Princes in Ha+ +Frances+H.+Burnett

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A PRINCESINHA Frances Burnett

SARA

Num desses tristes dias de inverno, em que o nevoeiro,

amarelado e espesso, invade a tal ponto as ruas de Londres,

que é preciso conservar acesos os focos elétricos e as

lâmpadas dos estabelecimentos como durante a noite, uma

carruagem avançava lentamente através das espaçosas ruas da

grande cidade, transportando uma pequenina, muito aconchegada

ao pai.

Sentada à turca, com os pés sob o corpo, os seus olhos,

profundos e sonhadores, iam contemplando quem passava.

Causava impressão aquele olhar numa criança, como ela

era ainda, visto que Sara Crewe tinha apenas sete anos. Mas,

apesar de tão pouca idade, a vivacidade do seu pensamento era

invulgar; sonhava, imaginava coisas extraordinárias, e a sua

cabecinha estava cheia de interrogações que fazia a si

própria, acerca das pessoas crescidas e do vasto mundo que

era seu domínio.

No momento em que começa a presente história, recordava

ela a viagem que acabava de fazer, desde Bombaim até Londres,

com o pai, o capitão Crewe. Revia o grande navio, os hindus

que iam e vinham silenciosamente, as crianças que brincavam

na ponte e algumas senhoras, ainda novas, mulheres de

oficiais, que haviam procurado fazê-la falar e que se tinham

divertido muito com as suas respostas inesperadas.

Mas, o que Lhe parecia ainda bem mais extraordinário,

era pensar que, depois de ter vivido sob o sol escaldante das

Índias e, em seguida, num grande navio, em pleno oceano, se

encontrava, agora, naquela carruagem desconhecida, que a

levava através de ruas onde o dia era tão escuro como a

noite. Isto parecia-lhe um prodígio e, instintivamente,

chegava-se ainda mais ao pai.

- Papá - disse ela, com a sua vozita misteriosa. - Papá!

- Que é, filhinha? - respondeu o capitão Crewe, olhando

carinhosamente para a pequenina, ao mesmo tempo que a

aconchegava mais a si. - Em que pensa a minha Sarinha?

- É aqui o "lugar"? Já chegamos - murmurou Sara,

aproximando-se cada vez mais dele.

- Já, minha filha. Chegamos finalmente.

Pequenina como era, Sara sentiu perfeitamente toda a

tristeza que palpitava na voz do pai.

Parecia-lhe que havia já muitos, muitos anos, que ele

começara a falar-lhe no "lugar” ,como ela dizia sempre. Não

conhecera a mãe, que morrera quando ela tinha nascido, de

forma que nunca sentira a sua falta. O pai, só por si,

parecia-lhe ser toda a sua família - aquele papá tão novo,

tão belo, que a animava quanto podia. Gostavam muito um do

outro e brincavam constantemente os dois. Sara sabia que era

rico, porque algumas pessoas, julgando que ela não

compreendia, tinham-no dito na sua presença, acrescentando

que, quando fosse crescida, seria, também, rica.

Vivera sempre num magnífico bangalô (1), onde numerosos

criados a saudavam respeitosamente, chamando-lhe "senhora" e

deixando-lhe fazer tudo o que ela queria.

Tivera todos os brinquedos possíveis, animais de toda a

espécie, uma aia (2) que a adorava, e compreendera, pouco a

pouco, que ser rica era possuir tudo aquilo. A palavra

riqueza não evocava nada mais para ela.

Durante a sua curta existência apenas uma ligeira nuvem

toldara o seu belo céu; era a idéia do "lugar" para onde o

pai a levaria um dia.

O clima da Índia é mau para as crianças e, em geral,

mandam-nas, o mais cedo possível, para a Inglaterra, quase

sempre para um colégio.

Sara tinha visto partir outras crianças e ouvira falar

nas cartas que elas escreviam aos pais, lá de muito longe.

Sabia que também havia de partir um dia e, embora algumas

vezes se sentisse entusiasmada com as descrições que o pai

costumava fazer-lhe da longa viagem no vapor e do país para

onde a levaria, o seu coração sofria com a idéia de que tinha

de separar-se dele.

- E o papá não pode vir para o colégio comigo?

- perguntara, quando tinha cinco anos. - Eu ajudava-o a

estudar as suas lições.

- Mas tu não vais ficar muito tempo separada de mim,

Sarinha - respondia ele sempre. - Irás para uma casa muito

bonita, onde encontrarás outras meninas e brincarás com elas.

Mandar-te-ei livros bonitos e tu crescerás tão depressa, que

te parecerá que passou apenas um ano quando te vires tão

crescida e tão sábia, que já possas voltar, para tomar conta

do teu papá:

(1) Casa do campo.(2) Ama.

Esta idéia agradava-Lhe imenso. Governar a casa do pai,

montar a cavalo com ele, presidir à mesa quando desses

grandes jantares, conversarem os dois, ler os seus livros,

era, para ela, a vida que sonhava. E se, para o merecer,

fosse preciso ir-se embora, para esse "lugar", lá longe, na

Inglaterra, muito bem: partiria. A promessa de encontrar

outras meninas deixava-a indiferente. Os livros consolá-la-

iam bem mais que as tais meninas. Preferia os livros a tudo o

mais e passava o tempo a inventar belas histórias que contava

a si própria. Às vezes, contava-as também ao pai, que as

achava muito bonitas.

- Então papá, disse com doçura, se já chegamos, temos de

nos resignar.

Esta frase, tão estranha na boca de uma criança, fez rir

o capitão Crewe, que beijou a filha. No fundo, embora

procurasse cuidadosamente dissimular o seu desgosto, o

capitão não se conformava com a separação. A sua Sarinha, tão

original, tinha sido para ele uma verdadeira companheira e

sentia, de antemão, a sensação de isolamento que

experimentaria quando, de regresso à Índia, entrasse em casa

e não encontrasse a sua figurinha gentil, vestida de branco,

para o receber, como dantes. Ao pensar isto, apertou-a mais e

mais contra si, enquanto a carruagem chegava à praça

silenciosa, onde se erguia o edifício que marcava o fim da

viagem.

Era uma grande casa cinzenta, exatamente semelhante a

todas as outras casas construídas do mesmo lado, tendo

apenas, como nota particular, sobre a porta de entrada, uma

reluzente placa de cobre, onde, em letras pretas, estava

gravada a seguinte inscrição: MISS MINCHIN, COLÉGIO DE

MENINAS.

- Eis-nos chegados, Sara - disse o capitão, o mais

alegremente que pôde.

Ajudou-a a descer do carro; em seguida, subiram os

degraus de pedra e ele tocou a campainha.

Muitas vezes, durante os tempos que se seguiram, Sara

devia ter dito, de si para si, que a casa era parecida com a

sua proprietária. Tinha um ar respeitável e estava

convenientemente arranjada, mas a habitação era feia e o

mobiliário de um aspecto agressivo; as próprias poltronas

pareciam estofadas com pedras. No vestíbulo tudo era austero,

tudo parecia frio à força de reluzir, mesmo as faces

rubicundas da lua- cheia , que servia de mostrador ao grande

relógio. O salão, onde introduziram o capitão e a filha,

tinha um tapete com desenho geométrico e severo; as cadeiras

eram todas em ângulos, e um maciço relógio de mármore

esmagava com o seu peso o tampo do fogão, que era de mármore

também.

Sentada numa cadeira de acaju, de costas rígidas, Sara

observava, com olhar penetrante, tudo que a cercava.

- Nada disto me agrada muito, papá - suspirou ela. - Mas

estou convencida de que os soldados, mesmo os mais valentes,

não gostam de ir para a guerra...

O capitão Crewe pôs-se a rir. Era novo, alegre, e nunca

se cansava das reflexões espontâneas da filha.

- Minha querida Sara - disse ele. - Que vai ser de mim,

quando não tiver mais ninguém para me falar com tanto juízo?

Porque ninguém é tão ajuizado como tu.

- Mas porque é que as coisas ajuizadas que eu digo o

fazem rir? - perguntou Sara.

-Porque tu és muito engraçada quando as dizes -

respondeu ele, continuando a rir.

E, de repente, pegou-Lhe ao colo e beijou-a muito, ao

mesmo tempo que deixava de rir e os seus olhos brilhavam como

se estivessem cheios de lágrimas.

Nesse mesmo instante, Miss Minchin entrou. E logo Sara

achou que ela era parecida com a casa: grande, fria,

respeitável e feia. Tinha uns grandes olhos, tão expressivos

como os de uma carpa e, nos lábios um sorriso de comando.

Este sorriso acentuou-se mais quando Miss Minchin viu o

capitão e Sara. A senhora que a tinha posto em comunicação

com o capitão Crewe contara-lhe várias coisas interessantes

acerca dele e, entre elas, que era muito rico e estava

disposto a gastar imenso dinheiro com a filha.

- É uma honra para mim ser encarregada da educação de

uma tão linda criança, que logo se vê ser muito inteligente -

disse ela, pegando na mão de Sara e acariciando-a entre as

suas. - Lady Meredith falou-me da sua notável precocidade.

Uma criança inteligente é um verdadeiro tesouro numa casa

como a minha.

Sara ficou imóvel, com os olhos fixos em Miss Minchin.

Como sempre, atravessavam-lhe o cérebro mil pensamentos

diferentes.

"Porque diz ela que eu sou bonita? - pensava a

pequenina. - Eu não sou bonita. A neta do coronel Grange, a

Isabel, é que é bonita: tem as faces cor-de-rosa, com duas

covinhas, e cabelos loiros, compridos. Eu tenho cabelos

pretos, curtos, olhos verdes, e, para mais, sou magra e a

minha pele não é branca. Sou uma das crianças mais feias que

tenho visto. Miss Minchin começa por mentir.”

Sara enganava-se, quando imaginava ser feia. Não se

parecia, certamente, com Isabel Grange, mas tinha um encanto

estranho muito pessoal. Delgadinha e leve, alta para a sua

idade, possuía uma fisionomia profundamente expressiva e

cheia de vivacidade. Os seus cabelos eram negros, espessos e

encaracolados nas pontas; os olhos, de um cinzento-

esverdeado, eram admiráveis, com longas pestanas negras, cuja

cor desagradava talvez a Sara, mas que muita gente apreciava.

Apesar de tudo isto, estava convencidíssima da sua fealdade,

e os elogios de Miss Minchin não produziram o efeito

desejado...

Se eu dissesse que ela é bonita, mentiria, e eu teria a

certeza disso - pensava a pequenina. - Creio mesmo que sou

tão feia no meu gênero como ela o é no seu. Porque mentiu?"

Sara devia ter, mais tarde, a resposta a esta

interrogação, ao descobrir que Miss Minchin repetia

exatamente a mesma frase a todos os pais que lhe confiavam as

filhas.

De pé, ao lado do pai, Sara ouvia-o conversar com Miss

Minchin. As duas filhas de Lady Meredith haviam sido educadas

naquele colégio, e o capitão Crewe decidira-se em virtude das

boas informações recebidas. Internaria ali a filha, mas em

condições especiais: queria que tivesse um quarto, e uma sala

só para ela, uma carruagem, um poney e uma criada para

substituir a aia que cuidava dela na Índia.

- Quanto à sua instrução, estou tranqüilo - disse o

capitão Crewe, sorrindo. -A grande dificuldade estará em

impedir que aprenda demasiado depressa e tudo ao mesmo tempo.

Passa a vida curvada sobre os livros. Não os lê, devora-os: é

uma lobazinha! A sua fome de leitura reclama, sem cessar,

novos livros e são livros para pessoas adultas que ela

prefere, livros franceses ou alemães, tanto como ingleses,

história, biografias, poesias, que sei eu! Tire-lhe esses

livros, Miss Minchin, quando ela ler de mais! É preciso que

passeie no parque, montada no poney ou, então, que vá comprar

uma boneca nova. Gostava de a ver brincar mais vezes com

bonecas.

- Papá - observou Sara - se eu for comprar uma boneca de

dois em dois ou de três em três dias, acabo por ter tantas,

que não posso gostar de todas quanto devo. As bonecas devem

ser como verdadeiras amiguinhas.Emily será a minha amiga.

O capitão olhou para miss Minchin e miss Minchin olhou

para o capitão.

- Quem é Emily - perguntou ela.

- Explica tu quem é, Sara - disse o pai.

Os seus olhos cinzento-esverdeados tinham uma expressão

doce e grave, quando respondeu:

- É uma boneca que eu ainda não tenho, uma boneca que o

papá me vai comprar. Iremos escolhê-la os dois. Chamar-se-á

Emily. Será a minha amiga, quando o papá se for embora; e é

para lhe falar dele que eu a quero.

O sorriso parado de Miss Minchin teve, novamente, uma

expressão admirativa.

- Que espírito tão original - disse ela. - Oh que

deliciosa criança.

- Sim -- disse o capitão, apertando a filha contra o

peito. - É o meu tesouro. Terá muito cuidado com ela, não é

verdade Miss Minchin?

Sara não se separou do pai enquanto ele esteve em

Londres. Saíram juntos, correram as lojas, compraram inúmeras

coisas, muitas mais, certamente, do que precisavam; mas o

capitão, novo e inexperiente, queria que a filha tivesse tudo

quanto achava bonito e, também, tudo o que lhe agradava a

ele, de maneira que, entre os dois, compraram um enxoval

muitíssimo mais luxuoso do que era próprio para uma menina de

sete anos. Tinha vestidos de veludo, guarnecidos a pele,

vestidos de rendas e outros todos bordados; chapéus com

soberbas penas de avestruz, casacos e golas de arminho,

caixas cheias de luvas, de lenços, de meias de seda, e tudo

isto em tal quantidade que, nos estabelecimentos, as

empregadas diziam umas às outras, em voz baixa, indicando a

pequenita de grandes olhos profundos:

-Deve ser uma princesa estrangeira, talvez a filha de

algum rajá da Índia.

E, finalmente, compraram Emily; mas foi preciso ir a

muitas lojas de brinquedos e verem muitas bonecas, antes de a

descobrirem.

-Eu queria que ela não se parecesse com uma boneca -

explicou Sara. - Que ela tivesse o ar de me escutar, quando

eu lhe falasse. O que é mais aborrecido, com as bonecas, é

que elas nunca dão a idéia de ouvirem o que lhes dizemos.

Mostraram-lhe bonecas grandes e pequenas; bonecas com os

olhos pretos e olhos azuis, caracóis escuros e longos cabelos

doirados; bonecas vestidas e outras por vestir.

- O papá compreende - dizia Sara - se a compro sem

vestidos, levá-la-emos à casa de uma costureira que lhe fará

tudo por medida. Os vestidos ficam sempre melhor quando são

provados.

Depois de muito procurar, decidiram os dois ir a pé para

verem melhor as montras(vitrines}, enquanto a carruagem os

seguia lentamente. Haviam já passado dois ou três

estabelecimentos, sem entrar, quando, ao aproximar- se de uma

loja de aparência modesta, Sara estremeceu e apertou o braço

do pai.

- Ó papá - exclamou ela - aqui está Emily!

A sua carinha tornára-se muito rosada e seus olhos

acinzentados tiveram a mesma expressão de felicidade que

teriam se houvesse reconhecido uma amiga muito querida.

- Ela está à nossa espera - continuou a pequenina. -

Entremos depressa.

- Ó meu Deus - disse o capitão, alegremente

- Quem nos apresentará a Sua Alteza?

- O papá apresenta-me a mim, e eu apresento o papá -

disse Sara. - Mas eu reconheci-a logo à primeira vista, e

talvez ela me tivesse reconhecido também.

A boneca tinha, realmente, um lindo olhar. Era de bom

tamanho, transportava-se com facilidade. Possuía uma soberba

cabeleira castanha-dourada, toda encaracolada, grandes olhos

azuis e pestanas espessas, mas pestanas verdadeiras e não

apenas um simples traço de pincel sobre as pálpebras de

porcelana.

- Não há dúvida, papá - disse Sara, que olhava para a

boneca, face a face. - Não há dúvida de que é a Emily!

Emily foi, pois, comprada e, em seguida, levada a uma

casa de modas para crianças, onde encomendaram para ela um

guarda-roupa tão suntuoso como o de Sara: vestidos de veludo

e de musselina bordada, roupa guarnecida de rendas, luvas,

peles e meias de seda.

- Quero que ela seja amimada - dizia Sara - porque eu

sou sua mãe, ao mesmo tempo em que ela é a minha amiguinha.

Todas estas compras teriam divertido muito o capitão se

não fosse o triste pensamento que o preocupava cada dia mais:

não tardaria a ter de separar-se da sua querida

companheirazinha, a quem tão carinhosamente amava.

Uma vez, levantou-se a meio da noite e foi, docemente,

contemplar Sara, que dormia com a boneca nos braços. Os seus

cabelos negros e os cabelos doirados de Emily misturavam-se

sobre a almofada; ambas possuíam lindas camisas de dormir,

enfeitadas com renda, e admiráveis pestanas que Lhes

ensombravam as faces mimosas. Emily tinha de tal forma o ar

de uma verdadeira criança, que o capitão se sentia feliz de a

ver ali, e suspirou profundamente.

"Ó, minha Sarinha - pensava ele - nem tu imaginas, com

certeza, a que ponto o teu papá vai sentir a tua falta!"

No dia seguinte, Sara foi, definitivamente, confiada a

Miss Minchin.

O paquete para a Índia partia no outro dia de manhã. O

capitão Crewe explicou a miss Minchin que os Srs. Barrow e

Skipworth, que o representavam em Inglaterra, estavam à sua

disposição no caso de ela precisar de qualquer esclarecimento

ou conselho, e pagariam todas as despesas de Sara. Ele

próprio escreveria duas vezes por semana à filha, a quem

desejava que fossem proporcionados todos os prazeres que lhe

apetecesse.

-Sara é muito razoável e nunca pedirá nada que possa

ser-lhe prejudicial - explicou ele.

Depois, conduziu a filha aos seus aposentos e

despediram-se. Sentada sobre os joelhos do pai, Sara

segurava-lhe, com as duas mãos, a gola do casaco e olhava

intensamente.

- Parece que queres aprender de cor como eu sou - disse

ele, acariciando-lhe os cabelos.

Ela lançou-se-lhe nos braços e, ao vê-los assim

abraçados, dir-se-ia que não podiam separar-se um do outro.

Quando a carruagem, que levava o capitão, se pôs em

andamento, Sara, sentada no chão, junto da varanda da sua

sala particular, com o queixo apoiado nas mãos, seguiu-a com

o olhar até que ela dobrou a esquina da praça. Emily estava

também sentada ao lado da pequenina, que, de vez em quando,

olhava para ela. E, quando Miss Amélia, irmã de Miss Minchin,

recebeu ordem de ir ver o que fazia a nova educanda,

encontrou a porta fechada.

- Fechei a porta - explicou lá de dentro uma oz

delicada, mas um pouco nervosa. -Peço o favor de me deixarem

ficar completamente só.

Miss Amélia era uma criatura gorducha e baixa, que

admirava imenso a irmã mais velha, de quem sentia certo medo.

Tinha melhor coração do que Miss Minchin, mas por coisa

alguma do mundo seria capaz de lhe desobedecer. Retirou-se

agitadíssima e foi dizer à irmã:

- Nunca vi uma criança tão singular! Imagina que se

fechou à chave, por dentro, e que nem se ouve mexer.

- É preferível isso a gritar e a bater o pé no chão,

como fazem tantas outras - replicou Miss Minchin. -Amimada,

como é, esperava eu que ela pusesse a casa em alvoroço.

Porque, se há alguma criança que tenha sido escandalosamente

estragada com mimo, é esta!

- Já lhe abri as malas e arrumei todas as suas coisas -

disse Miss Amélia. - Nunca vi nada semelhante: casacos com

arminho e zibelina, toda a roupa guarnecida a rendas... Já

viste os vestidos dela? Que te parece?

- Parece-me perfeitamente ridículo - respondeu secamente

Miss Minchin. - Mas tudo isso fará vista, quando Sara marchar

à frente das outras alunas, ao domingo, para ir à missa. Na

realidade, fizeram-lhe um enxoval de princesa!

Lá em cima, fechada no quarto, Sara, sentada no chão,

com Emily ao lado, não desfitava o olhar da esquina da praça

onde o capitão havia desaparecido, sempre a enviar- lhe

beijos, como se não tivesse coragem de terminar.

___UMA LIÇÃO DE FRANCÊS

Quando, na manhã seguinte, Sara entrou na aula,

firmaram-se nela muitos olhos curiosos. Todas as outras

alunas, desde Lavínia Herbert, que com quase treze anos se

considerava já uma senhora, até Lottie Legh, a benjamina, que

contava apenas quatro, tinham conhecimento da sua chegada.

Também sabiam que, a partir daquele dia, Sara era o ornamento

e a glória do Colégio Minchin.

Uma ou duas pequenas haviam, mesmo, tido a sorte de

avistar a criada particular de Sara, chegada na véspera à

noite. Era francesa e chamava-se Mariette.

Lavínia, que tivera artes de passar em frente do quarto

de Sara, quando a porta estava entreaberta, vira a criada

abrir uma caixa que certa loja de modas enviara.

- Que linda roupa - dizia ela, em voz baixa, à sua amiga

Jessie, fingindo que estava a estudar geografia. -Nunca vi

tanta renda! Ouvi a miss Minchin dizer à irmã que tudo aquilo

era disparatado para uma criança. A minha mãe também me

costuma dizer que as crianças devem vestir-se com

simplicidade. Olha para Sara: as rendas aparecem-lhe por

baixo do vestido!

- E tem meias de seda - segredou Jessie, que parecia não

levantar o nariz do atlas. - Que pés tão pequenos! Nunca vi

pés assim!

- Oh - respondeu desdenhosamente Lavínia- é por causa do

feitio especial das pantufas que ela usa.

A minha mãe diz que um sapateiro habilidoso pode fazer

parecer pequenos mesmo os pés que sejam grandes. Eu cá não a

acho nada bonita. Tem os olhos de uma cor esquisita.

- Sim, não é bonita como se costuma ser - respondeu

Jessie, percorrendo ràpidamente toda a classe com o

olhar.Mas, quando se olha uma vez para ela, apetece olhar

mais... Tem umas pestanas tão compridas E os olhos são quase

verdes!

Sara conservava-se, muito ajuizadamente, no seu lugar, e

esperava que lhe indicassem o que devia fazer. Tinham-na

colocado mesmo ao lado de Miss Minchin. Os olhares que se

fitavam nela não a embaraçavam absolutamente nada. Pelo

contrário, divertiam-na e, por sua vez, olhava também para

todas aquelas meninas com interesse.

"Em que pensarão elas - perguntava Sara a si própria.

Gostava de saber se elas gostam de miss Minchin, se as lições

lhe agradam e se alguma tem um papá parecido com o meu... "

Tinha falado muito do pai a Emily, naquela manhã.

- Agora vai ele no mar - dissera ela. - Temos de ser

muito boas amigas e dizer tudo uma à outra. Olha para mim,

Emily; nunca vi olhos tão bonitos como os teus. Mas gostava

muito que pudesses falar!

Sara tinha na cabecinha sonhos e idéias, de que seria já

uma consolação convencer-se de que Emily era viva, ouvindo e

compreendendo tudo quanto ela lhe pudesse dizer.

Quando Mariette lhe vestiu o vestido azul-escuro,

reservado para as horas de aula, e lhe pôs nos cabelos uma

fita da mesma cor, a pequenina aproximou-se de Emily, sentou-

a numa cadeira de palha e colocou-Lhe, diante, um livro

aberto, dizendo:

- Podes ler durante a minha ausência. E vendo a criada

olhar para ela, surpreendida, Sara explicou-lhe, como se

estivesse perfeitamente convencida do que dizia:

- Eu creio que as bonecas são capazes de fazer muitas

coisas, mas não querem que nós saibamos... É muito possível

que Emily leia, fale e ande, mas só o fará quando estiver

sozinha. Tu compreendes, se nós soubéssemos que as bonecas

podem fazer o mesmo que nós, obrigávamo-las a trabalhar. Foi

por isso que elas tomaram, umas com as outras, o compromisso

de guardar segredo... Se tu ficares no meu quarto, Emily não

se mexerá donde está; se te fores embora, ela começará a ler

ou irá à janela ver quem passa. Mas, logo que ouça passos na

escada, voltará para a cadeira, para que a encontremos como a

deixamos.

"Que extraordinária criança!" - pensou Mariette. E,

quando foi almoçar, contou às outras criadas tudo o que se

passara com Sara. Sentia que se dedicaria a valer àquela

pequenina tão original e inteligente, que a tratava com tão

bonitas maneiras.

Mariette já se encontrara ao serviço de outras crianças

que estavam longe de ser assim delicadas. Sara tinha um modo

encantador e meigo de dizer: "Fazes favor, Mariette.

Obrigada, Mariette".

- Agradece-me , explicava a criada às colegas ,como se

eu fosse uma senhora.

E acrescentava:

- Tem o ar de uma princesinha.

Em resumo: Mariette estava encantada com a sua patroa

pequena e contentíssima com o seu novo lugar.

Entretanto, na aula, depois de Sara e as outras alunas

se terem observado à vontade, Miss Minchin bateu na

secretária, com ar solene, e disse:

-Meninas: vou apresentar- lhes a sua nova companheira.

Todas as pequenas se levantaram e Sara fez o mesmo.

- Espero - continuou Miss Minchin - que serão amáveis

para Sara Crewe; esta menina vem de muito longe, da Índia.

Logo que terminem as aulas, travarão conhecimento com ela.

As alunas cumprimentaram Sara, cerimoniosamente. Ela fez

uma pequena reverência e em seguida todas retomaram os seus

lugares, recomeçando a observação com o olhar.

- Sara - disse Miss Minchin, em tom doutoral, aproxime-

se.

A directora tinha pegado num livro, que ia folheando. A

pequenina, delicadamente, foi até junto dela.

- Como o seu pai escolheu uma criada francesa para o seu

serviço particular - começou Miss Minchin, concluo que ele

deseja que a menina estude o francês, a fundo.

Sara parecia um pouco embaraçada.

-Eu penso que o papá escolheu esta criada porque...

julgou que me dava prazer com isso...

- Receio - interrompeu Miss Minchin, com um sorriso

irônico,que a menina seja amimada de mais e que, por isso,

esteja convencida de que tudo e todos pretendem apenas

agradar-lhe. Mas neste caso, a minha convicção é que seu pai

quer que a menina aprenda bem francês.

Se Sara fosse mais velha, e se não estivesse tão

habituada a ser, sempre, escrupulosamente bem educada,teria

podido,em poucas palavras,desiludir Miss Minchin.

Mas a pequenina sentia-se corar: Miss Minchin parecia

tão severa e autoritária, tão convencidda de que Sara não

sabia uma palavra de francês, que ela não ousou contrariá-la:

isso parecia-lhe uma grande indelicadeza... E a verdade,

afinal, era que o capitão Crewe, tendo casado com uma

francesa, começara a falar francês com a filha desde muito

pequenina, de forma que esta falava aquela língua com a maior

facilidade.

Timidamente, Sara tentou ainda explicar:

- Eu... eu não aprendi, pròpriamente, mas...

Um dos maiores desgostos de Miss Minchin era,

exatamente, não saber falar francês e esforçava-se por

dissimular cuidadosamente esta humilhante lacuna. Por essa

razão, não desejava discutir sobre tal assunto, que podia

expô-la a perguntas embaraçosas, feitas pela nova aluna.

- Basta - disse ela, secamente , se não aprendeu, é

preciso aprender imediatamente. O professor, Sr. Dufarge, não

tarda aí. Vá folheando este livro enquanto ele não chega.

Sara sentia as faces escaldarem. Voltou para o seu

lugar, abriu o livro, fitou gravemente a primeira página,

muito decidida a não rir, como teria feito qualquer menina

mal educada, mas, em todo o caso, era engraçado ver-se

condenada a soletrar, como qualquer principiante "le père"...

"la mère"... "le fils"... palavras que ela conhecia

perfeitamente, havia já tanto tempo.

Miss Minchin não deixava de a observar.

- Parece descontente, Sara - disse ela -, e eu estou

aborrecida por ver que a menina não tem vontade de estudar

francês.

- Pelo contrário, minha senhora, tenho vontade, mas... -

respondeu Sara, tentando novamente explicar-se.

-Não diga sempre "mas" quando falam consigo ,exclamou

Miss Minchin,não a deixando concluir. E ordenou:-Pegue no

livro.

Sara, com a maior obediência, recomeçou a ler, com

aplicação "la fille", "le frère", "la soeur"...

Ao mesmo tempo ia pensando: "Talvez eu possa explicar-

me, quando o Sr. Dufarge vier...”.

Efetivamente, o professor de francês chegou pouco

depois. Já não era novo; tinha um ar distinto e, mal fixou

Sara, compreendeu logo que se tratava de uma criança invulgar

e sentiu, por ela, um vivo interesse.

-Tenho, então, uma nova aluna, não é verdade? -

perguntou ele.

-O pai desta menina, o capitão Crewe, tem um grande

empenho em que ela comece a aprender francês - explicou Miss

Minchin. Mas eu receio, que, por um capricho de criança, não

esteja disposta a isso.

- É pena - disse o professor, dirigindo-se, gentilmente,

à pequenita. E continuou:-Talvez que eu consiga convencê-la

quando principiarmos as lições, porque o francês é uma bela

língua.

Sara foi até junto do Sr. Dufarge. Começava a faltar-lhe

a coragem, e ergueu para ele os seus grandes olhos

suplicantes. Tinha a certeza de que o professor ia

compreender imediatamente, e começou, com a maior

simplicidade, a explicar tudo num francês correto e límpido:

Miss Minchin não tinha compreendido; o que ela queria dizer

era que não tinha aprendido o francês nos livros, mas sim com

o pai e os amigos do pai, que lhe falavam sempre nessa

língua. Por isso, aprendera a ler e a escrever francês ao

mesmo tempo que aprendera inglês. O pai gostava muito daquela

língua porque a sua querida mamã, que ela não chegara a

conhecer, era francesa. Tinha o maior prazer em aprender tudo

o que o Sr. Dufarge entendesse por bem ensinar-lhe, e o que

ela pretendera explicar a Miss Minchin era apenas, que já

conhecia todas as palavras que vinham naquele livro.

Ao dizer isto, Sara mostrou ao professor o livrinho que

a diretora lhe havia dado.

Ao ouvir falar tão corretamente, Miss Minchin estremeceu

e pôs-se a olhar para ela por cima das lunetas, com ar de

pessoa quase escandalizada.

Quanto ao Sr. Dufarge, sorria com um sorriso de

verdadeira satisfação: ao escutar aquela voz fresquinha de

criança falar nitidamente a sua língua natal, pareceu-lhe ter

sido transportado, de repente, para a sua terra que, por

vezes, nos dias sombrios e brumosos do inverno inglês, lhe

parecia tão distante... Mal a pequenina acabou, tomou-Lhe o

livro das mãos e envolveu-a num olhar de bondade e simpatia.

Depois, dirigindo-se a Miss Minchin, disse:

- Pouco terei a ensinar-lhe. Fala francês como uma

francesa. Tem uma pronúncia perfeita!

- Porque foi que a menina não me disse isso?

-exclamou Miss Minchin, envergonhada.

- Eu quis dizer... - respondeu Sara, mas não fui

capaz...

Miss Minchin sabia, perfeitamente, que a pequenina

tentara explicar tudo e que, se o não fizera, a culpa fora

apenas sua.

Mas vendo que as outras alunas tinham compreendido o que

se passara, sem perder nada daquela cena, e que Lavínia e

Jessie sorriam por detrás dos livros, a diretora sentiu-se

irritada ao máximo.

- Silêncio -- gritou, dando uma pancada na secretária.

Não quero ouvir ninguém a rir!

Desde esse dia, nasceu na sua alma um rancor surdo

contra a aluna de quem se mostrara, a principio, tão

orgulhosa.

HERMENGARDA

No decorrer daquela manhã tão agitada, Sara reparara

numa condiscípula da sua idade, cujos olhos, de um azul muito

pálido, não se desfitavam dela. Era uma pequena gorda, com

aparência de pouco inteligente, mas que possuía uma boquita

redonda, sempre com um jeito de mimo. Usava os cabelos

louros, muito claros, apertados em grossa trança, atada por

uma fita; tinha enrolado a trança em volta do pescoço e com

os cotovelos apoiados sobre a estante, ia mordiscando as

pontas da fita, ao mesmo tempo que olhava para Sara, com

espanto e admiração.

Quando o Sr. Dufarge se dirigira a Sara, a pequenina

estremecera e parecia um pouco ansiosa; mas, ao ouvi-la

responder-lhe em francês, tornava-se vermelha de surpresa.

Ela, que chorava tantas lágrimas amargas, ao verificar a

inutilidade dos seus esforços para se lembrar da tradução

francesa das palavras mãe ou pai, como não havia de

considerar um verdadeiro prodígio a nova companheira, a quem

não somente aquelas palavras como muitas outras pareciam

familiares, e que sabia conjugar os verbos e misturá-los com

os adjetivos, como se se tratasse de um simples passatempo?

Absorvida pela contemplação de Sara, continuava a morder

a fita com tal ardor, que chamou a atenção de Miss Minchin, a

qual, satisfeita por ter encontrado um pretexto para

desabafar a sua irritação, lhe ralhou severamente:

-Que significam esses modos, Miss Saint-John? Tire os

cotovelos de cima da estante, a fita da boca, e ponha-se

direita!

A pobre Miss Saint-John estremeceu de novo; Lavínia e

Jessie riam baixinho, olhando para ela, o que a fez corar

ainda mais. As lágrimas quase saltavam dos seus pobres olhos

de criança sem defesa. Sara percebeu tudo imediatamente, pois

não podia ver sofrer ninguém sem desejar imediatamente ir em

seu auxílio.

O pai costumava dizer:

"Se Sara fosse um rapaz e houvesse nascido uns anos mais

cedo, teria percorrido o mundo, de espada na mão, para

libertar os oprimidos e castigar os maus.”

Não admira, portanto, que durante toda a manhã ela

tivesse seguido com o olhar aquela sua nova companheira

gorducha e triste. Viu logo que a outra tinha grande

dificuldade em aprender as lições e que havia poucas

probabilidades de vir a ser a glória do colégio... A lição de

francês, em especial, foi quase uma tragédia... A pronúncia

de miss Saint-John fazia sorrir o Sr. Dufarge, mesmo sem ele

querer, e Lavínia, Jessie e as outras alunas troçavam ou

olhavam-na com desdém. Sara era a única que se mantinha

séria. Fazia de conta que não ouvia a sua desventurada

condiscípula que disse: "lé bon pang" em vez de "le bon paim"

e outras coisas neste gênero. Tinha muito amor-próprio e uma

noção muito viva da dignidade pessoal; por isso revoltava-se

ao ouvir as risadas das outras, e ao ver a cara envergonhada

e aflita de miss Saint-John.

"Isto não tem graça nenhuma - pensava ela, debruçando-se

sobre o livro. - Não percebo por que motivo se riem assim".

Depois da aula, quando as alunas se reuniram, em grupos,

Sara foi procurar miss Saint-John. Ao vê-la sozinha e triste,

metida no vão de uma janela, dirigiu-se a ela e procurou um

pretexto para conversarem. Disse-lhe apenas as palavras

vulgares que qualquer menina da sua idade diz a outra

naquelas circunstâncias, mas a sua voz possuía um som doce e

afetuoso, ao qual ninguém podia ficar insensível.

- Como se chama? - perguntou.

Para compreender o espanto de miss Saint-John, é preciso

não esquecer que, nos colégios de meninas, uma "nova" é

sempre, ao princípio, um ser um tanto misterioso; que todo o

colégio, na véspera, à noite, falara da "nova" e repetira, a

seu respeito, histórias mais ou menos contraditórias, até ao

momento em que o sono fizera calar a curiosidade geral. A

chegada de uma aluna que tem carruagem, um "poney", uma

criada particular, e que vem da Índia, não é um acontecimento

banal.

- Chamo-me Hermengarda Saint-John - respondeu a outra.

-E eu Sara Crewe. O seu nome é bonito e parece-se com os

que encontramos nos livros.

- Gosta dele ,balbuciou Hermengarda. Eu... também gosto

do seu.

A infelicidade de Miss Saint-John era ter um pai

notàvelmente instruído e inteligente. Às vezes, esse fato

parecia ser uma verdadeira calamidade. Um pai que aprendeu

tudo quanto quis, fala sete ou oito línguas e tem uma vasta

biblioteca, a qual se pode dizer que sabe de cor, espera,

naturalmente, que a filha saiba, pelo menos, as suas lições

quotidianas,e se lembre,quando mais não seja,de alguns fatos

históricos,ou faça,sem erros,um ponto escrito de francês.

Hermengarda era, pois, uma grave preocupação para o Sr.

Saint-John, que não podia explicar a si próprio como uma

filha sua era tão completamente desprovida de vivacidade

intelectual e incapaz de triunfar fosse em que fosse.

A pobre pequena era, sem contradição possível, a pior

aluna do colégio.

- No entanto, é preciso que ela chegue a aprender

qualquer coisa! - dizia o pai a Miss Minchin.

Em conseqüência desta recomendação, Hermengarda passava

a maior parte do tempo a chorar ou a ser castigada. O pior

era que, se conseguia aprender qualquer coisa, esquecia-a

cinco minutos depois ou,a maioria dos casos, ficava sem

compreender uma única palavra. Não admira, pois, que ela

contemplasse Sara quase com respeito.

- Fala francês, não é verdade? - perguntou timidamente

miss Saint-John.

Sara sentou-se num dos bancos do vão da janela, cruzou

as pernas e, unindo as mãos sobre os joelhos, respondeu:

-Sei alguma coisa de francês porque ouvi sempre falar

esta língua à minha volta. Se a menina estivesse no meu

lugar, ter-lhe-ia acontecido a mesma coisa.

- Oh isso não! Eu não era capaz - exclamou Hermengarda.

Nunca consegui aprender.

- Porquê ? perguntou Sara, com curiosidade.

Hermengarda abanou a cabeça, fazendo saltitar a trança

sobre os ombros, e continuou:

- Não ouviu, há pouco, a minha lição? É sempre assim.

Não sou capaz de pronunciar bem as palavras. São muito

difíceis...

Calou-se um momento: depois acrescentou, com um tom de

respeito na voz:

- A menina é muito inteligente, não é?

Sara olhou, através do vidro, a praça umida, onde os

pardais esvoaçavam sobre as grades enferrujadas e os ramos

das árvores enegrecidas pela fuligem. Refletia. Ouvira dizer

muitas vezes que era inteligente; perguntava agora a si

própria se era verdade e como tinha isso acontecido... Por

fim, respondeu:

- Não sei. não sou capaz de lhe explicar...

Vendo a expressão desapontada da bondosa carita de faces

rechonchudas, Sara teve vontade de rir e mudou de conversa.

- Gostavas de ver Emily? - perguntou ela à outra,

tratando-a familiarmente.

- Quem é Emily? - interrogou Hermengarda por sua vez.

- Vem ao meu quarto e verás - disse Sara, estendendo-lhe

a mão.

Dirigiram-se as duas para a escada e, enquanto

atravessavam o vestíbulo, Hermengarda foi perguntando, já com

mais familiaridade:

- É verdade que tu tens uma sala de recreio só para ti?

- É - respondeu Sara. - Meu pai recomendou isso a Miss

Minchin porque eu, para me distrair, invento histórias e

conto-as a mim própria; não gosto que me ouçam. Quando penso

que está alguém a escutar, já não sinto prazer nenhum.

Tinham chegado ao corredor que conduzia ao quarto de

Sara. Ao ouvir o que ela dissera, Hermengarda parou, como que

sufocada, e exclamou:

- Tu inventas histórias?! Falas francês e inventas

histórias? Isso é verdade?

Sara olhava para ela, admirada, e apenas disse:

- Mas, inventar uma história é uma coisa muito fácil,

que qualquer pessoa pode fazer. Tu nunca experimentaste?

De súbito, apertou mais a mão da companheira e disse,

baixando a voz:

- Aproximemo-nos da porta sem fazer barulho; eu vou

abrir de repente... Talvez a possamos surpreender.

Ao dizer isto, ria, mas lá bem no seu íntimo tinha uma

secreta esperança que lhe fazia brilhar mais os olhos. Embora

não fizesse a mais leve idéia do que se tratava, Hermengarda

notou a transformação da sua nova amiguinha e sentiu-se

impressionada. Que seria? Fosse o que fosse, devia ser uma

coisa importantíssima...

Por isso, seguira Sara; andando nos bicos dos pés e toda

tremula de comoção.

Atingiram a porta sem fazer o menor ruído. Sara abriu

bruscamente e, aos olhos das duas pequenas, surgiu o quarto,

muito tranqüilo e bem arrumado, com um bom lume no fogão, a

arder serenamente, e uma admirável boneca sentada a um canto

da chaminé, na atitude de quem lia um livro atentamente.

- Oh! ela voltou para a cadeira antes que nós a

pudéssemos ver! - disse Sara, desapontada. É sempre assim!

São mais rápidas do que um relâmpago...

Os olhos de Hermengarda iam, pasmados, de Sara para a

boneca e da boneca para Sara.

- Ela anda? - perguntou a pequenina, cada vez mais

espantada.

- Está claro que sim - respondeu Sara. Pelo menos, estou

convencida disso, ou procuro convencer-me e, nesse caso, para

mim é como se fosse verdade. Tu nunca fizeste assim para

acreditares em qualquer coisa?

- Não - declarou Hermengarda. - Explica-me como é.

Miss Saint-John estava de tal forma encantada com Sara,

que olhava para ela sem prestar a menor atenção a Emily, e,

no entanto, Emily era a mais linda boneca que ela até então

tinha visto.

- Sentemo-nos - disse Sara - Vou tentar ensinar-te. É

tão fácil que, depois de começar, já não somos capazes de

parar e continuamos todos os dias... É delicioso. Escuta,

Emily apresento-te Hermengarda Saint-John. Hermengarda,

apresento-te Emily. Gostarias de lhe pegar um bocadinho ao

colo?

- Oh! Gostava muito - disse Hermengarda. Ela é tão

bonita!

Sara pôs-lhe a boneca nos braços. Hermengarda nunca

julgara poder viver uma hora tão agradável como a que passou

ali, até ao momento em que a sineta as chamou de novo ao rés-

do-chão.

Sara, sentada sobre o tapete, em frente do fogão, com os

olhos brilhantes e as faces coradas, contou-lhe mil coisas

maravilhosas. Falou-lhe da viagem que fizera e da Índia! Mas

o que fascinava Hermengarda era tudo quanto a sua nova

amiguinha inventava acerca das bonecas que, afirmava ela,

andavam, falavam, e faziam tudo quanto queriam, quando

ficavam sozinhas, escondendo ciosamente o seu poder e

tornando-se imóveis, num abrir e fechar de olhos, logo que

alguém entrava no quarto onde elas se encontravam.

- Compreendes - dizia Sara, com o ar mais sério deste

mundo. É uma espécie de magia.

E de repente, ao contar-lhe como descobrira Emily, Sara

mudou de expressão. Dir-se-ia que uma nuvem viera ensombrar a

claridade dos seus grandes olhos. Soltou um suspiro tão

profundo, que mais parecia um gemido; depois cerrou muito os

lábios, como num grande esforço de vontade. Hermengarda

sentiu confusamente que, neste momento, se Sara fosse uma

criança vulgar, teria chorado. Mas tal não sucedeu.

- Estás triste - perguntou timidamente miss Saint-John.

- Estou - respondeu Sara, após um minuto de silêncio.

-E explicou:

- Mas não é no corpo...

Depois, numa voz muito baixa, que ela queria manter

firme,perguntou :

- Gostas muito do teu pai?

Os cantos da boca de Hermengarda contrairam-se. Ela

compreendia perfeitamente que a sua dignidade de aluna de um

colégio de primeira categoria não lhe permitia responder a

verdade: nunca fizera a si própria semelhante pergunta e

preferia tudo a passar dez minutos junto do pai. A pobre

pequena estava seriamente embaraçada.

- Quase nunca o vejo - murmurou. – Ele assa a vida na

biblioteca, a ler.

-Pois eu gosto do meu acima de tudo no undo - disse

Sara. - Aqui tens a razão por que stou triste: é por ele

haver partido.

Ao dizer isto, escondeu o rosto entre as mãos e icou

imóvel.

"Desta vez, vai chorar...” , pensou Hermengarda,

assustada.

Mas não; Sara não verteu uma lágrima.Os Cabelos negros

tombavam-lhe sobre a cara,e ela mantinha-se na mesma

imobilidade.Depois ,sem levantar a cabeça , foi dizendo:

- Prometi-lhe ser corajosa. E hei-de sê-lo! Precisamos

sempre de sofrer qualquer coisa na vida...

Pensa no que sofrem os soldados!O papá é um oldado. Se

houver guerra, tem de suportar a fadiga, a sede e talvez

ferimentos graves. Pois bem, tenho a certeza de que não

diria uma única palavra para se lamentar. Nem uma!

Hermengarda contemplava-a e experimentava or ela um vago

sentimento de adoração. Sara era ão maravilhosamente

diferente de todas as pessoas ue a rodeavam!

Não tardou que erguesse a cabeça e sacudisse os cabelos

sorrindo de forma estranha.Por fim disse:

-Se eu puder falar muito e contar-te tudo quanto passa

pela cabeça fazendo de conta que acredito no que digo,

sentir-me-ei mais corajosa.Isto não faz esquecer, mas dá

força.

Sem saber por que, Hermengarda sentiu a garganta

apertada e os olhos úmidos.

- Lavínia e Jessie são amigas íntimas - disse

ela com voz alterada. - Seria tão bom se nós também o

fôssemos... Queres que eu seja tua amiga?

Tu és inteligente e eu sei, perfeitamente, que sou a

aluna mais estúpida do colégio, mas... eu gosto

tanto de ti!

- Ainda bem! Não imaginas como estou contente - exclamou

Sara. - Sim, vamos ser muito amigas. E, queres saber? -

Ao dizer isto a expressão iluminou-se-Lhe. -Vou ajudar-

te a estudar as lições de francês!

LOTTIE

Se Sara fosse uma criança semelhante à maioria, a vida

no Colégio de Miss Minchin, tal como estava organizada, teria

sido perigosa para ela.

Era tratada não como uma criança, mas como uma hóspeda

de cerimônia, cuja presença honrava a casa. Se ela fosse

caprichosa e altiva, tanta lisonja e mimo torná-la-iam

insuportável. Se tivesse disposição para a preguiça, não

teria feito nem aprendido absolutamente nada. No seu íntimo,

Miss Minchin não gostava dela, mas era suficientemente

prudente para fazer ou dizer qualquer coisa que pudesse

desgostar tão preciosa aluna. Porque ela bem sabia que, se

alguma vez Sara mandasse dizer ao pai que o colégio Lhe

desagradava ou que se sentia ali infeliz, o capitão Crewe a

viria buscar imediatamente.

Miss Minchin chegara à conclusão de que a melhor maneira

de conquistar a simpatia de uma criança é satisfazer-lhe

todas as vontades, era elogiá-la e deixá-la fazer tudo quanto

ela quiser. Em conseqüência disto, Sara era constantemente

felicitada pela sua aplicação ao estudo, pelas suas boas

maneiras, pela amabilidade com que tratava as condiscípulas e

pela generosidade com que socorria os mendigos que Lhe pediam

esmola; o mais simples dos seus atos era posto na lua, como

se costuma dizer, e se ela não fosse, de seu natural,

ajuizada e prudente, tornar-se-ia bem depressa uma pequena

vaidosa e antipática.

Mas no seu cérebrozinho havia os mais sensatos

pensamentos, sobre ela própria e sobre o destino

que lhe coubera neste mundo. De vez em quando

chegava mesmo a falar nisto a Hermengarda.

- É o Destino que prepara tudo na vida - costumava

dizer. - Eu, por exemplo, recebi todas as

boas qualidades: gosto de estudar e aprendo fàcilmente o

que me interessa; tenho um papá bom, belo e inteligente, que

me dá tudo quanto eu quero. É possível, mesmo que, no fundo,

eu não seja boa; mas quando se receberam todos os dons que eu

recebi e toda a gente nos anima, como não havemos também de

ser amáveis? Pergunto a mim própria se sou realmente uma

menina gentil ou se, pelo contrário sou uma criança

insuportável. - e, ao dizer isto, a sua fisionomia

tomavaumaexpressão de grande perplexidade.Talvez que eu seja

terrível e nunca ninguém o chegue a saber, simplesmente

porque nunca tive uma contrariedade na vida!

- Lavínia também não tem contrariedades replicou

Hermengarda, em tom insistente - e Deus sabe como ela é

desagradável!

Sara coçou a ponta do narizinho com ar de quem reflete,

e ficou a meditar sobre aquele problema.

Por fim, disse:

- Talvez seja por ter crescido...

Ela tinha ouvido dizer a Miss Amélia que o rápido

crescimento de Lavínia afetara a sua saúde , seu gênio e,

caridosamente, aproveitara esta benévola explicação.

A verdade, porém, é que Lavínia tinha imensos ciúmes de

Sara. Até à vinda desta, fora ela a pessoa mais importante do

colégio. As condiscípulas obedeciam-lhe sempre, porque

Lavínia era capaz de se mostrar odiosa, se lhe resistissem.

