POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão · a mesma voracidade com que correm as pérolas de um...
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JOSÉ ARAÚJO
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POR UM MUNDO MELHOR
Contos Para Reflexão
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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JOSÉ ARAÚJO
POR UM MUNDO MELHOR
Contos Para Reflexão
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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Copyright© 2009 José Araújo
Primeira Edição: Setembro de 2009
Segunda Edição: Novembro de 2013
Título: Por Um Mundo Melhor – Contos para Reflexão
Editor: José Araújo
Diagramação: José Araújo
Revisão 2013: José Araújo
Editoração Eletrônica: José Araújo
Capa: José Araújo
1 – Literatura Brasileira 2 – Contos 3 – Ficção
A reprodução de qualquer parte desta obra é proibida
sem a prévia autorização do autor.
Esta é uma obra de ficção e, quaisquer semelhanças dos
personagens ou coincidências, com nomes e pessoas
reais, são apenas mera casualidade.
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A rainha foi até seu espelho e perguntou: “Espelho, espelho meu!
Existe alguém neste mundo mais bela do que eu?”
E o espelho respondeu: “Você, rainha, é a mais bela aqui neste
castelo, contudo, Branca de Neve, que está morando com os sete
anões bem longe daqui, é mil vezes mais bela do que vós!”
Irmãos Grimm
“Em momentos de inspiração, os pensamentos de um escritor
fluem de sua mente com a força de uma tempestade tropical;
como se fossem os acordes mágicos de um violino, infinitos como
a vastidão do oceano, belos como o sorriso de uma criança e, com
a mesma voracidade com que correm as pérolas de um colar que
se quebra, e as esparrama pelo chão, em todas as direções.”
José Araújo
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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SUMÁRIO
09 O PEQUENO ARCO-ÍRIS
18 ENIGMAS DO AMOR
26 CABIDE DOS SONHOS
34 A LÂMPADA E A LUZ
46 O GRANDE MAESTRO
58 A TAMPINHA PREMIADA
76 CISNE BRANCO
94 O ESTRANHO DENTRO DE NÓS
109 AMOR, ESTRANHO AMOR
138 O RESGATE
155 ESCRITOR DE EMOÇÕES
163 O BEIJO DA MÃE NATUREZA
179 AS MARGARIDAS
186 O LAGO DAS BATATAS
194 A SEREIA
201 O CALDEIRÃO DE SOPA DE DONA MARIA
209 OS CORCUNDAS DO PARAÍSO
217 A TAL DA GLOBALIZAÇÃO
225 FAZENDO A DIFERENÇA
231 A VOZ DO CORAÇÃO
237 A FADA MADRINHA E O FEITIÇO DA INDECISÃO
254 IDENTIDADES ESQUECIDAS
262 SOBRE O AUTOR
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O PEQUENO ARCO-ÍRIS
Lembro-me como se fosse hoje. Eu não
queria ir à escola porque lá eu não tinha feito
amigos. As outras crianças zombavam de mim
por causa das minhas roupas velhas e
maltrapilhas, e também por causa da minha
timidez. O que eles não sabiam é que minha
timidez era pelo medo de que zombassem sempre
de mim, e também porque estava muito triste
com meu professor, que não ligava a mínima para
mim. Parecia que ele tinha decidido que se eu era
uma criança pobre, não merecia receber sua
atenção. O comportamento dele para comigo me
machucava muito. Eu não compreendia o porque
de tudo aquilo estar acontecendo comigo.
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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Todos os dias, eu tinha que andar um longo
caminho, ida e volta, para a escola. Em certo
trecho, a estrada tinha bosques de eucalipto nos
dois lados e também um riacho lindo, que
passava por entre as árvores, com águas muito
cristalinas. Ele corria mansamente, fazendo do
ambiente um lugar de muita paz. De vez em
quando, eu parava por lá para descansar e
observar os peixinhos. Eles nadavam de lá para
cá. Pareciam estar sempre tão alegres e felizes.
Viviam em turmas, sempre acompanhados por
seus amiguinhos, subindo e descendo nas águas
límpidas do riacho.
Certa manhã, em meu caminho para a
escola, eu parei às margens do riacho e sentei-me
numa pedra. Tirei meu chinelo e coloquei meus
pés dentro da água fresca que parecia me
acariciar. Algum tempo depois, com os cotovelos
apoiados em meus joelhos, pensando em quanto a
escola era chata, sem amigos, sem a atenção de
meu professor, senti uma lágrima rolar pelo meu
rosto. Vi quando ela caiu nas águas do riacho,
desaparecendo ao misturar-se com elas.
Foi como se ela tivesse sido abraçada por
elas num gesto de carinho, pois ela era uma
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lágrima sentida, uma lágrima de dor. Em dado
momento, numa fração de segundos, um arco-íris
surgiu das águas, passou bem diante dos meus
olhos e desapareceu.
Era um peixinho, um Lambari, percebi logo
depois.
Ele ficou muito próximo da superfície,
quase parado. Era como se estivesse me
observando curiosamente, mas num piscar de
olhos, ele desapareceu em meio à correnteza.
Segui para a escola e o dia custou a passar. Era
uma agonia estar num lugar onde as pessoas não
me aceitavam como eu era.
Eu nem ao menos tinha a atenção que tanto
desejava de meu professor. Na volta para casa,
parei no mesmo lugar onde eu vi o pequeno arco-
íris pela primeira vez e esperei algum tempo.
Mais uma vez, ele surgiu de repente. Como um
flash de luz, ele passou diante dos meus olhos e
então, desapareceu.
Na manhã seguinte, estava um lindo dia de
sol. Eu resolvi tirar minha roupa e entrar nas
águas e quando o fiz, ele apareceu e como se
estivesse me provocando, começou a nadar à
minha volta.
