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Diario do Caminho de Santiago feito pelo comediante alemao Hape Kerkeling.

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hape kerkeling

Volto jáMinha viagem pelo caminho de Santiago de Compostela

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© Editora Manole Ltda., 2009.

Capa Osmane Garcia Filho

Projeto gráfico e editoração eletrônica Departamento Editorial da Editora Manole

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Kerkeling, HapeVolto já: minha viagem pelo caminho de Santiago de Compostela/Hape Kerkeling; [tradução Bibiana Almeida]. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Título original: Ich bin dann mal weg.ISBN 978-85-204-2763-7

1. Alemães – Viagens – Espanha – Santiago de Compostela 2. Biografia espiritual – Espanha – Santiago de Compostela 3. Kerkeling, Hape – Diários 4. Kerkeling, Hape – Viagens – Espanha – Santiago de Compostela 5. Santiago de Compostela – Descrição e viagens I. Título

08-12267 CDD-914.611

Índices para catálogo sistemático:1. Santiago de Compostela: Diários de viagens 914.611

2. Santiago de Compostela: Narrativas de viagens 914.611

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por xerox.

A Editora Manole é filiada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos.

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Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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O Caminho faz a todos uma única pergunta:Quem é você?

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Dedico este livroà minha querida avó Berthae...

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m  Sumário

9 de junho de 2001 – Saint-Jean-Pied-de-Port 1

10 de junho de 2001 – Roncesvalles 14

11 de junho de 2001 – Zubiri 24

12 de junho de 2001 – Pamplona 32

13 de junho de 2001 – Pamplona 56

14 de junho de 2001 – Viana e Logroño 59

15 de junho de 2001 – Navarrete e Nájera 65

17 de junho de 2001 – Santo Domingo de la Calzada 71

18 de junho de 2001 – Santo Domingo de la Calzada 84

21 de junho de 2001 – Castildelgado 92

22 de junho de 2001 – Belorado, Tosantos e Villafranca 98

24 de junho de 2001 – Burgos, Tardajos 107

25 de junho de 2001 – Hornillos del Camino e

Hontanas 114

26 de junho de 2001 – Castrojeriz e Frómista 126

27 de junho de 2001 – Carrión de los Condes 137

28 de junho de 2001 – Calzadilla de la Cueza 151

29 de junho de 2001 – Sahagún 164

30 de junho de 2001 – Leão 194

1º de julho de 2001 – León 216

2 de julho de 2001 – Algum lugar nos cafundós pra lá

de Leão 231

3 de julho de 2001 – Astorga 245

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4 de julho de 2001 – Astorga 251

5 de julho de 2001 – Rabanal 259

6 de julho de 2001 – Rabanal 266

7 de julho de 2001 – Foncebadón e El Acebo 277

8 de julho de 2001 – El Acebo 289

9 de julho de 2001 – Molinaseca, Ponferrada 295

10 de julho de 2001 – Villafranca del Bierzo 309

11 de julho de 2001 – Trabadelo e Vega de Valcarce 313

12 de julho de 2001 – La Faba e O Cebreiro 321

13 de julho de 2001 – Triacastela 331

14 de julho de 2001 – Triacastela 336

15 de julho de 2001 – Sarria e Rente 338

16 de julho de 2001 – Portomarín 340

17 de julho de 2001 – Palas de Rei 350

18 de julho de 2001 – Castañeda 352

19 de julho de 2001 – Rúa 357

20 de julho de 2001 – Santiago de Compostela 359

Posfácio 371

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m  9 de junho de 2001 – Saint-Jean-Pied-de-Port

“Volto já”, foi tudo o que disse aos meus amigos antes de co-meçar minha jornada. Vou atravessar a Espanha andando. O co-mentário de minha amiga Isabel a respeito foi bastante lapidar: “Ah, agora você pirou de vez!”

Meu Deus, mas o que me fez partir para esta peregrinação? Minha avó Berta sempre soube: “Se a gente não tomar cuidado, qualquer dia nosso Hans Peter vai embora!”, dizia ela.

Talvez seja por isso que ela sempre me alimentou tão bem! Bem que eu poderia estar em casa agora, deitado confortavel-

mente no meu sofá vermelho favorito, saboreando um chocolate quente e uma deliciosa fatia de cheesecake. Mas não, em vez disso, estou sentado em um café sem nome ao pé dos Pirineus franceses sob temperaturas absurdamente baixas em uma cidadezinha medie-val chamada Saint-Jean-Pied-de-Port. Uma pitoresca e idílica pai-sagem de cartão postal, sem sol.

Como ainda não consigo me desprender totalmente da civili-zação, fico sentado observando a rua principal da cidade e percebo a quantidade de carros que passam por aqui – assustadoramente grande, considerando que eu nunca havia ouvido falar neste lugar em toda a minha vida.

Diante de mim, em cima da mesinha bamba do bistrô, está meu diário, praticamente vazio. Ao que parece, compartilhamos o mesmo apetite. Na verdade, até o momento eu nunca havia senti-do qualquer necessidade de registrar minha vida por escrito, mas, desde hoje de manhã, sinto um ímpeto enorme em documentar no pequeno caderno cor-de-laranja cada detalhe desta aventura que estou prestes a começar.

Aqui, portanto, tem início a minha peregrinação até Santiago de Compostela.

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A caminhada vai me levar pelo Caminho Francês, uma das vias culturais da Europa, e pelos Pirineus, atravessará os Países Bas-cos, Navarra, Rioja, Leão e Castela e a Galícia por cerca de oitocen-tos quilômetros até chegar à Catedral de Santiago de Compostela, onde, segundo reza a lenda, está localizado o túmulo do apóstolo Tiago, o grande missionário dos povos ibéricos.

