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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Relações Internacionais
MEMÓRIA E IDENTIDADE: uma análise dos murais do conflito na Irlanda do Norte
Viviane Vieira Gomide
Belo Horizonte 2010.
VIVIANE VIEIRA GOMIDE
MEMÓRIA E IDENTIDADE: uma análise dos murais do conflito na Irlanda do Norte
Dissertação de Mestrado submetida à banca examinadora designada pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais , como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Relações Internacionais. Orientador: Paulo Luiz Moreaux Lavigne Esteves.
Belo Horizonte 2010.
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Gomide, Viviane Vieira
G633m Memória e identidade: uma análise dos murais do conflito na Irlanda do Norte / Viviane Vieira Gomide. Belo horizonte, 2010.
129f. : il. Orientador: Paulo Luiz Moreaux Lavigne Esteves
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Relações Intencionais
Bibliografia.
1. Identidade – Irlanda do Norte. 2. Memória. 3. Segurança internacional. 4. Terrorismo. 5. Pós-estruturalismo. 6. Irish Republican Army. 7. Royal Ulster Constabulary. 8. Ulster Volunteer Force. I. Esteves, Paulo Luiz Moreaux Lavigne. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós- Graduação em Relações Internacionais. III. Título.
CDU: 327(416)
VIVIANE VIEIRA GOMIDE
MEMÓRIA E IDENTIDADE: uma análise dos murais do conflito na Irlanda do Norte
Dissertação de Mestrado submetida à banca examinadora designada pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Relações Internacionais.
Prof. Dr. Paulo Luiz Moreaux Lavigne Esteves (PUC Minas) – Orientador. Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Relações Internacionais (PUC
Minas).
Prof. Dr. Cristiano Garcia Mendes – Examinador. Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Relações Internacionais (PUC
Minas).
Prof. Dr. Eduardo Soares Neves Silva – Examinador. Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Minas Gerais.
Belo Horizonte, 12 de abril de 2010.
Aos meus pais.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, e como não poderia deixar de ser, gostaria de apresentar
meus agradecimentos aos meus pais. Não somente por todo o apoio dado durante o
mestrado, mas por TUDO. Simplesmente, por tudo.
Também não posso deixar de agradecer a minha irmã pelo carinho, pelas
broncas, por me colocar pra frente nos momentos mais difíceis. E mais do que isso: por
ser a minha melhor amiga. A minha avó, por ser a pessoa mais forte que eu conheço e
um grande exemplo para mim.
Ao Bruno: pessoa mais prestativa de todos os tempos! Muitos almoços
japoneses ainda virão, como forma de TENTAR agradecer por toda a paciência que
você teve comigo! A todos os meus amigos e familiares, cujos nomes não citarei, para
não correr o risco de me esquecer de alguém.
A toda equipe do CAIN (Northern Ireland Conflict, Politics, & Society), mas
principalmente ao Dr. Martin Melaugh por todo o suporte dado em tudo o que se diz
respeito ao estudo do conflito na Irlanda do Norte.
Aos funcionários e aos grandes professores do Mestrado em Relações
Internacionais da PUC Minas. E claro, aos meus colegas de turma! Nesses dois anos,
todos os momentos difíceis que são intrínsecos a um mestrado foram mais facilmente
ultrapassados graças a vocês!
Agradeço ao Conselho Nacional Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil, pelo
financiamento e apoio dado através do Programa Renato Archer de Apoio à Pesquisa
em Relações Internacionais.
Finalmente, agradeço, imensamente, ao meu orientador Paulo Esteves, que me
estimulou intelectualmente de uma forma que eu jamais poderia imaginar. Serei
eternamente grata!
RESUMO
Este trabalho realizou uma análise dos murais existentes em toda a Irlanda do
Norte, especialmente nas duas principais cidades: Belfast e [London] Derry. Eles
retratam o notório conflito entre unionistas (protestantes) e republicanos (católicos).
Através dessas figuras, ambas comunidades puderam expressar suas opiniões, suas
convicções, no antes, durante, e após a assinatura do Acordo de Paz.
O objetivo foi compreender, através dessas representações, como as respectivas
identidades foram construídas, sustentadas, e talvez mudadas, em um ambiente
profundamente marcado pelo terrorismo. Também buscou entender qual o efeito do
recurso à memória nessas identidades. Para tal fim foi utilizada a teoria Pós-
estruturalista das Relações Internacionais. Essa base teórica permitiu compreender
como certas exclusões e apagamentos precisariam ser feitos a fim de se criar um
discurso que mantenha cada identidade coletiva estável.
Palavras-chave: Identidade, Memória, Segurança, Terrorismo, Pós-estruturalismo,
Irlanda do Norte, IRA, RUC, UVF.
ABSTRACT
This paper made an analysis of the murals found in Northern Ireland, specially
the two main cities: Belfast and [London] Derry. They portrait the notorious conflict
between unionists (protestants) and republicans (catholics). Through those images, both
communities managed to express their opinions, their convictions, before, during and
after the signing of the Peace Agreement.
Its goal was to understand, through those representations, how both identities
were constructed, sustained, and perhaps, changed, in an environment profoundly
marked by terrorism. It had also the goal to understand what is the effect caused by the
recourse to memory in those identities. To obtain its objectives, the theory used was the
Post-structuralism of International Relations. This theoretical basis allowed the
understanding that some exclusions have to be made in order to create a discourse that
sustains each collective identity as stables.
Key-words: Identities, Memory, Security, Terrorism, Post-structuralism, Northern Ireland,
IRA, RUC, UVF.
LISTA DE FIGURAS
Mapa 1 Divisão da Irlanda após o Tratado de 1921. 20
Figura 1 Rei Guilherme atravessando o Boyne, com um soldado jacobita
morto na margem do rio. 66
Figura 2 Mural emorial a Trevor King, da UVF, 1o Batalhão, com emblema da
Protestant Action Force. 66
Figura 3 You Are Now Entering Free Derry. 68
Figura 4 Mural da Greve de Fome 68
Figura 5 Homem com Coquetel Molotov: Batalha de Bogside. 69
Figura 6 Michael Stone, descrito como Rei Guilherme, atravessando o Rio Boyne. 70
Figura 7 Unionista armado com o emblema da Ulster Defence Association. 71
Figura 8 Republicano armado “Óglaígh na hÉireann”(Voluntários da Irlanda),
com o sol nascente, símbolo do Na Fianna Éireann, ala jovem do IRA. 71
Figura 9 “End British collusion” (Fim do conluio britânico),com membros dos
grupos paramilitares unionistas, Ulster Defence Regiment e Royal
Ulster Constabulary.
72
Figura 10 Soldados britânicos partindo, “Slán abhailé” (lar seguro). “25 years,
time to go”. 73
Figura 11 Slogan da Ulster Volunteer Force. Em nome da população unionista
da Rua Shankill, nós aceitamos a incondicional rendição do IRA. 74
Figura 12 Republicanos derrubam a estatua do Sir. Edward Carson no lado de
fora do prédio de Stormont. ‘Um parlamento protestante para
população protestante – Não mais!’
75
Figura 13 Unionistas incendeiam a Bombay Street, Belfast em Agosto de
1969. ‘Bombay St, nunca mais!’. Decommission – no mission.’ 76
Figura 14 Bowler-hatted thugs wearing Orange Order sashes. ‘Coming soon to
a neighbourhood near you, the Clockwork Orangemen. Programmed
to intimidate every July.’
76
Figura 15 Unidade de serviço ativo do IRA em uma casa local. Figuras de militantes
do IRA: Tommy Tolan, James McGrillen, Michael Kane e John Stone. 77
Figura 16 Retrato de Kieran Doherty, membro da Greve de Fome e pessoas
protestando. 77
Figura 17 Retratos dos sete signatários da Proclamação da República, 1916,
GPO ao fundo. 77
Figura 18 Mãos cerradas, correntes quebradas, mapa da Irlanda do Norte e paredes
de prisões, banderias da UDA e Ulster. ‘Alguns deram tudo. Todos deram
algo. Libertem nossos prisioneiros. Ulster Freedom Fighters.’
78
Figura 19 Banda de Flautistas Protestantes do Leste de Belfast, emblemas e
bandeiras da UVF. ‘Nossa mensagem é simples: aonde a nossa
música é bem vinda, tocaremos alto. Aonde nossa música é
desafiada, tocaremos ainda mais alto’
78
Figura 20 Homens armados e mascarados da UVF, com símbolos da
organização. ‘Preparados para a paz, prontos para a guerra’ 79
Figura 21 Retrato do levante de 1641. ‘Perseguição ao povo protestante pela
Igreja de Roma 1600. A limpeza étnica acontece ainda hoje’. 80
Figura 22 O Ulster retratado como novo durante a crise do Home Rule.
‘Abandonado! Bem, eu posso me defender sozinho.’ Mulher mascarada
e armada e um homem no trator. ‘A esposa protestante de um
fazendeiro guarda seu marido contra ataques sectários além-fronteiras’
80
Figura 23 Membro do RUC usando colete da Ordem Orangista. 88
Figura 24 Union Jack e emblemas da Ulster Volunteer Force e Protestant
Action Force. ‘Nós nunca vamos aceitar uma Irlanda reunificada. O
Ulster ainda diz não’
89
Figura 25 Armas unionistas ‘vendida na África do Sul, comprada pela MI5,
fornecida para os esquadrões de morte da UFF e UDA’. 90
Figura 26 “Time to go for British soldiers, Police, judges and capitalists.” Hora
de ir para solados, policiais, juízes e burgueses britânicos. 90
Figura 27 Mural unionista que clama pela liberdade Johnny Adair. 91
Figura 28 Liberdade para os Prisioneiros de Guerra. 91
Figura 29 Cú Chulainn, as quatro províncias irlandesas e “Mise Éire mor mo
gloir” – Eu sou a Irlanda, fantástico é a minha glória. 98
Figura 30 Defensores atuais do Ulster. Brigada Oeste da UDA junto ao Cú Chulainn
“defensor ancião do Ulster dos ataques irlandeses há mais de 2000 anos.” 98
Figura 31 Membro da Royal Ulster Constabulary com balas de plástico. 99
Figura 32 As promessas do Acordo da sexta-feira Santa contrastadas com a
realidade de uma continuada perseguição e violência unionista. 101
Figura 33 Nem todas as tradições merecem respeito. 104
Figura 34 Membro da Ordem Orangista passa pela comunidade nacionalista,
que está trancafiada em celas, assistindo a parada em homenagem
ao Rei Guilherme.
108
Figura 35 Retrato da Princesa Diana “Rainha de Corações”. 109
Figura 36 Secretária de Estado Mo Mowlam, de olhos vendados, lava suas
mãos enquanto oficial da RUC, usando a braçadeira da ‘SS’, indica
a rota Orangista aprovada para a marcha, através da rua
nacionalista Lower Ormeau Road.
109
Figura 37 Mural que celebra o 150o Aniversário da Grande Fome. “Quando a
safra de batata colapsou, causando a Grande Fome, pessoas
assistiram desesperadas, enquanto navios eram acompanhados por
tropas britânicas”.
110
Figura 38 Gerry Adams, presidente do Sinn Féin, como uma maleta e uma
arma. “Esse é o comprometimento do Sinn Féin com o processo de
paz – ‘Armas vindas da Flórida’, - ‘Treinamento de rebeldes das
Farc’, ‘Invasão a Castereagh’ e ‘Espionagem em Stormont’”.
111
Figura 39 Representação da Batalha de Bogside de 1969. 115
Figura 40 Você está entrando, agora, na loyalist Sandy Row. Coração da UFF
Sul de Belfast. 116
Figura 41 Paramilitar armado, do Batalhão A da UFF. Escrito: ‘Não é pela
glória que nós lutamos, nem riqueza, nem honrarias – mas somente
por liberdade. Na qual um homem bom só perde com a sua vida.’
116
Figura 42 30 anos de chacinas indiscriminadas, cometidas pelos chamados
“não-sectários Combatentes da Liberdade Irlandesa.” 117
Figura 43 Muro que separa o bairro Católico de Falls Road para o Protestante
Shankill Road. 119
Figura 44 Mensagens de paz. “Seja a solução que você queira ver no mundo.
Paz para todos”, “ Guinness e política/religião não se misturam.
Pense de forma australiana, beba de forma irlandesa”.
120
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ASU Active Service Unit
BBC British Broadcasting Corporation
CIRA Continuity Irish Republican Army
ICI Imperial Chemical Industries
IR International Relations
IRA Irish Republican Army
IRB Irish Republican Brotherhood
INLA Irish National Liberation Army
NICRA Northern Ireland Civil Rights Association
Org Organizador
PIRA Provisional Irish Republican Army
PSNI Police Service of Northern Ireland
RI Relações Internacionais
RIC Royal Irish Constabulary
RUC Royal Ulster Constabulary
RIRA Real Irish Republican Army
R.T.È Radio Telefis Eireann
RUC Royal Ulster Constabulary
S.D.L.P Social Democratic & Labour Party
TRI Teorias de Relações Internacionais
UDA Ulster Defence Association
UDR Ulster Defence Regiment
UFF Ulster Freedom Fighters
UVF Ulster Volunteer Force
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 12 2 A IRLANDA DO NORTE................................................................................................... 14 2.1 Uma revisão histórica.................................................................................................. 14 2.1.1 Da colonização pela Inglaterra até 1916..................................................................... 15 2.1.2 O Levante da Páscoa e a divisão da ilha.................................................................... 18 2.1.3 Os anos 60 e o Movimento de Direitos Civis.............................................................. 23 2.1.4 O Bloody Sunday e o Bloody Friday........................................................................... 27 2.1.5 As greves de fome na década de 80.......................................................................... 29 2.2 O processo de paz....................................................................................................... 31 2.2.1 O processo até o Acordo de Paz de 1997.................................................................. 32 2.2.2 O Acordo da Sexta Feira Santa.................................................................................. 34 3. FORMAÇÃO DE IDENTIDADE E AS TEORIAS DE RI.................................................. 39 3.1 Identidade e o Construtivismo de Wendt................................................................... 40 3.2 Maja Zehfuss e sua crítica a Alexander Wendt.......................................................... 44 3.3 Identidade e o Pós-estruturalismo das Relações Internacionais............................ 47 3.3.1 O Pós-estruturalismo nas Relações Internacionais.................................................... 47 3.3.2 Identidade e o Pós-estruturalismo............................................................................... 49 4. MURAIS, MEMÓRIAS E IDENTIDADES......................................................................... 60 4.1 O uso do documento.................................................................................................... 60 4.1.1 Documento e Monumento........................................................................................... 60 4.2 Os Murais: contexto histórico..................................................................................... 63 4.2.1 Dos primeiros murais ao processo de paz.................................................................. 64 4.2.2 A década de 90........................................................................................................... 69 4.2.3 Os anos do processo de paz....................................................................................... 72 4.3 A produção da insegurança........................................................................................ 80
4.3.1 Terrorismo e o Dilema de Segurança......................................................................... 81 4.3.2 – Conclusão................................................................................................................. 92 4.4 Memória......................................................................................................................... 94 4.4.1 Conclusão.................................................................................................................... 110 4.5 Territorialidade............................................................................................................. 113
4.5.1 Conclusão.................................................................................................................... 120 5. CONCLUSÃO.................................................................................................................. 122
6. REFERÊNCIAS................................................................................................................ 125
12
1. INTRODUÇÃO
Como um conflito pode ser ilustrado? Como uma rivalidade centenária pode ser
representada graficamente?
A disputa histórica entre católicos (republicanos) e protestantes (unionistas), na
Irlanda do Norte, é uma das mais longas e violentas do século passado. Estima-se mais
de 30.000 feridos e 3.600 fatalidades. Quando se leva em consideração que a
população local gira em torno de um milhão e meio de habitantes, entende-se que
metade dela era próxima desses mortos e feridos (FITZDUFF; O’HAGAN, 2000).
Foi um conflito que teve atores importantes, como a Inglaterra, a República da
Irlanda e Estados Unidos. Internamente, o IRA, o INLA, a UVF, a UFF e a RUC
desempenharam funções primordiais nesse palco marcado por sérias e famosas
tragédias, como o Bloody Sunday.
Desde os atentados terroristas de 11 de setembro, muito se discute sobre as
formas, as políticas, as estratégias que devem, ou não, ser adotadas para combater
esse tipo de ação.
O presente trabalho tem como objetivo entender como identidades são formadas
e sustentadas em um ambiente marcado pelo terrorismo. Qual o impacto da
insegurança gerada? Como a memória dos grupos envolvidos são retratadas,
evocadas, a fim de se sustentar os objetivos de cada um?
Para se tentar responder essas questões adotar-se-á como objeto de estudo
murais que eram erguidos no país, principalmente nas cidades de Belfast e [London]
Derry, e que são importantes retratos das posições adotadas nesse notório conflito.
Como um mesmo evento (por exemplo, o Bloody Sunday) é retratado por cada um dos
lados? Qual foi o impacto do Acordo de Paz de 1998 nesses murais? 1
Uma dificuldade encontrada, desde o início da pesquisa, foi a grande rotatividade
que esses murais têm. Alguns não se sustentam por muito tempo e acabam sendo
1 É importante ressaltar que, mesmo sendo os ingleses atores fundamentais nesse confronto, eles não erguiam murais. Dessa maneira, quando se questiona as posições dos dois lados do conflito, essa referência é feita aos republicanos e unionistas.
13
substituídos; outros, por gerarem mais impacto, polêmica, recebem novas pinturas e
permanecem por anos, até mesmo décadas.
Assim, estabeleceu-se que somente seriam analisados aqueles que se tivessem
as datas que foram erguidos, e as obras de Bill Roston, Drawing Support 2: murals of
war and peace e Drawing Support 3: murals and transition in the North of Ireland foram
de extrema importância para a plena execução do trabalho.
Para tanto, será utilizado como marco teórico o Pós-estruturalismo das Relações
Internacionais. O foco central será dado sobre o entendimento que os teóricos dessa
corrente estabeleceram em torno da noção de identidade: como ela é construída e
sustentada. Três categorias foram estabelecidas para a análise: segurança, memória e
territorialidade. A partir delas, busca-se entender a construção das identidades coletivas
de republicanos e unionistas representadas nos murais.
A divisão dos capítulos será feita da seguinte forma:
O capítulo 2, ‘A Irlanda do Norte’, é histórico. Apresenta como foi criado o
ambiente de tensão entre católicos, protestantes e ingleses durante os séculos, o The
Troubles, até a assinatura do Acordo de Paz (também conhecido como Acordo de
Belfast, Acordo da Sexta-Feira Santa e Acordo de Stormont2).
O capítulo 3, ‘Formação de identidade e as teorias de RI’, introduz a
compreensão de Alexander Wendt sobre identidade, visto que foi um dos primeiros
autores a trabalhar essa questão incisivamente. Em seguida, será apresentada a forma
em que a autora Maja Zehfuss desconstrói a análise de Wendt. Finalmente, a
compreensão de identidade dada pelos pós-estruturalistas encerrará o capítulo.
O 4, ‘Murais, memórias e identidades’, iniciará com o estudo de como os
murais são entendidos: como documento-monumento. Posteriormente, será feita a
contextualização dos murais. Em seguida, será feita a análise das três categorias
selecionadas, segurança, memória e territorialidade.
Finalmente, no capítulo 5 serão apresentadas as conclusões obtidas ao longo
do trabalho.
2 Para acessar o Acordo de Belfast, ver: http://www.nio.gov.uk/agreement.pdf
14
2. A IRLANDA DO NORTE
O duradouro conflito na Irlanda do Norte atrai, há décadas, a atenção de
especialistas em Segurança Internacional, jornalistas, leigos, entre outros.
O presente capítulo será dividido em duas partes: a primeira resgatará a história
da Ilha, da sua colonização até a década de 90. Já a segunda enfocará o processo de
paz desde o momento em que esse passa a ser entendido como possível até os
desdobramentos do Acordo de Belfast.
2.1 Uma revisão histórica
A Irlanda é [...] uma ilha com uma longa história de divisão determinada, não por sua geografia, mas por decisões tomadas por sua ilha vizinha, a leste. Vinte e seis dos seus condados e 5/6 (cinco sextos) de seu território, com população em torno de três milhões e meios de pessoas, são governados pela República da Irlanda, com sua capital em Dublin. Os seis condados restantes, no nordeste da ilha, com aproximadamente um milhão e meio de pessoas, fazem parte do Reino Unido e são governados por Londres. Considerando-se tudo, com exceção do que a maioria das pessoas idosas possam lembrar, há um conflito entre aqueles que querem acabar com a divisão (denominados nacionalistas ou republicanos3) e aqueles que não querem (denominados unionistas ou loyalists). (MCFERRAN, 1997, p.x - tradução nossa) 4.
