Problemas metodológicos no uso de coleções zoológicas: o ...
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Problemas metodológicos no uso de coleções zoológicas: o exemplo das expedições Agassiz
(1899) e Stanford (1911) ao Brasil.
Almir Leal de Oliveira
Universidade Federal do Ceará
Introdução:
O trabalho de pesquisa com coleções biológicas (botânica, zoológica e paleontológica) é um
grande desafio para o pesquisador da história da ciência. Os historiadores estão pouco habituados a
trabalhar registros não escritos em suas pesquisas. Por mais que tenhamos avançado na análise de
objetos da cultura material, como no caso de instrumentos científicos, a investigação histórica é muito
ligada às fontes escritas. Por um outro lado entendemos que os objetos, as imagens, gestos e práticas
sociais estão repletos de significados historicamente construídos e que podem ser objetos e fontes
para a indagação. O estudo de coleções zoológicas datadas no tempo, compondo acervos de história
natural em museus ao redor do globo é inegavelmente um bom exemplo disso. Fazer perguntas a
pequenos animais, coletados a mais de um século, e ouvir respostas que possam ser evidências de
uma prática social do conhecimento é uma tarefa difícil e cheia de obstáculos. Transformar este
diálogo entre o historiador e estas evidências em história escrita é uma proposta que deve ser levada
em consideração.
As dificuldades que se apresentam ao pesquisador de coleções científicas são de várias
ordens, desde a identificação da origem desse tipo de material empírico, de como ele foi coletado,
analisado e disposto nos museus de história natural ao conteúdo científico que podemos atribuir a
essas coleções. O desafio aumenta quando se trata de material coletado em um tempo distante, uma
vez que estas coleções transitaram entre a coleta e a sua destinação final, por vezes, em diferentes
instituições científicas e nem sempre foram preservados os elementos de sua catalogação e do seu
trânsito. Além disso, é difícil o reconhecimento do conteúdo dos exemplares (minúsculos animais,
pequenas plantas, etc.) exigindo o pesquisador recorrer ao conhecimento de outros campos
disciplinares. Outro ponto importante é que a problemática científica que orientou a sua coleta e
análise modificou-se com o decorrer do tempo. Sempre exigindo uma postura de inquietação, o
pesquisador que se dedica ao estudo de coleções biológicas depende de uma postura interdisciplinar
para poder desenvolver as suas reflexões.
Entretanto, cada vez mais o estudo das coleções vem despertando o interesse de
historiadores. Em primeiro lugar, porque as coleções de história natural são um registro de uma
prática científica do passado, mas não apenas isso. Elas também registraram e guardam em si,
importantes registros da biodiversidade e das mudanças ambientais pelas quais passamos. Se para as
ciências da vida as coleções biológicas podem ser utilizadas na pesquisa genética, ecológica,
evolutiva, etc. para o historiador da ciência elas são registros de um conhecimento acumulado ao
longo do tempo e que podem oferecer importantes evidências históricas de como diferentes campos
disciplinares se constituíram com problemáticas específicas, inovações metodológicas, enfim, toda
uma historicidade do conhecimento e das suas apropriações sociais e culturais. Além disso, investigar
evidências empíricas do mundo natural pode oferecer ao historiador da ciência uma chance de diálogo
com outros campos disciplinares, além de abrir novas oportunidades para o saber histórico se
posicionar diante de questões ambientais e ecológicas contemporâneas. Esta comunicação pretende
ir nesta direção.
1- Expedições e o trabalho de campo: as viagens de campo de John Casper Branner
ao Brasil:
O objetivo deste trabalho de pesquisa é apresentar elementos metodológicos utilizado no
trabalho de análise de coleções zoológicas de duas expedições ao Nordeste do Brasil na virada do
século XIX para o século XX. Trata-se da Branner-Agassiz Expedition (1899) e da Stanford
Expedition to Brazil (1911), ambas coordenadas pelo geólogo norte-americano John Casper Branner
(1851-1922), professor de geologia da Universidade de Stanford, na Califórnia.
As duas expedições podem ser entendidas como experimentos de campo, uma vez que
tinham um problema definido e hipóteses de trabalho. Elas visavam sobretudo investigar a formação
geológica do litoral do Nordeste a partir de uma problemática evolutiva. Branner estava preocupado
com a origem geológica do litoral, conhecida na geomorfologia do litoral brasileiro como formação
barreira, que caracteriza principalmente o litoral da região Nordeste, onde ele procurava evidenciar a
particular formação dos recifes deste litoral.
