fausto Mefisto Romance .Rio de Janeiro; São Paulo: Record,1999. 204 Já discutido no Capítulo II deste trabalho.

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reconhecimento do discípulo-sucessor e as fases na vida do artista, da infância ao

amadurecimento. Estes temas, na verdade, se coadunam em toda a representação do

artista feita nos textos de Judith Grossmann, fazendo com que eles adquiram certa

circularidade em sua ocorrência. Tomemos como exemplo o processo criativo,

representado pelas figuras de Apolo e Dionísio, como correspondentes à razão e à

emoção, isto já foi explorado no seu livro Outros Trópicos Romance205, representado

pelos personagens Maier e Simon. Mais tarde, em Fausto Mefisto Romance, através dos

irmãos Lóris e Joris o tema será retomado. Neles será representado um outro tema, o da

infância do artista, discutido também no conto As Tranças de Charlienne206.O tema da

adolescência do artista será discutido em Meu Amigo Marcel Proust Romance, através

da personagem Sérgio, que servirá também para refletir sobre o toma do discípulo-

sucessor.

Pensando sobre estas três imagens do artista trazidas freqüentemente por

Grossmann em sua literatura, podemos perceber que se delineia um dado perfil de

artista. Lígia Telles, em sua tese Périplo Peregrino, na qual estudou o perfil do artista

nos textos de Judith Grossmann a partir de quatro romances da autora, afirma:

...é a figura do artista personagem constante da produção ficcional de Judith Grossmann, o articulador de um pensamento tornado discurso, que se concretiza em dois tipos de personagens: o artista sendo metaforizado através de uma série da máscaras, ou assumindo a máscara de modo mais explícito207.

Neste texto buscaremos, então, discutir a representação do artista em sua

máscara maior quer é a do próprio artista. Um ponto comum a todas as narrativas que

serão aqui discutidas é o fato de nos apresentarem o artista em dado momento de sua

infância ou adolescência, mostrando como nele nasce e se desenvolve a diferença.O

conceito de diferença é aqui pensado como traço distintivo que configura o artista como

ser de exceção, aquele que se destaca ou se isola durante a convivência inter-pessoal,

aquele que é desconforme, que não cabe ou não se encaixa nos moldes e modelos

esperados de comportamento. Na verdade, o grande tema que permeia todas estas

205 GROSSMANN, Judith. Outros Trópicos Romance. Rio de Janeiro: Record,1997. 206 GROSSMANN, Judith. As tranças de Charlienne. In: TELLES, Lígia G. (Org. Sel.) Pátra de estórias; contos escolhidos de Judith Grossmann. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do estado da Bahia, 2000. 207 TELLES, Lígia Guimarães. Périplo Peregrino; o perfil do artista na produção textual de Judith Grossmann.Tese. Inédita. 2000.

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representações é o tema do amadurecimento do artista, ele revelará a sua diferença e

esta dará a ele um outro modo de ser e sentir o mundo em torno e que lhe oferecerá o

gênio artístico.

Isto se representa em vários de seus textos, três deles serão trazidos aqui à guisa

de exemplificação, são eles: As tranças de Charlienne, na imagem do artista-menina;

Fausto Mefisto Romance,representado pelo jovem Joris e Meu Amigo Marcel Proust

Romance, no adolescente Sérgio. Poderíamos pensar que estes três textos representam

três momentos na vida do artista: a primeira infância, como momento de realização de

um ritual de passagem e de tomada de consciência de uma “condição de artista”; o

início da adolescência, momento em que a arte se apresentará em seu esplendor pois

este será o momento da descoberta e do exercício da sede criativa e, finalmente, no fim

da adolescência como momento em que a consciência das dificuldades e do desejo de

exercitar a escrita se manifesta e se inicia , através da leitura, o contato com os

predecessores, fazendo com que se trace uma sombra de um projeto de escrita. Estas

três personagens Charlienne, Joris e Sérgio, que representam algumas faces do artista,

são imagens que, reunidas, traçam um arquétipo de artista sob a visão de Judith

Grossmann.

O conto intitulado As tranças de Chalienne inicia-se com um texto em tom de

prefácio intitulado “modo de usar”. A preocupação em certificar-se do “bom uso”, do

texto nos passa a impressão de um zelo, um cuidado com aquele que dele fruirá, tal

como de um fármaco, que bem utilizado e dosado pode curar, mas que, caso contrário,

pode matar. Neste prefácio a voz que se ouve é a de Judith Grossmann e ela nos instrui

que, neste texto, o que se apresenta é uma infância em busca do caminho de sua

vocação: a escrita. Um dos temas mais constantes na obra da autora é a idéia da escrita

como uma vocação que se manifesta ainda na infância, isto se reporta a sua vida, à

“mitologia pessoal” de como Judith despertou para a sua vocação de escritora. A cena,

resgatada da infância no depoimento Oficina Amorosa208, encena a primeira vez em que

perguntaram-na o que queria ser quando crescesse, sem conhecer a palavra escritora a

menina disse “autora”, o que maculou toda a aura do momento pelo equívoco no uso da

palavra. Esta marca indelével do erro, da falha na vez primeira e inaugural, dentre todas

as mais importantes, é também um dos temas recorrentes na escrita grossmanniana.