3 Vale ressaltar que os termos nacionalistas/católicos/republicanos e loyalists/ protestantes/unionistas são comumente utilizados, na literatura, como sinônimos, mesmo que erroneamente. 4 “Ireland is [...] an island with a long history of division determined not by its geography but by decisions made on its neighbor island to the east. Twenty-six of its counties and five-six of its landmass, with about three and a half million people, are governed by the Republic of Ireland with its capital in Dublin. The remaining six counties in the northeast of the island, with about a million and a half more people are part of the United Kingdom and are governed from London. For as long as all but the most elderly Irish can remember, there has been conflict between those who want to end this partition (termed nationalists or republicans) and those who do not (termed unionist or loyalist).”
15
2.1.1 Da colonização pela Inglaterra até 1916
Não é uma tarefa fácil apontar exatamente quando o conflito na Irlanda do Norte
começou. O chamado The Troubles – período de disputas violentas entre ingleses e
irlandeses católicos e protestantes – é entendido por ter ocorrido entre a década de 60
e os anos 90. Porém, dependendo de qual dos lados analisados, a resistência irlandesa
perante a presença inglesa na ilha pode ser datada no ano de 1169, com a invasão
normanda à ilha. Para os republicanos, ali começaram os “oitocentos anos de opressão
britânica” (COOGAN, 1997, p. 1 – tradução nossa5) e, consequentemente, a luta pela
sua expulsão.
Este autor aponta que a ocupação britânica não foi pacífica e que aqueles que
ocuparam o trono inglês – os Tudors, os Stuarts, Cronwell e Guilherme de Orange –
tiveram altos e baixos em suas intenções de tornar a Irlanda, uma região de influência.
Essas dificuldades aumentaram com a Reforma, visto que os irlandeses a ela não
aderiram, permanecendo fiéis ao Vaticano, enquanto as forças monárquicas tornaram-
se protestantes.
Nessa época, a dinastia Tudor tomou uma atitude que teria grande impacto para
toda a ilha irlandesa. Ingleses e escoceses protestantes – episcopais e presbiterianos –
foram incentivados a ocupar a região nordeste da ilha – o Ulster. Esse momento foi
chamado de The Plantation of Ulster – As plantações do Ulster e
atraiu colonos de todas as classes, na sua maioria donos de pequenas terras ou artesões. Esse padrão de colonização significou que os protestantes viveriam muito próximos aos católicos irlandeses, que foram levados às margens geográficas, porém não exterminados. Dentro de várias gerações, as linhas gerais do conflito tinham sido estabelecidas. O território continha dois grupos que se diferenciavam nas alianças políticas, nas práticas religiosas e nos valores culturais. Um grupo acreditava que suas terras tinham sido roubadas, enquanto o outro estava em um estado constante de apreensão. A Irlanda do Norte ainda sofre pelos problemas de grupos rivais que vivem lado a lado e em constante suspeita um do outro. (DARBY, 2003 – tradução nossa)6
5 “Eight hundred years of British oppression.” 6 “[The ‘Plantation of Ulster’] attracted settlers from all classes, many of them smallholders or artisans. This pattern of settlement meant that the Protestant settlers lived in close proximity to the Catholic Irish who were cleared to the geographical margins but not exterminated. Within several generations the broad outlines of the conflict had been established. The territory contained two groups who differed in political
16
Uma série de massacres ocorreram e a imagem de Guilherme de Orange,
liderando forças protestante na Batalha do Boyne, em 1690, é utilizada até hoje como um
dos mais importantes símbolos dos unionistas/protestantes7. Teve-se, como conseqüência
dessa vitória, o fato de que os católicos passaram a ser vistos como traidores e, leis
impostas subsequentemente, praticamente impossibilitaram o acesso à educação e a
compra de terras sem que estes renunciassem sua religião (COOGAN, 1997).
Em 1795, sob influência das Revoluções Americana e Francesa, foi criada uma
sociedade secreta, a United Irishmen, por protestantes de classe média, que
objetivavam a união entre católicos e protestantes na luta por uma república irlandesa8.
Nesse mesmo ano, outra organização foi criada, também por protestantes: a Orange
Order, um dos grupos políticos e econômicos mais fortes da região. Os conflitos
sectários aumentaram e serviram de pretexto para que Londres, em 1800,
suspendesse o parlamento de Dublin9 pelo Act of Union.
Além desses conflitos, a história da Irlanda foi marcada por um grande trauma, a
“Grande Fome” – The Great Famine – entre os anos de 1845-1852. Uma praga nas
plantações de batatas, um dos principais componentes da alimentação do país, levou
um milhão de irlandeses à morte (cerca de 25% da população da época), outro milhão
emigrou (principalmente para Inglaterra e Estados Unidos). Quem sobreviveu e ficou no
país teve os anos seguintes marcados por pobreza e doenças (COOGAN, 1997).
Pouco tempo depois da Grande Fome ocorreu a criação do IRB, o Irish
Republican Brotherhood10 – também conhecido como “fenianos”11 – em 1858, pelo
protestante James Stephens (COOGAN, 1993). Tinha como causa fundamental o
allegiance, religious practice and cultural values. One group believed that their land had been stolen, while the other was in a constant state of apprehension. Northern Ireland still suffers from the problems of rival ethnic groups living cheek by jowl and in suspicion of each other.” 7 Essa questão aparecerá do decorrer deste trabalho. 8 Um dos principais lideres do United Irishmen chamava-se Theobald Wolfe Tone, era protestante, e é considerado, até hoje, um dos pais do republicanismo na Irlanda (COOGAN, 1997.) 9 Este criado em 1783. 10 Em português, “Irmandade Republicana Irlandesa”, e Bráithreachas na Poblachta em gaélico. O IRB teve o seu braço no continente americano, denominado Fenian Brotherhood, e posteriormente Clan na Gael. Lutavam pela causa irlandesa republicana e chegaram a atacar o lado britânico do Canadá. Exigiam a troca do controle canadense pela independência irlandesa (COOGAN, 1993). 11 Voluntários do IRA, inspirados por esse movimento, também passaram a se auto-intitular “fenianos”. Já por parte de ingleses e unionistas, quando usam esse termo para se referirem aos republicanos, o fazem de forma pejorativa.
17
estabelecimento da república irlandesa e, de acordo com este autor, mais do que a luta
armada imposta, a grande relevância do grupo se deu pelo ímpeto gerado pelo ideal
republicano, em discursos que giravam em torno da República, da consciência de ser
irlandês e da identidade do país. O movimento ganhou força suficiente para que a lei
Home Rule – da Irlanda se autogovernar-se – passasse a ser debatida no parlamento
inglês – Westminster.
Obviamente, o fortalecimento da causa republicana não passou incólume e teve
como reação a união dos protestantes que eram contra a Home Rule. Políticos
britânicos passaram a usar a chamada Orange Card – utilizar a situação existente na
Irlanda do Norte para fins de angariar votos em eleições. Nessa época começou a ser
usada a frase “Ulster will fight and Ulster will be right”12 – frase recorrente nos murais
unionistas que serão analisados no presente trabalho.
O movimento contrário ao Home Rule teve um resultado muito significativo: a
formação da UVF – a Ulster Volunteer Force13 – que, inicialmente, teve 100.000
pessoas aderindo à causa. Entre elas, figuras proeminentes da sociedade unionista,
como advogados, juízes; um dos líderes foi Andrew Bonar Law, membro do partido
Conservador e dado como forte candidato a primeiro ministro da Inglaterra.
Em 1914, o acirramento entre os dois lados fez com se começasse a cogitar da
possibilidade de divisão da ilha em duas partes. Havia tanto a proposta de se manter
apenas seis dos noves condados que formam o Ulster da lei do Home Rule: Armagh,
Antrim, Down, Derry, Fermanagh e Tyrone (deixando de fora, assim, Donegal, Cavan e
Monaghan). A outra proposta era de que cada condado decidisse ser contra a lei ou a
favor dela, dependendo da religião predominante de cada um (COOGAN, 1997).
Essas discussões políticas eram acompanhadas de movimentações entre os
grupos paramilitares. A UVF recebia cada vez mais armamentos, vindos principalmente
da Alemanha, o que serviu de pretexto para que o IRB – que tinha perdido forças no
últimos anos – se reorganizasse e fizesse o mesmo. Também foi criado o Irish
Volunteers14, em 1914, para se opor à UVF e que tinham como objetivo principal dar à
Irlanda um parlamento que governaria todos os trinta e dois condados. Ele se uniu ao
12 Em português, “o Ulster lutará e o Ulster estará certo”. 13 Em português, a “Força Voluntária do Ulster”. 14 Em português, “Voluntários Irlandeses”.
18
IRB no objetivo comum de impedir que irlandeses se alistassem para a Primeira Guerra
Mundial e lutassem em nome dos ingleses.
Esta tornou-se, para os republicanos, uma importante forma de lutar por sua
causa. Em 1916, aproveitando-se do fato de que a Inglaterra estava seriamente
envolvida nela e de que soldados irlandeses tiveram que lutar em nome da metrópole15,
rebeldes nacionalistas iniciaram o Levante, que ocorreu principalmente em Dublin16.
2.1.2 O Levante da Páscoa e a divisão da ilha
Liderados por membros do IRB, pelo Irish Volunteers e apoiados pelo Sinn
Fèin17, um grupo de irlandeses republicanos declarou a Independência da Irlanda,
através do documento “Proclamação da República”. Seus líderes anunciavam que “um
soberano, independente Estado Irlandês [estava] agora em curso de ser estabelecido
por homens irlandeses armados” (TAYLOR, 1998, p. 8 - tradução nossa) 18.
Durante uma semana, esses fenianos lutaram contra as forças britânicas em
frente à sede dos correios local, o General Post Office (GPO), sendo que, inicialmente,
não tiveram o apoio da população local, que reclamava de que o Levante apunhalava
pelas costas os irlandeses que na Guerra lutavam. Ao final, vários líderes (inclusive os
signatários da “Proclamação”) foram presos e executados19. Outros foram enviados para
prisões na Inglaterra e no País de Gales, entre eles, Michael Collins e Eamon de Valera.
15 É estimado que 260.000 soldados irlandeses lutaram, em nome da Inglaterra e, cerca de 30.000 morreram. Ver: http://cain.ulst.ac.uk/index.html 16 Esse movimento foi inspirado pela teoria de John Mitchel, de 1848, que, em seu artigo intitulado Untited Irishman, alegou que a oportunidade da Irlanda viria nos momentos em que a Inglaterra se encontrava em dificuldade, em guerra. (GOOGAN, 1993). 17 Nome em gaélico para “Nós Mesmos”. Organização separatista criada em 1905 por Arthur Griffith. “Historicamente o Sinn Fèin precedeu o IRA e inicialmente não apoiou o uso da força [...] para compelir a mudança política.” (TAYLOR, 1998, p. 08 - tradução nossa) No original: “Historically, Sinn Fèin preceded the IRA and initially did not support the use of force […] to compel political change.” Com o decorrer da história, essa situação mudou e o Sinn Fèin virou o braço político do IRA. 18 “[...] a sovereign, independent, Irish State [was] now in the course of being established by Irishmen in arms.” 19 Foram signatários do documento: Thomas J. Clarke, Seán Mac Diarmada, Thomas MacDonagh, P. H. Pearse, Éamonn Ceannt, James Connolly e Joseph Plunkett. Padraig Pearse era um escritor e educador conhecido no país e James Connolly, por ter sido gravemente ferido durante o Levante, teve que ser
19
As decisões tomadas pela Inglaterra acabaram por gerar grandes problemas
para si própria, quando mártires da causa republicana foram criados, ao mandar
prender vários inocentes. Isso virou objeto de propaganda para irlandeses, mesmo fora
da ilha, como nos Estados Unidos. O tratamento diferenciado entre republicanos e
unionistas fez com que os irlandeses-americanos se lembrassem da Grande Fome20, o
que gerou preocupações para os ingleses, que queriam o apoio do EUA na Primeira
Guerra. Após alguns meses, os presos foram libertados, porém o tiro no próprio pé já
tinha sido dado: se antes do Levante, eles eram vistos como baderneiros, voltaram para
casa como heróis (COOGAN, 1997).
Assim, rebeliões continuaram a ocorrer na Irlanda, até o ano de 1919, quando a
guerra civil foi deflagrada – a Aglo-Irish War – que durou quase dois anos. Além disso,
o Sinn Fèin, que até o Levante não era um movimento expressivo, fortaleceu-se, a
ponto desse ter sido denominado “Sinn Fèin Revolt”. Conseguiu vitórias expressivas
nas eleições de 1918, em toda a ilha. Entretanto, como ressalta Coogan (1997), em
Westminster, tinha apenas sete, das oitenta cadeiras, o que fazia da Home Rule uma
carta morta.
Em 1919, os Irish Volunteers passaram a ser chamados oficialmente de IRA21, e
Michael Collins “tornou-se o seu comandante efetivo, com o título de Diretor de
Organização e Inteligência” (TAYLOR, 1998, p. 10 - tradução nossa)22. Por quase dois anos sangrentos, de 1919 a 1921, Collins e o IRA lutaram uma guerra de guerrilha contra aqueles que eram agora tratados como as forças Britânicas de ocupação. O governo britânico da época não viu o conflito como ‘guerra’, e sim como uma conspiração criminosa a ser contida pela polícia. (TAYLOR, 1998, p. 10 - tradução nossa)23.
executado sentado em uma cadeira. Ambos se tornaram grandes símbolos da luta republicana (COOGAN, 1997). 20 Um dos grandes ressentimentos da população católica reside no fato de que, por serem mais pobres, foram os que mais sofreram na época. Clamam que os ingleses nada fizeram para salvar a população que morria de fome, já que esses, em pleno liberalismo, não queriam o Estado intervindo na economia: ela seria capaz de restabelecer a normalidade. Era o laissez faire laissez passer. 21 Sigla em inglês para Irish Republican Army. Em português, o Exército Republicano Irlandês. O grupo costuma assinar suas declarações utilizando o seu nome em gaélico, Óglaigh na hÉireann. 22 “[…] became its effective commander with the title of Director of Organization and Intelligence.” 23 “For almost two bloody years, from 1919 to 1921, Collins and the IRA waged a guerrilla war against what were now regarded as the British forces of occupation. The British government of the day did not regard the conflict as a ‘war’ but as a criminal conspiracy to be countered by the police.”
20
Em 1921, depois de um grande derramamento de sangue e a percepção de que
nenhum dos lados sairia vencedor – além de fortes pressões por parte da opinião
pública norte-americana – negociações foram iniciadas e culminaram com a assinatura
do Tratado de 06 de Dezembro desse mesmo ano. O acordo – Anglo-Irish Treaty –
levou à divisão dos trinta e dois condados da ilha em: Irish Free State24, com vinte e
seis condados, e a Irlanda do Norte, “equivocadamente” denominada Ulster, com os
outros seis. O equívoco estaria no fato de que a Irlanda é uma ilha dividida em quatro
províncias: Munster, Connacht, Leinster, Ulster. De acordo com Coogan (1997), a
província de Ulster conta com nove condados, porém, ao fazer a divisão da ilha,
percebeu-se que a manutenção desses não daria uma maioria absoluta de protestantes
na região. Assim, ao criar a fronteira, ficou estabelecido que a Irlanda do Norte contaria
com seis, e não nove condados25. Entretanto, mesmo que o uso do termo seja
equivocado, ele é feito, até mesmo oficialmente. Essa divisão pode ser vista no Mapa 1:
Mapa 1: Divisão da Irlanda após o Tratado de 1921. Fonte: Microsoft Office Online [adaptado de].
24 O Irish Free State passou a ter o mesmo status de países como Nova Zelândia, Canadá e Austrália. Não era efetivamente uma República, já que os novos parlamentares lá eleitos tinham que jurar fidelidade ao Rei. 25 Proposta que já era considerada antes da Primeira Guerra, como visto anteriormente.
21
A assinatura do Tratado provocou uma importante e sangrenta divisão no
movimento republicano: de um lado, aqueles favoráveis e partidários de Michael Collins
e Arthur Griffith, que acreditavam que a Inglaterra não daria a independência total ao
país. Viram, na independência parcial, um passo para, posteriormente, conseguir a
reunificação da ilha. Do outro lado, os contrários e partidários de Eamon de Valera, que
afirmavam que o Tratado foi assinado sob a ameaça inglesa de retomar a guerra
imediatamente e, assim, o refutaram.
Os membros do IRA que aceitaram o acordo tornaram-se membros do Exército
oficial e os que rejeitaram continuaram como integrantes do grupo, só que agora mais
comumente chamados de ‘Republicanos’. Essa guerra durou até o ano de 1923 e, teve
como dois de seus momentos mais significativos o assassinato de Michael Collins, em
192226, e a morte de Arthur Griffith, devido a uma hemorragia cerebral, no mesmo ano (BBC).
No final, o IRA e o Sinn Fèin saíram muito enfraquecidos por terem seus líderes
e voluntários mortos ou presos. Ao mesmo tempo, Eamon de Valera se fortaleceu
politicamente e, através do Fianna Fail27, tornou-se Primeiro Ministro (1932-1937), e
depois, Taoiseach28, nos períodos de 1937-1948; 1951-1954; e 1957-195929.
A preocupação de muitos nacionalistas passou a ser a manutenção do Free
State como tal. A concorrência com a Inglaterra, em vários sentidos, como comerciais,
monetários, fragilizou muito o sul.
As duas partes se tornaram cada vez mais diferentes, internamente. As leis que
eram criadas na Inglaterra eram modificadas no Free State, para aceitação da maioria
católica. Apesar de não criar leis discriminatórias aos protestantes, elas eram
desfavoráveis a esses, como a proibição do divórcio e do aborto. Nos cinqüenta anos
seguintes, a população protestante ali residente caiu, de 327. 171, para 130.000.
26 Michael Collins foi assassinado em agosto de 1922, em uma estrada que passava pelo vilarejo Béal na mBláth, condado de Cork. Uma emboscada foi planejada por guerrilheiros republicanos que não aceitavam o Tratado, e muitas especulações foram feitas em torno de Eamon de Valera, que teria sido o mandante do atentado, porém nada foi provado a respeito. 27 Sigla em gaélico pra “Soldados do Destino”. Partido político criado por de Valera em 1926, que representavam os republicanos que se opunham ao Tratado de 1921. 28 O Taoiseach é o líder de gabinete e chefe de governo. Ele é indicado pelo Presidente e tem que ser aprovado pelo Parlamento Nacional Irlandês, o Dáil Éireann, com sede em Dublin. 29 Por não reconhecer o tratado, Eamon se recusava a fazer o juramento de fidelidade ao Rei Inglês ao não colocar a mão sobre a Bíblia.
22
Enquanto isso, à Irlanda do Norte foi dada uma considerável autonomia e um
parlamento próprio – Stormont – que era responsável por assuntos internos. Cabia a
Westminster a soberania da região, além de questões relacionadas à política externa,
segurança, além de outros assuntos que eram de interesse do Reino Unido em geral
(DARBY, 2003).
O primeiro ministro James Craig afirmava que o parlamento em Belfast era um
“parlamento protestante para a população protestante” (COOGAN, 1997, p. 23 –
tradução nossa)30. Dessa forma, leis eram criadas para que eles tivessem acesso mais
fácil aos melhores empregos, escolas e moradias.
De acordo com Coogan (1997), essas leis em muito pareciam com as do
apartheid, na África do Sul, exceto pelo fato de que a discriminação se dava pela
religião e não pela raça. Antes da Segunda Guerra Mundial31 ainda havia discussões
sobre o fato de que a divisão da ilha se deu por seis condados do Ulster, e não pelos
nove originais. Certos parlamentares protestantes argumentavam a favor da integração
dos três que foram excluídos. Porém, cada vez mais – principalmente com o final da
Guerra – essa questão foi gerando mais oposição, visto que uma maior população
católica seria inserida na Irlanda do Norte. Isso poderia levar, futuramente, a uma
temida adesão ao Home Rule.
Assim, as leis sectárias eram cada vez mais aprovadas, com o claro intuito de
levar a população católica ali residente à emigração – ou à sujeição a essas. “Os
católicos sob a dominação deles [protestantes] não receberiam proteção da lei, mas
suas sanções, forçando-os à sujeição ou emigração. O controle, assim, permaneceria.”
(COOGAN, 1997, p. 24 – tradução nossa)32.
Dessa maneira, a divisão da ilha separou duas populações que passaram a ver e
enfatizar diferentes elementos de uma mesma questão. Como aponta Darby (2003), a
Irlanda do Norte teve sua população estimada entre 55% de protestantes e 45% de
católicos, nos quais
30 “Protestant parliament for a protestant people.” 31 Durante essa, enquanto a Irlanda do Norte apoiou amplamente a Inglaterra, o sul decidiu pela neutralidade. Com o final dessa, em 1949 foi instaurada a República da Irlanda. 32 “The Catholics under their domination would get not the protections of the Law, but its sanctions, forcing them into either subjection or emigration. Control, however, would remain.”
