Restituição fotogramétrica flexível de imagens à curta distância
Por Uma Estética Da Restituição - Vale
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VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.
POR UMA ESTTICA DA RESTITUIO: notas sobre o uso do vdeo
na pesquisa antropolgica
Alexandre Fleming Cmara Vale1
Resumo: Neste artigo viso refletir acerca de algumas das consequncias heursticas, ticas e polticas da implicao epistemolgica do vdeo no trabalho antropolgico de campo. Partindo de trs experincias pessoais de pesquisa em antropologia visual, indago pela maneira como, no mbito de uma antropologia da restituio, somos constantemente interpelados em relao a questo da intersubjetividade, da autoria e dos afetos no processo de realizao documental. Palavras-chave: Antropologia da restituio; esttica; filme etnogrfico; autoria.
Abstract: This paper intend to unveil some of the heuristic, ethical and political consequences of the epistemological implications on the use of video for anthropological fieldwork. Taking as a point of depart three personal experiences in visual anthropology, it seeks to reflect on the ways fieldworkers, dealing with anthropology of restitution, are constantly demanded to question themselves about intersubjectivity, authorship and affects during filmmaking process. Keyswords: Anthropology or restitution; aesthetics; ethnographic film; authorship.
Ao longo de minha trajetria como pesquisador, pensar
conjuntamente a etnografia e o registro imagtico vem apontando para
intercmbios inusitados, achados no convencionais de campo e uma grande
1 Professor no Departamento de Cincias Sociais e no Programa de Ps-Graduao em
Sociologia da Universidade Federal do Cear. Doutor em Sociologia pela Universidade
Federal do Cear. E-mail: [email protected] .
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Tessituras
VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.
revitalizao na maneira tradicional de vivenciar a experincia do trabalho
de pesquisa, especialmente quando analisados luz da problemtica da
restituio em antropologia. Levando-se em conta que etnografias so, ao
mesmo tempo, semelhantes e distintas em relao s narrativas flmicas e
que ambas encenam o processo de auto-modelagem ficcional (CLIFFORD,
1998) em sistemas relacionais de cultura e linguagem que podem ser
chamados de etnogrficos, parto aqui de trs de minhas experincias de
pesquisas (desenvolvidas, respectivamente, no mestrado, no doutorado e no
ps-doutorado) que transformaram-se em documentrios, tambm
realizados por mim.
A partir dessas experincias, busco refletir sobre algumas das
consequncias heursticas, ticas e polticas da implicao epistemolgica do
vdeo no trabalho antropolgico de campo, indagando pela maneira como, no
mbito de uma antropologia da restituio2, somos interpelados em relao
questo da intersubjetividade, da autoria e dos afetos no processo de
realizao documental. Se Geertz (2001) est correto ao se referir ao
trabalho de campo como uma experincia completa, seria possvel pensar
que tal experincia teria mais chances de atingir sua maturidade quando
mediada pela experincia esttica do processo documental, pensado em
termos da restituio antropolgica? Poder-se-ia, ainda, pensar que nas
discusses em torno do lugar situado (poltica de posio) daquele que
2 A pesquisa colaborativa e a restituio de dados etnogrficos constituem dois processos
que emergiram em resposta s exigncias ticas e polticas do processo de pesquisa, na
esteira dos debates tericos sobre a crise da representao em antropologia (CLIFFORD e
MARCUS, 1986). O mtodo colaborativo tornou-se uma condio incontornvel da
antropologia acadmica e aplicada. Ele tem contribudo de forma decisiva para a
multiplicao de projetos de restituio de dados etnogrficos, auxiliado pelo acesso
crescente s tecnologias da informao e da comunicao. Esse processo, essencialmente
dialgico e participativo, que envolve estratgias discursivas de identificao de
problemticas de pesquisas e a devoluo de achados etnogrficos (vistos como objetos de saber) na forma de textos, imagens, sons ou vdeos numricos, constituem o interesse central de uma antropologia da restituio (DE LARGY HEALY, 2011). Na Frana, o
trabalho de Franoise Zonaben (1994), De lobjet de la restitution en anthropologie considerado como um dos textos fundadores dessa discusso, seguido pelo trabalho de
Bertrand Bergier (2000), Repres pour une restitution des rsultats de la recherche en
sciences sociales. Intrts et limites. No Brasil, o empenho na construo de uma
antropologia colaborativa e da restituio tem sido uma marca nos trabalhos vinculados
antropologia visual.
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descreve culturas, a construo da empatia e o controle das transferncias -
fundamentais para o encontro etnogrfico - ganhem contornos meta-
reflexivos quando mediados pelos procedimentos e processos compartilhados
de fabricao das imagens?
As pesquisas acima mencionadas envolveram atividades ligadas
marginalizao e estigmatizao sociais, em contextos de sexualidade
(MALINOWSKI, 1980) dissidentes, e tiveram como personagens principais
travestis, transexuais e transgneros, algumas delas vivendo da prestao
de servios sexuais. A primeira, publicada com o ttulo No escurinho do
cinema: cenas de um pblico implcito (VALE, 2000) tratava da realidade
cotidiana de pessoas trans em um cinema para a exibio de filmes
pornogrficos no centro da cidade de Fortaleza. Essa pesquisa deu lugar ao
documentrio Cinema Caradura (VALE, 2009) 3, realizado alguns anos
depois. A produo desse documentrio constituiu um primeiro esforo nesse
trnsito entre o regime das palavras e o regime das imagens. Essa passagem
reforou em mim a compreenso do status modelado e contingente de todas
as descries culturais e de todos aqueles que descrevem culturas; ela
tambm permitiu-me iniciar o processo de reconfigurao da centralidade da
escrita em relao s imagens, tornando possvel a compreenso de que,
para alm de um mero trnsito ou comparao entre regimes semiticos
distintos4, o milagre da cmera pode nos levar para outro mundo.
A segunda pesquisa, O Voo da beleza: experincia trans e migrao
(VALE, 2013), abordou a experincia migratria de pessoas transgnero
brasileiras para a Europa. Ela foi fruto de um trabalho de campo de longa
3 Acessvel em: http://www.youtube.com/watch?v=7FFn8ii6b0M . 4 Referindo-se a uma problemtica comparabilidade entre discurso textual e discurso imagtico, Gonalves (2008, p. 124-127) sugere que as imagens, mesmo que no possam ser vistas como opostas s palavras, devem ser pensadas em sua produtividade e agenciamento
prprios. Nesse sentido, a escrita no pode simplesmente transitar para a imagem, restringindo-se a expor algo j conhecido e tomando como base os processos literrios. O
agenciamento imagtico , antes, da ordem da explorao e da descoberta, encadeia
procedimentos do sonho e do devaneio. As ideias de exposio e da explorao, pensadas em
termos de rituais metodolgicos especficos na construo de um filme, apresentam-se como chaves de leitura privilegiadas para refletir acerca das imbricadas relaes entre imagem e escrita (GONALVES, 2008, p. 124-127).
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durao (primeiro trabalho de campo realizado no perodo de 2000 a 2003,
com visitaes em 2005, 2007, 2009 e a coleta das imagens em 2010)
realizado em trs lugares especficos: na sede da associao Preveno,
Ao, Sade e Trabalho para as Transgneros (PASTT)5, em um prdio
residencial localizado em um subrbio parisiense habitado exclusivamente
por pessoas trans e no Bois de Boulogne, uma tradicional zona de
prostituio da capital francesa, utilizada como local de trabalho por
algumas das pessoas entrevistadas. Essa pesquisa deu lugar ao
documentrio de mesmo nome, O Voo da Beleza6, expresso nativa ou
mica utilizada pelas trans para expressar, paradoxalmente, o momento em
que so deportadas da Europa por serem imigrantes ilegais.
Em ambas as pesquisas, a utilizao da cmera ocorreu muito tempo
depois de finalizado o trabalho de campo, em momentos pontuais. A
experincia de realizao de O Voo da Beleza, entretanto, ganhou novos
contornos quando regressei para a Frana no incio de 2013, com o intuito de
realizar um ps-doutorado. Ela deu lugar a uma intensa experimentao
imagtica. Isso significou reconfigurar o processo flmico (uma nova edio e
novos achados), seguindo algumas indicaes da antropologia da restituio
e dos ensinamentos adquiridos nas aulas prticas e tericas do Centro
Granada de Antropologia Visual7. Retomei ento o trabalho de campo com
as trans que haviam participado do filme, agora com a uma Canon XA20 em
5 O PASTT uma associao franco-brasileira fundada e dirigida por Camille Cabral,
transexual e mdica paraibana que reside em Paris desde a dcada de 80. O PASTT possui
um micro-nibus para realizao das noitadas de preveno. 6 Acessvel em: http://www.youtube.com/watch?v=ZgVNsRPhfPo . 7 Durante a realizao de meu ps-doutorado na Frana, em 2013, tive a oportunidade de
me deslocar para a Inglaterra e realizar o mdulo intensivo do curso Filmmaking for
Fieldwork, realizado pelo Centro Granada e Antropologia Visual, da Universidade de
Manchester. Esse curso, idealizado e ministrado pela equipe de Paul Henley, abriu vrias
vias de reflexo sobre a esttica do filme e seus desdobramentos ticos e metodolgicos. A
orientao do Centro Granada mescla a epistemologia relativa ao cinema observacional de
Paul Henley e David MacDougall e a provocao jocosa ao Cinema Verit de Jean Rouch.