Tiranizava as mais pequeninas e tomava grandes ares para com

as outras da sua idade. Era bonita e as suas "toaletes" eram

mais luxuosas do que as das outras, chamando a atenção quando

saíam a passear, até ao momento em que apareceram os casacos

de veludo, os regalos de peles, as plumas de avestruz de

Sara, e em que esta foi colocada, por Miss Minchin, à frente

das outras alunas. Lavinia sofrera com isso uma decepção

enorme.

Depois, à medida que o tempo ia passando, tornava-se

evidente que Sara era, na realidade, superior, não porque se

mostrasse desagradável mas, ao contrário, porque nunca o era.

Jessie, sem querer, tinha excitado o furor da sua amiga

intima, dizendo:

- É preciso fazer justiça a Sara Crewe. Não é vaidosa, e

tem razão para o ser, como nenhuma de nós. Eu, por mim, penso

que não resistiria à vaidade, se tivesse tantas coisas

bonitas e fosse tão admirada como ela é. Chega a ser vergonha

a maneira como Miss Minchin a põe em evidência quando vêm

visitas ao colégio.

"-Sara, tem de vir à sala contar coisas da Índia a M. me

Musgrane...” - disse Lavinia, que imitava maravilhosamente

Miss Minchin. E continuou:-"A nossa Sarinha vai falar francês

com Lady Pitcin... Tem boa pronúncia...” A verdade é que não

foi no colégio que ela aprendeu francês. Nem precisou, para

isso, de grande inteligência; ela própria diz que nunca

estudou e aprendeu simplesmente ouvindo conversar o pai.

Quanto a este, não acho que o facto de ser oficial da Índia

baste para o tornar notável.

- Mas - disse lentamente Jessie - ele matou tigres. Até

matou aquele de que tiraram a pele que está no quarto de

Sara. É por isso que ela a estima tanto; deita-se-lhe em

cima, acariciando a cabeça e fala-lhe, como se falasse a um

gato.

- Sara passa o tempo a fazer maluquices - disse Lavínia,

com aspereza. - A mamã diz que esta mania que ela tem de

inventar histórias é ridícula e, quando for crescida, não

passará de uma excêntrica.

Efetivamente, Sara ignorava a vaidade. Tinha uma

almazinha afetuosa e partilhava generosamente com os outros

os seus dons e os seus privilégios. As alunas menores,

habituadas a ser censuradas e empurradas pelas mais velhas,

sabiam que a única das suas condiscípulas que as não fazia

chorar, era exatamente a mais invejada de todas. Sara tinha

um coração maternal, e quando alguma caía ou esfolava os

joelhos, encontrava sempre, junto dela, ajuda, consolações e

algum bombom ou caramelo que tirava da algibeira do

bibe(espécie de avental para crianças destinado a evitar que

os vestidos se sujem). Nunca as repelia nem fazia alusões

trocistas ao fato de serem ainda pequeninas.

-Quando se tem quatro anos, têm-se quatro anos ,dissera

ela, serenamente a Lavínia, num dia em que esta dera uma

bofetada a Lottie (que feia ação!), chamando-lhe empecilho. E

continuara, com um olhar cheio de convicção - Mas no ano

seguinte terá cinco, depois seis e só faltarão catorze anos

para ter vinte!

- Meu Deus - exclamou Lavínia, trocista -, como tu sabes

fazer bem cálculos!

Mas ninguém podia negar que dezasseis e quatro fazem

vinte, e vinte anos era a idade com que as alunas mais

audaciosas do Colégio Minchin sonhavam.

Assim, as pequeninas adoravam Sara. Muitas vezes haviam

já sido convidadas - elas que eram sempre desdenhadas! - a

tomar chá no seu quarto, a brincar com Emily, a lanchar,

utilizando o serviço de chá de Emily, um de flores azuis e

cujas

chávenas continham uma respeitável quantidade de chá

muito doce. Nunca nenhuma das petizas vira um serviço de chá

de boneca tão bonito.

E, a partir desse dia, Sara foi considerada como uma

rainha ou uma deusa, por todas as alunas da classe infantil.

Lottie Legh adorava-a a tal ponto que, se Sara não

tivesse um coração maternal, ter-se-ia irritado com tantas

manifestações de carinho.

Lottie fora internada ali por um pai ainda muito novo e

frívolo, que achara ser aquela a melhor solução para a

pequenina. A mãe morrera e, como desde a primeira hora da sua

vida, fora considerada apenas como um bonito brinquedo, como

um macaquinho ou um cãozinho de luxo, tornara-se uma criatura

intolerável. Quando ela queria ou não queria qualquer coisa,

punha-se a berrar, e como apetecia sempre o que não podia

ter, e não queria, nunca, o que lhe convinha, era raro que a

sua voz estrídula não se ouvisse em qualquer canto da casa.

Esta pobre criança descobrira, não se sabe como

- ou ouvira, sem dúvida, dizê-lo a seu pai - que uma

menina que não tem mãe, deve ser lamentada e amimada. Fizera

desta descoberta uma arma de que se servia a propósito de

tudo.

A primeira vez que Sara se ocupou dela, foi certa manhã

em que, passando em frente de um quarto, ouvira Miss Minchin

e Miss Amélia esforçando-se por fazer cessar a gritaria da

criança, que, percebia-se perfeitamente, se recusava a ceder.

E recusava-se tão enérgicamente, que Miss Minchin era

obrigada a gritar também, num tom severo e autoritário, para

se fazer ouvir.

- Porque chora ela? - perguntava Miss Minchin.

- Oh Oh Oh - foi a resposta. - Não tenho mãezinha!

- Vamos, Lottie - dizia, já impaciente, Miss Amélia. -

Cala-te. Não chores mais, não chores mais!

- Oh! Oh! Oh - recomeçava Lottie, com toda a força dos

seus pulmões. -Eu já não tenho mãezinha!

- O que ela precisava era de chicote - exclamou Miss

Minchin. -Vais apanhar, demônio!

Ao ouvir isto, Lottie gritou com mais força do que

nunca. Miss Amélia sentiu lágrimas nos olhos. A voz de Miss

Minchin tornou-se terrível.

De repente, a diretora, impotente e indignada, saiu do

quarto, deixando Miss Amélia a contas com a indisciplinada

pequena.

Sara parou no vestíbulo e perguntava a si própria se

devia entrar; conhecia Lottie havia pouco tempo mas, apesar

disso, pensava que talvez conseguisse consolá-la.

Ao sair do quarto, Miss Minchin viu Sara e ficou um

pouco contrariada com a idéia de que gritara talvez

demasiadamente e fora bastante áspera, com prejuízo da sua

própria autoridade.

- Ah! A menina Sara está aqui - exclamou com um sorriso

que pretendia ser amável.

- Parei - explicou Sara ~- porque reconheci a voz de

Lottie e pensei que, talvez, não tenho a certeza, eu pudesse

acalmá-la. Dá licença que experimente, Miss Minchin?

- Se for capaz disso, será quase um milagre... Mas

duvido respondeu secamente Miss Minchin, repuxando os lábios.

Depois, vendo que Sara ficara um pouco admirada com

aquele acolhimento tão frio, mudou imediatamente de atitude e

disse, num tom amável:

- É verdade que a menina tem habilidade para tudo! Tenho

a certeza de que será bem sucedida. Entre!

E afastou-se para deixá-la passar.

Quando Sara entrou no quarto, Lottie, deitada no chão,

gritava e batia com os pés no sobrado, com quanta força

tinha. Junto dela, estava ajoelhada Miss Amélia, vermelha, a

transpirar, como se fosse a própria estátua da consternação.

Procurava por todos os meios fazer com que a pequena

sossegasse e passava, sem transição, da doçura à severidade.

- Pobre criança!- dizia ela. - Eu bem sei que não tens

mãe...

Logo a seguir, em tom diferente, ordenava:

-Se não te calas, Lottie, és castigada! Pobre anjinho...

Vamos, vamos... És feia, e má! Vais apanhar... Tu verás!

Sara aproximou-se tranquilamente. Não sabia ainda o que

faria, mas estava convencida de que era preferível não dizer

assim, ao acaso, tantas coisas contraditórias.

- Miss Amélia - disse ela, em voz baixa. Miss Minchin

deu-me licença para eu ver se sou capaz de acalmá-la... Posso

experimentar?

Miss Amélia lançou-lhe um olhar desesperado e balbuciou:

-Julga que será capaz?

- Eu não sei - murmurou Sara. - Mas vou tentar, mesmo

assim...

Miss Amélia levantou-se, ofegante; as perninhas de

Lottie continuavam a agitar-se violentamente.

- Vá-se embora, devagarzinho - pediu Sara. Ficarei ao pé

dela.

- Oh Sara - choramingava Miss Amélia - Nunca tivemos uma

aluna tão difícil de aturar. Não podemos continuar a tê-la

aqui.

Mas, ao mesmo tempo em que falava, ia-se esquivando,

satisfeita por ter encontrado uma boa desculpa para o fazer.

Sara, de pé, junto da pequena fúria, olhou para ela

durante alguns momentos, sem falar. Depois, sentou-se no

chão, ao lado da outra, e esperou. Além dos gritos raivosos

de Lottie, não se ouvia mais nada no quarto. E a pequenina,

habituada a ouvir as pessoas crescidas suplicarem-lhe que se

calasse, ou ralharem-Lhe severamente durante os seus ataques

de mau gênio, ameaçando-a e acarinhando-a, assustadas com os

seus caprichos, não compreendia... Gritar com todas as suas

forças, bater com os pés no chão e verificar que a única

pessoa presente parecia não lhe ligar a menor importância,

era um fenômeno digno da sua atenção!

Entreabriu os olhos, até então muito fechados, e viu

quem estava junto dela: era apenas outra criança, exatamente

aquela pequena que era dona de Emily e de tantas outras

coisas lindas. Essa outra criança olhava para Lottie e

parecia refletir profundamente.

Lottie quis recomeçar a sua gritaria, mas a calma que

reinava na sala e a serenidade da fisionomia de Sara

impressionaram-na, e o seu primeiro grito não teve força nem

convicção.

- Eu-não-te-nho-mãe-zinha - recomeçou ela, numa voz

bastante mais baixa.

Sara continuou a olhar fixamente para Lottie, mas nos

seus olhos havia uma expressão de simpatia.

- Eu também não tenho mãe - disse ela.

Esta resposta espantou a outra. Cessou de agitar as

pernas e ficou imóvel, a olhar para Sara. Uma idéia nova

basta, algumas vezes, para fazer calar uma criança que chora

e que coisa alguma pudera até então acalmar.

Deve dizer-se também que se Lottie detestava a

autoritária Miss Minchin e a indulgente Miss Amélia, tinha,

em compensação, um "fraco" por Sara, apesar de conhecê-la

pouco.

Não queria, ainda, ceder, mas os seus pensamentos

tomavam um novo rumo e, depois de um soluço amuado,

perguntou:

- Onde está a tua mãe?

Sara não respondeu logo. Haviam-lhe dito que a mãe

estava no Céu; meditara bastante sobre esse assunto e acabara

por formar uma opinião muito sua.

- Está no Céu - disse, por fim. - Mas tenho a certeza

que ela desce algumas vezes à Terra para me vir ver; eu é que

não a vejo. Deve suceder o mesmo com a tua. Quem sabe se a

tua mãe e a minha nos estão a ver neste momento? Talvez se

encontrem aqui as duas, neste quarto...

Lottie ergueu-se bruscamente e olhou em volta de si. Era

uma bonita criança de cabelos encaracolados e olhos redondos,

que lembravam miosótis orvalhados.

Mas, se a sua mamã ali estivera durante a meia hora que

acabava de decorrer, não a tinha comparado a um anjo do Céu,

com certeza...

Sara continuava a falar, e fazia-o com tal convicção,

que Lottie escutava-a atentamente, mesmo sem querer.

Haviam-lhe explicado que a mãe tinha umas grandes asas,

e mostrado estampas onde se viam umas senhoras vestidas de

branco, a quem chamavam anjos. Mas o que Sara contava parecia

ser uma coisa verdadeira, como se falasse de um belo país

onde viviam pessoas a valer.

- Lá em cima há muitos campos, todos em flor

- dizia ela, abandonando-se à sua imaginação e falando

como se sonhasse. - São campos de lírios, e, quando passa

sobre eles a brisa, esta fica toda perfumada. E, como a brisa

sopra constantemente, respira-se sempre aquele delicioso

perfume. As crianças brincam nos campos e colhem ramos de

lírios para fazer coroas. Todos os caminhos deste país

brilham. E depois, ninguém se fatiga, mesmo que tenha andado

muito, Quem quiser, pode voar. Há muros de pérolas e ouro em

toda a volta da cidade, mas são baixinhos, que é para nos

podermos debruçar, olhar para a Terra, cá em baixo, e enviar

sorrisos e mensagens carinhosas às pessoas que estimamos.

Fosse qual fosse a história que Sara tivesse começado,

Lottie, certamente, não gritaria mais, e ter-se-ia deixado

prender pelo encanto da narrativa, mas não se pode negar que

esta história era mais bonita do que as outras. Entretanto,

Lottie aproximara-se mais de Sara,ouviu-a até ao fim, sem

perder uma só palavra. Quando acabou, pareceu-lhe que tinha

sido muito pequena, e fez uma cara pouco tranqüilizadora.

- Eu quero ir para esse país - gritou ela. Eu... não

tenho mamã neste colégio !...

Sara sentiu o perigo e saiu do seu sonho. Pegou na mão

gorducha de Lottie e puxou a pequenina para si, sorrindo-lhe

carinhosamente.

- Serei eu a tua mamã - disse ela. - Vamos divertir- nos

a dizer que tu és minha filha. E Emily será tua irmã.

Reapareceram nas faces de Lottie as suas engraçadas

covinhas.

- É verdade ? - perguntou.

- Com certeza - respondeu Sara, pondo-se de pé, num

salto. -Vamos prevenir Emily. Em seguida vou lavar-te a cara

e pentear-te.

Lottie concordou, alegremente, e pôs-se a pular ao lado

de Sara, sem se lembrar já de que o "drama" que acabava de

passar, começara, exatamente, porque ela recusara deixar-se

lavar e pentear para o almoço, tornando-se forçoso recorrer à

autoridade da majestosa Miss Minchin.

A partir daquele dia, Sara passou a ser mãe adotiva.

BECKY

O maior prestigio de Sara estava no dom que possuía de

contar histórias e dar a tudo quanto dizia uma aparência de

descrição maravilhosa.

Era isto, mais ainda do que o seu luxo e a sua riqueza,

que atraía para ela as condiscípulas; e era isto mesmo que

mais inveja causava a Lavínia e a algumas outras pequenas,

que não conseguiam, apesar de tudo, deixar de sentir o

encanto do extraordinário talento de Sara.

As pessoas que na infância tiveram alguém que lhes

contasse, assim, histórias fantásticas, recordam durante toda

a vida essas horas de deslumbramento, em que escutavam a voz

que lhes ia falando de fadas, encantos e aventuras

espantosas, que transportavam a sua imaginação infantil a um

mundo maravilhoso.

E evocava, muitas vezes, os grupos que formavam com

outras crianças, conservando-se, durante horas, quietas e

caladas, de olhos fitos na pessoa que contava.

Sara, não somente sabia contar histórias, como

gostava muito de o fazer. Quando, sentada no

meio

das condiscípulas, começava a inventar coisas

maravilhosas, os seus olhos verdes pareciam maiores e

mais brilhantes; as faces tornavam-se-lhe coradas e

insensivelmente, começava a acompanhar com gestos

as suas palavras. A voz, ora doce, ora forte, o corpo

flexível, os movimentos expressivos das suas mãos tudo

contribuía para dar relevo às passagens dramáticas ou

românticas do seu conto.

Por vezes,esquecia- se de que falava com outras

crianças; via realmente fadas, vivia com os reis, as

rainhas e as formosas castelãs de quem ia contando

as aventuras. Acontecia chegar ao fim da narrativa

ofegante, exausta. Então, colocava a mãozinha no

peito, sobre o coração, e sorria, como se estivesse

troçando de si própria.

- Quando vos conto tudo isso - dizia ela parece-me que é

verdade, que aconteceu assim, e

esqueço-me do colégio, da aula e até de que me

estão ouvindo. Chego a convencer-me de que sou eu

própria, cada uma das personagens da história.

É extraordinário!

Havia cerca de dois anos que Sara estava no

colégio de Miss Minchin.

Num dia de Inverno, enevoado e triste, quando

descia da carruagem, toda embrulhada no seu casaco

de veludo guarnecido de peles, viu, debaixo da

escada da cave, o vulto de uma pequenina, mal

arranjada, que espreitava para fora, através das

grades, com o pescoço estendido e os olhos dilatados. A

sua

carinha suja possuía uma expressão ao mesmo tempo

ardente e tímida, que chamou a atenção de Sara.

E ela sorriu à criança, como sorria sempre a toda

a gente.

Mas a outra julgava, com certeza, que não

lhe era permitido olhar para a aluna mais rica do

colégio. A sua cabeça desgrenhada desapareceu, como a de um

diabinho que recolhe à sua caixa, e fugiu para a cozinha com

tal precipitação, que, se não tivesse um ar tão miserável,

Sara teria rido com vontade.

Nesse mesmo dia, à noite, enquanto Sara contava uma das

suas histórias, rodeada por um auditório atento, o mesmo

vulto, pequeno e triste, entrou na aula, transportando um

balde de carvão demasiadamente pesado para as suas forças, e

ajoelhou junto do fogão, para encher a fornalha e varrer as

cinzas. Estava mais asseada do que à tarde, mas mostrava o

mesmo ar assustado. Via-se que tinha medo de escutar ou olhar

em volta de si. Colocou o carvão, bocado a bocado, com as

mãos, para não fazer barulho, e sacudiu cuidadosamente as

tenazes. Mas Sara compreendeu logo que aquilo que se estava

passando na sala interessava vivamente a criadinha e que ela

cumpria a sua obrigação devagar, na esperança de apanhar

algumas palavras, aqui e acolá, da história que estava

contando. Por isso, Sara levantou a voz e esforçou-se por

falar bem distintamente:

"- As sereias nadavam docemente naquela água verde e

clara como o cristal, levando atrás de si uma rede de pesca

tecida com pérolas.” A princesa estava sentada sobre um

rochedo todo branco e olhava para elas.

Era a história maravilhosa de uma princesa amada por um

tritão(nome de divindades marinhas) e que fora viver com ele

nas deslumbrantes cavernas submarinas.

A criadinha, de joelhos diante do fogão, varrera o chão

uma vez, outra vez, e recomeçava a varrê-lo de novo, mas

estava de tal forma absorvida a ouvir, que perdeu a noção da

realidade. E, sem saber como, encontrou-se sentada sobre os

calcanhares com a vassoura imóvel nas mãos. A voz de Sara

transportava-se

às grutas todas iluminadas de um azul muito pálido, com

o chão coberto de areia dourada. Parecia-Lhe que, à sua

volta, se balouçavam exóticas flores e ressoavam longínquos e

estranhos concertos.

A vassoura escapou-se-Lhe dos dedos calejados pelo

trabalho e Lavínia Herbert voltou a cabeça.

- Esta rapariga está a ouvir a história... disse ela.

A pequena apanhou a vassoura e pôs-se em pé. Depois,

pegando no balde do chão, fugiu, como uma lebre assustada.

Sara sentiu dentro de si uma surda irritação e

respondeu:

- Eu bem sabia que ela estava a ouvir. Mas que mal havia

nisso?

Lavínia levantou a cabeça com uma impertinência

elegante, e replicou:

- Não sei se a tua mãe gostaria de te ver contar

histórias às criadas. A minha, sei eu, com certeza, que não

gostava.

- À minha mãe - exclamou Sara, com um olhar estranho. -

Estou certa de que isso lhe seria indiferente. Ela sabe, tão

bem como eu, que as histórias são para ser contadas a toda a

gente.

- Eu julgava - continuou Lavínia, num tom severo - que a

tua mãe tinha morrido.

- Então tu pensas que, pelo fato de ter morrido, ela já

não se preocupa comigo? - respondeu secamente Sara, que sabia

dar à sua voz um tom grave, quando queria.

- A mamã de Sara sabe tudo - murmurou Lottie - e a minha

também. Não falo de Sara, que é a minha mamã no colégio de

Miss Minchin, mas da outra... Lá, onde ela está, há caminhos

reluzentes e campos de lírios, que toda a gente pode colher.

- Sim, senhora! É muito bonito - exclamou

Lavinia, escandalizada. - Então também inventas

histórias acerca do Paraíso?

-Como sabes tu que as minhas histórias não são

verdadeiras? - perguntou Sara. - O que eu te posso afirmar -

continuou ela, com uma veemência que não tinha nada de

angelical - é que tu nunca o conseguirás saber, se não te

tornares mais caridosa do que és agora. Vem comigo, Lottie.

Ao dizer isto, saiu da sala, na esperança de encontrar

ainda a criadinha, mas ela desaparecera sem deixar traço.

-Quem é a pequenina que trata do fogão ?

-perguntou ela, nessa mesma noite, a Mariette. Mariette

deu-lhe muitas explicações. Quem era aquela pequena? Ah! bem

podia Miss Sara fazer essa pergunta a quem quisesse. Era uma

pobre abandonada que haviam admitido como ajudante de

cozinheira, mas, na verdade, ela trabalhava em toda a parte,

menos na cozinha. Era ela quem engraxava o calçado, limpava

os fogões, subia e descia as escadas com grandes baldes de

carvão, lavava o sobrado e os vidros, enfim, era o "pau

mandado" de toda a gente.

Tinha catorze anos, mas estava tão raquítica, que

parecia ter apenas doze. Na verdade, a própria Mariette

confessava ter pena dela. A pobre criança era de tal forma

tímida que, se por acaso alguém se lhe dirigia, os olhos

pareciam querer saltar-lhe das órbitas, tão grande era o medo

que sentia.

- Como se chama? - perguntou Sara que, sentada junto da

mesa, com o queixo apoiado nas mãos, não perdia uma única

palavra de Mariette.

Devia chamar-se Becky. Mariette ouvia todo o Pessoal

dizer, "Vai fazer isto, vem cá, Becky, mais de cem vezes ao

dia.

Sara ficou muito tempo a olhar para o lume e a pensar em

Becky, mesmo depois de a criada se ter retirado, e inventou

logo uma história, cuja heroína desgraçada era ela. Parecia-

lhe que a pobrezinha nunca

conseguira matar inteiramente a fome. Desejava

ardentemente tornar a encontrá-la. Depois disso avistou-

a várias vezes, mas Becky mostrava-se sempre tão assustada e

desejosa de não ser vista, que era verdadeiramente impossível

falar-lhe.

Mas, algumas semanas mais tarde, numa outra

tarde igualmente brumosa, Sara, ao entrar na sua

sala particular, encontrou-se em frente de um quadro

comovedor. Na sua poltrona favorita, junto do lume

que brilhava, Becky, com o nariz mascarrado, o

avental sujo, a touca ao lado, caída sobre uma orelha, e

um grande balde vazio a seu lado, dormia profundamente,

vencida pela fadiga, que ultrapassara

os limites de resistência das suas forças infantis.

Tinham-na mandado preparar os quartos para

a noite. Eram muitos, e ela andara o dia todo de um

lado para outro, sem parar. Deixara para o fim os

aposentos de Sara, tão diferentes dos outros quartos

simples e nus, onde havia apenas o estritamente

necessário, considerado suficiente para as alunas

vulgares.

Aos olhos da pobre criada, a sala de Sara era

um salão luxuoso, quando, na realidade, não era

mais do que uma divisão clara e alegre.

Mas havia ali gravuras, livros, objetos curiosos

trazidos da Índia e, além disso, um sofá e uma cadeira

estofada. Havia também um bom lume, os

cobres da chaminé a reluzir e, no meio de tudo isto,

sentada numa cadeira proporcionada ao seu tamanho, Emily,

como se fosse a deusa daquele lugar.

Becky costumava guardar o quarto de Sara para

o fim do seu dia de trabalho, porque a vista de todas

aquelas coisas tão bonitas repousava-a, e também

porque esperava sempre poder sentar-se, durante

alguns minutos, na bela poltrona, olhar para tudo o

que a rodeava e pensar no maravilhoso destino daquela

menina a quem tudo aquilo pertencia e que

pelos dias de geada, passava embrulhada em soberbos

casacos, que as pobres deserdadas da sorte, como ela,

procuravam, ao menos, ver de longe, através

das grades da cave.

No referido dia, as suas pobres pernas fatigadas haviam

experimentado um alívio tão grande, quando se sentara, que

uma sensação de bem-estar a invadira inteiramente;

entorpecida pelo reconfortante calor do fogão, com os olhos

fixos nas brasas avermelhadas, e um vago sorriso nos lábios,

a cabeça inclinara-se-lhe pouco a pouco, sem ela própria dar

por isso, as pálpebras foram-se- lhe cerrando e, no fim,

adormecera.

Não havia ainda dez minutos que tinha adormecido, quando

Sara entrou. O seu sono era tão profundo como o da "Bela

Adormecida no Bosque! simplesmente, a pobre Becky estava

longe de se parecer com a princesa do conto, pobre, feia,

cansada como estava!

Ao lado dela, Sara parecia uma criatura vinda de um

mundo diferente.

Regressava de uma lição de dança e, embora houvesse essa

lição todas as semanas, o dia em que vinha o professor de

baile era, para todas as alunas, um dia de contentamento.

Exibiam-se, nessa ocasião, os vestidos mais bonitos, e

como Sara dançava invulgarmente bem, dispensavam-lhe especial

atenção, e Mariette recebera ordem de a vestir com a máxima

elegância possível.

Naquele dia trazia um vestido cor-de-rosa; Mariette

comprara botões de rosas naturais e fizera uma coroa que

entrelaçara nos seus cabelos negros e encaracolados.

Sara acabava de aprender uma dança encantadora, no

decorrer da qual parecia uma grande borboleta a esvoaçar pela

sala e, por isso, trazia o rosto

afogueado de animação e prazer.

Entrava no aposento, esboçando ainda alguns

passos de dança, quando avistou Becky a dormir como um

justo, com a touca tombada sobre a orelha...

- Oh! - exclamou Sara. - Pobre pequena !

Não teve um minuto, sequer, de irritação, ao ver a sua

cómoda poltrona ocupada por aquela pessoa enfarruscada. Pelo

contrário, estava encantada por encontrar a heroína da

história que inventara e por ter, finalmente, ocasião de Lhe

falar.

Aproximou-se docemente e contemplou-a. Becky ressonava

levemente.

"Gostava que ela acordasse sòzinha - pensava Sara. -

Contraria-me ter de a acordar; mas, se por acaso Miss Minchin

a surpreende aqui, fica furiosa. Vou esperar um momentinho. "

Sentou-se na borda da mesa, balouçando as pernas, tão

esbeltas nas suas meias de seda cor-de-rosa, e perguntou a si

própria o que devia fazer. Miss Amélia podia, muito bem,

entrar de um momento para o outro, e Becky seria severamente

repreendida.

"Mas ela está tão fatigada! - -pensava Sara.

- Tão terrivelmente fatigada!"Um bocado de carvão que

caiu da fornalha, veio pôr fim à perplexidade de Sara. Becky

estremeceu e abriu os olhos com um suspiro de pavor. Não dera

por ter adormecido; havia apenas alguns instantes que estava

ali - pensava... e eis que, de repente, se encontrava,

confundida, na presença daquela maravilhosa menina, que

parecia uma fada cor-de-rosa, e olhava para ela com

interesse, lá do alto da mesa onde se empoleirara.

Pôs-se de pé, num pulo, e esforçou-se por colocar a

touca direita, na cabeça. As mãos tremiam- lhe. O que ela

fizera! Deixar-se adormecer descaradamente na poltrona de uma

das meninas do colégio! Iam pô-la na rua, sem Lhe pagar a

soldada! E a pobre rapariga começou a soluçar.

- Oh miss, miss, Peço-lhe perdão - balbuciava ela -

Perdoe, miss!

Sara saltou para o chão e veio até ao pé dela, dizendo-

lhe, tão gentilmente como se falasse a uma das suas

condiscípulas:

- Não tenhas medo. Isto não tem importância.

- Eu não fazia tenção, juro, miss - protestava Becky. -

A culpa foi do calor do fogão e, também, porque eu estava

muito cansada... Não foi por atrevimento!

Sara sorriu, amigàvelmente, e pôs a mão sobre o ombro da

criadita.

-Como não querias tu dormir se estavas tão fatigada? -

disse ela. - Tu ainda não estás bem acordada!

A pobre Becky devorava Sara com os olhos. Nunca ninguém

lhe falara com tanta doçura. Estava habituada a ouvir ralhar,

a ser mandada e até, muitas vezes, a receber pontapés. E,

afinal, aquela menina, linda como os anjos, vestida de cor-

de-rosa, dizia-Lhe que ela também tinha o direito de estar

fatigada e, mesmo, de se deixar adormecer! A mão, tão

delicada de Sara, pousava sobre o ombro de Becky, o que Lhe

parecia verdadeiramente incrível.

-A menina não está zangada? Não vai contar à senhora?

-Não direi nada, podes estar tranqüila! O coração de

Sara sofria, ao verificar o terror que se estampara na cara

mascarrada da criadita.

Teve, mesmo, uma sensação de desgosto intolerável.

Então, uma idéia, como só ela era capaz de ter, atravessou-

lhe o espírito. E acariciou as faces de Becky.

- Na realidade; nós somos semelhantes! - exclamou Sara.

-Foi só por um puro acidente que tu não nasceste no meu lugar

e eu no teu!

Becky não compreendia. Estas considerações eram

demasiado elevadas para o seu espírito; e depois

para ela, a palavra "acidente" significava, apenas, uma

terrível calamidade, tal como: ser atropelada por uma

carruagem, cair de uma escada e ser levada ao hospital.

- Um acidente, miss - murmurou ela, respeitosamente. -

Acha?

- Acho, sim - respondeu Sara, que a fitava com olhos

sonhadores.

Depois, vendo que Becky não a compreendia, disse-Lhe

noutro tom:

- Já acabaste o teu trabalho? Podes ficar aqui mais um

bocadinho?

Becky sentiu-se, mais uma vez, sufocada, e perguntou:

- Eu Aqui?

Sara foi abrir a porta e espreitou para o corredor,

deixando passar uns momentos para certificar-se se via ou

ouvia qualquer coisa.

- Não anda por aqui ninguém - explicou ela. -Tu já

arranjaste todos os quartos, talvez possas

demorar-te um pouco. Tenho a certeza de que havias de

gostar de comer um bolo...

Os minutos que se seguiram foram, para Becky, como um

sonho. Sara abriu um baú e deu-lhe uma grossa fatia de bolo,

regalando-se de ver a pobre criada devorá-lo com avidez.

Falou com ela, fez-lhe perguntas, e tudo isto com um ar tão

alegre, que o pavor de Becky começou a acalmar-se a ponto

de a pequenina se atrever - ela, a miserável Becky - a

fazer perguntas a Sara.

- Esse vestido... - começou ela, olhando o vestido cor-

de-rosa com uma espécie de inveja - é o mais bonito que a

menina tem?

- É um dos vestidos que eu costumo vestir para dançar -

respondeu Sara. - Gosto muito dele. E tu?

Becky conservou-se, durante alguns instantes, muda de

admiração. Depois, respondeu em voz

baixa, com respeito:

- Uma vez, vi uma princesa. Eu estava na rua tal,

com muita gente que tinha ido ver as pessoas ricas

entrarem na Ópera. Havia uma senhora para quem

todos olhavam mais do que para os outros. E diziam: “É a

princesa”. Era uma menina crescida toda de cor-de-rosa:

casaco, vestido, flores, tudo!

Quando vi a miss sentada na mesa, julguei que era

a princesa, porque é muito parecida com ela.

- Tenho pensado muitas vezes - disse Sara com a sua voz

musical - que gostava imenso de ser

princesa. Queria saber o que elas pensam, o que elas

sentem. Agora, vou imaginar que sou uma princesa.

Becky continuava a não compreender as palavras de Sara,

mas olhava para ela com os olhos fixos numa espécie de

adoração.

Sara saiu do seu sonho e fez uma nova pergunta a Becky:

-Estiveste a ouvir-me, naquela noite, lá em

baixo, na aula?

- Estive - confessou a pequena, novamente

dominada por um vago terror. - Eu bem sei que não

devia, mas era tão bonito! Não fui capaz de me

dominar...

- Até gostei que ouvisses - declarou Sara. -

Quando contamos histórias ficamos sempre contentes se

percebemos que gostam de nos ouvir. Querias

saber a continuação?

Becky sentiu, outra vez, que Lhe faltava a respiração, e

exclamou:

- Eu? Tal qual como se fosse uma aluna do

colégio? A linda história do príncipe e das sereias

pequeninas que nadavam, a rir, com estrelas nos

cabelos!...

Sara fez um sinal afirmativo, com a cabeça.

Depois disse:

- Hoje, receio bem que já não tenhas tempo.

Mas diz-me a que horas vens arrumar o meu quarto que eu

procurarei estar aqui e contar-te-ei um bocadinho

todos os dias, até que a história acabe. É uma história

muito comprida e muito bonita. E eu acrescento-lhe sempre

qualquer coisa.

Ai - suspirou Becky, com convicção. - Bem me importa, a

mim, que o balde de carvão seja pesado ou que a cozinheira me

atormente, quando eu puder pensar na história durante todo o

dia!

- Podes muito bem fazer isso. Contar-te-ei a história do

princípio ao fim - disse Sara.

Quando Becky voltou para a cozinha, não era a mesma que

havia subido a escada, ajoujada sob o peso do carvão. Tinha

uma fatia de bolo, na algibeira, vinha quentinha e refeita

das canseiras do dia; mas não foram apenas o calor do lume e

o bolo que lhe haviam dado forças: fora, também, a presença

de Sara.

Depois de ela ter saído, Sara voltou para o seu lugar

favorito, no canto da mesa. Pousou os pés numa cadeira, pôs

os cotovelos nos joelhos e o queixo

encostado às mãos.

"Se eu fosse princesa...” uma verdadeira princesa -

pensava ela - poderia ser muito generosa

para os pobres; mas, mesmo sendo princesa apenas na

minha imaginação, posso inventar pequenas coisas que lhes

dêem prazer, como fiz há bocado com

Becky. Ela sentia-se tão feliz como se eu lhe tivesse

dado uma grande esmola. Vou passar a imaginar também que,

fazer coisas pequenas, com intenção de tornar os pobres

felizes, é ser generosa. Hoje fui muito generosa. “

AS MINAS DE DIAMANTES

Pouco tempo depois do que acabamos de contar, Sara

recebeu notícias que excitaram não somente a sua curiosidade

como a de todo o colégio, tornando-se o assunto de todas as

conversas durante muitas semanas.

O capitão Crewe contava, numa das suas cartas, uma

história interessante:

Acabava de receber a visita inesperada de um dos seus

antigos condiscípulos, que possuíam na Índia grandes

terrenos, nos quais haviam sido descobertos diamantes. O

proprietário desses terrenos fizera a viagem para organizar a

exploração das preciosas minas.

Se tudo corresse bem, como era natural, estavam na posse

de uma riqueza tão considerável, que só pensar nela lhe

causava vertigens. E como tinha uma grande estima pelo

capitão Crewe, seu amigo de infância, queria proporcionar-lhe

maneira de aumentar também a sua fortuna, tornando-o seu

associado.

Foi isto, pelo menos, o que Sara compreendeu, ao ler a

carta do pai.

Evidentemente, tanto ela como as condiscípulas teriam

mostrado muito menos interesse se se tratasse de qualquer

outro objeto de negócios, por mais vantajoso que fosse. Mas,

isto de "minas de diamantes" parecia-se tanto com as "Mil e

Uma Noites" que ninguém podia ficar indiferente.

Sara, encantada, fez logo a descrição dos túneis em

labirinto, que desciam ao centro da terra, e de cavernas com

as paredes, o teto e o solo coberto de gemas refulgentes,

onde trabalhavam indígenas de pele bronzeada, munidos de

pesadas picaretas. Hermengarda e Lottie escutavam-na,

deslumbradas, e exigiam que a descrição recomeçasse toda a

noite.

Tudo isto irritava prodigiosamente Lavínia, que logo

começou a dizer a Jessie, em segredo, que não acreditava nas

tais minas de diamantes.

- A minha mãe tem um anel com um diamante, que custou

muito caro. E, no entanto, esse diamante não é muito grande.

Já vês que, se essas minas existissem, os donos seriam tão

ricos, que se tornariam ridículos!

- É talvez a sorte que espera Sara... respondeu a outra,

com um riso trocista.

-Ela não precisa de ser mais rica para ser

ridícula!observou Lavínia em tom de desprezo.

- Tu não a podes ver. - disse Jessie.

- Não é isso - replicou Lavínia com azedume - mas não

creio em minas cheias de diamantes.

-A verdade é que a alguma parte os hão-de ir buscar -

respondeu Jessie e perguntou - Sabes o que Gertrudes me

contou?

- Não, nem me interessa, se, por acaso, é qualquer coisa

a propósito dessa celebérrima Sara!

-Pois é, justamente, acerca dela! Uma das suas novas

manias é imaginar que é princesa: Não pensa noutra coisa,

mesmo durante as aulas; diz que aquela idéia a ajuda a

estudar melhor as lições. E quis persuadir Hermengarda a

fazer o mesmo; mas a Hermengarda acha que é gorda de mais

para ser princesa...

- Hermengarda é muito gorda, e Sara é muito magra... -

disse Lavínia.

Jessie riu novamente, com malícia, e continuou:

- Sara diz que, para ser princesa, não tem importância

ser bonita ou feia, rica ou pobre. O que importa são os

nossos pensamentos e as nossas ações.

-Naturalmente, ela imagina que poderia ser princesa

mesmo que andasse a pedir esmola pelas

ruas - respondeu Lavínia. - Nesse caso vamos tratá-la

por Vossa Alteza.

As aulas tinham terminado, naquele dia, e as duas amigas

estavam sentadas na sala de estudo, em frente do fogão,

gozando a hora mais agradável para todas as alunas - aquela

em que dão por findos os seus trabalhos.

Miss Minchin e Miss Amélia preparavam-se para tomar chá

na sua salinha particular. Era o momento em que as alunas

podiam conversar à vontade e fazer confidências,

principalmente quando as mais pequenas se conservavam

tranqüilas, em vez de questionarem e correrem ruidosamente de

um lado para o outro, como costumavam fazer. Quando o barulho

era maior as mais velhas intervinham, ralhavam, e davam- lhes

o seu sopapo; porque estavam incumbidas de mantê-las na ordem

e, se não o fizessem, miss Minchin e miss Amélia não

tardariam a aparecer encurtando assim aquela deliciosa hora

de liberdade.

Lavinia falava ainda quando a porta se abriu e Sara

entrou com Lottie, que se habituara a segui-la

por toda a parte, como um cãozinho.

- Aí está èla, com essa insuportável garota - murmurou

Lavínia. - Visto que gosta tanto dela, porque a não guarda no

seu quarto? Não tarda cinco minutos que a petiza não comece a

gritar por qualquer coisa...

Lottie tivera, de repente, o desejo de ir brincar para a

sala de estudo, e pedira a sua "mãe adotiva" que a

acompanhasse. Correu a juntar-se a um grupo de petizas da sua

idade, que brincava a um canto, e Sara acomodou-se num banco

que estava no vão da janela, disposta a ler um livro que

trouxera. Era uma história da Revolução Francesa, e não

tardou que a descrição horrível dos prisioneiros da Bastilha

- esses homens tanto tempo metidos em masmorras que, ao serem

libertados, pareciam fantasmas, com a barba e o cabelo a

esconder-lhes inteiramente o rosto - a absorvesse

inteiramente.

A imaginação de Sara levou- a tão ràpidamente para longe

do Colégio Minchin, que Lhe foi deveras desagradável ser

chamada à realidade por um grito agudo de Lottie.

Nada era mais difícil para ela do que dominar a sua

irritação, quando alguém a interrompia durante as horas da

leitura. Todos aqueles que gostam de ler, decerto compreendem

isto.

-É tal qual como se recebesse uma bofetada e sentisse um

desejo invencível de dar outra em paga... - tinha Sara dito,

um dia, a Hermengarda.

-É preciso que eu me domine ràpidamente, para não dizer

palavras desagradáveis.

Teve, na realidade, que fazer um grande e rápido esforço

sobre si própria, quando, naquele dia, fechou o livro e

saltou para o chão.

Lottie divertia-se a escorregar sobre o pavimento

encerado da sala e, depois de ter enervado Lavínia e Jessie

com o barulho que fazia, acabara por cair, magoando-se num

joelho. Agora, gritava e esperneava no meio de um grupo de

amigas e adversárias acarinhadas por umas e repreendida por

outras.

- Cala-te, chorona! Cala-te imediatamente!- ordenou,

Lavinia.

- Eu não sou chorona - soluçava Lottie. Sara! Sara!

- Se ela não se cala, Miss Minchin ouve-a, com certeza!

- exclamou Jessie. - Vamos, Cala-te, Lottiezinha, se queres

um "penny"(moeda inglesa) novinho em folha.

- Não quero o teu "penny", - replicou Lottie. E como, ao

olhar para o joelho, visse uma gota de sangue, recomeçou a

chorar com toda a força.

Sara precipitou-se na sala e ajoelhou ao pé da

pequenina, passando-lhe os braços em volta do pescoço.

- Vamos, Lottie, vamos - disse ela. - Que prometeste à

tua Sara?

- Chamaram-me chorona - gritava Lottie, lavada em

lágrimas.

Sara acariciava-a, mas falava-lhe num tom sério, que

Lottie conhecia muito bem:

- E é verdade, minha querida Lottie, se continuares. Que

me prometeste tu? Que foi?

Lottie sabia perfeitamente o que tinha prometido. Por

isso, preferia mudar de assunto.

- Eu não tenho mãezinha - começou ela. Não tenho

mãezinha nenhuma!

- Tens, sim. Tens uma mãezinha - disse Sara,

alegremente. - Esqueces-te de que Sara é tua mamã? Já não

queres que a Sara seja tua mamã?

Lottie chegou-se muito para ela, a murmurar baixinho,

palavras que ninguém entendia, com ar de consolação.

-Vem sentar-te no banco da janela, ao pé de mim -

continuou Sara - e contar-te-ei uma história.

- Contas - disse Lottie, com voz de mimo. Contas-me a

história das minas de diamantes?

- As minas de diamantes - interrompeu Lavínia. -

Insuportável piegas! A minha vontade era dar-lhe uma

bofetada!

Sara ergueu-se, de um salto. É preciso não

esquecer que ela fora bruscamente arrancada à leitura da

história impressionante da Bastilha, e que lhe

fora necessária uma forte dose de força de vontade

para vir tomar o seu lugar junto da sua "filha adotiva".

Sara não era um anjo e não tinha a menor

simpatia por Lavínia.

- Pois bem - exclamou ela com veemência. O meu

desejo era dar-te uma bofetada, a ti. Mas

não o farei - continuou dominando-se. - Ou antes,

gostaria de te bater, mas não o quero fazer. Nós

não somos duas garotas da rua e já temos idade para

nos sabermos conduzir.

A ocasião era ótima, e Lavínia não a quis perder. Por

isso, respondeu:

- Ora essa, Alteza! Nós somos princesas, creio eu. Pelo

menos, uma de nós duas. Que glória para Miss Minchin contar

uma princesa entre as suas alunas!

Sara deu um passo para Lavínia, como se quisesse

esbofeteá-la, e talvez esse pensamento lhe atravessasse o

cérebro. A sua inocente mania de imaginar os mais

extraordinários sonhos, era a sua felicidade. Nunca falara

nisso às companheiras de quem

não gostava.

Aquela recente idéia de se imaginar princesa era um

ponto delicado, no qual ela não queria que

ninguém tocasse. Guardava ciosamente o seu segredo, e

eis que Lavínia troçava dele diante de todo o colégio... Sara

sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.

Mas conseguiu vencer-se. Quando se é princesa, não

é próprio deixar-se dominar pela cólera. A sua mão

tombou e ela ficou imóvel durante alguns segundos.

Depois, começou a falar numa voz novamente

firme e segura; levantou um pouco a cabeça e todas as

outras pequenas escutaram:

- É verdade: às vezes, imagino que sou uma princesa, a

fim de chegar a conduzir-me como se o fosse realmente.

Lavínia não sabia que dizer. Muitas vezes já verificara

que Lhe faltavam os argumentos quando discutia com Sara. A

verdadeira razão disto era as alunas tomarem sempre uma

atitude de aprovação, quando a outra falava.

Naquela tarde, Lavínia viu todas olharem para Sara com

um interesse enorme. Gostavam de histórias de princesas e

esperavam que ela lhes contasse uma; como se obedecessem

todas ao mesmo desejo, aproximaram-se dela. Por isso, o

último comentário ne Lavinia não teve o melhor êxito...

- Espero - disse ela - que não te esqueças de nós quando

subires ao trono...

- Com certeza que não - respondeu Sara. E sem

acrescentar mais nada, ficou imóvel, olhando fixamente para

Lavínia, até que a outra resolveu retirar-se, pelo braço de

Jessie.

A partir desse dia, as alunas que invejavam Sara,

começaram a chamar-lhe "Princesa", quando queriam metê-la a

ridículo; ao passo que as outras, que a estimavam, lhe davam

esse tratamento como prova de afeição.

As admiradoras de Sara estavam encantadas com o

esplendor daquele título e com a originalidade que lhe dera

causa; até Miss Minchin, que fora posta ao corrente do que se

passava, contava aquela anedota às visitas que recebia, como

se estivesse persuadida de que tal fato dava um certo brilho

aristocrático ao seu colégio.

Quanto a Becky, achava este título de princesa o mais

natural possível. As suas relações com Sara, iniciadas

naquele dia de chuva e frio, em que Becky se deixara

adormecer na poltrona do seu quarto, tinham progredido muito.

Diga-se, desde já, que Miss Minchin e Miss Amélia não estavam

perfeitamente

informadas disso... Tinham notado que Sara se mostrava

extremamente bondosa para com a criadita mas ignoravam

totalmente os minutos encantadores

e, ao mesmo tempo, arriscados, em que Becky, depois

de ter preparado os quartos com surpreendente rapidez,

chegava à salinha de Sara e punha no chão com um suspiro de

alivio, o balde de carvão. Então

Sara contava-Lhe um capítulo de alguma história

maravilhosa; certos produtos alimentares, dos mais

apetitosos, saíam do seu baú, e Becky fazia-lhes

honra... ou metia-os na algibeira, para se regalar

com eles, mais tarde, na solidão das águas-furtadas

onde dormia.

- Mas tenho que ter cautela, quando como...

dissera ela, um dia-, porque, se deixo cair migalhas, as

ratazanas vêm apanhá-las...

- As ratazanas!- exclamou Sara, horrorizada.

- No teu quarto há ratazanas?

- Um regimento delas... - respondeu Becky, com a maior

calma. - Há sempre ratazanas e ratos

nos sótãos. A gente acostuma-se depressa ao barulho que

eles fazem, a correr de um lado para o

outro. Eu já estou de tal forma habituada, que só

dou por isso quando passam por cima do meu travesseiro.

- Ui!- exclamou Sara.

- Nós habituamo-nos a tudo... - replicou Becky.

- Se a menina tivesse nascido como eu, sucedia-lhe

o mesmo. Gosto mais dos ratos que das pessoas

fingidas...

-Também eu - concordou Sara - por que

julgo que os ratos sempre se podem apanhar, enquanto que

uma pessoa hipócrita não me parece

fácil...

Havia dias em que Becky não se atrevia a ficar

mais do que uns breves minutos naquele lindo quarto

tão quentinho; nesses dias as duas amigas trocavam

apenas algumas palavras e metiam ràpidamente um pacotinho na

algibeira, à moda antiga, que Becky usava debaixo do vestido,

presa à cintura por um nastro(fita estreita de algodão ou de

linho) vermelho.

Sara descobrira, assim, mais um interesse na sua

existência: procurar e descobrir coisas boas, alimentares e

saborosas, que pudessem meter-se num pequeno pacote. Sempre

que saía a pé ou de carruagem, inspecionava, com o olhar,

todas as montras de restaurantes e pastelarias. No dia em que

teve a idéia de trazer dois ou três pastéis de carne, sentiu

que fizera uma verdadeira descoberta. Os olhos de Becky

brilharam, à vista dos pastéis.

- Oh, miss - murmurou ela. - Isto é bom e alimenta. O

que alimenta é melhor. Os bolos são deliciosos, isso é

verdade, mas derretem-se na boca, não se sentem passar... A

menina compreende? Ao passo que isto, enche o estômago.

- Meu Deus - disse Sara, lentamente. - Eu penso que ter

o estômago cheio de mais não é lá muito bom, mas acredito que

te dê satisfação.

Becky ficou, efetivamente, contentíssima com os pastéis

de carne e bem assim com os sanduíches de fiambre e os

pãezinhos com mortadela que Sara lhe passara a comprar,

regularmente. Pouco a pouco, a criadita começou a sentir-se

menos fatigada e a não ter fome, e o balde do carvão parecia-

lhe menos pesado.

De resto, o balde podia pesar muito ou pouco; a

cozinheira podia estar de péssimo humor; o trabalho podia ser

penoso e excessivo; a idéia dos momentos que passaria junto

de Sara, na sua confortável salinha, dava coragem a Becky

para suportar tudo.