23
os protestantes, mais provavelmente, entendem o conflito em termos constitucionais e de segurança, e estão primordialmente preocupados em preservar a união com a Grã-Bretanha e resistir a notória ameaça de uma Irlanda reunificada. A visão dos católicos divide-se em duas categorias. Alguns percebem a questão como uma luta nacionalista pela auto-determinação e olham para o passado, o que eles entendem como a integridade histórica da ilha e a determinação manipulada da divisão desta. Outros entendem como um problema de corrupção ou de práticas injustas por sucessivos governos unionistas entre 1920 e 1970 que, se removido, criaria uma sociedade em que ambos católicos e protestantes poderiam viver pacificamente juntos. Essas duas categorias não são distintas, e a balança entre elas mudou desde a formação do Estado. (DARBY, 2003 – tradução nossa)33
2.1.3 Os anos 60 e o Movimento de Direitos Civis
Nas décadas seguintes, ocorreram alguns conflitos entre as partes envolvidas,
porém nada que provocou sérias batalhas. As atividades do IRA foram bastante
inexpressivas, quase que inexistentes.
O IRA não tinha base popular e nenhum problema efetivo que lhe permitiria aumentar o apoio; até a divisão [da ilha] tinha há muito deixado de ser um motivo para se pegar em armas. Além disso, o Sinn Fèin não tinha uma organização política enraizada para se fortalecer (TAYLOR, 1998, p.21 - tradução nossa)34.
Porém, durante a década de 60, o grupo ressurge, proclamando a defesa da
comunidade católica perante a comunidade protestante, já que nessa época os ingleses
já não eram mais vistos como o grande inimigo a ser combatido35. Esse movimento se
33 “Protestants are more likely to see the conflict in constitutional and security terms, and are primarily concerned about preserving the union with Britain and resisting the perceived threat of a united Ireland. Catholic views fall generally into two broad categories. Some perceive the issue as a nationalist struggle for self-determination, looking back to what they regard as the historical integrity of the island and the gerrymander of partition. Others approach it as a problem of corruption or unfair practices by successive Unionist governments between the 1920s and the 1970s, which, if removed, would create a society in which both Catholics and Protestants could live peacefully together. These two categories are not discrete, and the balance between them has shifted back and forwards since the formation of the state.” 34 “[...] the IRA had no popular base and no issue on which to arouse support; even partition had long ceased to be a rallying call to arms. Furthermore, Sinn Fèin had no deep-rooted political organization on which to build.” 35 Até o ano de 1969, o relacionamento entre os britânicos e os católicos era relativamente bom. O casamento de uma mulher católica com um soldado britânico era bem visto. Porém a Batalha de Bogside (que será vista a seguir) mudou esse panorama (TAYLOR, 2001).
24
autoproclamou representante da classe trabalhadora católica e seus objetivos eram
defesa e resistência, para depois obter a reunificação irlandesa.
Na tentativa de conseguir qualquer tipo de igualdade, a população católica iniciou
o Movimento de Direitos Civis, liderados pela Northern Ireland Civil Rights Association
(NICRA). Criada em 1967, na Irlanda do Norte, teve grande importância no acirramento
do conflito entre católicos e protestantes. Na época, só podiam votar as pessoas que
pagavam os impostos locais e, devido ao fato de que a comunidade católica tendia a
ser mais pobre do que a protestante, ela não tinha as mesmas oportunidades e
condições de pagá-los.
O resultado era que poucos representantes católicos eram eleitos e a
comunidade não conseguia obter uma representação política suficientemente forte para
defender os seus direitos. O Movimento de Direitos Civis era constituído basicamente
de passeatas pacíficas, nas quais exigia-se que os direitos britânicos valessem para
todos, pois, independentemente do fato de gostarem ou não, os católicos também eram
súditos da Rainha, e queriam ser tratados da mesma forma que os protestantes.
(TAYLOR, 1998).
Já o ano de 1969 foi determinante para a ressurreição do grupo. No mês de
agosto, na cidade de Londonderry36, ocorreu a chamada Batalha de Bogside. A maioria
católica fazia exigências por direitos iguais, de forma pacífica, pois, na época, o IRA
não era suficientemente forte pra dar suporte militar. O exército inglês tinha sido
enviado com o intuito de se restaurar a ordem na região e, inicialmente, muitos
republicanos viram a entrada do exército britânico como uma forma de proteção em
relação aos unionistas. Porém, para os que eram mais militantes, a chegada do exército
foi entendida como mais um símbolo de repressão e opressão – tropas britânicas em
solo irlandês (DARBY, 2003).
Nessa batalha, o exército respondeu com armas e, principalmente, com gás
lacrimejante. A comunidade católica, que sofria com os ataques antes realizados pelos
protestantes, e agora pelos britânicos, viu a situação como uma forma de dizimação e 36 O nome original da cidade - assim como o do condado, que leva o mesmo nome - era Derry. Com a chegada dos protestantes, na região, a Inglaterra resolveu mudar e oficializar o nome para Londonderry, para que eles se sentissem mais confortáveis. Atualmente, os católicos (que são maioria na cidade) referem-se a ela como Derry e os protestantes como Londonderry e, na literatura, encontra-se as duas denominações. (TAYLOR, 2000).
25
entendia que nunca mais poderia ser deixada sozinha, à mercê desses. Enquanto isso,
em Belfast, capital da Irlanda do Norte, os protestantes, que eram maioria, começaram
a queimar as casas dos católicos, sem que a polícia37 fizesse algo para contê-los.
Esses eventos ficaram conhecidos como Burnings in Belfast, ou Burnings in Bombay
Street, que não foi a única rua incendiada, porém tornou-se símbolo do ataque por ter
sido totalmente destruída. A partir desses acontecimentos, percebe-se, definitivamente,
o ressurgimento do IRA. O grupo alegava a necessidade de defender essa comunidade
que já havia perdido toda a sua fé nas leis locais, pois elas só serviam para proteger os
protestantes38 (TAYLOR, 1998).
Foi também nesse ano que ocorreu a maior e mais importante divisão interna do
grupo. Desde 1962, ele era controlado pelos líderes marxistas que não acreditavam que
a solução estava na violência e sim, em reformas, às quais as comunidades católicas
da República da Irlanda e da Irlanda do Norte seriam submetidas. Porém, a escalada
de violência por parte dos protestantes, adicionada à pressão exercida pela
comunidade católica por maior proteção, fez com que o IRA se dividisse em dois
grupos: o dos “Oficiais”, que estavam, até então, no poder, e o dos “Provisórios”39, que
foi formado depois de 1969, comandado por Seán Mac Stíofáin, Ruairí Ó Brádaigh e
Joe Cahill. Estes acreditavam que essa estratégia de “não violência” havia deixado a
comunidade desprotegida e, assim, isso deveria acabar. Logo após, os Provisórios
assumiram o controle da organização, enquanto os Oficiais declararam cessar fogo40.
Enquanto isso, as atitudes da Inglaterra, que tinham a intenção de extinguir
aqueles que eram vistos como terroristas, serviam para que o grupo angariasse
mais voluntários, visto que suas atitudes repressoras provocavam ódio na
população católica.
37 A polícia da Irlanda do Norte recebia o nome de Royal Ulster Constabulary (RUC). Ela foi um importante motivo de conflito entre as partes, já que os católicos afirmavam que, por ter a grande maioria do seu contingente composto por protestantes, ela tendia a pesar a favor deles e, ao mesmo tempo, cometer injustiças contra os católicos. 38 Um fator que foi fundamental para o ressurgimento do IRA foi as críticas que ele recebeu da própria comunidade católica, que culpava os seus membros de não os defender nesses momentos. Nessa época era possível ver muitas pichações com o escrito “IRA – I Ran Away”. (ANDERSON, 2002). 39 Também chamado de Provisional IRA, PIRA, Provos, Provies e Pinheads. Esse último termo os diferenciava dos Oficiais, que também eram conhecidos como Stickies. 40 A mesma divisão ocorreu no Sinn Fèin, que até 1969, era comandado pelos Oficiais, que tinham a mesma inclinação marxista (e antiviolência) do IRA. Foram criadas as divisões “Sinn Fèin Provisório” (que ficou ao lado do IRA Provisório) e o “Sinn Fèin Oficial” (que ficou ao lado do IRA Oficial).
26
O governo, que se sentiu acuado, principalmente com o fortalecimento do IRA e
do Sinn Fèin, passou a reprimir as passeatas e a prender todos aqueles que eram
suspeitos de agir contra a Coroa. A adoção do internment, em 1971, no qual qualquer
pessoa suspeita de participar de alguma forma de algum grupo terrorista, católico ou
protestante, seria presa e ficaria enclausurada por sete dias sem direito a advogado,
causou uma grande revolta, principalmente na comunidade católica. No dia em que foi
imposto em toda a província, o saldo foi de trezentos e quarenta e dois católicos presos
e nenhum protestante. A isso se adiciona o fato de que muitos dos suspeitos eram
inocentes e, mesmo assim, foram presos e vítimas de torturas por parte dos ingleses.
Pelo lado dos protestantes, o Partido Unionista se manteve firme no poder desde
a década de 20, tendo sempre como grande objetivo a manutenção da Irlanda do Norte
como parte do Reino Unido. As políticas adotadas pelo parlamento não visavam
reformas, tão requeridas pelos católicos, mas sim à manutenção do controle.
(COOGAN, 1997).
O ano de 1966 – que marcava 50 anos do Levante da Páscoa – foi marcado por
ser o dos primeiros ataques mortais do The Troubles. Viu-se o ressurgimento da UVF,
agora uma organização diferente da original, de 1912, mas com o mesmo nome, como
forma de homenagem – criada por ‘Gusty’ Spence. Tinha como grande objetivo garantir
a posição constitucional da Irlanda do Norte como membro do Reino Unido41. Mesmo
sendo considerada um grupo desorganizado, ineficiente e confuso, foi responsável por
vários ataques sectários. De acordo com uma declaração feita pelo grupo, em 22 de
maio, “desse dia em diante, nós declaramos guerra contra o IRA e seus grupos
dissidentes. Membros conhecidos do IRA serão executados sem misericórdia ou
hesitação.” (COOGAN, 1997, p. 49 – tradução nossa)42.
Os protestantes não aceitavam o movimento de direitos civis e o fato de que os
católicos se autoproclamavam cidadãos de segunda classe, explorados pela elite
econômica rival. De acordo com Peter Taylor (2000), essa condição não era exclusiva
41 No dia 03 de maio de 2007, o grupo renunciou oficialmente a sua luta armada, porém sem fazer entrega total do seu armamento, algo que só veio a ocorrer em junho de 2009. 42 “From this day on we declare war against the IRA, and its splinter groups. Known IRA men will be executed mercilessly and without hesitation.”
27
dos nacionalistas, pois, apesar de que os unionistas geralmente tinham mais empregos43,
isso não significava que viviam em melhores condições e que não eram explorados.
Ressentiam-se do fato de que, por definição, seriam considerados cidadãos de
primeira classe, visto que os nacionalistas se autoproclamavam ser de segunda. Na
visão deles, isso estava longe de ser verdade, pois consideravam que muitos viviam em
condições similares: banheiros ficavam do lado de fora da casa, sem saneamento
básico, sem ter água quente e acesso à água potável. Isso, de forma alguma, poderia
ser sinônimo de “cidadãos de primeira classe” (TAYLOR, 2000).
Já em 1971, com a panela de pressão prestes a explodir, um novo ator unionista,
de grande relevância, surge nesse cenário: a UDA – Ulster Defence Association44.
Outros grupos paramilitares menores se uniram a ele, que chegou a ter mais de 50.000
membros e foi chamado de “grupo espelho” do IRA. Seus voluntários tinham como
objetivo proteger as ruas de bairros protestantes em Belfast. Todos esses fatores
unidos preparam o cenário para o ano de 1972, um dos mais violentos – e importantes
– do The Troubles.
2.1.4 O Bloody Sunday e o Bloody Friday
O grande divisor de águas desse conflito ocorreu no dia 30 de Janeiro de 1972,
na cidade de Derry, quando milhares de civis se reuniram para exigir os seus direitos,
que ficou conhecido como Domingo Sangrento, o Bloody Sunday45. Devido às
proporções que a passeata estava alcançando, autoridades inglesas enviaram o
43 As grandes empresas, as mais importantes da Irlanda do Norte eram de protestantes, que tinham a preferência em empregar outros protestantes, e não católicos. (HANCOCK, 1996). 44 Em português: Associação de Defesa do Ulster. 45 Dois eventos diferentes receberam o nome de Bloody Sunday, na história irlandesa. De acordo com Taylor (1998), o primeiro ocorreu no dia 21 de Novembro de 1920, quando a então polícia irlandesa – Royal Irish Constabulary (RIC) – juntamente com os ‘Black and Tans’ (membros do Exército britânico, que lutaram na Primeira Guerra Mundial e foram convocados para servir na Irlanda) – invadiram um jogo de futebol gaélico, em Dublin, e abriram fogo contra 15.000 espectadores. O Exército, que afirmou que procurava por membros do grupo de Collins, visto que eles tinham atentado contra o serviço secreto britânico naquele mesmo dia, matou doze civis. Devido aos fortes paralelos entre esse evento, e o do dia 30 de Janeiro de 1972, esse recebeu o mesmo nome.
28
exército para as ruas, a fim de tentar manter o controle da situação. A população, que
alegava ser a passeata pacífica, reagiu à presença dos militares, jogando pedras.
Membros do Primeiro Batalhão do Regimento de Pára-quedistas do Exército Britânico
contra-atacaram e o resultado final foi a morte de quatorze católicos, além de várias prisões.
Com a execução de pessoas que de acordo com a comunidade estavam
desarmadas, o IRA passou a receber um apoio que jamais tinha tido em toda sua
história. Nunca tantas pessoas quiseram se alistar, e chegou ao ponto de os
comandantes refutarem novos voluntários46. Nessa mesma época, a relação entre
o IRA e a Líbia se fortaleceu e este país se tornou o grande fornecedor de armas
do grupo47.
Porém, toda essa popularidade foi seriamente questionada alguns meses
depois, no dia 21 de julho, com a advento do Bloody Friday – a Sexta-feira Sangrenta.
O grupo detonou, no espaço de setenta e cinco minutos, vinte e duas bombas em
Belfast, matando nove pessoas e ferindo seriamente outras cento e trinta. Além disso,
telefonemas que avisavam sobre outras bombas aumentaram o caos na cidade, algo
que, de acordo com a comunidade unionista, foi um artifício usado para distrair as
autoridades em relação aos artefatos reais48.
Depois do Bloody Sunday e do Bloody Friday a situação ficou insustentável para
os ingleses que decidiram atuar na região de forma mais rigorosa. Assim, criaram
novas leis que restringiam ainda mais a atuação da população católica.
As décadas de 70 e 80 foram marcadas por muitas prisões, atentados, greves de
fome, assassinatos e uma ativa presença das forças de inteligência do exército
britânico. Ao mesmo tempo, as autoridades perceberam que essa seria uma batalha
longa e que traria muitos prejuízos para os cofres públicos.
Dessa maneira, três novos conceitos foram introduzidos na região. O primeiro foi
o Ulsterization: para os ingleses, a batalha tinha que ser travada pela população da
Irlanda do Norte e, com isso, as forças de segurança e as frentes de combate seriam
46 Hierarquicamente, todos os membros ‘comuns’ do IRA eram chamados de ‘voluntários’, ou de óglaigh, em gaélico. (COOGAN, 1993) 47 Sabe-se que grandes navios, com grandes estoques de armas aportaram em terras irlandesas. Dentre os anos de 1985-87, quatro destes continham cerca de 150 toneladas de armas, e crê-se que a terra do Coronel Muammar al-Gaddafi também serviu também de centro de treinamento dos voluntários irlandeses. 48 Para mais informações sobre o Bloody Friday, ver: http://www.cain.ulst.ac.uk/events/bfriday/index.html
29
ocupadas por membros da polícia norte irlandesa. O segundo foi o de Criminalization
em virtude do qual os ingleses tentavam deslegitimar todo o movimento republicano,
inclusive o IRA, ao afirmar que essas pessoas não estão envolvidas em uma batalha
política. Não eram criminosos políticos, e sim, criminosos comuns (TAYLOR, 2001).
Finalmente, a Inglaterra também impôs o Direct Rule, segundo o qual a Irlanda do Norte
perderia seu Parlamento de Stormont e os protestantes não teriam mais as vantagens
hegemônicas políticas que possuíam, já que quem comandaria a província seriam as
autoridades inglesas.
Os efeitos dessas novas políticas em curto prazo foram positivos, já que
desaceleraram as campanhas terroristas. Porém, no longo prazo, foi um grande revés,
pois os católicos sentiram que toda a comunidade estava sendo condenada, e que
aquelas pessoas que estavam dispostas a dar as suas vidas por essa campanha,
estavam sendo consideradas simples criminosas.
2.1.5 As greves de fome na década de 80
As greves de fome transformaram o contexto político do problema da Irlanda do Norte. Agora, prisioneiros republicanos apareceram no papel anormal de se preparem para aceitar o sofrimento por sua causa ao invés de simplesmente infringi-lo em seu nome. As participações em massa nos funerais dos prisioneiros revelaram que suas posições nas áreas católicas cresceram dramaticamente, e isso foi logo refletido em um novo desenvolvimento, uma impressionante intervenção do eleitorado do Sinn Féin. Em junho de 1983, o partido obteve 13,4% dos votos na Irlanda do Norte, o que eram bem comparável aos 17,9% do SDLP. (BEW; GILLESPIE apud CAIN – tradução nossa)49.
Quando Bobby Sands decidiu, em 1o de março de 1981, começar sua greve de
fome, ele tinha cinco objetivos fundamentais: o direito dos prisioneiros de usar roupa
comum; o direito de não fazer trabalhos dentro da prisão; a restituição da remissão de 49 “The hunger strikes transformed the political context of the Northern Ireland problem. Now, republican prisoners appeared in the unwonted role of being prepared to accept suffering for their cause rather than simply inflicting suffering on its behalf. The mass turnouts at the prisoners' funerals revealed that the standing of the prisoners in Catholic areas had risen dramatically and this was soon reflected in a novel development, an impressive Sinn Féin electoral intervention. By June 1983 Sinn Féin had obtained some 13.4% of the vote in the North which compared well with the SDLP's 17.9%.” Ver: http://www.cain.ulst.ac.uk/events/hstrike/summary.htm
30
sentenças impostas; o acesso a facilidades educacionais e de recreação; o direito a
associações livres dentro da prisão. Conseguir essas cinco demandas garantiria a
todos o status de presos políticos (CAIN).
Era a segunda vez que prisioneiros faziam greve de fome, porém, na primeira
vez – em 1980 – o comando do IRA, por não apoiar o movimento, ordenou seu
encerramento. A segunda tampouco teve apoio do grupo, tendo sido basicamente um
movimento dentro da prisão de Maze – que os republicanos chamavam de Long Kesh.
Ao todo, o movimento contou com a participação de vinte e três homens, sendo
que dez morreram por inanição. Os outro treze abandonaram a greve quando
descobriram que suas respectivas famílias tinham ordens judiciais que forçariam a
ingestão alimentar ao atingirem estado de inconsciência (CAIN).
Parte da grande comoção gerada pode ser explicada pela memória
irlandesa, como a da Grande Fome; também na Cristandade do país, como quando
São Patrício – santo patrono do país – fez greve de fome contra Deus. “Deus
sempre cedeu – capitulação em face a um grande sacrifício, que era visto, pelos
primeiros cristãos, como uma qualidade divina” (BERESFORD, 1987, p. 15 –
tradução nossa50).
Bobby Sands se tornou o grande símbolo dessa luta e comoção, e durante a sua
greve foi eleito membro do parlamento de Westminster. Membros do parlamento
irlandês pressionavam a então primeira-ministra, Margareth Thatcher51 para conversar
com eles e ouvir as demandas dos presos, o que foi prontamente negado. De acordo
com ela, “nós não estamos preparados para considerar a categoria de status especial
para certos grupos de pessoas que cumprem sentenças por crimes. Um crime é um
crime, é um crime, não é político.” (Margareth Thatcher, 1981 em conferência de
imprensa, tradução nossa)52.
A morte de Sands, em 05 de maio de 1981, após 66 dias de greve causou
comoção e distúrbios, tanto na Irlanda do Norte quanto na República da Irlanda. 50 “God always caved in – capitulation in the face os such self-sacrifice being seen by early Christians as a godly quality.” 51 Primeira Ministra britânica que esteve no poder entre 1979-1990. Conhecida por ter uma política extremamente conservadora, de linha dura com o IRA. 52 "We are not prepared to consider special category status for certain groups of people serving sentences for crime. Crime is crime is crime, it is not political.” Ver: http://www.cain.ulst.ac.uk/events/hstrike/chronology.htm
31
Especula-se que mais de cem mil pessoas compareceram ao seu funeral, em Belfast.
Internacionalmente, a Inglaterra passou a sofrer sérias pressões, principalmente dos
Estados Unidos e da Europa, por negociações que levassem ao fim do conflito. Mesmo
assim, outros prisioneiros continuaram com a greve até 03 de outubro de 1981, quando
foi anunciado o seu término.
Durante o The Troubles, a forma com que a violência foi empregada mudava –
de conflitos entre a comunidades, em que as armas principais eram bombas caseiras; a
atentados terroristas de grande escala; a até mesmo assassinatos cometidos com
armas brancas ou outras rudimentares. Porém outros impactos – indiretos, mais difíceis
de ser mensurados – também foram percebidos.