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Suas escamas brilhantes iluminadas pelo sol
cintilavam mesmo sob as águas e seus
movimentos de lá para cá em volta de mim, me
fizeram sorrir. Ele me fez esquecer os meus
infortúnios, toda a minha tristeza. O pequeno
arco-íris pulava para fora da água alegremente,
mas sempre se mantendo perto de mim. Ele
parecia não ter medo. Lembro-me que estava tão
feliz com aquele amigo que surgiu do nada, que
um pensamento me veio à mente. Eu queria que
ele ficasse comigo para sempre.
Num rápido movimento, eu o agarrei com
as duas mãos. Eu queria levá-lo comigo. Não
queria mais sentir a dor da solidão. Ele se debateu
desesperadamente, tentando se libertar de minhas
mãos, e num instante, ele escapou pulando para
longe, caindo no meio do mato em uma das
margens. Ele era tão pequenino. Tão difícil de
procurar no meio das folhas, que eu demorei um
tempo para encontrá-lo, e quando o achei, ele não
se movia.
Parecia estar morto.
Naquele momento, uma sensação
desoladora de perda invadiu meu coração. Eu
tinha perdido meu primeiro e único amigo. Tudo
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por causa de meu sentimento de posse, querendo
que ele fosse só meu. Que ficasse para sempre ao
meu lado. Devagar, eu peguei seu corpinho inerte
e o coloquei nas águas do riacho. Ao ver a
correnteza levá-lo para longe, lágrimas de dor e
tristeza rolaram como gotas de ácido, queimando
minha face. A dor da perda do meu amigo, o meu
pequeno arco-íris, era muito mais forte do que o
meu sentimento de tristeza e solidão, que eram
causados pela zombaria das outras crianças e pela
indiferença de meu professor. No dia seguinte,
passei pelo mesmo local na esperança de vê-lo
novamente, mas ele não apareceu. Eu me senti
mais solitário do que nunca em toda a minha
vida. Mais um dia se passou.
Na volta da escola, parei de novo no mesmo
lugar. Esperei alguns instantes, mas ele não
apareceu. Segui rumo à minha casa, com uma dor
insuportável em meu peito. Era um sentimento de
remorso, misturado com um imenso
arrependimento pelo que eu tinha feito com o
pequeno arco-íris.
No dia seguinte, eu passei novamente pelo
mesmo local, mas já não tinha mais esperanças de
vê-lo novamente. Tinha certeza de que ele havia
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morrido. Resolvi parar por uns instantes e tomar
um pouco d água. Eu estava mesmo com muita
sede, e as águas do riacho eram tão limpas, que
não tive dúvidas; abaixei-me para pegar água
com as mãos e quando o fiz, como num flash de
luz, um arco-íris passou bem diante dos meus
olhos, e então desapareceu.
Naquele instante, meu coração pulou de
alegria. Minha alma cantou em júbilo. Eu estava
feliz. Meu amigo não havia morrido, e mais, ele
não ficou com raiva de mim pelo que eu lhe fiz, e
para provar que não, quis chamar minha atenção
para que eu o notasse, já que eu havia me
desiludido de encontrá-lo e nem mesmo o
procurava com o olhar. Levantei-me de onde
estava. Sabia que já era tarde e segui meu
caminho.
No dia seguinte, um sábado, era dia de meu
aniversário. Logo pela manhã, eu resolvi que iria
tomar um banho no riacho e procurar meu amigo.
Eu estava com saudades. Precisava estar em sua
companhia. Era vital para mim. Quando lá
cheguei, o sol já brilhava iluminando as águas
que corriam fazendo um barulho suave, um som
mágico que me causava uma paz imensa, que me
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fazia muito bem. Sentei numa pedra e esperei.
Não por muito tempo, pois logo ele apareceu.
Brilhando sob as águas e indo de lá para cá, lá
estava ele, mas sempre dando uma parada diante
de mim.
Era como se de alguma forma, ele me
convidasse a fazer parte da brincadeira. Tirei a
roupa, entrei na água e a princípio, ele ficou longe
de mim. Ele subia e descia as águas do riacho,
mas mantendo distância entre nós, mas depois,
aos poucos, ele foi se chegando. Cada vez mais e
mais. Até que as suas escamas tocaram
suavemente minhas pernas, e então, eu comecei a
sorrir. O pequeno arco-íris, ao ouvir meu sorriso,
começou a pular alegremente para fora d água.
Era como se ele estivesse feliz com minha
presença e comemorando minha felicidade.
Naquele mágico momento, eu aprendi de uma
vez por todas, que ele nunca, mas sempre, seria
meu. Que quando amamos alguém, não significa
que este alguém é de nossa propriedade. Um
objeto que podemos guardar conosco e usar
quando quisermos, ou quando nos for
conveniente.
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O amor precisa ser livre, para viver em
nossos corações e nos corações daqueles que nos
amam. Se um de nós tentarmos prendê-lo,
achando que ele é de nossa propriedade, ele pode
definhar lentamente, até morrer. Podemos matá-
lo, sem ter consciência disto. Exatamente como
meu amigo peixinho, que eu quase matei, por
achar que ele era meu e que eu poderia fazer dele
e de sua vida, o que bem entendesse.
A vida nos dá lições em todos os momentos
de nossa caminhada por este plano, desde o
momento em que aqui chegamos até o momento
de nossa partida.
Cabe a nós ter capacidade e sensibilidade de
perceber, de enxergar e compreender as
mensagens que nos são enviadas por ela, através
de momentos muito especiais, como quando
vindo do nada, um pequeno arco-íris passar bem
diante de nossos olhos, e então desaparecer...
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ENIGMAS DO AMOR
Hoje há algo estranho dentro de mim,
sinto como se faltasse algo que me é necessário já
faz muito tempo, mas só agora me dei conta disto
e não consigo descobrir exatamente o que vem a
ser.