208 GROSSMANN, Judith. Oficina amorosa: Depoimento. Revista Estudos lingüísticos e literários. Salvador, UFBa, nº 15, 1993. p 47-71,

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Desta maneira, o rito inaugural, sagrado e totêmico será revisitado através de

Charlienne em seu rito de passagem e amadurecimento para a arte:

Em síntese, um novo conto sobre um velho tema, cujo outro nome, nem tão secreto assim, poderia ser: o retrato do artista enquanto menina.

E, informados acerca do que se trata o texto, nele adentramos.

Em torno desta menina há a mística do nome: Charlienne Ella Andréaz Fontanez, ele

erige o sujeito em suas relações com o mundo e já imprime nela a marca do artista.

Segundo a mãe, o primeiro nome seria uma homenagem ao Barão de Charlus. Este

nome recupera o nome da personagem de À la recherche dus tempus perdu, de Marcel

Proust e daí nasce o segundo nome dela: Marcelle. A relação entre mãe e filha se dava

não apenas pela via do amor, mas também mediado pela relação amorosa da mãe com

os livros e com a arte da pintura:

Ela então se introduzia, sentava-se no banquinho e esperava até que a mãe deixasse tombar o volume e sorrisse aquele sorriso de entendimento que pontuava as suas leituras.209

Os encontros aconteciam na salinha de leitura e, admirando a mãe durante as

suas incursões literárias, Charlienne espreitava os momentos em que os livros

tombavam de suas mãos para colher o seu olhar, seu sorriso e suas palavras. A menina

ocupa um espaço intervalar, o hiato que surge na leitura ou entre uma e outra leitura,

neste instante tornava-se o centro das atenções maternas. Isto faz nascer nela a sede de

sair do intervalo e passar ao centro. De ocupar olhos, mãos e mente da mãe de maneira

completa e, assim, nasce uma relação clandestina com a literatura:

...Tchekhov é o único que eles jamais poderão substituir. Então ela pensava que não tinha outro jeito, um dia teria que escrever até melhor do que Tchekhov, apenas para roubar o coração da mãe.210

209 GROSSMANN, Judith. As tranças de Charlienne. In: TELLES, Lígia G. (Org. Sel.) Pátra de estórias; contos escolhidos de Judith Grossmann. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do estado da Bahia, 2000. p. 59 210 GROSSMANN, Judith. As tranças de Charlienne. In: TELLES, Lígia G. (Org. Sel.) Pátra de estórias; contos escolhidos de Judith Grossmann. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do estado da Bahia, 2000.p. 61

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Não havia na menina apenas um desejo de ocupar o espaço privilegiado das

atenções da progenitora, ela precisava ter também um modo de superar a mãe e tomar o

seu lugar como modelo de admiração. Ela percebe, então, uma limitação nela uma vez

que a criatividade materna estava ligada a uma sensibilidade estética em relação à obra

de arte. A mãe não tinha, por si só, a capacidade de transformar a observação do mundo

em palavras, em obra de arte literária. Apenas a Charlienne era possível ocupar o lugar

do criador que toma o velho, o usado e converte-o em outro, em novo, era dela a

capacidade de, através da escrita, lançar um olhar inaugural sobre o mundo:

Do armário de guardados havia reativado muitas coisas que lá estavam sem uso, na tentativa de tornar leves como plumas as grandes malas de navio trazidas pelos avós de outro lado do oceano, levara os livros para a escola na grande sacola de algodão coberta por miçangas, e das enormes toalhas de rosto retangulares bordadas nas margens com toda sorte de fios e ornatos...O resto iria confeccionando aos poucos, a mãe não tinha imaginação para isto, sua imaginação ia somente até as leituras.

Assim, enquanto a mãe era elemento passivo, mero depositário das belezas da

leitura, Charlienne buscava ocupar o lugar ativo, criando o novo com restos, os

fragmentos do que já existe e, neste momento, há a possibilidade de superação da

mãe.211 Estes movimentos de “reciclar” e reaproveitar o já feito aplicam-se tanto a uma

velha bolsa de miçangas quanto a Tchekhov.