Esses incluíam a aprofundamento das divisões entre as comunidades, a perpetuação de velhas disputas e a criação de novas. A economia, que lutava para manter um rumo com a reestruturação da economia britânica nos anos 70 e 80, foi ainda golpeada pelo contexto da violência política. Acima de tudo, o The Troubles foi uma crise humana, com milhares de tragédias individuais, familiares e comunitárias. (DARBY, 2003 – tradução nossa)53.
2.2 O processo de paz
A partir do momento em que os ingleses perceberam que não venceriam essa
guerra somente pelo lado militar, eles passaram a adotar outras técnicas. Uma das
mais importantes foi o diálogo secreto entre membros do Governo e a inteligência do
IRA, que não foram divulgadas aos voluntários, já que poderiam ser vistas como uma
grande traição dos membros à comunidade. Essas conversas não obtiveram resultados
e os atentados e as mortes, dos dois lados, continuaram (TAYLOR, 2001).
53 “They included the deepening of community divisions, the perpetuation of old grievances and the creation of new ones. The economy, struggling to keep pace with the restructuring of the British economy in the 1970s and 1980s, was further battered by a backdrop of political violence. Above all the Troubles were a human crisis with thousands of individual, family and community tragedies.”
32
2.2.1 O processo até o Acordo de Paz de 1997
Como foi possível perceber durante este capítulo, a violência na Irlanda do Norte
é parte de um processo que é entendido de forma diferente pelas partes envolvidas no
conflito. Como Darby (2003) salienta,
entre essas entrelaçadas percepções, quatro questões tem sido particularmente intratáveis: política, violência, relações comunitárias e desigualdade. A disputa política em relação à existência e natureza da própria Irlanda do Norte está no centro do conflito, assegurada de que eleições foram dominadas por questões constitucionais, e que alianças políticas permaneceram petrificadas. O problema da violência endêmica é a manifestação do problema da Irlanda do Norte mais conhecido internacionalmente. Nenhuma geração desde as plantações no Ulster, no século XVI, escapou a isso, que continuou, sem interrupção, por vinte e cinco anos até o cessar fogo de 1994. O problema nas relações entre as comunidades, mesmo com maior dificuldade de quantificação, é igualmente persistente, com altos níveis de segregação demográfica e social e a percepção, entre muitos católicos e protestantes, de que eles pertencem a grupos distintos. A desigualdade acrescentou um nível adicional de queixas para os católicos; em vários indicadores sócio-econômicos apontam desvantagens – em termos de emprego, educação, acesso a saúde – para os católicos em relação aos protestantes. Ainda assim, a maioria, em ambos os grupos, tende a acreditar que os governos têm dado tratamentos preferenciais ao outro grupo. (DARBY, 2003, p. 2 – tradução nossa)54
Entre os anos de 1969 e 1993, o IRA matou cerca de 1175 pessoas e perdeu
243 membros. Nesse tempo, ele anunciou cessar-fogos e também realizou grandes
atentados, como por exemplo, o atentado que teve como objetivo matar a Primeira
Ministra Margareth Thatcher na cidade de Brighton, na Inglaterra, no dia 12 de Outubro
de 198455. Inclusive, a intolerância política de vários Primeiros-Ministros, como a própria
54 “Amid these interwoven perceptions, four issues have been particularly intractable: politics, violence, community relations, and inequality. The political dispute about the existence and nature of Northern Ireland itself lies at the core of the conflict and ensured that elections were dominated by the constitutional issue, and that political allegiances remained petrified. The problem of endemic violence is the manifestation of the Northern Ireland problem best known internationally. No generation since the sixteenth century Plantation of Ulster has escaped it, and it went on without interruption for twenty five years before the 1994 ceasefires. The community relations problem, if less easily quantified, is equally persistent, with high levels of demographic and social segregation and a perception among many Catholics and Protestants that they belonged to distinct groups. Inequality added an additional layer of grievance for Catholics; on many indicators of socio-economic disadvantage – employment, educational and health care provision - Catholics experienced higher levels of need or disadvantage than Protestants. Yet majorities in both groups tend to believe that government gives preferential treatment to the other group”. 55 Margareth Thatcher saiu ilesa do atentado, porém cinco pessoas morreram no episódio. (COOGAN, 1993).
33
Thatcher, só fez com que a situação piorasse, já que a violência por eles incentivada
tinha como resposta, mais ataques terroristas por parte do IRA. Isso levava também a
ataques da UVF, da UDA e a UFF56.
Mesmo assim, durante as décadas de 70 e 80 algumas tentativas de acordo
comandadas por Londres, a fim de fazer com que o governo fosse compartilhado entre
republicanos e unionistas, ocorreram, porém sempre com oposições locais.
Em 1985, um importante passo foi dado: o Anglo-Irish Agreement. Nesse, um
acordo foi estabelecido entre os governos inglês, irlandês e norte-irlandês. A partir daí a
República da Irlanda passaria a ter um papel consultivo nas políticas da Irlanda do
Norte, dando às duas partes da ilha um papel de cooperação na resolução do conflito.
Não era exatamente um governo compartilhado, mas foi uma forma de demonstrar
legitimidade à causa nacionalista, que teria agora a República como guardiã dos seus
interesses. Por outro lado, pela primeira vez a Irlanda reconheceu a existência da
Irlanda do Norte, e aceitou que, se a população dessa quisesse, ela permaneceria
como parte do Reino Unido. O Anglo-Irish Agreement é considerado um importante
predecessor do Acordo da Sexta Feira Santa, pois tanto a tradição unionista como a
nacionalista passaram a ser legitimamente reconhecidas (DARBY, 2003).
Nessa época, viu-se o crescimento da figura de John Hume, líder do SDLP57,
que lutava pela causa nacionalista, mas acreditava em um modelo de peacemaking no
qual todos os envolvidos no conflito declarariam cessar- fogo, negociariam e optariam
pelo compartilhamento do governo (DARBY, 2003). Do outro lado, os partidos
unionistas vinculados a UVF e a UDA, o PUP58 e o UDP59, respectivamente, passaram
a dar sinais de compromisso a um possível acordo de paz definitivo.
Em 1993, os governos irlandês e inglês publicaram conjuntamente a declaração
de Downing Street, em que proclamavam que, se fosse da vontade das populações das
duas partes da ilha, uma Irlanda reunificada seria possível – baseada no direito de
autodeterminação dos povos.
56 Sigla, em inglês, para Ulster Freedom Fighters, os Lutadores para a Liberdade do Ulster. Foi criado a partir da UDA, e seria composto por sua elite. De acordo com Taylor (2000), não era mais que uma bandeira que representava os membros mais “militantes” do grupo. 57 Sigla em inglês para Social Democratic and Labour Party. 58 Sigla em inglês para Progressive Unionist Party. 59 Sigla em inglês para Ulster Democratic Party.
34
Em 31 de Agosto de 199460, o IRA declarou cessar-fogo, que não foi bem
recebido pelos ingleses e unionistas, já que não acreditavam que duraria por muito
tempo. Tamanha desconfiança também foi responsável por manter o Sinn Fèin de fora
das negociações de paz até que o cessar-fogo fosse estabelecido.
Uma comissão internacional, liderada pelo senador americano George Mitchell,
foi instaurada; seu relatório final, que recomendava o desarmamento das partes e
negociações envolvendo todos os atores, foi negado. O resultado foi a renúncia do
cessar-fogo por parte do IRA (que durou até 09 de fevereiro de 1996) quando o grupo
explodiu uma bomba em Londres, que matou duas pessoas, feriu muitas outras, além
de causar um prejuízo de milhões de libras para os cofres ingleses61. Isso não significou
o fim do processo de paz, mas fez com que o Sinn Fèin fosse expulso das negociações
(DARBY, 2003).
2.2.2 O Acordo da Sexta Feira Santa
A eleição de Tony Blair62, em 1997, possibilitou um novo caminho rumo às
negociações de paz: o Sinn Fèin retorna a mesa de negociação enquanto o IRA volta a
declarar cessar-fogo neste mesmo ano (porém só viria a depor suas armas em Outubro
de 2001 e entregá-las permanentemente em Julho de 2005).
George Mitchell foi o chefe das negociações, que foram truncadas, cercadas de
acusações por todas as parte; então, ele estabeleceu que 9 de abril seria a data limite
para um acordo.
No final de março as negociações se intensificaram, apesar de que vários assuntos eram ainda proeminentes. A UUP e o SDLP tinham diferentes visões de como o poder seria compartilhado entre as duas comunidades na Irlanda do Norte. O Sinn Féin estava muito inquieto com a perspectiva de uma nova assembléia do país e pouco contribui para as negociações nessa questão. A UUP estava preocupada com o mandato dos corpos entre as fronteiras, a
60 1994 é considerado o ano no início do processo de paz na Irlanda do Norte. 61 Ver: http://cain.ulst.ac.uk/othelem/chron/ch96.htm#090296 62 Primeiro Ministro do Reino Unido, de 1997 até 2007. Sua política menos conservadora foi fundamental para assinatura do Acordo de Paz de 1998.
35
relação entre a Assembléia da Irlanda do Norte e o Parlamento Irlandês, e estava ansiosa em colocar para baixo o governo da Irlanda e suas reivindicações constitucionais em torno do território da Irlanda do Norte (DARBY, 2003 – tradução nossa)63.
Em abril de 1998 foi assinado o Good Friday Agreement, o Acordo da Sexta
Feira Santa, ou Acordo de Belfast. Tinha cinco pontos constitucionais fundamentais64: o
futuro da Irlanda do Norte seria dado por sua população; se as populações, tanto da
República da Irlanda, quanto da Irlanda do Norte, quisessem uma Irlanda reunificada,
poderiam ter, mas teriam que votar para isso; naquele momento a Irlanda do Norte
permaneceria como parte do Reino Unido; os cidadãos da Irlanda do Norte teriam o
direito de se identificar como irlandês, britânico, ou ambos; o estado irlandês
abandonaria sua reivindicação sobre a Irlanda do Norte, e a nação irlandesa passaria a
ser definida em relação às pessoas e não ao território. Uma cópia do Acordo foi enviada
para todas as casas na Irlanda do Norte antes do referendo que o legitimaria (DARBY,
2003). Esse foi realizado em 22 de maio de 1998 e recebeu o apoio de 71,12% da
população da Irlanda do Norte65 e 94,39% da República da Irlanda.
Várias questões foram marcantes, e a primeira foi a libertação de presos
paramilitares. Porém, para os católicos a grande questão era uma reforma dentro da
polícia norte-irlandesa, pois de acordo com os mesmos, ela agia sempre para beneficiar
os protestantes66. Já estes achavam que o governo inglês tinha que agir mais
efetivamente na questão da entrega das armas por parte do IRA e viam com muita
63 “In late March the negotiations intensified, although many issues were still outstanding. The UUP and SDLP held differing views of how power would be shared between both communities in Northern Ireland. Sinn Féin was deeply uneasy at the prospect of any new Northern Ireland assembly and contributed little to negotiations on this matter. The UUP was concerned the remit of cross-border bodies and their relationship with the Northern Ireland Assembly and Irish Parliament, and anxious to tie the Irish government down on the proposed changes to its constitutional claim on Northern Ireland’s territory.” 64 Outros pontos importantes também foram estabelecidos, como: todos os partidos envolvidos fariam parte da coalizão permanente; decisões fundamentais seriam tomadas entre as duas comunidades; as relações dentro da Irlanda do Norte seriam lidadas por uma assembléia que compartilha o poder, e decisões seriam tomadas de forma inclusivas. foi criado um conselho ministerial Norte-Sul para lidar com as relações entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda; este seria responsável pelo relacionamento entre a Assembléia da Irlanda do Norte e o Parlamento irlandês e só com o seu funcionamento que a Assembléia permaneceria. Caso isso não acontecesse, um conselho Inglês-Irlandês seria criado. 65 De acordo com Darby (2003), isso representa praticamente toda a população nacionalista, enquanto a unionista estava dividida entre favoráveis e opositores ao acordo. 66 Uma comissão foi criada exclusivamente para lidar com esse problema e seu relatório final sugeriu que, entre vários pontos, uma redução de 11.400 membros para 7.500, sendo que os católicos teriam representação aumentada de 8 para 30% nos dez anos seguintes ao acordo.
36
desconfiança o Sinn Féin fazer parte do governo sem o desarmamento do grupo. A
assinatura do Acordo não propiciou uma paz imediata, sendo que atentados e
assassinatos continuaram ocorrendo, porém em menor escala. Ao mesmo tempo, em
novembro de 1999 os membros da Assembléia foram eleitos e tomaram posse.
Desde então, o IRA Provisório não realizou mais atentados na Irlanda do Norte
ou Inglaterra, porém, devido ao fato de que alguns membros não aceitaram o Acordo de
Paz, novos grupos foram criados, com o INLA (Irish National Liberation Army), o CIRA
(Continuity Irish Republican Army) e o RIRA (Real Irish Republican Army) que
continuam a desestabilizar a região. Este último realizou aquele que foi considerado o
maior atentado da história do país, na cidade de Omagh, em 15 de agosto de 1998, no
qual vinte e nove pessoas morreram e, aproximadamente, duzentas e vinte ficaram feridas.
Os unionistas continuavam insatisfeitos com não deposição de armas do grupo e
no ano 2000, uma comissão, liderada pelo presidente da Finlândia Martti Ahtisaari e
pelo Secretário Geral do Congresso Nacional Africano, Matamela Cyril Ramaphosa, foi
criada, a fim de fiscalizar a deposição.
As conseqüências disso foram vistas em outubro de 2001, quando o grupo
anunciou a deposição de suas armas, que seriam seladas e trancadas em galpões
espalhados pela República da Irlanda e Irlanda do Norte. No dia 28 de Julho de 2005, o
grupo anunciou a entrega total de suas armas, porém com a alegação de que não
estavam abandonando a causa republicana, e sim, buscando atingi-las através de um
viés político, e não militar. De acordo com a declaração do grupo, todas as suas
unidades foram ordenadas a entregar suas armas, e seus voluntários, a colaborar com
o desenvolvimento de programas puramente políticos, através de meios exclusivamente
pacíficos (IRA, 2005).
A insatisfação continuava do lado republicano porque os grupos paramilitares
unionistas não seguiam o mesmo caminho do IRA. Em novembro de 2007 a UDA
anunciou que estava colocando suas armas, de forma que não poderiam ser utilizadas,
porém enfatizou que não era desarmamento. Em junho de 2009, a UVF e o Red Hand
Commando declararam formalmente a deposição de suas armas – apesar de um
batalhão da UVF ainda permanecer em posse delas.
37
Os avanços conseguidos com o Acordo seriam inimagináveis durante todo o
conflito, ou mesmo em 1994, quando o processo de paz começou, ainda que não tenha
cessado completamente a rivalidade entre as comunidades, que continua forte.
Essa questão fica claramente exposta com o desenvolvimento político ocorrido
na região após a assinatura, com a implementação do Acordo. De acordo com uma
pesquisa realizada pela BBC, quando da comemoração de seu décimo aniversário,
grande parte da população local afirmava que a Irlanda do Norte virou um lugar muito
melhor de se viver, já que pessoas não mais perdem suas vidas por conta do The
Troubles. Porém, ao mesmo tempo, acredita que muito ainda deve ser feito para que
as comunidades, que estão sempre em um estado de desconfiança, possam co-
existir pacificamente67.
O cenário político regional é um espelho dessa desconfiança: em onze anos o
Executivo foi dissolvido quatro vezes pela Inglaterra. No início dos anos 2000, o então
primeiro ministro David Trimble se afastou do poder devido ao fato de que o IRA não se
posicionava em relação à deposição de armas. A situação foi revertida em maio do
mesmo ano, quando o grupo começou a dar sinais de que ela ocorreria. No ano
seguinte, o problema aconteceu devido a alegações unionistas de que os republicanos
estariam impedindo a deposição; quando o IRA anuncia, alguns meses depois, que
estava inutilizando suas armas, a Irlanda do Norte voltou a ter o Executivo reestruturado.
Em 2002, devido a acusações de que o Sinn Féin estaria envolvido em práticas
de espionagem, Trimble ameaçou renunciar caso o partido não fosse excluído do
Executivo. A Inglaterra suspendeu as instituições da Irlanda do Norte, situação que só
foi revertida em maio de 2007, quando o Reverendo Ian Pasley, do DUP, e Martin
McGuinness encabeçaram o poder no país. A assinatura do Acordo de St. Andrews, em
2006, retirou da Inglaterra o poder automático de destituir a Assembleia norte-irlandesa
e retomá-lo (BBC)68.
Tal acordo teve grande importância para a região visto que a Grã-Bretanha,
Irlanda e os principais partidos políticos locais concordaram com o processo de
devolução do poder à Irlanda do Norte. O Sinn Féin concordou em aceitar a nova
67 Ver: http://www.bbc.co.uk/newsline/content/articles/2008/03/18/gftenyearson_video_feature.shtml 68 Ver: http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/northern_ireland/8480462.stm
38
polícia, a PSNI, que substituiu a RUC, enquanto o DUP aceitou dividir o poder com
esse partido. Também ficou acordado que a devolução do poder em questões como
segurança e justiça ocorreria no espaço de dois anos após o restabelecimento total do
Executivo (NIO)69.
O ano de 2010 começou com uma grave crise institucional: a total devolução
do poder à Irlanda do Norte antes das eleições gerais em maio. Os dois maiores
partidos estavam em desacordo: enquanto o Sinn Féin exigia que o prazo dado
fosse mantido, o DUP não queria que nada acontecesse antes que se tivesse uma
confiança da comunidade unionista em deixar todo o poder nas mãos de políticos
locais. Também queria desfazer a Parades Commission, que impõe fortes restrições
às marchas que ocorrem em Belfast, que anualmente são motivos de conflitos entre
as comunidades. No início de fevereiro, os dois partidos conseguiram entrar em
acordo e, finalmente, o país terá, então, pleno controle sobre a sua polícia e justiça.
Além disso, o INLA, um pequeno, porém violento grupo paramilitar republicano
anunciou a deposição total de suas armas e a busca de seus objetivos políticos
através de meios exclusivamente pacíficos.
Como é possível perceber, o Acordo da Sexta Feira Santa teve uma importância
fundamental para o desenvolvimento do Estado Norte-Irlandês. A partir dele, o grau de
violência na região, devido à rivalidade entre unionistas e republicanos, foi reduzido
drasticamente, embora continue. De acordo com especialistas, serão necessárias
algumas gerações para que se dissipe (se um dia vier mesmo a se dissipar). A Irlanda
do Norte continua a ser o país do Reino Unido com os piores índices de
desenvolvimento: mas há um consenso de que, se não fosse pelo Acordo, um real
progresso do país não seria possível.
69 Ver: http://www.nio.gov.uk/
39
3. FORMAÇÃO DE IDENTIDADE E AS TEORIAS DE RI
A mera existência de uma forma alternativa de ser, a presença pela qual se exemplifica que
diferentes identidades são possíveis, e assim, desnaturalizam a aclamação de uma identidade
particular como sendo a verdadeira identidade, é `as vezes o suficiente para se produzir o
entendimento de uma ameaça.
David Campbell, Writing Security, 199270.
Desde o final da década de 80, quando se viu, no campo das Relações
Internacionais (RI), o surgimento de novas correntes teóricas, como o Construtivismo e
o Pós-estruturalismo, percebeu-se uma intensificação no debate sobre a noção de identidade.
Este pode girar em torno de questões como: a sua formação, qual é a sua
influência sobre o comportamento dos atores, a relação entre identidades e as
fronteiras estatais e/ou nacionais, entre outros. A obra The Return of Culture and
Identity in IR, de Lapid e Kratochwil (1997), é um marco nesse campo específico de
estudo, tanto no que se diz respeito ao que se havia estudado até então, quanto em
relação aos possíveis caminhos que o debate poderia seguir a partir dali.
O presente capítulo tem como objetivo analisar essa questão a partir da teoria
pós-estruturalista das Relações Internacionais. Para tanto, a divisão será dada em três
partes: na primeira será feita uma apresentação da compreensão de Alexander Wendt,
um dos primeiros autores a trabalhar com essa questão. A segunda será dedicada à
crítica feita por Maja Zehfuss ao trabalho dele, enquanto a terceira parte consistirá em
como a teoria pós-estruturalista entende a identidade.
70 “The mere existence of an alternative mode of being, the presence of which exemplifies that different identities are possible and thus denaturalizes the claim of a particular identity to be the true identity, is sometimes enough to produce the understanding of a threat.”
