Por que ler as grandes obras para as crianças

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Por que ler as grandes obras para as crianças? A boa vida, o amor e a educação das crianças segundo Luc Ferry O filósofo francês Luc Ferry, que foi Ministro da Educação da França de 2002 a 2004, esteve no Brasil ano passado para um encontro no Café Filosófico CPFL Especial Fronteiras do Pensamento. Conhecido por seus best-sellers e por expor suas ideias de forma leve, clara e bem-humorada, Luc Ferry falou sobre a boa vida e a insurgência do amor. Perguntado sobre o que é a boa vida, Ferry utilizou-se de uma narrativa, contou a história de Ulisses da Odisseia que encerra os três critérios para uma boa vida: a aceitação da morte, a vivência do presente e a capacidade de encontrar o seu lugar no universo. A Odisseia é uma obra da Grécia Antiga e um dos grandes clássicos de toda literatura universal porque atinge até hoje a todas as pessoas. Luc Ferry nos mostrou a importância das grandes obras para ajudar o ser humano se firmar perante a desorganização e a inviabilidade da vida. Disse ele também sobre a revolução do amor. O amor é um fenômeno recente na civilização. Na Idade Média não se casava por sentimento, mas por interesse econômico para transmitir o patrimônio. Não se amavam os filhos, interessava-se somente a continuidade da linhagem. Com o advento do Capitalismo e a possibilidade de independência, principalmente das mulheres, surgiu a possibilidade de se escolher o(a) parceiro(a) não por conveniências, mas por amor, ou seja, o Capitalismo e o trabalho trouxe o amor para os casais. Esta insurgência do amor trouxe três consequências: 1) A invenção do divórcio: a liberdade de escolha nos relacionamentos tornou-os mais instáveis, pois a paixão amorosa precisa de cuidados, e não são todos que estão preparados; 2) A desconstrução do sagrado: antes sacrificava-se por Deus e as religiões, a pátria e as revoluções. Hoje se percebe que ninguém morre por ideias, não vivemos na era do vazio,

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Por que ler as grandes obras para as crianças?

A boa vida, o amor e a educação das crianças segundo Luc Ferry

O filósofo francês Luc Ferry, que foi Ministro da Educação da França de 2002 a 2004, esteve no Brasil ano passado para um encontro no Café Filosófico CPFL Especial Fronteiras do Pensamento. Conhecido por seus best-sellers e por expor suas ideias de forma leve, clara e bem-humorada, Luc Ferry falou sobre a boa vida e a insurgência do amor.

Perguntado sobre o que é a boa vida, Ferry utilizou-se de uma narrativa, contou a história de Ulisses da Odisseia que encerra os três critérios para uma boa vida: a aceitação da morte, a vivência do presente e a capacidade de encontrar o seu lugar no universo. A Odisseia é uma obra da Grécia Antiga e um dos grandes clássicos de toda literatura universal porque atinge até hoje a todas as pessoas. Luc Ferry nos mostrou a importância das grandes obras para ajudar o ser humano se firmar perante a desorganização e a inviabilidade da vida.

Disse ele também sobre a revolução do amor. O amor é um fenômeno recente na civilização. Na Idade Média não se casava por sentimento, mas por interesse econômico para transmitir o patrimônio. Não se amavam os filhos, interessava-se somente a continuidade da linhagem. Com o advento do Capitalismo e a possibilidade de independência, principalmente das mulheres, surgiu a possibilidade de se escolher o(a) parceiro(a) não por conveniências, mas por amor, ou seja, o Capitalismo e o trabalho trouxe o amor para os casais.

Esta insurgência do amor trouxe três consequências:

1) A invenção do divórcio: a liberdade de escolha nos relacionamentos tornou-os mais instáveis, pois a paixão amorosa precisa de cuidados, e não são todos que estão preparados;

2) A desconstrução do sagrado: antes sacrificava-se por Deus e as religiões, a pátria e as revoluções. Hoje se percebe que ninguém morre por ideias, não vivemos na era do vazio, mas sim do concreto e os únicos hoje em dia pelos quais somos capazes de morrer são outros seres humanos, aqueles que amamos;

3) E o amor incondicional aos filhos: antes não se amavam os filhos, apenas se importava a continuação da linhagem da família. Hoje os amamos apaixonadamente e isto trouxe mudanças no plano coletivo e político pois além de pensar sobre o nosso presente e nosso meio pensamos de maneira global “Que mundo vamos deixar para nossas crianças?”.