A relação paterna dá-se pela via da regra e da proibição. Havia uma série de

atitudes prescritas pelo pai e, dentre todas, a mais importante, era a que impunha a

proibição de cortar os cabelos e a ordem de mantê- los sempre presos sob a forma de

tranças. Todo o tempo a menina busca libertar-se das limitações paternas,

principalmente quanto aos cabelos, a imagem deles presos no penteado das tranças nos

remete a uma ordem aparente que se contrapõe a uma desordem íntima. Remete a todo

um mundo criativo e vivo revolvendo-se dentro do indivíduo e fazendo despertar nele a

sede de libertação. Representam-se aqui as relações do artista com o meio externo, num

confronto de vontades. Charlienne assume uma postura de busca pela transgressão

como único acesso possível à liberdade. O mundo, representado pela autoridade

paterna, surge como elemento repressor. O pai invade o espaço mais privado da menina

que é a sua relação de liberdade com o seu corpo, ele dispõe do corpo de Charlienne,

211 Este movimento já foi por nós explorado no Capítulo I deste trabalho.

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camada última de domínio do indivíduo, de maneira a suprimir- lhe a mínima liberdade

individual.

O pai, chegando ao domínio hiperbólico de dispor do corpo de Charlienne como

coisa sua, representa a relação do artista com o social212, podendo ser pensada a partir

das relações antagônicas mantidas entre o ego e o superego.

O superego é resultante da introjeção infantil das figuras do adulto213, sobretudo

do pai, como representante da lei. Ele funciona como elemento proibitivo e limitador da

ação do ego dando a ele a consciência do limite. Todos estes jogos de interdição

permissão são, na verdade, construídos e assimilados pela mente de maneira

inconsciente, e nos servem para representar as relações estabelecidas entre o artista e o

mundo castrador. O que impõe ao artista, como sujeito de exceção, o isolamento

criativo, a solidão e a transgressão:

Ah,há, queria a liberdade dos seus cabelos curtos. Liberdade, liberdade. Era dada a estes e a outros rituais propiciatórios.214

O aprisionamento dos cabelos representa o aprisionamento de uma mente fértil e

arguta a um certo perfil de infância ingênua e segura representada pelas tranças. São

elas que afastam Charlienne da liberdade e que atrapalham o fluxo do seu pleno

amadurecimento, pedra de toque para o artista que, segundo Judith, sempre amadurece

cedo. A libertação se dá, obviamente, pela transgressão. Livre dos olhares cerceadores

dos pais e da “ba”, a menina resolve ir passear de bicicleta e finda por ir além dos

limites permitidos:

As árvores sombrias a chamavam. Entre horror e gozo penetrou no parque. Não havia ninguém. Estava sozinha ela e as árvores. Sentiu que mais de um a derrubava com violência da bicicleta. Perdeu a noção de quanto tempo permaneceu desacordada. Quando começou a despertar, soube que alguma coisa lhe faltava na cabeça. As tranças haviam sido podadas...Apalpou-se. Não estava o colete...Permaneceu sentada com as pernas ainda mais abertas para o que quer que fosse a penetrasse mais fundo, envenenando-a de uma vez por todas, no contrariamento das ordens do pai...Uma

212 Se pensarmos no sistema pai-lei-istituição-ordem-social veremos a transposição de forças entre o pai e a sociedade. Sendo pó pai aqui entendido como a força da lei. 213 Cf.LEITE, Dante Moreira. Psicologia e Literatura. São Paulo: UNESP, 2002. 214 GROSSMANN, Judith. As tranças de Charlienne. In: TELLES, Lígia G. (Org. Sel.) Pátra de estórias; contos escolhidos de Judith Grossmann. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do estado da Bahia, 2000.p. 63

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chuva de nomes como fogos de artifício caiu-lhe na cabeça, incita, schwanger, enceinte, prenha, encita, pregnant?.215

Apenas assim, através da violência que podou as tranças e deixou-a, conforme

sugere o texto, grávida, pôde vencer o pai. Podemos interpretar as palavras que sugerem

tal gravidez como metafóricas para uma nova visão de mundo. Charlienne está agora

prenha de vida e livre do peso da infância vulnerável. Esta prenhês pode ser lida como o

início do amadurecimento do artista que, para Judith Grossmann, nunca é cedo demais.

Fausto Mefisto Romance216, mais recente obra de Judith Grossmann, é mais um

de seus textos que nos serve como base para se pensar o tema do artista. Nesse

romance, podemos vislumbrar não apenas a questão do processo criativo, metaforizado

por razão e emoção como opostos complementares, mas também podemos observar

mais uma das fases do desenvolvimento do artista: o início da adolescência, momento

de furor criativo e de descoberta do mundo.

Em Fausto Mefisto Romance, conta-se a história do Doutor Fausto de Oliveira

Homem e de seus filhos Joris e Lóris. Fausto é um médico psicanalista que tem uma

clínica na serra na qual recebe apenas adolescentes que não resistiram às imposições do

mundo e soçobraram. A sua grande missão é a de ajudar o homem a viver na terra e o

seu Mefisto, o seu lado pactário e demoníaco é todo o contexto do século XX. Segundo

a autora, este Fausto é aparentado com Prometeu, uma vez que tem como missão

auxiliar o homem, oferecer a ele a possibilidade de cura, não é mais um ser

individualista e sim coletivo uma vez que dedica a sua vida ao outro, o que o afasta do

mito do Fausto, que é aquele indivíduo que é capaz de vender a sua alma para alcançar

os seus objetivos.