40
3.1 Identidade e o Construtivismo de Wendt
Em 1992, Alexander Wendt publicou um de seus trabalhos mais importantes, o
Anarchy is what states make of it: the social construction of power politics, no qual tinha
o objetivo de construir um argumento construtivista que serviria como ponte entre a
tradição racionalista e os pós-modernos. Dessa maneira, argumentou contra o
entendimento neo-realista de que a anarquia seria exógena aos estados; para ele, sua
construção se daria a partir do processo de interação entre esses atores, o que o levou
a crer que a anarquia é ‘o que os estados fazem dela’. Alguns anos depois, lançou, em
1999, o livro Social Theory of International Politics71, no qual busca “clarificar a natureza
e os efeitos da estrutura internacional.” (WENDT, 1999, p. 28 – tradução nossa)72.
O Construtivismo proposto pelo autor busca analisar a natureza da agência
humana e sua relação com as estruturas sociais; a função da materialidade e das idéias
na vida social; como as idéias modelam o comportamento dos estados, entre outros.
Visa criar uma via média entre as posições materialistas individualistas (como o Neo-
institucionalismo e o Neo-realismo) e as perspectivas idealistas holistas (como o
Feminismo e o Pós-estruturalismo).
A noção de identidade é um ponto importante para a sua obra, já que ele
acredita que a estrutura do sistema internacional tem tanto um efeito causal quanto
constitutivo nas identidades estatais (WENDT, 1999). As interações entre os atores –
fundamentalmente os estados73 – suas identidades, interesses e as percepções que
eles têm de si mesmos e dos outros são o que faz do Sistema Internacional o que ele é
hoje74. O sistema de self help é, portanto, uma instituição desenvolvida a partir deste
processo e não um componente da anarquia.
As identidades são adquiridas através dos comportamentos dos atores e dos
significados compartilhados que eles dão às suas ações, o que faz com que as
71 Outras obras importantes foram lançadas entre essas citadas, como On constitution and causation in International Relations (1998) e Constructing International Politics (1995). 72 “clarify the nature and effects of international structure.” 73 Neste aspecto, Wendt é fortemente criticado por outros autores, principalmente outros construtivistas, que o acusam de criar uma teoria estrutural centrada nos estados (ZEHFUSS, 2002). 74 Dessa maneira, o autor critica a noção neo-realista de que o sistema de self-help é inevitável.
41
estruturas intersubjetivas tenham um maior peso do que as materiais. São as
identidades – que o autor entende como relativamente estáveis, com compreensão
fundamental sobre seus papéis e expectativas sobre si próprias – que proveem aos
atores as bases de seus interesses (WENDT, 1992).
Identidades são inerentemente relacionais. (...) Cada pessoa tem várias identidades ligadas a papéis institucionais, como ‘irmão’, ‘filho’, ‘professor’, e ‘cidadão’. Similarmente, um estado tem múltiplas identidades como ‘soberano’, ‘líder do mundo livre’, ‘poder imperial’, entre outros. O comprometimento e a saliência de identidades particulares variam, mas cada qual é uma definição inerentemente social do ator, baseada em teorias que os atores coletivamente têm de si mesmos e de um com o outro, e que constitui a estrutura do mundo social. Identidades são as bases dos interesses. Atores não têm um ‘portfólio’ de interesses que carregam, independentemente do contexto social; ao contrário, eles definem seus interesses nos processos de situações cruciais. (WENDT, 1992, p. 397-398 – tradução nossa)75.
Portanto, as instituições passam a existir a partir das identidades e interesses
dos atores que as constituem, quando da internalização desses, o que significa que não
é um processo que acontece nos seus exteriores. (WENDT, 1992). O mesmo vale para
a noção de anarquia, que prevalece a partir da forma pela qual eles entendem
‘segurança’ e como os atores olham uns para os outros – o que faz com que o autor
perceba a identidade como relacional76.
“Crucialmente, concepções sobre o self e other, e conseqüentemente interesses
de segurança, se desenvolvem apenas em interação. Assim, identidade é chave para o
desenvolvimento de diferentes ambientes de segurança e culturas de anarquia”
(ZEHFUSS, 2002, p. 40 – tradução nossa)77. No Anarchy is what states make of it: the
social construction of power politics, Wendt imagina a seguinte história:
75 “Identities are inherently relational. (...) Each person has many identities linked to institutional roles, such as brother, son, teacher, and citizen. Similarly, a state may have multiple identities as ‘sovereign’, ‘leader of the free world’, ‘imperial power’, and so on. The commitment to and the salience of particular identities vary, but each identity is an inherently social definition of the actor grounded in the theories which actors collectively hold about themselves and one another and which constitute the structure of the social world. Identities are the basis of interests. Actors do not have a ‘portfolio’ of interests that they carry around independent of social context; instead, they define their interests in the process of defining situations.” 76 Para Wendt, o fato de entender a identidade como relacional significa que ela se forma a partir da noção que um individuo tem de si mesmo – self –, com suas particularidades e diferenças, e que pode ser modificada na interação com o outro - other. 77 “Crucially, conceptions of self and other, and consequently security interests, develop only in interaction. Therefore identity is the key to the development of different security environments or cultures of anarchy.”
42
Considere dois atores – Ego e Alter – que se encontram pela primeira vez. Cada um quer sobreviver e tem certas capacidades materiais, mas nenhum dos atores tem imperativos biológicos ou domésticos para o poder, glória ou conquista...E que não haja uma história de segurança ou insegurança entre os dois. O que devem fazer? No início é o gesto do Ego, que pode consistir, por exemplo, em um avanço, uma retratação, empunhar suas armas, uma deposição delas, ou um ataque. Para o Ego, esse gesto representa a base pela qual ele está preparado para responder ao Alter. Essa base, entretanto, é desconhecida para o Alter, e então ele deve fazer uma inferência, uma ‘atribuição’ sobre as intenções do Ego e, em particular, considerando que isso é uma anarquia, se o Ego é uma ameaça... Alter pode cometer um erro de atribuição em sua inferência sobre as intenções do Ego, mas não há razão para que ele assuma, a piori, (...), que o Ego o está ameaçando, já que é apenas através do processo de sinalização e interpretação que os custos e as probabilidades de estar errado podem ser determinados. Ameaças sociais são construídas, não são naturais (WENDT, 1992, p. 404 – tradução nossa)78.
A teoria de Wendt é sistêmica e o conceito de identidade é fundamental para ela,
pois, como argumentado no Social Theory of International Politics, os estados vivem em
um processo contínuo de formação dessa, ao contraporem as suas próprias com as
dos outros e interagirem, tendo como base o resultado desse “jogo”.
Assim, o autor busca se afastar de correntes racionalistas das Relações
Internacionais. Corrobora da teoria da estruturação de Anthony Giddens e entende que
agência e estrutura são ontológica e igualmente co-constitutivos (WENDT, 1987). Esta
é uma noção importante para o seu Construtivismo, pois contrapõe a noção realista que
prioriza a estrutura sobre as unidades.
Outro distanciamento ocorre ao afirmar que a identidade – assim como o
comportamento dos estados – é modelada pela estrutura social. Isso lhe permite
afirmar que ela é passível de mudanças e que isso ocorreria durante o processo de
78 “Consider two actors — ego and alter — encountering each other for the first time. Each wants to survive and has certain material capabilities, but neither actor has biological or domestic imperatives for power, glory, or conquest…and there is no history of security or insecurity between the two. What should they do?...In the beginning is ego’s gesture, which may consist, for example, of an advance, a retreat, a brandishing of arms, a laying down of arms, or an attack. For ego, this gesture represents the basis on which it is prepared to respond to alter. This basis is unknown to alter, however, and so it must make an inference or ‘attribution’ about ego’s intentions and, in particular, given that this is anarchy, about whether ego is a threat…Alter may make an attributional ‘error’ in its inference about ego’s intent, but there is no reason for it to assume a priori — before the gesture — that ego is threatening, since it is only through a process of signaling and interpreting that the costs and probabilities of being wrong can be determined. Social threats are constructed, not natural.”
43
interação79. Uma importante implicação desse argumento está no campo da Segurança
Internacional: a mudança de identidade tem influência direta no comportamento e nas
práticas estatais, o que faz com que noções entendidas como dadas – a anarquia, por
exemplo – tampouco sejam fatores imutáveis.
Para Wendt, as identidades podem mudar mas, ao mesmo tempo, são estáveis: isso
implica que a mudança dificilmente pode ocorrer. “Transformar definições sobre o self é mais
do que uma alteração de comportamento e, assim, é um processo difícil.” (ZEHFUSS, 2002, p.
41 – tradução nossa)80. Portanto, identidades e interesses são criados e sustentados nas
interações. Através das repetições, processos de estabilizações e expectativas sobre essas
são criados. Então, parte de seu argumento é que
em um mundo em que as identidades e os interesses são aprendidos e sustentados por práticas intersubjetivamente enraizadas, pelo que os estados pensam e fazem, é um mundo na qual a ‘anarquia é o que os estados fazem dela’. Os estados podem ter feito este sistema marcado pela competição, de self help, no passado, mas da mesma maneira, eles podem ‘desfazer’ essas dinâmicas no futuro. (ZEHFUSS, 2002b, p.55 – tradução nossa)
As estruturas sociais, que constrangem as escolhas, também são criadas e
mantidas; as identidades também são formadas, e assim como os interesses, não são
fáceis de mudar (ZEHFUSS, 2001).
Apesar de Alexander Wendt trazer, para as Relações Internacionais, esse novo
debate, que contrapunha com as principais correntes do campo até então, ele o faz de
forma problemática. Essa questão será abordada na próxima seção, com a discussão
feita por Maja Zehfuss.
79 Algumas correntes racionalistas, como a teoria dos jogos, admitem mudanças nas identidades, porém só ocorreria antes da interação entre as partes (ZEHFUSS, 2002). 80 “Transforming definitions of self is more than altering behavior and therefore a demanding process.”
44
3.2 Maja Zehfuss e sua crítica a Alexander Wendt
Em 2001, Zehfuss publicou o artigo Constructivism and Identity: A Dangerous
Liaison, no qual argumenta que Wendt precisa da identidade como conceito central do
seu Construtivismo; entretanto, é ela que torna sua teoria impraticável.
No ano seguinte, ao lançar o livro Constructivism in International Relations: The
Politics of Reality (2002), ela aprofunda suas críticas. Parte de um pressuposto
aparentemente simples, porém extremamente significativo:
por um lado, a possibilidade de se construir diferentes identidades é fundamental para a análise de Wendt, já que é o que constitui a sua separação das teorias racionalistas, o mainstream. A anarquia, como ele coloca em uma de suas primeiras obras, é o que os estados fazem dela. Essa aclamação se baseia na construção da identidade como um caráter da anarquia, que depende de como interesses e identidades são definidos. Por outro lado, Wendt propõe uma teoria ‘científica’ do Sistema Internacional. Isso torna necessário, na percepção do autor, tomar os estados como dados. Eu vou argumentar que, dentro dessa perspectiva, a identidade é, e de fato dentro dessa lógica, deve ser, conceituada como uma identidade “estatal circunscrita”. Em outras palavras, Wendt necessita que a identidade seja construída, mas ao mesmo tempo, em algumas formas, dada. A necessidade de tratá-la como dada só pode ser mantida ao se excluir as dimensões de construção de sua visão. (ZEHFUSS, 2001, 0. 316 – tradução nossa)81.
Portanto, seu objetivo principal é mostrar que, da forma como foi feita e proposta,
a teoria de Wendt não pode funcionar. O autor necessita fazer exclusões para manter a
unidade conceitual da identidade e essas são feitas a partir de escolhas metodológicas
que não são inocentes; porém, são elas que fazem com que o entendimento de
identidade se torne contraditório (ZEHFUSS, 2001).
81 “On the one hand, the possibility of constructing different anarchies is fundamental to Wendt’s approach as it is this which constitutes the departure from rationalist or ‘mainstream’ theory. Anarchy, as he put it in an early piece, is ‘what states make of it’. This claim rests on the constructedness of identity as the character of anarchy depends on how identities and hence interests are defined. On the other hand, Wendt proposes a ‘scientific’ theory of the international system. This makes it necessary, in Wendt’s view, to take states as given. I will argue that within this approach identity is, and indeed due to its logic must be, conceptualized as circumscribable state identity. In other words, Wendt needs identity to be constructed but at the same time in some ways given. The necessary givenness can only be upheld by excluding dimensions of constructedness from view”.
45
Wendt afirma que atores têm incentivos para manterem suas identidades
estáveis: seriam dados a partir de constrangimentos internos, que comprometeriam os
estados as suas identidades já estabelecidas e incentivos externos para manter as
instituições existentes, pois essas são fundamentais para o estabelecimento daquelas.
Ao interagirem, estados já estariam munidos de suas ‘identidades corporativas’
(qualidades intrínsecas que constituem os atores individualmente) formadas no âmbito
doméstico; para o autor, esse tipo de identidade é ontologicamente anterior ao próprio
sistema de estados, pois, nesse processo de interação, eles já têm uma idéia formada
sobre si próprios.
A partir disso, conclui-se que a ‘identidade corporativa’ é exógena à política
internacional, e isso é algo que interessa a Zehfuss, visto que esse específico processo
de formação da identidade é diferente de outros apontados por Wendt.
A identidade social depende da noção do self em relação a outros, o que faz com
que ela seja constantemente redefinida com as interações, além de ser possível ter
várias identidades sociais, já que existe múltiplos others82. Todos esses aspectos
tornam as identidades passíveis de mudanças, porém, como aponta Wendt, para que esta
ocorra, é necessário um esforço consciente, das partes interessadas (ZEHFUSS, 2001).
Um ator poderia passar por um processo de auto reflexão que lhe permitiria
mudar sua identidade. Como esta é formada a partir da interação, quando ela ocorre
tem-se, consequentemente, uma alteração no comportamento e na identidade do other.
Todo o processo é enfatizado por Wendt como ocorrendo através de gestos e não de
forma discursiva. Um ator sinalizaria “fisicamente” para o outro a sua intenção de
mudança e Maja Zehfuss o critica severamente em relação a isso.
Em primeiro lugar, está o fato de o autor sequer levar em consideração a
relevância do discurso. Para ela, a centralidade nos gestos físicos na explicação da
ação social diminui o caráter social de sua teoria, além de tornar impossível a análise
da transformação da identidade como sendo um processo discursivo – que é um
pressuposto plenamente aceito por outros construtivistas.
De maneira crucial, Wendt falha ao se omitir sobre como os discursos devem ser
analisados; ao demonstrar a formação de identidade através do Ego e do Alter, o autor
82 Esse processo de formação é diferente do da ‘identidade corporativa’.
46
entende que a interação entre os dois só acontece após a identificação que cada um
tem de si próprio. O mesmo aconteceria com os Estados que, ao atuarem no cenário
internacional, já teriam uma identidade formada anterior a isso.
Em segundo lugar, sua crítica se dá pelo fato de que o autor torna difícil a
compreensão – e a diferenciação – de quando a mudança está no comportamento e
quando está na identidade. Afirma que esta poderia tornar algo negociável entre os
atores, visto que o processo de mudança estaria entre “trocar” uma identidade estável
por outra.
Zehfuss indaga, e conclui, que a identidade é algo significativo para o
Construtivismo de Wendt, mas também é um problema substantivo. Assim, se suas
considerações forem levadas a sério, podem acabar destruindo toda a corrente teórica
proposta por ele.
O fato de o autor não levar a sério a produção discursiva da identidade não é
uma escolha metodológica, e sim, um movimento necessário para que não ameace seu
projeto construtivista. Portanto, ela é constituída a partir de sérias exclusões, como sua
gênese, sua formação e os tipos de atores envolvidos.
Finalmente, por pretender ser uma teoria sistêmica, os Estados são tratados
como dados, o que é algo extremamente complicado para teorias ditas construtivistas,
que consideram a co-constituição entre agência e estrutura. A autora conclui que “o
argumento de Wendt não pode ser salvo através da introdução de uma conceituação
mais sofisticada da identidade. É necessária a própria noção de identidade, que
provoca o seu colapso. O Construtivismo de Wendt não funciona” (ZEHFUSS, 2001,
p. 340 – tradução e grifo nosso)83
Após essa crítica tão bem fundamentada por Maja Zehfuss, que praticamente
impossibilita o estudo das identidades através da teoria proposta por Alexander Wendt,
o presente capítulo analisará como o Pós-estruturalismo trata essa questão nas
Relações Internacionais.
83 “Wendt’s argument cannot be saved through the introduction of a more sophisticated conceptualization of identity. It needs the very notion of identity, which makes it fall apart. Wendt’s constructivism does not work.”
47
3.3 Identidade e o Pós-estruturalismo das Relações Internacionais
Identidade requer diferença a fim de ser, e converte diferença em “ser o outro”, a fim de
assegurar sua própria auto-certeza.
William Connolly apud Iver Neumman, 1999: 20784
Se, de acordo com Maja Zehfuss (2001), a ligação entre o Construtivismo de
Wendt e a noção de identidade é perigosa, como poderia ser adjetivada a que ocorre
com o Pós-estruturalismo das Relações Internacionais? Qual o peso dado a essa
questão pelos autores de tal corrente?
Messari (2001) afirma que, para aqueles que adotam essa perspectiva, a
identidade é entendida através da oposição ao outro, o que a torna relacional: somente
faz sentido falar sobre a identidade de um self na presença de um other.
O presente trabalho não tem o propósito de fazer uma apresentação de todo o
Pós-estruturalismo, nem sequer analisar todos os argumentos apresentados pelos
autores aqui estudados. O objetivo é apresentar como eles entendem a questão da
identidade. Mas, para que isso seja possível, antes serão apresentados alguns pontos –
de maneira sucinta – com o intuito de melhorar a compreensão, tanto sobre a teoria,
quanto sobre a identidade.
3.3.1 O Pós-estruturalismo nas Relações Internacionais
O Pós-estruturalismo surgiu na década de 60, na França, porém, a sua inserção
no campo das Relações Internacionais ocorreu no final da década de 80; foram
introduzidos conceitos da filosofia através das obras de Michel Foucault, Jacques 84 “Identity requires difference in order to be, and it coverts difference into otherness in order to secure its own self-certainty.”
48
Derrida, entre outros. “Desafiar fronteiras está no centro das formas em que o Pós-
estruturalismo foi apropriado nas RI.” (GOEDE, 2006, p.3 – tradução nossa).85
Não é um paradigma unificado (assim como não o é na Filosofia) e alguns
autores86 discordam até mesmo de serem ‘rotulados’ dessa forma. Têm como ponto em
comum a relativização às teorias positivistas do campo e às teorias estruturalistas.
Acreditam que os pressupostos nos quais essas teorias trabalham – por exemplo, a
soberania – seriam tratados como dados, supostamente objetivos e inquestionáveis;
isso significa que outros aspectos que poderiam interagir com esses são esquecidos
e/ou excluídos.
Os pós-estruturalistas propõem que se faça um debate sobre a natureza das RI,
que se discuta como o estudo dela deve ser feito e quais os meios que devem ser
usados. Questionam a proposta positivista da construção de um conhecimento objetivo
através de métodos científicos importados das ciências naturais, já que isso acabaria
por limitar a disciplina de uma pluralidade de métodos possíveis.
Entendem as teorias do campo como discursos de poder, através das quais
estes serão exercidos. Através dessas práticas torna-se possível entender não somente
o ambiente internacional mas também a realidade. Esta “[...] em sua forma objetiva [...]
não pode ser conhecida externamente à linguagem humana; e que, portanto, a realidade
deve ser, inexoravelmente, um efeito constitutivo do discurso” (ADLER, 1999, p. 12).
Para Shapiro (2004) cada discurso deveria ser visto como um evento histórico de
tomadas de decisões, como um grupo de declarações que refletem um exercício de controle.
A contribuição discursiva para essas tomadas não é inocente. Dessa maneira, as declarações
deveriam ser entendidas como um ‘ativo’, que é “por natureza, o objeto de uma luta, de uma
luta política” (FOUCAULT apud SHAPIRO, 2004, p. xiii – tradução nossa)87.
A verdade nada mais seria do que a reprodução de discursos dominantes, de
posições de poder, apresentadas como se fossem naturais: a linguagem é, portanto, de
extrema importância para essa corrente teórica. É entendida como sendo “social e
política. Um sistema inerentemente instável de signos, que geram significados através 85 “Challenging boundaries is at the heart of the ways in which post structuralism has been appropriated in IR.” 86 Entre os maiores expoentes dessa corrente nas Relações Internacionais, estão: R.B.J. Walker, Richard K. Ashley, Michael Shapiro, James Der Derian, David Campbell, Cynthia Weber, Iver B. Neumann e Ole Wæver. (HANSEN, 2006). 87 “(...) by nature, the object of a struggle, a political struggle.”
49
de construções simultâneas de identidade e diferença.” (HANSEN, 2006, p. 17 –
tradução nossa)88. Pode ser estruturada, porém é instável, visto que não há como
estabelecer fixidez. A partir disso é possível obter mudanças, pois o que antes poderia
ser considerado, discursivamente, negativo, pode passar a ser positivo, e vice-versa.
Ao enfatizar o discurso, esse paradigma traz à tona uma de suas maiores
contribuições para o campo: a crítica pós-estruturalista às teorias mainstream das RI,
no que se refere ao fato de que estas, ao contrário do que dizem, não conseguem
refletir a realidade; o que fazem é reproduzi-la através das práticas discursivas.