Na realidade, a presença de Sara, mesmo sem as gulodices

que costumava dar-lhe, bastava para reconfortar a pobre

pequena. Quando tinham apenas o tempo indispensável para

trocar algumas palavras eram sempre palavras carinhosas, que

aqueciam o coração; e quando era possível Becky demorar- se

mais, havia sempre uma história, ou uma conversa divertida,

que ela recordava depois, ao serão, e revivia na memória,

quando estava deitada, lá em cima, nas águas-furtadas. Sara,

que obedecia apenas às suas tendências, porque era

naturalmente boa e generosa, estava longe de supor o que

representava para Becky o papel de fada benéfica que

desempenhava junto da pobrezita. Quando se é dotada de uma

alma terna e compadecida, as mãos abrem-se, por si, e o

coração também. E se algumas vezes as mãos estão vazias, o

coração, se é inesgotável e pode dar sempre coisas belas,

boas e doces: consolações, conforto, alegria - e a alegria é,

muitas vezes, o mais eficaz

de todos os dons.

Becky nunca, na sua breve e miserável existência,

soubera o que era rir. Foi Sara quem a ensinou, e ria também

com ela. E, sem que o suspeitasse, uma gargalhada espontânea

fazia tão bem a Becky como um bolo ou um pastel de carne.

Algum tempo antes de Sara completar onze anos,

recebeu ela uma carta do pai, que não parecia

escrita com a boa disposição habitual. Dizia que estava

fatigado e que se sentia esmagado pelo trabalho e pelas

preocupações que lhe causavam as

famosas e grandes minas de diamantes.

"Vê tu, minha Sarinha - dizia ele -, o teu papá não é,

positivamente, um homem de negócios; os planos, os relatórios

e o resto dão-lhe cabo da cabeça.” O teu papá não percebe

nada disto e tudo Lhe parece fantástico. Tenho febre e passo

uma parte da noite às voltas, e a outra parte a debater-me

com pesadelos.

"Se a "minha senhorazinha" aqui estivesse, tenho a

certeza de que ela me daria, com o seu ar grave, um bom

conselho. Não é verdade, minha senhora?"

Uma das brincadeiras favoritas do capitão Crewe era

chamar "senhorazinha" à filha, por causa do seu ar sério, que

lhe dava o aspecto de uma criança de outro tempo.

Nessa carta contava-lhe também o pai tudo o que

preparava para festejar o aniversário do nascimento da sua

querida menina. Entre outras coisas encomendara, em Paris,

uma nova boneca, cujo enxoval seria uma verdadeira maravilha.

A resposta de Sara a esta carta, em que o pai lhe

perguntava se a boneca seria bem recebida, era uma obra-prima

de diplomacia.

"Começo a estar muito crescida “- escreveu ela

- e não terei, nunca mais, outra boneca. Esta será a

última, e esta idéia é muito grave. Se eu soubesse fazer

versos, estou certa de que um poema, sobre "a última boneca",

seria lindo. Mas não sou capaz de compor poesia! experimentei

e ri com vontade! O que escrevi não se parecia absolutamente

nada com Coleridge ou Shakespeare... Ninguém tomará, nunca, o

lugar de Emily, mas serei muito amiga da "nova boneca" e

tenho a certeza de que todo o colégio rejubilará com ela. As

alunas gostam todas de bonecas, embora as "grandes" (as que

vão quase nos quinze anos) afirmem que já não têm idade para

isso. “

O capitão Crewe tinha uma terrível dor de cabeça quando

leu esta carta, lá longe, na sua casa de campo. Diante dele,

sobre a mesa, amontoavam-se cartas e papéis, que o enchiam de

receio e ansiedade; apesar disso, riu como há muito tempo não

ria.

"Oh - pensava ele - à medida que vai crescendo, a minha

Sara vai-se tornando ainda mais espirituosa. Permita Deus que

este negócio se faça e me deixe livre, para ir beijá-la!

Quanto daria eu, meu Deus, para ter os seus bracinhos em

volta do meu pescoço, neste momento!"

O aniversário de Sara devia ser celebrado com

uma grande festa no colégio. A sala de estudo seria

suntuosamente decorada. Ali se abririam, com

grande solenidade, as caixas que continham os presentes.

No salão de miss Minchin, servir-se-ia

um lanche magnífico.

Quando o grande dia chegou, todas as alunas

estavam numa agitação indescritível. A manhã passou-se

sem elas próprias saberem como, tantos eram

os preparativos.

Ornamentaram a sala de estudo com festões de

azevinho, tiraram as estantes e os bancos vermelhos

foram dispostos em volta da sala, encostados

à parede, e dissimulados com cobertas vermelhas.

Quando Sara entrou na sua sala particular

encontrou em cima da mesa um estranho pacote; mal

feito, embrulhado num papel cinzento, grosseiro. Compreendeu

que se tratava de um presente

e adivinhou imediatamente donde vinha. Abriu o

embrulho com ternura: continha uma pregadeira

para alfinetes, feita de flanela vermelha, já um pouco

desbotada, e sobre a almofada, desenhada por alfinnetes

de cabeça preta, havia estas palavras: "Um

aniversário feliz"

- Oh!- exclamou Sara, comovida. - Que trabalho que ela

teve! Estou tão contente... que tenho quase, vontade de

chorar.

De repente, a sua fisionomia teve uma expressão de

profunda surpresa. Debaixo da pregadeira

havia um cartão de visita com um nome impresso

em caracteres bem legíveis: "Miss Amélia Minchin".

Sara voltava e tornava a voltar o cartão, entre

os dedos nervosos.

"Miss Amélia - pensava ela. - Que quer isto

dizer?"

Mas, naquele instante, ouviu a porta abrir-se

docemente e viu a cabeça de Becky a espreitar: No

seu rosto havia um sorriso bom, feliz, e ela entrou

arrastando os pés e torcendo nervosamente as mãos.

- Gostou, Miss Sara - perguntou ela.

- Gostei muito - respondeu Sára. - Querida Becky, que

fez sozinha esta linda pregadeira!

Becky fungou, alegremente; os seus olhos estavam

brilhantes de felicidade.

- Só tem a flanela, e a flanela já não é nova; mas eu

queria oferecer-lhe qualquer coisa e lá consegui fazer isto,

às escondidas, de noite. Eu bem sabia que seria difícil a

menina imaginar que era uma pregadeira de cetim cor-de-rosa,

com alfinetes de diamantes... Eu própria quis acreditar que

era assim, enquanto a ia fazendo. O cartão de visita...

- acrescentou ela, com hesitação - creio que não fiz mal

em tirá-lo do cesto dos papéis. Acha... Miss Amélia tinha-o

deitado fora. Eu não tenho cartões com o meu nome e não é

próprio oferecer um presente sem lhe juntar um cartão. Foi

por isso que pus o de Miss Amélia.

Sara saltou-Lhe ao pescoço e beijou-a nas duas faces.

Sem saber bem por que, sentia a garganta apertada.

- Oh Becky - exclamou, com um riso tremulo. - Gosto

muito de ti, sabes? Gosto muito de ti!

- Oh Miss Sara - murmurou Becky. - Mil vezes obrigada,

mas isto não tem importância: a flanela... a flanela até já

está um pouco usada...

AINDA A MINA DE DIAMANTES

Foi com toda a solenidade que Sara entrou na aula

ornamentada com azevinho.

Miss Minchin, ostentando o seu melhor vestido de seda,

conduziu-a pela mão. Seguiu-se um criado com uma caixa que

continha a última boneca ; uma criada de quarto vinha logo

após, carregada com uma segunda caixa, e Becky, com um

avental lavado e uma touca nova, fechava a marcha com um

terceiro pacote.

Sara teria preferido mil vezes entrar com simplicidade,

mas Miss Minchin chamara-a a sua sala particular e

comunicara-lhe o seu desejo.

- É um grande dia - declarou ela - e deve ser celebrado

como convém.

De maneira que Sara fez a sua aparição à frente de uma

espécie de cortejo, sentindo-se confusa ao ver as alunas mais

crescidas tocarem nos braços umas das outras, e as menores

agitarem-se alegremente nas cadeiras.

- Silêncio, meninas - disse Miss Minchin, porque se

levantara um murmúrio geral. - James, ponha a outra caixa

numa cadeira. Becky!

Este último nome foi pronunciado de uma forma breve e

severa, porque Becky, contagiada pela agitação geral,

esquecera-se completamente do que fazia, e sorria para

Lottie, que saltitava de alegria, impaciente.

A dura voz de Miss Minchin surpreendeu-a a tal ponto

que, por pouco, não deixou cair o embrulho. Para pedir

desculpa, fez uma pequena reverência, tão desajeitada, que

Lavínia e Jessie começaram a rir baixinho.

- Tu não estás aqui para olhar para estas meninas -

continuou Miss Minchin. - Que esperas? Vamos, põe aí a caixa!

Becky obedeceu com uma precipitação angustiosa, e

dirigiu-se apressadamente para a porta.

- Podem retirar-se - ordenou Miss Minchin aos criados,

com um gesto breve.

Becky desviou-se respeitosamente, para que os outros

passassem. Mas não pôde deixar de lançar um olhar de pena

para a caixa que estava em cima da mesa. Via-se um bocado de

cetim entre as dobras do papel de seda.

- Miss Minchin - disse, sùbitamente, Sara. Becky não

pode ficar?

Era preciso ter audácia para fazer semelhante pergunta

a Miss Minchin.

A diretora estremeceu. Depois, pôs a luneta e olhou

para a sua "brilhante aluna" com ar de reprovação.

- Becky - exclamou ela. - Oh! Minha querida Sara

A pequena deu um passo na direção de Miss Minchin, e

disse:

-Desejo que fique, porque também há de gostar de ver os

meus presentes. Ela também é criança.

Miss Minchin estava sufocada. Os seus olhos iam de Sara

para a criadita e desta para Sara.

- Minha querida menina - continuou ela.

Becky é ajudante de cozinheira. As ajudantes de

cozinheira... claro... não são Crianças.

Evidentemente que nunca lhe tinha ocorrido semelhante

idéia.

As ajudantes de cozinheira eram, para ela, máquinas de

lavar louça e de deitar carvão na fornalha, nada mais.

- Mas Becky é uma criança - afirmou Sara,

tranquilamente. - Eu sei que isto a divertirá. Tenha a

bondade de permitir que ela fique, em honra do meu

aniversário.

Miss Minchin logo respondeu, com ar muito digno:

- Visto que me faz esse pedido como um favor pessoal,

pode ficar. Rebeca, agradece a miss Sara a sua bondade.

Becky tinha-se concentrado, no limiar da porta torcendo

a ponta do avental, ao mesmo tempo ansiosa e encantada.

Avançou fazendo uma reverência; e, enquanto agradecia,

em frases curtas e hesitantes, os seus olhos trocaram com os

de Sara um longo olhar carinhoso.

- Oh! Mil vezes obrigada, miss! Estou-lhe muito

reconhecida, miss! Eu tinha um grande desejo de ver a boneca,

miss, isso é verdade! Muito obrigada, miss! E também muito

obrigada à senhora - disse, com uma reverência assustada; e,

dirigindo-se a miss Minchin, acrescentou - Muito obrigada por

me ter permitido aqui ficar.

Miss Minchin fez, de novo, com a mão, um gesto breve,

desta vez na direção do canto mais próximo da porta.

- Fica ali - ordenou ela. - Não te ponhas muito perto

das meninas.

Becky obedeceu, com o coração a pulsar de alegria. Pouco

lhe importava o lugar que lhe destinavam, desde o momento que

lhe permitiam ficar ali, durante a festa que ia realizar-

se.Nem sequer ficou perturbada quando Miss Minchin, depois de

tossir ruidosamente, retomou a palavra:

- Meninas - anunciou ela. - Tenho uma coisa

para lhes dizer.

- Vai fazer um discurso - murmurou uma das

mais crescidas. -Quem me dera já que ela chegue

ao fim.

Sara sentiu-se pouco à vontade. Visto que era

a sua festa, Miss Mínchin ia, com certeza, falar dela.

E era agora muito desagradável estar ali, de pé numa

aula, a ouvir um discurso em sua honra.

- Todas sabem que a nossa querida Sara faz

hoje onze anos - começou ela.

- Oh, querida Sara - murmurou Lavinia ironicamente.

- Muitas das meninas também já fizeram onze

anos; mas os dias do aniversário de Sara são um

pouco diferentes dos das outras meninas. Quando

ela for crescida herdará uma grande fortuna, que

será seu dever gastar útil e generosamente.

- As minas de diamantes - troçou Jessie em

voz baixa.

Sara não a ouviu; mas, enquanto os seus olhos

verdes não se desfitavam de Miss Minchin, sentia as

faces tornarem-se-lhe vermelhas. Todas as vezes

que Miss Minchin falava de dinheiro, Sara

experimentava por ela um verdadeiro sentimento de aversão; e

toda a gente sabe que detestar as pessoas crescidas é uma

falta de respeito.

- Quando o seu excelente pai, o capitão Crewe,

ma confiou - prosseguiu Miss Minchin - disse-me, em ar

de brincadeira: "Receio que a minha filha

venha a ser, um dia, terrivelmente rica...”. E eu

respondi-Lhe: "Ela receberá, na minha casa, uma

educação, digna da menina mais rica do mundo!”.

Ora, Sara tornou-se a nossa aluna mais brilhante;

a maneira como ela fala francês e dança honra o

colégio. Tem maneiras tão delicadas, que vós mesmas lhe

chamais "Princesa Sara". Oferecendo-vos esta recepção, Sara

dá-vos uma prova de grande amabilidade. Espero que saibais

apreciar a sua generosidade, dizendo alto, todas ao mesmo

tempo: "Obrigada, Sara".

As alunas levantaram-se imediatamente, e, como no dia

longínquo da chegada de miss Crewe ao colégio, disseram todas

a uma:

- Obrigada, Sara!

Lottie saltava e mexia-se sem parar, no seu banquinho.

Sara parecia intimidada: Fez uma reverência graciosa às

condiscípulas e disse:

-Eu é que lhes agradeço o terem vindo à minha festa.

- Muito bem! Muito bem, Sara - aprovou miss Minchin. - É

o que fazem as verdadeiras princesas, quando o seu povo as

aclama. Lavinia (e isto foi dito num tom glacial), parece-me

que a menina fez troça. Se tem ciúmes da sua condiscípula,

podia, ao menos, exprimir os seus sentimentos de uma forma

mais elegante... Agora, minhas filhas, vou deixá-las, para

que se divirtam à sua vontade.

Apenas Miss Minchin saiu da aula, toda a disciplina e

boa compostura, mantidas até então, desapareceram. Os bancos

foram abandonados em tumulto, e todas as alunas, grandes e

pequenas, se precipitaram para os presentes. Sara inclinou-se

sobre uma das caixas, com ar de quem está maravilhada.

- São livros, tenho a certeza! - disse ela. E, levantou-

se um murmúrio de desapontamento, e Hermengarda parecia

consternada.

- Então o teu papá manda-te livros como presente de

aniversário? Nesse caso é tão terrível como o meu. Não os

abras, Sara.

- Eu adoro os livros - respondeu Sara, rindo. Mas a sua

atenção voltou-se para a caixa maior.

Quando de lá tirou a "Última Boneca", foi uma

aparição tão bela, que todas as outras alunas soltaram

gritos de alegria e recuaram, contendo a respiração, para

melhor admirarem aquela maravilha.

- É quase do tamanho da Lottie - murmurou

uma.

Lottie batia as palmas, saltava e ria.

-Tem um vestido de baile e um abafo(agasalho) de

noite forrado de arminho - observou Lavinia.

- Aqui está a mala da roupa - declarou Sara.

- Vamos abri-la para ver o enxoval.

Sentou-se no chão e deu volta à chave. As

outras pequenas comprimiam-se à sua roda, soltando

exclamações, enquanto ela examinava, um a um, os

vários compartimentos da mala, e retirava o seu

conteúdo. Nunca houvera, no colégio, uma excitação

assim.

Sara ia mostrando: golas de renda e meias de

seda; um cofre com um colar e um diadema que

pareciam feitos de brilhantes verdadeiros; um casaco

de lontra e um regalo igual; vestidos de baile, de

passeio, de visitas; chapéus, roupões e leques.

Lavínia e Jessie esqueceram-se de que já eram

muito crescidas para se interessarem por bonecas e

soltavam, como as outras, gritos de entusiasmo, pegando

nos objetos para melhor os examinarem.

- Imaginemos - disse Sara, enquanto punha

um grande chapéu de veludo , sorridente e impassível

proprietária de todas aquelas riquezas , imaginemos que ela

compreende o que nós dizemos e

que está toda contente por se sentir admirada.

- Tu estás sempre disposta a imaginar qualquer

coisa - exclamou Lavínia, com ar superior.

- Bem sei - replicou Sara, serenamente. - Mas

isso distrai-me. Não há nada mais agradável do que

fazer suposições. Tem-se, quase, a impressão de se

ser uma fada. Quando se acredita em qualquer

coisa com todas as nossas forças, é como se fosse

verdade.

-É muito bom sonhar assim, quando se tem tudo o que tu

tens - disse ainda Lavinia. - Mas poderias, por acaso, fazer

o mesmo, se fosses uma pobre mendiga e vivesses num sótão?

Sara deixou de arranjar as plumas do chapéu e tomou uma

atitude pensativa.

- Creio que podia - respondeu ela, por fim.

- É, sobretudo, quando se é pobre, que se tem

necessidade de inventar e imaginar constantemente qualquer

coisa... Mas, na realidade, talvez seja menos fácil...

Mais tarde, Sara devia pensar muitas vezes que

- coisa estranha! - foi justamente no momento em que ela

acabava de pronunciar aquela frase, que Miss Amélia entrou na

sala.

- Sara!- disse a irmã da diretora. - O procurador de seu

pai, Sr. Barrow, pede para falar com Miss Minchin, e como

deseja que a conversa seja particular e o lanche está

preparado na nossa sala, era preferível as meninas irem

lanchar já, a fim de que a minha irmã possa receber aqui a

visita.

Um lanche é uma coisa que nunca se recusa, e muitos

olhos brilharam mais intensamente ao ouvir estas palavras.

Miss Amélia mandou que se colocassem em forma e tomou a

dianteira do cortejo, levando Sara pela mão. A soberba boneca

ficou sozinha, em cima da poltrona, com os seus esplendores

dispersos em volta: vestidos, casacos e roupa espalhados

sobre os móveis.

Becky, que não era admitida ao lanche, cometeu a grande

indiscrição de se demorar ainda meio minuto, para lançar um

derradeiro olhar a todas aquelas maravilhas.

Miss Amélia ordenara-lhe que voltasse ao seu trabalho,

mas ela ficou para levantar do chão, primeiro, um regalo,

depois um casaquinho, e enquanto contemplava aqueles objetos

com verdadeiro respeito,

ouviu a voz de miss Minchin, no vestíbulo.

Cheia de terror, com a idéia de ser apanhada em

flagrante delito de desobediência, precipitou-se para

debaixo da mesa, que estava coberta por um grande

pano, que chegava quase ao chão.

Miss Minchin entrou, seguida por um senhor

baixinho, seco, e nariz pontiagudo, que se mostrava

um tanto perturbado. A própria Miss Minchin parecia

ansiosa e olhava para o senhor baixinho com

ar intrigado.

Sentou-se, digna e hirta, indicando-lhe, com a

mão, uma cadeira.

- Sente-se, Sr. Barrow - disse ela.

O Sr. Barrow não obedeceu imediatamente a

esta intimação. A sua atenção estava presa à

uma Boneca e às magnificências espalhadas à sua volta.

Pôs a luneta e contemplou tudo com evidente reprovação.

A boneca, muito direita na sua cadeira, parecia fitá-lo com

desdenhosa indiferença.

- Quando se pensa no que tudo isto deve ter

custado - observou brevemente o Sr. Barrow. Tecidos

esplêndidos, um enxoval encomendado a uma

modista de Paris! Este homem esbanja o dinheiro...

Miss Minchin sentiu-se ofendida com aquela

crítica severa, feita ao seu melhor cliente. Na verdade,

ninguém, nem mesmo o procurador do capitão tinha o direito de

se permitir semelhante atrevimento.

- Desculpe-me - disse ela, secamente -, mas

não compreendo o que quer dizer.

- Semelhantes presentes - prosseguiu Barrow no mesmo tom

- para uma criança de onze anos

é pura extravagância!

A atitude de Miss Minchin tornou-se ainda mais

rígida.

- O capitão Crewe é imensamente rico - tornou ela. - Só

as minas de diamantes...

Barrow voltou-se bruscamente para ela e exclamou:

- As minas de diamantes não existem! Nunca existiram!

- Como? Que significam essas palavras.

- Pelo menos - respondeu ele, secamente - era melhor que

nunca as tivesse tido!

- Não tem minas de diamantes - proferiu Miss Minchin,

encostando- se ao espaldar da cadeira, com a sensação de que

um sonho maravilhoso acabava de se desfazer...

-Ah! As minas de diamantes são, na maioria dos casos,

uma origen de ruína e não de riqueza

- declarou Barrow. - Quando um homem não sabe nada de

negócios devia defender-se, como do fogo, das minas de

diamantes, de ouro, ou de qualquer outra coisa, a que os

amigos, que se dizem íntimos pretendem associá-lo. O defunto

capitão Crewe...

Miss Minchin soltou um grito.

- O defunto capitão Crewe - articulou, com dificuldade.

- O defunto! O senhor não veio anunciar-me que o capitão...

O capitão Crewe morreu, minha senhora - respondeu

Barrow, com a voz brusca ,e eu estou aqui para lhe

participar. Foi vitimado pelas febres e pelos tormentos que

passava por causa dos negócios. As febres não o teriam,

talvez, aniquilado, se não estivesse tão esgotado de

energias, e os cuidados não o teriam, talvez, morto, sem as

febres... Mas, enfim, morreu e eu fui encarregado de lhe

participar a sua morte.

Miss Minchin recaiu sobre a cadeira, esmagada por um

surdo pavor.

- Donde lhe vinham os cuidados - perguntou ela.

- Da famosa mina de diamantes - replicou Barrow -, do

"excelente" amigo que o arrastou para esse negócio e para a

ruína que se lhe seguiu.

Miss Minchin estava lívida.

- A ruína! - pronunciou ela, com esforço.

- Perdeu tudo. O capitão Crewe era muito rico.

O tal amigo, que tinha comprometido na mina toda

a sua fortuna pessoal, persuadiu-o a fazer o mesmo.

Depois, naturalmente, este "excelente amigo", um

dia, desapareceu. O capitão Crewe já estava doente

quando recebeu a notícia desse desaparecimento.

O golpe foi demasiado forte para ele. Morreu em

pleno delírio, chamando pela filha, a quem não deixa

um centavo.

Miss Minchin compreendia, finalmente. nunca

experimentara tão terrível decepção. A sua mais

brilhante aluna, o seu cliente mais rico - tudo perdido!

Parecia-lhe ser vítima de um roubo, como se

a explorassem, e que o capitão, Sara e Barrow eram

todos igualmente culpados.

- Quer, então, convencer-me - exclamou ela

- de que Sara não herdará nada e que, em vez de

uma herdeira rica, eu tenho, agora, no meu colégio,

uma menina pobre?

Barrow, cheio de sagacidade, compreendeu que

era prudente salvar, ali mesmo, a sua responsabilidade.

- assim mesmo - afirmou ele. - Sara fica

sem recursos. Já nos informamos: não lhe conhecemos

um parente nem um único amigo íntimo. É a

senhora, quem terá de ocupar-se dela.

Miss Minchin correu para a porta. Dir-se-ia que

o seu primeiro movimento foi ir suspender a festa cujos

ecos alegres e bastante ruidosos chegavam até ali.

- É monstruoso! - exclamou. - Neste mesmo

instante, está ela na minha sala, vestida de sedas e

rendas, dando uma recepção à minha custa!

- À sua custa, sem dúvida, minha senhora repetiu

tranquilamente Barrow. - O Banco Baron e Skipworth não tem

nada mais que ver com este assunto. Nunca houve ruína mais

rápida e completa. O capitão Crewe morreu sem liquidar a

nossa última conta, que era das mais importantes.

Miss Minchin voltou para trás. A sua indignação era cada

vez maior. A situação tornava-se ainda pior do que ela

imaginava.

- E dizer - gritou - que eu tinha tanta confiança nele,

a ponto de fazer toda a espécie de despesas, verdadeiramente

loucas, com esta garota! Fui eu quem pagou esta ridícula

boneca e o seu extravagante enxoval. O capitão queria que

todos os desejos da filha fossem satisfeitos. Tem uma

carruagem alugada ao mês, uma criada de quarto, e fui eu quem

pagou tudo isso, depois que recebi o último cheque.

Barrow não tinha nenhum motivo que o levasse a prolongar

a sua visita para ouvir as recriminações de Miss Minchin.

Fizera a comunicação de que estava encarregado, salvaguardara

a responsabilidade da sua casa e, além disso, não sentia a

menor simpatia por aquela diretora de colégio transformada em

fúria.

- Que hei de fazer agora? - continuava Miss Minchin, que

parecia esperar que Barrow a livrasse de dificuldades. - Que

hei de fazer agora?

- Não há nada a fazer - disse ele, guardando a luneta na

algibeira. - O capitão Crewe morreu, a filha ficou sem

família e sem fortuna. A senhora é a única pessoa que tem

responsabilidade desta criança.

- Ela não me é nada, e eu recuso-me, absolutamente, a

assumir essa responsabilidade.

Miss Minchin estava lívida de furor.

Barrow dirigiu-se para a porta.

- Não posso remediar coisa alguma - disse ele, ainda,

com indiferença. - E repetiu - A nossa casa fica

absolutamente alheia a este triste caso, que nós

lamentamos mais do que é possível dizer.

- Se o senhor imagina que vai lançar-me, assim sem mais

nem menos, esta criança nos braços, engana-se - declarou miss

Minchin, com a voz abafada pela raiva. - Fui roubada,

explorada! pô-la-ei na rua!

Se ela não tivesse perdido completamente o domínio sobre

si própria, a sua hipocrisia habitual tê-la-ia impedido de

pronunciar semelhante frase. Mas vendo-se com o encargo de

tomar conta de uma pequena amimada, por quem sentira, sempre,

certa antipatia, não se pudera conter.

Barrow, sem se perturbar, continuava a aproximar-se da

porta.

- No seu lugar, eu não faria nada disso, minha

senhora - disse ele, com grande fleuma. - Isso não

causará bom efeito. Não faltarão logo as más línguas a

censurar o seu colégio. Toda a gente dirá que

a senhora abandonou uma das suas alunas por ela ter

ficado sem família e sem dinheiro.

Ele bem sabia o que dizia... E também sabia

que miss Minchin era muito interesseira e bastante

esperta para compreender que o bom senso lhe não

permitia cometer uma ação que lançaria publicamente

sobre ela, uma acusação de desumanidade.

- Fará muito melhor se a conservar consigo e

lhe arranjar uma ocupação - acrescentou. - Parece

que ela é muito inteligente. Poderá, quando crescer,

prestar-lhe serviços preciosos.

- Não é preciso crescer. Poderá prestar-mos

imediatamente - exclamou miss Minchin.

- Estou certo de que a senhora saberá tirar da

situação todo o partido possível - disse Barrow, com

um sorriso irônico. - Não tenho dúvida alguma

sobre isso! Até à vista, minha senhora!

Cumprimentou e saiu. Miss Minchin ficou, durante

alguns segundos, a olhar furiosamente para

a porta. .

O que ele dissera era a pura verdade, ela bem o sabia.

Não lhe restava outro recurso. A aluna que fora a glória do

colégio, passara a não ser mais do que uma indigente. E todo

o dinheiro que Miss Minchin adiantara estava perdido para

sempre.

Enquanto ela estava ali, acabrunhada com a idéia da

injustiça que a viera ferir, um ruído de vozes chegava até

aos seus ouvidos. A isso, pelo menos, podia ela pôr termo

imediatamente.

Mas naquele mesmo instante, a porta abriu-se e apareceu

Miss Amélia, que recuou, ao ver a fisionomia alterada da

irmã.

- Que aconteceu - perguntou ela.

Com uma voz cheia de furor concentrado, Miss Minchin

respondeu com outra pergunta:

- Onde está Sara Crewe?

- Sara - balbuciou Miss Amélia, desconcertada. - Mas...

naturalmente... está na tua sala, com as outras alunas.

- Tem ela, por acaso, um vestido preto no seu suntuoso

guarda-roupa - perguntou Miss Minchin, com ironia.

- Um vestido preto - balbuciou, de novo, miss Amélia. -

Um vestido preto?

-Ela tem vestidos de todas as cores. Pergunto-te se não

tem um preto.

Miss Amélia começou a fazer-se pálida e disse:

- Não... quero dizer, sim mas está muito curto. É um

vestido velho, de veludo, e ela cresceu tanto, que já o não

pode vestir.

-Vai dizer-lhe que tire esse absurdo vestido de seda

cor-de-rosa, e que vista o preto, esteja ele como estiver. O

veludo e os enfeites acabaram para ela.

Era de mais. Miss Amélia levantou as mãos ao céu e

Começou a choramingar:

- Oh minha irmã! Oh minha irmã! Mas que sucedeu

Miss Minchin não esteve com rodeios. Disse

secamente:

-O capitão Crewe morreu, sem deixar um

centavo. E nós temos de ficar com esta pequena

caprichosa e adulada a nosso cargo.

Miss Amélia deixou-se cair pesadamente sobre

a cadeira mais próxima.

-Gastamos, para lhe satisfazer todas as fantasias, somas

enormes, de que nunca mais seremos

reembolsadas. Manda parar, imediatamente, esta ridícula

festa, e diz a Sara que mude de vestido, sem

demora.

- Eu - exclamou Miss Amélia, sufocada. É

indispensável... que eu... vá...

- Neste mesmo instante! Ou queres ficar aqui a olhar

para mim, como uma parva? Vai...

A pobre Miss Amélia estava habituada a ser tratada

assim. Reconhecia que a sua inteligência era

das mais medíocres, e que as pessoas da sua espécie são,

em geral, encarregadas de todas as missões

desagradáveis, tal como entrar numa sala repleta de

raparigas que se divertem, a dizer à rainha da festa

que, de repente, passou a ser uma pobre pequena

sem família e sem dinheiro, e que deve, sem tardar, ir

vestir um vestido preto, usado e curto.

Mas era forçoso executar a ordem que recebera, visto o

momento não ser, evidentemente, propício a objeções.

Enxugou os olhos, esfregando-os a ponto de

ficarem vermelhos, depois saiu da sala sem dizer

mais uma palavra. Quando a irmã estava naquele

estado de irritação, o mais prudente era obedecer sem

abrir a boca.

Miss Minchin ia e vinha através do quarto falando

sozinha sem mesmo dar por isso. Durante o

ano que acabava de decorrer, fizera, a propósito

daquelas minas de diamantes, os mais extraordinários

projetos. Não é proibido às diretoras de colégio fazerem

fortuna, comprando ações, com a ajuda e conselho de um

proprietário de minas... E agora, em vez de lucros, ela tinha

de suportar uma importante perda, sem compensação possível.

- A princesa Sara - dizia ela. - Sim, não há dúvida, a

princesa! Como uma rainha é que ela foi adulada...

Passava, nesse momento, junto da mesa e, de repente,

estremeceu: dir-se-ia que debaixo da cobertura vinha um

prolongado soluço.

- Quem está aí? - perguntou ela, numa voz irritada.

Ouvindo um segundo soluço, miss Minchin baixou-se e

levantou a ponta do pano.

- Que audácia - gritou ela. - Como te atreveste tu? Sai

daqui imediatamente!

A pobre Becky apareceu e pôs-se a andar de gatas, com a

touca à banda e a cara vermelha, congestionada à força de

deter os soluços.

-Desculpe, minha senhora! Não é ninguém, sou eu... -

explicou ela. - Bem sei que não devia ter ficado aqui, mas

estava a olhar para a boneca e, quando a minha senhora

entrou, eu tive tanto medo, que me escondi debaixo da mesa.

- E deixaste-te ficar lá, a escutar! - disse severamente

Miss Minchin.

- Oh não, minha senhora - protestou Becky, multiplicando

as reverências. - Eu não queria escutar, minha senhora, mas

não podia deixar de ouvir...

Parecia que, naquele momento, Becky chegara a esquecer a

presença de tão terrível patroa. E desatou a chorar.

- Oh minha senhora - soluçava ela -, eu bem sei que vou

ser despedida, mas tenho tanta pena da menina Sara... tenho

tanta pena!

- Sai daqui - ordenou miss Minchin. Becky, com o rosto

lavado em lágrimas, fez mais uma reverência.

-Sim, minha senhora, saio imediatamente - disse ela a

tremer -, mas... eu queria só perguntar à minha senhora: que

vai agora fazer a menina Sara, sem criada? Ela sempre foi

rica, está habituada a ter quem a sirva... Se... oh! minha

senhora... se me desse licença, eu fazia o serviço dela,

depois de arrumar a cozinha... Trabalharei com todas as

minhas forças, se a minha senhora me deixar ajudá-la, agora

que ela é pobre. Oh! (e as lágrimas eram cada vez mais

abundantes) pobre menina Sara, a quem chamavam princesa!

Miss Minchin sentiu-se novamente dominada pela cólera.

Só lhe faltava que aquela reles ajudante de cozinheira se

pusesse ao lado da outra, daquela Sara que, no seu íntimo,

ela sempre detestara - sentia-o agora mais do que nunca. Era

de mais! E bateu com o pé no chão.

- Não! Mil vezes não - respondeu ela. Sara há-de servir-

se a si própria e às outras. Sai daqui, e cala-te, senão

ponho-te na rua.

Becky pôs o avental na cabeça e fugiu. Desceu a quatro e

quatro as escadas de serviço, para a cozinha, e lá, sentada

entre cadeiras e panelas, chorou como se lhe arrancassem o

coração.

- É como nas histórias - soluçava ela - a pobre princesa

foi abandonada, sozinha, na rua.

Miss Minchin nunca fora tão fria e tão cruel, como

quando Sara, que mandara chamar, entrou no seu escritório,

algumas horas mais tarde.

A pobre pequena tinha a impressão de que a festa do seu

aniversário não passara de um sonho, em que ela tomara parte,

no lugar de outra criança, havia já muito tempo.

Todos os traços da festa tinham desaparecido; os festões

de azevinho haviam sido tirados; os bancos e as estantes

estavam de novo no seu lugar habitual. Todos os vestígios do

belo lanche haviam sido cuidadosamente retirados da sala de

Miss Minchin,

e a própria Miss Minchin vestira o seu vestido de todos

os dias. As alunas receberam ordem de fazer o mesmo, e

estavam agora reunidas na sala de

estudo, formando grupos excitados e falando todas ao

mesmo tempo.

- Diz a Sara que venha falar-me - ordenou Miss Minchin à

irmã. - E faz-lhe compreender que não quero lágrimas nem

cenas desagradáveis.

- Tu não fazes idéia!- respondeu Miss Amélia. - É a

criança mais singular que eu tenho conhecido. Não soltou um

grito! Lembras-te que sucedeu o mesmo, quando o pai se foi

embora? Pois bem: quando, há pouco, eu Lhe disse o que tinha

acontecido, ficou imóvel, a olhar para mim, sem dizer uma

única palavra. Apenas os olhos pareciam maiores e a carinha

se lhe tornou muito pálida. Quando acabei, ficou com o olhar

fixo, durante alguns segundos, depois o queixo começou a

tremer-lhe e fugiu para a escada. A maior parte das outras

alunas principiou a chorar, mas ela parecia não as ouvir e

mostrava-se indiferente a tudo, menos ao que eu dizia. Não

posso explicar-te a impressão que este silêncio me fez!

Quando se anunciam estas coisas, esperamos sempre que nos

digam, ao menos, uma palavra, seja ela qual for.

Mas ninguém, além de Sara, soube, nunca, o que se passou

no seu quarto, depois que ela ali entrou e se fechou à chave,

por dentro. Na realidade, a própria Sara nunca conseguia

recordar-se bem do que se passara. Lembrava-se apenas de ter

andado para trás e para diante, repetindo, sem parar, com uma

voz que não parecia a sua:

- O meu papá morreu! O meu papá morreu!

Uma das vezes, parou diante da cadeira onde estava Emily

e gritou, desesperadamente:

- Ouves bem, Emily! Ouves? O meu papá morreu! Morreu lá

longe, muito longe, na Índia!

Quando Sara entrou no escritório de miss Minchin,

estava desfigurada, com grandes olheiras rochas,

pisadas, e os lábios muito cerrados, como se não

quisesse deixar adivinhar a ninguém a sua dor. Não

era, já, a linda borboleta cor-de-rosa, que ia de um

presente para o outro, na sala de estudo, toda decorada

com verdura. Era uma pequena aparição estranha

e dolorosa.

Enfiara o vestido preto, velho, que já tinha

posto de parte, sem o auxílio de Mariette. Esse

vestido era muito curto e muito estreito. As pernas de

Sara pareciam, assim, mais altas e extremamente

magras. Como não tinha fita preta, os cabelos espessos e

curtos caíam-lhe sobre o rosto, fazendo ressaltar ainda mais

a sua palidez. Trazia debaixo do

braço a sua querida Emily a quem envolvera num

bocado de tule preto.

- Ponha a boneca em qualquer parte - disse

Miss Minchin. - Que necessidade tinha de a trazer para

aqui?

- Não - respondeu Sara. - Conservá-la-ei

comigo. É tudo o que me resta. E foi o papá quem

ma deu.

Miss Minchin experimentava sempre uma espécie de timidez

quando falava com Sara; e, sem saber

explicar porquê, sentiu-se pouco à vontade. Sara

falara-lhe com uma dignidade glacial e Miss Minchin não

encontrou palavras para lhe responder.

Talvez a consciência a acusasse de estar procedendo

com uma crueldade revoltante.

- Não terá tempo para brincar com bonecas!

observou ela. - Tem de trabalhar e aprender a

tornar-se útil.

Sara, com os seus grandes olhos fixos na diretora, não

respondeu uma só palavra.

- Tudo mudou - continuou Miss Minchin. Creio que Miss

Amélia Lhe explicou...

- Sim- respondeu Sara. - Sei que o meu pai

morreu, que não deixou dinheiro, e que sou muito

pobre.

- Pior do que isso! A menina não tem nada, absolutamente

nada, nem parentes, nem casa, nem ninguém que se preocupe

consigo! - disse Miss Minchin, que se encolerizava cada vez

mais, à medida que ia falando.

Um estremecimento percorreu a carinha magra e pálida de

Sara, mas nem uma única palavra saiu dos seus lábios.

-Então?! Porque está a menina a olhar para mim dessa

maneira? - exclamou àsperamente Miss Minchin. É tão estúpida,

que não me compreende? Digo-lhe que está absolutamente só no

mundo e que ninguém está disposto a fazer qualquer coisa por

si a não ser que eu consinta em conservá-la aqui por

caridade.

- Compreendi muito bem - respondeu Sara, baixinho. -

Compreendi tudo.

Adivinhava-se que a pobre rapariga procurava, com

toda a sua energia, sufocar os soluços.

- Esta boneca - gritou Miss Minchin, fitando o magnífico

brinquedo que estava junto dela -, Esta ridícula boneca, com

o seu extravagante enxoval, fui eu que a paguei com o meu

dinheiro.

Sara voltou a cabeça naquela direção. A "Última Boneca"

- murmurou ela. - A "última Boneca"... "

Sentia-se na sua vozita uma profunda e inexprimível

tristeza.

- A "Última" bem o pode dizer - afirmou Miss Minchin. -

já não é sua, não lhe pertence, como, de resto, tudo quanto

era seu:

- Está muito bem. Pode guardá-la - respondeu Sara. - Não

tenho nenhum empenho nela.

Se a pequenina chorasse e soluçasse, se ela se

tivesse mostrado aterrorizada, Miss Minchin ter-se-ia

mostrado, talvez, mais conciliadora. Mas, gostando

acima de tudo, de dominar, sentia-se desafiada por

aquele rostozinho pálido e por aquela voz fina, mas altiva.

- Não tome os seus grandes ares - replicou ela. - Os

tempos mudaram. O papel de princesa acabou. Não se trata mais

de carruagem, nem de criada particular. Vou suprimir tudo

isso. A menina usará os vestidos velhos, porque os outros são

luxuosos de mais para a atual situação. Presentemente, não é

mais do que Becky. Precisa de trabalhar para ganhar a vida.

Com grande surpresa sua, Miss Minchin viu brilhar um

rápido clarão nos olhos da pequenina, um clarão de alívio.

- Poderei trabalhar? - perguntou ela. - Nesse caso, se

posso trabalhar, será menos doloroso. Que devo eu fazer?

- Tudo o que lhe mandem - respondeu a diretora. - A

menina é inteligente e compreende ràpidamente o que lhe

explicam. Se conseguir tornar-se útil, consentirei que fique

no colégio. Como fala bem francês, pode dar lição às alunas

mais novas.

- Que bom! - exclamou Sara. - Não desejo outra coisa!

Deixe-me ensinar as pequeninas! Gosto tanto delas e elas

gostam tanto de mim...

- Não diga disparates! Pouco importa que elas gostem de

si ou não - interrompeu Miss Minchin. E continuou - Terá,

além disso, outras ocupações. fará as compras, trabalhará

tanto na cozinha como na classe infantil. E se eu não estiver

satisfeita, mandá-la-ei embora. Não se esqueça! Agora pode

retirar-se.

Sara não se mexeu. No seu cérebro agitavam-se graves e

singulares pensamentos. Por fim, dirigiu-se para a porta.

- Então? - exclamou Miss Minchin. - É assim que me

agradece?

Sara parou. Os pensamentos afluíam-lhe, cada vez mais

tumultuosos.

- Que tenho eu que agradecer-lhe? - perguntou ela,

lentamente.

- A bondade com que a trato - respondeu miss Minchin. -

O lar que lhe ofereço!

Sara deu uns passos para a diretora. O seu peito

magrinho ergueu-se, e a sua voz deixou de ser a voz de uma

criança, quando disse, com profunda amargura:

-A senhora não é bondosa! Nem a sua casa é um lar!

E saiu da sala, enquanto Miss Minchin, muda de raiva, a

seguia com o olhar.

Sara subiu as escadas lentamente; estava ofegante, e

apertava Emily de encontro ao coração, com quanta força

tinha.

"Quem me dera que Emily pudesse falar! - dizia ela

consigo própria. - Oh! se ela falasse!"

Pensava em refugiar-se no seu quarto e deitar-se sobre a

pele do tigre, encostar a carinha à grande cabeça da fera e

contemplar o lume, entregando-se aos seus pensamentos

dolorosos. Mas, no momento em que chegava ao patamar, Miss

Amélia saiu do quarto, puxou a porta e parou, com ar

embaraçado. No fundo estava envergonhada com as ordens que a

irmã tinha dado.

- Não pode entrar mais aqui - disse ela.

- Não posso entrar? - repetiu Sara, recuando,

ligeiramente.

- Já não é o seu quarto - explicou Miss Amélia,

tornando-se corada.

Sùbitamente, fez-se luz no espírito de Sara: era o

inicio da mudança anunciada por Miss Minchin.

- Onde é o meu quarto - perguntou ela, pedindo a Deus,

interiormente, que a sua voz não tremesse.

- Dormirá nas águas-furtadas, ao lado de Becky.

Sara compreendeu. Becky tinha-Lhe explicado onde dormia.

Voltou-se e subiu mais dois andares. O último era

estreito, íngreme, e estava coberto por um tapete ordinário,

todo esburacado.

Sara teve a impressão de deixar, para sempre, o mundo

onde vivera aquela outra pequena adulada e amimada que ela

fora, e na qual se não reconhecia. A criança vestida de

veludo preto, já coçado, que subia a escada do sótão, não

tinha nada de comum com a outra, bafejada pela sorte.

Quando abriu a porta, teve uma rápida e dolorosa

sensação de pavor. Depois entrou, fechou a porta, encostou-se

à parede e olhou em volta de si.

Sim, na verdade era outro mundo!

O sótão, caiado de branco, tinha o teto em desvão. As

paredes, sujas e úmidas, estavam esburacadas. Havia uma grade

ferrugenta no fogão, um velho leito de ferro, com um colchão

duro e um cobertor desbotado. Como mobiliário, todos os

móveis partidos ou fora de uso que havia em casa. Sob a

trapeira, que deixava apenas ver um pequeno retângulo de céu

cinzento e triste, via-se um banco estofado, muito velho.

Sara sentou-se ali. Não chorava. Pôs Emily nos joelhos,

encostou a cara à da boneca, passou-lhe os braços em volta do

corpo e ficou assim, com a cabeça confundida com o véu negro

da sua insensível companheira sem dizer uma palavra nem fazer

um movimento.

E eis que, no meio daquele silêncio mortal, alguém bateu

à porta, umas pancadas tão humildes e tímidas, que Sara não

as ouviu. A sua atenção só despertou quando, espreitando pela

porta que entreabrira, apareceu uma cara, toda suja de

lágrimas e pó de carvão. Era Becky, que, à força de chorar e

de limpar o rosto com o avental de linhagem, se tornara

irreconhecível.

- Oh! Miss - murmurou ela. - Dá licença...

quer que eu entre e fique um bocadinho ao pé de si?. .

Sara ergueu a cabeça e olhou para Becky. Queria sorrir-

lhe, mas não podia. E de repente, graças à carinhosa piedade

de que os olhos de Becky estavam cheios, o seu coração

desoprimiu-se, a sua carinha de criança prematuramente

envelhecida desanuviou-se. Sara levou as mãos aos olhos e

deixou escapar um soluço.

- Oh Becky - disse ela. - Eu disse-te um dia que nós

éramos semelhantes, que éramos duas crianças, nada mais que

duas crianças. Vês agora que é verdade? Não há nenhuma

diferença. A princesa já não existe.

Becky correu para ela, pegou-lhe na mão e, apertando-a

de encontro ao peito, ajoelhou junto de Sara, a chorar de

ternura e compaixão.

- Sim, existe sempre uma diferença - exclamou ela, com

voz entrecortada de soluços. -Aconteça o que acontecer, seja

o que for, a menina será sempre uma princesa. Nada, ninguém

neste mundo poderá fazê-la diferente.

NO Sótão

Sara nunca mais poderia esquecer a primeira noite que

passou no sótão. Viveu ali horas de dor e desespero grandes

de mais para a sua idade, e das quais nunca falou a ninguém.

Nenhuma das pessoas que, então, a cercavam, a compreendeu.

Felizmente para ela, durante essa noite horrível, enquanto os

seus grandes olhos se conservavam muito abertos na escuridão,

o seu espírito distraía-se, de quando em quando, apesar de

tudo, impressionado pelo que havia de estranho naquele lugar,

ao mesmo tempo que uma espécie de angústia física Lhe

recordava o mundo exterior.

Sem isso, a sua alminha não teria suportado tão horrível

sofrimento.

Enquanto as horas passavam lentamente, ela esquecia que

tinha fome, que tinha frio, esquecia pelo menos a implacável

realidade:

- O meu papá morreu - repetiu ela, baixinho. - O meu

papá morreu!

Só muito mais tarde é que ela deu conta de se ter

voltado e tornado a voltar, em vão, no péssimo colchão, para

ver se encontrava um sitio um pouco menos duro; a escuridão

parecia-Lhe medonha, o vento uivava no telhado, dando-lhe a

impressão de uma voz que se lamentava alto.

Mas havia ainda uma coisa pior: certos ruídos, corridas,

gritinhos que sentia, no teto e no rodapé. Graças à

explicação de Becky, sabia o que era: os ratos e ratazanas

que lutavam e se perseguiam. Uma ou duas vezes mesmo, ouviu

patas pequenas, arranhadas de unhas, correrem no sobrado e,

muito tempo depois, ao recordar esta noite pavorosa,

lembrava-se de se ter sentado no leito, ao ouvir o primeiro

ruído, e de, em seguida, esconder a cabeça debaixo do

cobertor, a tremer de medo.

De um momento para o outro, sem transição, a sua vida

transformara-se completamente.

- De que servem meias palavras! - dissera Miss Minchin à

irmã. -É preciso que ela saiba imediatamente o que a espera.

Mariette partira no dia seguinte. Quando Sara ao passar

em frente da sua antiga sala, lançou, pela porta, um rápido

olhar, viu que não estava ali nada do que lhe pertencera, e

que um leito, colocado ao fundo, transformara a sala num

quarto para outra aluna.

Ao descer para o primeiro almoço, verificou que o seu

lugar, ao lado de Miss Minchin, estava ocupado por Lavínia.

Miss Minchin disse-lhe, friamente:

- Para começar, Sara, vigie o almoço das menores. Faça

com que elas se portem convenientemente e não estraguem a

comida. Devia ter chegado mais cedo. Olhe a Lottie já

entornou a chávena...

Era apenas o principio... Depois, cada dia trazia a Sara

um pouco mais de trabalho. Ensinava francês às mais novinhas,

fazia-lhes repetir as lições, e era esta a parte mais fácil

da sua tarefa. Bem depressa

perceberam que podiam utilizá-la para tudo, obrigá-la a

fazer recados a qualquer hora e por qualquer tempo,

encarregá-la de todo o trabalho que as outras não faziam. A

cozinheira e as criadas de quartos regularam a sua atitude

pela de Miss Minchin, experimentando, no fundo, certa

satisfação em se fazerem servir pela "pequena" diante da

qual, durante tanto tempo, toda a gente se inclinara. Eram

criaturas vulgares, que não possuíam bom caráter e achavam

cômodo ter alguém a quem mandar, e sobre quem pudessem lançar

a culpa de todas as faltas e negligências.