Ian Watt, em seu livro Mitos do individualismo moderno217 afirma que o mito do

Fausto surgiu no século XV a partir da história real de Jörg Faust. O Doutor Faust

nasceu em 1480 na Alemanha e ali morreu no ano de 1540. Ele dizia ser um

nigromante, praticante de magia negra, além disto era capaz de prever o futuro através

de diálogo com os mortos. Isto, dentro de um contexto de tradição cristã, faz com que

215 GROSSMANN, Judith. As tranças de Charlienne. In: TELLES, Lígia G. (Org. Sel.) Pátra de estórias; contos escolhidos de Judith Grossmann. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do estado da Bahia, 2000.p. 64. 216 GROSSMANN, Judith. Fausto Mefisto Romance. Rio de Janeiro: Record, 1999. 217 WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno. Trad. Mário Pontes.S.l., Jorge Zahar Editor, 1997.

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Jörg seja constantemente hostilizado e com que sofra com o preconceito e desconfiança

de seus pares:

O mito de fausto desponta no momento em que o cristianismo, no seu desenvolvimento, pensa ter polarizado os mundos do humano e do sobrenatural em um conflito entre o mal e o bem... Isto inevitavelmente proporcionou ao Diabo e sua hierarquia uma importância teológica e psicológica sem precedentes.218

Martin Lutero foi o primeiro a relacionar claramente o Fausto com o Diabo, em

1530, e é, segundo Ian Watt, graças a esta primeira ligação e às reiteradas repetições

desta crença que se forjou a proximidade de Fausto com o Demônio e construiu-se a

figura mitológica. O mito é, então, reiteradamente retomado e a ele são acrescentados

novos detalhes que compõem a complexidade de sua figura. A primeira vez que se

publicou uma versão da história foi em 1587, numa publicação intitulada Faustbuch,

anos depois o mito seria revisitado, dentre muitas outras vozes e versões, por Marlowe e

Goethe.

O Fausto, visto sob a ótica grossmanniana, é um sujeito atravessado por imagens

várias que vão de Freud a Marx, de Rousseau a Hamlet, tomando de cada um deles um

traço, uma angústia, um desejo que irão compor o Doutor Fausto de Oliveira Homem.

Conforme já dissemos, Fausto é um médico psicanalista que se especializou no

tratamento de jovens. Depois de certo tempo naquela comunidade conhece uma jovem

chamada Leda Maria, de quem cuida, durante certo tempo, curando-a de um suposto

problema psíquico. Após a cura, Fausto procura os pais de Leda para pedir- lhes a mão

da filha em casamento. A união e a convivência se dão de maneira perfeitamente

tranqüila até a gravidez de Leda Maria, quando se decide que os filhos não seriam

criados pelos pais e sim pelos avós. Isto seria feito para que Fausto não deixasse de criar

e reestruturar a vida emocional dos filhos alheios como se seus fossem, e para que Leda

pudesse dedicar-se integralmente a ele.

Mas, no momento do parto, acontece o imprevisível, Leda Maria sofre com

complicações no parto e finda por morrer, os gêmeos Lóris e Joris seguem para a casa

dos avós e Fausto preserva a sua solidão. Apenas após a morte da esposa é que o

médico verdadeiramente tem contato com Leda através de seus diários, onde ela revela

que todo o ritual de conquista e a doença foram, na verdade, artimanhas construídas por

218 WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno. Trad. Mário Pontes.S.l., Jorge Zahar Editor, 1997.p. 27

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ela para conquistá- lo e com ele casar-se. Fausto descobre que ele não só não foi o seu

primeiro amor, uma vez que ela, ainda na infância, conheceu o Salvador e por ele se

apaixonou, mas também descobre quer ela guardava em si segredos aos quais ele jamais

teria acesso. Restam-lhe, então, após as revelações dos diários de Leda, o trabalho na

clínica e, anos mais tarde, os filhos. Os gêmeos, já crescidos, serão devolvidos, a pedido

de Fausto, para que ele pudesse complementar a sua criação na clínica. Joris e Lóris

saem, então, da casa dos avós e vão morar com o pai. A convivência entre Fausto e

Lóris se dá, desde o primeiro momento, de maneira tranqüila e desenrola-se entre os

dois uma identificação muito forte, uma vez que a personalidade do pai estava em

conformidade com a do filho. Em relação a Joris a convivência se dá de maneira

enviesada, uma vez que o menino não admite a brusca mudança e não consegue

adaptar-se nem ao ambiente nem ao pai:

E também eu tinha esta comunicação corporal com o Doutor, era instantâneo, magnético. Mas com Joris foi o oposto desde o primeiro dia, a predileção lá de casa se invertera e estava depositada em mim. O doutor e ele eram temperamentos diversos. Tudo o que me agradava ali, em Joris tinha o efeito contrário...não dava valor aos meninos, não via a menos necessidade em curar o que estava avariado...219

