POSITIVISMO E EDUCAÇÃO NA CIDADE DE RIO GRANDE DOS …

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BIBLOS, Rio Grande, 9: 59-68, 1997. 59 POSITIVISMO E EDUCAÇÃO NA CIDADE DE RIO GRANDE DOS ANOS 1920: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ESCOLA AGRíCOLA MUNICIPAL DA QUINTA ADÃO LUís VEIGA* EVANDRO ROCHA NUNES** "Dentro da ordem sempre; nunca pela desordem ... é este o nosso lema, supremo e inderrocável." (A Federação, Porto Alegre, 717/1922, p. 2) RESUMO Este artigo tece considerações em torno da problemática que envolve a doutrina comtiana do positivismo e suas relações com a prática educacional no contexto histórico da República Velha Gaúcha, numa tentativa de apreender os signos do presente no momento mesmo de suas manifestações concretas naquele recorte temporal. 1- INTRODUÇÃO Por que deter-se nos anos 1920? Qual a relevância social, como justificaríamos tal estudo e o encaixaríamos nos interesses hodiernos? Enfim, por que historiar? Segundo Hobsbawm 1 , a utilidade do historiador pode ser expressa numa simples afirmação: "lembrar o que outros esqueceram"; nesse lembrar está implícita a idéia de transpor o aparente, olhar o real com outros olhos, habitar em outro mundo" , não no sentido de alienar-se, mas ver o que os outros não vêem, superar o visível. Éo positivismo um tema sempre presente, tanto nas discussões acadêmicas quanto no cotidiano - e, nesse caso, não é um mero tema discutido (nem mesmo é percebido), mas algo bastante vivo, presente no lar, na fábrica, nas ruas, invadindo o todo social. Este Brasil moderno, como o conhecemos hoje, tem muito daquele Brasil em seus primeiros dias de • Professor do Dep. de Educação e Ciências do Comportamento - FURG. ~. Professor do Dep. de Biblioteconomia e História - FURG. C HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século xx (1914-1991). São Paulo: ompa~hia das Letras, 199!i p. 13. P KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 3. ed. São Paulo: erspectiva, 1992 (col. Debates).

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POSITIVISMO E EDUCAÇÃO NA CIDADE DE RIO GRANDEDOS ANOS 1920: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA

ESCOLA AGRíCOLA MUNICIPAL DA QUINTA

ADÃO LUís VEIGA*EVANDRO ROCHA NUNES**

"Dentro da ordem sempre; nunca pela desordem ...é este o nosso lema, supremo e inderrocável."

(A Federação, Porto Alegre, 717/1922, p. 2)

RESUMOEste artigo tece considerações em torno da problemática que envolve adoutrina comtiana do positivismo e suas relações com a prática educacional nocontexto histórico da República Velha Gaúcha, numa tentativa de apreender ossignos do presente no momento mesmo de suas manifestações concretasnaquele recorte temporal.

1- INTRODUÇÃO

Por que deter-se nos anos 1920? Qual a relevância social, comojustificaríamos tal estudo e o encaixaríamos nos interesses hodiernos?Enfim, por que historiar? Segundo Hobsbawm 1

, a utilidade do historiadorpode ser expressa numa simples afirmação: "lembrar o que outrosesqueceram"; nesse lembrar está implícita a idéia de transpor o aparente,olhar o real com outros olhos, habitar em outro mundo" , não no sentido dealienar-se, mas ver o que os outros não vêem, superar o visível.

É o positivismo um tema sempre presente, tanto nas discussõesacadêmicas quanto no cotidiano - e, nesse caso, não é um mero temadiscutido (nem mesmo é percebido), mas algo bastante vivo, presente no lar,na fábrica, nas ruas, invadindo o todo social. Este Brasil moderno, como oconhecemos hoje, tem muito daquele Brasil em seus primeiros dias de

• Professor do Dep. de Educação e Ciências do Comportamento - FURG.~. Professor do Dep. de Biblioteconomia e História - FURG.

C HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século xx (1914-1991). São Paulo:ompa~hia das Letras, 199!i p. 13.

P KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 3. ed. São Paulo:erspectiva, 1992 (col. Debates).

República; isto se dá porque na infância dos tempos republicanos opositivismo aparece como base de sustentação no programa detransformação, da modernização preconizada pela elite intelectual de então:a ordem burguesa é legitimada pela ciência normal.