3.3.2 Identidade e o Pós-estruturalismo
A partir da (re)produção dos discursos, via linguagem, tem-se a construção de
identidades que se tornam ‘realidade’ através das práticas políticas (HANSEN, 2006).
Michel Foucault entende esse processo de formação como sendo um que ocorre em
termos de distanciamento e exclusão, da subordinação do other através da dominância
do self (MESSARI, 2001).
Foucault tem a intenção de amplificar os limites do que nós conseguimos compreender como sendo a nossa história. No interior dessa história do nosso, assim como em toda ela, a identidade preside; dentro dela, um única cultura habilita um número de seres humanos a articular um “nós” coletivo. Essa identidade (...) é constituída através de uma série de exclusões. (DESCOMBES apud ANDERSEN, 2003, p/ 4 – tradução nossa)89
Para Campbell (1998), quando a análise das práticas culturais são guiadas
através da marginalização e exclusão dos outros, dá-se um sentido específico à
representação da violência. Ele também recorre à Foucault, que afirma que “a tarefa
apropriada da história do pensamento... [é] definir as condições pelas quais os seres
88 “”[language] is social and political, an inherently unstable system of signs that generates meaning through a simultaneous construction of identity and difference.” 89 “Foucault intends to sound the limits of what we can recognize as our history. At the interior of this history of ours, as of all history, identity presides; within it, a single culture enables a number of human beings to articulate a collective ‘we’. This identity (…) is constituted through a series of exclusions.”
50
humanos ‘problematizam’ o que eles são, o que fazem, e o mundo em que vivem.”
(FOUCAULT apud CAMPBELL, 1998, p. x – tradução nossa)90
Como já mencionado, é inerente à formação da identidade, a contraposição a um
other. Na articulação das culturas ocidentais relega-se àquele que está fora um status
de inferioridade, que poderia até ser sinônimo de inimigo, de escravo, entre outros. “A
dignidade humana é distribuída desigualmente entre uma elite e os seus Others”
(CORBEY; LEERSEN, 1991, p. vi – tradução nossa)91. Assim, a existência do Other é
uma condição de possibilidade para a existência do Self (CAMPBELL, 1998).
Esses autores recuperam Foucault, ao afirmar que a formação de identidade se
dá através de um mecanismo sócio-histórico de exclusão. Ao estudar a história da
loucura, este autor
argumenta que a exclusão forçada e o exorcismo do que é o other é um ato de formação de identidade, e elabora no caso histórico da exclusão da irracionalidade e da loucura como parte da auto-definição do ideal racional humanista, que desse modo, suprime e nega uma parte da personalidade humana. História, para Foucault, ainda é uma das auto-constituições humanas. (...) [Ela] é descrita, agora, em termos de exclusão e estranhamento, da subordinação do other pela hegemonia do self. (CORBEY; LEERSEN, 1991, p. xii – tradução nossa)92
Em 1992, David Campbell lançou a obra Writing security: United States foregin
policy and the politics of identity, de grande importância para essa corrente no campo
das Relações Internacionais. De acordo com o autor, seu objetivo é problematizar,
através das mudanças dos últimos tempos, a questão da “segurança”, ao questionar a
noção de identidade feita pelas principais teorias.
Examina como a identidade dos Estados Unidos da América foi escrita e re-
escrita através da política externa. “O livro é uma densa descrição da política externa
americana como uma ‘rede de discursos sem costuras e práticas políticas que tem sido
90 "The proper task of a history of thought...[is] to define the conditions in which human beings 'problematise' what they are, what they do, and the world in which they live." 91 “Human dignity is distributed unequally between an elite and its Others.” 92 “(...) Argues that the forceful exclusion and exorcism of what is Other is an act of identity formation, and elaborates on the historical case of the exclusion of unreason and madness as a part of the self-definition of the rational humanistic ideal, which thereby suppresses and denies a part of the human personality. History, for Foucault, is still one of human self-constitution. (…) [History] is now described in terms of exclusion and estrangement, of the subordination of otherness by the hegemony of self.”
51
feita através de uma série de acoplamentos desde os tempos de Cortés até a Guerra
do Golfo.” (NEUMANN, 1999, p. 24 – tradução nossa)93.
Para Campbell, as fronteiras estatais do Sistema Internacional fazem a divisão
do inside para o outside. A soberania estatal é constituída através de dicotomias como
inside/outside, self/other, verdadeiro/falso, ordem/desordem.
Os espaços do inside e do outside servem para delinear o racional, ordenar a política na qual o homem bom, o são, sóbrio, modesto e civilizado reside do reino perigoso, caótico, e anárquico, no qual o povo mal, louco, bêbado, arrogante e selvagem é encontrado. A divisão entre inside e outside e as distinções normativas entre os dois reinos significam que essas estratégias constituem um mundo na qual a soberania existe na condição da anarquia e guerra. (CAMPBELL, 1992, p. 68 – tradução nossa)94
É através dessa separação que se torna possível falar, por exemplo, em política
externa – algo que, ao mesmo tempo em que divide, une o inside e o outside, o estado
para o sistema inter-estatal.
O que faz com que esse tipo de política seja ‘externa’ reside nas práticas que
constituem o interno. Desta forma, a ‘política externa’ é uma prática que produz,
constitui e, ao mesmo tempo, legitima as fronteiras; “é uma parte de um processo de
inscrição multifacetado que disciplina o homem ao enquadrá-lo na organização espacial
e temporal do inside e do outside, do self e do other.” (CAMPBELL, 1992, p. 69 –
tradução nossa)95. Messari (2001) aponta que através de política externa, tem-se a
construção da identidade política nacional, sendo um instrumento que “constrói os
limites entre o self e o other, definindo, no processo, quais são os interesses nacionais”
(MESSARI, 2001, p. 227 – tradução nossa)96.
A divisão feita demonstra as práticas que tornam possível a soberania estatal
através da condição de guerra e anarquia, afinal, para o outside entende-se o lugar do 93 “The book is a thick description of U.S. foreign policy as a seamless web of discourse and political practice that has played itself out through a series of engagements with others from the time of Cortés up to the Gulf War.” 94 “The spaces of inside and outside serve to delineate the rational, ordered polity in which good, sane, sober, modest and civilized ‘man’ resides from the dangerous, chaotic, and anarchical realm in which the evil, mad, drunk, arrogant, and savage people are found. The division between inside and outside, and the normative distinctions between the two realms, means that these strategies constitute a world in which sovereign states exist in a condition of anarchy and war.” 95 “ is one part of a multifaceted process of inscription that disciplines by framing man in the spatial and temporal organization of the inside and outside, self and other”. 96 “erects boundaries between the self and the other, defining in the process what are national interests.”
52
perigo. As identidades são constituídas através de práticas estatais excludentes, pelas
dicotomias supracitadas; através de discursos que identificam o ‘perigo’ como
localizado no exterior. Como resultado tem-se a construção de fronteiras, o que para o
autor é algo problemático, pois deixa-se de lado questões como nacionalidade,
etnicidade e religião.
Outro problema apontado por Campbell está no espaço social criado pela distinção
entre inside/outside, que reserva para o interno o local aonde se encontra pessoas
racionais, civilizadas, enquanto no externo estão os bárbaros. Assim, a noção de perigo
passa a ser entendida como localizada fora das fronteiras territoriais dos estados.
Entretanto, o mesmo demonstra que no início da Guerra Fria – período em que a
demarcação das fronteiras era mais óbvia – o discurso sobre o inimigo estava marcado,
sim, pelas fronteiras estatais, visto que o EUA pregava que o inimigo era o comunismo
– subentende-se União Soviética; então, a ameaça do comunismo vinha através dos
soviéticos. Assim, os americanos passaram a ser o povo civilizado e o soviéticos eram
os bárbaros – a fronteira estatal era fundamental para manter o discurso.
Campbell aponta que, ao contrário daquilo que se espera ao lidar com a
metáfora do inside/outside, o tempo demonstrou que a ameaça poderia vir de dentro –
como nos casos dos “revolucionários”, dos “militantes”, “subversivos”. Isso fez com que a
fronteira de identidade pudesse ser demarcada, também, dentro das fronteiras estatais.
A partir disso, os inimigos tinham que ser contidos e mantidos fora de um corpo
social “puro”. As fronteiras deixaram de ser fixas e passam a colocar para dentro aquilo
que interessa àqueles que produzem os discursos. A Guerra Fria fez com que novas
considerações tivessem de ser levadas em conta, como aquelas sobre cultura, e
fronteiras identitárias ganharam um maior peso em relação as territoriais.
De acordo com Campbell, identidade e diferença são ligadas em uma relação de oposição de uma com a outra. Identidade é estabelecida em relação a uma série de diferenças, de fato, não somente internacionalmente, mas também domesticamente. Ela requer a diferença, a fim de existir, e quando a identidade está sob pressão, a confirmação de uma inclui a conversão da diferença em otherness. Essa conversão serve ao propósito de assegurar uma definição específica de um self seguro. (MESSARI, 2001, p. 230 – tradução nossa)97
97 “According to Campbell, identity and difference are linked in a relationship of opposition of one to the other. Identity is established in relation to a series of differences, in fact, not only internationally but also domestically. It requires difference in order to exist, and when identity is under pressure, the upholding of
53
Em 2006, Lene Hansen publicou o livro Security as practice: discourse analysis
and the Bosnian War. Afirma que ele “é sobre a importância da identidade para a
política externa, e tenta fazer três coisas: desenvolver uma teoria analítica de discurso
sobre identidade e política externa; apresentar uma metodologia para aplicar; e prover
uma análise extensa sobre a resposta ocidental para a guerra da Bósnia.” (HANSEN,
2006, p. xvi – tradução nossa)98.
Este trabalho não analisará as questões de metodologia tampouco a guerra da
Bósnia; o foco está sobre a posição adotada em relação à identidade. De acordo com
Hansen, essa é uma questão de suma importância, visto que faz parte do debate desde
a criação do campo das Relações Internacionais.
O Pós-estruturalismo, devido a relevância dada ao discurso, pode ser um
instrumento significativo nos estudos sobre identidade, que pode ser conceituada como
sendo discursiva99, política, relacional e social.
Falar que identidade é discursiva e política é argumentar que representações dela colocam questões de política externa dentro de uma ótica interpretativa particular, uma com conseqüências para as quais políticas externas podem ser formuladas como respostas adequadas. Teorizar identidade como construída através do discurso, e para a política ser dependente disso, é argumentar que não há identidade objetiva localizada em algum reino extra-discursivo. Por essa razão, identidade não pode ser usada como uma variável pela qual o comportamento e fatores não-discursivos podem ser mensurados. Isso implica uma conceituação de identidade que existe apenas quando continuamente rearticulada e incontestada por discursos competentes. A ênfase no político, no conceito de identidade para o Pós-estruturalismo, o distancia de uma conceituação de identidade como ‘cultura’ (HANSEN, 2006, p. 6 – tradução nossa)100.
identity includes the conversion of difference into otherness. This conversion serves the purpose of securing a specific definition of a secure self.” 98 “Is about the importance of identity for foreign policy, and it tries to do three things: to develop a discourse analytical theory of identity and foreign policy, to present a methodology for how to apply it, and to provide an extensive analysis of the Western response to the Bosnian War.” 99 Tem-se aqui uma grande diferença entre a proposta pós-estruturalista e aquela proposta por Alexander Wendt, que entende que as mudanças nas identidades não aconteceria discursivamente, mas sim através de sinais que os atores gesticulariam, apontando suas intenções. 100 “To say that identity is discursive and political is to argue that representations of identity place foreign policy issues within a particular interpretative optic, one for consequences for which foreign policy can be formulated as an adequate response. To theorize identity as constructed through discourse, and for policy to be dependent thereon, is to argue that there are no objective identities located in some extra-discursive realm, hence identity cannot be used as a variable against which behaviour and non-discursive factors can be measured. This implies a conceptualization of identity existing only insofar as it is continuously
54
Enfatiza também esse lado político da questão Campbell, ao afirmar que “a
construção da identidade não é a desconstrução da política; ao contrário, estabelece
como político os próprios termos nas quais a identidade é articulada.” (NEUMANN,
1999, p. 24 – tradução nossa)101 .
Ela é social, o que implica entendê-la como “estabelecida através de um conjunto
de códigos coletivamente articulados, não como uma propriedade privada do indivíduo
ou uma condição psicológica (...). A identidade individual é constituída dentro e através
de um terreno coletivo” (HANSEN, 2006, p. 6 – tradução nossa)102.
Finalmente, relacional – como já mencionado anteriormente – significa que a
identidade é formada a partir da contraposição com o que ela não é. Por exemplo: ser
“europeu” é constituído pela identidade do “não-europeu”. Da mesma forma, como
aponta Der Derian, citado pela autora, a noção de “terrorista” só é possível através do
“lutador pela liberdade” ou do “soldado sancionado pelo estado”. Isso significa dizer que
a identidade é formada através da justaposição e valoração de um termo sobre o outro,
ao longo de duas dimensões – por exemplo, o “emocional” seria inferior ao “racional”.
O aspecto relacional da identidade enfatiza o papel da política externa no seu contínuo processo de fazer e refazer. A suposição aqui é que a construção da identidade nacional ocorre através da alteridade. Mas o processo de alienação não é um privilégio daquele que detém o poder. É, ao contrário, um processo mútuo, operado por todas as partes a fim de produzir, reproduzir e confirmar a identidade nacional. (MESSARI, 2001, p. 231 – tradução nossa)103
Entretanto, o fato da identidade ser construída a partir da contraposição de um
self com um other não significa dizer que este é radicalmente oposto àquele – como é
tradicionalmente feito em discursos de segurança internacional. Há graus de
rearticulated and uncontested by competing discourses. The emphasis on the political in post-structuralism’s concept of identity sets it aside from a conceptualization of identity as ‘culture’.” 101 “The construction of identity is not the deconstruction of politics; rather, it establishes as political the very terms through which identity is articulated”. 102 “Established through a set of collectively articulated codes, not as a private property of the individual or a psychological condition (...). Individual identity is constituted within and through a collective terrain.” 103 “This relational aspect of identity emphasizes the role of foreign policy in its continuous in making and remaking. The assumption here is that the construction of national identity takes place through ‘alterity’. But the process of alienation is not the privilege of the powerful. It is instead a mutual process, operated by all parts in order to produce, reproduce, and confirm national identity.”
55
diferenciação, o que implica que este ‘outro’ pode ser construído a partir de
representações políticas e geográficas como ‘nações’, ‘mulher’, ‘terrorista’, ‘civilizado’.
A complexidade nessa relação entre o self e o other fica explícita no estudo de
Todorov, como aponta Messari (2001), sobre os três diferentes eixos do otherness – do
“ser o outro”.
O primeiro eixo é axiológico. Um valor é expresso (como bom/ruim, ou superior/inferior). O segundo é praxiológico. Aí a questão é um de distanciamento ou uma aproximação em relação ao other. Nesses termos, três diferentes atitudes são esperadas: a imposição do self sobre o other, a submissão do self para o other, ou a mera indiferença. Em terceiro há o eixo epistêmico, onde a questão é uma de reconhecer ou ignorar o outro. Ambas definem o self: a primeira ao enfatizar as similaridades, a outra ao evitar a descoberta de que o other existe. Todos os três eixos são interconectados, mas nenhum deles pode ser derivado dos outros.” (MESSARI, 2001, p. 230 – tradução nossa)104
A importância dada ao discurso é fundamental para a compreensão da formação
de identidades. Neumann (1999) faz a seguinte constatação: que o “significado” reside
na linguagem e visto que esta é limitada pelos contextos históricos que a circundam,
não é possível manter uma estabilidade do significado. Com o passar do tempo tem-se
uma contradição na própria formação da identidade. Messari (2001) corrobora essa
visão ao afirmar que a identidade é resultado de um processo comunicativo, e assim,
nenhuma definição é possível, seja no tempo e/ou no espaço.
É pelo fato da contradição ser sempre anterior ao discurso, e por ela nunca poder, conseqüentemente, escapar disso inteiramente, que os discursos mudam, submetem-se a transformações e escapam de suas próprias continuidades. Contradição, então, funciona através dos discursos como o princípio de sua historicidade. (FOUCAULT apud NEUMANN, 1999, p. 27 – tradução nossa)105.
104 “The first axis is axiological. A value is expressed (such as good/bad, or superior/inferior). The second axis is paraxeological. There the issue is a distancing one or a rapprochement in relation to the other. In these terms, three different attitudes are expected: imposition of the self on the other, submission of the self to the other, or mere indifference. Third, there is the epistemic axis, where the question is one of acknowledging or ignoring the other. Both approaches define the self: the former by emphasizing similarities, the latter by avoiding the discovery that the other exists. All three axes are interconnected, but none of them can be derived form the others” 105 “It is because contradiction is always anterior to the discourse, and because it can never therefore entirely escape it, that discourse changes, undergoes transformation, and escapes from its own continuity. Contradiction, then, functions throughout discourse, as the principle of its historicity.”
56
Sendo a identidade construída discursivamente, Hansen indica que isto se dá a
partir de uma lógica que possui duas dimensões – ligação e diferenciação: no primeiro
caso tem-se uma formação positiva da identidade, enquanto no segundo, isso é feito
negativamente. Utilizando o exemplo dado pela autora, que é o do entendimento em torno
da ‘mulher’ no século XIX, o processo de ligação é dado pelas características: ‘emotiva’,
‘maternal’, ‘confiável’ e ‘simples’; já a diferenciação se dava ao contrapor com a noção de
‘homem’, que era entendido como ‘racional, ‘intelectual’, ‘independente’ e ‘complexo’.
Ver a identidade como construída através de processos de ligação e diferenciação mostra a possibilidade para a desestabilização: o link entre alguns dos ‘sinais positivos’ pode se tornar instável; ou um termo avaliado negativamente em um discurso pode ser construído como positivo dentro de outro discurso, tornando a clara atribuição de valores superiores e inferiores para signos, algo mais complicado (HANSEN, 2006, p. 21 – tradução nossa)106.
Nessa mesma lógica, para Messari (2001) a relação entre self e other parte de
um equação relativamente simples: ou ambos têm o mesmo status, ou o other é
inferior, visto que, moralmente, o self é sempre entendido como superior. Cita Michael
Shapiro, que entende que quando a um other é dado o mesmo status que a um self,
ambos estarão sujeitos às mesmas proibições e constrangimentos, ao passo que a um
outro other, que não ocupa esse mesmo espaço, as condutas a ele relacionadas podem
ser muito mais explosivas.
As identidades são, através da linguagem e das práticas, reproduzidas no tempo.
São ontologicamente ligadas à política externa dos países: permitem a formação das
identidades ao passo que essas legitimam as políticas propostas; ao mesmo tempo que
se auto-constituem, são produtos umas das outras. Assim sendo, não é possível afirmar
que uma antecede e/ou seja antecedente a outra107.
A partir do momento em que todos os atores citados enfatizam que as
identidades são limitadas pelos contextos históricos que as cercam, percebe-se o uso
106 “Seeing identity as built through processes of linking and differentiation shows the possibility for destabilization: the link between some of the ‘positive signs’ might become unstable; or a negatively valued term of one discourse might be constructed as positive within another discourse, making the clear attribution of inferior or superior value to signs more complicated.” 107 Com isso, fica implícito para os pós-estruturalistas que, se identidade e política externa são ontologicamente inseparáveis, então não é possível adotar uma postura epistemológica que vá analisar quais são os efeitos causais de uma na outra (HANSEN, 2006).
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da genealogia, proposta por Friedrich Nietzsche e que teve seu conceito expandido por
Michel Foucault, como instrumento de análise.
O que existe como moralidade em uma dada época é uma vitória de um campo de forças sobre outros. Faltando o valor intrínseco ou afirmação histórica, valores existentes são instâncias arbitrárias da dominação política. Porém são representadas de outra forma; são moralizadas ao substituir o espiritual pela supremacia política. (SHAPIRO, 2001, p. 55 – tradução nossa)108
Dessa maneira, dentro da perspectiva genealógica, a moralidade não deveria ser
vista como a expressão da verdade, mas sim como a vencedora de uma batalha entre
forças de um campo. Foucault elabora histórica e politicamente o pensamento de
Nietzsche e entende que os sistemas existentes de inteligibilidade são conquistas
ambíguas (SHAPIRO, 2001).
Foucault abraça essa visão da arbitrariedade das práticas de inteligibilidade de todas as épocas e se volta para a história para fazer os arranjos para que o presente apareça como peculiar, ao invés de um resultado histórico que envolve sabedoria. (...). Edificado pela imaginação genealógica de Nietzsche, a tarefa que Foucault impõe para si mesmo é mais uma questão de um inquérito paciente que uma questão de desqualificar a complacência filosófica pós-Sócrates. Ele flexiona a discórdia de Nietzsche dentro de um registro lingüístico, analisa eventos discursivos para mostrar como campos existentes de enunciação permitem que o poder político se disfarce como outra coisa (SHAPIRO, 2001, p. 57 – tradução nossa)109.