Só de pensar na longa marcha que me espera, eu já poderia começar a descansar agora mesmo pelos próximos catorze dias. Vou andando, definitivamente; vou andar todo este caminho! E tenho que reler mais uma vez esta frase para conseguir acreditar. Mas não vou sozinho: minha mochila vermelho-vivo pesando onze quilos vai comigo. Caso eu caia morto pelo caminho – e não são poucas as chances de que isso aconteça –, pelo menos ainda poderei ser avistado lá do céu.

A partir de amanhã, eu, que não uso a escada nem para ir até o primeiro andar, terei que andar de vinte a trinta quilômetros por dia para chegar ao meu destino em cerca de 35 dias. O famigerado bicho-preguiça sai em peregrinação! Ainda bem que nenhum dos meus amigos sabe exatamente o que pretendo fazer aqui, assim não vai ser tão embaraçoso se eu precisar desistir de tudo já amanhã à tarde, por motivos puramente biológicos.

Hoje pela manhã dei uma primeira olhada mais cuidadosa no ponto de partida do Caminho oficial de Santiago de Compos-tela. Ele está localizado acima do portal da cidade, do outro lado da torre e da muralha de Saint Jean, a porta de entrada dos Piri-neus espanhóis, e inaugura a primeira etapa do Caminho Francês com uma subida bastante íngreme por um caminho de paralelepí-pedos.

Nesse local, um senhor de cerca de setenta anos de idade com uma séria dificuldade de locomoção inicia, muito determinado, sua maratona como peregrino. Incrédulo, fico olhando fixamente para ele por uns cinco minutos, até que o homem desapareça aos pou-

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cos em meio à neblina da manhã. Tenho certeza de que esse con-seguirá!

Os Pirineus são bastante altos e me fazem lembrar do Allgäu1. Meu delgado guia de viagem – que terei que carregar inclusive por sobre os topos nevados dessa cadeia de montanhas – me informa que há muitos séculos as pessoas se propõem a percorrer o caminho até Santiago quando, literalmente ou em sentido figurado, não lhes resta um outro caminho.

Depois de passar por uma surdez súbita e pela remoção da minha vesícula – na minha opinião, doenças magníficas para se ter

1 N.E.: Região alemã da Suábia que compreende as regiões pré-alpinas e se estende até os Alpes.

Meu trajeto começa em Saint-Jean-Pied-de-Port

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quando se é um comediante –, o momento para mim certamente é de reflexão e de mudar a minha maneira de pensar. Ou seja, mo-mento perfeito para peregrinar.

É atroz a vingança do corpo contra um indivíduo que resolve ignorar sua voz interior que grita “PAUSA!” por meses a fio e continua a trabalhar de maneira pretensamente disciplinada: ele passa a não ouvir absolutamente mais nada. Uma experiência fan-tástica! A frustração e a ira que o indivíduo sente em relação à pró-pria falta de juízo fazem seu sangue ferver e o levam ao pronto-socorro com suspeita de infarto.

Ainda estou furioso comigo mesmo por ter deixado as coisas chegarem onde chegaram, mas finalmente voltei a dar atenção à minha voz interior e eis o que ouço: não devo assumir absoluta-mente nenhum compromisso nos meses de verão deste ano e dar um tempo para mim mesmo.

Logo vou parar na seção de turismo de uma boa e diversifi-cada livraria de Düsseldorf à procura de um destino que atenda à minha exigência: quero tomar um rumo!

O primeiro livro que literalmente quase me cai aos pés tem o título Jakobsweg der Freude�. Que audácia atribuir um nome desses a um caminho! Que um chocolate provoque uma sensação de feli-cidade em algumas ocasiões, tudo bem. Até um uísque, em situa-ções de emergência, vá lá. Agora, um caminho trazer felicidade? Apesar disso, coloco o livro petulante na sacola e o devoro em uma só noite.

Ao lado da Via Francigena, que liga Cantebury a Roma, e da peregrinação até Jerusalém, o Caminho de Santiago de Compos-tela é um dos três grandes caminhos de peregrinação da cristanda-de. Reza a lenda que a trilha já era usada como caminho de ini-

2 N.T.: Em uma tradução livre, O caminho de Santiago da felicidade, sem pu-blicação no Brasil.

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ciação pelos celtas antes da era cristã. Veios de força e pequenos trajetos energéticos correm paralelos à Via Láctea por todo o Ca-minho até Santiago de Compostela (campo de estrelas) e até mesmo além, até Finisterre (fim da Terra), na costa espanhola do Atlântico, conhecida naquela época como o fim do mundo. Até o momento, eu sempre havia partido do pressuposto de que o nosso planeta inteiro estava, de alguma forma, paralelo à Via Láctea. Ora, por favor, mesmo em idade avançada ainda se pode aprender alguma coisa!

A Igreja Católica perdoa cordialmente todos os pecados da-queles que peregrinam até Santiago, o que me estimula menos que a promessa de encontrar, por meio da peregrinação, o caminho que leva a Deus e, com isso, a mim mesmo. Isso sim é que vale uma tentativa.