Guiada pela busca de um equilbrio entre o regime das palavras e o regime das imagens, tal orientao aposta na possibilidade de que o antroplogo venha a apreender, simtrica e
horizontalmente, a viso de mundo de seus interlocutores por meio de um trabalho de
cmera suave, paciente e examinador. Nessa experincia, tanto a cronologia dos eventos,
quanto intensidade e qualidade das relaes entre antroplogos e interlocutores, pautadas
pela experincia do vivido, devem compor a narrativa editorial.
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Tessituras
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mos. Coletei um novo material a partir de uma experincia compartilhada
de recepo e apropriao de O Voo da Beleza, em sesses de visionamento
individual e coletivo do filme e de alguns rushes do material que estava
coletando para um novo documentrio, Dom e Beleza, ainda em andamento.
Se, nas experincias preliminares com as imagens, o milagre da
cmera, ainda encontrava-se marcado pelo encantamento apressado em
relao potncia, sutileza, e originalidade das imagens em comparao
com as palavras, em Dom e Beleza, a compreenso dessa especificidade da
imagem passou a operar de forma mais consistente. Lembro aqui algumas
palavras de Francis Flaherty, parceira e colaboradora de Robert Flaherty
que, em uma prosa potica e profunda, oferece indicaes para pensar o
sentido dessa relao entre as palavras e as imagens. Falando sobre os
filmes realizados por ela e seu marido, ela dizia:
....era todo um processo puramente visual que no tinha nada
a ver com palavras, estava alm de qualquer palavra. O olhar
rpido e as palavras so lentas. O olhar imediato e as
palavras so mediadas. Olhar completo e as as palavras so
divididas. Essas duas coisas, palavra e olhar, tm ritmos
diferentes e pertencem a mundos diferentes. E o milagre da
cmera que ela pode nos levar para fora do mundo verbal,
para outro mundo. Fora do mundo dos muitos sentidos, para o mundo de um nico sentido. Fora de um mundo no qual nos
complicamos, embaralhamos e foramos as palavras, para um
mundo mais claro, calmo e completo, onde a alma faz sua
morada e descansa. A poesia sabe melhor sobre isso, o que
essa barreira entre esses dois mundos que se busca superar e
que no pode ser superada apenas por palavras (FLAHERTY,
1960, apud GONALVES, 2008, p. 37).
Descobri a posteriori o quo prejudicial a supervalorizao da escrita
havia sido para a realizao dos filmes Cinema Caradura e O Voo da Beleza.
Mas, como lembrou Claudine de France (1998, p. 315), no se apagam em
um dia dois mil anos de supremacia de uma economia da expresso
fundamentada na unidade indissocivel entre observao direta e escrita8.
8 Claudine de France destaca dois rituais metodolgicos que marcam a histria do filme etnogrfico. Um deles consiste em utilizar o filme como meio de exposio de resultados
obtidos com a ajuda de recursos extracinematogrficos, como a observao direta e dados
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Tessituras
VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.
Em Dom e Beleza, no entanto, o uso da cmera esteve presente desde o
incio do trabalho de campo, de forma orgnica, interessada, ldica e, por
vezes, atrapalhada. A escolha de seu ttulo, especialmente no que tange ao
dom ou ddiva, indica o empenho em pensar a produo imagtica em
antropologia como uma espcie de arena de dons e contra-dons audiovisuais,
onde os efeitos de liberdade e de misria do processo migratrio e das
experincias trans, apresentados em o Voo da Beleza, pudessem ser
circunscritos a partir dos discursos de acompanhamento dessas imagens,
devidamente restitudas e dialogicamente vivenciadas.
A ideia da restituio demarca assim uma distino qualitativa em
relao a termos como difuso", propagao" ou transmisso", no que se
refere circulao do conhecimento no processo de pesquisa antropolgica
(SCHURMANS, CHARMILLOT e DAYER, 2014). Restituio sinaliza aqui
para a revitalizao da experincia colaborativa de pesquisa, prpria do
filme exploratrio, sugerindo a renovao de um questionamento tico,
epistemolgico e prtico no que tange ao conhecimento gerado pelo trabalho
de campo e ao uso que dele feito, tanto pelo/a antroplogo/a, quanto por
seus/suas interlocutores/as. Ao contrrio de uma perspectiva vertical e
hierrquica do conhecimento, a ideia de restituio aposta na
horizontalidade das relaes, no no sentido de uma idealizao do
interlocutor/a "em vias de se tornar antroplogo/a", mas no sentido do
reconhecimento do valor de uma produo coletiva e compartilhada de
saberes.
Nesses processos de restituio, a utilizao das imagens no
prescinde de uma reflexo crtica acerca do lugar que ocupa aquele que se
coletados na entrevista oral. Tal ritual d lugar ao que denomina de filme de exposio, no qual o valor atribudo pesquisa previa superestimado. Mesmo reconhecendo que tais
filmes possam ter mritos incontestveis, seus inconvenientes so tributrios da longa e pujante hegemonia do binmio formado pela observao direta (imediata e no-
instrumentalizada pela cmera) e pela escrita. Sua economia de expresso baseia-se muito mais no reconhecimento e na exposio de algo j conhecido do que na descoberta sui
generis ou desvelamento do real com a cmera. Essas ltimas caractersticas seriam
prprias do segundo tipo de ritual metodolgico destacado pela autora, cujo resultado seria
o filme de explorao (DE FRANCE, 1998, p. 305-310).
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Tessituras
VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.
apropria do material flmico. MacDougall (1998) prope uma viso
diferenciada em relao aos realizadores que enxergam a produo
audiovisual como uma maneira de retirar algo das pessoas concernidas no
processo flmico, como fonte de controle e poder. Mesmo que tal perspectiva
de extrao do conhecimento no esteja ausente de sua proposta de
abordagem do processo de filmagem, ele entende tal experincia como
proposio, aprendizado, provocao e partilha: como horizontalidade
dialgica que opera no registro da interlocuo e no da passividade do outro
tomado como mero informante. Essa atitude, reforada pela ideia de que
nesse processo est implcito um tipo de aprendizado que habilita o
antroplogo a ser ensinado pelas circunstncias enquanto partilha delas,
distingue, por exemplo, a produo de um filme etnogrfico do documentrio
(TORRESAN, 2014).
Uma vez que as imagens no existem como mera ilustrao de um
roteiro previamente estabelecido e controlvel, o etngrafo visual aposta na
construo de virtualidades estticas que, por serem construdas
coletivamente, incorporam a eficcia imagtica do dilogo, cultivado na
horizontalidade e simetria das relaes culturais e afetivas a partir de onde
tece as figuraes do vivido. Em Significado e Ser, MacDougall, diz:
Ao fazer filmes, estamos constantemente avanando nossas
prprias ideias sobre um mundo cuja existncia no deve
nada a ns. Em filmes de fico, bem como em filmes de no
fico, usamos materiais encontrados nesse mundo. Ns os modelamos em redes de significao, mas dentro dessas
redes somos pegos por relances de existncia mais
inesperados e poderosos do que qualquer coisa que
pudssemos criar. (...) Um bom filme reflete o jogo entre o
significado e o ser, e seus significados levam em conta a
autonomia do ser (Macdougall, 2009, p. 65).
Falar em autonomia do ser no significa romantizar as experincias
de campo ou transformar a figurao antropolgica em um panfleto. Ao
pensar a textualizao antropolgica ou a representao flmica, deve-se
levar em conta que estamos lidando com textos e imagens especialmente
negociadas em processos de restituio que implicam, segundo Marcus
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Tessituras
VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.
(2009), em colaboraes comprometidas e entendimentos de imaginrios
em suas consequncias. Talvez Geertz (2001) tenha razo ao dizer que
numa pesquisa de campo uma fico (no uma falsidade) o fato de que
ns e eles/as somos membros de uma mesma comunidade moral, mas tal
fato no impede, pelo menos no deveria impedir, a possibilidade de que
pudssemos estabelecer um dilogo com em vez de um discurso sobre
suas experincias e modos de vida. Essa ideia de que no fazemos parte da
mesma comunidade moral e da ironia que suscita, diz Geertz,
est no corao da pesquisa antropolgica de campo bem
sucedida e reconhecer a tenso moral e a ambiguidade tica
implcitas no encontro antroplogo/informante, e ainda assim
ser capaz de dissip-la atravs das prprias aes e atitudes,
o que tal encontro exige de ambas as partes para ser
autntico e efetivamente ocorrer (GEERTZ, 2001, p. 43).
E descobrir isso, continua Geertz,
descobrir tambm algo muito complicado e no
inteiramente claro sobre a natureza da sinceridade e da
insinceridade, da autenticidade e da hipocrisia, da
honestidade e da auto-iluso. O trabalho de campo uma
experincia completa. O difcil decidir o que foi aprendido
(GEERTZ, 2001, p. 43).
Nesse sentido, o trabalho de campo e o processo flmico - pensados
fundamentalmente como processo de aprendizagens recprocas -, no
existem como abstraes, no existem sem sujeitos concretos em situaes
sociais especficas, com os quais compartilhamos experincias, identificaes
e vivncias. O fato de que o uso de uma cmera no trabalho de campo deve
ser pensado como catalizador de relaes e no como um mero instrumento
de coleta de material emprico, implica tambm que sua introduo no
contexto de uma pesquisa dependente de uma srie de fatores e no pode
se dar de forma irrefletida. O resultado desse trabalho no apenas
intensifica a dimenso tica das experincias de pesquisa - na medida
tambm em que o registro visual possui um alcance mais amplo do que o
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Tessituras
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registro escrito -, mas atua como mediao privilegiada no conhecimento da
experincia subjetiva de nossos/nossas interlocutores/as.