Durante os dois primeiros meses, Sara esperou que a boa

vontade e aplicação que mostrava, o silêncio com que ouvia

todas as reprimendas, ainda as mais injustas, acabariam por

tornar menos ásperos àqueles que tão duramente a tratavam. No

íntimo da sua alminha altiva e nobre, queria provar-lhes que

procurava ganhar a vida e que não aceitava esmolas. Mas o

tempo passava e ninguém se humanizava; quanto mais ela

trabalhava, mais as criadas de quarto se tornavam

autoritárias e exigentes, e mais a cozinheira, sempre

rabugenta, lhe ralhava.

Se ela não fosse tão novinha, Miss Minchin confiar-Lhe-

ia uma das aulas, o que lhe teria permitido suprimir um dos

professores e realizar, assim, uma apreciável economia. Mas,

enquanto Sara fosse e parecesse uma criança, era preferível

empregá-la como uma espécie de rapariga de recados ou criada

para todo o serviço. Um "groom" vulgar não seria tão

inteligente nem tão merecedor de confiança. Ao passo que Sara

podia encarregar-se de recados difíceis e, mesmo, delicados.

Era ela quem ia pagar as contas e, ao mesmo tempo,

varria e limpava o pó na perfeição, e sabia arrumar tudo

cuidadosamente.

Ninguém se preocupou mais com os seus estudos. Ninguém

Lhe ensinou mais nada. Apenas, ao serão, depois de longos e

fatigantes dias cheios de trabalho, de idas e vindas, a

autorizavam - quase com pena! - a entrar numa das aulas

desertas, escolher alguns livros e estudar sozinha, conforme

podia, antes de se deitar.

"Se não recordo tudo o que aprendi - pensava ela -,

acabarei por não saber nada. Sou quase uma criada e, se me

torno uma criada ignorante, serei como a pobre Becky. Quem

sabe se eu não acabarei por esquecer tudo, falar

incorretamente e não me lembrar, sequer, do nome das seis

mulheres de Henrique VIII!"

Um dos aspectos mais curiosos da sua nova existência era

a mudança de situação, em relação às suas antigas

condiscipulas. Fora quase uma soberana e, agora, era como se

não existisse...

Absorvida pelo trabalho, Sara mal tinha ocasião de lhes

falar, mas compreendera que miss Minchin preferia que ela

vivesse inteiramente à parte das pensionistas.

- É inútil que se misture com as alunas - dissera miss

Minchin. - As raparigas deixam-se sempre impressionar pelas

situações patéticas, e se Sara começa a imaginar um romance,

de que seria heroína, podiam tomá-la como vítima e isso

causaria má impressão entre a nossa clientela. É melhor que

viva, à parte, uma vida mais em conformidade com a sua

situação atual. Ofereci-lhe um abrigo, e já fiz muito, porque

não tenho obrigação alguma para com ela.

Sara era bastante orgulhosa para tentar manter relações

com as companheiras que, muito abertamente, se mostravam

embaraçadas, quando lhe falavam. A maior parte das alunas de

Miss Minchin não sabia o que era generosidade. Estavam

habituadas à riqueza, à vida despreocupada, ao conforto. E

como os vestidos de Sara se iam estragando e ficavam fora de

moda; como os seus sapatos iam ficando rotos e ela ia fazer

recados, a correr, à

mercearia e onde calhava, com uma cesta no braço, quando

a cozinheira tinha pressa, parecia àquelas

meninas que, ao falar à sua antiga condiscípula, se

dirigiam a uma criada de primeira categoria.

- Quando me lembro de que ela era a princesa da mina de

diamantes - dizia Lavínia. - Agora tem o ar de um espantalho

de pardais! Cada vez está mais esquisita! Nunca gostei dela,

mas acho inadmissível a maneira como olha para nós, como se

quisesse adivinhar os nossos pensamentos.

- É assim mesmo - observou Sara, sem hesitar, quando lhe

foram contar isto. - A minha intenção, quando olho para

certas pessoas, é justamente adivinhar o que elas pensam e

refletir, em seguida, sobre aquilo que descobri...

Para dizer a verdade, vigiando Lavínia, evitara, mais de

uma vez, ter grandes aborrecimentos, porque aquela procurava,

por todas as formas, fazer partidas a toda a gente e ficaria

radiante se pudesse fazer passar um mau bocado à ex-glória do

colégio.

Sara, pelo contrário, não fazia partidas a ninguém nem

se metia na vida dos outros. Trabalhava como uma escrava,

indo aonde a mandavam, mesmo debaixo de chuva, carregada de

embrulhos e cestos; lutava contra a preguiça e a distração

das pequeninas, durante a lição de francês. O aspecto do seu

vestuário era cada vez mais miserável, a ponto de, um dia,

Miss Minchin lhe dizer que, dali em diante, comeria na

cozinha.

Ninguém se preocupava com ela; o seu coração sofria

mais, mas a sua altivez não cedia e ninguém lhe ouvia, nunca,

uma lamentação, por mais pequena que fosse.

"Os soldados não se lamentam - dizia ela, de si para si,

com os dentes muito cerrados. - Eu também nunca me

lamentarei. Imaginarei que estou na guerra.”

Apesar de todo o seu heroísmo, esta criança teria

sucumbido sob o peso do abandono atroz em que vivia, se não

tivesse três amigas a ampará-la moralmente.

A primeira - diga-se desde já - era Becky. Durante a

primeira noite passada no sótão, Sara sentira um grande

conforto ao pensar que, do outro lado da parede, estava uma

criança, pequena e desprezada como ela, a quem os ratos

também assustavam. Este sentimento aumentou ainda mais nas

noites seguintes.

Becky e ela não tinham ocasião de falar uma com a outra

durante o dia. Cada uma tinha o seu trabalho e seriam

acusadas de empregar mal o tempo se fossem surpreendidas em

flagrante delito de conversa...

- Não faça caso - dissera- Lhe Becky, na primeira manhã.

-Não faça caso, se eu não for bastante delicada para com a

menina. É que, se o fosse, ralhariam comigo. “Mas a menina

bem sabe que eu estou sempre pronta a dizer-lhe “muito

obrigada”, “se faz favor” e desculpe-me”. O que não posso é

perder tempo...

De manhã cedo, Becky entrava no quarto de Sara;

abotoava-lhe o vestido e ajudava-a em tudo o que podia, antes

de ir acender o lume. E à noite, Sara ouvia sempre, na sua

porta, as pancadinhas tímidas com que a sua "criada de

quarto" anunciava que estava pronta a prestar-lhe todos os

serviços possíveis.

Durante as primeiras semanas do seu grande desgosto,

Sara sentia-se demasiadamente abatida para poder conversar, e

as duas pequenas viram-se poucas vezes. O coração delicado de

Becky compreendia que, quando se é infeliz, é agradável estar

só.

O número dois do trio era Hermengarda. Mas passou algum

tempo antes que ela cumprisse a sua missão.

Quando Sara retomou, a pouco e pouco, o gosto pela vida,

percebeu que se esquecera completamente de Hermengarda.

Haviam sido boas amigas, nas Sara tivera sempre a impressão

de ser muito mais velha do que a sua companheira.

Hermengarda era, sem dúvida, uma boa pequena, mas de

inteligência acanhada. Dedicara-se a Sara como uma pobre

criatura que tem necessidade de ser amparada; pedia-lhe que

lhe explicasse as lições e bebia as suas palavras, não se

cansando de a ouvir contar histórias. Mas, ela, coitadinha,

era incapaz de contar fosse o que fosse; ignorava tudo, tinha

horror aos livros. Era uma daquelas pessoas insignificantes,

que se esquecem nas horas de grande sofrimento e Sara tinha-

se esquecido dela mais fàcilmente ainda pelo fato de

Hermengarda, no momento da catástrofe, se encontrar em casa,

onde permaneceu durante algumas semanas.

Foi apenas pouco depois do seu regresso ao colégio que

Hermengarda encontrou Sara, quando esta se dirigia à rouparia

com os braços carregados de roupa pois já a tinham ensinado a

coser e a remendar. Sara estava pálida - não parecia a mesma

e trazia um vestido velho que mal lhe cobria as pernas muito

magras.

Hermengarda não foi capaz de lhe dizer uma só palavra.

Não ignorava nada do que sucedera, mas nunca imaginava ver

Sara assim tão pobre, tão diferente, transformada quase em

criada. Ficou impressionadíssima , apesar disso não soube

fazer mais nada senão dar uma gargalhada nervosa e dizer,

maquinalmente:

- Oh Sara, és tu?

- Certamente, sou eu - respondeu Sara. De súbito,

atravessou-lhe o cérebro um pensamento que a fez corar.

Trazia uma grande rima de roupa nos braços e apoiava o queixo

sobre ela, para segurá-la melhor. Nos seus grandes olhos, tão

tristes,

passou uma sombra, que fez perder a cabeça à pobre

Hermengarda. Pareceu-lhe que Sara era uma outra criança, que

ela nunca tinha conhecido. Estava comovidíssima com uma tão

grande desgraça e pelo fato de Sara ser obrigada a trabalhar,

tal como Becky.

- Oh - balbuciou ela. - Como estás tu?

- Vou vivendo - respondeu Sara. - E tu?

- Mas... eu estou boa... - respondeu Hermengarda, muito

embaraçada. E, nervosamente, procurou uma frase um pouco

afetuosa. - Tu... tu és muito infeliz ? - perguntou ela,

ofegante.

Naquele instante Sara foi injusta. Seu coração ferido

revoltou-se, e ela pensou que era preferível deixarem-na em

paz a dizerem-lhe semelhantes disparates.

-Julgas então que eu não posso ser muito feliz -

replicou ela.

E, sem acrescentar uma palavra, afastou-se de

Hermengarda.

Mais tarde, Sara devia pensar que a sua desgraça lhe

fizera perder a memória, pois só assim ela se esquecera de

que a gorducha Hermengarda não era responsável pelas tolices

que dizia. A pobre pequena sempre fora desastrada e, quando o

não queria ser, ainda era pior...

Sara, entretanto, com o coração a sangrar, pensava:

" Hermengarda não é melhor do que as outras... Não tinha

nenhum desejo de me falar. Ela sabe que ninguém me fala. "

Assim se ergueu entre elas uma barreira invisível.

Quando, por acaso, se encontravam, Sara voltava a cabeça e

Hermengarda sentia-se tão comprometida, que não era capaz de

falar.

Às vezes trocavam um rápido sinal de cabeça e nada mais.

Mas, quase sempre, faziam de conta que não se conheciam.

"Se ela prefere não me falar - pensava Sara ,eu por mim,

nada lhe direi; é isto mesmo que Miss

Minchin deseja."

Efetivamente, esta atitude correspondia em

absoluto ao que Miss Minchin desejava, e as duas

crianças acabaram por não se ver mais. Durante

esse período, todos verificaram que Hermengarda

estava mais parvinha do que nunca, e tinha um ar

triste e desgraçado.

Passava horas no vão de uma janela, a olhar

vagamente para a rua, sem proferir palavra.

Jessie, um dia, parou junto dela, a olhar, surpreendida.

- Porque choras tu, Hermengarda? - perguntou ela.

- Eu não estou a chorar - respondeu a outra

em voz sumida.

-Não estás a chorar? Então de quem é essa

grande lágrima que te vem a rebolar pelo nariz?

não querem lá ver - exclamou Jessie.

- Pois bem, é verdade - confessou Hermengarda - tenho um

desgosto... mas ninguém tem nada

com isso.

E, voltando as costas a Jessie, tirou o lenço

da algibeira, sem disfarce, e cobriu a cara com ele.

Na noite desse mesmo dia, Sara foi para o

quarto mais tarde do que era costume. Tivera muito

que fazer, ainda depois da hora das alunas se deitarem,

e em seguida estivera a estudar na aula deserta. Ao chegar ao

patamar; ficou surpreendida

por ver a luz brilhar por debaixo da porta.

"Ninguém aqui vem a não ser eu” - pensava

ela. - Quem teria acendido a luz? “Efetivamente, alguém

entrara no quarto, com

uma vela acesa.

Com uma camisa de noite vestida, e embrulhada

no xale vermelho, esse alguém estava sentado no

velho banco desbotado: Sara reconheceu Hermengarda.

- Hermengarda - exclamou ela, quase assustada. - Vais

ser castigada!

Hermengarda levantou-se, cambaleando, por que

tinha calçado pantufas muito largas. Os seus

olhos e as suas faces estavam vermelhos e inchados.

- Bem sei, mas não me importo - respondeu

ela. - Oh Sara! Peço-te que digas que mal te fiz

eu? Porque não és já minha amiga?

As suas palavras eram tão afetuosas, tão simples, faziam

lembrar tanto a Hermengarda de outro

tempo, quando ela lhe propusera serem "amigas

íntimas", que Sara sentiu a garganta apertar-se-lhe

um pouco.

Com aquelas palavras, Hermengarda desfazia

toda a aparência de crueldade da sua atitude.

- Gosto muito de ti - disse Sara. - Mas eu

julgava... tu compreendes, tudo mudou tanto para

mim... que eu julgava que tu também já não eras

a mesma.

Hermengarda abriu muito os olhos ainda cheios

de lágrimas.

- Mas... tu é que não és a mesma - exclamou

ela. -Não me querias falar. Eu não sabia o que

havia de fazer. Tu é que estavas diferente, quando

eu voltei.

Sara refletiu um momento e compreendeu o

seu erro.

- Eu mudei, é certo - explicou ela - mas não

no sentido em que tu julgas. Miss Minchin não quer

que eu fale com as alunas, e a maior parte delas

não tem vontade nenhuma de me falar. Pensei que

tu eras como elas e, por isso, procurei evitar-te.

- Oh Sara - gemeu Hermengarda, num tom

de censura.

Depois, olharam-se e lançaram-se nos braços

uma da outra. A cabeça de cabelos pretos demorou-se

um pouco sobre o ombro coberto pelo xale vermelho. A

verdade é que, ao julgar que também Hermengarda a abandonava,

Sara sentira-se mais só do que nunca.

Em seguida, sentaram-se no chão, ao lado uma da outra:

Sara com os braços em volta dos joelhos, Hermengarda

embrulhada no seu xale.

Hermengarda fitava a carinha original e os grandes olhos

da amiga, com uma espécie de adoração.

- Eu não podia mais - disse ela. - Tenho a certeza,

Sara, de que tu podes muito bem passar sem mim; mas eu é que

não posso passar sem ti. Sentia que ia morrer. Hoje, quando

estava a chorar, com a a cabeça debaixo da roupa, lembrei-me,

de repente, de subir até ao teu quarto, para te pedir que

tornemos a ser boas amigas.

- Vales mais do que eu - disse Sara. - Eu teria sido

demasiado orgulhosa para fazer isso. Vê, Hermengarda, chegou

para mim o tempo da provação, e tem-me mostrado que eu não

sou boa nem generosa... Eu tinha a certeza... Talvez fosse

por isso - disse ela, curvando a cabeça - que a provação me

foi enviada...

-Eu cá não vejo onde possa estar a utilidade das

provações - afirmou Hermengarda com energia.

- Para falar francamente, eu também não - concordou

Sara. - Mas penso que tudo tem um lado bom, mesmo quando nós

o não vemos. A própria Miss Minchin... (aqui a voz de Sara

perdeu a convicção)... Sim, a própria Miss Minchin talvez

tenha o seu lado bom!

Hermengarda inspecionava o quarto com o olhar. Estava

cheia de curiosidade tímida.

- Sara! - perguntou ela. - Julgas que podes habituar-te

a viver aqui?

Sara olhou também.

- Se eu conseguir convencer-me de que isto é muito

melhor do que parece, sou capaz - respondeu ela. - Ou, então,

se eu imaginar que isto é um lugar histórico.

Falava lentamente. A sua imaginação despertava de um

longo sono, porque depois da sua grande infelicidade,

sentira-se incapaz de imaginar ou inventar fosse o que fosse.

- Muitas pessoas - continuou ela - viveram em lugares

piores do que este. Lembras-te do conde de Monte Cristo nas

masmorras do castelo D’If? E os prisioneiros da Bastilha?

- A Bastilha - repetiu Hermengarda, como que fascinada.

Lembrava-se das histórias da Revolução Francesa que,

contadas por Sara, com uma grande expressão dramática, se

tinham fixado na sua memória. Ninguém, além de Sara,

conseguira, nunca, semelhante prodígio...

Pouco a pouco, brilhava nos olhos de Sara o antigo

ardor.

- Sim - disse ela, como se falasse consigo própria. -

Este sótão é perfeito para imaginar um romance. Eu sou um dos

prisioneiros da Bastilha. Há anos que estou encarcerada aqui;

toda a gente me esqueceu. Miss Minchin é o carcereiro, e

Becky... (os olhos brilharam-lhe mais), Becky é o prisioneiro

da cela vizinha.

Olhou para Hermengarda; a verdadeira Sara reaparecia.

- Aqui está o que eu vou imaginar - continuou ela - e

será uma grande consolação.

Hermengarda sentiu-se, ao mesmo tempo, contente e um

pouco assustada.

- Hás de contar-me tudo, sim? - pediu ela. Dás-me

licença que eu venha ter contigo, à noite, quando todos

estiverem deitados? Dir-me-ás o que

tiveres inventado durante o dia, e nós seremos ainda

mais amigas íntimas do que dantes.

- Pois sim - aprovou Sara. - É na adversidade que se

conhecem os amigos: a minha infelicidade provou-me quanto tu

és boa!

RODILARD

Lottie era o terceiro membro do trio consolador. Era

ainda muito pequena para compreender o que é a desgraça, e a

transformação da vida da sua "mamã adotiva" lançara-a na mais

profunda perplexidade. Haviam-lhe dito que Sara tivera

grandes infelicidades, mas ela não podia explicar a si

própria por que razão Sara mudara tanto, e porque usava um

vestido preto, velho, feio, e por que motivo tomava conta das

mais novinhas, em vez de ocupar o melhor lugar na sala de

estudos, como antigamente.

As mais pequeninas tinham ficado espantadas e não se

fartavam de dizer segredinhos, ao descobrir que Sara não

ocupava já o quarto, onde, durante tanto tempo, reinara

Emily. Mas o que atormentava principalmente Lottie eram as

respostas breves de Sara, sempre que ela lhe perguntava

qualquer coisa. Quando se tem sete anos, é preciso que os

mistérios sejam claramente explicados, para que possam ser

compreendidos.

- Então, tu agora és muito pobre, Sara - perguntava

Lottie, baixinho, a primeira vez que a sua grande amiga foi

dar lição à classe infantil. - És

tão pobre como os mendigos da rua?

E, ao dizer isto, metia a mãozinha gorda entre

os dedos esguios de Sara, e os olhos tornavam-se-lhe

maiores, cheios de lágrimas.

- Eu não quero que tu sejas pobrezinha como

os mendigos...

Estava quase a chorar, e Sara apressou-se a consolá-la,

dizendo-lhe, corajosamente:

-Os mendigos não têm casa para se abrigar! e tu bem

vês que eu tenho uma.

- Onde moras tu? - continuou Lottie. - Está

uma nova aluna no teu quarto, e o quarto, agora,

já não é tão bonito...

- Deram-me outro - respondeu Sara.

- Também é bonito? - insistiu Lottie. - Eu

queria vê-lo...

- Cala-te - ordenou Sara -, Miss Minchin está

a olhar para nós e ela vai ralhar-me se tu continuas

a falar comigo.

Já tinha compreendido que a tornava responsável

por todas as desobediências ao regulamento. Se as

petizas estavam distraídas, faladoras ou irrequietas,

Sara era sempre a culpada...

Mas Lottie era uma pessoazinha muito decidida.

Sara não queria dizer onde era o seu quarto? Pois

bem! Ela saberia descobri-lo sozinha.

Falou nisto às amigas, andou em volta das

"grandes" a ver se surpreendia as suas conversas;

e, depois de ouvir algumas frases que elas,

inconscientemente, tinham deixado escapar, Lottie decidiu-se,

um dia, a partir para uma viagem de exploração... E, depois

de ter subido umas escadas, de

cuja existência nunca suspeitara, chegou, finalmente ao

sótão. Lá, encontrou duas portas, próximas uma

da outra e, ao abrir uma ao acaso, descobriu a sua

querida Sara, em pé, em cima de uma velha mesa! a

espreitar para fora, por uma trapeira.

- Sara - gritou ela, consternada. - Mamã Sara!

Não podia acreditar: o sótão era tão feio e parecia tão

longe de tudo, que Lottie tinha a impressão de haver subido

centenas de degraus.

Ao ouvir a sua voz, Sara voltou-se e ficou, por sua vez,

consternada também. Que iria acontecer, Santo Deus... Se

Lottie começava a chorar e alguém a ouvia, estavam perdidas,

as duas. Sara saltou abaixo da mesa e precipitou-se para a

criança.

- Não chores, Lottie não faças barulho - suplicou ela -

se não ralham comigo, e eu já ouvi ralhar muito durante todo

o dia. Isto não é um quarto feio, Lottie.

- Achas? - disse Lottie, com dificuldade. E, olhando em

redor de si, a pequenina mordia os lábios. Era chorona e

cheia de mimo, mas gostava tanto de Sara que, por ternura por

ela, estava disposta a fazer o possível para não chorar... E

depois, refletindo melhor, pensou que podia muito bem ser que

todos os lugares fossem bonitos, desde que Sara lá vivesse.

- E porque é que não é feio ? - perguntou ela, em voz

baixa.

Sara apertou-a muito ao peito e tentou rir. Sentia um

grande conforto no contato daquele corpinho de criança doce e

quente. O dia fora mau. Era com olhos vermelhos e ardentes

que ela espreitava pela janela.

-Daqui vê-se muita coisa que não se pode ver lá de baixo

- explicou ela.

- Que coisas - perguntou Lottie, com aquela curiosidade

que Sara sabia tão bem excitar, mesmo nas pessoas muito mais

velhas.

-As chaminés, com o fumo, tão bonito, que sobe para o

céu fazendo caracóis e grinaldas; os pardalitos que saltitam,

conversando uns com os outros, como se fossem pessoas; as

janelas dos outros sótãos, onde aparecem, a todo o instante,

cabeças de pessoas

que não conhecemos, de forma que podemos

divertir-nos a adivinhar de quem serão. Sentimo-nos

tão alto, tão alto, que chegamos a convencer-nos

de que habitamos um mundo diferente.

- Oh! Eu gostava tanto de ver- implorou Lottie. - Ajuda-

me a subir, se fazes favor!

Sara pegou-lhe ao colo e as duas, empoleiradas na velha

mesa e encostadas à trapeira, olharam para fora.

Quem nunca lançou um olhar sobre os telhados não faz a

menor idéia do espetáculo que

eles ofereciam às duas crianças.

Em toda a volta, os telhados de ardósia desciam

suavemente, alongando-se até às goteiras.

Os pardais, sentindo-se em sua casa, saltavam

e pipilavam sem o menor receio. Dois vieram pousar

na chaminé vizinha e, ali, tiveram uma forte questão...

Até que um deu ao outro uma valente bicada, obrigando-o a

levantar vôo. A janela do sótão mais

próximo estava fechada, porque a casa não era

habitada.

-Eu gostava que houvesse alguém naquela

casa - disse Sara - porque, se vivesse outra criança

naquele sótão, poderíamos, conversar de janela para

janela e, mesmo, com alguma coragem, passar pelo

telhado e visitarmo-nos uma à outra.

O céu parecia muito mais perto do que visto

da rua, a tal ponto que Lottie estava encantada.

Ali naquela fresta, rodeada de canos de chaminés,

tudo o que se passava lá em baixo parecia irreal.

Esqueciam a existência de Miss Minchin, de Miss

Amélia, das aulas, dos livros... e o rodar das

carruagens da praça parecia um ruído vindo do outro

mundo.

- Oh Sara ! - exclamou Lottie, aconchegando-se muito ao

braço protetor da sua grande amiga.

- Eu gosto muito deste sótão, imenso! É bem mais

bonito do que lá em baixo!

- Olha para aquele passarito - murmurou Sara.

-Que pena não ter migalhinhas para lhe deitar!

- Mas tenho eu - respondeu Lottie, com um gritinho de

alegria. - Tenho no meu bolso um bocadinho de pão doce, que

comprei ontem com o meu dinheiro.

Ao vê-las atirar-lhe com migalhas, o pardalito voou para

uma chaminé.

Evidentemente, não tinha nenhum amigo ali, nos telhados,

e aquelas migalhas inesperadas não lhe inspiravam

confiança... Mas vendo que Lottie não fazia um movimento e

que Sara o chamava imitando o seu pipilar, como se ela

própria fosse um passarinho, pensou que se enganara e que não

se tratava de uma armadilha, mas sim de um amável convite.

Curvou a cabecita, lá do alto do seu poleiro, e olhou para as

migalhinhas de pão com os olhos brilhantes e espertos. Lottie

dificilmente se conservava quieta.

- Virá? Não virá? Que dizes?... - murmurou ela, muito

baixo.

- Parece que tem um grande desejo de vir...

- respondeu Sara, ainda mais baixo. - Está a ver se

atreve-se ou não... Sim... vai decidir-se... Lá vem ele.

O pardalito descera da chaminé e vinha aproximando-se

aos pulinhos,mas, a três passos das migalhas, parou e tornou

a pôr a cabecita de lado, como se perguntasse a si próprio se

Sara e Lottie não iriam transformar-se em grandes gatos, que

saltariam sobre ele. Por fim, convencido de que as duas

meninas eram menos terríveis do que podiam parecer, avançou

mais e mais, aos pulinhos tímidos, até que, tendo apanhado

com o bico, mais rápido do que um relâmpago, uma grande

migalha, voou, levando consigo o belo petisco, e foi

refugiar-se do outro lado da chaminé.

- Agora já perdeu o medo - disse Sara. Não tarda a vir

buscar mais...

O pardalito não só voltou, como trouxe um

amigo. O amigo, por sua vez, foi buscar o pai, e os

três comeram regaladamente, soltando muitos pios

alegres, e parando, de instante a instante, para

observarem Lottie e Sara.

O contentamento de Lottie era tão grande, que a

ave a fez esquecer a deplorável impressão que o quarto

de Sara lhe havia causado. A tal ponto que, ao descerem

da mesa, Sara pôde mostrar-Lhe todas as belezas do seu novo

domicílio, e das quais nem sequer

ela própria tinha ainda suspeitado a existência.

- Vês? - dizia Sara. - Este quarto é, ao mesmo

tempo, tão pequeno e tão alto, que parece um ninho

colocado numa árvore. O teto, que desce muito de

lado, é engraçado! Quando estamos deste lado, mal

podemos ficar de pé! Quando amanhece, vejo

o céu do meu leito, através da janela quadrada, aberta

no teto: é tal qual como se fosse a própria luz

encaixilhada. Se está um dia de sol, vejo flutuar

nuvenzinhas cor-de-rosa e parece-me que posso, até toca-

las com os dedos. Quando chove, ouve-se

o ruído que fazem as gotas de chuva a cair: dir-se-ia

que conversam gentilmente conosco. À noite, há as

estrelas; podemos entreter-nos a contar quantas se

vêem pelo quadrado da janela. Não fazes idéia da

quantidade que é. E, olha agora para esta grade, um

pouco ferrugenta, do fogão. Se estivesse bem limpa

e reluzente, e houvesse lá dentro um bom lume, como

seria agradável... Vês? É um belo quartozinho, este.

Sara ia e vinha, no pequeno espaço do aposento com

Lottie pela mão e acompanhando cada palavra

com um gesto, à medida que descrevia todas as

maravilhas que ia descobrindo para si própria e

para Lottie. Esta acreditava sempre em tudo quanto

Sara lhe contava.

- Vês? - continuava Sara. - Podia-se cobrir

o sobrado com um tapete da Índia, espesso e macio, de

linda cor azul; neste canto, ficaria um pequeno divã com

muitas almofadas, para nos recostarmos: por cima uma

prateleira de livros, que estariam ali, mesmo à mão. Diante

do fogão, um tapetezinho de pele; e nas paredes, panos

preciosos e quadros; era preciso que fossem pequenos, mas

isso não impedia que fossem bonitos. Aqui, instalar-se-ia um

candeeiro com quebra-luz cor-de-rosa; no meio do quarto, uma

mesa com um serviço de chá; em chaleira de cobre redonda e

reluzente, cantaria a água, sobre o lume. Quanto ao leito,

seria inteiramente diferente: um bom colchão, uma linda

colcha de seda adamascada... Enfim, seria soberbo. E talvez

nós conseguíssemos que os passarinhos fossem tão nossos

amigos, que viessem bater com o bico na vidraça, para lhes

abrirmos a janela e eles entrarem...

- Oh Sara! - exclamou Lottie. - Como eu gostava de morar

aqui!

Quando Sara, depois de convencer Lottie a ir-se embora e

de tê-la acompanhado até à escada, entrou novamente no

quarto, parou no meio do cubículo onde dormia, e olhou em

volta. A sua imaginação tinha-se acalmado; o seu entusiasmo

desaparecera. O leito apareceu-lhe tal como era: duro e

coberto com um miserável cobertor.

O gesso das paredes caía aos bocados; nem um farrapo de

tapete dissimulava o sobrado ordinário e para se sentar,

tinha ùnicamente o velho banco desconjuntado e sem um pé.

Sara sentou-se e deixou tombar a cabeça nas mãos. A curta

visita de Lottie conseguira, apenas, tornar-lhe a solidão

mais amarga-tal como sucede aos prisioneiros, que sentem mais

vivamente o peso do cativeiro quando a porta da prisão se

fecha sobre os visitantes.

"Estou num canto perdido... - disse ela consigo mesma. -

O canto mais triste do Universo.”

Estava ela entregue a estas reflexões quando lhe

pareceu ouvir um pequeno ruído. Ergueu a cabeça

e valeu-lhe não ser medrosa pois, de contrário, teria

dado um salto no banco.

Não longe dela, encontrava-se um grande rato

sentado nas patas traseiras, farejando o ar com muito

interesse.

Alguns bocaditos do pão doce que Lottie trouxera tinham

caído no chão, e o rato, atraído por

aquele maná inesperado, saira do seu buraco.

Parecia-se de tal maneira com um gnomo de

bigodes grisalhos, que Sara ficou imóvel, sem saber

o que fazia. O rato olhava para ela com olhos

brilhantes, tal como uma pessoa que fizesse uma pergunta e

esperasse a resposta. Evidentemente, o animalzito não estava

certo de ser bem recebido, e a

sua atitude fez nascer no espírito de Sara mil

pensamentos como só ela tinha.

"Na realidade, é muito triste ser rato” - pensava. -Toda

a gente detesta os ratos e, quando

algum aparece, todos fogem e gritam: -"Que horrível

bicho ! " Eu, por mim, não gostaria nada que ao ver-me,

alguém gritasse: - "Que horrível Sara!"

ou que me preparassem ratoeiras, disfarçadas num

petisco. Ser passarinho é muito diferente. Mas ninguém

se lembrou de perguntar a este rato, quando

nasceu, se preferia ser pássaro. Ninguém lhe perguntou:

"Que preferes tu ser?"

Continuava tão quieta, que o rato ia tomando

coragem. Tinha medo, mas tal como fizera o pardal dizia

lá consigo que Sara não era um animal pronto

a saltar sobre ele. O pobre rato tinha muita fome.

A sua família, composta da senhora rata e de numerosa

ninhada, vivia na parede e andava com pouca

sorte, naqueles últimos tempos: não havia maneira de

encontrar nada para comer nem para roer. Os ratinhos

choravam, e o pai sentia-se disposto a arriscar

a vida por aquelas apetitosas migalhas de pão doce.

Resolveu-se, finalmente, a pôr as quatro patas no chão.

- Vem, vem - dizia-lhe Sara. - Eu não sou uma ratoeira.

Vem comer o pão, pobre bichinho. Os prisioneiros da Bastilha

tornaram-se amigos dos ratos da prisão. E se eu tentasse

tornar-te meu amigo?

Compreenderão os animais o que Lhes dizem? Ninguém sabe,

mas há uma coisa certa: é que entendem muita coisa. Talvez

exista uma linguagem universal que não é feita de palavras e

que é compreendida por todos os seres que vivem no vasto

mundo. Talvez haja, na Natureza, uma voz que fala sem fazer o

menor ruído...

Seja como for, o rato, a partir daquele minuto,

compreendeu que se encontrava em segurança. Adivinhou que

aquela menina, sentada no banco vermelho, não procuraria

afugentá-lo com gritos selvagens, não lhe atiraria terríveis

objetos que o assustariam ou fariam com que regressasse ao

seu buraco mutilado e coxo. E ele era, na realidade, um belo

rato, que não tinha a menor má intenção.

Ao erguer-se nas patas traseiras, com os olhos fixos em

Sara, esperava que ela o compreendesse e não começasse

imediatamente a detestá-lo. E quando a voz misteriosa da

Natureza o tranqüilizou, aproximou-se devagarzinho das

migalhas e começou a comer. Olhava sempre para Sara,

exatamente como os pardais haviam feito, com uma expressão

tão suplicante, que a pequenina sentiu-se entristecer.

Observava-a sem fazer o menor movimento. Havia uma

migalha muito maior do que as outras, um verdadeiro bocado de

pão, que tentava o pobre animal; mas era preciso aproximar-se

muito do banco, e mestre rato sentiu-se ainda um pouco

intimidado.

"Ele quer levar aquele bocado à família - pensava Sara.

- Não me mexerei. Talvez seja capaz de vi-lo buscar. "

Estava de tal maneira imóvel, que nem respirava.

O rato, insensivelmente, tinha-se aproximado, comendo os

bocadinhos mais pequeninos; depois, parou, farejou o ar com

seu focinho pontiagudo, sempre a olhar para Sara, e depois,

com a mesma rapidez do pardal, correu para o bocado de pão,

apanhou-o e desapareceu, como um relâmpago, numa pequena

fenda da parede.

-Eu tinha a certeza de que o bicho queria levar aquele

bocado aos filhos - disse Sara em voz alta. - Creio que vou

arranjar um amigo.

Cerca de oito dias depois, uma noite em que Hermengarda

pudera ir, de fugida, até ao sótão, ficou surpreendida ao ver

que Sara não respondia, imediatamente, à pancadinha discreta

com que era seu costume anunciar-se. O silêncio era mesmo tão

absoluto, que Hermengarda julgou que a sua amiga já estivesse

a dormir. Mas, com grande surpresa, a pequena ouviu Sara rir-

se baixinho, ao mesmo tempo em que parecia falar

afetuosamente a alguém.

- Toma - dizia ela. – Pega-lhe depressa e volta a

correr, para casa, Rodilard! Vai depressa ter com a tua

mulher!

Quase ao mesmo tempo, Sara abriu a porta e deu com

Hermengarda, muito assustada.

- Com quem falavas tu, Sara? - balbuciou Hermengarda.

Sara fê-la entrar, cautelosamente, mas tinha o ar de

quem acabava de passar uns momentos agradáveis.

-Dir-te-ei, se me prometeres não ter medo e

não gritar - respondeu ela.

Hermengarda por pouco não soltou imediatamente um grito,

mas conseguiu dominar-se.

Percorreu o quarto com o olhar e não viu ninguém. Mas

Sara falara a uma pessoa, com certeza.

Uma vaga ideia de fantasmas atravessou-lhe o espírito.

- É alguma coisa que me vai assustar? - perguntou ela,

com hesitação.

- Há pessoas que têm medo - respondeu Sara.

- Eu própria assustei-me, a primeira vez, mas agora já

não.

- Não é... um fantasma - disse Hermengarda com os dentes

a bater.

- Oh, não - exclamou Sara, soltando uma gargalhada. - É

o meu rato.

Hermengarda precipitou-se sobre o leito, puxando a

camisa para os pés e escondendo os braços no xale. Não

gritava, mas estava sufocada de medo.

- Oh Oh - dizia ela, com voz estrangulada.

- Um rato! Um rato!

- Eu bem sabia que terias medo - replicou Sara. - Mas

não é motivo para isso. Estou quase a domesticá-lo. Ele

começa a conhecer-me e vem quando eu o chamo. Tens medo de o

ver?

Depois do seu primeiro encontro com o rato, e graças aos

restos que trazia da cozinha, esta estranha amizade tinha

feito grandes progressos, e Sara acabara por esquecer, a

pouco e pouco, o verdadeiro estado civil do seu companheiro.

Primeiro, Hermengarda só pensou em se aninhar sobre o

leito e esconder os pés, cuidadosamente, sob o cobertor. Mas

a história do primeiro encontro de Sara com Rodilard excitou

a tal ponto a sua curiosidade, que ela acabou por se debruçar

nos pés do leito, para ver melhor a amiga, ajoelhada muito

perto da fenda do rodapé.

- Ele... não vai sair de repente e saltar sobre a cama?

- perguntou.

- Que ideia - respondeu Sara. - É tão bem educado como

nós. É tal qual uma pessoa. Vais ver.

Pôs-se então a assobiar muito baixinho; para ouvi-la,

era necessário que o silêncio fosse absoluto. Sara estava tão

absorvida como se quisesse fazer um feitiço ou pronunciasse

palavras mágicas. Por fim ,respondendo ao chamamento,

apareceu no buraco uma cabecinha de olhos muito vivos e

grandes bigodes. Sara tinha na mão umas côdeas de pão, que

deixou cair, e Rodilard saiu tranquilamente e veio comê-las.

Depois, avistando um bocado maior do que os outros, pegou-lhe

com os dentes e levou-o para casa, com um ar de pessoa muito

ocupada.

- Vê como é gentil - exclamou Sara. - Come os bocadinhos

pequenos e leva os maiores à mulher e aos filhos. Muitas

vezes ouço-os soltar gritinhos de alegria. Cada um tem uma

forma diferente de gritar. Sei reconhecer, muito bem, se é o

pai, a mãe ou os pequeninos.

Hermengarda pôs-se a rir.

- Oh! Sara! - disse ela. - Tu és extraordinária Mas és

boa!

- Bem sei que sou extraordinária - respondeu Sara,

alegremente. - E também sei que procuro ser boa.

Esfregou a testa com a sua mãozinha morena, e os olhos

encheram-se-lhe de ternura.

- O papá estava sempre a fazer-me arreliar - continuou

ela - mas eu gostava tanto! Chamava-me original, mas ficava

encantado quando eu inventava as coisas mais extravagantes...

Não posso deixar de imaginar e inventar... Estou mesmo

convencida de que, sem isso, não poderia viver...

Calou-se um instante, e olhou em volta. Depois concluiu,

em voz baixa:

-Não poderia viver... principalmente aqui.

Hermengarda estava, como sempre, suspensa das palavras

de Sara.

- Quando tu falas - disse ela - parece que tudo quanto

contas é verdade. Falas de Rodilard como se ele fosse uma

pessoa a valer.

- Mas é, realmente, uma pessoa - respondeu Sara. - Tem

fome, tem medo, tal como nós. Têm família, como os homens.

Quem nos diz que não pensa como nós pensamos? Os seus olhos

são inteligentes. Foi por isso que lhe dei um nome.

Sara sentara-se no chão, na sua atitude favorita, com os

braços em volta dos joelhos.

- Para mais - continuou ela - é um rato da Bastilha, que

me foi enviado para que eu tenha um amigo. Não me custa nada

arranjar pão seco, porque a cozinheira deita muito fora. E o

Rodilard não precisa de mais nada.

- Então, continuamos na Bastilha? - disse Hermengarda,

com vivacidade. -Ainda imaginas que estás lá?

- Imagino - respondeu Sara. - Às vezes quero imaginar

que estou noutro lugar, mas é mais fácil supor que estou na

Bastilha, principalmente quando faz frio.

Naquele momento, Hermengarda saltou para o chão,

assustada com um ruido que acabava de ouvir. Dir-se-iam duas

pancadas muito nitidas, dadas do outro lado da parede.

- Que é isto - exclamou ela.

Sara respondeu, num tom dramático:

- É o prisioneiro da cela vizinha...

- Becky! - disse Hermengarda, contentíssima.

- Exatamente!- respondeu Sara. – Escuta.As duas pancadas

querem dizer: "Estás lá, prisioneiro»?"

Sara, por sua vez, bateu três pancadas na parede, como

se respondesse.

- Isto - explicou ela - significa "Estou cá e tudo corre

bem".

Quatro pancadas soaram do lado de lá.

- E isto - continuou Sara - traduz-se assim "Nesse caso,

companheiro de desgraça, durmamos tranqüilos! Boa noite!"

A carinha de Hermengarda tinha uma expressão radiante.

- Oh Sara - disse ela. - É como nas histórias.

- Mas é, realmente, uma história - respondeu Sara. - A

vida de toda a gente é uma história a tua, a minha, a de Miss

Minchin...

E, tornando a sentar-se, continuou a dar livre curso à

sua imaginação, de tal maneira que Hermengarda esqueceu que

estava fora do regulamento e foi preciso que Sara Lhe

lembrasse a urgência de deixar a Bastilha e voltar, com

passos cautelosos, para o quarto donde desertara havia tanto

tempo.

O CAVALHEIRO DA ÍNDIA

As peregrinações de Hermengarda e Lottie ao sótão eram

muito arriscadas. Nunca tinham a certeza de encontrar Sara no

seu quarto, e podia muito bem acontecer encontrarem Miss

Amélia, numa das rondas silenciosas, quando já eram horas de

todas dormirem. Por isso, as suas visitas eram raras e a vida

de Sara cada vez mais triste. Sentia-se ainda mais só quando

estava no rés-do-chão do que no sótão. Lá em baixo ninguém

lhe dirigia a palavra e, quando ia pelas ruas, carregada de

embrulhos ou de cestos, quando lutava, contra o vento, que

lhe arrancava o velho chapéu, ou sentia a chuva repassar,

lentamente, os sapatos rotos, sentia-se mais abandonada

ainda, no meio de desconhecidos que passavam por ela

indiferentes.

No tempo em que era a princesa Sara e saía de carruagem,

acompanhada por Mariette, com a sua carinha tão bonita e

original, os seus abafos suntuosos e chapéus elegantes,

chamava, muitas vezes, a atenção dos transeuntes.

Uma menina bonita, bem vestida, desperta sempre

interesse e admiração. Mas as pequeninas mal vestidas passam

despercebidas e ninguém pensa em sorrir-lhes.

Assim, já não olhavam para Sara, agora que ela percorria

apressadamente as ruas cheias de gente.

Crescera muito e, como do seu riquíssimo enxoval apenas

lhe havia deixado os vestidos mais usados, Sara compreendia

que devia ter um aspecto lamentável, com as roupas justas e

as saias muito curtas.

Miss Minchin tinha disposto, como entendera,de todo o

seu vestuário, e contava que Sara usasse até ao último fio as

pobres roupas que ela "generosamente" lhe concedera.

Algumas vezes, Sara parava diante das montras com

espelhos, e ria alto, ao ver a sua figura;outras vezes,porém

corava até à raiz dos cabelos e mordia os lábios, voltando-se

rapidamente.

À noite, quando passava em frente de janelas bem

iluminadas, gostava de olhar para dentro das casas aquecidas

e confortáveis, e inventava histórias acerca dos seus

habitantes, que ela via agrupados junto do fogão ou sentados

em redor da mesa.

Isto a divertia muito. Havia, assim, na praça onde

ficava o colégio de Miss Minchin, várias famílias de quem ela

fizera, pela imaginação, verdadeiros amigos.

Uma delas agradava-lhe particularmente. Chamava-lhe a

"Grande Família", não porque as pessoas que a compunham

fossem exageradamente altas, mas porque eram muito numerosas.

Nesta "Grande Família" havia oito crianças, um papá esbelto e

vigoroso, uma mamã fresca e robusta, uma avó de cabelos

brancos e faces rosadas e um grande número de criados. Agora,

via os pequeninos sair com criadas bem vestidas; logo, subiam

para a carruagem, com a mãe; mais tarde, quando o pai

chegava, vinham todos esperá-lo, precipitando-se para o

beijar, tirar-lhe o sobretudo e esvaziar-lhe as algibeiras;

ou, então, juntavam-se ao pé das janelas da

"nursery"(aposentos reservados às crianças) e empurravam-se,

alegremente, a fim de olhar para fora. Numa palavra, pareciam

sempre agradàvelmente ocupados, como sucede, em geral, numa

grande família.

Sara gostava muito deles e batizara-os, a todos, com

nomes românticos, tirados dos seus livros preferidos: elas

eram Eldelberta, Violeta, Liliana, Rosalinda e Verónica; aos

rapazes chamava Vivian, Guy e Heitor. Uma vez por outra, em

lugar de dizer a "Grande Família", chamava-lhes "os

Montmorency".

Certa noite, aconteceu uma coisa muito engraçada,

embora, pensando bem, não houvesse motivo para rir.

Alguns dos Montmorency deviam ir a um baile infantil e,

justamente quando Sara passava em frente da porta, saiam eles

para entrar na carruagem. Verónica e Rosalinda, com vestidos

de tule bordado, subiram primeiro, e Guy, que tinha cinco

anos, subiu depois. Era um amor o rapazinho, corado, de olhos

azuis e com uma linda cabecinha redonda, toda encaracolada.

Sara esqueceu-se do cesto que transportava, do casaco velho

que a cobria e de tudo o mais, para parar e admirar, durante

um minuto, aquela criança encantadora.

A festa do Natal estava próxima, e tinham contado aos

pequenos Montmorency muitas histórias de crianças pobres que,

não tendo mãe nem pai para acarinhá-las, nunca recebiam

presentes e sofriam frio e fome. Em todas estas histórias

havia sempre meninos e meninas felizes e amimados, que

encontravam, por acaso, as crianças pobres, e se apressavam a

dividir com elas o seu dinheiro e os seus brinquedos. Às

vezes levavam-nas, mesmo, a jantar com eles nas suas casas.

Naquela tarde, Guy tinha-se comovido até às lágrimas com

uma história deste gênero e ardia em desejos de encontrar uma

daquelas crianças desgraçadas, para lhe dar um xelim (Moeda

inglesa) novinho que possuía; estava convencido de que, com

um xelim tão reluzente, a criança pobre nunca mais precisaria

de nada. Quando saiu com as irmãs, para o baile, levava a

bela moeda de prata no bolso das calças à maruja e,justamente

ao chegar à carruagem, viu Sara com o seu vestido muito usado

e o cesto já velho, parada no passeio úmido, a olhar para ele

com uma espécie de avidez.

Guy pensou logo que ela talvez não comesse havia muito

tempo. Era pequenino de mais para compreender a dor que feria

o coração de Sara, ao pensar na doce vida familiar daquela

criança, e a alegria que sentiria se o pudesse abraçar e

beijar com todas as suas forças. Só viu uma coisa: que era

muito magra, tinha os olhos pisados e um vestido feio.

Meteu imediatamente a mão na algibeira, tirou o xelim e

aproximou-se de Sara com um sorriso gentil.

- Toma, pobre pequena! - disse ele. – Aqui tens o meu

xelim novo. É para ti!

Sara estremeceu e, pela primeira vez, compreendeu que se

parecia realmente com as crianças pobres que, noutro tempo,

paravam para a ver descer da carruagem. Então, era ela quem

distribuía moedas.

Corou e empalideceu violentamente e, durante um segundo,

julgou que não teria coragem de aceitar o xelim de Guy.

- Oh Não ! - exclamou ela. – Não! Muito obrigada! Não

posso aceitar.

A sua voz parecia-se tão pouco com a dos pequenos

mendigos vulgares, e a sua atitude era tão perfeitamente a de

uma criança bem educada, que Verónica (que na realidade se

chamava Janet) e Rosalinda (cujo verdadeiro nome era Nora) se

debruçaram para escutar.

Mas Guy não queria desistir de ser generoso. Colocou a

moeda na mão de Sara.

-Sim, minha pobre menina, deve aceitar - disse ele, com

energia. Poderá pagar o jantar, porque o xelim está inteiro!

Havia tanta candura e bondade no seu rostozinho honesto,

e era tão fácil adivinhar que uma recusa o deixaria desolado,

que Sara compreendeu que era preciso aceitar, sob pena de ser

cruel. Dominando o seu orgulho, com as faces em fogo, disse:

-Muito obrigada. O menino é bom, muito bom e gentil!E

enquanto ele subia, contentíssimo, para a carruagem, ela

afastou-se, procurando sorrir, embora o coração lhe batesse

desordenadamente e os seus olhos estivessem rasos de

lágrimas. Sabia muito bem que estava pobremente vestida mas,

até então, nunca pensara que a pudessem tomar por uma

mendiga!

A carruagem dos Montmorency pôs-se em andamento e, já

dentro, as três crianças que a ocupavam conversavam

animadamente.

- Oh! Donald (era este o verdadeiro nome de Guy), porque

deste tu o teu xelim a esta pequenina?- perguntou Janet, num

tom de censura. - Tenho a certeza de que não é uma pedinte.

-É possível que seja, mas, na verdade, não tem o ar nem

as maneiras dos mendigos - disse Nora.

- E depois, ela não pediu nada - continuou Janet. - Eu

até estava com medo que ela se zangasse. Tu compreendes,

Donald, ninguém gosta de ser tomado como pedinte, quando não

é.

- Ela não ficou zangada - retorquiu Donald um pouco

perturbado, mas não convencido. Riu-se para mim e disse que

era um menino muito bom e gentil. E é verdade! - concluiu

ele, com vigor:Dei o meu xelim novinho, todo inteiro.Janet e

Nora trocaram um olhar.

- Uma verdadeira mendiga não teria falado assim -

afirmou Janet.Teria dito "Muito obrigada; meu bom senhor...e

teria feito uma reverência.”