São 09h00minas da manhã, acabei de me
levantar, tomei um banho, preparei um iogurte
batido com morangos e ao invés de sentar-me à
mesa para o café da manhã, resolvi ir para a
varanda sentar na cadeira de madeira e ficar
olhando o mar, apreciando o movimento das
ondas e a linha do horizonte, perfeitamente nítida
entre o verde das águas do mar e o azul de um
céu totalmente limpo e iluminado pelo sol que
aquece as areias da praia, fazendo com que seus
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raios as façam parecer um imenso tapete branco
ao longo de toda sua extensão.
É definitivamente uma visão paradisíaca,
não há nada no momento com que eu tenha que
me preocupar, não há compromissos a cumprir,
nada com que eu possa me estressar, mas sentado
ali, vendo toda esta beleza ao som das gaivotas, o
sentimento de que me falta alguma coisa é
insistente e isto definitivamente me incomoda.
Decido não pensar mais nisto, procuro
concentrar minha atenção no que esta à minha
volta, no que acontece ao longo da praia e de
repente sinto um cheiro familiar, mas incomum
para uma varanda de casa de praia, onde o cheiro
que deveria prevalecer seria o do mar tomando
conta de nossos sentidos, mas não, o cheiro que
parece entrar em minha alma é o de orégano,
exótico, delicioso, envolvente, que parece querer
tirar minha atenção do ambiente ao meu redor.
Assim como ele veio, ele se foi e volto a
sentir o cheiro da brisa marinha que me faz bem,
me acalma profundamente, me faz sentir
novamente parte da natureza, do meio ambiente,
em comunhão com o cosmos, parte integrante do
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universo, mas o sentimento de que me falta algo,
ainda me incomoda.
Olho para um determinado ponto da praia e
vejo que um jovem casal montou uma barraca e
estão tomando banho no mar, alegres e
sorridentes, entre beijos e abraços, numa alegria
que de alguma forma mexe comigo.
Após algum tempo dentro da água, eles
resolvem sair e dirigem-se para a barraca,
abraçados, e de repente o rapaz pega a moça no
colo e a leva para dentro da barraca, fechando o
zíper assim que entram nela.
Esta cena me toca e uma curiosidade imensa
de ver o que acontece lá dentro toma conta de
mim, mas tento não pensar nisto, para não
lembrar que já faz muito tempo que não sinto o
calor de um corpo colado ao meu, que não tenho
tido a chance de amar alguém, que já quase
esqueci o que significa querer desesperadamente
fazer amor com alguém, sentindo a cada toque
um arrepio e entre gemidos de prazer, sentir o
coração bater mais rápido, me fazendo perder o
fôlego de tanto desejo.
É claro que sei exatamente o que estão
fazendo lá dentro, penso comigo e tento apagar
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estes pensamentos de minha mente, mas de
repente, mais uma vez sinto o cheiro envolvente
de orégano no ar, penso até que estou ficando
maluco, perdendo o senso ou coisa parecida, mas
gosto do cheiro que toma conta de meu ser, que
insiste em se fazer presente sem ter a menor
condição de ser real, pois não tenho nada em casa
com esta erva e não há nenhum pé de Orégano a
quilômetros de distância.
Já como que enfeitiçado pelo aroma, me
entrego a apreciar o cheiro forte mas
extremamente agradável de Orégano e fechando
os olhos, recosto minha cabeça na cadeira e me
deixo ser levado pelas ondas da imaginação.
Como que por encanto, imagens vão
surgindo em minha memória e as lembranças vão
retornando, trazendo você de volta do passado e
com você também seu sorriso, sua força de
atração e sensualidade, sua alegria de viver, seu
poder de decidir o que você realmente queria da
vida, as coisas que queria ter e sempre conseguia
com sua autoconfiança a toda prova, tanto que
me fiz de difícil no começo, mas você me ganhou
e me deu todo o amor e carinho que sempre
sonhei, proporcionando-me pelo tempo que
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vivemos juntos os melhores momentos de minha
vida, você me amou como ninguém jamais o fez e
provavelmente nunca o fará, de uma forma que
me fazia entrar em erupção, ao sentir de sua parte
um simples olhar, um olhar que me fazia queimar
em vida, me fazia entrar em ebulição, sentimentos
e anseios que só eram saciados quando nos
entregávamos um ao outro de corpo e alma.
Então, junto com as imagens e lembranças
de momentos especiais, lá estava também o cheiro
inconfundível de Orégano, aquele condimento
que você usava quando decidia que ia fazer algo
para a gente comer e quando me dava por conta,
você já estava com a bandeja na cama com algo
delicioso, preparado por você com todo carinho e
com toda a sua arte culinária herdada de seus
antepassados italianos.
Mal acabávamos de comer, fazíamos amor,
envoltos no cheiro de Orégano, que se misturava
com o cheiro de amor que emanava de nossos
corpos e transcendia o ambiente, fazendo parte de
nós mesmos.
Momentos muito especiais que estavam
adormecidos em minha mente voltaram com a
força de um vulcão e as lavas da paixão e desejo
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me fazem vibrar, abro meus olhos lentamente,
procuro na orla uma minúscula possibilidade de
não estar sonhando, de você estar ainda em
minha vida, ao meu lado, de estar me fazendo
sentir que vale a pena viver.
Porém, pouca mudança houve em tudo ao
meu redor enquanto estava de olhos fechados, o
sol subiu mais um pouco, o calor aumentou, há
mais pessoas ao longo da praia o que fez com que
o casal da barraca fosse embora, deixando para
trás um turbilhão de vozes e risos e gritos de
alegria das crianças que brincam na areia, indo
procurar um lugar mais discreto para ficarem
juntos, de um jeito que eu sei muito bem como
eles gostariam de estar.
Algumas gaivotas sobrevoam a praia já
cheia de gente e não se atrevem a pousar, mas não
desistem de fazer suas revoadas periódicas, quase
como se estivessem querendo dizer a todos que a
praia é delas, que os seres humanos não passam
de intrusos.