A ciência normal é apresentada na escola, que externamente édependente, subordinada, até certo grau, à prática política (a especificidadeda prática pedagógica comporta dimensões políticas), sendo ambas,educação e política, manifestações do universo social - logo, articulados osdois âmbitos". inseridos no círculo que envolve o conceito de verdadeligado diretamente ao de poder, ciência e ideoloqia." '

2 - O CONTEXTO POLíTICO

o período abrangido pela assim chamada "República Velha" é oespaço histórico onde é intensificada a já crescente descapitalização do RioGrande do Sul e conseqüente subordinação política ao centro do podernacional, habifaf das oligarquias cafeicultoras, cujos interesses subordinamos outros estados, usando como instrumento a "política dos governadores",que, juntamente com o voto a descoberto (política do "viver às claras"),garante a continuidade administrativa do Partido Republicano Rio-Grandense."

O observador mais atento encontra com freqüência a aparentevalorização dos coronéis por parte do governo do estado, através de"massagens do ego", como condecorações, banquetes e inaugurações. Aatuação do governo positivista, de intromissão na economia, de forma afacilitar a acumulação geral do capital (sem intervenções em setoresespecíficos da produção), acaba por retirar um dos grandes trunfos domandonismo local: o isolamento. Ou seja, a satisfação dos desejoscoronelísticos (modernização das comunicações) age no sentido deenfraquecimento das forças locais.

Na era republicana temos oposição entre os conservadores liberais(remanescentes do Partido Liberal de Silveira Martins), que têm suas fileirasengrossadas com a presença de grandes figuras políticas, como osdissidentes republicanos Assis Brasil e Fernando Abott, e os conservadoresautoritários (como Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros), que, devido ao

3 SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 25. ed. São Paulo: Cortez/AutoresAssociados, 1991. p. 95.

4 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 14.5 VEIGA, Adão Luís, NUNES, Evandro Rocha. O Rio Grande do Sul em 1923:

aspectos da crise. In: ALVES, F.N., TORRES, L. H. (orgs.). Ensaios de História do Rio Grandedo Sul. Rio Grande: FURG, 1996. p. 10.

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f t de haver contradições inerentes ao positivismo (passível assim de:. ~rsas interpretações), adaptaram tal corpo teórico às suas próprias idéias.

IV Quanto a esse aspecto, é necessário destacar a forma de jogar com alítica a fim de manter-se no poder: inicialmente, é necessário que os

pobstratos economicamente inferiores da sociedade não percebam as~ploração à qual são subordinados - a esse serviço prestaram-se~rilhantemente os jornais da época (como A Federação, do PRR, e Correiodo Povo, liberal), mostrando aos leitores uma realidade sem injustiças,racismo, exploração, revolta. A política de deformação da realidade encontrafértil terreno nos bancos escolares: inicia-se nesses locais a imposição deum novo imaginário à população, convenci da de que "o que tem lhe foi e éoutorgado quer pela luta encetada pelos heróis, quer pelas leis, decretos eproclamações levadas a efeito por seus governantes e leqisladores'": umahistória construída por poucos, mas brilhantes homens, com seus bustos,seus hinos, seus dísticos espalhados por todo o território, por todas asmentes - trata-se do culto do chefe. As massas gradualmente transferemsua afeição aos chefes locais, para o Líder (Castilhos, Medeiros e, maistarde, Vargas); o líder, com seu carisma, é maior que o partido que oconstituiu. Outro instrumento político cujo fim é perpetuar o sistema demando é a utilização da polícia: dão-se aos chefes locais postos de grandeprestígio, como as chefias de polícia - além de "massagear o eqo", comovimos, tal política garantiria pelas armas aquilo que os argumentoscomtianos não conseguiam. Além disso, cada município tinha a sua leieleitoral: as múltiplas possibilidades de interpretação levavam facilmente àsfraudes", que também eram asseguradas pela pretensa "honestidade" dopositivismo, através do voto a descoberto.

3 - O RIO GRANDE DO SUL DOS POSITIVISTAS

Em nome do progresso, já em fins do Império condenava-se amonarquia e o catolicismo (por associar-se um ao outro), apresentando-seem seu lugar uma nova ordem, que possibilitasse ao país acompanhar asprofundas mudanças percebidas na Europa e EUA; essa nova ordemrecebia o respaldo científico da doutrina comtiana do positivismo. quepretende absorver todas as manifestações humanas na ciência Zilles8

67 LUCKESI, Cipriano Carlos et aI. Fazer Universidade' uma proposta metcootoçnce .

. ed S~o ~aulo : Cortez, 1995. p. 111.M FELlX, Loiva otero. Corone/ismo, borgismo e cooptação política. Porto Alegre:

ercad~ Aberto, 1987. p. 128.B . ZILLES, Urbano. Grandes tendências na filosofia do século XX e sua inttuéncie no

resu. Caxias do Sul: EDUCS, 1987, p. 138.