Assim, Foucault acaba por oferecer a política da ironia, que é guiada por um
reconhecimento de que a justiça e as regras não possuem transcendência histórica de
legitimação; elas são, nada mais nada menos, que resultados de uma imposição
(SHAPIRO, 2004).
De acordo com Huysmans (1997) é possível utilizá-la sem cair nas armadilhas do
historicismo, já que a genealogia é o estudo da história do presente. “Ela nos ajuda
108 “What exists as morality in a given epoch is a victory of one set of forces over others. Lacking intrinsic worth or historical affirmation, existing values are arbitrary instances of political domination. But they are represented otherwise; they are moralized by substituting a spiritual for a political supremacy.” 109 “Foucault embraces this view of the arbitrariness of every age’s practices of intelligibility and turns to history to make the arrangements of the present appear peculiar rather than a result of historically evolving wisdom. (...) Edified by Nietzsche’s genealogical imagination, the task Foucault sets for himself is more a matter of patient inquiry than a matter of disqualifying post-Socratic philosophical complacency. He inflects Nietzschean discord within a linguistic register, analyzing discursive events to show how existing fields of enunciation allow political power to disguise itself as something else.”
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entender nossa condição presente ao quebrar a unidade e normalidade conservadas
artificialmente.” (HUYSMANS, 1997, p. 341 – tradução nossa)110.
Dessa forma, David Campbell (1992) analisou a formação da identidade
americana, Hansen (2006) analisou a Guerra da Bósnia, Neumman (1999) estudou a
formação da identidade européia, tendo o Leste Europeu como o seu principal other.
O estudo da formação da identidade coletiva oferece mais que exortações morais e uma forma de estudar estruturas de identidades constituídas intersubjetivamente e interesses que são endógenos e constitutivos do sistema internacional. (...) Oferece nada mais que a possibilidade de finalmente se teorizar sobre a gênese e a manutenção das coletividades humanas da política mundial. Análises do nexo self/other fazem a promessa de uma melhor compreensão de quem os “atores” são, como são constituídos, como se mantêm, e sobre quais pré-condições eles podem prosperar. Se essas são preocupações marginais, elas são apenas no sentido que podem ser melhor estudadas pelo exame das margens da política mundial. (NEUMANN, 1999, p. 37 – tradução nossa)111
Portanto, para o Pós-estruturalismo, a história é um componente fundamental
para a formação de identidade e sua perpetuação. Não é um fenômeno fixo, e sim, algo
que depende de seu contexto, tornando-se a representação deste: significa dizer que é
um processo contínuo e infinito. Nesse sentido, as identidades nacionais são históricas
e permanentemente construídas e reconstruídas; são construções sociais e políticas. “É
ao usar a natureza antagonista da relação entre inside e outside, identidade e
diferença, e ao usar o discurso e a “linguagem” que a identidade é permanentemente
construída e reconstruída”. (MESSARI, 2001, p. 231 – tradução nossa)112.
Assim sendo, como toda essa compreensão pode ser representativa de
processos de violência? De acordo com este autor, a posição ocidental de exclusão
absoluta entre o self e o other fez com que hoje, vários dos que foram excluídos do
processo, busquem a sua legitimidade como um de diferente identidade.
110 “It helps us understand our present condition by breaking its artificially conserved unity and normality.” 111 “The study of collective identity formations offers more than moral exhortations and a way of studying intersubjectively constituted structures of identities and interests that are endogamous and constitutive to the international system. (…) It offers no less than the possibility finally to theorize the genesis and maintenance of the human collectives of world politics. Analyses of self/other nexuses hold out the promise of a better understanding of who “the actors” are, how they were constituted, how they maintain themselves, and under which preconditions they may thrive. If these are marginal concerns, they are marginal only in the sense that they may best be studied by an examination of the margins of world politics.” 112 “It is by using the antagonistic nature of the relationship between inside and outside, and identity and difference, and by using a discourse and “language” that identity is permanently constructed and reconstructed.”
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Independente do entendimento de que o other é fundamental para a constituição
do self; de que a mera afirmação da existência do outro já implica seu reconhecimento;
de que este processo é fundamental para a formação das identidades coletivas, as
políticas de enfrentamento a este outro costumam ser pautadas por hostilidades e
alienações. Quando as representações dos others são dadas como uma diferença total,
esse seria o primeiro passo para o uso da violência contra esses (MESSARI, 2001).
A insistência de que a ameaça a identidade harmoniosa vem de fora da identidade, o que não necessariamente significa fora das fronteiras territoriais, é importante aqui já que ela reafirma a fragilidade da identidade coletiva e a importância dessa relação com o other. Essa ameaça, então, se torna o principal alvo de políticas de exclusão e negação. (MESSARI, 2001, p. 233 – tradução nossa)113”
Como isso pode ser aplicado na análise dos murais da Irlanda do Norte? Esse
será o foco do próximo capítulo.
113 “The insistence the threat to the harmonious identity comes from outside the identity, which does not necessarily mean outside the territorial boundary, is important here since it reasserts the fragility of collective identity and the importance of its relationship with the other. This threat becomes then the primary target of policies of exclusion and negation.”
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4. MURAIS, MEMÓRIAS E IDENTIDADES
Como murais podem representar conflitos, as memórias que os envolvem, os
sentimentos de nações diferentes? O presente capítulo irá apresentá-los, analisá-los, com o
objetivo de entender como essa maneira de se expressar pode ser utilizada para a
compreensão das memórias e para a formação de identidades de unionistas e republicanos.
Para tanto, a divisão será feita em cinco partes: a primeira será dedicada à
apresentação da noção de documento – no caso, os murais – como objeto de estudo; a
segunda, à sua contextualização histórica; em seguida, serão analisados tendo como
foco a produção da insegurança; a quarta parte consistirá no estudo da questão da
memória; finalmente, a quinta tratará da relação deles com a territorialidade.
4.1 O uso do documento
Antes que os murais sejam apresentados, faz-se necessário demonstrar como
eles são entendidos como objetos de análise.
4.1.1 Documento e Monumento
“A memória coletiva e a sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de
materiais: os documentos e os monumentos”. (LE GOFF, 2005, p. 525 – grifo no
original). O monumento, como uma herança do passado, tem a capacidade de evocá-
lo, de perdurar recordações. “Tem como características o ligar-se ao poder de
perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à
memória coletiva)” (LE GOFF, 2005, p. 526).
61
Já os documentos são caracterizados por serem, majoritariamente, testemunhos
escritos escolhidos pelos pesquisadores. Le Goff (2005) afirma que dentro da história
estes têm triunfado, mesmo que lentamente, sobre os monumentos, principalmente
com a escola positivista. Febvre confirma essa noção quando se expressa: “a história
faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-
se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem”. (FEBVRE apud LE
GOFF, 2005, p. 530).
Ao longo dos debates historiográficos da década de 60 é possível identificar o
processo que ficou conhecido como Revolução Documental. Buscava-se um alargamento
do documento, a fim de se entender não apenas o escrito, mas também aquele que é
transmitido pelo som, e o que é ilustrado. Teve caráter qualitativo e quantitativo.
“O interesse da memória coletiva e da história já não se caracteriza
exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, a história que avança
depressa, a história política, diplomática, militar. Interessa-se por todos os homens,
suscita uma hierarquia mais ou menos implícita dos documentos.” (LE GOFF, 2005,
p.531). Essa revolução documental mudaria a função da história e o papel do
historiador. Antes,
a história, na sua forma tradicional, dedicava-se a “memorizar” os monumentos do passado, a transformá-los em documentos e em fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio outra coisa diversa do que dizem; em nossos dias a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjunto. (FOUCAULT, 2009, p. 8).
Dessa maneira, passa-se a questionar a veracidade do documento, ao se
considerar o contexto pelo qual ele foi produzido, quem foi o seu autor. Foi nessa época
que a atenção dada por disciplinas como a história, filosofia, deslocaram suas atenções
das vastas unidades, como os “séculos” ou as “épocas” e passaram a buscar as
interrupções, os fenômenos de ruptura.
O grande problema que se vai colocar – que se coloca – a tais análises históricas não é mais saber por que caminhos as continuidades puderam
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estabelecer-se; de que maneira um único e mesmo projeto pôde-se manter e constituir, para tantos espíritos diferentes e sucessivos, um horizonte único; que modo de ação e que suporte implica o jogo das transmissões, das retomadas, dos esquecimentos e das repetições; como a origem pode estender seu reinado bem além de si própria e atingir aquele desfecho que jamais se deu – o problema não é mais a tradição e o rastro, mas o recorte e o limite; não é mais o fundamento que se perpetua, e sim as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos. Vê-se, então, o espraiamento de todo um campo de questões (...) pelas quais essa nova forma de história tenta elaborar a sua própria teoria: como especificar os diferentes conceitos que permitem avaliar a descontinuidade (limiar, ruptura, corte, mutação, transformação)? Através de que critérios isolar as unidades com que nos relacionamos: O que é uma ciência? O que é uma obra? O que é uma teoria? O que é um conceito? O que é um texto? Como diversificar os níveis em que podemos colocar-nos, cada um deles compreendendo suas escansões e sua forma de análise? Qual é o nível legítimo da formalização? Qual é o da interpretação? Qual é o da análise estrutura? Qual é o das determinações de causalidade? (FOUCAULT, 2009, p. 6)
A partir daí, altera-se o estatuto do documento, pois este não é mais considerado
pelo seu conteúdo, nem pelo dado nele contido, mas pelo seu valor relativo. Surge uma
nova unidade de informação, que “em lugar do fato que conduz ao acontecimento e a
uma história linear, a uma memória progressiva”, (LE GOFF, 2005, p. 535) tem-se o
privilégio de uma história descontínua, em que a memória coletiva é privilegiada e o
patrimônio cultural instituído.
Para aprofundar a sua crítica em relação ao documento, de que este ao ser
analisado “enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao
historiador usá-lo cientificamente” (LE GOFF, 2005, p. 536), o autor recorre a Foucault.
Este entende que a história teria como problema principal o “questionar os
documentos”. Nada mais seria que uma forma com a qual uma sociedade pode “dar
estatuto e elaboração a uma massa documental de que se não separa” (FOUCAULT
2009, p. 9). A partir daí, caberia ao historiador operar e elaborar os documentos, e não
mais dizer se o seu conteúdo é verdadeiro ou não.
O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstruir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações (FOUCAULT, 2009, p.7).
Tem-se, assim, uma mudança em direção ao documento/monumento.
63
O novo documento, alargado para além dos textos tradicionais, transformado - sempre que a história quantitativa é possível e pertinente - em dado, deve ser tratado como um documento/monumento. De onde a urgência de elaborar uma nova erudição capaz de transferir este documento/monumento do campo da memória para o da ciência histórica( LE GOFF, 2005, p.539).
Para Foucault (2009), uma conseqüência disso passa a ser a importância que a
noção de descontinuidade ganha dentro da história. Se antes isso era entendido como
o que deveria ser contornado e até mesmo apagado pelo historiador, passou a ser um
dos principais elementos de uma análise histórica. “Um dos traços mais essenciais da
história nova é, sem dúvida, esse deslocamento do descontínuo: sua passagem do
obstáculo à prática; sua integração no discurso do historiador, no qual não desempenha
mais o papel de uma fatalidade exterior que é preciso reduzir, e sim o de um conceito
operatório que se utiliza” (FOUCAULT, 2009, p.10).
Dessa maneira, como é possível analisar os murais norte irlandeses? Pelo que
foi exposto, eles não seriam meramente retratos da história local, de fatos específicos,
e sim, atores capazes de afetar o presente, ao relatar o passado. Entretanto, antes de
se aprofundar nesse ponto é necessário, primeiramente, entender o que são esses murais.
4.2 Os Murais: contexto histórico
Vistos em toda a Irlanda do Norte, principalmente nas cidades de [London]Derry
e Belfast, os murais constituem uma importante maneira de se compreender, de se
analisar o The Troubles. Utilizados para representar opiniões, relatar memórias e
pontos de vistas sobre determinados eventos do conflito, suas histórias percorreram
caminhos diferentes, quando utilizados por unionistas e republicanos.
Os murais, apesar de sua grande utilização, como instrumento de manifestação
de opinião, eram muito contestados. Bill Rolston, ao publicar seu primeiro livro, em
1992, aponta que artistas e especialistas em história da arte afirmavam que os murais
seriam qualquer coisa, menos arte; jornalistas davam-lhes pouco crédito, enquanto
cientistas sociais costumavam ignorá-los; grupos de cidadãos afirmavam que eles só
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serviam para causar mais conflitos, além de poluir visualmente as cidades; finalmente,
o Estado e suas instituições negavam a sua importância e tomavam atitudes contra,
como o despejo de baldes de tinta sobre eles.
Jarman (1998) reforça esse ponto ao demonstrar que a controvérsia em torno
dos murais era corroborada por cidadãos norte-irlandeses que afirmavam que eles não
representavam as opiniões, os sentimentos de todos, e sim, os dos grupos que os
patrocinavam e os erguiam. Entretanto, isso não era facilmente percebido devido ao
medo que os opositores sentiam, o que os levavam a não se expressarem.
Se são movimentos artísticos ou não, esses murais, principalmente nos anos 90,
tornaram-se cada vez mais elaborados e profissionais, ricos em expressões culturais e
passaram a ser reconhecidos como prática política e social já estabilizada. Hoje em dia, as
duas principais cidades do país possuem rotas que levam turistas para vê-los de perto e
compreender suas histórias, símbolos e significados. Portanto, é possível compreendê-los
não somente como parte do patrimônio cultural norte-irlandês e como formas de
manifestação – e questionamento – de poder, mas principalmente como monumentos
capazes de evocar o passado e ao mesmo tempo, questionar e alterar o presente.
4.2.1 Dos primeiros murais ao processo de paz
Como foi dito no capítulo sobre a história da Irlanda e da Irlanda do Norte, uma
das grandes diferenças entre unionistas e republicanos estava no fato de que os
primeiros conseguiam melhores empregos, o que fazia com que tivessem, em geral,
maior poder aquisitivo. Desde os primeiros anos do século passado era possível ver
vários murais unionistas/protestantes, ao contrário dos republicanos/católicos, que
simplesmente não tinham condições financeiras para produzi-los (CAIN).
Pintados por artesões, pintores de casas e de ônibus, os murais protestantes,
por décadas, quase sempre variavam em torno de um mesmo tema e tiveram como
principais objetos: o Rei William III (ou King Billy – o Guilherme de Orange) e a sua
65
vitória na batalha de Boyne, em 1690, na qual ele derrotou o Rei James I na luta pela
coroa inglesa114.
Sentado em cima de seu cavalo, com uma postura ereta, elegante e vitoriosa,
suas glórias eram retratadas a fim de representar o seu domínio e legitimar o poder em
nome dos protestantes. Essa batalha ocorreu em 01 de julho de 1690, mas mudanças
nos calendários fizeram com que passasse a ser comemorada no dia doze do mesmo
mês. Anualmente marchas, bandeiras e murais são utilizados nas comemorações, que
por vários anos foram marcados por sérios atritos entre as partes (ROLSTON, 1998).
A vitória do Rei William III (King Billy, como ele é conhecido) aconteceu em um período de consolidação das regras britânicas na Irlanda, o que incluía a “ascendência protestante”. Um elemento chave nessa ascendência era a existência das leis penais, que tinham o propósito de reter as populações católicas e presbiterianas da Irlanda. A incorporação dos presbiterianos através do Act of Union de 1800 (que estabeleceu o Reino Unido da Bretanha e Irlanda) deixou os católicos da Irlanda no plano mais inferior da hierarquia social. (ROLSTON, 1998, p.i – tradução nossa)115
O primeiro mural, erguido na cidade de Belfast – que já não existe mais – data de
1908 e continha essa representação, a mais icônica de todas. Com a divisão da ilha,
em 1921, os rituais dos murais e das marchas tornaram-se ainda mais pontuais, a fim
de criar e reafirmar a identidade protestante, em um estado dominado por eles, criando-
se, assim, uma noção de família (ROLSTON, 1998; ROLSTON, 2003). Jarman (1998)
reforça essa posição ao afirmar que tanto a figura do Rei como os símbolos orangistas
serviam para fortalecer a identidade britânica em um período marcado por significativas
crises políticas.
Porém, o aumento das tensões nos anos 60 expôs claramente as divisões
existentes dentro do movimento unionista. Nas décadas de 70 e 80 as imagens do Rei
tornaram-se mais escassas, o que mudou na década de 90 com o tri-centenário da
batalha (CAIN). A Figura 1, abaixo, é um dos exemplos dos anos 80. 114 Os murais retratavam outros temas como a Batalha de Somme, o Cerco a cidade de Derry, em 1689, e o naufrágio do Titanic. 115 The victory of King William III (King Billy, as he is known) ushered in a period of consolidated British rule in Ireland, which included the ‘Protestant ascendancy’. A key element in this ascendancy was the existence of ‘penal laws’ whose purpose was the containment of the Catholic and Presbyterian populations of Ireland. The later incorporation of Presbyterians through the Act of Union of 1800 (which established the United Kingdom of Britain and Ireland) left the Catholics of Ireland at the bottom of the social hierarchy.
66
Figura 1: Rei Guilherme atravessando o Boyne, com um soldado jacobita morto na margem do rio. Local e data: Donegall Pass, Belfast, 1984. Fonte: CAIN116.
Nessa figura é possível ver a introdução de novos símbolos – que começaram a
ser usados na década de 70 – como a bandeira da Escócia e do Ulster, e a “Mão
Vermelha do Ulster” – a Red Hand of Ulster. De acordo com Rolston (2003), apesar do
movimento paramilitar unionista ter tido atuação significativa nas décadas anteriores, foi
com a assinatura do Tratado Anglo-Irlandês, o Anglo-Irish Agreement, em 1985, que
murais com essa temática começaram a aparecer, como visto na Figura 2:
Figura 2: Mural Memorial a Trevor King, da UVF, 1o Batalhão, com emblema da Protestant Action Force. Local e data: Disraeli Street, Belfast, 1994. Fonte: ROLSTON, 1998.
Durante todas essas décadas, católicos/republicanos observavam as obras dos
protestantes sem ter muito o que fazer, visto que não tinham nem condições
financeiras, tampouco espaço político para tanto.
116 Para ver os murais no site CAIN, acessar: http://cain.ulst.ac.uk/murals/
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Jarman (1998) aponta que, enquanto nos bairros unionistas, os murais foram
importantes para mudar o entendimento de “áreas onde os protestantes viviam” para
“Áreas Protestantes”, o mesmo não aconteceu nos bairros católicos. Ao passo que eles
ajudaram na formação da identidade protestante, à população nacionalista não foi
permitido o mesmo direito; não havia uma “Área Católica” já que isso seria uma ameaça
ao status da Irlanda do Norte. “Paradas unionistas eram permitidas passar através de
áreas católicas, mas tentativas, dos nacionalistas de fazê-las ou de erigir indicadores
visuais eram freqüentemente restringidos ou banidos imediatamente” (JARMAN, 1998 –
tradução nossa)117.
Devido à exclusão, nacionalistas não pintavam murais. Tinham sua cultura marginalizada, relegada ao espaços privados dos halls das igrejas católicas, dos campos de esportes gaélicos e clubes particulares. A oposição nacionalista à divisão da ilha se deu de várias formas, sendo a mais óbvia a atuação esporádica do Exército Republicano Irlandês (IRA). Mas as ruas e espaços públicos eram unionistas. Republicanos tinham menos liberdade para fazerem marchas e hastear bandeiras; eles não pintavam murais. (ROLSTON, 1998, p. i – tradução nossa)118
O primeiro mural nacionalista apareceu em janeiro de 1969, no bairro de
Bogside, em Derry, quando barricadas foram criadas para impedir que as tropas
britânicas entrassem. O slogan You are now entering free Derry119, que tornou-se um
dos grandes símbolos da causa republicana, é constantemente repintado, além de ser
um ponto de referência para comemorações dentro da cidade (JARMAN, 1998). Porém,
apesar de toda a sua importância, esse mural deve ser visto como um caso isolado na
época, não como o início da tradição republicana de pintar painéis – Figura 3.
117 Loyalist parades were allowed to pass through Catholic areas but attempts by nationalists to parade or erect visual displays were often highly restricted or banned outright. 118 “Given their exclusion, nationalists did not paint murals. Their culture was marginalised, relegated to the private spaces of Catholics church halls, Gaelic sports fields, and private clubs. Nationalist opposition to partition took a number of forms, most obviously the sporadic military campaign of the Irish Republican Army (IRA). But the streets and public places were unionists. Republicans had less freedom to march and fly flags; they did not paint murals”. 119 “Você está entrando agora na Derry livre.”
68
Figura 3: You Are Now Entering Free Derry. Local e data: Free Derry Corner, Bogside, Derry, 1969. Fonte: CAIN.
A situação mudou com as greves de fome, na década de 80 – tratadas no
capítulo 1. No decorrer delas, e as subsequentes mortes, republicanos foram às ruas,
fizeram marchas de apoio e murais foram pintados. Os grevistas passaram a ser
retratados como verdadeiros heróis, suas causas – como a exigência do tratamento de
prisioneiro de guerra – passaram a ser objetos centrais dos murais católicos na época.