Insisto na procura, mas não vejo sequer
traços de sua presença, de suas coisas, de tudo
que representava você, nada, absolutamente nada
e agora mais do que nunca, sei exatamente o que
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é aquele sentimento de falta que tem me
incomodado há tempos, agora sei o porquê do
vazio que sempre pareceu estar em meu coração,
da minha incapacidade de preenchê-lo, para
acabar com este meu mal estar constante e mais
do que tudo, agora entendo o porquê do cheiro
persistente de Orégano no ar.
Tudo muda na vida, tudo passa com o
tempo, mas existem algumas coisas que nos
acompanham pela eternidade, coisas que se
enraízam em nossas almas e que se tornam
pontos de referência para nossos mais íntimos
anseios e desejos, assim, mesmo que saibamos
que muitas coisas não voltam, que não podem ser
reprisadas em nossas vidas, as guardamos lá, bem
no fundinho de nossos corações, na esperança de
sermos felizes novamente.
Levanto-me da cadeira, resolvo que preciso
exercitar-me, que preciso mudar meu rumo, que a
vida continua e que preciso seguir em frente,
continuar minha caminhada.
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Vou andar ao longo da praia, mas no meu
caminho, por ironia do destino, um novo olhar se
esbarra com o meu e, não sei por que,
instantaneamente, sinto aquele cheiro de novo, o
cheiro de Orégano no ar...
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CABIDE DOS SONHOS
Já passava das nove horas da manhã
quando ele chegou para levá-lo para casa, mas
André já estava pronto há muito tempo.
Ele tomou uma ducha, com muita
dificuldade, pois não era uma tarefa muito fácil,
engessado da cintura até o pescoço.
De qualquer forma, ele estava limpo, já
havia trocado de roupas com a ajuda dos
enfermeiros e extremamente ansioso para voltar
para casa, quatro meses depois do acidente com o
carro em que ele estava e que o deixou inválido,
sem poder andar, preso a uma cadeira de rodas e
pior, sem esperanças de voltar a andar
novamente.
Na verdade, naquele momento, não
importava se ele estava voltando para casa de
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cadeira de rodas, nem mesmo se suas pernas não
mais funcionavam. Tudo que ele sabia é que iria
voltar para sua casa e seu lar faria tudo parecer
melhor, afinal, como disse Dorothy na estória do
Mágico de Oz.:
“Oh, Tia Ema, não há lugar nenhum como
nossa casa!”
Esta sempre foi sua estória favorita, quando
era pequeno nunca se cansava de ouvir sua mãe
ler sempre a mesma estória e quando cresceu não
compreendia o porquê desta paixão pelo “Mágico
de Oz.”, mas nunca deixou de gostar da estória
que lhe fazia muito bem.
Os enfermeiros o colocaram no carro de seu
pai e quando ele se senta no banco do motorista,
André o olha fixamente e pensa o quanto seu pai
parece com o “Espantalho” e seu pai, exatamente
como o personagem da estória do Mágico de Oz.,
era feito de muitas partes, de muitas coisas, como
força, coragem, companheirismo, compreensão e
amor, especialmente de amor.
Ele nunca foi um homem elegante, era
magro, com ombros caídos e com sujeira debaixo
das unhas, pois sempre foi um mecânico, nunca
estudou na vida, era um verdadeiro trabalhador.
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Pelos padrões da sociedade, ele não era um
homem educado, mas André pensava diferente,
pois seu pai não era de falar muito, mas o pouco
que dizia poderia ser escrito, pois ele sempre
estava certo e André nunca precisou escrever,
pois sempre soube que nunca iria esquecer o que
ele dizia.
Era muito difícil ficar sentado num banco
de carro, quase que imóvel por causa do gesso
que o envolvia, mas ele foi obrigado e quando
fecharam a porta, ele ficou olhando pela janela,
com sua face tensa, cansada, parecendo muito
mais velho do que os 16 anos que tinha.
Ele nem mesmo se lembra do mundo dos 16
anos, como se aquele mundo nunca tivesse
existido e então ele pensa sobre o que Dorothy
quis dizer, quando ela falou:
“Oh, Totó, eu não penso que estejamos mais
em Kansas.” Para ele, isto sempre foi e agora mais
do que nunca, um assunto com significado muito
maior do que uma simples situação geográfica.
Assim que o carro sai do estacionamento
para as ruas, ele agarra firmemente o assento de
seu banco com as duas mãos e quando se
aproximam do farol na próxima esquina, ele fica
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em alerta extremo, sua face atenta e tensa e seus
olhos se movem rapidamente nas duas direções e
quando vê que seu pai não vai parar no farol, ele
grita em voz alta:
– Pare! Não viu que o farol está vermelho?
Você quer nos matar?!?!
Mas logo em seguida, com voz mais branda
ele diz:
– Você não sabe o que tem sido este tempo
que fiquei no hospital, você nunca esteve em meu
lugar!
Seu pai olha para ele e não diz nada, mas
como o Espantalho e Dorothy na estória, eles
seguem em frente e ele ainda não relaxou as mãos
e ainda se segura firmemente no assento do
banco.
Igual à estrada de tijolos amarelos da estória
do Mágico de Oz., as ruas pareciam não ter fim, o
carro seguia em frente rumo ao seu destino,
passando por parques e edifícios altos que lhe
cobriam a visão e o impediam de enxergar sua
casa, a “Cidade das Esmeraldas”.
Olhando pela janela, toca a pulseira em seu
braço, um presente dado por seus avós e que ele
não tirava, nem mesmo nas piores circunstâncias
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e como em todas as coisas, o bracelete tinha dois
lados, o de cima, onde todo mundo podia ler,
estava escrito seu nome e no de baixo, que toca
sua pele e seu coração, estava escrita a palavra
esperança, uma palavra pequena mas que tem um
significado enorme na vida e agora era do que ele
mais sentia falta.