Nos dias que se seguem, observo como eu, quase hipnotizado, rapidamente decifro a rota da viagem e providencio mochila, saco de dormir, esteira isolante e credencial de peregrino. Só caio na real novamente já no vôo para Bordeaux quando me ouço dizen-do em voz alta: “Nossa, será que ainda estou regulando bem?”

l

Chego a Bordeaux. A cidade continua feia e cinzenta como há vinte anos, quando estive aqui de passagem aos dezesseis anos. Me hospedo no Hotel Atlantic, uma construção classicista esplen-dorosa e extraordinariamente bela em frente à principal estação ferroviária. Antes de passar as próximas seis semanas dormindo ape-nas em quartos ruins entre americanos que roncam e franceses que arrotam e levando uma vida que deixa a desejar no aspecto sani-tário, vou me permitir alguns luxos.

Mas não poderia ter sido pior. No final das contas, o quarto comunitário teria sido uma opção mais aconchegante. Com um

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sorriso excepcionalmente amigável, foi-me dada uma espelunca sem adornos nem janelas, iluminada por um neon azulão e a um preço exorbitante. Consigo ficar calmo, mas a vesícula que já não tenho mais se rebela.

Se Bordeaux me tivesse sido mais agradável, talvez eu nem tivesse continuado a viagem!

Vinte anos se passaram entre a minha primeira viagem e a atual. Será que o meu mau-humor perdura há vinte anos? Vou atri-buir a culpa a Bordeaux, é mais fácil.

Nada me prende ao quarto: o hóspede anterior, esperto que só ele, já bebeu tudo o que havia no frigobar. Assim sendo, só me res-ta cair fora e ir direto para a estação.

Em meio à gigantesca bilheteria, quando consigo pronunciar a frase com um francês certinho que aprendi na escola, “Senhorita, uma passagem só de ida Bordeaux–Saint-Jean-Pied-de-Port na se-gunda classe, por favor”, a charmosa moça de ascendência africana me contempla do outro lado do vidro com um sorriso radiante.

— A quelle heure, Monsieur? — A que horas? Que moça es-perta!

— Mais ou menos às sete horas da manhã de amanhã — de-cido espontaneamente, como me é de costume.

Aparentemente, a atendente arrumadinha deixa de lado a in-formação imprescindível que forneci a ela e pergunta:

— Qual é mesmo o nome da cidade?Sensacional! Nenhum dos mapas que eu estudei indica uma

ferrovia que leve até Saint-Jean-Pied-de-Port, portanto não existe nenhuma! Repito desanimado o nome da cidade e a moça, ligei-ramente confusa, percorre os densos itinerários que parecem ser de séculos passados para chegar à surpreendente conclusão:

— Monsieur, não existe nenhum lugar com esse nome na França!

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Aquilo me deixou tão perplexo. Era como se a mulher disses-se que Deus estava morto!

— Um momento — eu disse — O lugar existe, sim. Talvez nenhuma ferrovia passe por ele, mas com certeza existe um ônibus intermunicipal ou outro tipo de transporte que vá até lá.

A moça até se mantém educada, mas impassível, sem se des-concertar.

— Não, não, esse lugar não existe. Acredite em mim — diz ela. Mas eu definitivamente não acredito e continuo insistindo em dizer que o lugar existe sim. Afinal, agora é também uma questão de princípios.

Após longos minutos de discussão, a revelação: o lugar existe de fato! E, ainda melhor, tem até uma conexão com possibilidade de baldeação para lá. Fico pensando se o lugar só passou a existir depois de eu ter insistido tanto. Quem sabe eu não tenho sorte e a mesma coisa acabe acontecendo com relação a Deus?

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Deixando a estação já em posse de minha passagem, me per-gunto outra vez o que realmente estou fazendo aqui e se tudo isso faz mesmo algum sentido quando, de repente, vejo diante de mim um enorme cartaz com a propaganda de um novo empreendimen-to na área de telecomunicações e o seguinte slogan: “Você sabe quem você realmente é?” E minha resposta é espontânea e franca: “Não, não mesmo!”

Decido pensar um pouco mais a respeito sentado no meu quar-to no Hotel Atlantic. Lá encontro um guia sobre a cidade de Bor-deaux com as folhas já meio coladas. Passo os olhos com desin-teresse e vou descobrindo todos os eventos que perdi na semana passada quando dou de cara com a continuação daquela propa-

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ganda. Desta vez o slogan diz: “Bem-vindo à realidade”. Me cai co-mo uma luva!

Meu quarto continua não tendo janelas. O carregador do meu celular não encaixa nas tomadas francesas e eu já estou com von-tade de voltar para casa. Ou de tomar o rumo? Não sei... Opto por tomar o rumo e vou para cama.

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Quem estava mesmo questionando a existência de Saint-Jean-Pied-de-Port?

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Saint Jean já está fervilhando de peregrinos de todas as idades e nacionalidades no momento em que chego à cidade pela manhã. O lugar vive do comércio com os romeiros. Aqui são vendidos ca-jados rústicos e pingentes de concha – o distintivo do peregrino –, imagens de santos pintadas com cores cafonas, “menus do pere-grino” – entenda-se por isso batata frita e carne – e guias para o caminhante disponíveis em todos os idiomas modernos. Decido levar apenas um cajado simples, que agora já me parece, além de desajeitado, longo e pesado demais.