Sem que Sara pudesse suspeitar, os membros da "Grande

Família", a partir desse dia, começaram a dispensar-lhe o

mesmo interesse que ela lhes dispensava a eles. As cortinas

das janelas levantavam-se, quando ela passava, e à noite,

junto do fogão, discutia-se a seu respeito.

- Serve de criada no Colégio de Miss Minchin- dizia

Janet.Deve ser órfã. Ninguém parece ocupar-se dela. Mas,

embora use vestidos rotos, não é uma mendiga.

Em consequência disto, Sara passou a ser conhecida,

entre as crianças, pela "pequenina que não é mendiga" - nome

bastante longo e que os mais novinhos pronunciavam a seu

modo, de uma forma pitoresca.

Sara conseguiu furar o xelim de um lado ao outro, mesmo

ao meio; enfiou-lhe um bocado de fita estreita e trazia-o

pendurado ao pescoço. A sua afeição pela "Grande Família"

tornou-se maior depois deste incidente como, de resto,

sucedia com tudo, fosse o que fosse a que pudesse afeiçoar-

se. Estimava Becky cada vez mais, e esperava, com

impaciência, as duas manhãs de cada semana em que dava lição

de francês às alunas mais novinhas. As pequeninas gostavam

muito de Sara; todas queriam estar mais perto dela e dar-lhe

a mão. Senti-las muito perto de si, confortava o coração da

pobre criança. Tinha conseguido domesticar de tal maneira os

pardais, que, mal subia à mesa e aparecia na

trapeira,assobiando docemente, ouvia logo um rumor de asas e

um pipilar alegre. Um bando de passarinhos precipitava-se

para o telhado, para vir "conversar" com a sua amiguinha e

fazer honra às migalhas que ela lhes deitava.

Quanto a Rodilard, tinha tanta confiança nela que, de

tempos a tempos, fazia-se acompanhar da esposa e por um ou

dois dos filhos. Sara falava-lhe, qualquer pessoa iria jurar

que ele a compreendia.

Sara experimentava agora um sentimento um tanto complexo

por Emily que, insensível a todas as suas vicissitudes,

fitava sempre as pessoas e as coisas com o mesmo olhar

indiferente. Esse sentimento nascera numa hora de grande

desespero. Sara tinha querido acreditar, ou, pelo menos,

fingia acreditar, que Emily a compreendia e partilhava os

seus desgostos. Custava-lhe confessar a si própria que a sua

única companheira não sentia nem ouvia coisa alguma. De

tempos a tempos, colocava a boneca em cima da mesa, sentava-

se no banco, em frente dela, e imaginava tantas coisas, que,

a pouco e pouco, a sua fisionomia exprimia uma espécie de

pavor, principalmente quando, ao anoitecer, o silêncio era

apenas perturbado pelos guinchos e corridas da família

Rodilard.

Sara queria persuadir-se de que Emily era uma espécie de

fada benéfica que velava por ela. Algumas vezes, quando a sua

imaginação estava mais excitada, a pequenina falava à boneca

quase com a certeza de que ela ia responder-lhe. Mas Emily

ficava sempre impassível.

- Apesar de tudo - dizia Sara, para se consolar - eu

própria não respondo, muitas vezes, quando me falam. Quando

as pessoas dizem disparates, o melhor que há a fazer é não

responder nem uma palavra e olhar para elas, enquanto

fazemos, intimamente, reflexões. É um bom sistema, que

exaspera Miss Minchin e que assusta um pouco Miss Amélia e a

todas as "grandes". Quando não nos encolerizamos, os outros

compreendem logo que somos os mais fortes, visto que

conseguimos dominar-nos, ao passo que eles não, e dizem

coisas estúpidas de que se arrependem em seguida. A cólera é

uma grande força; mas o sentimento que ajuda a dominar-nos, é

ainda mais forte. Nada é melhor do que não responder aos

nossos inimigos. Eu quase nunca lhes respondo. Pode ser que

Emily vá ainda mais longe... Não responde nem mesmo aos

amigos. Guarda tudo no coração!

Mas, apesar de toda a boa vontade de Sara, estes

argumentos não a satisfaziam inteiramente. Quando, depois de

um longo dia de trabalho, passado a correr de um lado para o

outro, à chuva e ao frio, ela entrava, toda molhada, com

fome, o corpo transido e as pernas trôpegas; quando não havia

recebido como agradecimento senão más palavras e maus

olhares; quando a cozinheira tinha sido grosseira e Miss

Minchin detestável, e as alunas riam, disfarçadamente, ao ver

o seu vestido muito curto e os sapatos rotos, então, o

coração torturado e desolado de Sara recusava deixar-se

consolar diante do rosto impassível de Emily.

- Eu morro, tenho a certeza - murmurava ela. Os grandes

olhos de Emily fitavam a parede, vagamente.

- Não posso suportar mais esta vida - dizia a pobre

criança, toda tremula. Tenho frio, estou encharcada, morro de

fome. Andei todo o dia sem parar e ralharam-me desde manhã à

noite. E porque não foi possível encontrar o que a cozinheira

queria, privaram-me de jantar. Na rua, riem-se de mim porque

os meus sapatos estão tão velhos, que me fazem escorregar e

cair. Fiquei toda coberta de lama. E riem-se! Ouves-me?

Olhava sempre para os olhos de vidro e para a cara de

porcelana. O desespero apoderou-se dela. Com uma pancada seca

da sua mãozinha empurrou Emily; Emily caiu no chão e Sara,

que nunca chorava, rompeu num aflitivo soluçar.

- Não passas de uma boneca - gritava ela

nervosamente. - Não ouves, não tens coração, não

snntes nada! Não passas de uma boneca!

-Emily estava no chão, com as pernas dobradas sobre a

cabeça, mas conservava-se calma e imperturbável. Sara

escondeu a cabeça nos braços. Na parede os ratos perseguiam-

se, a chiar: certamente Rodilard estava castigando algum dos

filhos.

Pouco a pouco, as lágrimas de Sara secaram.

Era tão pouco extraordinário abandonar-se assim que ela

própria estava surpreendida. Não tardou a erguer a cabeça e a

olhar para Emily, que parecia olhá-la também e, na realidade,

Sara julgou ver uma expressão de simpatia nos seus olhos

azuis.

Cheia de remorsos, levantou a boneca. Os seus lábios

sorriram...

- Tu não podes ser de outra maneira - murmurou ela, com

um suspiro de resignação - tal como Lavínia e Jessie não

podem mudar o seu estúpido cérebro. Nós não somos todos

iguais!

E, depois de ter beijado a boneca e de lhe haver

arranjado as roupas, foi colocá-la na cadeira.

-Sara desejava ardentemente que a casa vizinha tivesse

habitantes. A trapeira do sótão dessa casa ficava muito perto

da sua, e parecia-lhe que seria uma grande consolação para

si, ver, um dia, aquela janela abrir-se e aparecer uma cabeça

na estreita abertura.

"Se fosse uma cara bondosa e sorridente “- pensava ela -

eu poderia dizer-Lhe "Bons dias...”

E, depois disso, aconteceriam, talvez, muitas coisas

agradáveis... Mas é provável que ali ficassem apenas

instalados os criados.”

Certa manhã em que regressava a casa o mais depressa que

podia, depois de ter corrido, da mercearia para o talho, do

talho para a padaria e da padaria para outros sítios onde a

mandaram, ela viu, com grande satisfação, que, durante a sua

ausência uma carroça de mudanças tinha parado em frente da

casa pegada. As grandes portas de entrada estavam abertas de

par em par, e alguns homens, de mangas arregaçadas, iam e

vinham carregados de móveis e grandes embrulhos.

"Até que enfim!” - disse ela para consigo. A casa foi

alugada! Agora, espero que hei-de ver, muito brevemente, uma

cara simpática na trapeira vizinha da minha!"

Sentia, quase, desejo de se juntar ao grupo de

espectadores que se entretinham a observar os homens que

faziam a mudança. Parecia-lhe que, se pudesse lançar um olhar

sobre o mobiliário, faria mais fàcilmente uma idéia dos novos

locatários.

"As mesas e as cadeiras de Miss Minchm parecem-se com

ela - pensara Sara. - Isso me deu logo na vista, quando

cheguei, e, no entanto, era ainda bem pequena! Disse-o ao

papá e ele riu, mas era de minha opinião. Tenho a certeza de

que a "Grande Família" tem boas poltronas, sofás

confortáveis, e já notei que o papel das paredes, com flores

cor-de-rosa, se harmoniza maravilhosamente com o seu caráter

tão alegre. Tudo o que está naquela casa é atraente e

agradável como eles."

No mesmo dia, um pouco mais tarde, tornou a sair para ir

buscar salsa, e, ao chegar à rua, o coração bateu-lhe com

mais força. No passeio estavam alguns móveis e, entre eles,

uma mesa de madeira de teca( nome de um gênero de árvores da

Índia), admiràvelmente esculpida, com duas cadeiras iguais e

um biombo coberto com um rico bordado oriental. A vista

daqueles objetos quase fez desfalecer a pobre criança.

Na casa paterna, lá longe, na Índia, havia móveis

idênticos! E entre as coisas de que Miss Minchin se tinha

apoderado, havia, justamente, uma secretária de teca

oferecida a Sara pelo pai.

"São belos móveis!” - pensou ela. - Móveis suntuosos.

Devem pertencer a uma família rica e distinta.

As carroças de mudança sucederam-se sem interrupção,

durante todo o dia, e Sara teve, por várias vezes, ocasião de

ver o que elas transportavam. Pôde assim, convencer-se de que

não se enganava, ao supor que os seus novos vizinhos eram

muito ricos. Todo o mobiliário era soberbo e a maior parte

dos móveis orientais. Sara viu sair das carroças tapetes

espessos e, por fim, um magnífico Buda, num nicho de

incomparável beleza.

- Certamente - observou Sara - alguns dos membros desta

família viveram na Índia. Gostam das lindas coisas orientais.

Estou bem contente... Pensarei que são meus amigos, mesmo que

não veja ninguém na trapeira.

À noite, à hora em que recebia o leite (pois nenhuma

tarefa lhe era poupada), Sara ficou ainda mais satisfeita. O

papá da "Grande Família" atravessou a praça e subiu os

degraus da entrada do palacete novamente aberto, com o à-

vontade de alguém que está em sua casa e tenciona subir

muitas vezes aquelas escadas. Demorou-se lá dentro muito

tempo e, de vez em quando, vinha dar ordens aos homens da

mudança. Evidentemente, devia ser amigo íntimo dos novos

locatários.

"Se houver crianças - calculou Sara - as da "

"Grande Família" virão brincar com elas, e quem sabe se

não subirão ao sótão, para se divertirem?”

Naquela noite, Becky, depois de acabar a sua tarefa,

veio ter com a sua companheira de infortúnio e deu-Lhe

notícias:É um senhor indiano que vem viver aqui para o lado -

disse ela. - Não sei se é preto ou amarelo, mas é mesmo

hindu, muito rico e decente; o papá da "Grande Família" é o

seu procurador. O tal senhor teve toda a sorte de desgostos

e, por isso, é que está doente e triste. Oh miss, ele adora

ídolos! É, com certeza, um pagão. Eu vi um deus de madeira

dourada, que levaram lá para casa. É preciso que alguém lhe

leve um livro de orações.Sara não pôde deixar de rir.

- Becky - explicou ela - o senhor aqui do lado com

certeza que não adora essa estátua. Muitas pessoas têm outras

semelhantes porque são objetos de arte. O meu pai tinha uma

magnífica, e posso afirmar-te que não a adorava.

Mas Becky preferia pensar que o novo vizinho era pagão;

era mais palpitante do que se ele fosse prosaicamente à

igreja próxima, como toda a gente.

Nessa noite, Sara ficou, durante muito tempo, a imaginar

como seria o famoso vizinho, a mulher, se por acaso a tinha,

e os filhos se existissem.

Compreendeu que Becky desejava que fossem todos pretos,

com grandes turbantes e, principalmente, pagãos.

- Nunca vivi perto dos pagãos - confessara a criadita. -

Gostava de saber como eles vivem.

Passaram-se bastantes semanas sem que a sua curiosidade

fosse satisfeita; souberam, então que o novo habitante da

casa vizinha não possuía mulher, nem filhos, nem família; que

era muito doente e tinha um desgosto misterioso que parecia

matá-lo lentamente.

Um dia, parou uma carruagem diante da casa; o pai da

"Grande Família" apeou-se, seguido por uma enfermeira, com a

sua bata branca. Dois criados aproximaram-se, e viu-se sair

da carruagem, amparado por eles, um homem de pele amarelada,

olhos desvairados, e cujo corpo, de esquelética magreza,

desaparecia sob os abafos de peles. Os criados levaram-no

quase em braços até a casa, onde o chefe da "Grande-Família"

o seguiu com ar ansioso. Pouco depois, chegou o carro do

médico, e este, por sua vez, entrou também.

- Sara, há um senhor amarelo que habita aqui ao lado -

murmurou Lottie, durante a lição de francês. - Parece-te que

seja chinês? Dizem que os Chineses têm a pele amarela.

- Não, não é chinês - respondeu Sara, brevemente. - É um

senhor que está muito doente. Vamos, Lottie, voltemos ao

tema. Como se diz: Não, senhor, eu não tenho o canivete do

meu irmão!

E Foi assim que o cavalheiro da Índia apareceu no

horizonte de Sara.

RAM DASS

Embora fosse muito sombria e triste, a praça onde estava

situado o Colégio Minchin tinha, por vezes, lindos poentes.

Viam-se apenas parcialmente por entre chaminés, sobre os

telhados. Da cozinha não se via nada, além de uma claridade

dourada ou rosada, que aquecia as paredes durante alguns

segundos, ou um reflexo esbraseado nos vidros da janela.

Entretanto, havia no colégio um único lugar donde se podia

admirar à vontade todo o esplendor do pôr-do-sol - as grandes

nuvens de ouro que apareciam no poente e outras de púrpura,

bordadas a prata, ou ainda aquelas, muito pequeninas, que, às

vezes, atravessavam o céu, como se fosse um bando de pombas.

Esse lugar donde se podiam contemplar todas estas maravilhas

e respirar um ar mais fresco, era a janela do sótão.

Quando a praça começava a escurecer e as árvores se

transformavam como por encanto, Sara sabia que se preparava a

magia celeste; e se lhe era possível sair da cozinha nesse

momento, subia as escadas, a correr, trepava para a mesa e

debruçando-se tanto quanto podia na trapeira, aspirava

amplamente o ar e olhava em volta de si.

Era como se o céu e a paisagem dos telhados lhe

pertencessem; a maior parte das outras janelas estavam

fechadas, e se algumas estavam semiabertas para deixar entrar

o ar, não aparecia lá ninguém.

Ela ficava ali, admirando ora a bela cúpula azul, que

parecia tão próxima, ora a maravilha do poente e das nuvens

que se aglomeravam e se dissolviam passando do carmim ao cor-

de-rosa, do lilás ao cinzento, ou formando cadeias de

montanhas, separadas por lagos cor de turquesa, de jade ou de

âmbar. Promontórios sombrios avançando em mares luminosos e

pontes lançadas sobre margens mágicas.

Sara chegava a convencer-se de que, por um pouco,

poderia atingir aquelas regiões encantadas e passear ali até

ao momento em que as nuvens a envolvessem e a levassem...

Nunca vira nada tão bonito como o quadro que contemplava na

sua trapeira enquanto os passarinhos saltitavam à sua volta,

nas ardósias dos telhados. E tinha a certeza de que naqueles

momentos, eles próprios, subjugados pelo esplendor do

espetáculo, punham maior doçura no seu pipilar.

Poucos dias depois do cavalheiro da Índia se ter

instalado na sua nova habitação, houve um desses fins de dias

maravilhosos; e como, por feliz coincidência, o trabalho

estava feito e ninguém a encarregara de qualquer tarefa ou

recado urgente, Sara pôde escapar-se mais cedo que de costume

e subir ao seu quarto.

Trepou à mesa e pôs-se à janela. Era deslumbrante. Havia

no poente uma verdadeira maré alta de ouro em fusão; e as

silhuetas pequeninas dos pardais recortavam-se, escuras,

sobre um céu de topázio líquido.

- É o mais belo dos crepúsculos – murmurou ela. - É tão

belo, que chego, quase, a ter medo, como se estivesse para

acontecer alguma coisa extraordinária... Sinto-me sempre

assustada... quando o céu tem um tal esplendor...

Voltou a cabeça, bruscamente; parecia-lhe ter ouvido um

ruído ali mesmo ao pé - um ruído estranho, como se fosse um

gritinho agudo e tremulo, que dava a impressão de vir da

trapeira vizinha. Sara viu, então, que não era só ela a

admirar o céu! Uma cabeça e uns ombros haviam surgido na

outra janela, mas não pertenciam nem a outra menina, nem a

uma criada; e Sara, com o coração a bater fortemente,

reconheceu a tez morena, os olhos brilhantes e o turbante de

imaculada brancura dos indígenas do Industão.

"Um "lascar!”(marinheiro indígena)pensou ela

imediatamente. O grito que chamara a sua atenção fora dado

por um macaquinho que o índio segurava nos braços, com mil

cautelas, e que se aconchegava carinhosamente a ele.

O índio, por sua vez, olhava para Sara, e ela teve a

impressão de que os seus olhos estavam tristes e que o

afastamento do país natal o fazia sofrer cruelmente. Ele

devia ter sede de luz e calor, e fora essa razão por que

viera, como ela, admirar o sol, que tão raramente via na

brumosa Inglaterra. Sara olhou para o índio durante um

minuto, depois lhe sorriu. Sabia, por experiência própria,

como um sorriso, mesmo vindo de um desconhecido, pode ser

reconfortante.

O sorriso de Sara reconfortou-o, incontestavelmente,

porque a sua fisionomia animou-se e, por sua vez, ele

respondeu-lhe com um tão belo sorriso, que os seus dentes,

muito brancos, iluminaram-lhe o rosto como um clarão.

Os olhos de Sara, tão cheios de simpatia, aqueciam

sempre a alma dos que se sentiam cansados e tristes.

Foi, sem dúvida, nesse momento, que o índio largou o

macaquinho. Este, malicioso como todos os da sua espécie e,

provàvelmente, excitado pela própria vista de Sara, fugiu ao

dono, abalou pelo telhado que atravessou numa corrida, saltou

para o ombro da pequenina e de lá para o sótão. Uma

gargalhada de Sara acolheu este alto feito. Mas era preciso

entregar o fugitivo ao dono. Como havia de ser? O macaco

deixar-se-ia apanhar por Sara, ou procuraria fugir, perdendo-

se no labirinto dos telhados? Isso é que era aborrecido...

O animal pertencia, certamente, ao cavalheiro da Índia,

que devia gostar muito dele!

Sara voltou-se para o "lasca", encantada com a idéia de

se lembrar ainda do dialeto hindu, que aprendera com o pai.

Podia, assim, fazer-se compreender.

- Parece-lhe que ele se deixará apanhar? - perguntou

ela.

Uma expressão de espanto e, ao mesmo tempo, de

satisfação, se estampou no rosto trigueiro; parecia, ao pobre

homem, que os seus deuses intervinham, em pessoa, e que

aquela voz tão doce, descia diretamente do céu. Sara

compreendeu que ele já convivera com europeus.

O índio desfez-se em agradecimentos respeitosos: o

macaquinho era muito gentil e nunca mordia, mas dificilmente

deixava alguém aproximar-se dele. Saltava de um lado para

outro, mais rápido que um relâmpago. Era muito desobediente.

Conhecia-o como se ele fosse seu filho e conseguia, algumas

vezes, fazer-se obedecer, mas não sempre. Se a jovem senhora

lho permitisse, Ram Dass atravessava o telhado, entrava pela

janela e agarraria o atrevido animalzinho... Mas aquele

pedido era uma grande audácia da sua parte e, naturalmente, a

jovem senhora recusaria...

Sara, porém, consentiu imediatamente.

- Não se demore - disse ela. - O macaco salta de um lado

para outro, como se tivesse medo.

Ram Dass, com a agilidade de um gato, passou ràpidamente

de uma janela para a outra. Escorregou na trapeira e caiu de

pé, sem fazer o menor barulho; saudou profundamente Sara e

depois, tendo fechado a janela, como precaução, começou a

perseguir o fugitivo. A perseguição não demorou muito tempo.

O macaco, que parecia muito divertido, não tardou a saltar

para o ombro de Ram Dass; uma vez empoleirado ali, sentou-se

a guinchar, e passou o bracinho magro em volta do pescoço do

seu guarda.

Ram Dass agradeceu respeitosamente a Sara. Ela bem tinha

compreendido que o índio notara, logo à primeira vista, o

aspecto miserável do quarto, mas fazia de conta que não vira

coisa alguma e continuava a falar-lhe como se ela fosse a

filha de um rajá. Os poucos minutos que durou ainda a sua

visita, depois de ter apanhado o macaquito, foram consagrados

a exprimir a Sara o seu reconhecimento e dedicação. Aquele

maroto - dizia ele, acariciando o macaco - não era tão mau

como parecia, e o dono, que estava doente, divertia-se com

ele algumas vezes. Ficaria contrariadíssimo se o seu animal

favorito se perdesse. Depois, Ram Dass fez ainda uma

reverência e foi-se embora, pela janela e pelo telhado, com a

mesma ligeireza que o próprio macaco.

Quando ele partiu, Sara ficou algum tempo a sonhar, de

pé, no meio do quarto. A vista do vestuário do índio, as suas

maneiras respeitosas, tudo acordara nela recordações muito

queridas e dolorosas.

Como era estranho pensar que ela própria, Sara, a

"vitima expiatória, a quem a cozinheira dirigira palavras

grosseiras uma hora antes, vivia, há poucos anos ainda,

rodeada por servidores semelhantes a Ram Dass que a saudavam

quando ela passava e cujas frontes se inclinavam quase até ao

chão, quando ela lhes falava. Era verdadeiramente um sonho;

um sonho lindo, que não recomeçaria mais... Como fora

possível produzir-se na sua vida tal transformação?

Adivinhava perfeitamente o futuro que Miss Minchin lhe

preparava. Enquanto não tivesse a idade necessária para ser

professora, utilizá-la-iam como criada, exigindo-lhe, ao

mesmo tempo, que não esquecesse nada do que tinha aprendido e

que, milagrosamente, aumentasse ainda os seus conhecimentos.

Passava a maior parte dos serões a estudar e, de longe em

longe, submetiam-na a uma espécie de exame; se este não fosse

inteiramente satisfatório, isso lhe valeria ser severamente

repreendida. No fundo, Miss Minchin sabia muito bem que Sara

tinha um tão grande desejo de se instruir, que era inútil

dar-Lhe mestres: os livros bastavam; tinha a certeza de que

ela assimilaria todo o seu conteúdo e que, dentro de alguns

anos, poderia começar a ensinar. E, então, encarregá-la-iam

de todos os trabalhos da aula, como a encarregavam, agora, de

todo o serviço da casa. Dar-lhe-iam vestuário um pouco mais

decente, mas Sara sabia que seria sempre feio e que ela teria

sempre o ar de uma criada. Eis o que a esperava no futuro, e

Sara pensava em tudo isto, de pé e silenciosa, no meio da sua

água-furtada.

Depois veio-lhe um pensamento, que lhe fez corar um

pouco as faces e brilhar mais os olhos.O seu corpinho delgado

endireitou-se e ergueu a cabeça.

"Suceda o que suceder - pensou -, há qualquer coisa que

não pode mudar. Eu ando esfarrapada, coberta de andrajos, mas

na minha alma e no meu coração sou sempre uma princesa. Não

teria grande merecimento em proceder como uma princesa, se

andasse vestida de ouro; tenho muito mais, sendo como sou

atualmente. Maria Antonieta, por exemplo,quando estava na

prisão, com um pobre vestido preto, remendado, e os cabelos

todos brancos quando todos a insultavam e lhe chamavam a

viúva, era ainda mais rainha do que no tempo em que vivia

feliz e alegre no meio da sua corte. É nesse tempo de

martírio que eu mais a admiro. As multidões que rugiam, não

lhe faziam medo; ela era mais forte que toda essa gente,

mesmo quando lhe cortaram a cabeça. "

Este pensamento não era novo para Sara e já a havia

consolado muitas vezes; nesses dias, a pequenina ia e vinha

pela casa, com um ar misterioso que Miss Minchin não sabia

explicar e que a irritava, por que tinha a impressão de que

Sara vivia, interiormente, uma vida que a elevava acima de

todos os que a cercavam. Dir-se-ia que, nessas ocasiões a

pequena não ouvia as más palavras que lhe dirigiam ou, pelo

menos, que essas palavras não a impressionavam. Por vezes, no

meio de uma repreensão dura e cruel, Miss Minchin sentia

fixar-se nela aquele olhar que não era de uma criança e

parecia iluminado por um sorriso de altivez. Miss Minchin

estava longe de imaginar que, nesses momentos, Sara dizia

consigo própria:

"Tu ignoras que insultas uma princesa e que, se eu

quisesse, podia mandar-te para o cadafalso com um simples

gesto da minha mão. Mas eu poupo-te, unicamente porque sou

uma princesa e tu... tu não passas de uma pobre criatura

estúpida, vulgar e má, incapaz de proceder de outra forma."

Esta dupla existência imaginária era, para Sara, não

somente uma distração, mas também um verdadeiro conforto e,

mesmo, um preservativo moral, porque, enquanto o seu espírito

estava assim ocupado, a baixeza e maldade dos que a rodeavam

não exerciam nela influência alguma.

- Uma princesa é sempre bem educada.

E quando as criadas, regulando o seu procedimento pelo

de Miss Minchim, lhe davam ordens insolentemente, Sara erguia

a cabeça e respondia-lhes com uma cortesia singular, a tal

ponto, que elas, esquecendo as suas próprias palavras,

grosseiras e más, calavam-se e ficavam a olhar, sem

compreender.

- Tem uns ares e umas maneiras como se chegasse agora

mesmo de Buckingham Palace (palácio real de Londres), esta

garota - dizia, às vezes, a cozinheira, em voz baixa.

- Eu não a poupo, mas reconheço que ela é sempre bem

educada. Nunca se esquece de dizer: "Se faz favor...”, "Quer

ter a bondade?...”,"Peço-lhe desculpa...”, "Não a

incomodo?...”. E diz, estas bonitas frases a propósito de

tudo, na cozinha, como se lhe não custasse nada!

No dia seguinte àquele em que travara conhecimento com

Ram Dass, estava Sara na aula, com as suas alunas. A lição

terminara e ela reunia os livros de exercícios de francês,

pensando nos vários trabalhos que muitas pessoas de sangue

real tinham sido forçadas a fazer, escondidas sob qualquer

disfarce: Alfredo, o Grande, entre outros, que deixou queimar

os bolos e recebeu uma bofetada da mulher do vaqueiro. Que

susto devia ter tido esta mulher, quando soube quem era a

pessoa que ela esbofeteara! E Miss Minchin, que pensaria ela,

se descobrisse que a pobre Sara, cujos pés andavam quase de

fora, era uma princesa verdadeira?... A esta idéia, os olhos

da pequena brilhavam com um fulgor estranho, que exasperava a

diretora. Era de mais; Miss Minchin não pôde conter-se e,

como estava muito perto de Sara, fez, sem o saber, o mesmo

que a mulher do vaqueiro: esbofeteou-a. Sara estremeceu; a

bofetada fê-la despertar do sonho e, durante um segundo, o

seu coração deixou de bater. Depois, involuntáriamente,

soltou uma gargalhada breve.

- De que te ris, impertinente - exclamou Miss Minchin.

Foram precisos alguns momentos para Sara se dominar e

lembrar-se de que era uma princesa. As suas faces estavam

vermelhas e ela sentia como que uma queimadura no lugar onde

lhe tinham batido.

- Estou a refletir! - respondeu ela.

- Pede-me perdão imediatamente - ordenou Miss Minchin.

Sara teve um segundo de hesitação.

-Peço-lhe perdão de ter rido, porque foi, talvez, uma

indelicadeza - respondeu ela , mas não me desculparei de

refletir.

- Como te atreves tu a refletir?! - interrogou Miss

Minchin. - Em que refletes tu?

Jessie sufocou uma gargalhada e tocou no braço de

Lavínia. Todas as alunas tinham levantado a cabeça;

divertiam-se sempre quando Miss Minchin ralhava com Sara,

porque esta nunca mostrava medo e as suas respostas eram

sempre extraordinárias. E naquele dia, também não parecia

assustada, embora estivesse vermelha e os olhos lhe

brilhassem mais do que nunca.

- Pensava - respondeu Sara, delicadamente - no que

aconteceria se eu fosse uma princesa e a senhora me tivesse

esbofeteado. Pensava também que, se eu o fosse, na realidade,

poderia dizer e fazer não importa o quê, porque a senhora não

se atreveria a levantar, para mim, nem a ponta de um dedo. E

imaginava que surpresa e que susto a senhora teria, se

descobrisse de repente...

Sara vivia tão completamente o seu sonho e falava com

tal convicção, que a própria Miss Minchin se sentiu

impressionada. Aquela mulher de inteligência acanhada acabava

de perguntar a si própria se a ingênua Sara não escondia

algum poder misterioso.

- O quê? - gritou ela. - Se eu descobrisse o quê?

- Que eu sou realmente uma princesa - disse

Sara com a maior calma - e que posso fazer tudo quanto

quiser.

Os cinqüenta pares de olhos fixos nesta cena

abriram-se desmedidamente.Lavinia debruçou-se sobre a estante

para não perder nada.

- Sobe imediatamente para o teu quarto - exclamou Miss

Minchin, quase sem poder falar. Saiam da aula vamos, meninas,

continuem a estudar!

Sara fez uma pequena reverência.

- Desculpe-me ter rido, se fui incorreta disse

ela.Depois saiu, deixando Miss Minchin a debater-se contra

uma fúria impotente, e as alunas a segredar por detrás dos

cadernos.

-Viram a cara dela? Viram aquela fisionomia

extraordinária?-disse Jessie, incapaz de se dominar por mais

tempo. -Pois bem, Eu não ficaria surpreendida se ela fosse

uma pessoa importante.E imaginem, se fosse verdade...

DO OUTRO LADO DA PAREDE

Quando se habita uma casa, metida entre outras casas, é

engraçado procurar adivinhar o que fazem e o que dizem os

vizinhos, que se encontram tão perto, do outro lado da

parede. Sara gostava muito desta distração e perguntava

frequentemente a si própria o que lhe esconderia a parede que

separava o colégio de Miss Minchin da casa do cavalheiro da

Índia. Sabia que a sala de estudo ficava ao lado da

biblioteca do misterioso vizinho e desejava, às vezes, que a

parede fosse bem espessa, para que o barulho que as alunas

faziam depois das aulas não o incomodasse demasiado.

- Interessa-me cada vez mais - dizia ela a Hermengarda.

- Contraria-me a idéia de que o nosso barulho o fatiga.

Decidi que ele será meu amigo. Não é impossível, embora nunca

nos falemos. Sonho com ele, penso nele, tenho pena dele e,

assim, tornamo-nos quase parentes. Afirmo-te que estou

inquieta quando vejo o médico vir duas vezes por dia.

- Eu não tenho muitos parentes - observou Hermengarda,

com ar pensativo - e estou bem contente por isso, porque os

que tenho não me agradam. As minhas duas tias só sabem dizer-

me: "Meu Deus, Hermengarda , como estás gorda! Comes doces de

mais!" Quanto ao meu tio, esse passa o tempo a perguntar-me:

"Em que data subiu ao trono Eduardo III?” ou então "Quem foi

que morreu com uma indigestão de lampreia?".Sara começou a

rir.

-As pessoas com quem nunca falamos não podem fazer-nos

perguntas dessas - disse ela. Mas tenho a certeza de que o

cavalheiro da Índia, mesmo que te conhecesse intimamente, não

te perguntaria nada disso. Eu, por mim, gosto muito dele.

Sara sentia-se ligada aos membros da "Grande Família”

porque eles pareciam muito felizes; mas o que a atraia para o

cavalheiro da Índia era o seu ar triste e sofredor. Via-se

que não estava ainda refeito de uma grave doença. Na cozinha,

onde, como é costume, as criadas conseguiam saber tudo por

meios ocultos, o novo vizinho era muito discutido. Não era

hindu, mas sim inglês, e vivera muito tempo nas Índias.

Tivera um tão grande revés de fortuna, que se julgava

arruinado e desonrado para sempre. O abalo fora tão forte,

que ia morrendo de uma febre cerebral. Depois disso nunca

mais tivera saúde nem alegria, embora a roda caprichosa da

fortuna desandasse, e a grande riqueza que julgava perdida,

voltasse intacta ao seu poder. A causa de tantos desgostos

tinham sido umas minas.

- Parece que eram minas de diamantes - contava a

cozinheira. -As minas são pouco seguras, principalmente as de

diamantes... - e, ao falar assim, olhava de lado para Sara,

acrescentando - Sobre isto já tivemos provas...

"Ele sofreu como o pai? - pensava Sara. -Esteve doente

como ele, mas não morreu...”

Tudo isto a fazia interessar cada vez mais pelo vizinho.

Quando ia fazer compras, ao cair da noite sentia-se feliz

porque dizia, de si para si: - “Talvez os cortinados ainda

não estejam corridos e eu possa avistar o meu amigo...”

Quando a praça se encontrava deserta, parava em frente da

casa e, encostada às grades, dizia-lhe baixinho " Boa noite".

"Como não pode ouvir-me - imaginava ela - talvez possa,

ao menos, sentir que penso nele. Quem sabe se os pensamentos

afetuosos atravessam as paredes, as portas e as janelas! Pode

ser que tu, meu amigo da Índia, te sintas um pouco

reconfortado, sem saber por que, enquanto eu estou aqui, ao

frio, a desejar-te boa noite e melhoras para a tua saúde.

Tenho tanta pena de ti - Falava com uma voz muito doce e

profunda. - Gostava que tivesses uma "senhorazinha" para te

acarinhar, como eu acarinhava o papá quando ele tinha dor de

cabeça. Gostaria de ser eu mesma a tua "senhorazinha", meu

pobre amigo... Boa noite! Boa noite! Deus te guarde"

Afastava-se, sentindo-se, ela própria, consolada. Sara estava

convencida de que a sua ardente simpatia chegaria, de uma

forma ou de outra, até ao doente, quando ele estava sozinho,

sentado na sua cômoda poltrona, junto do lume, todo envolvido

num longo roupão e quase sempre com a cabeça apoiada na mão,

olhando vagamente para as chamas. A pequena tinha a impressão

de que os sofrimentos daquele homem eram causados não somente

pelas provações já passadas, mas também por um grande

desgosto atual.

"Se não fosse assim - pensava ela - não estaria tão

abatido e triste, visto ter recuperado toda a sua fortuna e

saber que se curará de todo, com o tempo. Tenho a certeza de

que há qualquer outra coisa".

Se havia, realmente, outra coisa - e sobre esse ponto as

criadas não tinham conseguido saber nada, Sara estava

persuadida de que o pai da "Grande-Familia" (o Sr.

Montmorency, como ela lhe chamava) sabia tudo. O

Sr.Montmorency vinha visitar muitas vezes o cavalheiro da

Índia, e a Sra.Montmorency e as crianças também, embora menos

frequentemente. O doente parecia ter predileção pelas duas

mais velhas, Janet e Nora, aquelas que se tinham indignado

quando o seu irmãozinho Donald dera o xelim a Sara. Era

evidente que ele gostava muito de crianças e talvez,

particularmente, das meninas.

Janet e Nora retribuiram-lhe a afeição e esperavam

sempre com impaciência as tardes em que lhes era permitido

atravessar a praça e ir visitar o seu velho amigo, como duas

meninas bem educadas. Estas visitas eram sempre curtas, como

verdadeiras visitas de cerimônia, porque ele estava doente.

- Coitado! - explicava Janet. - Diz sempre que o

alegramos. Nós procuramos alegrá-lo suavemente.

Janet era a mais velha e dirigia o ranchinho de irmãos e

irmãs. Era ela quem decidia se podiam pedir ao cavalheiro da

Índia que lhes contasse alguma história bonita do país das

florestas e dos tigres; era ela quem dava conta do momento

preciso em que ele começava a sentir-se fatigado, ou

compreendia ter chegado o momento de se retirarem na ponta

dos pés e irem dizer a Ram Dass que voltasse para junto do

patrão. Todas as irmãzinhas adoravam Ram Dass e lamentavam

vivamente que a sua absoluta ignorância da língua inglesa as

privasse de tantas histórias maravilhosas que ele poderia

contar-lhes.

O cavalheiro da Índia chamava-se, na realidade,

Carrisford; e Janet tinha contado ao Sr. Carrisford o seu

encontro com a "pequena que não era mendiga". Esta história

interessara-o imenso, e o seu interesse aumentara ainda

quando ele teve conhecimento, pelo fiel Ram Dass, da fuga do

seu macaco favorito. Ram Dass fizera-lhe uma descrição

impressionante do sótão miserável, das paredes esburacadas,

da grelha do fogão, toda ferrugenta, e do catre que fazia as

vezes de leito.

- Carmichael - dissera o Sr. Carrisford ao pai da

"Grande Família", pergunto a mim próprio quantas mansardas

semelhantes se encontrarão nas casas desta praça, e quantas

desgraçadas criaditas, ainda crianças, dormem em camas como

aquela, enquanto eu me volto, e torno a voltar, sobre as

minhas almofadas de sumaúma, esmagado pelo peso desta

fortuna, que, na sua maior parte, me não pertence.

- Meu caro amigo - respondeu alegremente Carmichael-,

quanto mais depressa deixar de se atormentar assim, mais

depressa melhorará. Mesmo que possuísse todos os tesouros da

Índia não poderia remediar todas as misérias deste mundo e,

admitindo mesmo que chegava a mobiliar confortàvelmente todas

as mansardas desta praça, isso não passaria de uma gota de

água no oceano.

Carrisford, com os olhos fixos no belo fogo que ardia no

fogão, mordeu os dedos, nervosamente.

- Parece-lhe - disse ele, lentamente , parece-lhe

possível que a outra criança em que eu penso de noite e dia,

esteja reduzida a uma existência tão miserável como a dessa

pobre pequenina aqui ao lado?

Carmichael olhava para ele com pena; sabia que não havia

nada pior para a saúde física e moral do seu amigo do que

principiar a encarar sob esse novo aspecto aquele assunto,

muito íntimo, em que falava sempre com ele.

-Se a pequena pensionista de Madame Pascal, em Paris, é

a criança que procura - disse ele com calma, parece ter sido

confiada a pessoas capazes de a tratarem e amimarem;

adotaram-na por ela ter sido a companheira querida da

filhinha que perderam. Não têm mais filhos, e Madame Pascal

disse-me que eram uns russos muito ricos.

- E a miserável nem sequer sabia para onde a levaram! -

exclamou Carrisford.

Carmichael ergueu ligeiramente os ombros e respondeu:

- É uma mulher superficial, mas honesta, que está

encantada com a idéia de se desembaraçar, assim, da criança a

quem a morte do pai deixara totalmente sem recursos. As

mulheres deste gênero não se preocupam com o futuro das

pobres crianças que poderiam vir a ser, para elas, um pesado

fardo. Quanto aos pais adotivos, devem ter partido sem deixar

vestígios.

- Mas o senhor diz sempre: "se a criança é a que eu

procuro...” Não tem a certeza. Creio que havia uma diferença

de nome...

Madame Pascal pronunciou Carewe, em lugar de Crewe, mas

talvez fosse simples engano. Todos os outros sinais condiziam

exatamente: uma menina sem mãe, internada no colégio pelo

pai, oficial da Índia, morto sùbitamente, depois de ficar

arruinado.

Carmichael parou, de repente, como se uma nova idéia lhe

atravessasse o espírito.

- Tem a certeza de que a criança foi internada num

colégio em Paris? Julga, realmente, que foi em Paris?

-Não tenho a certeza de coisa alguma, meu amigo! Não

conheci a criança nem a mãe. Ralph Crewe e eu fomos

excelentes condiscipulos, mas nunca mais nos vimos desde a

nossa saída do colégio, até ao dia em que nos encontramos

novamente na Índia. Eu estava muito absorvido por este

negócio das minas; ele, também, sentiu-se tentado, desde o

primeiro momento, e o futuro parecia-nos tão brilhante, que

perdemos um pouco a cabeça. Não falávamos de outra coisa! Eu

apenas sabia que a filha de Ralph estava num colégio, em

qualquer parte, e já nem me recordo a propósito de que foi

que ele me falou nisso.

Excitava-se, ao falar, como lhe sucedia sempre que

revolvia a lembrança da catástrofe passada. Carniichael

olhava para ele com ansiedade; queria fazer-lhe algumas

perguntas indispensáveis mas, para isso, era preciso muita

calma e prudência.

-Tem razões para supor que o colégio era em Paris e não

em qualquer outra parte? - perguntou ele.

-Tenho. A mãe da pequenina era francesa e ouvi dizer que

ela desejara sempre que a filha fosse educada em Paris.

Parece-me, portanto, verossímil que a levassem para lá.

- Efetivamente-aprovou Carmichael- é mais que provável.

O cavalheiro da Índia curvou-se e bateu na testa com a

mão esguia e magra.

- Carmichael! - exclamou ele. - É preciso que eu a

encontre. Se é viva, está, com certeza, em qualquer parte. Se

não tem família nem fortuna, é por minha culpa. Como quer o

senhor que eu me cure, com semelhante peso na consciência?

Esta surpresa teatral do negócio das minas realizou os nossos

sonhos mais insensatos... e a filha do pobre Ralph anda

talvez a pedir esmola pelas ruas!

- Não! Não - disse Carmichael. - Acalme-se e console-se

com a idéia de que no dia em que a encontrar, terá uma

fortuna principesca para lhe entregar.

- Porque não tive a coragem de reagir quando o horizonte

se nublou - prosseguiu Carrisford, com nervosismo crescente.

- Estou certo de que teria tido mais sangue-frio se fosse só

o meu dinheiro e não o de outrem que estivesse em perigo.

Aquele pobre Crewe tinha comprometido tudo quanto possuía,até

ao último "penny". Confiava em mim e era-me muito dedicado.

Morreu convencido de que eu, Tom Carrisford, o tinha

arruinado... eu que jogava o críquete com ele em Eton. Como

me deve ter desprezado!

- O senhor é muito severo para consigo próprio.

-Eu não me acuso pelo fato de a empresa ter estado

prestes a falir, mas sim por ter perdido a coragem. Fugir

como um ladrão, como um escroque, porque não me atrevia a

aparecer diante do meu amigo e dizer-lhe que o tinha

arruinado, a ele e à filha!

O bom Carmichael passou afetuosamente a mão sobre oombro

do doente.

- O senhor fugiu porque a razão se lhe perturbou

momentâneamente, em conseqüência das torturas morais que

sofreu. Se não fosse isso, teria feito face, corajosamente, à

má fortuna. Dois dias após a sua fuga, o senhor estava num

hospital, amarrado ao leito por meio de correias, com uma

febre cerebral violentíssima, em pleno delírio. Não se

esqueça disto.

Carrisford deixou pender a cabeça nas mãos.

- Ah Grande Deus, é verdade - murmurou ele. - Estava

louco de vergonha e horror. Na noite em que fugi de casa,

parecia-me estar cercado de monstros que rugiam e me

apontavam com a mão.

- Isso explica tudo - disse Carmichael. - Um homem que

está nesse estado não pode raciocinar normalmente.

Carrisford abanou a cabeça:

-Quando eu tive novamente consciência dos meus atos, o

pobre Crewe estava morto e enterrado.

E eu tinha esquecido tudo, até a filha dele! Só mais

tarde é que a lembrança dessa criança surgiu na minha

memória, mas de forma indistinta como envolta em nevoeiro.

Parou e, passando a mão pela fronte, prosseguiu:

- Mesmo presentemente, a impressão que tenho é ainda

vaga, quando tento recordar-me de tudo o que sabia acerca

dela. Certamente, Crewe disse-me em que colégio a internara.

Não lhe parece?

-Pode ser que ele não lhe tenha dito nada de concreto.

Julgo até que o senhor ignora o nome exato da pequena.

-Ele tratava-a sempre por um curioso nome que lhe havia

dado. Quando falava da filha, dizia: a "senhorazinha". Mas

aquelas malditas minas tinham-se apoderado de nós a tal

ponto, que não falávamos de outra coisa. Se ele nomeou o

colégio... esqueci-me. E nunca mais me lembrarei...

- Vamos! Vamos - disse Carmichael. - Verá que havemos de

encontrar essa criança. Continuaremos a procurar os bons

russos de madame Pascal. Ela tinha uma vaga idéia de que

habitavam em Moscovo. É talvez uma pista interessante. Irei a

Moscovo.

-Ah! Se eu pudesse viajar, acompanhá-lo-ia!- exclamou

Carrisford. - Mas não presto para mais nada senão para viver

envolto em peles e a contemplar o lume. Quando olho para ele

um momento, julgo logo ver surgir a fisionomia tão alegre de

Crewe; olha para mim, como se quisesse perguntar-me qualquer

coisa. As vezes sonho com ele enquanto durmo e, então, faz-me

uma pergunta, mas em voz alta. Sabe que pergunta é,

Carmichael?

- Meu Deus! Como hei-de saber? - respondeu Carmichael,

comovido.

- Diz-me sempre: "Tom, velho camarada Tom, onde está a

"senhorazinha"?

Carrisford calou-se bruscamente e apertou a mão de

Carmichael.

- Quero poder responder-lhe finalmente. Quero! Ajude-me

a procurá-la. Suplico-lhe: procure-a!

Ora, nessa mesma noite, do outro lado da parede, Sara

conversava com Rodilard, que tinha vindo buscar a ceia da

família.

-Na verdade, é muito difícil, hoje, ser princesa - dizia

ela. - Mais difícil do que habitualmente! À medida que o

tempo vai arrefecendo e as ruas estão mais lamacentas, é cada

vez mais difícil. Quando Lavínia troçou do meu vestido cheio

de nódoas, no momento em que eu atravessava a sala, veio-me

aos lábios uma boa resposta, mas dominei-me a tempo. Não se

responde a semelhante gente, quando se é uma princesa... Mas

é preciso morder a língua... e eu mordi a minha, asseguro-te!

Fazia bastante frio, esta tarde, Rodilard. E a noite vai ser

mais fria ainda.

Bruscamente, Sara escondeu a cabeça entre os braços,

como costumava fazer nas suas horas de isolamento.

- Oh! Papá - murmurou ela. - Como vai longe o tempo em

que eu era a tua "senhorazinha"!

... E aqui está o que se passou, naquela noite, de cada

lado da parede...

UMA VAGABUNDA

Naquele ano, o Inverno foi muito rigoroso. Em certos

dias Sara enterrava-se na neve até aos artelhos, quando ia

fazer recados. Outras vezes - o que ainda era pior- a neve,

derretendo-se, misturava-se com a lama, formando um horrível

lodo, viscoso e glacial; ou então o nevoeiro era tão cerrado,

que os candeeiros das ruas ficavam acesos durante todo o dia,

e Londres tinha o aspecto daquela tarde, já longínqua, em que

Sara atravessara, de carruagem, as grandes ruas da cidade,

com a cabeça apoiada no ombro do pai.

Nesses dias, a casa da "Grande Família" parecia, mais do

que nunca, confortável e acolhedora e, pela janela da

biblioteca, onde se encontrava o cavalheiro da Índia,

distinguia-se o clarão da chaminé, avivando ainda mais as

magníficas cores dos panos que recobriam as paredes. O quarto

de Sara era também mais frio e lúgubre do que nunca. Tinham

acabado as madrugadas radiosas, os poentes maravilhosos, e as

próprias estrelas dir-se-ia que haviam desaparecido para

sempre. Grossas nuvens cinzentas ou amareladas passavam tão

baixo, que pareciam tocar a trapeira, desfazendo-se, muitas

vezes, em chuva torrencial. Às quatro horas, mesmo quando não

havia nevoeiro, era noite. Se, por acaso, Sara tinha de subir

ao sótão, era preciso acender uma vela. Aquele tempo influíra

na disposição das criadas e Becky era maltratada como uma

verdadeira escrava.

- Sem a menina -- dizia ela a Sara, com a voz rouca, uma

noite em que entrara no quarto da sua companheira-, sem a

menina e sem tudo o que costuma contar-me, tenho a certeza de

que morreria. Não acha que as histórias da Bastilha parecem

cada vez mais verdadeiras? A senhora parece-se cada vez mais

com o chefe dos carcereiros; chego a julgar que lhe vejo as

grandes chaves, de que a menina costuma falar, penduradas à

cinta. Quanto à cozinheira é perfeitamente um carcereiro.

Conte-me qualquer coisa: por exemplo, fale- me da passagem

subterrânea que devemos abrir nas paredes da prisão.

-Vou contar-te outra coisa que nos reconfortará mais -

respondeu Sara, com os dentes a bater de frio. -Vai buscar o

teu cobertor, embrulha-te nele, que eu farei o mesmo;

encostar-nos-emos muito uma à outra, em cima da minha cama, e

eu falar-te-ei da floresta tropical, donde veio o macaco do

cavalheiro da Índia.

"Quando o vejo sentado em cima da mesa, junto da janela,

olhando para fora com uns olhos muito tristes, tenho a

certeza de que ele pensa na floresta, onde saltava de

coqueiro em coqueiro, pendurando-se pela cauda. Gostava de

saber quem o apanhou e se deixou lá longe uma família que

sustentava, com os cocos que apanhava.”