André tateia sua pulseira, passa os dedos
sobra a palavra gravada, vagamente ele se lembra
como era ter esperanças de um dia se tornar um
grande cantor de rock, viajando o mundo inteiro
em suas turnês, dançando e pulando ao som da
música que sempre lhe elevou o espírito.
Ele nem mesmo tem certeza de que se
lembra como era ter esperança, uma tremenda
força propulsora que impulsiona a vida, pois
agora ela se foi e ele nem mesmo sabe onde foi
que a perdeu, muito menos como achá-la de
novo.
Cabeça encostada no vidro do carro, olhos
fechados, ele assiste mentalmente as imagens de
como sonhava em ganhar a corrida de São
Silvestre e uma lágrima furtiva teima em rolar por
sua face e atrás dela, mais outra e mais outra e
então ele deixa o pranto cair livremente e
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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enquanto chora, ele se vê andando de bicicleta,
praticando skate no parque, mas em meio a tudo
isto, vê uma cena magnífica, muito além da
imaginação; sob um céu azul, com um sol
absolutamente lindo, refletidos nas águas do lago
do Parque Ibirapuera, cercado pelas árvores, ele
se vê nitidamente, andando e dentro de seu
coração ele sente uma paz que jamais havia
conhecido na vida.
Mas ao abrir os olhos, ele relembra e
lembrando, ele sabe que estava sonhando
acordado e tateia instintivamente sua pulseira,
passando os dedos sobre a palavra esperança nela
gravada. Nele o medo é desesperador, um medo
insuportável de não voltar a conhecer o
significado desta palavra.
Ele relaxa o corpo e afunda um pouco no
assento e mais uma vez as lágrimas rolam pela
sua face e ele diz:
– Pai, os médicos dizem que nunca mais
vou poder andar, eles são os melhores
especialistas, mas dizem que nunca mais vou
andar!
Foi então que seu pai parou o carro, o
homem que havia estado com ele por todos os
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caminhos e estradas de sua vida, igual ao que o
Espantalho fez com a Dorothy na jornada rumo
ao encontro do Mágico de Oz. e ele fala:
– Eles podem colocar pinos e rodelas de
metal em suas costas e por você de pé novamente,
mas dê uma olhada à sua volta meu filho,
nenhum daqueles médicos tem o poder de fazer
uma lâmina de uma folha de capim.
Foi então que André percebeu que seu pai
havia lhe dado a maior e mais valiosa lição de
toda sua vida, de toda a sua jornada:
De que ele nunca esteve, nem nunca estaria
só, pois há sempre na vida um “Mágico”, há
sempre Deus e com ele sempre haverá a
esperança.
Então, ele firma seu corpo, relaxa e solta o
assento que segurava com força, olha para fora da
janela e sorri, pois no fundo de seu coração, ele
sabe que ama seu pai mais do nunca na vida, pois
ele lhe devolveu a esperança perdida e com ela, a
certeza de que a esperança é o cabide onde
penduramos nossos sonhos, até que um dia eles
sejam realizados.
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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A LÂMPADA E A LUZ
E lá estava ela, a lâmpada fluorescente
compacta, com seu design moderno e arrojado,
acomodada confortavelmente em seu trono numa
gôndola de uma grande loja de materiais para
construção. Ela tinha consciência de que era
famosa, de que tinha vindo de berço esplêndido,
afinal, seu fabricante era uma multinacional
conhecida no mundo inteiro.
Por este motivo, ela era convencida, olhava
para as outras concorrentes com desdém, ela se
achava melhor do que todas as lâmpadas do
mundo e tinha pavor, só de pensar, em viver no
meio da pobreza, pois seu lugar era nos
ambientes requintados, não em qualquer lugar.
Ela era admirada e elogiada por suas
características. Seu design futurista encantava a
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todos e sua incrível capacidade de duração era
decisiva na hora da compra, sem falar é claro, que
ela, ao contrário das antigas e ultrapassadas
lâmpadas incandescentes, propiciava a luz do dia
nos ambientes internos, mais um motivo para que
ela se sentisse a melhor lâmpada exposta naquele
corredor.
Desde que nasceu e veio parar na loja, que
ficava num shopping famoso de São Paulo, ela
sonhava em ser comprada por alguém de muito
bom gosto, que a colocasse em lugar de destaque,
porque ela nasceu para brilhar e não seria justo
para uma lâmpada como ela ser comprada sem
critério e ser colocada, como ela dizia, num
pardieiro qualquer.
Certo dia, ela foi comprada, exatamente
como acontece a qualquer produto numa loja;
uma cliente entrou preocupada no corredor onde
ela estava exposta e no meio de tantas
concorrentes, ela foi escolhida com louvor.
E ela se foi, feliz e orgulhosa por ter sido
comprada por uma pessoa fina e elegante e tinha
certeza de que seu destino era ficar em lugar de
destaque na residência dela, num condomínio de
luxo, pois pelo que a lâmpada pode ler na nota
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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fiscal, ficava no bairro do Morumbi. Todas as
outras lâmpadas ficaram lá na loja, tristes e
esperando a sua vez, e imaginando qual seria o
destino que estava reservado para elas e assim,
dias, semanas, meses se passaram, e uma a uma,
foram sendo compradas afinal, porque o
fabricante da lâmpada fluorescente compacta,
mais vendida no mundo, havia falido e então,
todas as outras marcas tiveram sua chance de
mostrar seus produtos, que também eram de
qualidade e ganhar, não só a confiança do
consumidor, mas também um bom conceito no
mercado da iluminação.