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expõe em linhas gerais os princípios do pensamento positivista: em primeirolugar, afirma que o positivismo entrega-se à concatenação das leis queregem os fenômenos, ou seja, no estado positivo, o único real para Comte,impera a razão humana - é a extinção da imaginação, da argumentação, é ahegemonia da observação, da descrição (o indivíduo não mais imagina,observa; não mais argumenta, descreve); outro princípio refere-se àrelatividade do conhecimento: o espírito positivo teria natureza cognitiva;segundo o terceiro princípio, o destino das leis positivas é a previsãoracional; assim, tendo em vista que a previsibilidade científica permite odesenvolvimento da técnica, o estado positivo é a própria era da indústria(no sentido predatório do termo); o último princípio relaciona-se ao dogmada invariabilidade das leis naturais (isso nos leva a uma descrição douniversal).

Esses principios científicos são remetidos rapidamente àsconcepções políticas. Os positivistas lutam por uma República Científica(ditatorial) - nela o poder é exercido de forma absoluta, e o sufrágiouniversal é considerado elemento corruptor da razão popular. Ora, a palavra"progresso" nega uma concepção fixista da história, mas o "progresso"positivista é criado dentro de uma realidade estática, a ordem ditatorial:assim, temos a estática e a dinâmica convivendo no mesmo palco - adinâmica forja-se beneficiada pela estática, a estática tem o objetivo de forjara dinâmica. Assim dá-se com os conceitos "ordem" e "progresso": dentro daordem, da harmonia ditatorial, temos o progresso, conduzido pela elitepolitica, pelos dirigentes; e no Rio Grande do Sul, quem são eles? Júlio deCastilhos (1860-1903), Borges de Medeiros (1864-1961), Pinheiro Machado(1851-1915) e Getúlio Vargas (1883-1954). Vargas levou o castilhismo aoplano nacional.

Os grupos que abraçaram a doutrina de Comte - PositivistasOrtodoxos (como Miguel Lemos e Teixeira Mendes), Positivistas Ilustrados(como Pedra Lessa e Pereira Barreto) e Positivistas Heterodoxos (comoCastilhos) - tinham essencialmente a mesma visão de mundo, em que oEstado (na ditadura científica) deveria ser extremamente forte, com umchefe para manter a ordem e garantir a liberdade: "essa liberdade erarelativa, pois os positivistas impunham sua moral e não perdoavam ostransqressores"."

Os positivistas heterodoxos colocaram o comtismo em prática, deforma autoritária. Castilhos retirou da Assembléia Legislativa sua realfunção legislar, e esta ficou apenas orçamentária, reunindo-se durante dois

9 FLORES, Moacyr. 1893 o imaginário da República no Rio Grande do Sul. In:ALVES, F. N .. TORRES, L. H. (orqs.). Pensar a Revolução Federalista. Rio Grande: Ed. daFURG, 1993. p. 96.

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ses por ano para votar o orçamento, ou seja, aprová-Ia 10. Caberia ao~~der Executi~o .ela1~oraras I.eis e. decretos, que seriam apr~vados ~u não

Ia opinião publica - o CUriOSOe que qualquer manifestação contraria aoP~verno era considerada como desordem, que iria refletir negativamente na~ducação do progresso social e econômico.

4 _ EM BUSCA DE PADRÕES

Ao longo dos anos 1920 é grandemente estimulada, em âmbitonacional e mesmo internacional, a busca de padrões comportamentaishumanos. Ocorre, por exemplo, uma verdadeira cerebrolatria (mensuração epesagem de cérebros, assim manifesta-se). A frenologia, emergente nessemomento, defendia que a natureza criminosa inata de algumas pessoaspoderia ser determinada por características físicas peculiares 12. Passou-sea aproximar "criminosos", crianças, mulheres e "povos selvagens" - osexcluídos. Acreditava-se na existência de tipos específicos para cada"desvio" comportamental: assim, os brevilíneos, praticando crimes maisviolentos que os longilíneos, por sua vez mais ladrões e com tendênciashomossexuais.