Branner era um pesquisador de campo que tinha uma larga experiência no Brasil. Ele estivera
no aqui a primeira vez em 1874, como assistente de Charles Friederick Hartt (1840-1878), quando
era ainda estudante de geologia na Universidade de Cornell. Em seguida ele trabalhou como geólogo
assistente da Comissão Geológica do Império (1875), quando percorreu o litoral do Nordeste. Nesta
ocasião ele passou dois meses em Fernando de Noronha. Em 1876 Branner trabalhou em uma mina
de ouro em Minas Gerais, como assistente de engenheiro. Familiarizou-se neste período com a
geologia econômica de minas e com o estudo do Paleozoico. Ele retornou aos Estados Unidos, onde
se graduou em geologia (1882), retornando ao Brasil no ano seguinte quando viajou pela Amazônia
e pelo Nordeste, sempre fazendo trabalho de campo, seja estudando fibras vegetais, seja fazendo
estudos geológicos ou entomológicos.
A Branner-Agassiz Expedition (1899) foi planejada em Stanford e contou com a colaboração
de vários professores. Branner havia se integrado à universidade logo após a sua criação, em 1891. O
então presidente da Universidade, David Starr Jordan (1851-1931) era um contemporâneo de Branner
em Cornell e seu colega na Universidade de Indiana desde 1885, onde Branner recebeu seu título de
Ph. D. em geologia (1885) e instruía os alunos no trabalho de campo em geologia, botânica e zoologia.
Familiarizado com a metodologia científica de Jordan, Branner fez parte de um grupo de professores
que desenvolveram uma parceria em pesquisas de história natural. O grupo era liderado por Jordan,
mas também contava com vários pesquisadores de diferentes campos, como entomologistas,
fisiologiatas, ictiologistas, etc. Jordan era um reconhecido ictiologista em 1891. Em 1891 ele já era
considerado um dos maiores naturalistas especializado na identificação de peixes nos Estados Unidos.
Ele constituiu em Stanford um grupo de naturalistas que desenvolviam um trabalho colaborativo e
interdisciplinar de investigação zoológica caracterizado pela defesa do darwinismo, pela pesquisa de
campo, pela divisão dos trabalhos acadêmicos (de campo, laboratorial e de treinamento) e pela
perspectiva trabalho conjunto com outros pesquisadores e instituições. Estavam preocupados,
principalmente, com os estudos da especiação em animais marinhos. Liderados por ele o grupo era
constituído por Branner, Vernon Lyman Kellogg (1867-1937), professor de entomologia, Charles
Henry Gilbert (1859-1928), ictiologista, Harold Heath (1868-1951), professor de embriologia, além
de colaboradores ocasionais, como John Comstock (1849-1931) dentre outros, além de diversos
estudantes. Este grupo criou em 1892, um ano após a criação da universidade, a Hoppkis Marine
Station, a primeira estação de biologia marinha do Pacífico, inspirada na estação de Woods Holl, em
Massachusetts, criada sob inspiração de Louis Agassiz (1807-1873). Queremos destacar aqui que o a
expedição de 1899 era uma atividade integrada com todo um ambiente científico e fazia parte de um
amplo programa de estudos da biologia marinha desenvolvido por estes professores. Ou seja, não era
uma expedição isolada de estudos naturalistas, mas representava uma atividade a mais de pesquisa de
campo associada a este programa.
A expedição havia sido financiada por Alexander Agassiz (1835-1910), filho de Louis
Agassiz e que tinha uma preocupação científica muito semelhante à do grupo de Stanford, sobre como
a vida marinha se comportava na sua distribuição geográfica e nos seus processos de especiação. O
próprio financiamento da expedição indica que havia uma profunda colaboração entre eles. Temos
poucas informações sobre a equipe que constituiu a expedição. Ao que parece foram apenas Branner
e dois estudantes: Arthur W. Greeley (1875-1904) e C. E. Gilman (?-?). Eles percorreram o litoral
entre Natal em Maceió entre junho e setembro de 1899, visitando estuários, pequenas baias, vilas de
pescadores e outras cidades da costa. Viajavam em pequenos barcos e faziam as suas coletas de campo
nos recifes da costa, mas também nas praias e lagoas. Ao lado de moradores locais, dormiam em
redes nas moradias de pescadores destas localidades. A maioria das informações do roteiro desta
expedição foram encontradas nos álbuns de fotografias feitas por Branner, todas identificadas, o que
nos possibilitou refazer o seu roteiro. A expedição ainda percorreu o estado da Bahia, entre a Ponta
de Areia, no município de Caravelas e o interior do estado, até a divisa com o estado de Minas Gerais,
pelo vale do rio Mucuri. Foi auxiliado pelo diretor da Estrada de Ferro Bahia-Minas, que forneceu
um trem especial para fazer as suas observações e coletas.