Lá, no condomínio de alto luxo, aquela
lâmpada orgulhosa e convencida, tinha estado
desde que chegou, no lugar de mais status da
residência. Ela tinha sido instalada em um spot,
dando vida e charme a um quadro de um pintor
famoso, pendurado num canto, à meia luz. Ela
nunca pensou em sua vida que seria tão feliz. Era
impressionante como sua luz destacava com
magia os detalhes daquela obra de arte e ela era
elogiada por todos que visitavam a casa, porque
sem ela, aquela obra de arte não seria nada, sem a
devida luz.
JOSÉ ARAÚJO
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Lâmpada mais feliz que ela não poderia
haver, pois ela era a lâmpada mais importante
daquela casa. Ela participava de tudo, das
grandes festas, das grandes comemorações e
assim, seu sonho era terminar seus dias no
mesmo lugar.
A dona da casa, uma empresária altamente
ativa e participante em todas as áreas de sua
empresa, soube numa reunião que a
multinacional, a fabricante da lâmpada
fluorescente compacta que iluminava seu quadro
tão valioso, havia falido, e pensando longe, ela
resolveu que iria trocar aquela lâmpada, porque
afinal, sendo ela um modelo especial, com um
design arrojado e diferente, logo não poderia ser
reposta por outra igual.
Para o desespero da lâmpada, num certo
dia, sem mesmo ser avisada de tal, (um absurdo,
pelo fato dela ser uma lâmpada tão especial), veio
a governanta com a faxineira e a removeram do
spot e nele foi colocada outra lâmpada, de outro
fabricante, do qual ela nem mesmo havia ouvido
falar. Ela não sabia, mas seu destino era a
luminária da cozinha, e lá ela se foi, nas mãos de
uma faxineira (outro absurdo, ela pensava), rumo
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
36
ao lugar onde ficavam os pobres, ela iria ficar
entre cozinheiras, faxineiras, copeiras e isto para
ela, era o fim! Quando chegaram à cozinha, havia
um menino num canto, ele estava esperando a
governanta, pois de vez em quando, sempre que
podia, ela doava algumas coisas e alimentos para
ele levar para casa, porque por um destes
gritantes contrastes sociais, no bairro chique do
Morumbi, enquanto de um lado da rua havia uma
rede de condomínios de alto luxo, do outro lado,
havia uma favela e era nela que ele morava.
O pequeno garoto pedia esmolas porque em
sua casa eram ele, sua mãe e mais duas irmãs
menores, pois seu pai, sem coração, os havia
abandonando à mercê do destino, para viver com
outra pessoa. Sua mãe, uma pobre mulher com
pressão alta, além de outras complicações de
saúde, não podia trabalhar fora para manter a ela
e seus filhos e então, só conseguia algum dinheiro
costurando para fora, mas era pouco, só dava
para comer de vez em quando, mas comer todos
os dias, nem pensar.
A governanta, uma pessoa justa, de origem
humilde e de bom coração, desde a primeira vez
que conversou com o garotinho e conheceu sua
JOSÉ ARAÚJO
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casa e sua família, sempre os ajudou como pode,
mas também não era muito, porque sem ordens
da patroa, ela não poderia fazer muito mais.
Tem certas coisas que não tem explicação e
a lâmpada que se achava tão especial, que achava
um absurdo estar sendo levada para a cozinha, foi
dada pela governanta ao garoto, num gesto de
bondade e colocada numa sacola cheia de batatas,
para que ele levasse para sua casa e ela pudesse
ser colocada no bico vazio de luz de seu pobre lar.
A governanta soube pelo garoto que sua
mãe agora só estava podendo costurar enquanto
havia a luz do sol, porque quando chegava a
noite, todos tinham que ir dormir, pois a única
lâmpada que eles tinham era uma velha lâmpada
incandescente que depois de muito tempo, veio a
queimar e eles não tinham dinheiro nem para
comer, quanto mais para comprar outra.
O menino ficou contente, agradeceu à
governanta com um beijo e um abraço e com um
sorriso humilde em seu rosto, dizendo que aquela
noite, ele e suas irmãs poderiam ficar acordados
até mais tarde para brincar. A filha da dona da
casa, que estava por perto, ouviu o que ele disse e
falou com um sorriso lindo e mágico em seu
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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rosto, que mostrava toda a sua felicidade, que
naquela noite, ela também poderia finalmente
ficar acordada até mais tarde, para participar de
uma festa de aniversário e poderia usar seu tão
sonhado vestido novo, todo branco, leve como
uma nuvem, usando um laço vermelho em seus
cabelos.
A lâmpada, ouvindo tudo, mesmo magoada
e ferida por seu destino imposto por aquelas
pessoas, pode ver que não havia no mundo
sorriso mais lindo do que o daquela garotinha e
que em seus olhos havia uma estranha luz e
aquelas imagens, a do sorriso e do olhar da
menina, ficaram gravadas em sua mente
enquanto ela seguia na sacola, pelas mãos do
garotinho, para sua casa na favela. Aquele dia
havia sido o pior da existência daquela lâmpada
que se achava tão especial.
Nele, ela foi destituída de seu mais alto
posto naquela casa, foi condenada a viver entre os
subalternos na cozinha e finalmente, o golpe final,
sua condenação anterior foi revogada e ela foi
sentenciada a viver o resto de sua existência
numa favela, no meio da camada mais baixa da
JOSÉ ARAÚJO
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sociedade e o mundo daquela lâmpada,
fluorescente e compacta, desabou de uma só vez.
Quando o garoto chegou em casa e mostrou
a sua mãe a lâmpada e a sacola cheia de batatas,
ela chorou de alegria, dizendo que o coração
daquela governanta não poderia ser maior, ela
agradeceu a Deus pelo milagre e disse que
naquela noite ela poderia costurar até mais tarde
e ganhar mais algum dinheiro, porque finalmente
haveria luz.