Os princípios orgânicos, de limpeza, de saneamento, de excludênciaeram aplicados em todos os setores da urbanidade. Na busca da harmoniasocial tudo era válido, como a criação de leis restritivas para o impedimentode casamentos, o estabelecimento de papéis para a mulher e para o homem(a pedagogia primária seria uma função feminina; o professor primário eraconsiderado, pelos postulados, um ser falido enquanto homem, exercendouma atividade monótona, paradoxal em relação ao temperamento dinâmicodo homem), o combate ao meretrício. O meretrício, se não pudesse sereliminado, poderia ser isolado, com a criação de zonas especiais:lembremos, nesse caso, da importância dos engenheiros no contexto demodernização do pais, que vêm com soluções técnicas para problemasaparentemente técnicos; assim, há o delito da construção de avenidaslargas, espaçosas, espaços ágeis que facilitam as relações capitalistas.Vistas como áreas propiciadoras de maior integração, são profundamentediscriminatórias: as avenidas, cortando todo o espaço urbano, incrementam

10 Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul de 14 de julho de 1891Secção segunda, Da Assembléia dos Representantes, Capítulo I. Disposições Gerais, Art. 37

11 Constituição Política ... , Secção primeira, Da Presidência do Estado. Capítulo VI. DaDecretarão das Leis, Art. 32, § 4"-

. 2 MOTA, J. C, LOPES, E. T, CÓSER, S. M. L. Júlio Antõnio Peixoto (1876-1947).ensaio bibliográfico. In: HERSCHMANN, M. M, PEREIRA, C A. M. (orqs.). A invenção do81rastl moderno; medicina, educação e' engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro Rocco.994. p. 151.

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a discriminação do uso desse espaço, a fragmentação do mesmo - asavenidas promovem fronteiras, alienam, separam os "melhores" dos"piores", marginalizam. Numa palavra, higienizam.

Nesse contexto, a escola está a serviço da fragmentação, do não-questionamento; a educação promove a alienação, preconizando normas dehigiene em cidades sem água potável?". pregando honestidade e polideznuma realidade completamente hostil, marginalizadora. Tudo pode serresumido em poucas palavras: DISCIPLINA! Disciplinar tempos, disciplinarespaços. Disciplinar o espaço físico, a disposição do mobiliário, o horárioescolar, disciplinar o corpo com práticas desportivas.

Disciplina-se padronizando. A isso serviram muito bem a biologia, apsicologia, a estatística: "dos estudos biológicos resultou a visão de queexistia uma herança de determinadas condições vitais que podiam agir,dependendo de como estivessem combinadas, como fatoresimpulsionadores ou refreadores da aprendizaqem"'". Em relação àpsicologia, esta é um claro exemplo das conseqüências do ingresso dasCiências Humanas na era da positividade: "a psicologia tornou-se umaciência de empreendimento, transformando o ser humano e suas condutasem dados positivos, susceptíveis de serem objetivamente manipulados,,15Quanto à estatística, esta tornou-se um grande instrumento para sedescrever as diferenças, aperfeiçoando-as através de abstração chamada"média"!", obtida através da testagem, da numeração, da padronização. Ostestes passaram a ser o instrumento de trabalho dos educadores.

5 - ESTUDO DE CASO: A ESCOLA AGRíCOLA MUNICIPAL DAQUINTA (RIO GRANDE)

Através do Relatório apresentado à Intendência Municipal sobre aEscola Agrícola Municipal da Quinta (1915-1920), feito pelo padre HumbertoPagliani ainda na gestão pública de Alfredo Soares do Nascimento, épossível perceber algo do cotidiano educacional da região periférica domunicípio.

A escola surge em 21 de abril de 1895, oriunda de esforços daadministração pública (PRR) e Igreja Católica (o Bispado de Pelotas,juntamente com a Congregação de São José), objetivando "providenciar em

13 NUNES, Clarice. A escola reinventa a cidade. In: HERSCHMANN, M. M., PEREIRA,C. A. M. ~orgs) p.183.

1 NUNES, op. cit., p. 187.'5 FREITAS. Maria Tereza de Assunção. Vygotskye Bakhtin; psicologia e educação:

um intertexto. São Paulo. Ática. 1994. p. 46.'6 NUNES, op cit., p. 187.

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prol desses desfavorecidos da fortuna e desamparados, e desenvolver aagricultura, tão promettedora neste Estado e ainda incipiente neste

.. ,,17MuniclPlo.