Infelizmente, ou felizmente, no h prescries ou frmulas para a
forma com a qual a cmera poder proporcionar o tipo de aprendizado
exigido pela prtica da antropologia visual. Cada contexto de pesquisa
tributrio de relaes de poder e dominao que lhe prprio, dialoga com
as instncias da lei e da ordenao social e supe a habilidade do
pesquisador em fazer valer a identificao transcultural que o processo de
empatia supe; ao mesmo tempo em que exige dele ou dela uma constante
vigilncia crtica em torno do que ser figurado nas imagens. O ideal que
os interlocutores participem em todos os momentos da produo do trabalho,
opinando sobre a representao que pretendem dar de si prprios.
Entretanto, dependendo do contexto da pesquisa, essa participao no
possvel, nem desejada. Foi o que aconteceu, por exemplo, no momento da
realizao de Cinema Caradura, documentrio pensado a partir da
observao etnogrfica vivenciada em uma sala de cinema para a exibio
de filmes pornogrficos no centro da cidade de Fortaleza.
No escurinho do cinema...
Ao realizar uma etnografia de prticas sexuais no interior de um
cinquentenrio cinema local, o Cine Jangada, busquei salientar as condies
de existncia e constituio daquele espao sociocultural, enfatizando a
interao cotidiana com os espectadores-atores daquele pblico ou daquela
plateia que, heterognea em grupos, prticas e motivaes, se identificava
por uma conjuno especfica comum que se referia, num primeiro momento,
recepo de um produto feito para excitar, num espao simultaneamente
legtimo e liminar. Essa conjuno, em parte, identificava esses
espectadores que, no geral, estavam ali para tomar parte em um ritual
especfico, no escuro, no anonimato, no silncio, na efemeridade ou
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impessoalidade de um encontro episdico. Obviamente que em tal contexto,
como se ver na descrio a seguir9, a utilizao de uma cmera seria
invivel e suspeita. Na poca dessa pesquisa, meu interesse no havia
enveredado pela antropologia visual e a possibilidade de me utilizar do texto
escrito para a elaborao de um roteiro de documentrio s surgiria alguns
anos depois.
A socialidade daquele espao se fazia jogo social10, no sentido de que
uma infinidade de atos constitutivos de rituais j estavam postos em
estado de possibilidades e exigncias objetivas. Qualquer um que entrasse
naquele cinema saberia que s usuais exigncias de compartilhar o
escurinho de uma sala de exibio, somar-se-iam outras. Essas exigncias,
as coaes que lhes eram correlatas e os registros categoriais e
classificatrios que tinham lugar ali dentro impunham-se queles que, por
terem o sentido do jogo daquela plateia, estavam preparados para receb-
las e realiz-las. O jogo metfora que se utiliza para dizer que o mundo
social composto de lutas macro e micropolticas no cinema, guardava
suas particularidades: a entrada no Jangada envolvia um tipo de clculo e
planejamento, uma noo, culturalmente situada de riscos e perdas; aquela
plateia se identificava por uma conjuno comum, mas ao mesmo tempo no
queria que isso fosse explicitamente partilhado, pois estaria sujeito luz do
dia, depois do escurinho urbano do Jangada.
9 Para escrever sobre as experincias de pesquisa envolvidas na presente reflexo, lancei
mo de trechos j escritos, tanto em No Escurinho do Cinema: cenas de um pblico
implcito (VALE, 2000), quanto em O Voo da Beleza: experincia trans e migrao (VALE,
2013). Eles foram, em certa medida, re-inscritos em funo da problemtica proposta neste
artigo. 10 A noo de jogo social pensada aqui a partir da sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu. O jogo ou o sentido do jogo, nesse autor, supe uma teoria da ao social segundo a qual os agentes no so transformados em simples epifenmenos da estrutura.
A ao, diz Bourdieu, no a simples execuo de uma regra, a obedincia a uma regra. Os agentes sociais, tanto nas sociedades arcaicas como nas nossas, no so autmatos
regulados como relgios, segundo leis mecnicas que lhes escapam. Nos jogos mais
complexos as trocas matrimoniais, por exemplo, ou as prticas rituais , eles investem os princpios incorporados de um habitus gerador: esse sistema de disposies adquiridas pela
experincia, logo variveis segundo o lugar e o momento. Esse sentido do jogo o que permite gerar uma infinidade de lances adaptados infinidade de situaes possveis, que nenhuma regra, por mais complexa que seja, pode prever (BOURDIEU, 1990, p. 21).
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Naquela sala de exibio, a comunho das imagens - dado o efeito de
realidade que proporcionava a seus espectadores -, remetia possibilidade
de comung-las interativamente, ou ento acompanhar seus efeitos na
plateia. No Jangada, o argumento de uma troca econmica desinteressada,
instrumentalmente legtima, dissimulava o leque sem fim de possibilidades
que os atores sociais esperavam encontrar ao entrar no cinema, e o intervalo
temporal entre a compra do ingresso e o recebimento do produto veiculado
pela tela inclua outras expectativas, ancoradas na ambiguidade que a
entrada naquele cinema suscitava: um cinema socialmente classificado de
cinema de viados, mas que s exibia filmes hetero-direcionados.
No claro-escuro do Jangada, a socialidade inter-ditada nos corpos se
vivenciava na possibilidade de pr em prtica tcnicas corporais tidas
como indesejveis do ponto de vista moral. O claro da tela,
institucionalmente assegurado pela rede de produo de bens e servios do
mercado sexual, iluminava a difusa, espetacular e subterrnea comunho
das imagens na plateia. Tudo se passava como se dois espetculos
acontecessem simultaneamente: cenas de um pblico implcito fervilhavam
diante da explicitude das cenas na tela. No estar juntos dos espectadores
em questo, o mistrio a ser decifrado estava inscrito na carne; na carne que
triunfa no carnaval, transposio da ambgua cultura sexual brasileira,
onde entre quatro paredes tudo possvel. Na plateia, homos, heteros,
bis e trans numa grande nebulosa de gneros, onde tudo, ou quase tudo
podia acontecer.
No cinema, o sentimento da transgresso que revelava o prazer estava
intrinsecamente relacionado proibio e exposio do obsceno (aquilo que
est fora de cena), tanto na tela como na plateia, e operava como uma
celebrao do prazer que, preso nas carapuas da interdio, se libertava na
forma da transgresso. No por mero acaso que a entrada no cinema
envolvia a adoo de um pseudnimo, um nome falso, como garantia de
sigilo. Anonimato, proibio e transgresso constituam os pilares da
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socialidade que tinha lugar naquela sala de exibio, guiados pela
iconografia daquilo que usualmente no se apresenta na vida cotidiana.
Associada aos gestos, aliava-se a ateno especial em relao posio
e movimentao dos espectadores na sala de exibio. Na medida em que o
fluxo narrativo do porn intensificava seus nmeros, a mobilidade no
interior da sala aumentava. A percepo do espao se voltava ento para a
busca do encontro, para a efetivao das demandas suscitadas a partir das
imagens e do estar juntos no cinema. Nesse sentido, estar sentado nas
primeiras filas, circulando nas laterais das cadeiras, ficar em p no final da
sala, estar no ptio ou no banheiro era subjetivamente decodificado em
termos de prticas e possibilidades.
O cinema tambm era palco e camarim das travestis (na poca elas
se auto-definiam assim). A mudana de nome, usual entre os outros
espectadores, agora no estava articulada apenas ao sigilo e ao anonimato,
mas a uma mudana na aparncia e no prprio corpo. Nessas espectadoras-
atrizes, o cinema encontrava um espetculo parte. Parodiando a
feminilidade ou reinventando o feminino, algumas travestis faziam vida
(prostituio) e, em funo da concorrncia ou da falta de clientes,
reclamavam quando tinha muita bicha na plateia. Na hiper-realidade de
suas performances, algumas diziam-se mais mulheres do que as mulheres,
melhores que as atrizes. Numa invocao simultaneamente icnica e
irnica, apaixonadas por seduzir a partir dos signos que ritualizavam, elas
transcodificavam os jogos do sexo num jogo total, gestual, sensual, segundo
o qual, naquele espao, tudo era maquiagem, teatro e seduo.
Ali elas encontraram um espao, no s para a prostituio, mas
tambm um espao de sociabilidade onde, mesmo com a concorrncia e
conflitos inerentes atividade que desenvolviam, podiam desfrutar, na
legitimidade de uma transgresso organizada (BATAILLE, 1987), laos de
amizade e solidariedade. Contrastivamente, em relao a uma plateia
silenciosa e submetida ao anonimato, as travestis se distinguiam ao lanar
mo no s da fala, mas do riso, da brincadeira, da jocosidade. Se, no
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cinema, o sexo era o mana, e os signos do sexo, o capital simblico em torno
do qual giravam as codificaes daquele espao-territrio, as travestis,
melhor do que ningum, sabiam lanar mo de seu corpo para
transubstancializar o sexo em signos, transformando, como elas diziam, o
cinema em teatro, camarim, terreiro, casa, rua, alpendre.
Com as travestis, a sala realizava assim o paradoxo de socialidade e
anonimato, fantasia e realidade. A sala virava alegoria da travesti, daquela
que aparentemente se faz passar por outra, que joga com a dubiedade de
papis, interstcio, mutao. E como alegoria que se caracteriza
justamente por ser uma forma figurada de um pensamento, uma coisa
representando de fato outra, uma metfora ou, ainda, um certo elemento da
narrativa que se remete simbolicamente ao conjunto no qual est inserido ,
a noo de plateia modificava-se, porque o tela (espectador) ali era tambm
protagonista e fazia sua entrada em cena.