- Tem razão; esta história é mais reconfortante- disse

Becky, agradecida , mas a própria Bastilha reconforta, quando

é a menina que fala nela. Porque nos faz mudar de pensamentos

- observou Sara, muito embrulhada no velho cobertor, só com a

carinha de fora. - Já notei isto: quando o corpo sofre, é

preciso forçar o espírito a ocupar-se de qualquer outra

coisa.

- E a menina consegue isso?-murmurou Beckv, olhando-a

com admiração.

Sara franziu as sobrancelhas durante um momento, depois

respondeu corajosamente:

- Algumas vezes, sim, outras não. Mas quando o consigo,

sinto-me imediatamente melhor. E creio que se pode conseguir

sempre, se quisermos. Tenho-me exercitado muito nestes

últimos dias e começa a parecer-me mais fácil. Quando tudo

corre mal, horrivelmente mal, persuado-me, mais do que nunca,

de que sou uma princesa. E digo comigo própria: "Sou uma

princesa e, mais ainda, uma princesa-fada; e, visto ser uma

fada, nada pode ferir-me ou fazer-me sofrer". Tu não

imaginas, Becky, quanto isto me ajuda a esquecer - concluiu

ela, rindo.

A pobre pequena tinha muitas ocasiões para se convencer

de que era uma princesa... Mas a mais notável dessas ocasiões

ofereceu-se-lhe certo dia, particularmente lúgubre, que

jamais devia apagar-se da sua memória.

Chovera sem parar, durante toda a semana; um nevoeiro

frio invadira as ruas, que estavam escorregadias; havia lama

por toda a parte - a lama amarela e pegajosa de Londres - e

toda a cidade estava envolta num cortinado de bruma de chuva

miudinha.

Quis o azar que, naquele dia, Sara tivesse de fazer

muitos recados, distantes e fatigantes, passou a tarde fora e

acabou por ficar com a roupa inteiramente encharcada. A pluma

do seu velho chapéu era grotesca e os sapatos estavam de tal

forma repassados de água, que já não podiam absorver mais.

Acrescentemos a isso que Sara fora privada da refeição do

meio-dia, porque Miss Minchin decretara que ela merecia ser

castigada. A pobre pequena tinha tanto frio e tanta fome,

sentia-se tão fatigada, que o seu rosto estava roxo e, de vez

em quando, alguns transeuntes de alma caridosa lançavam-lhe

um olhar de compaixão. Mas ela não dava por isso. Andava o

mais depressa que podia, esforçando-se por "pensar noutra

coisa". E bem precisava, porque os seus sonhos, as suas

suposições eram a única consolação que lhe restava. E ainda

assim, nesse dia, teve, por duas ou três vezes, a sensação de

que a sua fome aumentava em vez de diminuir, com as fantasias

da sua imaginação. Mas não queria sucumbir e, enquanto os

sapatos pingavam água lamacenta e o vento fazia inchar o seu

pobre casaco, ia falando baixinho, sem mesmo mexer os lábios.

"Suponhamos que tenho roupa enxuta - pensava ela - bons

sapatos, um casaco grosso, meias de lã e um guarda-chuva

novo. Suponhamos, também, que, perto de um padeiro, onde se

vendem "bunsn"(pãezinhos com passas de uva,em forma de bolo)

quentes, encontro uma moeda de seis "pence" que alguém

tivesse perdido, que não pertença a ninguém. E suponhamos,

finalmente, que entro na padaria e compro, com aquela moeda,

meia dúzia de "bunsn” acabados de sair do forno, e os como

todos seis a seguir sem parar".

Acontecem, às vezes, neste mundo, coisas bem

extraordinárias. Nesse dia, aconteceu uma a Sara.

No momento em que ela acabava de imaginar os "bunsn"

fumegantes, teve de atravessar a rua. Uma lama horrivelmente

espessa cobria a calçada.

Sara, que se esforçava por escolher o sitio onde punha

os pés, avançava lentamente, com os olhos fixos no chão,

quando viu uma coisa luzir na lama.

Era uma moeda, uma moeda verdadeira, que ainda brilhava

um pouco, apesar da porcaria de que estava coberta. Não era

uma moeda de seis "pence", mas uma sua irmã mais nova: uma

moeda de quatro "pence".

Em menos de um segundo estava na sua mãozinha roxa de

frio.

- Oh - balbuciou Sara. - É uma moeda, uma moeda

verdadeira!

Olhou então para a loja que estava em frente. Era uma

padaria e, lá dentro, uma mulher fresca, robusta, com ar

maternal, preparava-se, exatamente, para colocar na montra um

cesto de "buns" redondos, dourados, apetitosos, cheios de

uvas-passas.

A surpresa do achado, a vista dos "buns", o cheiro

delicioso do pão quente que saía pelo ventilador da padaria,

tudo isto impressionara tanto a pobre Sara, que, durante

alguns segundos, sentiu-se desfalecer. Mas nem um só instante

hesitou em se apropriar da pequena moeda; era evidente que

ela estava caída na lama havia algum tempo e que o seu

legítimo proprietário devia já encontrar-se muito longe,

perdido na multidão dos transeuntes que iam e vinham durante

o dia.

"Em todo o caso, vou perguntar à padeira se não foi ela

quem a perdeu" - pensou Sara, numa surda agonia.

No momento em que, tendo atravessado o passeio, punha o

pé na porta da padaria, parou sùbitamente: acabava de ver uma

pequenita, que parecia ainda mais abandonada e pobre do que

ela, uma verdadeira trouxa de farrapos, onde não se

distinguia nada além de dois pezinhos descalços, roxos de

frio e cobertos de lama, uma cabeça desgrenhada e uma carinha

suja, com dois olhos dilatados pela fome.

Sara compreendeu o olhar daqueles olhos e o coração

encheu-se-lhe de simpatia pela pequena.

"É uma criança filha de gente pobre - pensou

ela,suspirando - e ainda deve ter mais fome do que eu.”

A criança, a "filha de gente pobre", olhou para Sara e

recuou um pouco para deixá-la passar. Estava habituada a

deixar passar os outros: ela bem sabia que, se por acaso

aparecesse um polícia, a mandaria "circular".

Sara apertava nervosamente na mão a preciosa moeda.

Depois de uma ligeira hesitação, dirigiu-se à outra

pequenina.

- Tens fome - perguntou ela.

A criança pareceu encolher- se ainda mais nos seus

andrajos.

- Se tenho fome? - disse ela numa voz sumida.

- Ainda precisa de mo perguntar?

- Não comeste nada ao jantar? - inquiriu Sara.

- Nem ao jantar, nem ao almoço, nem à ceia...

- respondeu a outra, com a voz ainda mais rouca...

- Não comi nada.

- Desde quando - perguntou Sara.

- Sei lá! Ainda hoje não me deram nada. Eu bem pedi, mas

não recebi fosse o que fosse.

Só de olhar para aquela pobrezinha, Sara sentiu-se

novamente prestes a desfalecer. Mas já o seu cérebro

trabalhava e Sara dizia baixinho, a si própria, embora o

coração quase lhe parasse no peito: "Eu sou uma princesa, e

as princesas expulsas do seu trono e privadas de todos os

seus bens, dividem sempre o que lhes resta com as pessoas

mais pobres do que elas. Dividem tudo!Os "buns" custam um

"penny" cada um. Com uma moeda de seis "pence" eu poderia ter

comido seis. O que eu tenho não é o suficiente nem para ela

nem para mim, mas sempre é melhor do que coisa nenhuma".

- Espera um pouco - disse ela à pobrezinha. Entrou na

loja. Lá dentro havia um calor bom e um cheiro apetitoso. A

padeira ia, justamente, pôr novos "bunsn", quentinhos, na

montra. Sara dirigiu-se-lhe

-Dá-me licença? A senhora não perdeu, por acaso, uma

moeda de quatro "pence"?

E estendeu-lhe a moeda enlameada. A padeira olhou para a

moeda, e depois para Sara, para o seu rosto expressivo, para

o seu vestuário miserável que, no entanto, deixava ainda

adivinhar a antiga elegância.

- Não perdi, com certeza - respondeu ela. Foi agora que

a encontraste?

- Foi - confirmou Sara. - Encontrei-a na lama.

- Guarda-a para ti - aconselhou a padeira. Talvez já lá

estivesse há mais de uma semana. Sabe Deus quem a perdeu!

- Eu também pensei isso - disse Sara -, mas quis

perguntar-lhe...

- Poucas, no teu lugar, teriam esse cuidado - continuou

a mulher, cujo rosto exprimia, ao mesmo tempo, espanto,

interesse e simpatia. - Queres comprar qualquer coisa? -

acrescentou ela, vendo Sara olhar para os "buns".

- Quatro "buns", se faz favor - disse a pequena-, desses

que custam um "penny" cada.

A mulher aproximou-se da montra e meteu alguns "buns"

num saco de papel. Sara notou que eram seis.

- Tenha a bondade... eu disse quatro - explicou ela. -

Só tenho uma moeda de quatro "pence".

- Os outros dois são para completar o peso - disse a

padeira, com um sorriso bom. - Tenho a certeza de que não

ficam por comer... Não tens fome?Passou uma sombra nos olhos

de Sara.

- É verdade - confessou ela. - Tenho muita fome,

agradeço-lhe muito a sua bondade e...

Ia a acrescentar: "Está lá fora alguém que ainda tem

mais fome do que eu". Mas, exatamente naquele instante,

entraram dois ou três clientes, todos com ar apressado, de

maneira que Sara só pôde renovar os seus agradecimentos e

sair da loja.

A pequena mendiga estava ainda encolhida ao canto da

porta. Fazia impressão vê-la embrulhada naquela farrapagem

suja. Olhava para diante de si com um olhar espantado pelo

sofrimento, e Sara viu-a, de repente, passar a mão enegrecida

pelos olhos, para enxugar as lágrimas que corriam mesmo sem

ela querer.

Sara abriu o saco de papel e tirou um dos "buns"

quentes, que já Lhe tinham aquecido um pouco as mãos

enregeladas.

- Vês - disse ela, pondo o "bun" sobre o vestido

esfarrapado. - É bom e é quente. Come, deve fazer-te bem.

A criança olhou; dir-se-ia que aquela boa sorte, que lhe

caía do Céu, a assustava. Depois, arrancou o "bun" das mãos

de Sara e comeu-o àvidamente, como se fosse um lobo

esfaimado.

- Oh! Meu Deus Como é bom - dizia, com a voz rouca - Oh

Meu Deus!

Sara tirou do saco mais três "buns" e pô-los sobre os

joelhos da pequenita. O timbre daquela voz faminta fazia-lhe

mal.

"Ela ainda tinha comido menos do que eu - pensava ela. -

Está morta de fome"

Mas a mão tremeu-lhe ao largar o quarto "bun".

- Eu... eu não estou a morrer de fome - acrescentou ela.

E deu também o quinto "bun".

A mendiga devorava ainda os bolos, como uma selvagem

voraz, quando Sara se afastou. Tinha tanta fome, que nem

pensou em dizer - "Obrigada", mesmo que tivesse a mais leve

noção de delicadeza. Não passava de um pobre animal errante.

- Até à vista - disse Sara.

Quando atravessou a rua, voltou-se. A pequena tinha um

"bun" em cada mão, mas parara de comer e ficara, com a boca

cheia, a olhar para Sara. Esta fez-lhe um sinal com a cabeça;

a criança, depois de um longo e singular olhar, sacudiu a

cabecita,desgrenhada, como se respondesse, e, enquanto pôde

ver Sara, ficou imóvel, sem mesmo engolir o que tinha na

boca.

Justamente nesse momento, a padeira olhou para a rua.

- Oh! Não querem ver? - exclamou ela. Estou convencida

de que a pequena deu os “buns"a uma mendiga. Não foi porque

ela própria não tivesse vontade, porque eu vi que ela tinha

fome...Gostava de saber porque foi que ela os deu!Ficou um

momento a refletir, por detrás da montra; depois, vencida

pela curiosidade, abriu a porta e perguntou à pobrezinha:

- Quem te deu esses "buns"?

A criança, com um gesto de cabeça, indicou Sara que já

ia longe.

- Que te disse ela? - continuou a padeira.

- Perguntou-me se eu tinha fome – respondeu a voz rouca

da petiza.

- E que Lhe respondeste tu?

- Disse que sim.

- E ela veio logo comprar uns "buns" e deu-tos, não foi?

A criança respondeu que sim com a cabeça.

- Quantos te deu?

- Cinco.

A boa mulher refletiu um momento."Só guardou um!-

murmurou ela, em voz baixa.E era capaz de comer os seis! Bem

o vi nos seus olhos!"

Olhou ao longe onde se distinguia ainda a pequena

silhueta, mal vestida, de Sara, e, apesar de ser

habitualmente calma, a padeira sentiu-se perturbada, como

havia muito tempo não lhe sucedia.

"Tenho pena de que ela se tivesse ido embora tão

depressa - pensou a mulher. - Juro que era capaz de Lhe dar

uma dúzia de "buns".

Depois, voltando-se para a mendiga, perguntou-lhe:

- Ainda tens fome?

- Tenho sempre fome - foi a resposta , mas já não é

tanta como antes...

- Entra - disse a padeira, abrindo a porta da loja.A

criança levantou-se e avançou, arrastando os pés. Ser, assim,

convidada a entrar num lugar quentinho e cheio de pão!

Parecia-lhe que estava a sonhar! Não sabia o que Lhe ia

acontecer mas também, isso pouco lhe importava!

- Vai aquecer-te - disse a padeira, indicando-lhe o

interior da loja, onde ardia um bom lume - escuta-me! Quando

precisares de um bocado de pão, não tens mais nada a fazer

senão vires pedir-mo e podes ter a certeza de que nunca to

negarei, em lembrança daquela pequena que se foi agora

embora.

Sara encontrou uma certa consolação em comer o seu

último "bun". Estava muito quente e era melhor que nada. Ao

longo do caminho foi-o partindo em bocados pequenos e comeu-o

lentamente, para fazê-lo durar mais tempo.

"Suponhamos que é um "bun" mágico -- pensava ela. -Cada

bocadinho representa uma refeição completa. Se fosse verdade,

era capaz de comer de mais...”

Era já noite, quando chegou à praça onde se encontrava o

Colégio Minchin. Todas as casas estavam iluminadas. As

persianas ainda não se encontravam descidas na sala onde Sara

costumava avistar, quase sempre, os membros da "Grande

Família". Muitas vezes àquela hora, estava o Sr. Montmorency

sentado numa grande poltrona, cercado pelos filhos, os quais,

uns empoleirados sobre os braços do móvel, outros sentados

nos joelhos do pai, riam e falavam todos ao mesmo tempo.

Naquela noite permaneciam em redor do pai, mas este não

estava sentado, e todos pareciam agitados.

O Sr. Montmorency ia partir para uma viagem demorada. Em

frente da porta via-se uma carruagem, onde tinham acabado de

colocar uma grande mala. As crianças corriam de todos os

lados e agarravam-se ao pai. A mãe, tão bonita, fresca e

rosada, estava também ao pé dele e parecia pedir-lhe as

últimas instruções. Sara parou, um minuto, para ver o Sr.

Montmorency levantar nos braços o filho menor e beijá-lo,

enquanto os mais velhos lhe saltavam ao pescoço.

"A sua ausência será longa? - perguntava Sara a si

própria. - A mala é grande. Oh! Como a família deve

aborrecer-se sem ele! A mim também me vai fazer falta...

embora ignore que eu existo.”

Ao abrirem a porta, ela afastou-se, mas viu a silhueta

do viajante recortar-se na claridade que vinha de dentro, e

os filhos mais velhos reunidos à sua volta.

- Haverá muita neve em Moscou - perguntou Janet. -

Estará tudo gelado?

- O papá vai andar de "droschy"?(carruagem usada na

Rússia) perguntou uma das outras pequenas. - O pai vai ver o

kzar? Contarei tudo nas minhas cartas - respondeu o pai,

rindo. - E mandarei fotografias de "mujiks"(homem do povo, na

Rússia) e de muitas outras coisas. Entrem depressa;esta

umidade é terrível. Gostava bem mais de ficar aqui do que ir

para Moscou. Boa noite! Boa noite, meus filhos! Deus fique

convosco!

Desceu rápidamente os degraus e saltou para a carruagem.

-Se encontrar a menina, dê- lhe cumprimentos nossos

gritou Guy, aos pulos sobre o capacho.

Voltaram todos para dentro e fecharam a porta.

- Viste a "pequena que não é mendiga"?

- Ia a passar em frente da nossa casa. Estava toda

molhada e parecia ter frio. Voltou a cabeça para não olhar

para nós. A mamã diz que os vestidos dela têm o aspecto de

lhe terem sido dados por uma pessoa muito rica, que já os não

usasse por estarem velhos.

-A dona do Colégio manda-a sempre fazer recados nos dias

e nas noites em que o tempo está pior!

Sara atravessava a praça para se dirigir à escada da

cave. Tremia e sentia a cabeça andar à roda.

"Quem será esta menina que ele vai procurar?"- pensava

ela.

E desceu a escada, segurando o cesto que lhe parecia

ainda mais pesado do que habitualmente, enquanto o papá da

"Grande Família" se apressava a ir tomar o comboio que devia

levá-lo a Moscou, onde ia empregar todos os meios possíveis

para encontrar a filha do capitão Crewe.

O QUE RODILARD VIU E OUVIU

Durante aquela mesma tarde, passou-se no quarto de Sara

um fato bem singular. Só Rodilard pôde ver e ouvir... Mas,

tomado de espanto, meteu-se apressadamente no seu buraco, e

foi a tremer que se atreveu, apenas, a pôr a ponta do focinho

de fora, para saber o que se passava.

Desde a hora matinal em que Sara dali saíra, reinava na

mansarda a mais completa calma. O silêncio era apenas

perturbado pelo ruído da chuva caindo sobre as ardósias do

telhado e as vidraças da trapeira.

Rodilard achava o dia triste; quando deixou de se ouvir

o barulho monótono da chuva, decidiu partir em exploração,

embora soubesse, por experiência, que o regresso de Sara

ainda demoraria. Depois de ter farejado um pouco por todos os

cantos, acabava de descobrir, inesperadamente, uma soberba

migalha, que ficara esquecida, certamente, desde a véspera,

quando um ruído que vinha do telhado lhe chamou a atenção.

Parou, com o coração a bater com mais força, porque o tal

ruído dava a impressão de que qualquer coisa se arrastava

sobre as ardósias, aproximando-se da janela. Não tardou que

as vidraças se erguessem misteriosamente.

Primeiro apareceu uma cara bronzeada; depois surgiu

outra cara, e as duas olharam cautelosamente para dentro.

Estavam dois homens sobre o telhado e preparavam-se para

entrar, sem fazer ruído. Um deles era Ram Dass; o outro era

um homem novo, que desempenhava a função de secretário do

cavalheiro da Índia. Mas Rodilard ignorava tudo isso. Sabia

apenas uma coisa: era que os dois homens violavam a

tranqüilidade e o silêncio da sua mansarda. E quando aquele

que tinha o rosto bronzeado se deixou escorregar pela

trapeira com tanta agilidade e jeito que não fez o mais leve

ruído, Rodilard voltou- se bruscamente e meteu-se para

dentro. Estava aterrado. Havia já muito tempo que não tinha

medo de Sara. Sabia que ela só lhe dava migalhas saborosas e

apenas assobiava devagarzinho. Mas aqueles desconhecidos

eram, sem dúvida, muito perigosos. Rodilard, encolhido lá ao

fundo do seu esconderijo, contentava-se em espreitar por uma

fresta da parede, com os olhos brilhantes e ansiosos. Que

julgou ele que se passava? Não é possível dizê-lo. Mas, ainda

que tivesse podido compreender, nem por isso deixaria de

ficar assustado.

O secretário, que era ainda muito novo, desceu pela

janela quase com tanta agilidade como Ram Dass; e no momento

em que pousava os pés no chão, avistou a ponta da cauda de

Rodilard, que fugia.

- É um rato? - perguntou ele, em voz baixa, a Ram Dass.

- É, sim, "sahib,"(patrão,senhor) - respondeu Ram Dass,

no mesmo tom.As paredes estão cheias deles.

-Que horror! - exclamou o secretário. - É extraordinário

que a pequena não tenha medo deles.

Ram Dass fez um gesto com a mão e sorriu

respeitosamente. Parecia-lhe ser, ali, o representante de

Sara, apesar de só lhe ter falado uma única vez.

- Esta criança ama e compreende tudo, "sahib"- respondeu

ele. - Não se parece com as outras crianças. Vejo-a sem que

ela me veja; escorrego silenciosamente no telhado e venho,

muitas vezes, velar o seu repouso. Observo-a da minha janela,

sem ela dar por isso. Costuma subir para a mesa e contemplar

o céu, como se ouvisse uma voz. Os passarinhos aproximam-se

dela sem receio. Domesticou e sustenta o rato que "sahib"

avistou agora. A pobre criadita, verdadeiro burrinho de carga

da casa, vem junto dela procurar consolação. Há uma pequena,

muito novinha, que a visita, às escondidas, e outra mais

crescida, que parece adorá-la e nunca se cansa de ouvi-la. Vi

e descobri tudo isso, aproximando-me da trapeira sem fazer

barulho. A dona desta casa, que é uma mulher má, trata-a como

a uma pária, mas a pequena ergue a cabeça com altivez, como

se tivesse no corpo sangue real!

- Vejo que estás bem elucidado a seu respeito - observou

o outro.

- Conheço a sua vida dia a dia - respondeu Ram Dass - a

hora a que ela sai, a hora a que ela entra; a sua grande

tristeza e as suas pobres alegrias; sei que tem frio e fome.

Tenho-a visto estudar nos seus livros, sozinha, até à meia-

noite; vi as amigas virem, às escondidas, e o prazer com que

ela conversa baixinho com elas (porque as crianças, mesmo as

mais pobres, podem ter instantes de felicidade). Se estivesse

doente, eu sabê-lo-ia e viria tratá-la, se fosse possível.

-Tens a certeza de que ninguém, a não ser ela, entra

aqui, e que não virá surpreender-nos?

-A pobre pequena ficaria assustada, e o projeto do

"sahib" Carrisford seria irrealizável.Ram Dass foi até

junto da porta, com passos de lobo.

- Só costuma voltar aqui à noite, senhor - disse ele. -

Vi-a partir, com o seu cesto. Não deve voltar tão depressa.

Ficarei ao pé da porta e ouvi-la-ei subir a escada muito

antes de ela chegar cá acima.

O secretário tirou da algibeira um bloco de papel e um

lápis.

- Presta atenção - recomendou-o. E começou a ir e vir,

de um lado para o outro, no miserável quarto, tomando notas.

Foi até ao leito, apalpou a enxerga e soltou uma

exclamação:

- É mais duro do que pedras! É preciso substituí-lo, num

dia em que ela esteja ausente durante algumas horas. É

necessário uma ocasião especial... Não pode ser hoje.

Levantou a colcha e examinou o travesseiro. - Um edredão

velhíssimo, um cobertor esburacado e lençóis rotos -

continuou ele.Que cama, para uma criança, num estabelecimento

de ensino que goza de tão boa reputação! Desde quando se não

acende aqui o fogão - acrescentou ele, lançando um olhar para

a grelha toda enferrujada.

- Nunca o vi aceso - disse Ram Dass. A dona da casa é

daquelas que se esquecem de que os outros podem ter frio.

O secretário escrevia rápidamente. Por fim, arrancou uma

folha do bloco e guardou-a na algibeira.

-A verdade é que nós vamos realizar qualquer coisa

extraordinária... - disse ele. - Quem teve a ideia?

Ram Dass inclinou-se modestamente.

-Fui eu quem primeiro pensou nisso, "sahib"- disse ele -

e, a princípio, foi apenas uma fantasia.

Dediquei-me a esta criança: nós somos, ela e eu, dois

isolados. Ela costuma contar, em voz alta, aos seus humildes

amigos, tudo quanto nasce da sua imaginação. Uma noite em que

estava muito triste, escutei-a; ela explicava o que seria

este miserável quarto, se o tornassem mais belo e mais

confortável. Dir-se-ia que via o que estava descrevendo, e a

sua face animava-se, os olhos tornavam-se-lhe mais alegres.

No dia seguinte, o "sahib" estava doente e, para o distrair,

contei-lhe o que tinha ouvido. A história agradou-lhe muito e

ele começou a interessar-se pela criança e a fazer-me

perguntas. E veio-lhe a idéia de transformar o sonho da

pequena em realidade.

-Achas que podemos conseguir isso enquanto ela dorme? E

se ela acorda? - observou o secretário.

Era, porém, evidente, que, tal como o "sahib"

Carrisford, o secretário estava encantado com o projecto.

- Eu sou capaz de andar como se os meus pés fossem de

veludo - respondeu Ram Dass. - E as crianças dormem

profundamente, mesmo as que são desgraçadas. Sou capaz de

entrar muitas vezes neste quarto sem que ela se volte,

sequer, sobre o travesseiro. Se alguém me der objetos pela

janela, arranjarei tudo sem que dê por coisa alguma. Ao

acordar, julgará que passou por aqui um feiticeiro.

Ram Dass sorriu, com um sorriso radioso, como se o

coração se lhe dilatasse; o secretário sorriu também e disse:

- Um verdadeiro conto das "Mil e Uma Noites". Semelhante

idéia nunca poderia ter nascido nos nevoeiros de Londres; só

um oriental a poderia ter tido.

A visita não se prolongou muito, com grande alívio de

Rodilard que, não compreendendo nada da conversa, achava

aqueles murmúrios, aquelas idas e vindas bem estranhos. O

jovem secretário, cada vez mais interessado, tomou notas

acerca da chaminé, o sobrado, o banco desbotado, a velha mesa

e, enfim, acerca das paredes, que apalpou com a mão parecendo

ficar satisfeito por descobrir ali um certo número de pregos

pregados um pouco ao acaso.

- Poderemos suspender aqui muitos objetos observou ele.

Ram Dass sorriu misteriosamente.

- Ontem, enquanto ela estava ausente, vim espetar pregos

miudinhos e pontiagudos, que não necessitam de martelo.

Coloquei-os nos sítios onde serão necessários. Aí os tem.

O secretário meteu o bloco no bolso, olhando mais uma

vez em redor.

- Creio que tomei nota de tudo - disse ele. Podemos

partir. O "sahib" Carrisford tem um grande coração. Que

pena,que ele não tenha encontrado a criança desaparecida!

-Se chega a encontrá-la, as forças voltar-lhe-ão -

respondeu Ram Dass. - O seu Deus pode ainda entregar-

lha.Desapareceram pela trapeira, com tão pouco ruído como

tinham chegado.

Quando Rodilard se convenceu de que eles não voltariam,

atreveu-se a pôr o narizito de fora e não tardou a correr, de

novo, pelo quarto, na esperança de que aqueles seres

inquietantes pudessem trazer nas algibeiras, apesar de tudo,

excelentes migalhas e algumas tivessem caído no chão, por

mera casualidade, para felicidade dos humildes ratinhos...

MAGIA

Quando Sara passou em frente da casa do cavalheiro da

Índia, avistou Ram Dass que fechava as janelas, e lançou um

rápido olhar para a suntuosa biblioteca.

"Há quanto tempo eu não entro numa sala tão bonita como

aquela" - pensou a pobre pequena.

Distinguia-se, como sempre, o fogão aceso e o cavalheiro

da Índia sentado ao canto da chaminé, com a cabeça apoiada à

mão e um ar mais solitário e triste do que nunca.

"Pobre homem - murmurou Sara. - Gostava bem de saber se

ele "imagina" qualquer coisa...”

Naquele mesmo instante, o doente pensava: "Imaginemos

mesmo que Carmichael encontra os russos em Moscou. Imaginemos

que a pequenina que eles levaram a casa de Madame Pascal não

é a que eu procuro. Onde poderei eu continuar a procurá-la?".

Sara, ao entrar, encontrou Miss Minchin mesmo frente a

frente. A diretora tinha descido à cave para ralhar com a

cozinheira. Ao ver a pequena, perguntou-lhe:Por onde tens

andado a perder tempo? Há não sei quantas horas que andas por

fora.

-A lama é tão espessa, que tenho muita dificuldade em

caminhar com estes sapatos, porque, como estão muito velhos,

fazem-me escorregar.

-É inútil arranjares desculpas e dizer mentiras! -

interrompeu Miss Minchin.

Sara entrou na cozinha. A cozinheira, que tinha sido

repreendida, estava de péssimo humor. Precisava de desabafar

o seu mau gênio com alguém, e Sara chegava a tempo...

-Porque não ficaste tu lá fora toda a noite?-perguntou

ela, com aspereza.Sara colocou os embrulhos em cima da mesa,

e respondeu:

-Aqui estão as compras.

A cozinheira olhou para os pacotes, a resmungar. Estava

furiosa.

- Posso comer qualquer coisa? - pediu Sara, com a voz a

tremer.

- Já tomaram o chá há muito tempo! - foi a resposta. -

Julgas talvez que o guardei para ti?!

Sara ficou um momento, silenciosa.

- Não me deram almoço... - disse ela, baixando cada vez

mais a voz, para que não a sentissem tremer.

- Há pão na despensa - respondeu a cozinheira. - Por

hoje chega...

Sara foi buscar o pão. Era seco e duro. A cozinheira

estava tão irritada, que era inútil pedir-lhe mais qualquer

coisa e arriscava-se, ainda a aturar maus modos.

A pobrezinha teve dificuldade em subir os três altos

lanços de escada que levavam ao sótão! Afiguravam-se-lhe

sempre longos, quando estava fatigada; mas, naquela noite,

pareceu-lhe que não tinham fim.

Teve de parar várias vezes, para repousar. Quando chegou

ao último patamar ficou contente por ver um fiozinho de luz

filtrar-se pelas gretas da porta. Isso queria dizer que

Hermengarda viera, em segredo, fazer-lhe uma visita. Este

pensamento reconfortou-a. Ao menos, o quarto não estaria tão

vazio e desolador; bastava a presença da boa e gorducha

Hermengarda, embrulhada no seu xale vermelho, para aquecer um

pouco o ambiente.

Sim, Hermengarda encontrava-se lá, sentada no leito, com

os pés escondidos sob o vestido. Estava, já, em muito boas

relações com a família Rodilard, mas no fundo tinha sempre

algum receio... Por isso, preferia instalar-se em cima da

cama, quando chegava à mansarda antes de Sara. Desta vez

tinha razão para estar nervosa; Rodilard saía constante mente

do buraco, a farejar o ar e, uma das vezes, pusera-se de pé,

sobre as patas traseiras e fitara-a com uma insistência que a

assustara ainda mais. Hermengarda por pouco não soltou um

grito!

- Oh Sara! - exclamou ela -ainda bem que chegaste.

Rodilard anda a cheirar tudo. Tentei, com muito bom modo,

mandá-lo para o seu buraco, mas ele não fez caso. Gosto muito

dele, acredita, mas assusta-me quando começa a fungar,

voltando a cabeça para o meu lado. Julgas que ele era capaz

de saltar para cima de mim?

- Que idéia! - respondeu Sara.

Hermengarda estendeu-se sobre o leito para ver melhor a

amiga.

- Tens um ar muito fatigado, Sara - disse ela. - Estás

muito pálida...

- Efetivamente, estou muito cansada - respondeu Sara,

deixando-se cair sobre o banco velho. Oh, lá está Rodilard!

Vem buscar a ceia.

Com efeito, Rodilard acabava de aparecer, como se

tivesse reconhecido os passos de Sara. Avançou com ar

confiante, enquanto ela metia e tornava a meter a mão na

algibeira, abanando a cabeça.

- Tenho muita pena - disse ela - mas não encontro nem

uma migalha de pão. Volta para a tua casa, Rodilard, e diz à

tua família que hoje não há nada na minha algibeira, porque a

cozinheira e Miss Minchin estavam de péssimo humor.Rodilard

pareceu compreender. Retirou-se a passos lentos e com um ar,

senão contente, pelo menos resignado.

- Não esperava ver-te hoje, Garda - - disse Sara.

- Miss Amélia foi passar a noite à casa de uma tia

velha. Ninguém, a não ser ela, vem inspecionar os quartos,

depois de estarmos deitadas. Posso ficar aqui até de

manhã.Depois de dizer isto, Hermengarda apontou para uma

quantidade de volumes que estavam sobre amesa e nos quais não

tinha reparado, ao entrar. Com um gesto de desânimo,

Hermengarda continuou:O papá mandou-me mais livros, Sara. São

esses.Sara pôs-se de pé num abrir e fechar de olhos.Correu

para a mesa, pegou num volume e folheou-o rápidamente. Já nem

se lembrava das suas desditas!

- Ah! - exclamou ela. - Que bom! A "História da

Revolução Francesa", de Carlyle. Sempre desejei tanto lê-la!

- Pois, eu não - confessou Hermengarda. E o papá vai

ficar furioso, se eu a não ler. Ele espera que estude tudo

isso antes das férias. Que hei-de eu fazer, meu Deus?

Sara parara de folhear o livro e olhava para a amiga com

as faces coradas e os olhos brilhantes.

- Escuta - disse ela. Se tu quiseres emprestar-me os

livros, eu leio-os e, em seguida, contar-te-ei e explicar-te-

ei tudo tão bem, que tu não te esquecerás mais.

- Será possível! - exclamou Hermengarda. Parece-te que

serei capaz?

- Tenho a certeza - afirmou Sara. - As pequeninas da

classe infantil lembram-se sempre de tudo o que eu lhes

ensino.

- Ouve, Sara - disse Hermengarda com uma expressão

radiante de esperança na carinha bochechuda , se tu

conseguires, realmente, ajudar- me a compreender e a não me

esquecer do que aprendo, eu...eu dou-te o que tu quiseres!

- Não preciso que me dês seja o que for - replicou Sara.

- Apenas desejo ler os teus livros! Tenho tanta vontade!

Ao dizer isto, os olhos tornavam-se-lhe maiores e o

peito erguia-se-lhe numa respiração profunda.

- Aqui os tens - respondeu Hermengarda. - Quem me dera

gostar tanto de ler como tu, mas é escusado tentar! Não sou

inteligente, mas meu pai é, e quer, por força, que eu também

o seja.

Sara ia abrindo os livros uns após outros.

- Que vais tu dizer ao teu pai?- perguntou ela, em voz

um pouco perplexa.

- Oh! Não é preciso dizer-lhe nada -- replicou

Hermengarda. - Ele julgará que os li.

Sara fechou o livro que tinha nas mãos e abanou a

cabeça.

- Seria quase mentir - disse ela. - E mentir, repara

bem, não só é uma ação má, como é, também, vulgar. Às vezes -

e ela falava como se olhasse para dentro de si própria -penso

que podia fazer qualquer coisa muito má por exemplo, matar

Miss Minchin, num acesso de raiva. Tu compreendes: quando ela

me maltrata... Mas o que eu não podia era ser vulgar. Porque

não dizes tu a teu pai que fui eu quem os leu?

- É porque ele quer que eu os leia - disse Hermengarda,

um pouco despeitada com o caminho inesperado que a conversa

ia tomando.

-O que ele quer, principalmente, é que tu saibas o que

eles contêm - replicou Sara. - E se eu puder explicar-te bem

claramente tudo, de forma que tu não te esqueças mais, tenho

a certeza de que ele ficará satisfeito.

- Oh! O que ele quer é que eu aprenda, seja lá de que

maneira for - respondeu Hermengarda, com voz desanimada.Se tu

estivesses no lugar dele, fazias o mesmo.

- Tu não tens culpa... - começou Sara. Mas calou-se a

tempo, antes de concluir - de seres curta de entendimento.

- Não tenho culpa de quê - perguntou Hermengarda.

-De não seres capaz de aprender rápidamente- emendou

Sara. - Se tu não podes, é porque não podes E se eu posso,

muito bem! É porque posso nada mais.

Sara era sempre indulgente para com Hermengarda e

esforçava-se por não lhe fazer sentir a diferença que há

entre uma pessoa que aprende tudo ràpidamente, e outra que é

incapaz de aprender seja o que for. Enquanto olhava para o

rosto redondo da companheira, ocorreu-lhe um daqueles

pensamentos sensatos que Lhe eram habituais.

-Talvez, mesmo, a inteligência não seja tudo, neste

mundo - disse ela. - A bondade é um dom ainda mais precioso.

Se Miss Minchin soubesse tudo quanto há, mas continuasse a

ser tão má como é, a sua sabedoria não a impedia de ser uma

criatura má, merecendo o ódio de toda a gente. Muitos homens

de grande inteligência fizeram mal e foram odiados.

Por exemplo, Robespierre...

Calou-se e olhou para Hermengarda, cuja fisionomia

exprimia uma profunda consternação.

- Não te lembras - Contei-te a sua história não há muito

tempo. Parece-me que já te esqueceste!

- Sim, em parte... - concordou Hermengarda.

- Pois bem; espera um momento - disse Sara.

- Vou despir esta roupa, que está encharcada, e

embrulhar-me no cobertor. Depois conto-te outra vez a

história de Robespierre.

Tirou o chapéu e o casaco, pendurando-os, num prego, e

substituiu os sapatos, todos embebidos em água, por umas

velhas pantufas. Em seguida, saltou para o leito e, lançando

o cobertor sobre os ombros, passou os braços em volta dos

joelhos, como costumava.

-Agora, escuta com atenção! - disse ela.

Começou, então, a fazer tais descrições da sangrenta

Revolução Francesa, que os olhos de Hermengarda se dilataram,

assustados. Mas, apesar do pavor que sentia, escutava Sara,

deslumbrada.

Agora tinha a certeza de não se esquecer mais de

Robespierre e de não se enganar acerca da princesa de

Lamballe.

-Lembra-te que Lhe espetaram a cabeça num ferro e

dançaram em volta - continuou Sara:Ela tinha uns lindos

cabelos louros, encaracolados. Quando penso nela, nunca lhe

vejo a cabeça sobre o corpo, mas sim espetada no ferro, com a

população, furiosa, a gritar e a dançar em redor.

Combinaram, então, que o Sr. Saint-John - o pai de

Hermengarda- seria posto ao corrente do plano que elas haviam

traçado, e que os livros ficariam no quarto de Sara.

- Falemos, agora, de outra coisa - disse Sara.

- Como vais tu nas lições de francês?

-Muito melhor, desde a última vez que aqui vim e tu me

explicaste as conjugações. Miss Minchin ficou admirada por eu

ter feito tão bem o tema, no dia seguinte.

Sara sorriu com bondade, apertando mais os braços em

volta dos joelhos.

-Miss Minchin também não compreende a razão por que

Lottie apresenta as contas de somar certas - diz ela - é

porque vem ter comigo às escondidas e eu ajudo-a.

Enquanto falava, olhou em redor de si.

- Esta mansarda seria agradável... se não fosse tão

feia! - continuou ela, a rir. - Presta-se, admiravelmente, a

todos os sonhos e a todas as suposições possíveis.

A verdade, porém, é que Hermengarda não fazia a menor

ideia da vida, por vezes, miserável, que Sara levava, e a sua

imaginação estava tão profundamente adormecida, que não era

capaz de supor fosse o que fosse.

Durante as suas raras visitas, via apenas o lado

pitoresco daquela situação, distraída com as descrições e as

invenções da amiga. As idas de Hermengarda ao sótão eram,

para ela, aventuras divertidas e, se algumas vezes, a palidez

de Sara era maior e a sua magreza mais evidente, a altiva

pequena nunca se lamentava. Jamais quisera confessar que, em

certos momentos, como, por exemplo, naquela noite, quase

morria de inanição. Crescera ràpidamente, e os eternos

recados de que a incumbiam abrir-lhe-iam o apetite, mesmo que

ela tivesse refeições regulares e abundantes, muito

superiores aos pratos mal cozinhados e pouco apetitosos que

lhe davam de vez em quando, conforme os caprichos da

cozinheira. Sara, pouco a pouco, tinha-se habituado às

contínuas "reclamações” do seu pobre estômago.

- Penso que os soldados são como eu, quando fazem uma

marcha longa e fatigante - repetia ela muitas vezes.

Gostava desta frase: "uma marcha longa e fatigante".

Tinha a impressão, quando a dizia, de ser ela própria um

desses pobres soldados.

Estava absolutamente compenetrada do papel de dona de

casa, quando recebia a visita das amigas no quarto, e

pensava:

"Suponhamos que habito um castelo e Hermengarda outro”,

ela viria ver- me com uma escolta de cavaleiros, escudeiros e

vassalos, e estandartes flutuando ao vento. Quando eu ouvisse

as trombetas tocar em frente da ponte levadiça, desceria para

recebê-la e conduzi-la-ia a um grande festim servido no salão

nobre; depois mandaria entrar os menestréis para que eles

cantassem e se acompanhassem com o alaúde, e nos recitassem

versos. Quando Hermengarda vem visitar-me, não posso

oferecer-lhe banquetes, mas posso contar-lhe histórias e não

lhe deixar adivinhar os meus desgostos. Tenho a certeza de

que os pobres castelões faziam o mesmo, quando havia fome e o

seu domínio fora devastado pelos inimigos.

Sara era, sem dúvida, uma altiva e corajosa castelã, que

distribuía generosamente a única riqueza que lhe restava: os

seus sonhos, as suas visões, tudo o que, afinal, constituía

para ela a única possibilidade de alegria e consolação. E era

tanto assim que, naquela noite, Hermengarda estava longe de

supor que Sara se sentia exausta de cansaço e fraqueza,

perguntando a si própria se a fome devoradora que a

atormentava Lhe permitiria adormecer, quando a amiga se fosse

embora. Nunca tive tanta fome!

-Gostava de ser magrinha como tu, Sara- disse, de

repente, Hermengarda. - Parece que agora ainda és mais magra

do que dantes; os teus olhos estão enormes e vêem-se-te

perfeitamente todos os ossos do cotovelo!

Sara, tranquilamente, baixou as mangas, que estavam

arregaçadas.

- Sempre fui bastante magra - replicou ela,

corajosamente - e sempre tive grandes olhos verdes.

- Gosto muito dos teus olhos - disse Hermengarda,

fitando-a com afetuosa admiração. -Dir-se-ia que eles vêem

muito longe, muito longe, muito mais longe do que os da outra

gente! Gosto deles e gosto da sua cor verde, embora, muitas

vezes, pareçam pretos.

- São olhos de gato - disse Sara a rir. Mas apesar disso

não vejo de noite... Já tentei! Mas não consegui ver nada. E

tenho pena!Precisamente naquele momento passava-se na

trapeira qualquer coisa que escapou às duas pequenas. Se uma

delas, por acaso, se tivesse voltado, teria ficado assustada

ao ver um rosto bronzeado que lançava, ràpidamente, um

imprudente olhar para a mansarda e desaparecia tão depressa

como havia vindo. Tão depressa mas, talvez, menos

silenciosamente, porque Sara, que tinha esplêndido ouvido,

voltou-se, de súbito, a olhar para o teto.

- Não é Rodilard - disse ela. - Ele faz maisbarulho, com

as unhas.

- Então quem é - perguntou Hermengarda, um pouco

sobressaltada.

- Não ouviste nada? - interrogou Sara.

- Não... não... - balbuciou Hermengarda. E tu?

- Não tenho a certeza - respondeu Sara. Pareceu-me

qualquer coisa a arrastar-se pelo telhado.

- Meu Deus! -exclamou Hermengarda. - E se fossem

ladrões?

- Podes estar tranquila - retorquiu alegremente Sara. -

Não há nada para roubar, e...

Interrompeu-se. Vinha da escada, e era a voz irritada de

Miss Minchin. Sara saltou abaixo do leito e apagou a vela.

- Está a ralhar com Becky - murmurou ela, na escuridão.

- Já a fez chorar...

- É capaz também de vir aqui... - disse Hermengarda,

apavorada.

- Não. Ela julga que eu estou deitada. Não te mexas...

Era muito raro Miss Minchin subir ao último andar. Sara

apenas se lembrava de tê-la lá visto uma vez. Mas, naquela

noite, parecia furiosa e dava a impressão de ir

subindo,empurrando Becky à sua frente.

- Atrevida! Ladra! - ouviram as duas amigas. - A

cozinheira disse-me que lhe faltam coisas, constantemente.

- Não sou eu, minha senhora - soluçava Becky. - Tenho

fome, mas nunca tirei nada, nunca!

- Merecias que eu te mandasse prender - prosseguia a voz

furiosa. - Roubar metade de uma empada! Que desaforo!

- Não fui eu - dizia Becky, sempre a chorar. - Era capaz

de comer uma inteira, mas nem sequer lhe toquei com um dedo.

Miss Minchin não podia mais: a cólera e a subida das

escadas tinham-na deixado esfalfada. A malfadada empada fora

guardada especialmente para ela... E Becky recebeu um par de

bofetadas.

- É inútil mentir - disse Miss Minchin. - Vai

imediatamente para o teu quarto!

Sara e Hermengarda haviam escutado tudo: depois ouviram

os passos de Becky correndo para o quarto e a porta fechar-

se. Perceberam que a pobre rapariga se atirara para cima da

cama.

-Tenho fome que chegava para duas empadas- soluçava ela.

- E nunca tirei uma migalha fosse do que fosse. A cozinheira

deu-a ao sargento que costuma visitá-la.

Sara, de pé na obscuridade, cerrava os dentes e cruzava

e descruzava febrilmente as mãos. Não podia dominar-se mais;

esperou, porém, que Miss Minchin descesse e que todo o ruído

cessasse. Então, explodiu:

- Má! Desumana! É ela quem rouba e depois acusa Becky!

Não é verdade! Ela mente! Pobre Becky, às vezes tem tanta

fome, que vai apanhar as cascas que estão misturadas com as

cinzas.Escondendo a cabeça nas mãos, rompeu em soluços

aflitivos que consternaram Hermengarda.Sara,a intrépida,Sara,

chorava... Que era aquilo? Custava- lhe a acreditar.

Uma idéia terrível surgiu, lentamente, no cérebro um

tanto obtuso da Hermengarda. Levantou-se, por sua vez,

aproximou-se da mesa, riscou um fósforo e acendeu a vela.

Depois se debruçou para Sara, com um olhar de verdadeira

angústia.

- Sara - murmurou ela, com voz trêmula -tu... tu tens...

Tu nunca dizias nada, eu não queria magoar-te, mas...

Costumas ter fome?Era a gota de água que faz trasbordar a

taça. Sara levantou a cabeça.

- É, verdade - disse ela com ardor. - Sim, tenho fome.

Tenho tanta fome, hoje, que comeria fosse o que fosse. E

ainda me custa mais depois de ter ouvido a pobre Becky,

porque ela ainda está mais esfomeada do que eu!

- Oh! Oh! - exclamou Hermengarda, numa aflição. - E eu

que não sabia nada!

- Eu não queria dizer-to - respondeu Sara. ! Se o

fizesse, dava-me a impressão de ser uma mendiga... Eu sei, de

resto, que tenho todo o aspecto...

- Não, não - interrompeu Hermengarda. - Os teus vestidos

estão velhos e sujos, é verdade, mas não pareces uma mendiga.

Nunca parecerás!

-Um dia, um petizinho deu- me um xelim - disse Sara- e

não pôde deixar de sorrir. – Está aqui.E, ao dizer isto,

tirou a fita que trazia ao pescoço.Se eu não tivesse o ar de

uma pessoa que passa necessidade, com certeza que ele não mo

teria dado.

A vista da tocante recordação distraiu as duas crianças

que principiaram a rir, com os olhos cheios de lágrimas.

- Quem era esse pequenito - perguntou Hermengarda,

olhando a moeda com uma espécie de respeito.

- Era lindo e devia ir a qualquer festa. É uma das

crianças da "Grande Família", aquele petiz de perninhas muito

gordas e a quem eu chamo Guy. A minha idéia é que eles têm

muitos brinquedos, caixas de bombons e bolos com fartura, e

compreendeu que eu não tinha nada...

Hermengarda estremeceu. As últimas palavras de Sara

fizeram nascer no seu cérebro uma súbita inspiração.

- Oh! Sara - exclamou ela. - Como eu sou estúpida por

não ter pensado nisto mais cedo!

-Pensar em quê?

- Oh! Uma idéia esplêndida - continuou Hermengarda,

muito excitada.Recebi hoje mesmo uma grande caixa que a mais

gentil das minhas tias me mandou. Está cheia de coisas boas.

Ainda nem a abri porque comi tanto pudim, ao meio-dia... E

depois, os livros do papá atormentavam-me... Mas eu sei o que

a caixa contém - continuou ela, gaguejando, tanta era a

pressa com que falava. - Tem uplum-cake"(bolo inglês

empadinhas, tortas de doce, laranjas, figos, chocolate! Vou

buscá-la, trago-a, sem fazer barulho e comeremos tudo!

Sara sentia a cabeça andar um pouco à roda; a enumeração

de tantas coisas boas aumentava o seu mal-estar.

Apertou o braço de Hermengarda e perguntou:

- Achas que poderemos?

- Tenho a certeza - replicou Hermengarda. E, correndo

para a porta, abriu-a sem ruído e ficou de ouvido à escuta,

durante um segundo.

- Todas as luzes estão apagadas - murmurou ela. - Está

toda a gente deitada. Vou descer devagarzinho e ninguém

sentirá nada.Esta perspectiva era tão deliciosa, que as duas

amigas apertaram a mão uma da outra, e os olhos de Sara

iluminaram-se.