FONTE: Branner-Agassiz Expedition to Brazil, 1899. Recifes de arenito e de corais em Mamanguape. Paraíba.
Courtesy of Department of Special Collections, Stanford University Libraries.
Por sua vez, a Stanford Expedition to Brazil foi realizada entre os meses de abril e julho de
1911. Faziam parte da expedição dois outros professores de Stanford, Edwin Chapin Starks (1867-?),
ictiologista e Harold Heath (1868-1951) fisiologista, além de Fred Baker (1854-1938), malacologista
e membro da San Diego Society of Natural History. A expedição teve quatro assistentes, todos
estudantes em Stanford. O objetivo da expedição era o de continuar a exploração da fauna marinha e
da geologia do litoral do Nordeste do Brasil. Diferentemente da expedição anterior, que explorou a
costa norte-sul deste litoral, em 1911 eles visavam explorar a costa leste-oeste, entre a cidade de Natal
e a foz do rio Amazonas. O grupo partiu de Nova York e fez as suas primeiras prospecções em Belém,
onde visitaram o Museu Paraense e mantiveram contato com Emília Snethlage (1868-1929), que
dirigia o museu. Desta visita resultou na doação pelo Museu de alguns espécimes aos membros da
expedição, que foram incorporados às coleções. Ainda em Belém o grupo realizou a compra de peixes
para as coleções no mercado da cidade. Eles não fizeram neste momento nenhuma coleta em campo
propriamente. Em seguida viajaram ao Ceará, onde coletaram espécies no litoral de Fortaleza.
Também fizeram uma viagem pelo interior até Quixadá, para coleta e observação geológica. Em
seguida se dirigiram para Natal, a base da expedição. Nota-se que estiveram muito bem instalados,
inclusive participando de audiências com o presidente do estado e outras autoridades. O objetivo
inicial da expedição sofreu alterações sensíveis, e o objetivo inicial não foi realizado, pois queriam
retornar a Belém em um pequeno barco, fazendo paradas no litoral, mas não conseguiram um barco
capaz de percorrer o roteiro. Assim, dedicaram-se à coleta nos estuários, lagoas e rios da região de
Natal. Em junho o grupo se dividiu. Branner foi para a Bahia (Chapada Diamantina), onde tinha
interesses na compra de uma mina de diamantes, e depois visitou amigos no Rio de Janeiro, como
Orville (1851-1915) e Capistrano de Abreu (1853-1927). Fred Baker e um estudante retornaram a
Belém e de lá subiram o Amazonas até Manaus e o Madeira até Porto Velho e Bolívia. O restante do
grupo retornou aos Estados Unidos em julho.
FONTE: Stanford Expedition to Brasil, 1911. Mucuripe, Fortaleza, Ceará. Courtesy of Department of Special
Collections. Stanford University Libraries.
Esta expedição contou com o apoio financeiro e logístico de diversas pessoas. Em primeiro
lugar, do próprio Alexander Agassiz, que prometera a Branner financiar a viagem para que este
pudesse completar suas pesquisas no litoral do Nordeste, mas a sua morte em 1910, frustrou os planos
de Branner. Outros financiadores foram convidados a participar, como o geólogo Richard Penrose Jr.
(1863-1931), assistente de Branner quando este dirigiu o serviço geológico do Arkansas, em 1887.
Penrose Jr. Era um dos maiores empresários em minas de ouro e cobre nos Estados Unidos no período.