Enquanto caminho em direção ao albergue dos peregrinos, fico pensando em como se diz carimbo em francês. Em espanhol é sello. Está escrito no passaporte do peregrino, a credencial. Chegando à porta de entrada do local, finalmente a palavra me vem à cabeça: timbre! Naturellement. E já tenho minha frase perfeitamente for-mulada na cabeça: “J’ai besoin d’un timbre”, quando ouço o senhor idoso à escrivaninha tagarelar em um inglês oxfordiano, enquanto carimba os passaportes de uma jovem banda de músicos formada por quatro homens vindos de Idaho e distribuir a eles as camas de número um a quatro. Percebo, então, que o homem é inglês e que passa suas férias anuais neste pequeno escritório rubricando cre-denciais de peregrinos e distribuindo a eles os números das camas. E ele claramente se diverte com isso. Para mim, porém, a diversão se esvai quando tomo consciência de onde estou: um dormitório frio e úmido para vinte homens, no qual, de acordo com Adam Riese, me será atribuída a cama de número cinco, imediatamente ao lado do bem-humorado quarteto country de Idaho. E eles carre-gam consigo até mesmo seus pesadíssimos instrumentos – três vio-lões e a flauta de sempre.

Na minha vez, o simpático homem pergunta: — Qual sua profissão, senhor? — Paro e penso um pouco no

que devo responder, mas, antes que me dê conta, já berrei:

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— Artista! — Ele me olha desconfiado. Para os músicos essa pergunta era obviamente desnecessária.

O cartaz dizia “Você sabe quem você realmente é?”. É eviden-te que eu não sei. Com meu boné branco, mais pareço o Hortelino Troca-Letras, o personagem de desenho animado que vive perse-guindo o Pernalonga.

Antes que ele possa de fato me oferecer a cama de número cin- co, fujo de lá com meu primeiro carimbo oficial e sem sequer ter dado meu primeiro passo como peregrino. É por meio desse carim-bo que a Igreja Católica sabe que oficialmente iniciei minha pe-regrinação aqui. No final, em Santiago, o Secretarius Capitularis me outorga uma fantástica certidão com moldura dourada escrita em latim, a compostela. Todos os meus pecados são então perdoados – e olha que para a Igreja Católica eles são vários. Parece mais uma co-média clerical!

Os carimbos são fornecidos apenas pelos albergues oficiais pa-ra peregrinos, pelas igrejas e mosteiros ao longo do caminho. Aque-les que querem ir de carro ou viajar de trem não têm nenhuma chance de conseguir, mesmo que por meios escusos, uma certidão de peregrino, pois só é possível chegar a pé ou de bicicleta aos locais onde os imprescindíveis carimbos são obtidos. Além disso, o indivíduo só pode ser designado como um verdadeiro peregrino se tiver percorrido a pé, no mínimo, os últimos cem quilômetros até Santiago de Compostela ou os últimos duzentos na magrela ou a cavalo. Mas a maioria das pessoas prefere fazer a pé todo o Ca-minho Francês, pois essa é a antiga rota de romaria.

Para obter o mais importante requisito para a peregrinação, que é a credencial de peregrino, a pessoa não precisa ser necessariamen-te católica. Eu, por exemplo, me descreveria como uma espécie de budista com revestimento cristão – algo que soa mais complicado na teoria do que de fato é na prática. E estar em busca da espiritua-lidade já basta, o que é o meu caso.

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Como forma de compensar pela noite anterior em Bordeaux, aqui me hospedei no Hotel des Pyrenees, o endereço na cidade. É... Às vezes me dou conta de que sou mesmo de Düsseldorf. É que esse albergue de peregrinos significava, digamos, socialização demais para a primeira noite.

Enquanto vou sorvendo meu café au lait aqui no bistrô, me pergunto quais promessas ou expectativas tenho para esta peregri-nação afinal. Eu poderia começar tendo em mente a pergunta: Deus existe? Ou Javé, Shiva, Ganesha, Brahma, Zeus, Rama, Vishnu, Odin, Manitu, Buda, Alá, Krishna, Jeová? E poderia ainda citar muitos outros nomes...

Desde a minha mais tenra infância, já me ocupava com a ques-tão acerca do grandioso ente desconhecido. Aos oito anos, eu cur-tia de verdade as aulas de catecismo e até hoje lembro com exati-dão tudo o que aprendi. O mesmo vale para a confissão e as aulas de religião e de crisma que vieram mais tarde. Não era preciso que ninguém me arrastasse para as aulas – e de fato ninguém o faria mes-mo, pois não venho de uma família profundamente católica. Meu interesse por todos os assuntos religiosos continuou muito forte até eu concluir o ensino médio.

Enquanto as outras crianças se arrastavam a contragosto para a missa, para mim, aqueles eram momentos de alegria, que eu ob-viamente tentava encobrir a todo custo, para não ficar com fama de bobo. É claro que os sermões do padre de nossa comunidade não me faziam necessariamente flutuar no banco da igreja, mas também não impediam que meu interesse continuasse vivaz. Não havia uma orientação espiritual certa, todas as ideologias me fasci-navam. Durante algum tempo cheguei a pensar seriamente em me tornar pastor ou ao menos teólogo. Quando criança, nunca che-guei a ter a menor dúvida quanto à existência de Deus, mas agora que sou adulto e supostamente mais esclarecido, coloco claramen-te em questão: Deus realmente existe?

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Mas, e se eu chegar ao fim desta jornada e a resposta for “não, lamento, Deus não existe. Não existe NADA. Acredite em mim, monsieur”, será que poderei lidar com isso? Com o nada? Será que toda a vida neste pequeno e cômico planeta não ficaria completa-mente sem sentido? Naturalmente, presumo eu, todos querem en-contrar Deus... Ou pelo menos saber se ele existe, existiu, existirá ou sei lá o quê.