- Garda - disse ela. - Imaginemns qualquer coisa,

suponhamos que eu dou uma festa! Achas bem que convidemos o

prisioneiro da cela vizinha?

- Mas naturalmente que sim! Bate na muralha; o

carcereiro não ouvirá.

Sara aproximou-se da parede e ouviu a pobre Becky, que

ainda chorava. Bateu quatro pancadas.

- Isto significa: "Vem ter comigo, tenho uma coisa para

te dizer" - explicou ela.

Responderam-lhe cinco pancadas rápidas.

- Vem já - disse Sara.

A porta abriu-se imediatamente, e Becky apareceu. Tinha

os olhos vermelhos e, ao ver Hermengarda, limpou nervosamente

a cara com o avental.

- Não te preocupes comigo, Becky... - disse-lhe

Hermengarda.

- És convidada de miss Hermengarda - explicou Sara. -

Ela vai trazer-nos uma caixa de guloseimas que recebeu hoje.

A touca de Becky escorregou para trás; não podia

acreditar no que ouvia!

- São coisas... coisas boas para comer? - perguntou ela.

- Naturalmente - respondeu Sara - e nós faremos de conta

que damos uma grande recepção.

- E vocês comerão tudo o que quiserem - interrompeu

Hermengarda. - Vou buscar a caixa num instante.

Saiu com tanta pressa, na ponta dos pés, que o xale

vermelho lhe caiu dos ombros, sem ela dar por isso. Ninguém

reparou. Becky estava sufocada com aquela boa surpresa.

- Oh miss Sara, eu sei que foi a menina quem lhe pediu

que me convidasse! Estou quase a chorar de alegria - exclamou

Becky.E aproximou-se muito de Sara, olhando para ela com

adoração. Mas já a imaginação de Sara começara a trabalhar,

transformando e embelezando tudo o que acabava de suceder.

Apesar da pobreza do quarto e do frio que fazia lá fora;

apesar das suas caminhadas estafantes pelas ruas lamacentas e

da lembrança dolorosa dos olhos espavoridos da pequena

mendiga, Sara via, na idéia de Hermengarda, qualquer coisa de

sobrenatural. E suspirou profundamente.

- É quando tudo corre pior que acontece sempre o que

menos se espera! Dir-se-ia que passa por nós um Feiticeiro.

Não devemos esquecer que nunca se é infeliz até ao fim.

E bateu, alegremente, no ombro de Becky, exclamando:

- Não! Não! Hoje não se chora mais. Vamos pôr a mesa,

depressa!

- Pôr a mesa - perguntou Becky, perplexa, percorrendo a

mansarda com o olhar. -Com quê?

Sara olhou também.

- Efetivamente, não temos nada - disse ela, sorrindo.

Mas, naquele momento, avistou um objecto sobre o qual se

precipitou: era o xale vermelho de Hermengarda, que tinha

caído há pouco no chão.

-Tenho a certeza de que Hermengarda não dirá nada -

exclamou ela. - Este xale dará uma esplêndida toalha

encarnada.

Puxaram a velha mesa e cobriram-na com ele. O vermelho é

uma cor maravilhosa: imediatamente o quarto deixou de parecer

tão nu.

- Um tapete encarnado no chão, eis o que nos falta.

Façamos de conta que temos um - disse Sara.

E olhou para o chão esburacado, com grande alegria.

- Vê como é macio - continuou ela, num tom de grande

convicção.

Levantava e baixava o pé, delicadamente, como se o

enterrasse em qualquer coisa muito espessa.

- É verdade!- respondeu Becky, que a contemplava

gravemente.Becky, mesmo nos momentos de felicidade, estava

sempre séria.

- E agora, que mais é preciso - disse Sara, pondo as

mãos sobre os olhos. - Pensemos um pouco! O feiticeiro me

inspirará - acrescentou ela, com uma voz muito doce.

Porque Sara estava persuadida - era uma das suas

invenções favoritas - de que há, espalhadas no ar, idéias à

disposição de quem precisa delas. Becky tinha-a visto, muitas

vezes, esconder assim o rosto nas mãos e levantá- lo, depois,

com uma expressão feliz e inspirada.

Foi o que sucedeu naquela noite. Pronto! – exclamou-Já

tive uma idéia,vou procurar na mala que me pertencia quando

era rica!Dirigiu-se ao canto onde estava a referida mala.

Havia-na-na levado para o sótão, não para comodidade de Sara,

mas porque não tinham outro sítio onde a pudessem meter. Lá

dentro só havia velharias sem valor; mas Sara estava

convencida de que ia fazer belas descobertas... O feiticeiro

lá estava, para transformar tudo.

Num canto da mala via-se um embrulhinho tão pequeno que,

com certeza, havia escapado ao olhar investigador de Miss

Minchin. Sara guardara-o como recordação. Continha uma dúzia

de lencinhos brancos, muito finos. Sara pegou neles e,

voltando para junto da mesa, começou a dispô-los

elegantemente, com a rendinha muito bem esticada.

- Os pratos - dizia ela - são de ouro maciço. E aqui

estão os guardanapos, guarnecidos de rendas caras, feitas em

conventos de Espanha.

- Isso é verdade - murmurou Becky, cheia de admiração.

- O que é preciso é imaginar que é verdade!Afirmou Sara.

- Se acreditares firmemente, verás rendas preciosas.

- Sim, rendas - respondeu Becky, docilmente. E, enquanto

Sara voltava à mala, ela fez todos os esforços possíveis para

chegar àquela conclusão.

Sara viu-a, de repente, com os olhos fechados, a cara

estranhamente convulsionada e as mãos crispadas; dir-se-ia

que procurava levantar um peso enorme.

- Que sucedeu, Becky - exclamou ela. – Que estás tu a

fazer?Becky estremeceu e abriu os olhos.

-Estava a ver se era capaz de acreditar!Respondeu ela,

um pouco confusa.Procurava ver as coisas bonitas que a menina

vê - E estava quase...- concluiu a pobre pequena. - Mas não é

fácil!

- É porque tu não estás habituada - disse Sara,

afetuosamente. No teu lugar não me esforçaria tanto no

começo. É uma coisa que vem a pouco e pouco. Repara bem: vou

explicar-te tudo.

Sara tinha na mão um chapéu velho, de palha, guarnecido

com uma grinalda de flores, que encontrara no fundo da mala.

Arrancou-Lhe a grinalda, e disse, com ênfase:

-Aqui estão as flores para a sala do banquete. O seu

perfume embalsama o ar. Oh Becky, dá-me o jarro da água e

também a saboneteira, que fará um magnífico centro de mesa.

Becky, respeitosamente, foi buscar os objetos

designados.

- Que representa isto agora? - perguntou ela.

- Isto é um gomil cinzelado - explicou Sara, colocando

um ramo de folhagem em volta do jarro da água. -E isto é uma

taça de alabastro, incrustada

de pedras preciosas - disse ela, enchendo a saboneteira

com as rosas do chapéu velho.

- Muito bem! Creio que é muito bonito - suspirou Becky.

-Precisamos de qualquer coisa para pôr os bombons -

murmurou Sara. – Pronto, já sei (e correu para a mala). Vi

aqui uma coisa que nos serve.

Era apenas um bocado de tecido embrulhado em papel de

seda branco e vermelho: Mas, com aquele papel, Sara fez uns

pratinhos e, depois, misturando os bocados que sobejaram com

as flores que ainda tinha, ornamentou o castiçal que fazia as

vezes de candeeiro. Só o Feiticeiro seria capaz de ver em

tudo aquilo outra coisa que não fosse uma mesa velha e sem um

pé, coberta com um xale e ornamentada com trapos. Mas, para

Sara, era uma mesa suntuosa; e Becky abria os olhos, falando

o mais que podia.

- Ainda estamos na Bastilha - perguntou ela, olhando em

volta de si. -Ou a Bastilha também foi transformada?

- Oh Com certeza - respondeu Sara. - É tudo diferente!

Estamos na sala do banquete.

- Do quê? Meu Deus - exclamou Becky, absolutamente

confundida.

- Na sala do ban-que-te - explicou Sara. Quer dizer: uma

grande sala para refeições de cerimônia, com um teto alto, em

abóbada, uma galeria para os músicos, uma grande chaminé

cheia de troncos de árvore a arder, e inúmeras velas de cera

que cintilam de todos os lados.

- Palavra... - murmurou novamente Becky. Naquele

momento, a porta abriu-se e Hermengarda entrou, vergada ao

peso da caixa. Soltou uma exclamação de alegria, à vista dos

brilhantes preparativos para o festim, que contrastavam com a

glacial escuridão da escada.

- Oh! Sara - disse ela. - Tu és a pessoa mais

inteligente que eu tenho conhecido!

- Não é verdade que é bonito – respondeu Sara.Tudo isto

saiu da minha mala velha. Foi o Feiticeiro que me inspirou.

-Oh Miss Hermengarda, é preciso saber o que tudo isto

representa... Explique-lhe, Miss Sara! - pediu Becky.

Então, Sara, ajudada, sem dúvida, pelo Feiticeiro,

descreveu tão bem os magníficos preparativos, que as suas

duas companheiras viam, quase, os pratos de ouro, os troncos

a arder, as velas a cintilar.

E quando retiraram da caixa, uns após outros, os bolos

cobertos de açúcar, as tortas, os frutos, os chocolates e o

xarope, então a mesa do banquete tornou-se, verdadeiramente,

uma maravilha.

- É um jantar completo! - exclamou Hermengarda.

- Dir-se-ia a mesa de um rei! – murmurou Becky.

Hermengarda teve, sùbitamente, uma brilhante inspiração.

- Ouve, Sara - disse ela. - Imaginemos que tu és uma

princesa e que isto é um banquete real.

- Mas és tu que ofereces o banquete ,objetou Sara.

Serás tu a princesa e nós as tuas damas de honor.

- Oh! Eu não posso ser princesa – respondeu Hermengarda.

- Sou muito gorda. E, além disso, não sei como hei-de fazer.

Tu sabes muito melhor.

- Nesse caso, aceito, visto que tu queres -disse Sara.

Mas, uma nova idéia fê-la correr para a grelha

enferrujada do fogão.

- Está cheia de lixo e papéis velhos ! - exclamou ela. -

Deitemos-Lhe fogo. Fará, durante alguns minutos, uma linda

chama, e imaginaremos que temos na realidade, o fogão aceso.

Pegando num fósforo, juntou a ação às palavras e a

mansarda ficou toda iluminada.

- Quando os papéis acabarem de arder - disse Sara -

esqueceremos que foi um simulacro de fogueira. (Enquanto

falava, conservava-se sorridente junto das chamas). Parece

mesmo que é verdade, não parece? perguntou ela. Agora vamos

dar começo à festa.

Com um gesto gracioso, indicou a mesa, com a mão, a

Hermengarda e a Becky. Vivia, cada vez mais, o seu sonho.

- Aproximai-vos, gentis damas - disse ela - e tomai

lugar na mesa do banquete. O rei, meu nobre pai, que partiu

para uma longa viagem, ordenou-me que o substituísse junto de

vós.

E, voltando a cabeça para o fundo da mansarda,

continuou:

-Que os menestréis façam ressoar violas e oboés... As

princesas - explicou ela, ràpidamente, às companheiras -

tinham sempre músicos que tocavam durante as refeições.

Imaginemos que há ali uma galeria cheia de menestréis.

Ainda mal tinham comido, cada uma, um bocado de bolo,

quando as três empalideceram e se levantaram, de ouvido

atento na direção da porta.

Não havia engano. Alguém subia a escada. As três

crianças reconheceram os passos que tanto temiam e

compreenderam que chegara o fim do seu lindo sonho.

- Lá vem a senhora - disse Becky, com a voz estrangulada

e deixando cair o bolo.

- Sim - confirmou Sara, em cujo rosto pálido se

distinguia apenas dois olhos imensos. - Miss Minchin ouviu-

nos.

Com um gesto brusco, miss Minchin abriu a porta. Também

ela estava pálida, mas de cólera, e o seu -olhar ia dos três

rostos apavorados para a mesa do banquete e da mesa para a

última labareda do papel que acabava de arder no fogão.

- Eu já suspeitava... - gritava ela - mas nunca poderia

acreditar em semelhante audácia. Lavínia tinha razão!

Assim, fora Lavínia quem descobrira o segredo e as

atraiçoara! Miss Minchin dirigiu-se a Becky e pela segunda

vez, esbofeteou a pobrezinha.

- Atrevida - disse ela. - Sairás desta casa amanhã de

manhã!

Sara conservava-se imóvel e branca como mármore.

Hermengarda começou a chorar.

- Oh! Não a despeça, miss Minchin - suplicou-a. - A

minha tia mandou-me um presente e nós fizemos uma festa...

- Bem vejo - respondeu a diretora, com glacial ironia. -

E a princesa Sara presidia à mesa.

Ao dizer isto, voltou-se, furiosa, para Sara, gritando:

-A culpa é toda tua! Hermengarda nunca teria semelhante

idéia. Foste tu quem decorou o quarto com todas estas

porcarias!

E voltando-se de novo para Becky:

- Volta imediatamente para o teu quarto.

Becky fugiu, com a cabeça escondida debaixo do avental.

- Quanto a ti - continuou Miss Minchin, dirigindo-se a

Sara - ficará privada de almoço, jantar e ceia.

- Já hoje não almocei, não jantei, nem ceei - Miss

Minchin - disse Sara, com a voz muito sumida.

-Tanto melhor! Não te esquecerás tão depressa... Não

fiquem a olhar para mim. Metam tudo dentro da caixa.

Ao dizer estas palavras, deu com os olhos nos livros de

Hermengarda.

- A menina atreveu-se a trazer os seus magníficos livros

para esta mansarda... Pegue neles, já! e vá para a cama.

Amanhã não sairá do quarto, e vou escrever ao seu pai. Que

diria ele se soubesse onde a menina veio este serão!

O olhar profundo e singular de Sara fê-la interromper.

- Em que estás a pensar? - perguntou Miss Minchin,

ásperamente. - Porque olhas assim para mim?

- Estou a refletir! - respondeu Sara, como já fizera uma

vez na sala de estudo.

- Em quê? Diz!

Parecia a repetição da mesma cena. Não havia a menor

insolência na voz de Sara. Era calma e triste.

- Perguntava a mim própria - disse ela, lentamente -, no

que diria o meu pai se soubesse onde eu estou, este serão...

Como no dia da famosa cena, Miss Minchin perdeu o

domínio de si própria. Agarrou a pequena pelos ombros e

sacudiu-a com brutalidade!

- Insolente! -gritou ela. - Como te atreves tu... Atirou

com os livros e os bolos, tudo misturado, para dentro da

caixa, e pô-la sobre os braços de Hermengarda, ao mesmo tempo

que dizia a Sara:

- Deixo-te com as tuas reflexões. Deita-te

imediatamente.

Empurrando a pobre Hermengarda, fechou a porta e Sara

ficou sozinha.

O sonho, tão lindo, acabara. Na grelha não havia senão

papel queimado; a baixela, os guardanapos de renda e as

grinaldas tinham voltado a ser lenços usados, papel de seda

branco e vermelho, e velhas flores artificiais que juncavam o

chão; os menestréis haviam desaparecido e o som das violas

extinguira-se. Restava apenas Emily, sentada junto da parede;

tinha o ar de ver qualquer coisa estranha, com os seus

grandes olhos redondos. Sara reparou nela e, com as mãos

tremulas, pegou-Lhe.

-Acabou-se o banquete, Emily, e acabaram-se as

princesas. Só ficaram os prisioneiros da Bastilha.

Sentando-se no velho banco, escondeu a cabeça entre os

braços.

... Que teria acontecido se, em vez de tapar os olhos,

ela os tivesse levantado para a trapeira, justamente nesse

momento? Ninguém sabe. Talvez que o fim deste capítulo fosse

diferente... Porque se Sara tivesse erguido os olhos, teria

visto, através da vidraça, o mesmo rosto bronzeado que já, ao

começo da noite, a estivera contemplando e a Hermengarda,

enquanto conversavam.

Mas Sara não se movia. Ficou muito tempo com a cabecinha

morena deitada sobre os joelhos, como fazia sempre que

procurava suportar corajosamente uma nova provação. Por fim,

levantou-se e aproximou-se lentamente da cama.

- Hoje não posso imaginar mais nada - murmurou ela. - É

inútil tentar. Talvez, se eu adormecer, venha algum sonho

"imaginar" por mim...

Sentia-se, sùbitamente, tão cansada - talvez por não ter

comido durante todo o dia, que quase tombou, desfalecida,

sobre o leito.

- Suponhamos - recomeçou ela, entretanto, suponhamos que

há um bom lume no fogão, com muitas labaredazinhas azuis, que

dançam; suponhamos que, em frente do lume, se encontra uma

mesinha sobre a qual... Sobre a qual está servida uma ceia

bem quente. E suponhamos - continuou a pobre pequena,

embrulhando-se no velho cobertor , suponhamos que eu estou

deitada numa caminha macia, com espessos cobertores e grandes

almofadas de sumaúma. Suponhamos... Suponhamos...

E aquela grande e súbita fadiga transformou-se, quase,

num benefício, porque os olhos fecharam-se-lhe e ela

adormeceu profundamente.

Quanto tempo dormiu? Não podia fazer a menor idéia. Mas

dormia tão pesadamente, que toda a família Rodilard, pais,

filhos e filhas, correndo e galopando através da mansarda,

não teriam sido capazes de despertá-la do seu profundo sono.

Quando acordou, quase de repente, não teve a impressão

de haver sido despertada por qualquer coisa. E, no entanto,

fora um ruído verdadeiro que a chamara à realidade - o ruído

seco feito pela janela que se fechava, depois de ter deixado

passar uma forma branca e silenciosa que, apenas se encontrou

no telhado, se alongou, sem ruído, sobre as ardósias,

bastante próximo, para ver o que se passava no interior da

mansarda, mas não tanto que pudesse ser visto por Sara.

Sara não abriu logo os olhos. Ainda tinha sono e, coisa

curiosa, experimentava uma doce impressão de calor, uma

impressão tão boa, que não podia acreditar que estivesse

realmente acordada: um sonho, só um sonho podia dar-lhe tal

sensação de completo bem-estar.

- Que bom sonho -- balbuciou ela. - Estou tão quentinha!

Eu... Eu queria... Não acordar.

Evidentemente, só podia ser um sonho. Parecia-lhe que os

cobertores que a agasalhavam eram leves e quentes. Na

verdade, ela estendeu as mãos e os seus dedos apalparam

qualquer coisa como um edredon de sumaúma, forrado de

cetim... Ficaria muito quieta para não quebrar o encanto...

Mas era mais forte do que ela; havia no quarto qualquer

coisa que a forçava a abrir os olhos: uma sensação luminosa e

um ruído - o mesmo ruído que faria um lume crepitante.

"Oh! Estou a acordar - pensava ela, com desespero". - E

não posso impedir que isso aconteça!” Os olhos abriram-se

,apesar de ela não querer. E. então, sorriu, porque viu o que

nunca tinha visto no sótão, e o que não tornaria mais a ver.

- Não estou acordada - murmurou, erguendo-se sobre o

cotovelo e olhando para todos os lados. - O sonho continua.

Tinha a certeza de estar sonhando: o que ela julgava ver

não podia existir na realidade.

Eis o que via: - Na grelha ardia um belo lume vermelho

e, sobre esse lume, estava uma pequena vasilha de cobre, onde

a água fervia, a cantar; sobre o sobrado, um espesso tapete

vermelho; em frente do lume uma poltrona articulada, aberta e

cheia de almofadas; junto da poltrona uma mesinha também

articulada, coberta com uma toalha branca, e sobre a qual se

encontravam pratinhos com as suas tampas, uma chávena com o

seu pires e um bule; sobre o leito estavam cobertores novos e

quentes, assim como um edredon de cetim; ao pé da cama havia

um curioso roupão de seda acolchoada, um par de pantufas

forradas de pele e alguns livros. O miserável quarto tornara-

se um lugar maravilhoso e uma claridade iluminava tudo,

porque em cima da mesa havia um bonito candeeiro, com um

quebra-luz cor-de-rosa.

Sara olhava, sempre apoiada no cotovelo; o coração

batia-lhe desordenadamente.

- A visão não desaparece - dizia ela, ofegante. - Oh!

Nunca tive um sonho tão bonito como este!

Não se atrevia a mexer-se; mas, por fim, afastando a

roupa, pôs um pé no chão.

- Estou a sonhar que me levanto - ouviu ela dizer a sua

própria voz.

E quando, já de pé, olhava lentamente à sua volta, foi

dizendo:

- Estou a sonhar que o meu sonho continua; sonho que é

verdade. Estou enfeitiçada! Imagino que vejo tudo isto...

Falava cada vez mais depressa.

- Se eu puder continuar a crer que é verdade, pouco me

importa que seja um sonho... Não é verdade! Não pode ser

verdade. Mas, meu Deus! Como tudo isto parece verdadeiro.

O lume atraiu-a.Ajoelhou em frente da grelha e estendeu

as mãos tão perto, que o calor intenso fê-la recuar.

- Um fogo de sonho não me queimaria – disse ela em voz

alta.

Levantou-se e foi tocar na mesa, no tapete, no bule.

Tocou nos cobertores, pegou no roupão acolchoado e encostou-o

à cara.

- É quente! É macio - dizia ela, com lágrimas na voz. É

verdade! Tudo isto é verdade!Pôs o roupão sobre os ombros e

enfiou os pés nas pantufas.

- Tudo isto é real! Eu... Eu não sonho! exclamou.

Quase a cambalear, dirigiu-se para os livros e abriu o

que estava ao de cima.Na primeira página estava escrito:

"Para a menina da mansarda. Da parte de um amigo".

Ao ler isto, Sara escondeu o rosto entre as folhas do

volume e rompeu em soluços.

- Não sei quem é - dizia ela. - Mas alguém pensa em mim!

Tenho um amigo!

Pegou no castiçal e, em bicos de pés, foi ter com Becky.

Junto do leito parou, chamando, nervosamente.

- Becky! Becky! Acorda!

Quando Becky, com a cara ainda toda suja de lágrimas,

abriu os olhos, viu diante de si uma pequena silhueta envolta

num luxuoso e bonito roupão carmesim. Um lindo rosto

resplandecente olhava para ela: a princesa Sara estava a seu

lado, com o castiçal na mão.

-Vem - dizia-lhe ela. – Oh! Becky, despacha-te!

Becky estava tão espantada, que não podia falar.

Levantou-se e, com os olhos dilatados e a boca aberta, seguiu

Sara, sem dizer palavra.

Quando entraram no quarto de Sara, esta fechou a porta

devagarzinho e, afetuosamente, levou a companheira até junto

de todas aquelas maravilhas, diante das quais ela própria

sentia o coração palpitar e a cabeça andar à roda, e disse-

Lhe:

-Tudo isto é verdadeiro! Não é um sonho. Toquei em tudo.

Tudo é tão real como nós. O Feiticeiro veio, Becky, e

trabalhou enquanto nós dormíamos: o Feiticeiro que nunca

permite que sejamos infelizes até ao fim.

O VISITANTE

Agora, imaginemos, se é possível, o que foi o resto da

noite. Imaginemos as duas crianças sentadas sobre o tapete,

em frente do lume que enchia de fulgor a triste grelha, toda

enferrujada. Pensemos na sua alegria quando, ao levantar as

tampas dos pratinhos, descobriram um bom caldo, ainda

fumegante, sanduíches, torradas com manteiga e bolos em

quantidade suficiente para as duas. A velha campainha que

estava em cima da cômoda serviu de chávena a Becky, e o chá

estava tão bom, que era perfeitamente escusado "supor" fosse

o que fosse ao bebê-lo. As duas amigas, bem quentinhas,

sentiam-se reconfortadas; estavam contentíssimas; e Sara,

convencida, finalmente, de que o seu sonho era realidade,

abandonava-se ao prazer de gozar completamente aquele bem-

estar.

À força de viver sempre num mundo imaginário, chegava a

considerar naturais os acontecimentos mais incompreensíveis,

e a deixar de ver neles o que quer que fosse de misterioso.

-Não conheço ninguém que pudesse fazer-me semelhante

surpresa; mas, enfim, esse alguém existe. Porque, eis-nos

sentadas junto do lume... E esse lume arde e aquece! Em todo

o caso, Becky, eu tenho um amigo. Há alguém, neste mundo, que

é meu amigo.

Continuando sempre a aquecer-se e a fazer honra à

substancial e saborosa refeição, as duas pequenas olhavam uma

para a outra, com ar de interrogação, e a maravilha que as

rodeava fazia nascer nas suas alminhas uma espécie de

deslumbramento quase assustado.

- Não acha - murmurou Becky, com voz tremula - que tudo

pode muito bem desaparecer, e que nós faríamos melhor se nos

despachássemos?

E, juntando a ação às palavras, meteu metade de um

sanduíche na boca.

"Palavra - pensava ela - se não é mais do que um sonho,

podemos muito bem pôr de parte as cerimônias... "

- Não - respondeu Sara -, nada desaparecerá. Eu como

este bolo, a valer, saboreio-lhe o gosto. Nos sonhos nunca se

come a valer. Além disso, já me queimei umas poucas vezes, de

propósito, e agora mesmo toquei numa brasa. Asseguro-te que a

senti...

O sono reparador, que as ia dominando pouco a pouco,

dava-Lhes também uma sensação agradabilíssima. Era o doce

entorpecimento que se apodera das crianças felizes, bem

alimentadas e amimadas. Ficaram assim, todas penetradas de

bem-estar, até ao momento em que Sara se surpreendeu a olhar

para o lado do seu leito transformado. Havia bastantes

cobertores para dividir com Becky, que teve, nessa noite, uma

cama como nunca tivera.

Ao deixar o quarto de Sara, Becky olhou longamente para

todos aqueles esplendores.

- Se amanhã de manhã não encontrarmos nada disto aqui,

tivemos, ao menos, o prazer deste serão, que eu nunca

esquecerei - disse ela.

Olhava para cada objeto, um após outro, como para fixar

para sempre, na memória, a sua imagem.

- O bom lume - enumerava ela , a mesa em frente, o

bonito candeeiro cor-de-rosa; o edredon de cetim em cima da

cama, o tapete no chão, todas estas coisas tão boas...

E, ao dizer isto, punha a mão sobre o estômago, num

gesto eloqüente.

- A magnífica sopa, as sanduíches, os bolos... tudo isto

era verdadeiro...

E bem convencida, desta vez, de que também ela vivera o

seu sonho, foi-se embora.

Graças à telegrafia misteriosa que funciona entre as

alunas do colégio e os criados da mesma casa, toda a gente,

no Colégio Minchin, sabia, logo na manhã seguinte, que Sara

Crewe estava em plena desgraça, que Hermengarda fora

condenada a ficar fechada no quarto e que Becky teria sido

despedida, logo de madrugada, se tivessem podido substituí-la

imediatamente. Os criados compreenderam que Miss Minchin a

conservava porque lhe seria impossível encontrar uma criança

tão só e abandonada, que trabalhasse como uma escrava, com um

ordenado miserável. E as "grandes" diziam umas às outras,

baixinho, que, se Miss Minchin não punha Sara na rua, era

porque lhe convinha mais conservá-la.

-Ela cresce ràpidamente e aprende tudo com tanta

facilidade - explicou Jessie a Lavínia , que poderão confiar-

lhe uma classe daqui a pouco tempo, e nem sequer terão de Lhe

pagar. Mesmo assim, Lavínia, foi mal feito da tua parte ires

denunciá-la, só porque ela se distraía um pouco lá no sótão.

Como o soubeste tu?

- Foi Lottie quem mo disse; ela é tão pequenina, que nem

percebeu o que eu a obrigara a contar.

Não vejo mal algum em ter ido prevenir Miss Minchin.

Senti que era o meu dever - acrescentou Lavínia num tom

convicto.Porque Sara enganava Miss Minchin. E ela é ridícula,

com os seus ares importantes, mal vestida e quase descalça

como anda!

-Que faziam elas, três, quando Miss Minchin entrou?

- Oh! Tinham inventado não sei que estupidez como de

costume. Hermengarda levara um cesto com guloseimas para

dividir com Sara e Becky. A nós, nunca nos oferece nada...

Para mim, isso é indiferente, mas acho bastante vulgar ir

misturar-se, assim, com as criadas, no sótão. Fiquei

surpreendida por Miss Minchin não ter expulsado Sara, embora

perdesse, assim, uma boa professôra.

- Para onde iria ela, se a expulsassem - perguntou

Jessie, um pouco inquieta.

- Sei lá - respondeu àsperamente Lavínia. Penso que ela

deve ter um ar comprometido, daqui a bocado, quando entrar na

aula. Parece que, ontem, não lhe deram de jantar e que será

privada de comer hoje durante todo o dia.

Jessie era bastante superficial mas, no fundo, não era

má. Pegou nos livros, com gesto nervoso, e disse:

- É horrível! Miss Minchin não tem o direito de matá-la

à fome!

Quando Sara entrou na cozinha, as crianças olharam-na de

alto; mas ela não deu nenhuma atenção. Ela e Becky haviam

acordado um pouco tarde, e as duas, sem trocar uma palavra,

tinham-se apressado a descer.

Sara entrou na copa. Encontrou lá Becky, a esfregar

vigorosamente uma cafeteira e a cantarolar baixinho uma

canção. Olhou para Sara com uma cara satisfeitíssima.

-O cobertor ainda lá estava, quando eu me levantei -

murmurou ela, muito excitada. - Tal como ontem!

- Os meus também - respondeu Sara. - Não me falta nada.

Enquanto me vestia fui comendo um dos bocados de bolo que

tinham sobejado.

- Oh meu Deus - exclamou Becky, com uma espécie de

voluptuosidade.

Depois, bruscamente, baixou o nariz sobre a cafeteira,

porque a cozinheira acabava de chegar.

Tal como Lavínia, Miss Minchin esperava ver Sara muito

deprimida. Aquela pequena fora sempre um enigma, e um enigma

irritante, porque a severidade parecia não ter sobre ela a

menor influência. Se lhe ralhavam, escutava delicadamente,

com um ar muito sério; se a castigavam, ou deixava de jantar,

não se lamentava nem mostrava exteriormente o menor sinal de

revolta. Miss Minchin achava que o facto de ela não

responder, nem sequer com uma palavra insolente, era, em si

mesmo, uma insolência. Mas, desta vez, depois da cena

violenta da noite anterior e da perspectiva de passar todo o

dia em jejum, Sara acabaria por ceder... Decerto, ia aparecer

muito pálida, de olhos vermelhos, com um ar humilde e

desgraçado.

Miss Minchin viu-a entrar na aula, para a lição de

francês às pequeninas. Caminhava com passo vivo; tinha boas

cores e quase um sorriso nos lábios. A diretora não podia

acreditar no que via; sentiu como um choque desagradável. De

que espécie era esta criança? Fez-lhe sinal para se aproximar

dela, e disse-lhe:

-Parece ter-se esquecido de que está de castigo! Estará

definitivamente insensível?

Quando se é ainda criança, se comeu uma boa ceia e se

dormiu muito agasalhadinha; quando um bom sonho se tornou

realidade, é muito difícil ter um ar desgraçado e impedir os

olhos de brilhar.

Miss Minchin ficou muda, quando Sara, olhando para ela,

lhe deu esta resposta, perfeitamente correta:

- Peço-lhe desculpa, Miss Minchin; eu sei realmente que

fui castigada.

- Recomendo-lhe que o não esqueça e que não tome um ar

triunfante, absolutamente fora de propósito. E lembre-se,

também, de que está privada de comer durante o dia de hoje.

- Sei isso bem, Miss Minchin - respondeu Sara. E, ao

voltar para o seu lugar, o coração apertou-se-Lhe, ao

recordar o dia da véspera.

"Se o Feiticeiro não tivesse vindo em meu socorro -

pensava ela - hoje seria terrível...”

- Não tem ar de ter fome - segredou Lavínia -Olha para

ela. Talvez "imagine" que comeu um bom almoço - acrescentou,

com um risinho perverso.

- É diferente de toda a gente! - respondeu Jessie, que

observava Sara no meio das suas alunas.

- As vezes, chega a fazer-me medo...

- Meu Deus, como tu és ridícula - disse Lavinia.

Sara conservou até à noite o olhar brilhante e as faces

frescas. As criadas olhavam para ela, muito intrigadas, e os

olhinhos azuis de Miss Amélia estavam redondos de espanto:

não podia acreditar em tanto aprumo da parte de alguém que

incorrera tão gravemente no desagrado de sua augusta mana!

Mas era bem uma atitude de Sara! Estava, sem dúvida, disposta

a mostrar-se indiferente...

Ao que Sara estava disposta, era a guardar o maior

segredo possível sobre os acontecimentos maravilhosos

sucedidos no seu quarto. Se Miss Minchin subisse novamente ao

sótão, tudo seria descoberto, com certeza. Mas parecia pouco

provável que repetisse a ascensão, pelo menos naqueles tempos

mais próximos. O que ela ia, sem dúvida, era vigiar

rigorosamente Hermengarda e Lottie, que elas não se

atreveriam a recomeçar as suas expedições noturnas. Em todo o

caso, recomendaria o maior segredo a Hermengarda, e podia

confiar nela. Se Lottie chegasse a descobrir qualquer coisa,

obrigá-la-ia a jurar que não diria nada. E, depois, o

Feiticeiro ajudá-la-ia a preservar a sua obra de olhares

profanos.

- Mas, suceda o que suceder - repetia Sara consigo

mesma, durante todo o dia - há, em qualquer parte, sobre a

Terra, um ser divinamente bom que é meu amigo. Talvez eu

nunca venha a saber quem é, e não possa agradecer-lhe, mas

nunca mais me sentirei tão só como até agora. Oh! O

Feiticeiro foi generoso!

O tempo tinha estado mau, na véspera; e continuou assim

naquele dia; úmido, lamacento e frio ao máximo. Havia imensos

recados a fazer; a cozinheira estava tal qual um porco-

espinho e, como sabia a má disposição de Miss Minchin em

relação a Sara, não fazia a menor cerimônia em descarregar

também sobre ela o seu mau gênio. Mas, que importância pode

ter tudo isso, quando um socorro maravilhoso veio até nós,

misteriosamente?

A bela ceia da noite anterior dera força a Sara; sabia

que ia dormir muito quentinha e, embora o estômago começasse

de novo a gritar que tinha fome- o que era naturalíssimo -

sentia que poderia esperar, até ao dia seguinte de manhã, que

chegasse o fim do seu castigo.

Era já bastante tarde quando subiu para o quarto. O

coração batia- lhe com força assim que pôs a mão no fecho da

porta.

"Talvez tudo tenha desaparecido!-pensava- procurando ser

corajosa. Naturalmente foi só para me ajudar a passar esta

terrível noite. Mas, de qualquer maneira, vivi, na realidade,

horas deliciosas: não foi um sonho!"

Empurrou a porta e entrou. Por pouco não deixou escapar

um grito. Dominou-se, porém.

Fechou a porta e, encostando-se a ela, olhou para o

quarto.

O Feiticeiro tinha voltado e fora ainda mais generoso do

que na véspera. O lume ardia; sobre a mesa estava uma nova

ceia, e desta vez havia dois talheres; um soberbo tecido

bordado, com aspecto exótico, escondia a parte superior da

desmantelada chaminé. Todos os móveis velhos, partidos e

estragados, estavam escondidos sob panos de cores lindas;

algumas tapeçarias, presas por pregos tão finos, que era

inútil o martelo para pregá-los, dissimulavam as paredes

esburacadas. Havia leques lindíssimos pendurados aqui e ali,

e grandes almofadas, sobre as quais se podia sentar,

espalhadas no tapete. Uma arca de madeira, coberta com um

pano e guarnecida com mais almofadas, fazia admiravelmente as

vezes de divã.

Sara aproximou-se do lume, sentou-se e abriu muito os

olhos, para ver melhor.

- É como um conto de fadas que se tornasse realidade -

murmurou ela. Parece-me que bastaria eu manifestar um desejo:

diamantes ou sacos cheios de ouro e logo os veria aparecer!

Não me espantava! Será esta a minha mansarda? Serei eu a

mesma Sara esfarrapada, encharcada e transuda de frio...

Quando penso em tudo o que eu imaginava e como desejava que

houvesse fadas! Pois bem! Eis-me vivendo um conto de fadas!

Chega a parecer-me que, por pouco, eu própria serei fada e

transformarei tudo com a minha varinha de condão.

Levantou-se e foi dar as pancadas regulamentares na

parede. Becky apareceu imediatamente.

Quando entrou, ia caindo no chão, espantada! Ficou muda,

durante alguns minutos. Por fim, balbuciou:

- Meu Deus! Meu Deus!

- Vês - exclamou Sara.

Naquela noite, Becky instalou-se sobre uma das grandes

almofadas, em frente do lume, e teve uma chávena e um pires

verdadeiros, para tomar chá.

Quando, depois de cearem, Sara se foi deitar, encontrou

um belo colchão novo e um magnífico almofadão de sumaúma. A

antiga enxerga e o pequeno travesseiro que lhe haviam dado,

tinham sido transportados para a cama de Becky, que dormiu,

assim, muito mais confortàvelmente.

- Donde pode vir tudo isto? - perguntava Becky, pasmada.

- Meu Deus! Quem pode fazer este milagre?

- Não queiramos saber - respondeu Sara. Se não fosse o

grande desejo que eu tenho de dizer, ao menos, "Obrigada!”,

preferia não saber coisa nenhuma. Seria ainda mais belo.

Desta forma, a vida das duas pequenas foi

maravilhosamente transformada, a partir desse dia. O conto de

fadas continuava. Todas as noites, quando Sara voltava para o

sótão, descobria sempre um novo embelezamento. As paredes

decrépitas desapareciam a pouco e pouco, sob tapeçarias e

gravuras; engenhosos móveis desmontáveis iam aparecendo dia a

dia; depois foi uma pequena estante, cheia de livros; enfim,

parecia não haver mais nada que fosse possível desejar.

Quando Sara descia para a cozinha, de manhã, havia

ainda, em cima da mesa, os restos da ceia; ao regressar, à

noite, o Feiticeiro tinha-os levado; substituindo-os por uma

esplêndida refeição.

Miss Minchin mostrava-se mais severa do que nunca; Miss

Amélia andava bastante rabugenta e a cozinheira sempre

absolutamente insuportável. Sara ia fazer recados, fosse qual

fosse o tempo, e ouvia ralhar a propósito e despropósito de

tudo, chegando a levar empurrões. Só de longe em longe

conseguia trocar uma palavra com Hermengarda ou com

Lottie.Lavinia olhava com ar de desprezo e troça o seu velho

vestido, todo remendado, e as outras lançavam-lhe olhares

curiosos, quando ela entrava na aula. Mas que importava tudo

isto a Sara, se estava vivendo no país das maravilhas? Era

uma história incomparávelmente mais espantosa do que todas as

que ela imaginara para se defender do desespero. Por vezes,

quando lhe ralhavam, tinha dificuldade em não sorrir.

"Se soubessem - pensava ela. – Oh! Se soubessem"

Quando voltava para casa, toda molhada, cheia de cansaço

e fome, reconfortava-a a idéia da boa ceia e do bom lume que

encontraria lá em cima... Mesmo durante os dias mais

trabalhosos, conservava a sua melhor disposição, pensando no

que veria à noite, ao abrir a porta do quarto, e perguntando

a si própria que nova surpresa a esperaria... Não tardou a

parecer menos magra. As faces tornaram-se-lhe rosadas, e os

olhos já não pareciam grandes de mais para a sua carinha tão

original.

- Sara Crewe está esplêndida - disse um dia Miss Minchin

a Miss Amélia, num tom de desaprovação.

- É verdade - respondeu imprudentemente a pobre Miss

Amélia. -Está a engordar, ela, que começava a parecer um

corvo esfomeado...

-Esfomeada!-protestou sêcamente Miss Minchin. -Não tinha

a menor razão para parecer esfomeada! Sempre teve comida em

abundância!

- Oh, com certeza, com certeza - concordou humildemente

Miss Amélia, assustada ao ver que, como de costume, fizera

disparate.

-É desolador verificar semelhante disposição numa

criança daquela idade - disse Miss Minchin, com ar altivo e

misterioso.

- Que disposição? - perguntou timidamente Miss Amélia.

- Dir-se-ia que pretende desafiar-nos - explicou a

diretora, um tanto ou quanto embaraçada, no fundo, porque

sabia, perfeitamente, que não era assim.

-Qualquer outra ter-se-ia sentido humilhada e teria

cedido perante... perante os acontecimentos que transformaram

a sua vida. Mas aquela pequena parece tão pouco disposta à

submissão e à humildade como se fosse, na realidade, uma

princesa.

- Lembras-te - começou a imprudente Miss Amélia - da

manhã em que ela te perguntou o que farias, se descobrisses

que ela era, realmente, princesa?

- Não - interrompeu secamente Miss Minchin.

-Não digas tolices.

Mas lembrava-se melhor do que ninguém. A própria Becky

criava bochechas e perdia o ar de animal escorraçado. Também

ela desempenhava o seu papel no maravilhoso conto de fadas...

Tinha agora dois colchões, duas almofadas, os cobertores de

que precisava, e todas as noites ceava abundantemente,

sentada sobre uma bela almofada, em frente do lume. Já não se

tratava da Bastilha, nem de prisioneiros; em vez destes,

havia agora duas pequenas que viviam num mundo de delícias.

Umas vezes, Sara lia em voz alta; outras, imóvel, olhava

o lume com ar ardente, pensando no amigo desconhecido a quem

tanto gostaria de exprimir, ao menos uma vez, uma pequena

parte da gratidão de que o seu coração estava cheio.

Depois, produziu-se uma nova maravilha. Um empregado de

um armazém levou ao colégio de Miss Minchin vários embrulhos,

que eram, todos, endereçados, em grandes letras, bem

legíveis: "A menina que habita a mansarda da direita.”

Foi mesmo Sara quem abriu a porta e pegou nos embrulhos.

Colocou- os sobre a mesa da antecâmara e estava a ler a

direção quando Miss Minchin a avistou:

- Leva imediatamente esses pacotes à sua destinatária -

disse ela, com severidade. - Não percas tempo a olhar.

- São para mim respondeu Sara, tranquilamente.

- Para ti - exclamou Miss Minchin. - Que queres dizer

com isso?

- Não sei quem os manda - explicou Sara -, mas são-me

dirigidos. Eu durmo na mansarda da direita. Becky dorme na da

esquerda.

Miss Minchin, muito agitada, aproximou-se para ver os

embrulhos.

- Que contêm eles? - perguntou.

- Não sei - respondeu Sara.

-Abre-o ordenou Miss Minchin. Sara obedeceu. Na

fisionomia de Miss Minchin estampara-se uma grande

perplexidade. Os pacotes abertos deixavam ver sapatos, meias,

luvas, um vestido, um casaco quente e confortável, e mesmo um

bonito chapéu e um guarda-chuva. Todos estes objetos eram de

excelente qualidade, e na algibeira do casaco haviam pregado,

com um alfinete, um papel onde estava escrito: "Para serem

usados todos os dias. Serão substituídos quando for

necessário". Miss Minchin estava perturbada. Este incidente

inesperado despertava estranhas angústias na sua alma

mesquinha.

Se ela se houvesse enganado, e a criança tão mal

tratada tivesse no mundo algum amigo original, talvez um

parente afastado, que houvesse descoberto o seu rasto e se

divertisse a velar por ela daquela forma misteriosa?

Às vezes, há tios, velhos solteirões, muito ricos, que

não gostam de ter as sobrinhas em casa e preferem ocupar-se

delas à distância. Pessoas desta espécie são sempre

caprichosas, impulsivas, e ofendem-se com a menor coisa.

Seria lamentável se algum parente de Sara aparecesse um

dia, e soubesse toda a verdade sobre os vestidos rotos, a

alimentação insuficiente e os trabalhos pesadíssimos...

Miss Minchin sentia-se pouco à vontade e olhava de lado,

para Sara.

- Está bem! - disse ela, num tom que nunca tivera depois

da morte do capitão Crewe. - É alguém que se mostra

verdadeiramente bom para ti.

Visto que te mandam essas coisas tão bonitas e que as

substituirão quando estiverem usadas,vai vesti-las

imediatamente, e arranjar-te melhor. Quando estiveres pronta,

podes vir estudar com as tuas companheiras. Não te ocupes

mais de recados, por hoje.

Quando, meia hora depois, Sara entrou na sala de estudo,

o colégio inteiro ficou tomado de espanto.

- Será possível - exclamou Jessie, tocando no cotovelo

de Lavínia. - Olhem para a princesa Sara!

Todos os olhos estavam fixos nela. Lavínia olhava-a

também e tornou-se vermelha.

Era, realmente, a princesa Sara, que acabava de entrar.

Nunca a tinham visto assim, desde o dia da sua grande

desgraça. As alunas não reconheciam nela a pequena que haviam

avistado duas horas antes, na escada de serviço.Sara trazia

novamente um vestido semelhante aos que Lavínia tanto Lhe

invejara - um vestido de linda cor e admiràvelmente feito.

Estava bem calçada, e os cabelos, todos em caracóis negros,

que lhe davam um ar de "pony" espantado quando ela os trazia

soltos sobre o rosto, estavam agora cuidadosamente seguros

por uma fita.

- Talvez tivesse recebido uma herança! - murmurou

Jessie. - Sempre tive a idéia de que lhe aconteceria qualquer

coisa extraordinária. É tão original!

- Ou talvez as minas de diamantes dessem notícias... -

disse maldosamente Lavínia. - Não fiques agora espantada

diante dela, parva!

- Sara! - disse gravemente Miss Minchin. Venha sentar-se

aqui!

E, perante os olhos maravilhados das condiscipulas, que

não podiam dissimular a sua intensa curiosidade, Sara retomou

o lugar de honra que ocupava dantes, e curvou-se

tranquilamente sobre os cadernos.

Naquela noite, quando Becky e ela acabaram de tomar o

seu chá, Sara sentou-se sobre o tapete e ficou durante muito

tempo silenciosa, a olhar vagamente para as labaredas do

fogão.

- Está a imaginar alguma coisa – perguntou Becky,

respeitosamente.

Porque Becky sabia que, quando Sara olhava para o lume

com aqueles olhos sonhadores, havia em geral, alguma bela

história em preparação... Mas,naquela noite, Sara abanou a

cabeça e respondeu:

-Não. Procuro, apenas, saber o que devo fazer.

Becky considerava-a sempre com respeito. Sentia qualquer

coisa, como se fosse veneração, por tudo quanto Sara fazia ou

dizia.

- Não posso deixar de pensar no meu amigo ,explicou

Sara. - Se ele não quer dar-se a conhecer; será indelicado

da minha parte tentar adivinhar quem ele é. Mas gostava tanto

que soubesse como lhe estou reconhecida e como foi grande a

felicidade que ele me deu! Porque, aqueles que têm bom

coração, gostam de fazer os outros felizes. Isso hes é ainda

mais agradável do que receber agradecimentos.

Eu gostava... Eu gostava muito...

Naquele momento, os seus olhos fixaram-se sobre uma

mesinha que ocupava um dos cantos do quarto. Tinha-a avistado

ali, numa das noites anteriores, ao entrar. E sobre a mesa

encontrava-se uma bonita pasta com papel, sobrescritos e tudo

quanto é preciso para escrever.

- Oh - exclamou ela. - Porque não pensei nisto mais

cedo?

Levantou-se e trouxe a mesinha para junto do lume.

- Vou escrever-lhe - disse ela alegremente. Deixarei a

carta bem à vista, sobre a mesa, e talvez a pessoa que traz a

ceia compreenda e a leve. Não pedirei nada mais ao meu amigo;

e estou convencida de que os meus agradecimentos não o farão

zangar.

Eis o que dizia a carta de Sara:

"Espero que não ache indelicado da minha parte escrever-

lhe este bilhete, visto que não quer dar-se a conhecer. Peço-

lhe que não imagine que eu procuro descobrir qualquer coisa;

eu quero agradecer-lhe o ser tão bom para mim, tão

divinamente bom, e ter feito da minha vida um belo conto de

fadas. Estou-lhe tão reconhecida e sou tão feliz! - e Becky é

tão feliz e está tão reconhecida como eu, porque, tal como

eu, ela também vive, presentemente, no mundo das maravilhas.

Nós estávamos abandonadas, tínhamos frio e fome; e como tudo

mudou, graças à sua bondade! Peço-lhe que me deixe dizer-lhe

uma só palavra: obrigada, obrigada, oh! muito obrigada!

A pequena da mansarda.”No dia seguinte, colocou a carta

sobre a mesa, e, quando voltou, à noite, a carta tinha sido

levada. Sara soube assim que o Feiticeiro a recebera, e este

pensamento foi-lhe muito doce e consolador. Depois do chá,

estava ela a ler um dos livros novos, para Becky ouvir,

quando um ligeiro ruído, que parecia vir da trapeira, chamou

a sua atenção. Levantou os olhos e viu que Becky também

ouvira, porque levantara a cabeça e parecia assustada.

- Há qualquer coisa lá em cima - murmurou ela.

- Sim - respondeu Sara, baixinho. - Dir-se-ia um gato

que quer entrar.

Aproximou-se da janela. Ouvia- se como que um ligeiro

arranhar. De repente, Sara começou a rir: recordava-se de

certo pequeno intruso que já uma vez entrara na mansarda, e

que ela avistara naquele mesmo dia, melancòlicamente sentado

em cima da mesa, em frente da janela do cavalheiro da Índia.