Outro colaborador foi e Herbert C. Hoover (1874-1964), que fora aluno de geologia de Branner e no
período dedicava-se a mineração de ouro na China e na Austrália. Mais tarde seria eleito presidente
dos Estados Unidos (1920). Joaquim Nabuco (1849-1910), então embaixador brasileiro em
Whasington, também colaborou com cartas de apresentação da equipe às autoridades locais, assim
como diversos brasileiros, como o engenheiro Alfredo de Carvalho (1870-1916) no Recife e o
também engenheiro e geólogo Arrojado Lisboa (1872-1932) no Rio de Janeiro (JACKLE, 1966).
Sobre esta expedição há um variado conjunto de fontes, com livros de notas de campo, memórias,
cartas, crônicas, mapas e fotografias, que fazem parte do arquivo de Branner em Stanford (Branner
Papers, Special Collections and University Archives).
Uma primeira consideração que fazemos é o que orientava a perspectiva de trabalho de
campo para Branner. Ele e seus contemporâneos haviam sido treinados na Universidade de Cornell a
partir de rigorosos modelos de observação da natureza. Assim como Hartt, eles foram formados
dentro da metodologia científica de Louis Agassiz, onde as evidências empíricas deveriam ser
coletadas a partir de uma cuidadosa observação da natureza. Roberts, salienta que Agassiz era
“inflexível” no exame das evidências coletadas no trabalho de campo, e as coleções realizadas com
dedicado e persistente trabalho era determinante para comprovar ou rejeitar uma explicação científica.
Ou em outras palavras: “(...) havia um consenso geral entre os homens de ciência americanos que
fundamentos empíricos firmes dariam bases para generalizações fundamentadas concernentes à
história, estrutura e operação dos fenômenos naturais (ROBERTS, 2009, p.82). Além disso, o trabalho
de campo deveria funcionar como um laboratório de experimentação, uma vez que a coleta deveria
ser organizada a partir de uma problemática definida previamente. O trabalho de campo não era assim
aleatório, mas visando esclarecer um problema da história natural. Outra consideração que podemos
fazer sobre a formação científica que orientou os trabalhos de campo das expedições de Branner ao
Brasil neste período era a necessidade da análise morfológica dos exemplares coletados no campo de
serem analisados com o mesmo rigor, geralmente por profissionais especializados e em diferentes
instituições científicas. Branner recebeu assim todo um treinamento de pesquisa de campo que
exercitou em sua vida profissional, tendo inclusive, publicado um guia de pesquisa de campo em
geologia (BRANNER, 1890), mais tarde publicado em livro didático para uso nas escolas de geologia.
O trabalho de campo era minuciosamente planejado. Como já destacamos aqui os
taxonomistas estavam divididos entre os trabalhos experimentais e os trabalhos de campo, ou, como
um historiador da biologia chamou o debate, entre morfologistas e fisiologistas (ALLEN, 1975). Para
se diferenciarem utilizaram ambos os recursos para que o trabalho de campo pudesse ser valorizado
ao máximo, pois era a partir dele que se tentaria categorizar o isolamento como um fator da seleção
natural. A pesquisa de campo era um experimento científico baseado em uma criteriosa metodologia.
Em linhas gerais o trabalho de campo tinha as seguintes premissas: em primeiro lugar a
escolha a área a ser prospectada deveria ter condições ecológicas homogêneas com ou sem alguma
barreira natural ou tipo de isolamento físico, geográfico. Muitas vezes estudaram os peixes de recifes
de corais ou peixes e moluscos encontrados em estuários ou em piscinas naturais ao longo de um
litoral. Um fator importante era que as condições gerais do ambiente fossem homogêneas, pois,
qualquer alteração ambiental poderia significar um fator de adaptação e, portanto, de isolamento
como um elemento adicional à especiação. Uma segunda e importante definição era o estudo da
distribuição e dispersão das espécies, para que se pudesse situar uma filogenia. Estes estudos, por
fim, relacionavam pesquisa de campo, morfológica, com trabalhos de zoologia comparada em
laboratórios, e ainda estudos embrionários. Após a coleta, que também tinha seus critérios de captura
e conservação, os espécimes eram criticamente revistas nas classificações existentes, trabalho este
feito de maneira colaborativa com diferentes instituições, para indicar as variações morfológicas
associadas aos diferentes ambientes das coletas, inclusive utilizando-se de metodologias estatísticas.