O escuro ali era, lembrando Barthes (1980), a cor de um erotismo
difuso e annimo. Mas seria esse escuro e essa transgresso o monoplio de
pessoas homo-direcionadas? Qual o sentido de figurar aquela experincia em
um documentrio e quais seriam os ganhos disso para uma experincia
poltica do sexual? No seria um investimento fadado ao exotismo voyeur de
um filme jornalstico? Quando me dispus a filmar o Escurinho do Cinema,
cheguei a sondar dois ou trs frequentadores usuais da sala para uma
entrevista, mas nunca acreditei que tal empreitada fosse possvel. O
anonimato, o silncio, a impessoalidade e uma socialidade do tipo o corpo
contra a palavra eram as reivindicaes mais presentes ali dentro. Tratava-
se de um escuro sobre-codificado, e, de maneira geral, as pessoas que
frequentavam o cinema eram patologizadas pelo mundo heteronormativo
(BUTLER, 2004) como pervertidas ou doentes sexuais. Tudo se passava
como se heterossexuais jamais tivessem utilizado o escurinho do cinema em
suas prticas erticas e transgressivas. E no entanto, esse jogo ertico do
proibido e do permitido em uma sala escura tinha sua gnese histrica no
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momento em que apareceu, no cenrio da cidade, esse novo espao
sociocultural especfico denominado sala de exibio11.
Conforme j foi destacado, quando pensei na realizao de um filme
sobre a experincia no cinema, a pesquisa de campo j havia sido concluda.
Eu me valia do trabalho escrito para selecionar os aspectos que considerava
mais significativos daquela experincia. O filme era guiado pela palavra:
partia dos achados de campo que eu e Simone Lima, que dirigiu o filme
comigo, encontrvamos no texto. A dimenso diacrnica do trabalho,
vinculada a uma pesquisa histrica em arquivos de jornais sobre os rituais
do cinema, tomou a dianteira. A dimenso propriamente sincrnica da
pesquisa, textualizada a partir de quase dois anos de observao
observadora12 dos rituais cotidianos e das prticas sexuais no interior da
sala, no poderia ser filmada por duas razes muito simples: primeiramente
pela legtima reivindicao de anonimato em torno daquela socialidade e,
11 Quando surgiram os filmes tidos como imorais, ainda na segunda dcada do sculo passado, fascinao e medo pairavam no ar: naquele espao annimo, povoado, numeroso e
aglomerado, aquelas imagens poderiam corromper a mais perfeita ndole familiar e desembocar na constituio de verdadeiras escolas de perverso social. Em 1916, quando efetivamente tem incio a polmica em torno de filmes considerados indecentes ou imorais, os jornais locais davam vozes s crticas da Igreja e das distintas famlias fortalezenses, contra esses abusos do cinema. Em uma matria publicada pelo jornal Correio do Cear, editada em 30 de maio de 1916, esse jornal chamava a ateno do Grupo
Severiano Ribeiro para as programaes de suas salas, reforando as crticas que no dia
anterior haviam sido feitas por outro jornal, tambm local, acerca das exhibies indignas e das fitas altamente Immoraes, assim se posicionando: Secundamos o brado dos nossos collegas do Dirio do Estado que ainda hontem manifestaram o desagrado da famlia de Fortaleza, ante o procedimento daquela casa [Cine Polytheama], que se est transformando
numa verdadeira escola de perverso social (Jornal Correio do Cear, Fortaleza, 30.5.16). 12 Lembro que, na poca em que foi realizada essa pesquisa, lancei mo desse conceito para
demarcar minha opo metodolgica pela no participao nas prticas sexuais que
aconteciam no interior do cinema. O conceito de observao observadora proposto por Massimo Canevacci, segundo o qual a observao no mais seria participante da ao, mas meta-observao, dizia ento, tem o mrito de acentuar a reflexividade do
conhecimento sobre si mesmo, abrindo espao para se pensar, as interdies que o
pesquisador deve se colocar para viabilizar uma pesquisa. Chamando a ateno para um
tipo de observao que observa a si prprio como sujeito que observa o contexto, Canevacci sugere que para estabelecer os prprios fundamentos do mtodo, o pesquisador realiza em si prprio um doloroso esforo de estranhamento: olhar obliquamente o superconhecido [...]
com a mesma ingenuidade com que se observa um panorama extico, com a mesma vontade
de imerso nessa sedutora diferena. Mas tambm com a mesma seriedade com que se
contempla uma obra de arte. Somente depois desta operao dupla seja no sentido numrico como no de ambivalncia (operao metodolgica e tambm psicolgico-
comportamental) ser possvel passar fase mais criativa, a da interpretao, atravessando a opacidade da tela tornando-a transparente (CANEVACCI, 1993, p. 31).
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segundo, porque o cinema j havia fechado suas portas, dando lugar a um
processo de reordenao da geografia social das salas de exibio na cidade
de Fortaleza. No centro da cidade, a pornografia virou destino; as grandes
salas que antes existiam, fecharam suas portas e migraram para os
shopping centers. Esse processo foi o fio condutor de Cinema Caradura.
Como no era possvel realizar o filme com os interlocutores com os
quais eu havia convivido na sala, optamos por entrevistar cinfilos da cidade
que falavam, de maneira jocosa e confortvel, de suas transgresses no
escurinho do cinema. Eu lamentava deixar de fora do filme toda a riqueza
etnogrfica da socialidade do Cine Jangada, especialmente concretizada nas
performances de pessoas trans, que frequentavam cotidianamente o cinema.
Ainda consegui incluir algumas falas de Dediane Souza, uma militante
trans que falava da experincia das travestis no cinema, destacando que
este ltimo, para elas, no era apenas um lugar de prostituio, mas um
lugar seguro de convvio diurno, ou seja, uma convivncia construda como
forma de resposta violncia sofrida por elas.
Assim, ao abordar a realidade do cinema entrevistando respeitveis
cinfilos e historiadores tidos como heterossexuais, ou envolvendo a histria
do Cine Jangada na histria mais ampla das salas de cinema fortalezenses,
com seus rituais e transgresses, imaginei estar contribuindo para uma
equidade nas prticas, sugerindo a despatologizao e a desnaturalizao do
escurinho urbano do Jangada como monoplio de pessoas homo-
direcionadas. Cinema Caradura, como intitulamos o filme, estava longe de
uma antropologia visual compartilhada. As imagens ainda no figuravam
em minhas incurses antropolgicas no sentido da construo de um tipo de
imagem-conhecimento na qual a dimenso intersubjetiva da pesquisa e o
jogo ldico com a cmera atuassem como catalizadores de relaes e como
prtica de engajamento reflexivo radical, no sentido, j referido aqui, de
colaboraes comprometidas ou entendimentos imaginrios em suas
consequncias. Essas questes surgiram de forma mais intensa a partir das
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experimentaes imagticas que tiveram lugar no momento da realizao de
O Voo da Beleza.
O Voo da Beleza: restituio e experincias compartilhadas
Em dezembro de 1999, dois anos depois da pesquisa realizada no
cinema, revi algumas das travestis e transgneros que havia entrevistado. O
contexto era diferente: no se tratava mais da invisibilidade e da
clandestinidade de um cinema porn, mas daquele das mobilizaes de luta
contra a Aids. Nesse novo contexto, algumas mudanas eram notrias.
poca da pesquisa no cinema, por exemplo, ressignificaes como as
travestis e transgnero estavam apenas comeando no Brasil. Tampouco
se falaria em transfobia ou de travestilidade (em oposio a denominao
patologizante de travestismo). Essas mudanas indicavam uma
repolitizao do campo sexual, orientada tanto pelo envolvimento de
travestis, transexuais e pessoas transgnero na agenda LGBTT, quanto pelo
surgimento de novas teorias engajadas na crtica normatizao sexual,
como a Teoria Queer que, desde ento, passou a figurar na literatura sobre
gnero e sexualidade do Brasil como um elemento incontornvel de crtica
cultural13.
Em janeiro de 2000, financiado pela Capes, parti para um doutorado
sanduche de dois anos em Paris, vinculado Escola de Altos Estudos em
Cincias Sociais e ao Laboratrio de Antropologia Social. A agenda poltica
do movimento transgnero, tanto aqui, quanto na Europa, lanava louvveis
13 A teoria Queer nasceu em certos meios homossexuais e no falso v-la como o captulo
mais recente da histria gay nos Estados Unidos. Ela tambm responde pelo movimento de
intercmbio e crtica da cincia e da identidade realizado pela ps-modernidade. As
questes que levanta sobre a informao, a legitimidade e a credibilidade das culturas
minoritrias esto longe de se reduzirem s sublimaes intelectuais de uma orientao
sexual particular. Tampouco trata-se de eloquentes zombarias e celebraes inconsequentes de uma teoria comprometida com a cansativa construo de slogans. Algumas ferramentas conceituais que a teoria Queer oferece indagam sobre as relaes
entre a cultura majoritria (cientificista, falocntrica e heterocentrada) e sobre a
possibilidade e o valor dos processos de subjetivao comunitrios.
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questionamentos aos trabalhos acadmicos, saudava o surgimento de
pessoas trans como intelectuais orgnicas e lideranas polticas, e
recusava a abordagem de sua experincia como algo restrito prostituio.