Seria interessante vermos essa união entre poder público econfessional, à luz da Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sulde 1891. Assim, de acordo com o título IV, que discorre sobre as GarantiasGerais de Ordem e Progresso no Estado, art. 71, §10°, "será leigo, livre egratuito o ensino primário ministrado nos estabelecimentos do Estado"!".Sendo leigo, por que religiosos estariam na direção de diversas escolas,como essa? Aqui estamos diante de mais do que incoerência, verdadeiroimpasse nas idéias governistas: segundo Osório 19, o Estado não poderia sercientista, nem mesmo religioso; o Estado não deveria impor dogmas. "Ora, acapacidade provada pelo diploma pressupõe a ciência oficial, e a ciênciaoficial, reconhecida e proclamada como a única verdade, seria a intolerânciacientífica". O Estado também não poderia deixar de reconhecer a completaliberdade espiritual. Isso legitima a presença de religiosos nessa escola, pelomenos durante o mandato de Alfredo Soares do Nascimento (durante omandato posterior, de João Fernandes Moreira, a administração da escolapassou a ser exercida por leigos).

A escola, esse espaço de "apurada vigilância,,20, acolhera os"desfavorecidos da fortuna e desamparados", onde estes, "orphãosasylados",

... entregaram-se de bom grado aos seus novos paes ou educadores,e se transformarão em pequenos cultivadores, admirados em suapolidez e contracção ao trabalho.Passando os dias uteis a aula e a campanha, elles estudam,analysam, semeiam, cuidam dos cultivos, enxertam as plantas,compõem seus instrumentos, cuidam dos animaes, fazem manteiga econduzem materiaes com cavallos e boi, como ultimamente fizeramcom as cem toneladas de materiaes para as construcções."

Diante de tal "contracção ao trabalho", não é difícil imaginar osmotivos que envolvem a evasão escolar. Somente nessa escola, entre 1915

17 Relatório apresentado à Intendência Municipal sobre a Escola Agrícola Municipal daQuinta. \1915-1920). Rio Grande, Officinas a vapor do "Rio Grande", 1920. p. 4.

8 Constituição Política ... Das atribuições do Presidente, Título IV, Garantias Gerais deOrdem ~ Progresso no Estado, Art. 71, §100. '

9 OS6RIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul:~omentário. Brasilia : Câmara dos Deputados, Universidade de Brasilia, 1982 (Biblioteca do

ensam,,~nto Político Republicano, 12). p. 246.21 Relatório apresentado ... p. 4.

Idem, p. 6.

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e 1920, de trinta e cinco alunos matriculados, apenas vinte e quatrocontinuaram seus "estudos". Esses 31,42% de evasão seriam a evidênciade um contradiscurso, de uma forma de luta contra a repressão? Ou odiscurso educacional positivista seria um blefe diante de uma realidade hostilà escola enquanto instituição educacional?

Ao que parece, as fugas eram uma constante nas escolas domunicípio. Em vista disso, segundo o relatório de 30 de setembro de 1925,enviado pelos diretores José Antônio Martins Carneiro (escola municipalpara o sexo masculino) e D. Olga Mendonça Martins Carneiro (escolamunicipal para o sexo feminino) a Luís de França Pinto (Inspetor dasEscolas Municipais), ambos os diretores criaram, às suas expensas,prêmios para os alunos que freqüentassem com assiduidade a escola22.

Mesmo assim, o número de evasões era ainda bastante elevado: queixam-se os educadores de que as mães "diziam não precisar das migalhas doprofessor'f". Vêem assim como única solução a obrigatoriedade do ensino:"Oxalá que o ensino primário se torne officialmente obrigatório e então ospobres professores passarão apenas a ter de aturar os seus pequenosalunnos, e, não como hoje, também as impertinencias dos paes"'. Pedidoque durante a República Velha não foi atendido:

A obrigatoriedade do ensino é apenas uma das muitas panacéiasinventadas hoje para sanar males, que não comportam remédio legale que só podem ser debelados pela modificação gradual e lenta dasopiniões e costumes. Quando se pretende submeter à sanção penalmatéria que só comporta uma solução espiritual, planta-se oabsolutismo e lança-se o germe de reações violentas. 25

Os jovens que permaneciam na escola, "asylados", eram divididos emaulas masculinas e femininas. Além da educação cívica sob o regime damoral cristã, o programa da escola abrangia seis anos de ensino, em doiscursos: Preparatório e de Capatazes. O curso Preparatório abrangia trêsanos; no primeiro ano ensinavam-se os elementos de língua portuguesa,geografia, história do Brasil, aritmética, caligrafia e desenho a mão livre,além de noções de física, química, artes manuais e agricultura nos últimosanos. O curso de Capatazes tinha como modelo a Escola de Engenharia dePorto Alegre, dividindo-se em três anos, ao longo dos quais o aluno via-sediante de situações propiciadoras de aprendizagem, das mais simples (como