Sobre a coleta em campo os membros da expedição de 1911, sobre a qual temos maiores
informações, utilizaram diferentes estratégia. Especificamente sobre os peixes, eles podiam os
adquirir diretamente de pescadores, como fazia Starks em Natal, onde “ia à praia logo de manhã,
quando os jangadeiros retornavam da pesca e comprava os peixes, que, uma vez selecionados, eram
imediatamente colocados em jarros de álcool. Então ele deitava na rede e lia, porque nós não
usávamos camas nas nossas casas brasileiras” (JENKINS, 1975, p. 75). Em Belém eles fizeram
compra de peixes no mercado local, o que se repetiu em outros locais. Starks e um estudante tinham
câmeras fotográficas, que registravam a experiência de campo. Outra informação sobre a preservação
dos exemplares também vem de Jenkins, que dizia que “assim que as espécies chegavam elas eram
logo colocadas em grandes vasos de vidro com álcool e formol para contribuir com a sua preservação
até que fossem estudadas pela causa da ciência em um grande museu de história natural” (JENKINS,
1975, p. 74. Nas pequenas vilas que visitavam interagiam diretamente com os moradores, “vivemos
com o povo, dormindo em suas redes e comendo da sua comida” (JENKINS, 1975, p. 96), o que
demostra que o contato com a realidade local era de uma grande imersão. Podemos ver este mesmo
comportamento na expedição de 1899, quando, em pequenos barcos, percorreram o litoral entre Natal
e Recife, guiados por pescadores e interagindo com a cultura destes. Os locais da coleta variavam
desde os estuários de pequenos rios, aos recifes de arenito e de corais na costa, mas também em
mangues, lagoas, dunas, praias, restingas, etc. Os insetos eram coletados às margens dos rios, nas
praias e fora do litoral. Coletaram besouros, formigas, lagartos, cobras e outros animais “aos bilhões”
(JENKINS, 1975, p. 74). Apenas as formigas foram mais de 400 variedades. Alguns moradores,
sabendo do interesse deles, faziam suas próprias coletas e levavam aos pesquisadores, principalmente
os mais curiosos animais, como cobras de duas cabeças, lagartos sem pernas, cobrar em forma de
arco, etc.
A coleta zoológica para estudos científicos estava associada a uma perspectiva de pesquisa
de campo herdeira da história natural dos séculos XVIII e XIX, mas também estava associada a uma
perspectiva taxonômica que procurava identificar a filogenia, ou a história evolutiva destas espécies.
O trabalho de campo seguia rigorosos critérios, como a identificação das condições ambientais,
preparo dos espécimes, registro das características morfológicas, particularidades fisiológicas e
classificação sistemática.
2- Problemas metodológicos do uso de coleções no estudo da história da ciência:
Geralmente o primeiro acesso que podemos ter sobre coleções formadas em expedições são
os resultados bibliográficos publicados em revistas especializadas. Estas publicações são resultantes
de uma análise classificatória das espécies encontradas. Os artigos trazem uma ligeira nota
introdutória sobre o conjunto analisado, indicando os locais de coleta, os responsáveis pelo trabalho
de campo, algumas referências sobre a destinação do material e em seguida a descrição das espécies.
Cada espécime é nomeado seguindo a classificação binomial, indicando se é uma nova espécie e a
indicação a que gênero e família pertence. Estas descrições priorizam a descrição de novas espécies,
situando-as entre famílias, gêneros, subgêneros e subespécies. As descrições das estruturas
morfológicas são bem detalhadas, caracterizando a forma geral do espécime, assim como os detalhes
do conjunto anatômico que a caracteriza, além da descrição de seus órgãos reprodutivos e por vezes
alguns elementos de seu comportamento. Por vezes, junto da classificação binomial são referenciados
trabalhos anteriores de sistemática que descreveram o mesmo grupo. Algumas classificações trazem
uma ilustração do espécime, especialmente desenhado para a publicação.
FONTE: GILBERT, Charles – Results of Branner-Agassiz Expedition to Brazil. III – Fishes. Proceedingns of
Washington Academy of Sciences, vol. 11, p. 184, Aug. 20, 1900. Brannerella brasiliensis, gen. e sp. nov.,
dos recifes de corais de Maceió; Upeneus caninus, sp. nov. de Pernambuco; Apogon brasilians, sp. nov., dos
recifes de arenito de Mamanguape; Spheroides greeleyi, sp. nov., dos recifes de corais de Maceió.
O primeiro contato com esta bibliografia especializada é muito frustrante para o pesquisador.