Pensando ainda sobre as crianças, Luc Ferry, que também foi professor, diz que a educação ocidental (que é baseada em três culturas: a cristã, a judaica e grega) possui três bases fundamentais: Amor, Lei e Contar Histórias. Abaixo transcrevo algumas falas do filósofo no encontro da CPFL Cultura:

“As crianças são malcriadas, não ficam quietas, falam demais, não há silêncio, não conseguem prestar atenção. Por quê? A educação tem três aspectos. Para mim, filosoficamente, isto é muito profundo. A educação dos ocidentais é: cristã, judaica e

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grega, e ela é feita sob três bases: 1) o amor: a mensagem de cristo. 2) a Lei: a mensagem de Moisés. 3) as grandes obras: o saber. O amor é o mais importante. Quanto mais amamos um filho, quanto mais amor dermos aos nossos filhos, mais condições eles terão de superar os acidentes da vida. Quanto mais amada for uma criança, mais amor de si ela terá e por isso será mais capaz de reagir face às dificuldades da existência. A segunda coisa que é preciso é a Lei. Sem a Lei, o que Lacan chamava de “simbólico”, mas pouco importa, a Lei é o que nos permite entrar na civilidade. Este é o problema dos professores, não somos mais capazes de mandá-los dormir na hora certa. Não somos capazes de estabelecer a Lei. Negociamos com nossos filhos, é idiota. Não se deve negociar com eles. Quando você diz ‘sim’ é sim; quando diz ‘não’ é não. Podemos negociar um pouco, mas não muito. Quando vocês negociam com seus filhos: ‘Você vai se deitar às 8 horas’. ‘Não, papai, às 8h15, 8h30’. Pode-se negociar um pouco, mas saibam desde o começo até onde podem ir. Não negociem durante horas. O princípio fundamental da transmissão da Lei mosaica [de Moisés], que o seu ‘sim’ seja um sim, que seu ‘não’ seja um não. Na educação judaica as crianças não perguntam por quê. O terceiro elemento, claro, é o saber, as grandes obras. Por que é preciso transmitir as grandes obras? Não lhes digo isso por uma espécie de humanismo burguês em que um velho universitário defende as grandes obras, do tipo ‘Eu defendo o grego e o latim’. Não tem nada a ver com isso. Vivemos em um mundo de hiperconsumo, onde somos permanentemente tentados por todo tipo de pequenos objetos maravilhosos. Temos vontade de comprar roupas, celulares, carros. Todos esses objetos são magníficos e cada vez mais tentadores. E vivemos em um mundo de consumo permanente. O consumo, meus caros amigos, tem a mesma estrutura que o vício. O que é um drogado? É alguém que, depois de certo limiar, não pode se impedir de aumentar as doses e de aumentar o número de vezes que se droga. Ele sempre toma mais e mais frequentemente, até a morte. O único meio que eu conheço de lutar contra o consumo viciante é dar às nossas crianças o sentimento de que há coisas mais belas e mais importantes. É vital transmitir aos pequenos, quando eles têm quatro, cinco, seis anos, os contos de fadas e as narrativas da mitologia grega para lhes dar o sentimento de que há coisas superiores ao registro do consumo. Não é proibindo o consumo que chegaremos lá, isto não funciona. É preciso nivelar por cima, dando o sentimento de que há elementos na cultura que são mais intensos, mais profundos, mais divertidos. Por exemplo, o que é incrível na mitologia grega é que ela é muito crua, muito dura. Ela fala de sexo, de morte, de sadismo, de amor, de guerra. É isso fascina as crianças. Não se deve edulcorar. Os verdadeiros contos dos irmãos Grimm são perversos. Em Cinderela, as irmãs Anastácia e Genoveva, vocês sabem como elas foram punidas? Vamos relembrar: foram obrigadas a calçarem sapatos de ferro, que haviam sido aquecidos na chaminé e estavam cheios de navalhas. É cru, duro, sádico. Isto não perturba as crianças. Elas acham normal que os malvados sejam punidos com dureza. É preciso ler os contos de fadas. É o único meio de fazê-los ir além do mundo do consumo. É por isso que eu digo que a educação é o amor, a Lei e as grandes obras. Os três aspectos são necessários.”

Bruno Latorre