22 Relatório da Escola Agrícola Municipal. Enviado à Inspectiva das EscolasMunicipais em 31/08/1925.

23 Relatório da Escola .24 Relatório da Escola .25 OSÓRIO, 1982, p. 264.

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r peza de estábulos, capina, adubação) às mais complexas (tratamento de1mléstias, agrimensura); entre estas últimas, salientam-se as pesquisasm~eiras: a escola investia em experiências relativas à determinação deC:ções e adubação; havia um problema relacionado ao melhor tipo de~ertilizante para aquela terra pobre, "cuja analyse dá 80% de areia,,26. Apossibilidade de se utilizar "adubo de curral" era pequena, face ao'exorbitante preço de 5$000 a carroça?". Ora, "amigos da escola"emprestavam ao padre Pagliani "vaccas para a producção de leite eesterco", ao passo que o Frigorífico da Companhia Swift oferecera "umatonelada de adubo chimico, no qual predominando o azoto e o acidophosphorico". Tudo foi experimentado em quatro canteiros diversos: "semadubo; com adubo de curral; com o do frigorífico e com os dois juntos?" .Percebe-se, através do relatório, o fabuloso resultado oriundo do empregodo adubo químico aliado ao de curral: em terra simples, não-adubada, foramobtidos 54kg de ervilhas, batatas e milho (não foram mencionadosresultados com a cebola); com os dois adubos, foram colhidos 213kg deervilhas, batatas, cebola e milho.29

Diante dos experimentos realizados (em acordo com a idéia positivistade "prever para prover", ou seja, o homem - que nesse caso é um serespecífico, distante da natureza - deve conhecer o meio para dominá-Io) e otrabalho realizado pelos alunos na serralheria, ferraria e correaria anexas àescola, é compreensível considerar-se a escola um "humanitario e patrioticoempreendimento" para alcançar um "futuro prospero e feliz".30

Percebe-se ao longo do relatório um constante tom entusiástico,repleto de testemunhos arrebatados, como o de Florisbello Leivas: "éportanto uma instituição social de elevado alcance, porquanto vem salvar daperdição e das prisões os jovens que temos o dever de proteger tornando-osuteis e dignos servidores da Patria no ramo em que mais precisamos degente,,31. Procura-se passar a imagem de uma escola em franca ascensão.Porém vemos que o endividamento persistia: para exemplificar, a escola em1915 obteve uma receita de 6:141$750, ao passo que a despesa era de8:380$770; em 1918, receita de 10:981$000 e despesa de 12:213$900; osdados estatísticos falam por si só, quando comparamos a quantia doadapelos governos federal e municipal em relação às despesas: em 1919 ogoverno federal entregou à escola 10:000$000, e o governo municipalentregou 9:600$000 - ora, isso somado não era suficiente para cobrir as

26 Relatório apresentado ... p. 12.27 Idem, p. 5.28 Idem, ibidem.29 Idem, ibidem.30 Idem, p. 13.31 Idem, p. 15.

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despesas de manutenção, luz, víveres, produtos para chácara e pecuária,vestuário dos meninos, construções, etc., que totalizavam 26:528$600.

Assim, a escola sobrevivia precariamente com donativos da IgrejaCatólica, da Cia. Swift do Brasil (que oferecera seu adubo industrial por doisanos) e algumas personalidades rio-grandinas, como Marcelino Pereira dasNeves e Oldemar Murtinho (citados no relatório).

6 - CONCLUSÃO

Há, nesta construção da modernidade, neste espaço históricoembrionário da era Vargas, o encontro de dois discursos: um, perfeitamentearticulado, o repressor; outro, relativamente incoerente dentro do todo, o daresistência. De um lado, é citado Lombroso, entre tantos aliados do sistemacoercitivo, convictos de que a escola, preconizando a ordem, a disciplina, aelevação moral, poderia evitar os "desvios" de caráter, que por sua vezdestruiriam a harmonia socíat". Por outro lado, os revides locais, os contra-ataques, as defesas contra aqueles que exercem funções policiais:professores, psiquiatras, educadores de todos os tipos33 - na falta deestratégia melhor, a solução é apresentada no ato de fugir, não para o nada,para a ausência da compromissos, mas para o lar, para o real, para omundo que a escola não reflete.

32 Relatório apresentado ... p. 14.33 FOUCAUL T, 1992, p. 74.

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