Do ponto de vista terico, a experincia trans passou a figurar como
experincia privilegiada na compreenso da dimenso performativa dos
lugares de gnero, questionando binarismos, como homem e mulher,
masculino e feminino. Tal experincia interpelava, assim, no apenas a
construo naturalizada da sexualidade, mas, pela via da crtica noo de
normatividade, questionava tambm os movimentos feminista e
homossexual.
Para travestis e transgneros, a desconstruo dos sexos no
constitui apenas uma questo terica, mas uma prtica concreta. Elas
ressignificam a representao social da feminilidade e do corpo feminino em
signos que so por elas apropriados e dos quais se servem em suas prticas
sociais. Estas prticas convidam a repensar o processo de construo social
dos sexos, bem como os fundamentos sociais da produo individual de uma
aparncia e de uma identidade de sexo, de gnero ou performativa. A
experincia de travestis e transgneros possibilitava agora mostrar, de uma
maneira geral, a importncia do corpo na formao das identidades, ou
melhor, na constituio de alteridades e territorialidades dissidentes.
O livro O Voo da Beleza: experincia trans e migrao (VALE, 2013),
resultado de minha pesquisa no doutorado, abordou aspectos constitutivos
da experincia transgnero, pensados a partir dos efeitos de liberdade e
misria dos processos migratrios. O sentido e algumas das significaes
desse deslocamento, sua importncia para as pessoas trans e o trabalho
sexual so analisados a partir de um trabalho de campo de longa durao. Se
ultrapassar limites constitui o ethos mesmo da experincia travesti e
transgnero, a partir daquilo que elas denominam de processo de
feminilidade, a Europa ensejava o coroamento de uma vida vivida em
fronteiras e ultrapassagens. Nesses deslocamentos, descer em Paris se
apresentava como sonho dourado de pessoas que cedo conheceram a
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injria, a violncia domstica e encontraram, na prestao de servios
sexuais, uma fonte de renda. Os processos migratrios, a conquista de novos
territrios e o intercmbio de informaes e experincias so constitutivos
dessa efervescncia de significados relativos visibilidade transgnero.
Hedonistas ou no, as reverberaes do assim chamado voo da beleza so
mais intensas do que podem parecer.
A experincia travesti e transgnero, vivenciada como reinveno de si
e como construo corporal e existencial dissidente em relao s normas de
gnero, constitui um lugar privilegiado para a compreenso das experincias
de contato ou contrastivas. Se o imigrante, originalmente, atopos (SAYAD,
1998), sem lugar, desclassificado, inclassificvel, ento travestis,
transexuais e transgneros acumulam como que homologias de no-
lugares. O estigma imigrante amalgama com outras posies e disposies
sociais. Tudo se passa como se houvesse um trao geral, uma espcie de
estrutura comum de inferiorizao, que demanda a todo momento - mas
especialmente nos momentos de conflito - pela memria do sentido do
posicionamento que o estrangeiro ocupa em territrio alheio. Em Paris, por
exemplo, no incomum, em um bate-boca no supermercado, na farmcia,
nas caladas, que uma interpelao do tipo volte para a sua terra (rentrez
chez vous) ecoe e mobilize os significados do que seja pertencimento,
Estado, Nao.
Alm da referncia queer neste trabalho, optei tambm por
textualizar14 o material coletado a partir da categoria de experincia, tal
como foi pensada por Victor Turner (1987). Falar de travestis e transgneros
referindo-se sempre a esse conceito nadar na contra corrente da ortodoxia
estrutural-funcional, com seus modelos fechados e estticos de sistemas
14 A textualizao pensada aqui como uma pr-condio para a interpretao. Trata-se, segundo Clifford, de um processo pelo qual o comportamento, as tradies, as aes rituais etc., no escritas, vm a ser fixadas (como algo com um significado), autonomizadas (separadas por uma especfica inteno autoral), tornadas relevantes (para um mundo contextual) e abertas (para a interpretao por um pblico competente). O comportamento assim transformado se torna suscetvel leitura, um processo que no depende mais de interlocuo de um sujeito presente (CLIFFORD, 1998, p. 197).
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sociais. E ao falar de experincia, no fazia referncia apenas cognio ou
aos dados do sentido (sense data), mas tambm aos sentimentos e
expectativas. Pensava a experincia, no apenas como o sumo diludo da
razo, mas como tudo o que, do vivido, mostra-se tambm em imagens e
impresses, reminiscncias e atualizaes. Assim, a realidade primeira a
experincia vivida como pensamento e desejo, palavra e imagem. Levar em
considerao os sentimentos e as expectativas em um trabalho sobre vidas
travestis e transgneros em circunstncias extremas que envolvem a
migrao, o no reconhecimento de seus nomes sociais e, em muitos casos, a
Aids, parecia-me incontornvel. Mas como se inserir nessa realidade com
uma cmera? Como fazer-se credvel diante de uma realidade com tantos
conflitos? Como transformar essa realidade de pesquisa, com tantas
demandas emergenciais, em um projeto colaborativo?
Durante o trabalho de campo, a exemplo daquele realizado na sala de
cinema, a utilizao da cmera foi restringida pela resistncia que algumas
tinham em ser filmadas. Apesar da pesquisa no se limitar atividade
profissional das pessoas trans, abordando as condies de moradia na
Europa, o trabalho nas associaes e as relaes de solidariedade existentes
entre elas, uma parte considervel do trabalho foi realizada no Bois, onde
pessoas trans do mundo inteiro lanavam mo do trabalho sexual como meio
de vida na Europa. Minha presena no nibus da associao PASTT com
uma cmera, nas noitadas de preveno, especialmente em funo da
situao irregular de algumas dessas imigrantes, levantava suspeitas e
havia sido gentilmente interditada pela presidente da associao.
Concentrei meus esforos na etnografia da experincia trans e abandonei
temporariamente o projeto de realizao desse novo documentrio. Defendi
a tese em 2005, mas retornei vrias vezes Paris, sempre em contato com
minhas interlocutoras. A possibilidade de voltar para a coleta das imagens
deu-se em 2010, quando consegui um financiamento e retornei com uma
equipe de dois cmeras e um produtor para realizar o Voo da Beleza.
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A clivagem entre pessoas transgneros com papel e sem papel foi a
ideia condutora na realizao desse documentrio. Os dados coletados no
trabalho de campo sinalizavam para importncia que era atribuda ao fato
de ter os papis, inclusive como possibilidade de no realizao do temido
voo da beleza. Para a elaborao de um esboo de roteiro, parti de uma
reflexo de Marisa Peirano (2009) sobre os documentos de identidade. Tais
documentos consistem naquilo que Latour (2007 apud PEIRANO, 2009)
denomina de Plug-ins. Esses ltimos participam de uma dinmica que se
traduz em reconhecimento e identificao:
reconhecemos uma face familiar em um grupo de pessoas por
sua postura, gestos e pequenos detalhes. Identificar algum
que nunca vimos antes um procedimento diferente: temos
que comparar a descrio de traos individuais presentes em
um documento, por exemplo, e a pessoa em questo
(LATOUR, 2007, apud PEIRANO, 2009, p. 53-80).
Os Plug-ins so subjetificadores, personalizadores ou
individualizadores e fazem parte de cosmologias. So, como destacou
Peirano (PEIRANO, 2009, p. 76) esses amuletos cobiados por uns, objetos
restritivos e indesejveis para outros, nossos duplos que no podemos perder
de vista. Eles tm sentido e vida prpria. Foi essa preciosa pista que abriu
a narrativa flmica do Voo da Beleza. Naquele contexto, os documentos de
identidade eram duplamente reivindicados. Primeiramente, pelo
reconhecimento, por parte das trans, de seus nomes sociais e, em segundo
lugar, como visto de permanncia no territrio francs.
Coletamos o material em 22 dias. Os contatos haviam sido feitos
previamente, por telefone ou e-mail. Olhando para esse processo
retrospectivamente, considero que, se por um lado, a grande familiaridade
que eu nutria com algumas de minhas interlocutoras durante a realizao
da etnografia possibilitara-me um acesso quase irrestrito s suas
experincias, por outro, o fato de aterrissar em Paris para a realizao de
um documentrio com uma equipe de pessoas que elas desconheciam,
poderia ter colocado srios riscos sua efetivao. Nos anos que
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Tessituras
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antecederam a coleta das imagens, em 2005, 2007, 2009, eu havia restitudo
para elas trechos dos roteiros sexuais15 de suas vidas, narrados na tese.
Havia utilizado, como de praxe, nomes fictcios, e a recepo desse
material contribua tanto para a anlise das condies de produo dos
dados etnogrficos, quanto para a prpria construo da problemtica da
pesquisa. Essas situaes de restituio tinham (e tm) o sentido de instituir
um jogo tico e intelectual imperativo na pesquisa colaborativa, abrindo
espao para o exerccio ao direito de vigilncia sobre as representaes que
so produzidas sobre elas no discurso cientifico. No horizonte de uma
pesquisa participativa, no me interessava t-las como meras informantes,
mas como parceiras epistmicas (DE LARGY HEALY, 2011) atuando
diretamente na produo do corpus cientfico que diz respeito as suas
experincias de vida.