São poucas as informações que podem ser levantadas, gerando vários tipos de questionamento: o que
esta classificação significa? Apenas uma nova espécie ou guarda alguma problemática que
desconhecemos? Para um pesquisador não afeito ao trabalho da sistemática (taxonomia) é bastante
frustrante não obter dados mais objetivos sobre o trabalho de campo e das questões teóricas que
nortearam a coleta. As pequenas introduções apenas indicam a forma como a coleção chegou ao
especialista, sendo a maior parte dos artigos composta pela descrição morfológica das espécies,
identificando a estrutura anatômica do animal em estudo, o seu tamanho, comportamento, duração da
vida, relação com outros animais, a diversidade de suas variações, habitats, adaptações ao meio-
ambiente, formas parasitárias encontradas, alimentação, desenvolvimento embrionário e crescimento
do indivíduo, sua distribuição geográfica e a sucessão de formas semelhantes encontradas em outros
animais a partir de registros paleontológicos. Entretanto estas informações podem variar, de acordo
com o taxonomista e com os dados disponíveis para a análise. Assim, a maior parte das informações
encontradas são as descrições da estrutura morfológica do animal, com as suas gradações, para poder
encontrar o seu lugar filogenético, identificando a posição da espécie dentro de um, gênero, família,
ordem, classe. Por vezes estas descrições são acompanhadas também de uma avaliação do
posicionamento da espécie na ordem classificatória, reconsiderando trabalhos anteriores de
sistemática e oferecendo outro lugar de classificação. Quando isso ocorre é possível fazer uma
comparação entre as sistemáticas adotadas e constituir uma historiografia taxonômica daquela
espécie.
Para o pesquisador de coleções biológicas o fundamental neste primeiro contato com a
produção científica das expedições de campo é avaliar qual perspectiva classificatória está sendo
praticada pelos naturalistas e isso envolve uma conceituação do que propriamente eles consideravam
como uma espécie. O conceito de espécie, e toda prática taxonômica, foi profundamente alterada com
a publicação de A Origem das Espécies (1859) por Charles Darwin (1809-1882), o conceito de
espécie foi radicalmente alterado. Da ideia metafísica de espécie como uma entidade a-história,
estática, ao conceito de espécie como uma população variada, evoluindo lenta e gradualmente por
seleção natural e adaptações ao meio-ambiente, o isolamento, seja ele geográfico, mecânico ou
reprodutivo sempre foi considerado um elemento analítico importante para a definição do conceito.
Surgiu desta concepção uma nova prática taxonômica, que tentava situar cada espécie, agora não mais
fixa e sim em transformação, de acordo com o seu lugar evolutivo na grande árvore da vida.
Esta forma de categorizar os organismos vivos se tornou hegemônica entre os taxonomistas
e os biólogos experimentais na segunda metade do século XIX. Por volta de 1900 havia um debate
entre naturalistas sobre como fazer uma taxonomia evolutiva. A polêmica entre lumpers e splitters
(YOON, 2009, pp. 91 e seguintes) evidencia bem o caráter desta conceituação de espécies. Como
aplicar o conceito a uma forma de fazer o trabalho de campo e de classificação das espécies? Todas
as pequenas alterações poderiam ou não identificar novos gêneros e subgêneros? Os “generalistas”
(lumpers) procuravam relacionar as espécies, mesmo que separadas, num mesmo gênero, enquanto
os “divisores” preferiam classifica-las em formas distintas de espécies. Ou seja, não havia consenso
entre os taxonomistas em como estabelecer as relações filogenéticas na classificação das espécies.
Uma metodologia adequada dependia, fundamentalmente, de um conceito que estabelecesse melhor
o lugar das variações encontradas na natureza, isoladas ou não geograficamente.
Não cabe aqui aprofundar esta discussão, mas ressaltamos que é fundamental no estudo das
coleções entender que as práticas naturalistas classificatórias precisam ser historicizadas para que
possamos compreender a maneira como abordaram o conceito de espécie e a filogenia. Algumas
plataformas de pesquisa auxiliam nesta fase, como a consulta das bases de dados Biodiversity
Heritage Library (https://www.biodiversitylibrary.org) e a Encyclopedia of Live (http://eol.org ),
ambas com a participação das mais renomadas instituições internacionais de pesquisa em história
natural.