Talvez a melhor pergunta fosse: quem é Deus? Ou onde, ou como? É mais ou menos dessa forma que a ciência age. Sendo assim, proponho a seguinte hipótese: Deus existe. É claro que seria insensato jogar no lixo meu valioso e limita-

do tempo em busca de algo que no final talvez nem exista.Portanto, ele existe. Só não sei bem onde. E, caso exista mes-

mo um Criador, ele vai se regozijar na certeza de que eu nunca duvidei de Sua existência.

No pior dos casos, a resposta encontrada seria “Deus existe e ao mesmo tempo também não existe. Sinto muito se você não com-preende, mas esta é a realidade, monsieur”. Com uma resposta dessas eu conseguiria viver, pois ela é um meio-termo. A propósito, é essa a perspectiva aparentemente absurda defendida por alguns hinduístas.

Mas quem de fato está buscando Deus aqui? Eu! Hans Peter Wilhelm Kerkeling, trinta e seis anos, sagita-

riano com ascendente em Touro, alemão, europeu, da Renânia por escolha mas nascido na Vestfália, artista, fumante, dragão no horós-copo chinês, nadador, condutor habilitado, contribuinte, especta-dor, comediante, ciclista, escritor, cliente, eleitor, concidadão, leitor, ouvinte e monsieur.

Aparentemente não sei bem ao certo quem sou eu; portanto, como poderei descobrir quem é Deus?

Por isso, em primeiro lugar, minha pergunta tem que se resig-nar em ser bem modesta: quem sou eu?

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Eu não queria me ocupar com esta pergunta inicialmente, mas, como o tempo todo sou intimado pelos cartazes de propagan-da a respondê-la, não me resta alternativa. Pois bem, primeiro vou procurar por mim mesmo, depois vejo o que faço. Vai que eu dou sorte e Deus não mora assim tão longe de mim. Agora, se ele mo-rar em Wattenscheid3, eu certamente estarei no lugar errado.

Meu cubículo francês com baixos índices de oxigênio impe-diu que eu dormisse por mais de três horas na noite passada, o que possivelmente justifica todos estes pensamentos confusos. Mas tal-vez somente sob pressão eu consiga me tornar complacente. Hoje vou cedo para a cama. Amanhã quero sair às seis e já começar a an-dar. Cara, como estou cansado!

Se Deus existe, ele pelo menos tem bastante senso de humor. Cá estou eu tomando um café com leite sentado em um planeta com formato de batata e que se move a uma velocidade excessi-vamente alta pelo universo. Posso até não perceber nada disso, mas esta é a realidade.

Estou em Saint Jean! João, o apóstolo, não é irmão de Tiago? Esse poderia ser um discreto indício de que este é um cami-

nho para a fraternidade. Talvez o nome desta cidade seja uma ho-menagem a João Batista. Já houve alguns indivíduos de nome João... Mas estou cansado demais para investigar isso hoje.

u

Revelação do dia:Primeiro devo descobrir quem eu sou.

3 N.E.: Antiga cidade alemã do Vale do Ruhr que, a partir de 1975, passou a pertencer à cidade independente de Bochum, na Renânia do Norte-Vestfália.

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m  10 de junho de 2001 – Roncesvalles

Cara, estou acabado! Mal tenho forças para segurar esta caneta.Hoje pela manhã, pouco antes das sete horas, deixo o hotel

com destino a Roncesvalles, na Espanha. Nada de café-da-manhã, pois ele só começa a ser servido depois das oito. No lugar, me per-mito saborear uma nutritiva barra de cereais. Trouxe três comigo da Alemanha para situações de emergência. Enchi de água só até a metade minha garrafa plástica de um litro, afinal, cada miligrama a mais só serve para deixar minha mochila ainda mais pesada.

Assim que coloco os pés na trilha oficial dos peregrinos, pa-vimentada com paralelepípedos neste trecho, começa a chover a cântaros. O frio úmido que sinto logo me faz perceber que minha jaqueta de chuva superfaturada além de não ser à prova de frio tam-pouco é impermeável. Até onde a espessa neblina me permite en-xergar, não vejo nenhum outro peregrino no caminho. Ninguém quer saber de tempo ruim... O povo gosta mesmo é de mordomia! Está claro que não são implacáveis como eu.

Na verdade, eu queria começar devagar hoje para ir me acos-tumando com o peso nos meus ombros e com o uso do cajado durante a caminhada. Até parece! Com esse tempo ninguém tem vontade de andar, só quer chegar o mais rápido possível a algum lugar. A porcaria do cajado vira-e-mexe vai parar entre os meus pés e mesmo os menores tropeços fazem minha mochila obedecer a lei da gravidade, me empurrando com toda a força para a frente, e eu, marmota fora de forma que sou, só consigo recuperar o equilíbrio com muito esforço. Assim não é possível conseguir um ritmo de caminhada decente. Ou eu corro feito um desvairado e fico sem fôlego, ou me arrasto como uma lesma!

Não tenho condições de avaliar se a região é bonita ou não. O excesso de chuva e neblina não me deixa ver nada, absolutamente nada. A foto no meu colorido guia de viagem exibe um cenário

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montanhoso coberto de neve e iluminado por um esplendoroso pôr-do-sol, digno de conto de fadas. Segundo consta, esta é uma das regiões mais mágicas da Europa, um lugar que não se pode deixar de ver. Aqui haveria, no sopé das formações rochosas, campinas exu-berantes onde pastam ovelhas, que, aliás, gozam de total preferência de tráfego, não importa quem passe pelo caminho. Pode ser que tu-do isso exista mesmo, só que infelizmente nunca poderei afirmar ter estado aqui e não sentir algum remorso.