Eu teria evitado alguns problemas se tivesse tido a oportunidade de
fazer um trabalho de restituio com as imagens de O Voo da Beleza
anlogo ao que fiz para ao trabalho escrito. Como a coleta das mais de 30
horas de imagens para este filme foi feita de forma pontual, no perodo de
trs semanas, no havia tempo para visualizar o material com elas e
tampouco elas poderiam estar presentes no momento da edio do filme,
pois, uma vez realizada a coleta, eu retornaria para o Brasil para finalizar a
edio. Se o filme contava com o trabalho prvio de restituio realizado
para escrita da tese, no trabalho com as imagens, o mesmo s foi acontecer
posteriormente, com o filme editado, em meio realizao de um novo filme,
durante o perodo do ps-doutorado. Mas efetivamente aquele trabalho de
15 Heilborn destaca que valores e prticas sociais modelam, orientam e esculpem desejos e
modos de viver a sexualidade, dando origem a carreiras sexuais/amorosas ou roteiros sexuais. Para Heilborn, essa ferramenta conceitual tem o mrito de poder cotejar as trajetrias e cenrios sexuais distintos, seja pelo prisma de classe, seja pelo de gnero. A
autora ressalta que a sucesso de experincias, as datas e circunstncias em que ocorrem, os intervalos entre elas e seus desdobramentos em suma, o desenrolar dos eventos traduzem-se em roteiros sexuais, delineados sobre um pano de fundo onde se combinam as
diferentes marcas sociais que delimitam o campo de possibilidades dos indivduos: origem e
classe social, histria familiar, etapa do ciclo de vida em que se encontram, as relaes de
gnero institudas no universo em que habitam. Todos esses elementos fornecem as balizas
para o processo de modelao da sujetividade, entendido como as circunstncias sociais e
biogrficas que ensejam o sentido do eu (HEILBORN, 1999, p. 40-41).
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restituio realizado na tese foi fundamental, especialmente no momento
das entrevistas filmadas. A familiaridade com suas experincias e a empatia
que eu gozava entre o grupo, me possibilitava abordar questes j
conhecidas, conduzindo os dilogos a partir de alguns eixos sobre os quais eu
j havia textualizado e discutido com elas: experincia no Brasil e migrao,
violncia domstica e estigmatizaces sociais, modificaes e performances
corporais, militncia poltica e engajamento na associao, trabalho sexual e
perspectivas de retorno para o Brasil, dentre outros. Como se pode observar,
uma atitude metodolgica de exposio, baseado no registro escrito, ainda
predominava em minha maneira de pensar a antropologia visual.
Finalizei a edio do filme em 2012 e parti novamente para Paris
para realizar o lanamento de O Voo da Beleza. Mostrei o filme em Paris na
Maison du Brsil, e depois em Toulouse e Estrasburgo. A recepo do filme,
em termos gerais, foi boa, mas, como toda recepo, contextual e sujeita s
conjunturas polticas relativas ao contedo filmado. O momento era
particularmente denso no que tange imigrao, prostituio e Aids. A
onda anti-migratria, em determinados momentos mascarada de bom-
mocismo contra o proxenetismo e o trfico de seres humanos, aumentava.
Se muitas trans saudaram o filme por ter mostrado uma viso positiva e
engajada da experincia transgnero, narrando a vida como ela , outras
(poucas) o criticaram por ter abordado aspectos que julgavam
inapropriados, como a cafetinagem entre aquelas que vivem do trabalho
sexual e uma certa nfase nesse ltimo. As imagens entretanto,
possibilitaram uma aproximao e uma apreciao de meu trabalho que
jamais teria caso tivesse ficado apenas na etnografia escrita.
O que significa, ento, para o pesquisador/a engajar-se numa
problematizao da restituio? preciso arcar com o nus de possveis
conflitos de interpretaes que a perspectiva da restituio coloca em cena.
Ela pode indicar uma quebra na empatia ou abalar a crena de uma
experincia mimtica e de identificao recproca (como aconteceu quando se
tratava apenas do trabalho da tese de doutorado). Ela pode ainda
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desencadear um processo segundo o qual a autonomia necessria para a
construo da problemtica da pesquisa fica hipotecada pelos humores e
rumores da discordncia ou dos conflitos de interesses, como foi o caso do
lanamento de O Voo da Beleza, quando uma dissidncia na Associao
PASTT influenciou algumas leituras negativas do filme. O jogo que a
restituio estabelece indica um lugar preciso: ela implica em relaes de
poder e dominao pensadas em termos macro e microscpicos, cuja
capilaridade se estende por todo o tecido social. Nos momentos de embate
em torno da restituio, a reivindicao pela representao legtima e pelo
uso legtimo dessa representao concentra, condensa, atualiza e revela
essas lgicas polticas. De uma maneira ou de outra, a restituio algo
esperado pelos/as interlocutores/as da pesquisa. Para Zonabend,
a restituio participa de todo o processo de pesquisa, desde
seu comeo. De alguma maneira ela faz parte do contrato
implcito entre observador e observado () e, em suma, garante tanto a veracidade dos propsitos como a fidelidade
de sua retranscrio. Ela funciona como um controle a
posteriori da pesquisa. Ela tem portanto, uma dupla funo:
deontolgica e epistemolgica (ZONABEND, 1994, p. 4).
Ou seja, falar de restituio significa que essas experincias de
retorno dos dados coletados ou contra-ddivas textuais e imagticas no
constituem eventos separados da pesquisa. Ao contrrio, so nesses
momentos privilegiados do trabalho de campo que as pretenses de
objetividade so colocadas sob suspeita, e nos quais tem lugar um processo
comunicativo que implica necessariamente aquele ensinamento
hermenutico da fuso de horizontes. Fuso aqui no significa harmonia
ou equilbrio, mas um processo argumentativo no qual os sujeitos levantam,
a partir de atos (performticos) de fala, tanto pretenses de validade em
relao "verdade dos achados do campo e da anlise empreendida, quanto
em relao veracidade" dos sentimentos e do tipo de envolvimento que a
experincia de campo ps em prtica.
A restituio implica naquilo que existe de contratual entre
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Tessituras
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pesquisadores/as e interlocutores/as; parte integrante de todo o processo de
pesquisa e no apenas um a posteriori. O ideal que ela consiga implicar
os/as interlocutores/as concernidos/as durante todo o processo de pesquisa,
desde a formulao do problema a ser estudado. Uma ateno particular em
relao confidencialidade das identidades ou omisso de lugares, redes e
imagens, especialmente quando h dissidncias e rupturas sem retorno,
necessria para a manuteno do bom andamento da pesquisa. Afinal, dir
Flamant:
o objetivo da anlise etnolgica no consiste tanto em contar
o que se passa em um lugar preciso entre tal ou qual pessoa,
mas desvelar as lgicas sociais e simblicas incorporadas
nesses lugares e nas prticas desses autores. Mascarar as
identidades serve para criar uma alteridade entre os atores
reais e suas personagens, relativizar o carter
potencialmente sensacionalista da descrio dos fatos,
preservando o objeto da pesquisa no centro do texto. Tal
exerccio necessita uma distino clara entre as informaes
fundamentais para a anlise e as informaes anexas ou
passveis de serem transpostas de uma situao outra
(FLAMANT, 2005, p. 142).
No caso do texto antropolgico, tal empenho talvez seja mais fcil do
que quando se trata da restituio de imagens, em que uma suavizao
ttica da linguagem impossvel. Existe ainda, segundo Flamant (2005), a
necessidade de iniciar a restituio textual e, eu diria, imagtica, somente
depois que a perspectiva da anlise esteja relativamente estabilizada,
optando, prioritariamente pelas pessoas concernidas e que disponibilizaram
seu tempo para a pesquisa. Essa precauo pode evitar muitos mal
entendidos, alm de ampliar o espao para a dimenso dialgica da
pesquisa. Pontos de vista distintos do lugar a debates e, tanto o
pesquisador, quanto seus/suas interlocutores/as, so autnomos em relao
as suas interpretaes, mesmo se os lugares sociais de onde falam sejam
distintos. Ou seja, a restituio, para os/as interlocutores/as, no possvel
de ser realizada nos mesmos termos da restituio que se enderea
comunidade cientfica. Ela supe um discurso diferente, levando-se em
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considerao que o saber comum e o saber cientfico possuem especificidades
que lhes so prprias e nem sempre so compatveis no que se refere ao
entendimento de seus contedos. Nesse contexto, encontrar formas mais
brandas de falar dos conflitos ou uma tica do bem dizer, especialmente no
que tange a anlises que precisam ser amadurecidas, no significa
manipulao ou falta de sinceridade, mas sim uma ttica de proteo da
autonomia do/da pesquisador/a, evitando que ela ou ele tenha sua
autonomia hipotecada.
Essas apreciaes, na verdade, esto no cerne do empreendimento da
antropologia visual informada pelas situaes de teatralizao 16 da
restituio. Somente levando a srio a recepo e apropriao das imagens, o
antroplogo pode efetivamente garantir a eficcia da dialogia e do trabalho
colaborativo. A autoria um risco, primeiramente para as pessoas
concernidas e, em segundo lugar, para o etngrafo, que no faz parte,
diretamente, da comunidade moral pesquisada. O empreendimento
colaborativo, alm de propor uma partilha em torno do poder que possui
aquele que ir figurar, por meio de recursos tcnicos, uma determinada
imagem do grupo, tambm evita os riscos de ver seu trabalho abjurado. As
boas intenes de uma autoria no mediada nunca so suficientes para a
pretenso de um trabalho que se quer simtrico, respeitoso e engajado. Ao
mesmo tempo, levando-se em conta o agenciamento e a indeterminao da
imagem flmica, preciso muito investimento e muita habilidade para o
estabelecimento do consenso ou de um unssono em relao ao que foi feito.