Quando chegou a noite, com a lâmpada
iluminando a escuridão na vida daquela família, o
garotinho e sua irmã do meio estavam sentados
num caixote que usavam como banco, enquanto
esperavam sua mãe preparar algo para comer,
quando sua irmã mais nova chegou por trás, se
enfiou no meio deles, passando os braços no
pescoço dos dois dizendo com um sorriso lindo e
mágico no rosto, que eles não iriam acreditar, mas
naquela noite, eles iriam ter batatas assadas para
o jantar.
Então, todos se abraçaram e sorriram juntos
e nos olhos deles, havia uma estranha luz.
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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Na hora do jantar, foi uma festa, todos
comeram suas batatas assadas, que estavam
deliciosas, na verdade, de lamber os beiços, pois
haviam sido preparadas com o melhor recheio do
mundo, o amor de uma mãe.
Após o jantar, repleto de alegria e felicidade
da mãe e das crianças pela benção recebida, a
cada criança foi dada a metade de uma laranja,
porque não havia o suficiente para mais.
Do outro lado da rua, era possível ouvir a
música tocando e a lâmpada ficava imaginando
que aquela que a substituiu deveria estar sendo o
maior sucesso, no meio daquela gente linda e bem
vestida e aquilo fazia um mal imenso ao seu
coração.
Ela, que observava tudo em silêncio naquele
barraco pobre e mal cheiroso, mas mesmo com
sua tristeza profunda, inconformada pelo seu
destino que ela considerava injusto, não pode
deixar de se perguntar como era possível que nos
rostos e no olhar daquelas crianças, pobres e
maltrapilhas, houvesse aquela mesma luz, a
mesma felicidade e alegria que havia no rosto
daquela menina rica, que tinha tudo que queria
na vida.
JOSÉ ARAÚJO
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A resposta viria mais tarde, quando todos
foram dormir. Naquela casa, onde ela tinha um
lugar de destaque, iluminando o quadro do
famoso pintor, de seu spot num canto da sala, ela
nunca teve a oportunidade de ver mais nada além
de sua própria luz.
As crianças já haviam ido dormir em suas
esteiras espalhadas pelo chão, a mãe delas já
estava cansada e resolveu ir dormir também.
Ela levantou-se com dificuldade, pois sua
dor na coluna a maltratava, fazendo até com que
seus passos fossem dolorosos e dirigiu-se para
onde estava estendida sua esteira e no caminho,
ela apagou a luz.
Foi então que aquela lâmpada foi deixada a
sós, pendurada em um fio elétrico, comprido e
improvisado, para que ela pudesse ser apagada
manualmente, já que não havia nem mesmo um
interruptor naquele barraco.
Na escuridão, olhando pela janela aberta,
finalmente ela descobriu a verdadeira luz. A
janela não havia sido fechada quando todos
foram dormir e por ela, era possível ver os fogos
de artifício e ouvir a música ainda tocando no
condomínio de luxo, do outro lado da rua. Mas
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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olhando para cima, em direção ao firmamento,
naquela noite de céu limpo e radiante, lá estavam
elas, a Lua e as estrelas.
A lâmpada percebeu que elas brilhavam
para todos sem distinção, tanto lá, sobre o teto
dos ricos, quanto cá, sobre o teto dos pobres, e era
o mesmo brilho que a ela viu estampado no rosto,
no sorriso e no olhar da menina rica e das
crianças pobres, que tanto a impressionou.
Foi então que ela compreendeu, observando
encantada aquela magia, que a verdadeira luz é a
luz divina, aquela que brilha para todos, sem
restrição.
Ela entendeu, diante daquilo tudo, que ela
mesma não passava de um objeto, uma simples
lâmpada, feita de matéria e como toda matéria,
era perecível e apesar de ter brilhado para todos,
iluminando a escuridão na vida dos homens, ela
não era nada, comparada àquele espetáculo
eterno de luz.
A lâmpada fluorescente e compacta, com
seu design arrojado e futurista, que desde o inicio
de sua existência se achou melhor do que todas as
outras, digna apenas daqueles abastados e de
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ocupar lugares de destaque no espetáculo da
vida, na verdade, sempre viveu, até aquele
momento, na mais completa escuridão.
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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O GRANDE MAESTRO
Mariléia estava limpando o quarto e local
de trabalho de seu patrão, um escritor mineiro,
nascido e criado em Belo Horizonte, capital de
Minas Gerais, que se mudou para São Paulo,
como muitas outras pessoas de todos os cantos do
país e do exterior. Ele fixou residência na cidade
que nunca dorme, para onde veio à procura de
uma chance para divulgar seu trabalho no
mercado literário, e não demorou muito, com
muita determinação, com seu jeito simples de
escrever e fácil de entender, após algum tempo
ele alcançou seu intuito e se tornou famoso, tendo
seu trabalho reconhecido em vários países do
mundo.
Ela, vinda do nordeste brasileiro, uma
mulher de 32 anos, solteira, sem família na
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cidade, veio também para a grande metrópole,
em busca de uma vida melhor, na esperança de
poder ajudar seus familiares que ficaram no
sertão; trabalhava para o escritor como
empregada doméstica, desde que chegara à
capital paulista, quando ainda era muito jovem.
Léia, como ele a chamava, dormia no
emprego e tinha verdadeira devoção pelo seu
patrão, pois ele ensinou a ela tudo que sabia na
vida, além do que, ela amava tudo que ele
escrevia, era sua maior fã, mesmo que ele e o
mundo inteiro não soubessem disto. Enquanto ela
passava o espanador sobre o teclado do
computador, ela percebeu que ele havia deixado o
equipamento ligado e quando tocou numa tecla, o
protetor de tela foi desabilitado e um texto
apareceu.
Ela não resistiu e leu um trecho do texto,
que falava sobre uma ilha perdida em algum
lugar do oceano, onde havia uma floresta tropical,
com toda a exuberância da natureza, cheia de
animais e plantas de várias espécies, um lugar
paradisíaco onde foi parar uma linda jovem de 16
anos, que ficou órfã de pai e mãe num acidente de
avião, sendo a única sobrevivente da tripulação.