Assim, continuo aos solavancos durante três horas de vigorosa caminhada subindo uma montanha íngreme e traço meu caminho de modo estóico em meio a uma imensa parede de neblina no pon-to mais alto da passagem de Roncesvalles, a 1.300 metros de altura. Enquanto isso, minha mochila dá sinais claros de que quer voltar para casa, dada a intensidade com que me puxa.

Num dado momento, como eu já devia temer, não consigo mais continuar. Começo a pensar que nem mesmo minha mochi-la vermelho-vivo terá alguma utilidade como sinalizador se eu cair morto agora, porque com tanta neblina vai ser praticamente im-possível alguém me encontrar aqui, mesmo procurando de cima. Percebo como é trágica a minha situação e sou acometido por um ataque de riso nervoso, que me ajuda a relaxar, apesar de me deixar ainda mais cansado. Mas a razão predomina e eu decido que neste instante não dá mais, perdi as forças e me entrego resignado ao meu destino. Eu simplesmente não consigo mais!

Sob uma chuva torrencial, me sento em uma pedra na beira do caminho e aprecio o panorama dos Pirineus, inexistente neste momento. Olhando à minha direita, percebo que não vou conse-guir continuar subindo a trilha íngreme. O cume provavelmente está a horas de distância daqui, tomando por base o ritmo de tar-taruga da minha caminhada até agora. À minha esquerda, o cami-nho denuncia que também não vou dar conta de descer o trajeto igualmente íngreme por mais três horas. Como estou em uma si-

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tuação de emergência, me permito saborear uma barra de cereais e um cigarro ensopado. Aliás, o encharcamento atribui ao tabaco um toque todo especial. A chuva já não me incomoda mais. Está tudo ensopado mesmo, inclusive meus pertences dentro da mochila ga-rantidamente impermeável. Fumegando, sento na pedra e dou risa-da. Não sei por quanto tempo, talvez por uns quinze minutos. Ao longo de todas essas horas de caminhada, não encontrei uma única pessoa pelo caminho.

De repente, sem nenhum aviso, surge à minha esquerda em meio à neblina uma pequena caminhonete azul. Tomado de ale-gria, começo a balançar o cajado imediatamente e a faço parar. De qualquer forma, ela não passaria mesmo por mim e pela minha mo-chila sinalizadora nessa ruazinha estreita. O arcaico veículo de três rodas pára e a porta do passageiro é aberta por dentro; do interior o rosto vermelho e brilhante de um camponês me observa de ma-neira pouco amistosa.

— Pois aonde o senhor vai com um tempo desses? — ecoa do carro em um autêntico dialeto francês.

— Para cima! — respondo, porque a palavra francesa para cume simplesmente não me vem à cabeça no momento. Com um breve gesto convidativo e qualquer coisa “rosnada” para dentro, o lavrador me oferece um lugar no carro. Sem tirar a mochila, me sento ao lado do gaulês fumante vestido com um macacão e pra-ticamente grudo meu nariz no vidro. Ainda assim é possível sentir nitidamente a forte catinga que vem da parte de trás do veículo. Me viro e dou de cara com uma enorme cabeça de carneiro blo-queando a carroceria. Um segundo animal estende seu traseiro com toda a calma na minha direção. Gás total rumo ao cume, por favor!

— Quanto falta ainda para chegar... lá em cima? — pergunto com o intuito de começar uma conversa.

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— Não muito. Uns dois quilômetros e meio, talvez — res-ponde o homem, enquanto me oferece um cigarro seco, que eu acendo sem demora.

— Então eu já estava quase lá em cima — deixo escapar em voz alta, aliviado.

— O senhor é um dos peregrinos?— Sim! — respondo de modo lacônico e percebo que esta é

a primeira vez que afirmo ser um peregrino!— O senhor não acha que exagerou na dose? — quis saber

então o homem, me olhando com ar de reprovação.Sim, eu realmente exijo demais de mim mesmo, diabos! Mas

não vou admitir uma coisa dessas na presença de dois carneiros fe-dorentos!

O automóvel serpenteia com agilidade montanha acima e, co-mo se obedecesse a um comando, o carneiro cabeçudo é acometi-do por uma violenta náusea, a qual é acompanhada então de uma regurgitação esverdeada. Pois bem, o carneiro gigante vomita na carroceria, e o camponês me olha sorridente, como se aquilo fos-se um grande feito. Não consigo pensar em nada mais original, aca-bo dizendo:

— Ele não está bem?Mas o homem me tranqüiliza:— Ele sempre faz isso. Não gosta de andar de carro. Mas o ve-

rão está chegando, eles devem voltar para os pastos mais altos e lá só dá para ir de carro.

Meu motorista me abandona então em uma colina em meio a um caminho totalmente enlameado que atravessa a mata. Não sei o que é mais denso, se a chuva torrencial ou a neblina. Isso sem contar o frio, que meus sentidos acusam com bastante certeza ser de alguns graus negativos. O camponês se curva mais uma vez sor-ridente e me diz, com a bituca na boca:

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— O pior já passou! Não falta muito para chegar ao pico. Agradeço de coração pela carona e, sem conseguir me conter,

estimo também melhoras ao carneiro. O carro segue barulhento adiante enquanto eu procuro por placas de sinalização. O interva-lo na caminhada me faz sentir mais ou menos apto a seguir nova-mente pelo caminho rumo à Espanha e, assim, me dou ao luxo de tomar um gole de água. O problema é que, ao tentar pegar minha garrafa, percebo que ela deve ter escorregado da minha mochila e caído dentro do carro. Que ótimo! Estou no meio de um dilúvio e sinto que vou morrer de sede!