Aliás, contextualizar os debates da disciplina biologia no período em que foram formadas as
coleções é outro aspecto metodológico importante a discutir. Na análise das coleções formadas pelas
expedições aqui tratadas foi fundamental uma revisão da historiografia da biologia. Uma das
dificuldades metodológicas do uso das coleções de espécimes realizadas no passado é que, quando
foram realizadas, as problemáticas científicas do período eram diferentes das problemáticas atuais.
Geralmente associadas a um período onde as ciências biológicas não tinham como paradigma os
critérios de evidência empírica da química e da física, as coleções formadas no início do século XX
foram desprezadas por biólogos experimentais por não seguirem os critérios da genética.
Os historiadores da biologia da década de 1980 (ALLEN, 1978, MAYR, 1982; COLEMAN,
1985) consideraram que o período da virada do século XIX para o século XX fora marcado por uma
oposição entre naturalistas evolucionistas e emergentes modernos biólogos, ou do famoso entre
morfologia e fisiologia. O panorama que traçaram dos naturalistas evolucionistas é o de um perfil
metodológico que só estava preocupado com um conhecimento descritivo, morfológico, ligado ao
trabalho de campo com preocupações meramente quantitativas na descrição das variações da vida e
de sua distribuição geográfica, praticando uma classificação sem problemática, herdeira do
naturalismo cientificista. Por outro lado, a biologia moderna emergente era o setor dinâmico da
disciplina, com seus métodos experimentais, laboratoriais, de estudos fisiológicos, envolvidos na
tentativa de incorporar os parâmetros físico-químicos da construção dos dados empíricos e assim
validar o campo biológico como científico Allen (1978, pp. 41 e segs.), principalmente contestando
que o darwinismo não poderia explicar mecanicamente os fatores da hereditariedade.
Vários historiadores criticaram essa dicotomia entre morfologia e fisiologia, ou entre uma
antiga história natural descritiva/morfológica e uma fisiologia comprometida com métodos modernos
e experimentais (MAGNUS, 1993; LARGENT, 2009, p. 5-6). Esta oposição entre ciências de campo
e ciências laboratoriais/experimentais muito limitou o olhar investigativo da produção científica dos
trabalhos de campo do período. Uma mudança de abordagem dos historiadores das práticas científicas
também reavalia o lugar das ciências de campo forma de produção de conhecimento socialmente
construído (KUKLICK, KOHLER, 1996), evidenciando que tanto a ciência construída nos ambientes
controlados dos laboratórios, como a ciência construída no campo estão marcadas pelos
condicionantes sociais, de apropriações culturais marcadas pelas relações de poder, identidade e
gênero. Além disso, diante dos desafios contemporâneos da conservação biológica frente às
mudanças ambientais é relevante escrutinar como os cientistas de campo lidaram com as questões
ambientais.
Ainda um outro problema metodológico que encontramos no estudo das coleções zoológica
formadas a partir das pesquisas de campo das expedições de Branner no Brasil foi a dificuldade de
identificar o percurso que elas fizeram depois de chegarem nos Estados Unidos. As coleções
resultantes deste trabalho de campo foram identificadas por diversos taxonomistas em diferentes
instituições e hoje se encontram dispersas em diferentes museus de história natural.
Uma vez nos Estados Unidos estas coleções não ficaram, como poderíamos supor, no Museu
de Zoologia de Stanford. Elas foram encaminhadas para diversos especialistas, distribuídos em vários
estados e instituições científicas e universidades. Impressiona o fato delas ainda estarem preservadas
nestas instituições, pois certamente sofreram com as viagens entre o Brasil e a Califórnia e de lá até
a sua destinação final, o que indica que foram muito bem preparadas e acondicionadas em embalagens
especialmente dedicada a isso. Este material específico para acondicionar coleções de história natural
foi adquirido antes da viagem, em Nova Iorque.
Os peixes formados nas duas expedições foram examinados e classificados por especialistas
do United States Museum of Natural History e do Smithsonian Institution em Wahsington. Parte desta
coleção ficou em Stanford, no Museu de Zoologia e na Hoppkins Marine Station e depois foi
transferido para a California Academy of Sciences, onde se encontram hoje. As novas espécies
encontradas chegam ao número de mais de uma centena, quase todos representantes dos recifes e
recifes de corais. Parte da coleção na Califórnia Academy of Sciences está totalmente identificada,
inclusive mantendo as várias antigas etiquetas de identificação. Cada espécie tem o seu holótipo (raio
X), as diferentes sistemáticas a que foram submetidas e o status corrente de sua classificação. Alguns
exemplares não estão devidamente identificados.