- Se fosse o macaquinho - disse ela alegremente - o

macaquinho que tivesse fugido outra vez? Oh gostava bem que

fosse ele!

Subiu a uma cadeira, abriu a janela com precaução e

olhou para fora. Nevara durante todo o dia e ali mesmo ao pé,

sobre o manto branco que cobria o telhado, avistou um

corpinho trêmulo, cujo focinho preto se estendia suplicante

para ela.

-É o macaco! -exclamou. - Fugiu pelas águas-furtadas do

"lascar", e a nossa luz atraiu-o.

Becky tinha- se aproximado também.

- Vai deixá-lo entrar? - perguntou ela.

- Naturalmente - respondeu Sara. - Faz muito frio lá

fora, para os macacos, e eles são muito delicados. Vou ver se

o agarro.

Estendeu a mão para o macaco, falando-lhe ao mesmo

tempo, com doçura, tal como costumava falar aos passarinhos e

a Rodilard. A sua alma sensível inclinava-se ternamente para

tudo o que era pequenino, tudo o que sofria e era tímido.

- Vem, querido dizia ela. - Eu não te faço mal. O macaco

percebeu muito bem que ela não lhe faria mal; tinha-o

compreendido ainda antes de ela lhe tocar. Adivinhara que os

dedinhos de Sara lhe pegariam com o mesmo cuidado que os

longos dedos bronzeados de Ram Dass. Deixou-se agarrar

dócilmente e, quando se viu nos braços de Sara, envolveu-se

junto do seu peito e pegou-lhe delicadamente numa madeixa de

cabelos, olhando-a com fixidez.

- É gentil o macaquinho - repetia Sara, com doçura,

beijando-lhe a cabeça. -Gosto tanto dos animais pequeninos!

O macaco estava encantado por se aproximar do lume, e

quando Sara se sentou, instalou-se sobre os joelhos, pôs-se a

olhar para ela e para Becky com simpático interesse.

- É esquisito, não é? - disse Becky.

- Parece um bebê muito feio - respondeu Sara a rir. -

Peço-te desculpa, amigo macaquinho, mas gosto mais que não

sejas realmente uma criança.

Nem mesmo a tua mãe seria capaz de se envaidecer contigo

e ninguém se atreveria a dizer: "Oh, como ele se parece com o

pai... , mas gosto de ti mesmo assim.

Depois, encostou-se para trás, na poltrona, com ar

pensativo.

- Talvez ele tenha pena de ser tão feio – disse ela - e

pense constantemente na sua fealdade. Pensará ele realmente

nalguma coisa? Macaquinho, meu pequenino, tu tens alma?

Por única resposta, o macaco levou a pequena mão à

cabeça e coçou-se conscienciosamente.

- Que vai agora fazer-lhe?- perguntou Becky.

-Vou deixá-lo aqui ficar esta noite. E amanhã levo-o ao

cavalheiro da Índia.Tenho pena de ficar sem ti, meu querido

macaquinho, mas assim é preciso. Tu deves preferir viver com

a tua verdadeira família; e eu não sou mais do que uma

parente de ocasião...

Quando se foi deitar, arranjou-lhe um ninho junto do

leito; o macaquinho fez-se numa bola e adormeceu, como uma

criança encantada com a sua nova casa.

No dia seguinte, três membros da "Grande Família"

encontravam-se reunidos na biblioteca do cavalheiro da Índia,

fazendo quanto podiam para o distrair. De resto, só estavam

autorizados a visitá-lo quando ele próprio lhes mandava pedir

que viessem. Nos últimos tempos, O Sr. Carrisford vivia numa

grande incerteza e, naquele dia, essa incerteza transformara-

se em verdadeira ansiedade, porque esperava o regresso de

Carmichael, cuja permanência em Moscou se prolongara mais do

que contava. Ao chegar, tivera grande dificuldade em

descobrir as pessoas que procurava. Quando conseguiu saber a

sua direção, foi informado de que andavam em viagem, e

decidiu esperar o seu regresso a Moscou.

Carrisford estava sentado na sua grande poltrona, e

Janet instalara- se no chão, ao seu lado. Janet era a sua

preferida. Nora ocupava um banco baixinho e Donald montava a

cabeça de pele de tigre que servia de tapete. Diga-se, de

passagem, que ele "guiava" bastante ruidosamente a sua

montada.

- Não faça tanto barulho, Donald - disse-Lhe Janet. -

Quando se deseja distrair alguém que está doente, não é

preciso gritar. Talvez estejamos a fazer muito ruído, Sr.

Carrisford?

Mas o cavalheiro da Índia limitou-se a bater-lhe

afetuosamente no ombro e disse:

-Absolutamente nada. Até é bom, porque me impede de

pensar mais...

- Vou estar quieto - anunciou Donald, numa voz vibrante.

- Ficaremos todos caladinhos como ratos.

- Nunca os ratos farão tanto barulho - observou Janet.

- Mas se forem muitos? - objetou Donald.

-Era preciso que fossem cinqüenta mil, e mesmo assim...

- disse severamente a irmã. - E nós, nós não devemos fazer

mais barulho do que um só rato.

Carrisford pôs-se a rir.

- O papá não deve tardar - disse Janet. Podemos falar da

menina que ele procura?

- Parece-me, até, que, neste momento, não podemos falar

de outra coisa! - respondeu o cavalheiro da Índia, com ar

abatido.

- Nós gostamos muito dela - declarou Nora. Chamamos-lhe

"a princesinha quase fada".

- E por quê? - perguntou ele, interessado.

Os ditos e os gestos da "Grande Família" ajudavam-no a

esquecer um pouco o seu único cuidado. Porque - explicou

Janet - ela será tão rica, quando a encontrarem, que será

como uma princesa de contos de fadas.

- É verdade - perguntou Nora - que o pai dela tinha

empregado todo o dinheiro que possuía na mina de diamantes de

um amigo, e que este amigo, julgando tudo perdido, fugiu,

convencido de que era um ladrão?

- Mas, na realidade, não era – acrescentou Janet.

O cavalheiro da Índia pegou-lhe na mão e respondeu:

-Não; não era um ladrão.

- Tenho tanta pena desse amigo - continuou Janet. Se o

dinheiro parecia estar perdido, a culpa não foi dele, e eu

tenho a certeza de que isso lhe causou um grande desgosto.

-Compreendes muito bem as coisas Janet respondeu

Carrisford, apertando mais a mãozinha que conservava na sua.

- Já falaste ao Sr. Carrisford na "pequena que não é

mendiga" - gritou Donald, com toda a força. - Já Lhe disseste

que ela tem vestidos novos? Talvez ela também andasse perdida

e a tivessem encontrado.

- Chegou agora uma carruagem - exclamou Janet. - Parou

em frente da porta. É o papá!

Correram todos para a janela.

- Sim, é o papá - proclamou Donald. - Mas não vem

nenhuma menina com ele!

As duas irmãs e o pequenino precipitaram-se para a

entrada e ouviam-se saltar, bater as palmas e soltar gritos

de alegria, enquanto o pai os beijava um por um.

Carrisford fez um esforço para se levantar, mas deixou-

se tombar de novo na poltrona.

- É inútil - murmurou ele, tristemente. - Como eu estou

doente!

Ouvia-se a voz de Carmichael, que se aproximava.

- Não, meus filhos - dizia ele - vocês voltarão quando

eu tiver acabado de falar com o Sr. Carrisford. Agora vão

brincar com Ram Dass.

Depois entrou, bem disposto e ágil, como de costume.

Dir-se-ia que a saúde e o bom humor entravam também com ele.

No entanto, a sua fisionomia exprimia um certo desânimo,

quando apertou, com afeto, as mãos do doente que o olhava

ansiosamente.

- Então - perguntou Carrisford. - E a criança adotada

pelos russos?

- Não é a mesma que nós procuramos - respondeu

Carmichael. - É muito mais nova que a filha do capitão Crewe

e chama-se Emily Carew.Vi-a e falei-lhe. A família russa deu-

me todas as explicações possíveis.

O cavalheiro da Índia parecia bem desanimado e triste. A

sua mão deixou cair a de Carmichael.

-Nesse caso, é preciso recomeçar as pesquisas. Eis tudo!

- disse ele. - Sente-se um pouco, peço-lhe.Carmichael

obedeceu. Pouco a pouco, tinha-se dedicado profundamente

áquele homem tão desgraçado. Sentia-se, ele próprio, tão rico

de felicidade que um desgosto assim tocava o mais fundo da

sua alma. Se, naquela grande casa vazia, se ouvisse,um dia,

uma voz infantil, como tudo seria diferente!E não podia

suportar a idéia de que o seu pobre amigo estivesse condenado

a viver sempre sob o pesadelo daquele remorso e daquela idéia

fixa.

- Então - disse ele, na sua voz quente e

reconfortante.Havemos de encontrá-la!

-É preciso voltar a pôr-se imediatamente em campo, sem

perda de tempo - disse nervosamente Carrisford.Tem um

projeto, uma idéia qualquer?Carmichael, também um pouco

agitado, levantou-se e começou a andar para trás e para

diante ao longo da sala, com ar indeciso e preocupado.

- Pois bem. - disse ele, por fim. - A idéia que me

ocorreu, há pouco, no comboio que me trazia de Dôver, é esta:

A criança está, com certeza, em qualquer parte. Já corremos

todos os colégios de Paris. Abandonemos Paris e procuremos em

Londres.

-A verdade é que não faltam aqui colégios de meninas -

disse Carrisford, e estremeceu ligeiramente.

- Depois concluiu: - Há um, exatamente na casa contígua

a esta.

- Muito bem! Começaremos por aí. Não podia ser mais

perto.

- Há neste colégio - continuou Carrisford - uma criança

por quem me interesso; mas não é aluna. É uma pobre pequena

abandonada, muito morena e parecendo-se o menos possível com

o pobre Crewe.

O Feiticeiro estaria novamente em acção, naquele minuto

preciso? Fosse como fosse, a verdade é que Ram Dass entrou,

enquanto o patrão ainda estava a falar, e inclinou-se

profundamente, com um imperceptível clarão nos grandes olhos

escuros.

- "Sahib- disse ele - está ali a menina, aquela que

tocou o seu coração. Traz o macaco que tornou a fugir para o

quarto dela, pelo telhado. Disse-lhe que esperasse. Pensei

que agradará, talvez, ao "sahib" vê-la e falar-lhe.

- Quem é? - perguntou Carmichael.

- Ninguém sabe-respondeu Carrisford: É, justamente, a

criança de quem lhe estava a falar, a pequena do colégio

vizinho.

E, voltando-se para Ram Dass:

- Sim, gostaria de vê-la! Manda-a entrar...

- Durante a sua ausência - explicou ele a Carmichael -

eu ia desesperando de tudo. Os sombrios dias de Inverno

pareciam-me intermináveis. Como Ram Dass me tivesse falado do

abandono e desconforto em que vivia esta criança, organizamos

uma pequena conjura, digna de um romance, para a socorrer.

Era quase pueril, mas, ao menos, o meu cérebro estava

ocupado. De resto, sem ajuda do meu ágil e silencioso Ram

Dass, não poderíamos ter feito nada.

Foi nesse instante que Sara entrou na biblioteca. Trazia

ao colo o macaquinho, que se via perfeitamente não ter o

menor desejo de deixá-la. Agarrava-se a ela soltando

gritinhos. Quanto a Sara, a comoção que sentia por se

encontrar em casa do cavalheiro da Índia, tornava-lhe coradas

as faces, habitualmente pálidas.

- O macaquinho tornou a fugir - disse ela, na sua voz

musical.Encontrei-o ontem, à noite, junto da minha janela e,

como fazia muito frio, deixei-o ficar no meu quarto. Tê-lo-ia

trazido imediatamente, se não fosse tão tarde. Mas eu sabia

que o senhor estava doente e pensei que não gostaria de ser

incomodado.

Os olhos profundos de Carrisford fitaram-se em Sara com

viva curiosidade.

- Foi uma gentil atenção da sua parte,disse ele. Sara

olhou para Ram Dass, que se conservava imóvel junto da porta.

- Deseja que o entregue ao "lascan" - perguntou ela.

- Como sabe a menina que é um "lascan"?Perguntou o

cavalheiro da Índia, sorrindo ligeiramente.

- Oh! Eu conheço os "lascars" - explicou Sara,

entregando a Ram Dass o macaquinho, que se mostrava muito

contrariado. Nasci na Índia.

O cavalheiro da Índia ergueu-se tão vivamente e olhou

para Sara com uma fisionomia tão alterada, que ela ficou

interdita.

- Nasceu na Índia! - exclamou ele. - Venha ao pé de mim!

-acrescentou Carrisford, estendendo-lhe a mão.

Sara aproximou-se e deu- lhe a mão. Não se mexia e

olhava com inquietação para ele. Parecia tão agitado...

- Mora na casa vizinha - perguntou Carrisford.

- Sim. No colégio de Miss Minchin.

- Mas não é aluna.

Os lábios de Sara desenharam um leve sorriso. Hesitou

um pouco. Depois respondeu:

- Não sei perfeitamente o que sou...

- Por quê?

-Ao principio era uma aluna e tinha tudo quanto

queria;mas agora...

- Era uma aluna E presentemente o que é?

O estranho sorriso, um pouco triste, reapareceu no rosto

de Sara.

-Durmo no sótão, ao lado da ajudante de cozinheira -

respondeu ela. Faço recados para a cozinheira e tudo o mais

que me mandam, e ajudo as alunas mais pequeninas a estudar as

lições.

- Interrogue-a, Carmichael - disse Carrisford, que se

deixara cair, exausto, na poltrona. - Interrogue-a; eu não

tenho forças para isso.

O excelente papá da "Grande Família" sabia conversar com

crianças. Sara compreendeu-o imediatamente, logo que ele Lhe

dirigiu as primeiras palavras, com voz afetuosa:

- Ouça minha filha: Que quer dizer "ao princípio"?-

perguntou ele.

-Quando o meu pai me trouxe para aqui.

- E onde está o seu pai?

- Morreu - respondeu Sara, muito docemente: O meu pai

tinha perdido tudo quanto possuía; eu fiquei sem nada e não

apareceu ninguém para se ocupar de mim ou pagar a Miss

Minchin.

- Carmichael!-gritou o cavalheiro da Índia. Carmichael!

- Não a assustemos - respondeu Carmichael, em voz baixa.

E, levantando novamente a voz, dirigiu-se a Sara:

-Foi então que a mandaram para o sótão e transformaram

em criada. É isto, não é verdade?

- Eu não tinha familia nem dinheiro - repetiu Sara. -

Não pertencia a ninguém...

- Como foi que o seu pai perdeu a fortuna?-interrompeu o

cavalheiro da Índia, ofegante.

- Não foi ele que a perdeu - respondeu Sara, cujo

espanto aumentava de minuto a minuto. O meu pai tinha um

amigo que se utilizou do dinheiro dele. O papá teve demasiada

confiança nesse amigo...

O cavalheiro da Índia respirava cada vez com mais

dificuldade.

- Esse amigo não teve, talvez, a intenção de fazer mal -

disse ele. Foi tudo, decerto, o resultado de um erro.

Sara nem avaliava como a sua voz, clara e tranqüila,

parecia inflexível.

- Talvez... - respondeu ela. - Mas isso não impediu que

o meu pai sofresse muito. Tanto, que morreu de desgosto!

- Como se chamava o seu pai – perguntou o cavalheiro da

Índia. Diga-me o nome dele.

- Chamava-se Ralph Crewe - respondeu Sara;um pouco

perturbada. Era o capitão Crewe. Morreu na Índia.O rosto, já

tão pálido, do doente, tornou-se lívido, e Ram Dass correu

para junto dele.

- Carmichael , balbuciou Carrisford. É ela!É a criança!

Durante alguns minutos Sara julgou que o cavalheiro da

Índia ia morrer. Ram Dass tinha pegado num frasco e deitara

algumas gotas do seu conteúdo num copo, que levava aos lábios

do doente. Sara tremia e olhava para Carmichael.

- Que criança sou eu - perguntou ela, numa voz que

desfalecia. - Quem é este senhor?

- É o amigo do seu pai! - respondeu Carmichael.Não tenha

medo, minha filha. Há dois anos que a procuramos!

Sara levou a mão à fronte e os seus lábios contraíram-

se.

-E, durante todo esse tempo, eu estava em casa de Miss

Minchin - murmurou ela. - Estava aqui a dois passos, do outro

lado da parede!

O CASTIGO DE MISS MINCHIN

Aquela grande alegria, absolutamente inesperada, que

Carrisford acabava de ter, era demasiado forte para ele.

- Oh! - murmurou o doente, com a voz fraquíssima, quando

Carmichael manifestou a intenção de levar Sara. Eu queria

conservá-la ao pé de mim, sem a perder de vista!

- Eu tomarei conta dela - afirmou gravemente Janet, que

o pai tinha chamado. E a mamã não tarda a chegar.

Sara acompanhou Janet, que lhe dizia:

-Estamos tão contentes porque a encontraram! Não pode

fazer idéia!

Donald, com as mãos nas algibeiras, contemplava Sara com

ar de alguém que se censura a si próprio.

- Se eu lhe tivesse perguntado o seu nome quando lhe dei

o meu xelim - disse ele -, ter-me-ia respondido: "Sara Crew",

e teria sido encontrada imediatamente!

A Sr.a Carmichael chegou, entretanto; estava muito

impressionada e, puxando Sara para si, beijou-a ternamente.

- Parece comovida, pobre criança - disse ela.

- E compreende-se perfeitamente que seja assim... Mas

havia uma pergunta que queimava os lábios de Sara.

- É ele - disse ela por fim, indicando com o olhar a

porta fechada da biblioteca. Foi ele o mau amigo? Diga-me,

peço-lhe!

A Sr.a Carmichael chorava, ao beijar novamente Sara,

pensando como ela devia ter sido pouco acarinhada durante

aqueles dois anos.

- Não lhe chame "mau", minha querida - respondeu ela. -

Ele não tinha, realmente, perdido o dinheiro de seu pai; mas,

durante um momento, convenceu-se de que, na verdade, o

perdera, e como era muito amigo, teve um desgosto tão

profundo, que adoeceu. Ia morrendo e, muito tempo antes de

recuperar a razão, já o seu pobre papá tinha falecido.

- E procuravam-me - disse Sara em voz baixa.

- Quando, afinal, eu estava tão perto...

Esta idéia não a deixava.

-Julgavam que a menina se encontrava em França -

explicou a Sr.a Carmichael. O Sr. Carrisford procurou-a por

toda a parte. Mal imaginava ele, quando a via passar em

frente das janelas, que a menina era a filha do seu amigo;

mas, pensando nela, pensava em si e quis protegê-la. Então

disse a Ram Dass que entrasse pela janela do seu quarto e

arranjasse um pouco a mansarda onde a menina dormia.

Sara soltou um grito de alegria e a sua fisionomia

iluminou-se.

-Como! Foi Ram Dass que me levou todas aquelas coisas

tão bonitas - exclamou ela. - Foi o cavalheiro da Índia quem

lhe deu ordem para isso?

Foi ele quem transformou o meu sonho em realidade?

- Sim, minha querida, foi ele mesmo. É muito bom, muito

generoso, e pela ternura que lhe inspirava a Sarinha que ele

procurava, teve pena de si.

A porta abriu-se e Carmichael fez sinal a Sara para

entrar.

- O Sr. Carrisford sente-se melhor - disse ele - e

deseja vê-la.

Sara correu para a biblioteca, e, quando o Cavalheiro da

Índia olhou para ela, pôde ver que a pequenina estava

radiante.

Aproximando-se muito da poltrona, com as mãos juntas no

peito, Sara exclamou, com a sua vozinha alegre e tremula:

-Foi o senhor quem me mandou todas aquelas coisas tão

bonitas, todas aquelas coisas?

- Sim, minha pobre filha, fui eu - respondeu ele.

A doença e a comoção tornavam-no mais fraco, mas olhava

para a pequenina com tanta ternura e um tão grande desejo de

a abraçar, que Sara julgou tornar a ver o olhar do pai. Muito

simplesmente, ajoelhou ao pé dele, como ajoelhava outrora ao

pé do pai, no tempo longínquo em que ele e ela se adoravam,

tal como se fossem duas almas num só corpo.

-Nesse caso, o senhor é que é meu amigo, o meu grande

amigo - disse ela.

E, curvando-se sobre a mão emagrecida, beijou-a muitas

vezes.

- Dentro de três semanas estará bom - disse Carmichael à

esposa. - Olha para ele...

Efetivamente, já não parecia o mesmo. A "senhorazinha"

tinha aparecido e era preciso tomar muitas decisões, resolver

novos assuntos. Antes de mais nada se impunha a questão de

Miss Minchin. Era indispensável que alguém fosse anunciar-Lhe

a transformação que se dera na vida da sua antiga aluna.

Sara não voltaria ao colégio. Sobre este ponto

Carrisford era categórico. Sara ficaria com ele, e Carmichael

se encarregaria de falar a Miss Minchin.

- Estou bem contente de não voltar lá - confessou Sara -

porque Miss Minchin vai ficar furiosa. Ela não gosta nada de

mim; talvez a culpa seja minha, porque, eu também, não gosto

dela.

Mas Carmichael não precisou de se incomodar. Foi a

própria Miss Minchin que se apresentou a reclamar a sua

antiga discípula.

Precisando de Sara e não a encontrando em parte alguma,

soubera, com grande indignação, que as criadas a haviam visto

sair pela escada da cave, levando um objeto escondido debaixo

do casaco; dirigia-se à casa vizinha, não voltando a

aparecer.

- Que foi ela lá fazer?! - exclamou Miss Minchin.

- Não sei, nem faço idéia. - respondeu a tímida Miss

Amélia. -Talvez fosse por ter vivido na Índia, como o nosso

vizinho.

-Isto de meter-se em toda a parte, sem que a chamem, e

procurar captar simpatias de uma forma audaciosa, é bem o

feitio de Sara! - disse Miss Minchin. - Há quase duas horas

que lá está! Não posso suportar tal atrevimento. Vou ver o

que se passa e pedir desculpa desta inqualificável conduta ao

dono da casa.

Sentada sobre um banquinho almofadado, junto de

Carrisford, Sara conversava animadamente com ele, quando Ram

Dass anunciou a visitante. Sara empalideceu e levantou-se,

involuntariamente. Mas Carrisford pôde verificar que ela

estava calma e não parecia assustada.

Miss Minchin, severa e digna, entrou na biblioteca.

Fizera "toalete" e toda a sua atitude era rigidamente

correta.

- Lamento incomodar o Sr. Carrisford - disse ela- mas

preciso de lhe dirigir algumas palavras.

Sou Miss Minchin, diretora do colégio vizinho da sua

casa.

O cavalheiro da Índia fitou-a um momento, em

silêncio.Tinha um gênio violento e queria ficar senhor de si.

- É então Miss Minchin? - perguntou ele.

-Em pessoa, Sr. Carrisford.

- Nesse caso - prosseguiu ele - chega no instante

oportuno. O Dr. Carmichael, meu procurador e advogado, ia

exatamente agora a casa de V. Ex.

Carmichael inclinou-se ligeiramente.Miss Minchin olhou

para ele, olhou depois para Carrisford, com uma surpresa que

nem sequer pretendeu dissimular.

- Seu advogado?- perguntou ela.Não compreendo. Estou

aqui por dever profissional: acabo de saber que uma das

minhas alunas teve o atrevimento de se introduzir nesta

casa... Uma aluna que eu conservo por caridade. Venho

explicar a V. Ex. que isto sucedeu sem meu conhecimento. E,

voltando-se para Sara, ordenou:Volte já para casa! Será

severamente castigada. Vá imediatamente!

O cavalheiro da Índia puxou Sara para si e pegou-lhe na

mão.

- Não - disse ele. - Sara não irá.

Miss Minchim julgou estar a sonhar.

- Não irá - repetiu ela.

- Não!- confirmou Carrisford. - Não voltará para sua

casa, porque a sua casa nunca foi a casa de Sara. Agora é

aqui o lar que será o dela.

Miss Minchin recuou, estupefata e indignada:

- O seu lar! Que significa tudo isto?

- Tenha a bondade de lhe explicar, Carmichael. Mas que

seja o mais rápidamente possível - disse Carrisford.

E, fazendo sentar Sara, pegou-lhe nas mãozinhas... tal

como o pai costumava fazer-lhe.

Na sua voz pausada e calma, Carmichael falou como um

homem que conhece perfeitamente o assunto de que trata e não

ignora as leis. Miss Minchin, como mulher acostumada a

negócios, compreendeu também este último ponto, e não se

sentiu muito à vontade...

- O Sr. Carrisford - explicou Carmichael – era amigo

íntimo do capitão Crewe. Os dois associaram-se para negócios

muito importantes. A fortuna que o capitão julgava ter

perdido, foi salva e encontra-se inteiramente na posse do Sr.

Carrisford.

- A fortuna?! - exclamou Miss Minchin, empalidecendo. -A

fortuna de Sara?!

- Exatamente, a fortuna de Sara – respondeu friamente

Carmichael. E continuou: - Foi, até, multiplicada por

determinados acontecimentos: as minas de diamantes estão hoje

mais prósperas do que nunca.

- As minas de diamantes!... - balbuciou Miss Minchin,

que estava vivendo uma das horas mais cruéis da sua

existência.

- As minas de diamantes - repetiu Carmichael. E não pôde

deixar de acrescentar, com um ligeiro sorriso de ironia:

Poucas princesas, Miss Minchin, são tão ricas como há-de vir

a ser Sara Crewe, a aluna que a senhora conservava por

caridade. Há dois anos que o Sr. Carrisford a procura;

encontrou-a, finalmente e agora, por nada deste mundo, se

separará mais dela. Continuou a dar a Miss Minchin todas as

explicações necessárias para a convencer completamente de que

o futuro de Sara era magnífico e a sua fortuna, que julgaram

perdida, estava multiplicada, e que, além disso, daquele dia

em diante, Carrisford seria o seu tutor e o seu maior amigo.

Miss Minchin era mediocremente inteligente;provou-o à

evidência naquele dia, fazendo um esforço desesperado para

readquirir o que perdera;compreendia-o bem , pela sua avareza

e crueldade de alma.

- Encontraram a criança em minha casa - objetava ainda.

- Fiz tudo por ela. Sem mim, teria morrido de fome na rua.

Carrisford não pôde conter-se mais.

-Talvez tivesse sofrido menos do que no seu sótão -

disse ele.

- O capitão Crewe confiou-ma - prosseguiu

desesperadamente Miss Minchin.Devem entregar-ma até que

atinja a maioridade. Voltará a fazer a mesma vida que fazia

dantes e terminará a sua educação. De resto, farei intervir a

lei a meu favor.

- Vamos! Vamos, Miss Minchin - interrompeu Carmichael. -

A senhora sabe muito bem que a lei não é para aqui chamada.

Se Sara pedir, ela própria, para voltar para o seu colégio,

estou persuadido de que o Sr. Carrisford não Lhe recusará a

sua autorização. Tudo depende de Sara.

- Pois bem - disse Miss Minchin - apelo para Sara.

Evidentemente que não a amimei - continuou ela, dirigindo-se

à pequenina; mas lembre-se da satisfação do seu pai pelos

progressos que a menina fazia. E... Sim... Eu sempre fui boa

para si...

Os olhos verdes de Sara fixaram-se nela, com o olhar

claro e brilhante como aço, que tanto desagradava a Miss

Minchin.

- Realmente - exclamou Sara. - Nunca dei por isso.Miss

Minchin tornou-se vermelha e levantou-se.

- Pois devia ter dado - replicou ela. - Infelizmente,

porém, as crianças não sabem apreciar aqueles que são bons

para elas. Tanto Amélia como eu ,sempre dissemos que a Sara

era a mais inteligente das nossas alunas. Não quer respeitar

a vontade do seu pobre pai e voltar comigo para o colégio?

Sara deu um passo em direção a Miss Minchin. Lembrava-se

do dia em que a diretora lhe dissera que ela não tinha

ninguém que a protegesse e que, se quisesse, poderia pô-la na

rua; pensava nas horas desoladas que passara no sótão,

sozinha com Emily e Rodilard. Olhou Miss Minchin frente a

frente e disse:

-A senhora sabe muito bem a razão por que eu não quero

ir consigo! Sabe perfeitamente! Um relâmpago de cólera passou

nos olhos de Miss Minchin.

-Visto que é assim, não tornará a ver as suas

companheiras - disse ela. - Vigiarei Lottie e Hermengarda...

Carmichael interrompeu-a, delicadamente, mas com

firmeza:

- Perdão! Sara verá quem ela quiser. É pouco provável

que os pais das amigas de miss Crewe recusem, para as suas

filhas, os convites do seu tutor. O Sr. Carrisford olhará por

isso...

Miss Minchin curvou-se a este último golpe. O tutor era,

decididamente, ainda mais perigoso que o velho excêntrico que

ela imaginara e o seu espírito sórdido concebia fàcilmente

que poucos pais recusariam às filhas autorização para

conviver com a proprietária de uma mina de diamantes. E se

Carrisford lhes contasse a lamentável existência que ela

proporcionara a Sara, que desagradáveis consequências

poderiam vir daí para o seu colégio!

- O senhor assume um pesado encargo - disse ela,

dirigindo-se para a porta. - Compreendê-lo-á dentro em breve.

Esta criança teve sempre falta de franqueza e de gratidão.

Naturalmente - disse ainda, dirigindo-se a Sara - agora, vai

de novo julgar-se princesa.

Sara corou um pouco, porque receava que pessoas

estranhas -- embora cheias de ternura por ela difícilmente

pudessem compreender a sua quimera preferida, e respondeu em

voz baixa:

-Procurei ser uma princesa; sempre, mesmo quando tinha

muito frio e muita fome; procurarei sempre proceder como se

fosse princesa...

- Agora, não terá a menor dificuldade nisso...-replicou

àsperamente Miss Minchin, enquanto Ram Dass a acompanhava com

todas as deferências de um grande respeito.

Miss Minchin, logo que chegou a casa, mandou chamar a

irmã; ficaram fechadas, as duas, durante muito tempo, e a

pobre Miss Amélia passou horas horríveis, chorando amargas

lágrimas, que encharcaram vários lenços.

- Não sou tão esperta como tu - dizia ela - e tenho

sempre medo de falar, porque tudo te faz zangar. Mas, se

fosse menos tímida, talvez isso tivesse sido melhor para o

colégio e para nós. Pensei muitas vezes que era preferível

ser menos dura para Sara Crewe, e organizar-lhe uma

existência mais doce. Sei perfeitamente que a obrigaram a

trabalhar mais do que seria permitido à sua idade e que ela

não comia o necessário...

- Como te atreves a falar assim! - exclamou Miss

Minchin.

- Não quero saber! - respondeu miss Amélia, com uma

espécie de bravura desesperada. - Mas agora, já que comecei,

irei até ao fim, suceda o que suceder. Sara é inteligente e

boa, e teria sido sensível à menor manifestação de afeto. Mas

tu nunca a tiveste. A verdade é que a sentias mais

inteligente do que tu e daí a razão da tua antipatia. Ela

adivinhou...

- Amélia! - rugiu Miss Minchin, que parecia disposta a

tratar a irmã como se fosse a pobre Becky.

Mas Miss Amélia estava de tal forma excitada, que coisa

alguma podia fazê-la parar.

- Perfeitamente! - exclamou ela, por sua vez. Sara viu

como tu és dura e interesseira, e como eu sou fraca e parva;

ela compreendeu que nós estávamos de joelhos perante a sua

fortuna e que a maltratamos em seguida, porque ela não tinha

um "penny", ao passo que se conservou digna e boa como uma

verdadeira princesa, quando nós tínhamos feito dela uma

verdadeira desgraçada. Sim, uma princesa, eis o que ela

sempre foi!

Com os nervos perfeitamente desequilibrados, a pobre

Miss Amélia começou a rir e a chorar, balançando-se de tal

forma na cadeira, que Miss Minchim não sabia que fazer.

- E agora está perdida para nós! - continuou Miss

Amélia- irá para qualquer outro colégio e, se ela fosse uma

criança como as outras, contaria em toda a parte como nós a

tratamos; a nossa casa ficaria definitivamente arruinada, e

nós bem o teríamos merecido, principalmente tu, Maria

Minchin, porque és avarenta, cruel e sem coração!

Chorava e falava tão alto, os seus soluços nervosos eram

tão fortes, que a irmã teve de dominar a sua indignação e

contentar-se em fazê-la respirar sais e aplicar-lhe água-de-

colónia na testa, para acalmá-la um pouco.

Digamos desde já que, a partir daquele dia, Miss Minchin

começou a ver a irmã sob outro aspecto e a compreender que

devia ser cautelosa, porque ela não era tão estúpida como

parecia e podia dizer-lhe verdades comprometedoras.

Naquela mesma noite, quando as alunas estavam reunidas

na sala de estudo, Hermengarda entrou; trazia uma carta na

mão e a sua carinha redonda tinha uma expressão singular, em

que se misturavam o espanto e a alegria.

-Que sucedeu? Perguntaram algumas vozes.

- Trazes-nos a explicação da cena desta tarde?-

interrogou vivamente Lavínia. - Porque houve uma cena na sala

de Miss Minchin; miss Amélia teve um ataque de nervos e foi

para a cama.

Hermengarda respondeu lentamente, como alguém que ainda

não está refeito de uma grande comoção.

-Acabo de receber uma longa carta de Sara.

- De Sara? - foi a exclamação geral.

- Onde está ela? - quis saber Jessie.

- Em casa do nosso vizinho - respondeu Hermengarda,

sempre lentamente. -Em casa do cavalheiro da Índia.

- Onde? Como? Mandaram-na embora?Miss Minchin sabe onde

ela está? Foi por isso que houve a cena desta tarde? Diz! Diz

depressa!

Falavam todas ao mesmo tempo e Lottie principiou a

chorar.

Hermengarda começou pela notícia que lhe parecia

responder a todas as perguntas:

- As minas de diamantes existem! Existem realmente!

Todas as condiscípulas a rodearam,ansiosas.

-Existem! -- repetiu ela. - Durante algum tempo o Sr.

Carrisford julgou que tudo estava perdido...

- Quem é o Sr. Carrisford - perguntou Jessie.

-O nosso vizinho. E o capitão Crewe julgou também que

era verdade e morreu de desgosto.

O Sr. Carrisford ficou doente; quando melhorou, quis

encontrar Sara, mas não sabia onde ela se encontrava. Depois

souberam que nada estava perdido;havia milhões de diamantes

nas minas e metade pertencia a Sara; ela era rica, rica,

rica, quando dormia no sótão, tendo por único amigo um rato!

O Sr. Carrisford encontrou Sara esta tarde: está em casa dele

e não voltará cá. Agora é que ela é uma princesa, cem vezes,

mil vezes mais do que nunca! E eu vou visitá-la amanhã à

tarde e pronto!

A própria Miss Minchin teria sido impotente para dominar

o tumulto que se seguiu a esta comunicação inesperada. Apesar

de ouvir tudo no seu quarto, não teve coragem de aparecer; os

soluços de Miss Amélia, prostrada sobre o leito, já Lhe

bastavam. Sabia que a notícia estava espalhada e que, de alto

a baixo, da cozinha às aulas, toda a gente falava no grande

acontecimento.

A carta foi lida, relida e comentada por todas as

alunas. Só muito tarde é que se restabeleceu a calma.

Becky, como toda a gente, estava ao corrente do

sucedido, e arranjou as coisas de maneira a poder subir para

o quarto mais cedo do que habitualmente.Sentia a necessidade

de estar só, e ver, ainda uma vez, o quarto mágico. Que ia

acontecer àquele quarto maravilhoso?Com certeza que o

Feiticeiro não o deixaria ficar para Miss Minchin.

Becky estava bem contente por causa da sua querida miss

Sara, mas a garganta apertou-se-lhe e os olhos encheram-se-

lhe de lágrimas quando chegou ao último patamar. Naquela

noite já não teria lume, nem candeeiro cor-de-rosa, nem ceia,

nem princesa lendo histórias à luz da chaminé... Já não havia

princesa!

Ao abrir a porta reprimiu um soluço, mas, depois, ia

soltando um grito.

O candeeiro cor-de-rosa estava aceso, o lume ardia, a

ceia estava servida, e Ram Dass, de pé, sorriu a Becky que

não podia acreditar no que via.

- A "senhorinha" não se esquece - disse ele. Contou tudo

ao "sahib". Quis também contar-lhe, a si, a sua grande

felicidade. Aqui está a carta que ela lhe manda, pois não

quis que a menina adormecesse triste. O "sahib" ordena que vá

amanhã a casa dele. Ficará ao serviço da "senhorinha". Esta

noite, levarei tudo isto, pelo telhado.

Tendo falado assim, Ram Dass inclinou-se ligeiramente e

desapareceu pela trapeira, sem o menor ruido, com uma

facilidade tal, que Becky adivinhou logo o nome do Feiticeiro

e a forma como ele tinha feito as coisas.

ANA

As crianças da "Grande Família" estavam radiantes. Nunca

haviam sonhado um prazer tão grande como aquele que lhes

proporcionava a convivência da "pequena que não é mendiga.

Dificilmente encontrariam outra amiguinha que tivesse tido

tantas aventuras e passado tantas amarguras. E não se

cansavam de a ouvir.

Rodilard, os passarinhos e o esplendor do céu, que Sara

avistava da trapeira, encantavam-nos. Mas a história

preferida era a do banquete interrompido e do sonho

realizado.

Sara contara-lhes esta história, pela primeira vez, no

dia seguinte ao da sua ida para casa de Carrisford. Os

pequenos tinham ido tomar chá com ela; sentaram-se todos

sobre o tapete, em frente do fogão, e ela descrevera-lhes a

sua vida no colégio de Miss Minchim, com aquele pitoresco que

Sara imprimia a tudo quanto contava. O cavalheiro da Índia

também escutava. Quando acabou, ergueu os olhos para ele e

pôs-lhe a mão sobre o joelho.

- Acabei - disse ela. - Agora é a vez do tio Tom (Sara

resolvera tratá-lo assim, de futuro). A segunda parte é

consigo. Não sei como será, mas deve ser bem bonita.

Então, Carrisford contou como, num dia em que ele estava

mais doente e triste, Ram Dass procurava distraí-lo,

descrevendo-lhe as pessoas que cruzavam a praça e,

principalmente, uma pequenina que passava mais vezes do que

as outras.

Carrisford começara a interessar-se por ela, exatamente

porque pensava muito numa certa pequenina que procurava por

toda a parte, e também porque Ram Dass, depois da primeira

escapadela do macaco, lhe descrevera a mansarda em que vivia

essa criança, de quem traçou o retrato, e que parecia

pertencer a uma classe muito superior à das criadinhas

vulgares. Pouco a pouco, Ram Dass fizera ainda outras

descobertas acerca da vida miserável da sua pequena vizinha,

e um dia disse a Carrisford:

- "Sahib", eu posso, fàcilmente, atravessar o telhado e

fazer uma boa fogueira, enquanto a criança anda por fora. E,

quando ela voltasse, molhada e transuda; julgaria que um

feiticeiro tinha passado por lá.

Esta idéia agradou a Carrisford, e Ram Dass,

contentíssimo por ver um sorriso iluminar o rosto sempre

triste do patrão, desenvolvera o seu projeto, explicando que

não havia nada mais fácil do que transformar completamente o

quarto, onde tudo era desconforto e pobreza. O doente

interessara-se cada vez mais por aquele plano romanesco, e

consagrara à sua execução vários dias que lhe tinham parecido

menos tristes. Na noite da festa interrompida, Ram Dass, com

todos os seus pacotes, conservara-se vigilante na sua própria

mansarda acompanhado pelo secretário, que o ajudava e achava

naquela aventura tanto prazer como o patrão.

Deitado de bruços sobre as ardósias, ao lado da

trapeira, Ram Dass assistira ao aparecimento de Miss Minchin

e à cena que se havia seguido; e, quando se assegurou do

profundo sono de Sara, introduziu-se no quarto, com uma

lanterna de furta-fogo e, com a ajuda do companheiro, que Lhe

ia passando as coisas do lado de fora, preparava tudo. Se,

por acaso, Sara se mexia, Ram Dass apagava a lanterna e

estendia-se no chão.

Tudo isto foi contado e explicado por Carrisford, no

meio das perguntas e exclamações sem fim das crianças.

- Como eu me sinto feliz, por saber que o Feiticeiro era

o tio Tom! - disse Sara.

A afeição que unia Carrisford e Sara era muito profunda.

Entendiam- se maravilhosamente. O Cavalheiro da Índia nunca

tivera, em toda a sua vida, uma companhia tão agradável como

a de Sara. Tal como Carmichael profetizara, antes que

passasse um mês já Carrisford parecia outro, tão grande era a

sua transformação. Tudo o distraía e interessava; a idéia de

possuir uma grande fortuna, que pouco antes lhe causara um

verdadeiro desgosto, tornava-o agora imensamente feliz. Havia

tantos projetos a fazer, em relação a Sara! A brincadeira do

Feiticeiro mantinha-se, entre os dois, e um dos prazeres de

Carrisford era inventar novas surpresas para Sara. Hoje,

apareciam lindíssimas flores, para lhe ornamentar o quarto;

amanhã, Sara encontrava, debaixo do travesseiro, ou entre as

almofadas, os objetos mais inesperados e divertidos; uma

noite em que estavam os dois na biblioteca, ouviram como que

o ruído de uma grande pata a arranhar na porta e, quando Sara

foi abrir, viu um cão magnífico, um soberbo galgo russo, cuja

coleira de ouro tinha a seguinte inscrição: "Chamo-me Bóris e

pertenço à princesa Sara".

Carrisford não se cansava de evocar as recordações da

princesinha de sapatos rotos e casaco desbotado. Passavam

ambos belos dias em casa da"Grande Familia", onde Hermengarda

e Lottie iam visitar Sara. Mas os seus melhores momentos eram

aqueles em que, sozinhos, liam, conversavam e evocavam o

passado.

Uma noite, Carrisford percebeu que a sua

companheirazinha não se mexia e contemplava o lume com olhos

sonhadores.

-Então? Que "imaginamos nós" neste momento - perguntou

ele.Sara olhou para ele e corou um pouco.

- Lembrava-me - respondeu ela - do dia em que eu tinha

muita fome, e da pequenina que nessa ocasião encontrei.

- Houve tantos dias em que tiveste fome - exclamou o

cavalheiro da Índia, com uma entoação triste na voz. - Em

qual deles foi?

- Naquele em que o sonho se tornou realidade- respondeu

Sara.

E contou-lhe, então, a história da padaria, da moeda de

quatro "pence" encontrada na lama, e da mendiga ainda mais

esfomeada do que ela. Narrava tudo muito simplesmente, em

rápidas palavras, o que não impediu Carrisford de voltar a

cabeça e levar a mão aos olhos.

- Há bocadinho - concluiu Sara - formava eu um

projeto... Imaginava uma coisa que gostaria muito de

realizar.

- Que é - perguntou Carrisford, com voz trêmula. - Podes

fazer tudo quanto quiseres, princesa!

- Pois bem - disse Sara, hesitando um pouco.

-Visto que o tio Tom diz que eu tenho muito dinheiro,

mesmo meu, gostava de ir visitar a padeira e dizer-lhe que,

sempre que veja crianças com ar de ter fome, as mande entrar

e lhes dê de comer; depois me manda a conta. Acha que isto

pode ser?

- Trataremos desse assunto amanhã - respondeu

Carrisford.

- Obrigada - disse Sara. - O tio compreende, eu sei o

que é ter fome, e deve custar tanto, quando não se tem

bastante imaginação para esquecer...

- Sim, sim, querida Sara - interrompeu ele.

- É realmente assim. Mas procura não pensar mais nisso.

Vem sentar-te ao meu lado, neste banquinho, e lembra-te

apenas de que és princesa!

- Que bom - disse Sara, a sorrir. - E quero pensar

também que posso distribuir pão e "buns" pelos pobres, à

minha vontade.

Ao mesmo tempo que falava, sentou-se no banquinho, e o

cavalheiro da Índia - Carrisford insistia para que ela o

tratasse assim uma vez por outra - puxou-lhe suavemente a

cabecinha morena e encostou-a aos seus joelhos, acariciando-

Lhe os cabelos.

No dia seguinte, de manhã, miss Minchin viu, da sua

janela, um quadro que lhe foi particularmente desagradável.

Carrisford preparava-se para sair de carruagem, acompanhado

de uma silhueta confortàvelmente envolta em magníficas peles.

Esta pequena silhueta era bem conhecida de Miss Minchin e

lembrava-lhe um certo passado... Atrás dela, apareceu uma

outra figura cuja vista irritava talvez mais ainda Miss

Minchin: era Becky, a graciosa criadinha particular de miss

Sara Crewe, que levava agasalhos. Becky nunca tivera, como

agora, faces tão redondinhas e frescas.

A carruagem partiu e não tardou a parar em frente da

padaria. Por um curioso acaso, a padeira colocava na montra,

exatamente nesse momento, um tabuleiro de "buns" acabado de

sair do forno.

Vendo que entravam pessoas na loja, deixou o que estava

a fazer e veio atender os elegantes fregueses. Fixou

atentamente Sara, durante uns segundos; depois o olhar

iluminou-se-lhe.

- Reconheço-a muito bem! - disse ela. - Apesar de

que...

- É verdade! -apressou-se a responder Sara. Foi a mim

que a senhora deu seis "buns" por uma moeda de quatro

"pence", e...

. . e a menina deu imediatamente cinco a uma mendiga -

interrompeu a padeira. - Nunca mais me esqueci e confesso

que, primeiro, não consegui compreender...

Voltando-se para Carrisford, a boa mulher continuou:

-Peço-lhe desculpa do meu atrevimento, mas afirmo-lhe

que é raro encontrar uma criança tão caridosa, e que pensei

nela muitas vezes, depois daquele dia... Não leve a mal a

minha liberdade ,isse ela, dirigindo-se novamente a Sara -

mas agora tem muito melhor aspecto e... parece muito mais

feliz do que...

Oh! Sem dúvida! - respondeu Sara. Agora tudo corre

melhor; sou muito, muito feliz e venho pedir-lhe que me faça

um favor.

- Oh miss, que favor posso eu fazer-lhe? Isso seria um

grande prazer para mim! - exclamou a padeira, afirando-se

cada vez mais. De que se trata?

Encostada ao balcão, Sara expôs-lhe o seu plano acerca

das crianças famintas e dos "buns" quentinhos.

A mulher escutava-a com a maior atenção e um ar de

grande espanto.

- Meu Deus - exclamou ela, quando compreendeu bem a

idéia da encantadora menina. Mas isto vai ser uma verdadeira

alegria para mim. Eu não passo de uma pobre padeira, não

posso dar muito e a miséria aparece de todos os lados; mas

posso afirmar- Lhe que, depois desse horrível dia, tão frio e

triste, tenho distribuído muitos bocados de pão a pensar na

menina.Como estava encharcada e como parecia ter fome! No

entanto, deu os seus "buns" quentes e apetitosos, como teria

feito uma verdadeira princesa!

Carrisford sorriu involuntàriamente e Sara também,

pensando no que dissera consigo própria, naquele dia, para

ter coragem de dar os "buns".

-A pobre pequenita tinha um ar tão desgraçado disse ela;

ainda tinha mais fome do que eu...

-Estava positivamente a morrer de fraqueza- confirmou a

padeira. Falou-me nisso muitas vezes, depois, explicando-me

que lhe parecia sentir o estômago desfazer-se...

- Mas tornou a vê-la - exclamou Sara. Sabe onde ela

está?

- Com certeza... - respondeu a padeira, com ar radioso.

- Está lá dentro, na cozinha. Há um mês que veio para minha

casa. Tornar-se-á uma bela rapariga. Não imagina como ela me

ajuda já nos trabalhos da casa e da loja. Quando penso na

existência que levava!...

Ao dizer isto, aproximou-se da porta que comunicava com

o interior. Ao seu chamamento apareceu uma rapariga que veio

até junto do balcão. Era bem a pequena mendiga - Sara

reconheceu-a logo , mas estava limpa, decentemente vestida e

sem o mais leve vestígio do ar esfomeado de outrora. Parecia

tímida, mas a sua fisionomia, agora que havia perdido o ar

meio selvagem que tinha dantes, tornara-se simpática. Também

ela reconheceu Sara e ficou a contemplá-la, como num êxtase.

- Os senhores compreendem - explicou a padeira-, eu

disse-lhe que viesse ajudar-me, sempre que não tivesse que

comer. Via-a tão cheia de boa vontade, que me dediquei a ela

e acabei por lhe arranjar um lugar cá em casa. Ajuda-me

imenso e porta-se muito bem, mostrando-se sempre reconhecida.

Chama-se Ana e não tem apelido de família.

As duas crianças olharam-se durante um instante.

Depois, Sara tirou a mão do regalo e estendeu-a a Ana, que a

tomou entre as suas.

-Estou bem contente por saber que vives aqui - respondeu

Sara. - E tenho uma idéia. Talvez a tua protetora te permita

que a ajudes a distribuir pão e "buns". Penso que isso te

dará prazer, porque, tal como eu, tu também sabes o que é não

ter nada que comer...

- Sim, sim - respondeu a pequenina. Ana não disse mais

nada, mas Sara teve a certeza de que ela a compreendera. Ana

acompanhou-a até à porta da loja e, de pé, com os olhos muito

abertos, viu desaparecer, ao longe, a carruagem que levava a

princesa Sara.

FIM