Esta oposição entre Fausto e Joris se estende durante todo o tempo em que

convivem e só se abranda no momento da morte, uma vez que eles se unem

definitivamente ali:

Mas, desta vez, ao chegar ao final do corredor, o Doutor, como tomado por um súbito impulso, retornou e pôs-se diante de Joris, quando ele então se virou para frente, como se fosse se atirar no chão, ou nos braços do Doutor, isto nunca se poderá saber. O Doutor, tentando ampará-lo, se desequilibrou e deu com a cabeça na parte inferior do móvel, abrindo-se-lhe um enorme sulco no crânio. Joris tombou ao solo e do imenso espelho que se partiu uma fina lasca se lhe enterrou no peito. 220

Joris representa uma fase na vida do artista em que a vocação aflora, em que se

modifica a sua visão de mundo e a sua relação com as pessoas e com o meio entorno se

transforma diante de seus olhos. O artista é ali representado no arroubo dionisíaco da

inspiração constante, o mundo se torna pretexto para a construção da obra de arte e a

219 GROSSMANN, Judith. Fausto Mefisto Romance. Rio de Janeiro: Record, 1999.p.165 220 GROSSMANN, Judith. Fausto Mefisto Romance. Rio de Janeiro: Record, 1999.

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genialidade do indivíduo se mostra. Segundo o que nos informa o pai de Leda Maria,

narrador do penúltimo capítulo do livro, Joris está ainda no fim de sua primeira década

de vida, tal genialidade num indivíduo tão jovem nos surpreenderia se não

conhecêssemos a tese de Judith Grossmann acerca do amadurecimento do artista que,

por mais cedo que se dê, jamais poderá ser precoce, uma vez que isto já é da natureza

dele próprio. Desta maneira, o fato de, aos dez anos de idade, Joris já exercitar com

intensidade a sua arte é apenas um dos sintomas do próprio gênio artístico que nele se

manifesta:

Como pode uma criança saber tanto? Ela sabe por seus poderes de gênio, por antecipação, antes mesmo de experimentar e ver. E que enorme dispêndio do eu, que derrame para ser javali, para ser borboleta, para ser nuvem, quem sabe, cabra, ovelha, onça fera! E ter a capacidade de entrar, permanecer, sair e novamente entrar nestes estados, incólume, inteiro, como somente um gênio pode.221

O perfil traçado de Jóris recupera, em muito, o perfil da menina e da adolescente

Judith Grossmann construída em um de seus mais importantes depoimentos, aquele

concedido durante uma homenagem na Universidade Federal da Bahia 222, em que ela

narra a sua história recuperando cenas de sua infância como a da descoberta da vocação,

a leitura de suas redações que a mãe fazia para as visitas, o destaque que recebia nos

trabalhos escolares até o seu surgimento no mundo intelectual. Todas as personagens

que são construídas para representar o artista recuperam passagens da vida da autora de

modo a configurar uma ficcionalização do real. Isto desemboca numa afirmação

reiterada de Judith que diz: é a minha vida transformada em outra coisa223.

Joris e o seu irmão Lóris encenam o tema dos irmãos gêmeos que convivem

numa relação ambígua de amor e competição, inveja e admiração, tema que recupera,

além da evidente referência bíblica a Caim e Abel, a referência a Machado de Assis em

Esaú e Jacó. A relação entre os irmãos se dá, retomando a referência bíblica primordial,

mediada pela dependência e pela inveja de um em relação ao outro. Loris se mostra

excessivamente vinculado a Joris, desenvolvendo-se, enquanto estão na casa dos pais

adotivos, à sombra do irmão. Diferente dele, Joris que, mesmo sendo gêmeo, é

primogênito, busca a independência e o isolamento. A proximidade excessiva com o

221GROSSMANN, Judith. Fausto Mefisto Romance. Rio de Janeiro: Record, 1999.p. 160 222 GROSSMANN, Judith. Oficina amorosa: Depoimento. Revista Estudos lingüísticos e literários. Salvador, UFBa, nº 15, 1993. p 47-71. 223 GROSSMANN, Judith. Judith Grossmann: Entrevista . Entrevistadores: Alunos Universidade Católica do Salvador. Salvador: Biblioteca Reitor Macedo Costa, 1996. 1 cassete sonoro (60 min) documento parcialmente transcrito por Lívia Souza.