16 Para Bellagarde, a restituio implica em teatralizao, no sentido empregado por
Gofman e Turner de dramaturgia social. A restituio, diz o autor, faz parte de uma espetacularizao (mise en spectacle) do objeto de estudo, ela uma representao
destinada a um pblico. Trata-se de um espetculo social no qual estamos implicados em
graus variados e onde o retorno das informaes deve ser feito de uma forma acessvel ao
pblico visado. Dessa forma, ela produz uma representao do objeto e, nesse sentido, ela
tanto uma mise en scne de sentimentos, uma ordenao das sensaes quanto uma
formalizao (mise en forme) dos fatos observados, um logos. Essa mise en scne ou
espetacularizao supe a identificao do pblico concernido, pois ela diretamente
dependente da natureza desse pblico e de sua capacidade em reconhecer o discurso que ele
recebe. A restituio teatralizao (BELLAGARDE, 2003, p. 99).
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A ideia de uma experincia de aprendizado vital na produo de um
filme etnogrfico. A empreitada de comunicar um entendimento sobre a vida
alheia, especialmente quando se trata de dimenses que envolvem a
sexualidade e o gnero, supe um rduo trabalho, bem como o empenho em
compreender que a figurao de uma realidade especfica no se reduz ao
mero conhecimento tcnico. Paul Henley, referindo-se a essa compreenso
do processo flmico, destaca que
o papel potencialmente mais recompensador para o filme na
antropologia de um instrumento para comunicar um
entendimento da experincia incorporada de modos diversos
de vida experimentada. Fazer um filme que comunica tal
entendimento a uma audincia de vivncia cultural diferente
daquela dos sujeitos requer altos nveis de habilidades, tanto
tcnicas, quanto estticas, de autoria na filmagem. Isso no
pode ser feito simplesmente apontando-se a cmera na
direo certa e ligando-a, como se ela no fosse mais do que
um espelho refletindo a natureza (HENLEYb, 2009, p. 103).
Para ele, a questo que se coloca em relao autoria no recai sobre
at onde pode ir a manipulao de autoria do material filmado e o que
aceitvel na realizao de filmes etnogrficos, mas sim que grau e que tipo
de manipulao do material filmado so compatveis com os objetivos
intelectuais gerais e o posicionamento tico da antropologia contempornea
(HENLEYb, 2009).
Nesse contexto, a experincia da restituio desempenha um lugar
fundamental. Se a antropologia sempre prezou por uma abordagem da
experincia de pesquisa na perspectiva de uma relao de empatia,
traduzida na habilidade em se colocar "no lugar do outro", ento, a
problemtica de restituio, tambm ela, deve ser pensada nesses termos.
Ou seja, a restituio no deve ser analisada apenas pelo ponto de vista do
antroplogo e das consequncias da relao que ele ou ela estabelece com
seus interlocutores/as. Alm de ser um dado relacional, a restituio
tambm uma experincia territorializada, ou seja, tributria da lgica social
e simblica que anima o contexto espacial e histrico no qual as relaes
esto inseridas. Nesse sentido, seguindo a reflexo de Flamant (2005), o
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ponto de vista do Outro na situao de recepo das informaes restitudas
dialoga com as relaes de poder e dominao na qual os/as interlocutores/as
esto inseridos/as. No h nada a ganhar com uma atitude de
etnocentrismo moralizador do pesquisador defensivo que gasta todos os
seus cartuchos para denunciar as "estratgias de manipulao
empreendidas por seus/suas interlocutores/as, sem buscar compreender
minimamente as razes de tais atitudes e de suas recusas. Especialmente
para a antropologia, que originalmente se define como uma disciplina
empenhada na compreenso de populaes minoritrias, levar a srio as
recusas e analisar o contexto social no qual se inserem, identificando as
reverberaes e as consequncias que as revelaes do antroplogo tero em
suas vidas, parece ser um caminho mais fecundo para uma antropologia que
se pretende simtrica (GOLDMAN, 1999). Compreender o tipo de relaes
que os/as interlocutores/as constroem, explcita ou implicitamente, em
relao ao antroplogo nesses momentos de restituio retira esse ltimo do
pedestal imaginrio que a academia criou para ele.
As experincias subsequentes ao Voo da Beleza, pensadas a partir de
uma antropologia da restituio e dos 10 mandamentos do cinema
observacional 17 , tornaram mais densas a minha relao com as
protagonistas da pesquisa. E tambm mais sinceras, na medida em que os
17 Angela Torresan, professora no Centro Granada de Antropologia Visual, destaca que Paul
Henley chama algumas de suas regras prticas em relao ao processo de filmagem e de
edio de os 10 mandamentos do cinema observacional. Tais regras dizem respeito a: 1. Ausncia de roteiro pr-definido, mas planejamento mnimo; 2. Ausncia de direo, essa
deve ser em colaborao com os protagonistas para que se possa identificar situaes boas a
serem filmadas; 3. Ausncia de uso de trip, a no ser para planos gerais, ou panoramas,
planos inclinados, etc.; 4. Ausncia de entrevistas; testemunhos so preferencialmente
gravados enquanto a pessoas est envolvida em alguma atividade, ou no seu prprio
ambiente; conversas com o cmera, conversas entre os protagonistas so preferveis do que
entrevistas formais; 5. Um estilo de filmagem que no chame ateno para sua prpria
esttica, beautiful shots, mas que respeite regras bsicas de bom enquadramento,
movimentos de cmera estvel e suave. No que tange s regras relativas edio, seus
mandamentos prosseguem assim: 6. Ausncia de narrao do tipo analtica, sala de aula. Mas se h necessidade de fornecer informao contextual, a voz deve ser do prprio
cineasta, informal e em dilogo com o filme; 7. Uso de msica deve ser diegtico, ou seja,
deve emergir de situaes filmadas; 8. Ausncia de efeitos especiais; 9. Edio que respeite
a cronologia dos eventos e mantenha, o mais possvel, a estrutura das cenas; 10. As regras
acima no devem ser quebradas, a no ser quando necessrio ou apropriado (TORRESAN,
2014, p. 7-8).
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conflitos de interpretaes foram contornados. A colocao em cena de uma
esttica da restituio, na artesania de Dom e Beleza, possibilitou
circunscrever tenses prprias quela experincia e permitiu um tipo de
reflexividade compartilhada que reverberou nessa nova montagem do
trabalho, viabilizando o dilogo em torno das escolhas, decises e
consequncias da figurao que seria mostrada para um pblico mais amplo.
Pela via da esttica da restituio, o contra-dom visual trouxe tambm para
a cena da pesquisa a dimenso coletiva e relacional do trabalho de campo,
oferecendo um produto final no qual as protagonistas podiam se reconhecer
enquanto parte constitutiva dos resultados apresentados. Alm disso, os
debates em torno do que seria vivel ou no apresentar implicou na
tematizao dos sentimentos como base da relao de respeito estabelecida.
guisa de concluso: a esttica da restituio como guia no fazer
antropolgico
Na pesquisa em cincias sociais, a reflexividade e a restituio devem
ser tomadas como ncoras do trabalho antropolgico de campo e como
marcadores conceituais para pensar a ideia de autoria ou de autorias, no
plural. A autoria implica em compreender os fenmenos, no como reflexo
do real, mas como uma construo do esprito que levanta problemas. Isso
implica vigilncia crtica em relao aos lugares de enunciao do
pesquisador. Como esses lugares afetam a produo do conhecimento
antropolgico? Como eles devem ser pensados no momento da produo
flmica? A discusso sobre a autoria inclui necessariamente uma reflexo
sobre a autoridade etnogrfica e sobre como essa ltima se constri no
trplice movimento que envolve empatia, distanciamento e controle das
transferncias, pensados a partir das demandas ou solicitaes de
nossos/nossas interlocutores/as.
Mesmo reconhecendo que o trabalho de campo uma atividade
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coletiva, deve-se atentar tambm para a sua assimetria fundamental, aquilo
que poderamos denominar, com Geertz (2001), de ironia antropolgica,
entendida aqui como experincia assimtrica e passvel de envolver relaes
de poder. Nesse sentido, o interesse do pesquisador deve voltar-se, em um
primeiro momento, para a maneira como se estabelece o contrato e as
negociaes de interesses nem sempre convergentes entre pesquisadores
e colaboradores. E, em seguida, para os lugares silenciados no processo
que envolve as estratgias de campo e os lugares de enunciao do
pesquisador. Como contornar essas assimetrias? Como tentar garantir que a
inspirao do observador se aproxima de forma fidedigna da inspirao
coletiva que ele observa? Como pensar a importncia do envolvimento
dos/das protagonistas na construo dos significados e sentidos de um texto
ou de um filme?
A tematizao da restituio dos resultados da pesquisa talvez
indique um caminho para contornar tais problemas. Ela percebida pelos
antroplogos como uma restrio recente. Ela no se aplicava, por exemplo,
aos trabalhos de campo tradicionais, realizados alm-mar, quando a
distncia geogrfica e o no acesso aos resultados do trabalho pelas
comunidades concernidas, desempenhava o papel de garantir uma
objetividade inquestionvel em relao aos achados de campo. Os tempos
mudaram e a diferena deixou de habitar terras estrangeiras, se que um
dia habitou! Na passagem de uma etnologia das sociedades de tradio oral
para as sociedades da escrita, da informao e da comunicao, os antigos
informantes agora se informam literalmente a respeito do que dito
sobre eles a partir do acesso aos trabalhos etnogrficos, sejam eles textuais
ou flmicos. Eles e elas interpelam os feitos antropolgicos, produzem seus
intelectuais orgnicos, criam suas modalidades de controle em relao ao
que escrito ou visto sobre eles e nos interpelam sobre as consequncias de
nossas revelaes.