A coleção de moluscos representa 43 gêneros, 135 espécies e 20 subespécies, dentre estas
33 espécies e 12 subespécies consideradas como novas. Parte deste conjunto ficou na Califórnia, na
sociedade de história natural de San Diego, depois incorporadas pela Marine Biological Association
e hoje estão no Scripps Institution of Oceanography, em La Joya. Outra parte dos moluscos (conchas)
foram incorporados ao acervo da Academia de Ciências Naturais da Philadelphia (1812) e
representam 33 espécies e 12 subespécies novas, de um total de 43 gêneros, 93 espécies e 20
subespécies
Os besouros, formigas e parte das abelhas coletadas forma para a Universidade de Harvard
e hoje se encontram parcialmente identificadas no Museum of Comparative Zoology. William Mann
(1886-1960), o estudante auxiliar da expedição de 1911, publicou 17 artigos sobre formigas em
diferentes periódicos entre 1911 e 1924.
Os répteis e anfíbios coletados na expedição de 1911 inicialmente ficaram no Museu de
Zoologia de Stanford. Posteriormente foram transferidos para a California Academy of Sciences e
duas espécies foram classificadas em 1931 e 1936, quando a academia interrompeu a organização do
setor. Em 1950 foram identificadas 58 espécies numa coleção superior a 660 exemplares. De um
conjunto de 8 exemplares Amphisbeanians (ou répteis escamados cavadores, populares cobras-
cegas), 4 foram considerados espécies novas. Esta coleção completou uma relação de novas espécies
que não era aumentada desde as explorações de Carl Philipp von Martius (1784-1968) em
1831(SCHIMIDT, 1936, p. 28). Os répteis da coleção demostraram uma relação filogenética
importante entre as biogeografias do Nordeste e do Chaco paraguaio e Mato Grosso, indicando que
algumas espécies que habitaram o Nordeste mais tarde colonizaram o Amazonas e o seu interior
(SCHIMIDT, INGER, 1951, p.440).
Muitas outras considerações sobre o trânsito das coleções e as formas de sua identificação
nos museus de história natural podem ser analisadas em outros momentos, assim como a discussão
sobre a identificação dos gêneros espécies e subespécies e os resultados filogenéticos. O que procurei
demostrar aqui é que estas coleções tiveram um trânsito intenso e passível de ser identificado pelo
pesquisador, assim como as novas problemáticas que o seu estudo suscita, uma vez que ainda são
objeto de interrogações e pesquisa.
3- Conclusões:
O estudo de coleções de história natural coloca diferentes desafios para o historiador da
ciência. O aspecto interdisciplinar talvez seja o maior problema a ser enfrentado, uma vez que as
problemáticas que orientaram a formação destas coleções precisam ser identificadas e interpretadas
sob o ponto de vista da sua historiografia. No caso aqui apresentado a historiografia da biologia tem
renovado o olhar sobre o período, o que coloca o pesquisador em uma postura de constante atenção
para as novas abordagens que se apresentam.
Não menos importante é o entendimento das categorias classificatórias e que estas também
se alteraram com o tempo, enfrentaram problemáticas amplas e a renovação do campo. Para a análise
das coleções biológicas o historiador de formação necessita se familiarizar com as categorias das
ciências da vida e ambientar-se com fontes não escritas, mas que podem trazer dados biofísicos
significativos para o entendimento dos processos ecológicos e ambientais, assim como documentar
historicamente práticas científicas do passado.
O desenvolvimento das tecnologias de análise genética, das mudanças ambientais e a
crescente divulgação em bases de dados de coleções biológicas historicamente constituídas começam
a ser valorizadas como importantes registros da biodiversidade nos estudos ecológicos, evolutivos e
da biologia da conservação. Entretanto, na minha opinião, estas coleções não devem ser abordadas
apenas com o interesse de oferecer dados empíricos de caráter biofísico. Elas carecem do trabalho do
historiador da ciência para reavaliar a sua problemática científica, os seus procedimentos
metodológicos, as suas condições de produção, enfim, o seu lugar social.
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