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irmão lhe é dispensável, uma vez que a solidão do seu próprio nascimento é a solidão

necessária para o nascimento desses afrescos e de sua escrita. A solidão do artista, que

só encontra correspondente na solidão de quem frui de sua arte224, é encenada em Joris

e pode ser representada por duas passagens do texto. A primeira delas afirma sobre a

capacidade de recriar e reinventar, artisticamente, o mundo em torno, conhecendo e

experimentando cenas e emoções que, segundo o pai adotivo, ele, no curto espaço de

vida que até então teve, jamais poderia ter verdadeiramente vivenciado. Assim, aquela

capacidade comumente atribuída ao artista de transviver e que é tão bem explorada por

Grossmann em sua personagem Fulana Fulana 225,é um ícone que representa uma

inadequação do artista ao mundo e, por conseguinte, uma necessidade de transcender o

real, criando e experimentando um mundo outro. Este mundo literário nasce, no sentido

benjaminiano, das ruínas do real, do mundo efetivamente vivido, adentra-se, assim no

mundo das potencialidades do real. Através do movimento de reinvenção do mundo em

torno artista finda por construir para si um lugar onde a sua solidão possa se

desenvolver de maneira criativa, forjando mundos que só podem ser fruídos pelo

indivíduo, ainda que ele esteja imerso na multidão.

A segunda forma de representar a solidão é correlata à primeira. Enquanto uma

falará da obra de arte como a expressão de uma solidão, como resultado de um

investimento do indivíduo na introspecção e no silêncio, a outra mostra como este

indivíduo está, permanentemente, inacessível como pessoa, sempre todo o

reconhecimento do artista se dá, antes, pelo conhecimento de sua arte e mediado por

ela:

Sei que Joris aspirava ao mesmo, era uma coisa mais mediada pelos seus quadros, que ele como pessoa permanecia inacessível somente passível de ser acessado pelas suas obras226.

O artista representado por Joris é o pintor, já Loris descobre-se, em dado

momento da história, como vocacionado à escrita e, como num exercício

metalingüístico, é dele a voz narrativa no último capítulo do livro. Mas Joris, pelo que é

sugerido no texto, não se dedicou inteiramente ao exercício literário e sim o mantém

como um hobby, na verdade ele seguiu os passos paternos e formou-se um grande

224 Cf. o texto O elogio da Diferença, de Judith Grossmann. GROSSMANN, Judith. O Elogio da Diferença. In:________. Estudos; Lingüísticos e Literários. 225 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro: Record,1997. 226 GROSSMANN, Judith. Fausto Mefisto Romance. Rio de Janeiro: Record, 1999.P. 178

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homem de ciências. Dentre inúmeras outras claves de leituras possíveis para o romance,

poder-se-ia explorar esta oposição entre Joris e Loris como provocada pelo tipo de arte

por eles escolhidas: a pintura e a escrita. Se este caminho fosse o escolhido por nós

poderíamos discutir um outro tema recorrente na literatura de Judith que é o “debate”

entre as artes da pintura e da escrita.

Temos, finalmente, em Sérgio, de Meu Amigo Marcel Proust Romance, um

outro retrato do artista. Ele é um menino de muita inteligência e que detém um imenso

volume de leitura, incomum para os seus quatorze anos de idade. É com esta idade que

o adolescente está em vias de concluir o ensino médio, o que já nos serve como pista

para reconhecer a sua precocidade, uma vez que, comumente, os alunos que se

direcionam ao terceiro ano do segundo grau têm por volta de dezessete anos. Esta

disparidade de idade e formação intelectual é utilizada para dar conta deste

amadurecimento do artista, conforme já foi dito. Quando Fulana conhece Sérgio ele está

em uma crise depressiva que pode ser lida como um momento ritual de passagem e de

tomada de consciência de seu lugar intelectual e artístico. O adolescente encontra-se

silencioso e, apesar das intermitentes visitas a consultórios médicos nada é descoberto,

sua saúde parece perfeita, mas ele perdeu o apetite para a vida. Com a chegada de

Fulana estabelece-se entre eles uma ligação amorosa maternal, ele é por ela recolhido e

conquistado num processo paulatino que demora dias para se consumar. Na primeira

visita, a narradora se espanta com a beleza de Sérgio, a harmonia e saúde de seu corpo

aproximam-no do perfil apolíneo da perfeição formal:

Entro de manso. E sobre a cama lá está ele, o adolescente mais deslumbrante que jamais vi em toda a minha vida, loiros os cabelos e a pele branca e luminosa, os olhos entre o azul, o dourado e o verde, os ossos finamente desenhados sob uma pele macia, comprido, a carne parece não conter qualquer gordura, alvo, resplandecente, os cabelos são abundantes e longos e lisos, volumosos na base... as mãos alongadas, as unhas rosadas...as pálpebras como um mármore que se houvesse tornado flexível...227

Após um difícil processo de sedução e aproximação, certo dia, num jorro, Sérgio

começa a falar sobre a sua vida para Fulana Fulana.Fala de seus pais, perdidos há algum

tempo, das irmãs, do mundo de harmonia e tranqüilidade em que vivia e da vida até o

surgimento da falta e do desejo de retorno motivado, basicamente, por duas coisas: 227GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro: Record,1997. p.129

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saudades da convivência com as irmãs e o desejo de inserir-se na teia literária externo

ao eixo norte-nordeste. Sérgio revela estar, na sua infância o início de sua vocação para

a escrita:

Desde criança eu apenas leio e escrevo. Descobri este meu pendor no colégio mesmo. Escrever nada tinha de dever, era um enorme prazer que se espalhava pelo meu corpo todo. Qualquer coisa, uma carta, uma viagem, um passeio, uma paisagem. Uma aptidão, uma vocação. E do alto eu sorria, misterioso, secreto: vocacionado. Tão cedo eu já era aquele que vou ser, o mais importante escritor brasileiro do meu tempo. 228

A proximidade e o prazer da escrita, a escrita que ocorre fácil, uma relação

salutar de satisfação e gozo é estabelecida por Sérgio com o ato criativo. É então, neste

momento, na mais tenra infância é que se constrói a base do que virá a ser o escritor.

Trançando um paralelo entre a personagem e um dos depoimentos229 da autora,

podemos encontrar alguns pontos de intersecção que nos sinalizam uma possibilidade

de ver, em Sérgio, uma projeção biográfica e a exposição de certa crença sobre o

nascimento do artista. A questão da literatura como uma vocação, o crescimento deste

escritor vocacionado a partir da leitura, a eleição de pares para diálogos e a consciência

de um certo lugar a ser ocupado dentro de uma historiografia literária.

Dentre todas as aproximações possíveis de serem estabelecidas entre Sérgio e a

sua criadora a mais forte diz respeito à relação estabelecida por ela com a tradição

literária. A sede de retomada e remodelação de temas e cenas da literatura que dá a obra

de Judith Grossmann o traço do intenso diálogo com inúmeros autores e obras relendo-

os e reconstruindo, segundo a sua visão, imagens e temas que se tornaram arquetípicos

dentro da sociedade. Sérgio tem, igualmente, a vontade de ler tudo e de reescrever tudo:

Então eu quero reescrever tudo isso, na verdade escrever tudo isso, escrever a história

da literatura mais em novas obras230 desta maneira ele se aproxima deveras de todo o

pensamento grossmanniano acerca de como deve ser a relação entre as obras literárias e

a tradição. Este modo de pensar este assunto já foi exposto em entrevistas, depoimentos,

sinalizado em obras e discutido em textos teóricos e críticos, mas, dentre todos os

228GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro: Record,1997. p. 143 229 GROSSMANN, Judith. Oficina amorosa: Depoimento. Revista Estudos lingüísticos e literários. Salvador, UFBa, nº 15, 1993. p 47-71. 230 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro: Record,1997

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textos, aquele que mais fortemente traz a marca desta discussão é o que se intitula

Criação individual e expressão coletiva. Criação literária e tradição231.

Discutindo a relação estabelecida entre a obra de arte literária e a tradição, a

autora afirma que a literatura pode ser entendida como uma série constantemente

atualizada pelos escritores e pelas obras. Para que isto possa ocorrer é necessário que o

individual e o coletivo convivam numa tensão dialética e é isto que daria origem ao

novo texto. A relação da obra com a série literária em que se inscreve pode se dar tanto

a partir de um movimento de retomada quanto pela busca da desvinculação.

Independente de como ela se estabeleça, ambas são maneira de reler e se aproximar da

tradição, reinserindo-se na série literária:

Estas obras se prendem e se desprendem da tradição literária e permanecem, em relação a esta tradição, simultaneamente reacionárias e radicais, estruturadas como estruturantes.232

Toda originalidade alimentar-se-á de seu relacionamento com a série literária

precedente, é neste movimento de aproximação e afastamento em relação a tradição que

se engendram os diálogos que irão construir a obra. Referindo-se a teorização feita por

T.S.Eliot em Tradição e talento individual233 acerca da pressão que a tradição literária

faz sobre a nova obra, Judith propõe em esta teoria busque equilibrar esta questão

apontando para a pressão que o indivíduo também faz sobre a tradição uma vez que,

segundo Grossmann, com tal nível de renúncia ao individualismo já não mais poderia

ser possível escrever uma só obra. Este pensamento pode ser retratado em Sérgio,

quando ele afirma: Enfiarei as minhas mãos neste grande caldo e dele retirarei as

minhas obras. Para isso já se nasce pronto. Eu nasci234. A relação entre a fala

individual e a coletividade de vozes que compõe a tradição deve ser compreendida não

apenas sob o viés da causa e efeito, mas, acima de tudo pela lógica da ação e reação:

tanto o indivíduo é pressionado quanto pressiona a tradição:

231GROSSMANN, Judith. Criação individual e expressão coletiva. Criação literária e tradição. Texto inédito. 232GROSSMANN, Judith. Criação individual e expressão coletiva. Criação literária e tradição. Texto inédito. p. 24 233 ELIOT, T.S. Tradição e talento individual. In:______. Trad. Ivan Junqueira. São Paulo: Art, 1989. 234 GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro: Record,1997. p.145