A preocupao fundamental com a reflexividade o que permite ao
pesquisador gestar um tipo de escuta e de olhar atentos s demandas ou
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solicitaes de seus/suas colaboradores/as. Essas solicitaes emergem no
contato direto e de longa durao e interpelam o pesquisador, descentrando
o esquema referencial operativo ou as disposies no questionadas do
capital simblico que o pesquisador/a carrega consigo quando vai a campo.
Como nos lembra a Barros (2014, p. 6), os projetos de pesquisa so
desenhados distantes do campo, respondendo a interesses e dinmicas da
academia e/ou do tipo de debate suscitados pelas experincias e contextos
socioculturais dos pesquisadores. Nessa perspectiva levantada pela autora,
qual o sentido em operar o que ela denomina de uma etnografia da
etnografia ou ainda de objetivao do sujeito da objetivao? Como tal
reflexo afeta ou pe em jogo a definio da autoria? Sem essa vigilncia
crtica no h, diz a autora (BARROS, 2014, p. 6), como olhar a si mesmo
durante todo o processo da pesquisa, flexionar-se ou retornar
constantemente problematizao sobre a autotransformao durante suas
prprias aes. Dito de outra maneira, a restituio que realizada para
nossos pares, no pode mais deixar de ser informada pela restituio
realizada para nossos/nossas interlocutores/as.
A objetivao do sujeito da objetivao demanda uma interpelao ao
prprio saber antropolgico e maneira como ele concebe a alteridade. Em
que sentido a esttica da restituio poderia contribuir nessa interpelao?
Ela no deveria, necessariamente colocar em cheque a estranha relao que
a antropologia estabeleceu com o tempo e a historicidade? Lembro aqui da
reflexo de Johannes Fabian (2013) acerca do alocronismo fundacional da
antropologia 18 , ou seja, a tendncia irrefletida de algumas tradies
18 Em O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto, Fabian (2013) realiza uma meta-anlise do projeto antropolgico em geral e uma desconstruo de suas
formaes temporais realizadas. O autor parte de trs noes dependentes entre si: a ideia
de uma orientao alocrnica e fundacional na antropologia tem como correlato a ideia da
negao da coetaneidade s sociedades estudadas pelos antroplogos e essa, por sua vez,
sugere um uso esquizognico do Tempo. Tudo se passa como se o Outro, nos trabalhos
antropolgicos, deixasse de ser contemporneo de ns mesmos. Esse o sentido da negao
da coetaneidade, uma operao epistemolgica e poltica que implica em uma localizao
hierarquicamente distanciada do Outro que suprime a simultaneidade e a
contemporaneidade do encontro etnogrfico. Nisso consiste o alocronismo fundacional da
antropologia, localizado por Fabian no apenas no evolucionismo mas em todos os discursos
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antropolgicas em construir e instrumentalizar objetos antropolgicos como
incorporaes de tempos passados, narrados no eterno presente
etnogrfico. Tal perspectiva marcou profundamente o conhecimento
antropolgico, no apenas no que tange histria, mas tambm no que se
refere intersubjetividade fundante do processo de pesquisa e as relaes de
poder implicadas nesse ltimo. Esse rebaixamento diacrnico do Outro,
essa negao da coetaneidade, coloca antroplogos e seus leitores em uma
estrutura de tempo privilegiada, ao passo que desterram o Outro para um
estgio de desenvolvimento inferior.
As reverberaes de uma perspectiva alocrnica do saber
antropolgico tem como consequncia uma verticalizao do conhecimento.
O trabalho de campo deve caminhar para uma compreenso do tempo de
seu outro como comunho cotemporal de experincias, de incluso do
Outro no Tempo antropolgico, contornando assim a discrepncia entre a
esfera intersubjetiva do trabalho de campo e o rebaixamento diacrnico do
Outro. Nesse sentido, a utilizao de uma abordagem compartilhada no
processo de filmagem no poderia ser pensada como uma forma de resposta
a essa epistemologia da relegao temporal e da participao efetiva no
processo de produo do conhecimento, mediado agora pela esttica? Ou,
dito de outra maneira, tal como uma resposta a essa ausncia crtica da
antropologia, em que a intersubjetividade passa a ser pensada por meio da
mediao flmica colaborativa e horizontal, recuperando assim a esttica
como guia no fazer das disciplinas retrico-humanistas? Finalmente a
esttica estaria assumindo o lugar que lhe conferido na inteligibilidade das
construes sociais de conhecimento, retomando faculdades at ento
relegadas a segundo plano, como a sensibilidade, os sentimentos e a
criatividade?
objetificantes de uma antropologia cientificista. O funcionalismo, o culturalismo e o
estruturalismo tambm no resolveram, segundo Fabian (2013, p. 57), a questo do tempo
universal: eles a ignoraram, na melhor das hipteses, e negaram sua importncia, na pior delas. Afinal de contas, dir Fabian (2013, p. 70) preciso imaginao e coragem para conceber o que aconteceria ao Ocidente (e antropologia) se sua fortaleza temporal fosse
subitamente invadida pelo Tempo de seu Outro.
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A suposio da esttica como aquela que vai refletir ou orientar a
reflexo no fazer das disciplinas retrico-humanistas uma das
problemticas mais pertinentes levantadas hoje no cenrio das ideias. Ao
que tudo indica, pela reflexo esttica que as cincias sociais encontram
alternativas para pensar para alm de algumas das dicotomias que marcam
sua trajetria: explicao nomottica e interpretao idiogrfica, objetivismo
e subjetivismo, explicaes causais e explicaes racionais, qualitativo e
quantitativo... Especialmente hoje, quando lembramos das crticas de
Gadamer (1977) em relao ao metodologismo da cincia e pretenso desta
ltima em ser a nica verdade vlida, hierarquicamente superior verdade
que existe no mito, na arte, na religio e/ou na imagem, superar esses
binarismos tem se colocado como uma urgncia nas cincias sociais. Se a
esttica j foi chamada de a prima pobre da lgica, ligada s faculdades
inferiores como a sensibilidade, a memria, a imaginao e os sentimentos,
penso que seu lugar no mais pode ser denegado por aqueles que pretendem
refletir sobre teoria social para alm do vis das claras e distintas ideias
cartesianas.
Geertz (2001, p. 46) est correto ao dizer que a vocao para aplicar o
mtodo cientfico investigao dos assuntos humanos uma vocao para
confrontar diretamente o divrcio entre a razo e o sentimento. Esse ltimo
central para a construo da autoria. Descortinar o lugar que a partilha de
sentimentos desempenha no trabalho de campo mediado pela utilizao da
cmera em situaes de restituio particularmente interessante para
pensar as noes de reflexividade da subjetividade e de autoria na narrativa
antropolgica, em que normalmente os sentimentos so considerados como
prejudiciais e as representaes explcitas da presena do autor tendem,
como outros embaraos, a ficar relegadas aos prefcios, notas ou apndices,
como destaca o referido autor em sua reflexo sobre o dilema da
assinatura. A ideia de um substrato coletivo para as emoes ajuda a situar
a dimenso afetiva das trocas comuns, bem como a elucidar o processo
segundo o qual a construo da identidade do pesquisador dialogicamente
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mediada. Ela viabiliza a possibilidade de um eu etnogrfico (Clifford,
1998) que reconhece, no afeto e, eu diria, na ironia, o status modelado e
contingente de todas as descries culturais e de todos aqueles/as que
descrevem culturas.
Para a segunda montagem de O Voo da Beleza parti de uma
prerrogativa rouchiana para a utilizao da cmera no trabalho de campo.
Nada de uma ideia na cabea e uma cmera na mo, mas de imagens
produzidas em situaes interativas de aprendizagem e conhecimento
mtuo. Se, no caso de minhas interlocutoras, a escrita da tese, mesmo que
compartilhada e restituda, por vezes implicou em distncia e em falta de
interesse, o processo de filmagem, pensado no mbito de uma antropologia
compartilhada o nosso filme, como elas costumavam falar -, reverberou
em discursos de acompanhamento das imagens, em que a representao
que o grupo queria de si passou a figurar como a tnica central. Essa
representao dialogava diretamente com as reivindicaes de uma
representao da travestilidade (e no do travestismo) como questo de
poltica sexual: uma experincia fundamentalmente marcada pela
identidade de gnero, dissociada da prostituio como destino e da
delinquncia como condio natural.
Acreditando, penso que acertadamente, na ideia de que o uso da
cmera, alm de estabelecer um contato face-a-face mais estreito e
confidencial, se apresenta como um poderoso e indispensvel exerccio para
aprender a olhar, investi na reflexividade da subjetividade, na ateno aos
afetos como instncia privilegiada para desvendar identificaes e conflitos,
bem como na dialogia como recurso na construo da autoria. Depois de
determinado perodo pesquisando, quando o processo de interconhecimento
j estava estabelecido graas a minha postura de me deixar afetar pelo
outro, compartilhar dificuldades tcnicas nas filmagens e narrar
abertamente minha experincia como homem gay vivendo em Paris -, pude
desfrutar de uma experincia mais simtrica com minhas interlocutoras. A
empatia aumentou, os conflitos em torno de algumas passagens da primeira
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montagem de O Voo da Beleza foram discutidos e uma nova verso foi
pensada.
Isso no aconteceu sem conflitos de interpretaes e aprendizados
mtuos. O modo dialgico no operou como idealizao de solidariedade,
mas como catalizador de uma experincia simtrica e emptica. Isso
tampouco significa dizer que a autoria desapareceu, mas foi informada pela
intersubjetividade fundamental daquele encontro etnogrfico. No
passamos a fazer parte da m