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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Léia leu apenas uma pequena parte do texto, mas
já estava fascinada pelo enredo e não via a hora
de poder ler a estória na íntegra, pois a cada livro
lançado, seu patrão fazia questão de presentear a
ela com um exemplar autografado e com uma
dedicatória muito especial.
Léia nunca viajou para lugar algum desde
que chegou a São Paulo, mas graças aos livros
escritos por seu patrão, ela pode conhecer o
mundo todo, pode se emocionar com um
pequeno esquimó perdido nas geleiras, pode
sorrir e até mesmo chorar com a saga de uma
família de onças Jaguatiricas numa turnê pela
cidade dos homens, perdidas em pleno Metrô,
jogadas por acaso num caminhão de lixo e depois
despejadas nas lamas malcheirosas de um aterro
sanitário, separadas por acaso e procurando
desesperadamente se reencontrar, e isto tudo,
tendo como cenário uma selva diferente daquela
que elas conheciam.
Nela tudo era de pedra, nela o rei não era o
Leão, mas sim um bicho danado e ardiloso, que
destruía ou afastava de si tudo aquilo que ele não
compreendia, por medo de ser superado por
outro bicho, da mesma espécie que a sua.
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Limpando, ela tirava cada coisa de um
lugar e punha em outro, depois colocava tudo em
seus lugares de origem e enquanto fazia isto, ela
falava para si mesma a respeito do trabalho de
seu patrão. Ela falava em voz alta como se
estivesse conversando com alguém que estivesse
junto com ela dentro do quarto, ela dizia que
achava impressionante as estórias e poesias que
saíam daquele teclado de computador e também
que ficava imaginando o que mais viria depois,
porque tudo que surgia através dele era quase
impossível de acreditar que alguém pudesse ter
escrito! Era fantástico, verdadeiramente
impressionante!
Quando acabou de limpar o ambiente, Léia
saiu do quarto e foi fazer seu trabalho nos outros
cômodos do apartamento e quando ela acabou de
sair, uma voz se fez ouvir:
“Eu não disse?” Disse o teclado. “É
impressionante!”
“Isto é o que eu sempre disse!” E ele falou
isto em alto e bom tom para a caneta que estava
ao seu lado e para tudo que estivesse em cima da
mesa do computador.
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É absolutamente incrível tudo que sai de
mim, contando ninguém acredita, mas quando o
ser humano começa a digitar em mim, nem eu
mesmo sei o que vem depois e quando vejo,
coisas fabulosas surgiram de mim, unicamente de
mim, para o mundo! Indignada com a arrogância
do teclado a caneta respondeu: “Você é um mero
principiante!”
“Eu estou aqui muito antes de você e de
toda esta parafernália que o acompanha para você
poder funcionar e posso dizer que de mim,
unicamente de mim, originaram-se e irão se
originar os grandes personagens como príncipes e
princesas, os grandes romances e tragédias, as
grandes aventuras e estórias de ficção que
previram o futuro num passado distante e que
hoje, são parte integrante de nossa realidade.”
“Isto sim, teclado”! Isto é o que é
verdadeiramente incrível!
É tanto, que nem eu mesma consigo
acreditar quando o escritor termina de me usar
para criar suas estórias e com chave de ouro, ele
me usa para assinar o livro e enviar ao editor!
O teclado não poderia deixar de retrucar e
respondeu:
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“Você é um museu! Ninguém usa mais
objetos antiquados como você! As assinaturas
hoje são digitais e usar uma caneta para assinar
documentos já está ficando fora de moda! Já
percebeu que ele não te usa há um tempão? Que
há mais de uma semana ele nem toca em você?”
A caneta, muito triste e ofendida, não
poderia deixar por menos e respondeu à altura:
“Você é um retardado”!
“Você nem mesmo tem o trabalho de
pensar e se o fizesse, saberia que tanto você,
quanto eu somos apenas provedores do meio e
que os méritos da criação são do escritor, pois é a
mente dele que cria as mais belas estórias com as
mais lindas heroínas, com os mais valentes
cavaleiros, com mundos mágicos e intrigantes
para ilustrar seus enredos! “Mas de qualquer
forma, Senhor Arrogância; eu sou mais velha e
mais experiente que você e mais ainda”!
Estou aqui desde os primórdios dos tempos,
sou descendente direta das primeiras penas de
ganso que foram usadas para escrever as
primeiras palavras escritas num livro pelo
homem, e isto, amigo, não tem desenvolvimento
tecnológico que pague!
POR UM MUNDO MELHOR Contos Para Reflexão
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Além do mais, não preciso de energia para
funcionar, mas você, olhe só para você! Nem
consegue ficar acordado se alguém desligar o
computador!”
O teclado, injuriado, não deixou barato e
disse: “Olha aqui, sua múmia! Seu lugar é num
sarcófago, dentro de alguma pirâmide nos confins
do deserto! O escritor deveria enviar você via
Sedex para o Egito, pois tenho certeza de que lá,
nas profundezas das areias do deserto, é que é
seu lugar!”
A caneta sensível e delicada, mais ofendida
do que nunca em sua vida, disse ao teclado:
“Babaca, insensível e arrogante!”
O teclado, é claro, não deixaria de retrucar e
respondeu:
“Você é uma trouxa, sensível e presunçosa!”
Ocorreu que, naquele momento, o escritor
abriu a porta de seu quarto e tudo voltou ao
normal, nem um pio foi ouvido, exatamente como
tinha que ser.
Já era tarde da noite e o escritor tinha
acabado de chegar da espetacular Sala São Paulo,
na Estação Julio Prestes, no bairro da Luz, onde
ele havia assistido um conserto de piano com