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Este ignorar o passado, esta obliteração do passado, que é tão bem uma maneira de fazê-lo presente, quanto de fortemente marcá-lo, é um movimento fundamental da obra literária.235

A marca individual da pressão da nova obra sobre a tradição é indispensável

para a sua construção. O surgimento de uma grande nova obra literária é imprevisível e

sempre se imiscuirá nos dois movimentos antagônicos em relação à tradição, o de

retomada e de corte brusco. Podemos recuperar uma afirmação de Antonia Herrera

acerca das relações estabelecidas entre a obra de arte e a tradição:

O autor do romance, quando inova, e se inscreve na categoria de gênio, abre espaço para seguidores...torna possível diferenças e não só semelhanças. Cada novo modelo é desafio para que o próximo se instaure. Há um diálogo entre as obras, entre as estruturas, há um modo do autor-leitor responder e remodelar questões, os temas, as linguagens da narrativa... cada grande escritor preenche o espaço deixado pelo seu predecessor e constrói com sua obra o novo espaço a ser preenchido pelo que virá236.

A obra é, então, resultado de uma afirmação de individualidade, mas também do

reconhecimento de um caminho precedente. Isto só se torna possível graças ao que

Judith Grossmann denomina de força narcísica.

Sérgio surge, então, instalando-se na teia dialogal da formação da tradição

literária, como o sucessor de Fulana Fulana, filho seu, não gerado por seu ventre mas

nascido das entrelinhas da escrita:

Este súbito sucessor que me apareceu me arrebata, é um golpe de sorte, quem me garantiria que um filho meu estaria tão próximo? É isto a arte, a idéia de continuidade, um sim dito à vida contra qualquer circunstância, do contrário seria melhor nem sair de casa237.

A imagem de Sérgio como um sucessor de Fulana dá à literatura como

construção infinita o seu novo elo e faz com que se demonstre que a própria Judith

Grossmann tem a consciência de ser apenas mais um destes elos.

O tema da relação da obra com a tradição pode ser lido, na verdade, como uma

das reflexões mais importantes do pensamento teórico de Judith Grossmann e cada vez

235 GROSSMANN, Judith. Criação individual e expressão coletiva. Criação literária e tradição. Texto inédito. p.25 236 HERRERA, Antonia Torreão. A escrita Literária: uma singularidade? Quem assina? Quem escreve? Anais ABRALIC. Mediações. Belo Horizonte:EDUFMG.2002. 237GROSSMANN, Judith. Meu Amigo Marcel Proust Romance. Rio de Janeiro: Record,1997. p 148

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que ele é alegorizado ou metaforizado na vivência de suas personagens, há uma

reafirmação de uma voz que se quer relacional e dialógica, mas que, igualmente, se quer

única.

Conforme afirmamos, muitos são os temas que estão presentes na obra de Judith

Grossmann e a maneira como ela aborda e trabalha com cada um deles é mais uma

forma de refletir sobre questões ligadas à literatura e o seu fazer criativo.

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Considerações Finais

Um trabalho que se proponha a estudar a obra de qualquer escritor de literatura

jamais terá o seu fim. Quando, na obra escolhida, ao exercício literário se unem as

facetas teórica, crítica e pedagógica, forma-se uma teia de diálogos que se converte em

malha interminável de leitura. Este estudo buscou flagrar a literatura como ponto

catalisador destas vozes e como campo de discussão e reflexão de questionamentos

literários. Desta maneira, buscamos demonstrar como, através do exercício da

metalinguagem, os textos de Judith Grossmann engendram debates relevantes acerca do

fenômeno literário oferecendo a sua autora a possibilidade da permanência nas salas de

aula e mesas de debate. Acreditamos que a literatura de Grossmann alimenta a prática

acadêmica e crítica.

Muitos são os caminhos possíveis para se adentrar na obra de Grossmann. Este

trabalho finda por apontar alguns caminhos para outros pesquisadores que busquem

estudar a obra da autora. Pode-se investir no estudo da teia dialógica que se forma entre

a sua literatura e a tradição, principalmente em relação aos seus “familiares” mais

próximos: Guimarães Rosa, Machado de Assis e Clarice Lispector. Um outro caminho é

o estudo dos temas que se repetem em seus textos, conforme apontados no quarto

capítulo deste trabalho. Ainda pode-se analisar o material do arquivo Judith Grossmann,

da Biblioteca Central Reitor Macedo Costa, UFBA, e na Casa Ruy Barbosa, Rio de

Janeiro. Pode-se buscar traçar o perfil da leitora a partir destes arquivos e demonstrar

como estas leituras adentram na cena narrativa.

O nosso trabalho se encerra com a certeza de que muito ainda precisa ser dito

sobre a obra de Judith Grossmann. Mas para tanto é necessário oportunizar o

conhecimento de Judith Grossmann pelos alunos, para que se formem leitores e novos

pesquisadores que possam dar continuidade a estes estudos.

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