Depois de incontáveis pequenas escaladas, com o ar já ficando um pouco mais rarefeito à medida que subo, chego à famosa Fonte de Rolando, bem próxima à fronteira com a Espanha. Foi aqui que o cavaleiro Rolando combateu os bascos – ou teriam sido os mou-ros? – com muita honra, mas nenhum sucesso. Até mesmo Carlos Magno teria bebido dessa fonte. Mas não estou com cabeça para miudezas históricas neste momento. Tenho sede! E como já diria Brecht – citado aqui bem livremente, claro –, primeiro se sacia a sede de água, depois a de conhecimento. No meu ritmo, corro até a fonte enquanto minha mochila, toda alegre, se sacode para cima e para baixo fazendo ainda mais peso nos meus pobres ombros. Já consigo me ver matando a sede e, quase feliz, abro a chique tornei-ra dourada da Fonte de Rolando e... nada! Nada de água!

Tento várias vezes, mas a fonte parece estar seca. Torrentes de água passam ao meu redor, água vermelha, lama-

centa e malcheirosa, mas nada de água na fonte.Meu guia de viagem me informa que esta é a única fonte de

água potável em todo o trecho e que Rolando, o paladino de Car-los Magno, foi brutalmente assassinado aqui pelos Sarracenos – ah, sim, os Sarracenos! – e ainda que, por conta das péssimas condições meteorológicas, tenho pelo menos mais quatro horas e meia de caminhada pela frente. Fantástico! Hoje definitivamente não é o

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meu dia! Estou furioso. Que maldição! Será que alguém pode me enviar um encanador que conserte isso?

Subitamente, ouço um barulho de motor se aproximando aos poucos e vejo surgir da neblina, na encosta da montanha acima da fonte, um pequeno carro de bombeiros. E não é uma alucinação!

Dois bem-humorados bombeiros saem do carro e descem cambaleando devagar em meio à neblina na minha direção.

— C’est tout bien, monsieur? — gentilmente me indagam so-bre o meu estado. Minha resposta é imediata – e a sede é tanta que eu até consigo falar bem em francês:

— Estou ótimo, mas a torneira da Fonte de Rolando, com to-da a sua relevância histórica, está com defeito. Os senhores não vão acreditar, mas não tem mais água aí dentro!

Em tempo recorde, como trabalham de praxe os bombeiros, os homens não fazem a torneira cuspir água, mas, em um esforço con-junto, dão um jeito de arrancar uma mangueira que estava enfiada na terra atrás da fonte e eu finalmente consigo “encher a cara”. Dei-xo pelo menos uns dois litros de água entrarem goela abaixo. Em seguida, os rapazes consertam tudo novamente, deixando a fonte inativa outra vez. Tudo volta a ser como antes.

Eu certamente fui a única pessoa a beber água aqui hoje. E de súbito jorra cerimoniosamente de mim a pergunta:

— Mas o que os senhores estão fazendo aqui em cima com um clima horroroso desses?

— Absolutamente nada — me explica o mais forte dos bom-beiros com um sorriso. — Meu colega começou a passar mal. On-tem fomos ao grande baile do corpo de bombeiros em Saint-Jean-Pied-de-Port e ele bebeu demais e agora temos que parar a cada dez minutos para ele vomitar.

E com a mesma rapidez com que chegaram desaparecem outra vez na densa neblina.

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Ao que parece, as pessoas e os animais desta região tendem a passar mal com alguma freqüência, mas eu, misteriosamente, me sinto bem. Pela segunda vez no dia, sinto-me grato.

Os bombeiros eram franceses, o que significa que eu ainda não estou na Espanha e que a maior parte do caminho ainda está por vir. Sigo caminhando com vigor pela mata que vai se adensando cada vez mais e por sobre montanhas cuja existência eu posso ape-nas presumir. O céu quer mas ao mesmo tempo não quer se abrir.

Depois de outras três horas torturantes de caminhada, a indis-posição parece definitivamente tomar conta de mim, mas ainda te-nho que andar umas boas duas horas. A chuva vai ficando cada vez mais forte e eu, cada vez mais fraco. Passei a andar tão devagar nes-se período que em meia hora uns doze peregrinos me ultrapassa-ram. Mas de onde surgiram todos eles? Por horas não vi uma única pessoa e de repente um monte de gente ensopada e silenciosa pas-sa por mim!

Felizmente, num dado momento, surge outra vez um declive no caminho. Meu coração bate mais forte. A estreita trilha de cas-calho enlameado que atravessa a floresta de faias tem no máximo 20 centímetros de largura e é tão íngreme que em pouco tempo meu joelho esquerdo começa a pulsar e a doer terrivelmente. Até então eu ignorava o fato de que dores no joelho podiam aumentar tanto com tanta rapidez. Não adianta, mas eu preciso gemer, e ge-mer alto, para conseguir agüentar. Pouco me importa se alguém me ouvir nesta selva abandonada por Deus. Estou com muita dor!

Tomado por um impulso turístico-consumista, graças a Deus comprei este cajado. O tanto que este pedaço de pau me dificul-tou a subida agora terá de ser uma varinha mágica, me ajudando a descer este tobogã. Sem ele eu não conseguiria parar em pé neste escorregador. Tenho que fazer uma pausa a cada dez minutos, para conseguir ir adiante. E chega de autocomiseração! Se eu me arras-tei até aqui em cima, vou conseguir me arrastar até lá embaixo da

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mesma forma. No entanto, preciso chegar sem falta a Roncesvalles antes do pôr-do-sol, senão minha situação vai ficar literalmente pre-ta. Até agora não vi nenhuma sinalização demarcando a fronteira, portanto devo estar na França ainda. Espanha, chegue um pouqui-nho mais perto de mim!

As dores no meu joelho estão ficando insuportáveis e já estou prestes a verter lágrimas! A propósito, meu clarividente guia de via-gem diz que todo peregrino chora pelo menos uma vez durante a jornada. Mas, por favor, logo no primeiro dia não! Mais dez mi-nutos e eu desmaio!

Por um milagre, pouco antes de eu realmente começar a me debulhar em lágrimas, saio da espessa floresta para uma clareira e vejo os muros do mosteiro de Roncesvalles. Me sinto como um leproso da Idade Média a quem apenas um pedaço de pão basta. Eu consegui! Vinte e seis quilômetros a pé por sobre os Pirineus! Isso sem contar o pequeno passeio de carro com o camponês e seus carneiros.

l

O imponente mosteiro de Roncesvalles, albergue oficial dos peregrinos, parece uma versão perdida no tempo do castelo da Bela Adormecida e deve ser três vezes maior que o povoado onde está situado. A impressão que dá é que o lugar vai ser esmagado pelo convento a qualquer momento. Depois de fazer um pequeno tour pelo mosteiro, o qual se restringe a conhecer apenas o térreo, já que hoje eu não consigo mais subir nem no meio-fio, infeliz-mente descubro que os dormitórios, toaletes e chuveiros não cum-prem com o que o exterior do monastério promete. São horrivel-mente frios e sujos. Cerca de cinqüenta peregrinos estão acampados no pavilhão principal. Suas roupas ensopadas estão estendidas pelo chão úmido de pedra para secar. Pessoas suadas e extenuadas, aco-

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coradas ou deitadas se espalham pelos cantos com semblantes sur-preendentemente satisfeitos. Devo ter essa aparência também.

Quando estou prestes a receber o meu primeiro carimbo ver-dadeiro de peregrino no mosteiro, um senhor aposentado robusto e basco atrás da escrivaninha me pergunta:

— Por que o senhor quer só um carimbo? Não precisa de uma cama?

Ao contrário do meu francês, meu espanhol é realmente bas-tante bom. Foi minha segunda língua no ensino médio e continuo adorando esse idioma.

— Não, não preciso de uma cama. Vou dormir no hotel — retruco, então, ao homem. Ele se levanta furioso de sua escrivani-nha, dá um soco na mesa e me repreende:

— Mas o que o senhor está pensando? É moda isso agora?! Peregrinos têm que dormir em um albergue de peregrinos, para poder compartilhar experiências com outros peregrinos, e não ir se isolar em um hotel!

Olho perplexo para o guardião das camas e digo:— Experiências eu compartilho com prazer, mas não tenho

absolutamente nenhum interesse em compartilhar micoses — Dou meia volta e vou embora. Furioso, na hora me dá vontade de dizer ao cara que o que ele deveria mesmo fazer era limpar os chuveiros de vez em quando, em vez de ficar ali resmungando. Não vou passar a noite neste mosteiro de jeito nenhum. Acabei de fazer a caminha-da mais intensa da minha vida e não vou me castigar por isso dormin-do neste refúgio. Não dava mesmo para esperar muita coisa dali.

Coxeando, caminho até o outro lado da única rua do vilarejo. Escolho a pequena pensão que fica diretamente em frente ao con-vento. O preço é bom, o lugar é limpo e no quarto quentinho tem até uma banheira.

Instalado no belo cômodo, a primeira coisa que faço é estender os meus pertences molhados pelo chão e em cima do aquecedor.

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Até o dinheiro e o meu passaporte estão molhados. Meu joelho ago-ra dói absurdamente a cada passo. Espero não ter que interromper minha aventura logo no fim da primeira etapa. Fora de questão! Quando estou em repouso não sinto dor e ainda consigo subir, mas descer é impossível. Contudo, para minha infelicidade, fiquei com o único quarto disponível, no primeiro andar. Demorei uma eternida-de para chegar aqui em cima e, por precaução, já comi alguma coi-sa lá embaixo – calamares na tinta –, assim não preciso descer e subir de novo. Meu desorientado guia de viagem diz que há uma mer-cearia por aqui. Mas não há. Amanhã cedo quero só ver onde vou conseguir arrumar mantimentos. Bem, mesmo que houvesse uma mercearia em algum lugar por aqui, eu provavelmente não conse-guiria descer os degraus até o térreo amanhã de manhã.

Mas eu sou persistente! À minha maneira, consegui chegar ao topo de uma montanha. Meus membros inferiores se expressam de maneira inequívoca e nesse meio tempo se consolidaram em uma dor única, intensa e difusa.

Será que com a minha busca acontecerá o mesmo que acon-tece quando se busca pelo cume em meio à neblina? Eu posso não conseguir ver, mas com certeza ele está lá! Será que não é decor-rência de um quadro agudo de carência de oxigênio? De qualquer forma, estou feliz de estar na Espanha. Amanhã a aventura conti-nua. Sinto-me como se hoje no Caminho eu tivesse nascido de um nebuloso canal uterino. Foi um parto difícil, mas mãe e filho pas-sam bem e o cordão umbilical foi cortado. Quanto aos meus pro-blemas ortopédicos, tenho que ignorá-los no momento.

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Revelação do dia:Embora eu não consiga ver o cume em meio à neblina, ele

com certeza está lá!

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