Enquanto os primeiros erguidos pelos unionistas tinham o Rei Guilherme III como
objeto principal, coube a Bobby Sands ser o protagonista dos republicanos. Como
essas greves foram importantes na deflagração de todo o processo de paz, eles
continuaram a ser retratados, como pode ser visto na Figura 4:
Figura 4: Mural da Greve de Fome120 Local e data: Lenadoon Avenue, Belfast, 1998. Fonte: CAIN.
120 Os dizeres na figura: “Our rulers will stop at nothing to attain their ends. They will continue to rule and rob until confronted by men who will stop at nothing to overthrow them.” Em português: “Nada parará os nossos governantes para obterem os seus fins. Eles continuarão a governar e roubar até quando confrontados por homens em que nada os pararão para derrotá-los.”
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Com o fim das greves, inicialmente, imaginou-se que os murais republicanos
acabariam. Isso, porém, não aconteceu (ROLSTON, 1992). Outros temas entraram em
voga; tornaram-se comuns, durante a década de noventa, aqueles que retratavam
eventos do passado, famosos ou não, como o Bloody Sunday e a Batalha de Bogside,
e relatos de assassinatos de crianças e adolescentes em todo o decorrer do The
Troubles, como se pode ver na Figura 5. Outros temas como eleições partidárias,
conflitos internacionais, como na Palestina, País Basco, África do Sul; história irlandesa,
mitologia celta também foram retratados.
Figura 5: Homem com Coquetel Molotov: Batalha de Bogside. Local e data: Bogside, [London] Derry, 1994. Fonte: THE BOGSIDE ARTISTS.
4.2.2 A década de 90
Durante a década de 90 a militarização dos murais unionistas ficou evidente, na
própria figura do Rei Guilherme III na Batalha de Boyne, como visto na Figura 6. Esta
retrata a pessoa de Michael Stone, que em 1988 assassinou três republicanos em um
funeral em Belfast.
70
Figura 6: Michael Stone, descrito como Rei Guilherme, atravessando o Rio Boyne. Local e data: Fountain Area, Derry, 1993. Fonte: ROLSTON, 1998.
Como dito anteriormente, símbolos que reforçavam a identidade unionista e
britânica, como a bandeira do Reino Unido – a Union Jack –, a Mão Vermelha do Ulster
tornaram-se cada vez mais recorrentes. No caso desse último, é importante notar que
ele aparecia em três formatos: com a mão aberta, como na bandeira da província; com
o punho cerrado, símbolo da UFF; ou com o punho cerrado envolvido por um arame
farpado, símbolo da LPA, a Loyalist Prisioners’ Association121.
Além do Tratado Anglo-Irlandês, mencionado anteriormente, outro fator
importante para a explicação a militarização de os murais unionistas está no fato dos
grupos paramilitares terem se rearmado, fortemente, no final da década de 80122. Ao
longo dos anos 90, esses grupos foram responsáveis por mais homicídios que os dos
republicanos, e murais que tinham essas organizações como temas foram pintados –
Figura 7 (Rolston, 1998).
121 Em português: Associação de Prisioneiros Loyalists. 122 De acordo com Rolston, 1998, esses grupos receberam uma grande quantidade de armas, advindas de embarcações sul-africanas, no final da década.
71
Figura 7: Unionista armado com o emblema da Ulster Defence Association. Local e data: Snugville Street, Belfast, 1994. Fonte: ROLSTON, 1998.
De acordo com esse autor, nessa mesma época surgiram murais com
referências históricas que iam além do Rei Guilherme, principalmente em referência à
primeira UVF e aos B-Specials. Também surgiram os que homenageavam membros e
pessoas que lutaram e morreram pela causa unionista.
Pelo lado dos republicanos, o fim das greves de fome não representou o fim das
representações das suas causas, como foi dito anteriormente. Murais que retratavam a
luta armada eram comuns, assim como aqueles que iam contra as forças britânicas e
unionistas, como nas figuras 8 e 9, respectivamente.
Figura 8: Republicano armado “Óglaígh na hÉireann”(Voluntários da Irlanda), com o sol nascente, símbolo do Na Fianna Éireann, ala jovem do IRA. Local e data: Carnagat Road, Newry, County Down, 1994. Fonte: ROLSTON, 1998.
72
Figura 9: “End British collusion” (Fim do conluio britânico),com membros dos grupos paramilitares unionistas, Ulster Defence Regiment e Royal Ulster Constabulary. Local e data: Oakman Street, Belfast, 1998. Fonte: ROLSTON, 1998.
4.2.3 Os anos do processo de paz
Apesar de o Acordo da Sexta-Feira Santa ter sido assinado em 1998, o processo
de paz é considerado desde o início da década, quando o IRA declarou o maior cessar
fogo até aquele momento. Como esse processo (o seu decorrer e após a sua
assinatura) pôde ser percebido nos murais, sejam eles protestantes ou católicos?
Desde o Tratado de 1985, conversas secretas ocorreram entre membros do Sinn
Féin e do governo britânico. Em 1993, com a assinatura da Declaração de Downing
Street, pelos primeiros-ministros do Reino Unido e da Irlanda, na qual a reunificação da
ilha teria de ter o consentimento dos unionistas, os murais republicanos passaram a
entoar mensagens de que o movimento estaria se vendendo. A Figura 10 tornou-se a
mais simbólica na representação do desejo de que os britânicos saíssem, de vez, da
ilha, juntamente com o slogan “Time to go123”. Do lado dos protestantes, nenhuma
mudança foi percebida nos murais (ROLSTON, 1998).
123 Em português, “hora de ir”.
73
Figura 10: Soldados britânicos partindo, “Slán abhailé” (lar seguro). “25 years, time to go”. Local e data: Ardoyne Avenue, Belfast, 1994. Fonte: ROLSTON, 1998.
Mas o cessar fogo não significou negociações imediatas em torno de um acordo
de paz. Dentro do próprio movimento republicano muitos acreditavam que o IRA já
estava tão comprometido com a violência que não seria capaz de abandoná-la. Os
britânicos enfatizavam que no anúncio feito pelo grupo, o termo utilizado foi uma
“completa” cessação das ações militares, e não “permanente”, o que os levaram a crer
que um período de quarentena seria necessário, antes de se envolver em negociações
com os republicanos – notoriamente o Sinn Féin (ROLSTON, 1998).
Para o IRA, o perigo de declarar cessar fogo em 1994 foi que isso poderia ser interpretado como rendição. Certamente muitos unionistas e o governo Britânico leram a situação como uma derrota parcial do republicanismo. Para eles, o envolvimento republicano no processo de paz provia de um reconhecimento de que nem o exército britânico, nem o IRA poderiam vencer, através de métodos exclusivamente militares. (ROLSTON, 2003, p. vi – tradução nossa)124
Os primeiros murais após o anúncio giravam em torno da “paz”: seja quando
representavam o início de uma paz duradoura, ou quando questionavam o
comprometimento dos britânicos para com ela. Outras demandas tornaram-se temas
dos murais, como o fim da polícia125 e a libertação dos prisioneiros de guerra.
124 For the IRA the danger of declaring a ceasefire in 1994 was that this could be interpreted as surrender. Certainly loyalists, many unionists, and the British government read the situation as a partial defeat of republicanism. For their part, republicans’ involvement in the peace process stemmed from a recognition that neither the British army nor the IRA could win by exclusively military means. 125 Que os republicanos afirmavam estar plenamente comprometida com a causa unionista.
74
Pelo seu lado, os protestantes exigiam a libertação de seus presos políticos e a
participação nas negociações. Entretanto, ao contrário dos republicanos, não eram
claras as aspirações deles com o cessar fogo.
Dada a tradicional divisão entre os unionistas em relação a uma maior integração dentro do Reino Unido por um lado, e a independência da Grã Bretanha por outro, não havia uma clara aspiração “nacional” ou constitucional aparente nas declarações dos unionistas após o cessar-fogo (ROLSTON, 1998, p. vii – tradução nossa)126.
A maneira encontrada para representar esse momento histórico especifico foi
demonstrar que quem capitulou foi o movimento republicano, e que os paramilitares
unionistas continuavam fortes, como pode ser visto na Figura 11. Nos anos seguintes,
os murais não tiveram mudanças significativas; de acordo com Rolston, isso pode ser
entendido pelo fato de que o passado era o que eles gostariam de manter, ao contrário
dos republicanos que, mesmo sem deixar de olhar para os seus heróis, as suas
demandas para o futuro implicavam grandes mudanças.
Figura 11: Slogan da Ulster Volunteer Force. Em nome da população unionista da Rua Shankill, nós aceitamos a incondicional rendição do IRA. Local e data: Shankill Road, Belfast, 1994. Fonte: ROLSTON, 1998.
Com a falta de progresso nas conversas, o IRA encerrou o cessar-fogo
realizando um atentado, em 09 de fevereiro de 1996, na área portuária de Londres, que
matou duas pessoas, feriu outras tantas e causou prejuízo de milhões de libras aos
126 Given traditional divisions among loyalists regarding fuller integration within the United Kingdom on the one hand and independence from Britain on the other, there was no clear ‘national’ or constitutional aspiration apparent in post-ceasefire statements from loyalists.
75
cofres britânicos127. O grupo voltou a declarar cessar-fogo em 1997, com a eleição de
Tony Blair para primeiro ministro do Reino Unido. Após meses de negociações, no dia
10 de abril de 1998 foi assinado o Acordo da Sexta-Feira Santa, ou Acordo de Belfast,
com o consentimento de todas as partes envolvidas.
Os murais republicanos nesses anos retratavam tantos eventos importantes,
como a eleição de Gerry Adams para o parlamento de Westminster; como mensagens
de que a Irlanda do Norte não seria mais um Estado protestante, visto na Figura 12; e
também um dos termas centrais do processo de paz, o abandono permanente das
armas – Figura 13. Na primeira, pode-se ver a derrubada da estátua do Sir. Edward
Carson que, como visto no Capítulo 2, foi quem disse que Stormont seria um
“parlamento protestante para pessoas protestantes.” Outra temática de relevância nos
murais republicanos era a que aclamava pelo fim dos assédios sectários, vistos na
Figura 14. (CAIN)
Figura 12: Republicanos derrubam a estatua do Sir. Edward Carson no lado de fora do prédio de Stormont. ‘Um parlamento protestante para população protestante – Não mais!’ Local e data: Mountpottinger Road, Belfast, 1998. Fonte: ROLSTON, 2003.
127 Ver: http://cain.ulst.ac.uk/events/peace/pp9398.htm
76
Figura 13: Unionistas incendeiam a Bombay Street, Belfast em Agosto de 1969. ‘Bombay St, nunca mais!’. Decommission – no mission.’ Local e data: Falls Road, Belfast, 1999. Fonte: ROLSTON, 2003.
Figura 14: Bandidos usando chapéus e vestindo faixas da Ordem de Orange “Logo, em uma vizinhança perto de você, os Homens Orangistas. Programados para te intimidar todo julho.” Local e data: Mountpottinger Road, Belfast, 2000. Fonte: ROLSTON, 2003.
Já os murais relacionados aos prisioneiros republicanos e a retirada de soldados
continuaram sendo pintados, enquanto os relacionados à luta armada tornaram-se cada
vez mais escassos. Quando apareciam, ao contrário dos anos anteriores e dos
unionistas, os paramilitares apareciam com os rostos descobertos: não eram mais
guerrilheiros do presente, mas representações de antigos membros do movimento
republicano, como visto na Figura 15. Em 2001, com os 20 anos da Greve de Fome,
vários murais foram erguidos – Figura 16. Finalmente, murais que retomavam a cultura
celta, a história do republicanismo na ilha, e outros conflitos internacionais também
podiam ser vistos nas ruas de Belfast e [London] Derry – Figura 17.
77
Figura 15: Unidade de serviço ativo do IRA em uma casa local. Figuras de militantes do IRA: Tommy Tolan, James McGrillen, Michael Kane e John Stone. Local e data: Ballymurphy Drive, Belfast, 2001. Fonte: ROLSTON, 2003.
Figura 16: Retrato de Kieran Doherty, membro da Greve de Fome e pessoas protestando. Local e data: Slemish Way, Belfast, 2001. Fonte: ROLSTON, 2003.
Figura 17: Retratos dos sete signatários da Proclamação da República, 1916, GPO ao fundo. Local e data: INLA wing, H Blocks, Long Kesh, 2000. Fonte: ROLSTON, 2003.
78
Enquanto isso, do lado unionista, os murais pouco retrataram sobre os eventos e
desenvolvimentos políticos, com exceção do caso da libertação dos presos políticos –
Figura 18 (ROLSTON, 2003). As marchas do movimento orangista continuaram a ser
figuradas em alguns murais – Figura 19 – mas o tema central continuou a ser a luta
armada. Às vezes faziam homenagens a membros proeminentes de grupos
paramilitares, mas os mais comuns eram de paramilitares encapuzados e em ação,
como na Figura 20.
Figura 18: Mãos cerradas, correntes quebradas, mapa da Irlanda do Norte e paredes de prisões, banderias da UDA e Ulster. ‘Alguns deram tudo. Todos deram algo. Libertem nossos prisioneiros. Ulster Freedom Fighters.’128 Local e data: Lord Street, Belfast, 1997. Fonte: ROLSTON, 2003.
Figura 19: Banda de Flautistas Protestantes do Leste de Belfast, emblemas e bandeiras da UVF. ‘Nossa mensagem é simples: aonde a nossa música é bem vinda, tocaremos alto. Aonde nossa música é desafiada, tocaremos ainda mais alto’129. Local e data: Hemp Street, Belfast, 2002. Fonte: ROLSTON, 2003.
128 ‘Some gave all. All gave some. Free our prisioners. Ulster Freedom Fighters.’ 129 ‘Our message is simple: where our music is welcome, we will play it loud. Where our music is challenged, we will play it louder.’
79
Figura 20: Homens armados e mascarados da UVF, com símbolos da organização. ‘Preparados para a paz, prontos para a guerra’130. Local e data: Mount Vernon Walk, Belfast, 2001. Fonte: ROLSTON, 2003.
Rolston (2003) apresenta razões para a manutenção da temática militarista.
Uma era reafirmar para as suas comunidades que o unionismo continuava a manter sua função, que era sua raison d’être, defesa. Outra era advertir aos nacionalistas para prestar atenção. Cada vez mais, entretanto, o aviso era para os companheiros unionistas, já que combates e disputas em curso poderiam levar a tentativas de criar áreas unipartidárias. Resumindo, murais unionistas eram opressivamente territoriais, e freqüentemente informavam aos que não eram dali, unionistas e nacionalistas, quem mandava na área. (ROLSTON, 2003, p. xi – tradução nossa)131
Muitos dos murais protestantes eram confeccionados pelos próprios grupos e,
nos últimos anos, a UDA retomou temas históricos, que iam desde o século XVII, até
defesa em relação aos inimigos – Figuras 21 e 22.
130 ‘Prepared for peace, ready for war’. 131 One was to reassure their communities that loyalists continued to carry out the role which was their raison d’être, defence. Another was to warn nationalists to beware. Increasingly, however, the warning was to fellow loyalists, as feuds and ongoing disputes led to attempts to create single-party areas. In short, loyalist murals were overwhelmingly about territory, and frequently informed ‘outsiders’ loyalists as well as nationalists, who was the top dog in the area.
80
Figura 21: Retrato do levante de 1641. ‘Perseguição ao povo protestante pela Igreja de Roma 1600. A limpeza étnica acontece ainda hoje’.132 Local e data: Hopewell Crescent, Belfast, 2000. Fonte: ROLSTON, 2003.
Figura 22: O Ulster retratado como novo durante a crise do Home Rule. ‘Abandonado! Bem, eu posso me defender sozinho.’ Mulher mascarada e armada e um homem no trator. ‘A esposa protestante de um fazendeiro guarda seu marido contra ataques sectários além-fronteiras’133. Local e data: Moscow Street, Belfast, 2002. Fonte: ROLSTON, 2003.
Dessa maneira, como esses murais podem ser entendidos como representações
das respectivas identidades, memórias e da manutenção da (in)segurança na região?
4.3 A produção da insegurança
Como foi dito anteriormente, apesar da produção dos murais ter sido frequente
nos anos oitenta e noventa, eles não eram aceitos por toda a população norte-
irlandesa. Um dos argumentos contrários era de que produziam mais insegurança
132 ‘The persecution of the Protestant people by the Church of Rome 1600 [sic]. The ethnic cleansing still goes on today’. 133 ‘Deserted! Well, I can stand alone.’ - ‘A protestant farmer’s wife guards her husband against sectarian attack from across the border’.
81
dentro e entre as duas comunidades. A próxima seção tem como objetivo analisar como
se dá a relação entre essa e a formação das identidades unionista e republicana.
4.3.1 Terrorismo e o Dilema de Segurança
No campo das Relações Internacionais, um dos conceitos mais estudados e
utilizados é o “Dilema de Segurança”. De acordo com a sua lógica, sendo o Sistema
Internacional pautado pela anarquia, homens ou grupos de homens e de estados,
vivem preocupados com a insegurança que os circundam. Devido ao medo de serem
atacados, subordinados, ou mesmo aniquilados, buscam ter cada vez mais poder, a fim
de não sucumbir perante o outro. O efeito disso é a insegurança que os “outros”
sentirão, que também os levará à busca de mais poder. “Já que ninguém nunca
consegue se sentir completamente seguro, em tal mundo de unidades competitivas, a
competição por poder tem lugar, e o círculo vicioso de segurança e acumulação de
poder é ativado” (HERZ, 1950, p. 157 – tradução nossa)134.
No caso da Irlanda do Norte, como pode ser entendida a geração e perpetuação
da insegurança – representadas nos murais – mesmo sendo ela um Estado com um
governo central? E quais as influências disso nas identidades analisadas? O terrorismo
torna-se um elemento chave para se obter uma resposta.
O campo das Relações Internacionais tem discutido, intensamente, esse
fenômeno. Após o 11 de setembro de 2001, o tema passou a ser abordado a partir de
vários aspectos, como: a sua história, os contextos sociais, políticos, econômicos e
culturais nos quais ele se insere, se funciona ou não como mecanismo de coerção,
quais os efeitos e consequências de ataques com armas de destruição em massa por
parte dos grupos paramilitares, entre outros.
134 “Since none can ever feel entirely secure in such a world of competing units, power competition ensues, and the vicious circle of security and power accumulation is on.”
82
Entretanto, para que seja iniciada uma discussão, que cada vez mais atrai a
atenção da mídia, de políticos, acadêmicos e da população em geral, é necessário
estabelecer o que se entende por isto.
Quando se estuda o terrorismo, o primeiro problema que devemos enfrentar é a
falta de um consenso em torno de uma única conceituação. A importância de se ter isso
está no fato de que se impediriam confusões com outras formas de violência.
Como disse Diniz (2004), quando se tem um conceito amplo
corre-se o risco de agregar sobre um mesmo nome, coisas muito diferentes, impossibilitando a análise, a identificação de alternativas adequadas para se lidar com o fenômeno e induzindo ao erro quando da avaliação da eficácia das alternativas dessas alternativas. Afinal, uma delas poderia ser adequada para lidar com um fenômeno e não com o outro; como ambos foram reunidos, na cabeça de decisores e analistas, sob o mesmo nome de ‘terrorismo’, a análise da eficácia também manifestará a mesma confusão, condenando equivocadamente alternativas razoáveis (DINIZ, 2004, p. 197).
Já de acordo com Crenshaw (1995a), uma compreensão adequada depende dos
contextos sociais, políticos, econômicos e históricos, além do entendimento de como as
pessoas respondem a esses atos. Portanto, parte da dificuldade de se estabelecer um
conceito está no fato de o terrorismo ser uma variável ambígua, de difícil quantificação
e mensuração, principalmente porque há várias formas de se praticá-lo.
Para Esteves (2003),
terrorismo não é um termo neutro, capaz de descrever um fenômeno que lhe é exterior. Os usos do conceito de terrorismo, seja na vida ordinária, seja em investigações científicas, suscitam, de forma imediata, julgamentos de valor; daí a necessidade de sua contextualização tanto no que se refere às condições objetivas em que emerge, quanto à percepção que os atores possuem do contexto em que tem lugar a sua ação, e de seu significado. Uma vez que o terror político é um conceito que orienta a ação e o comportamento de atores histórico e socialmente inscritos, pode-se supor que oriente uma política do terror: trata-se de um conceito organizador que a um só tempo descreve um fenômeno e lhe oferece um julgamento moral. (ESTEVES, 2005, p. 463)
Visto que o presente trabalho não tem como objetivo criar uma nova definição, a
adotada será a que foi introduzida por Alex Schmid e Albert Jongman, apresentada por
Esteves (2005).
Terrorismo é
83
um método de ação marcado pelo sistemático recurso à violência, empregado por indivíduos ou grupos semi-clandestinos ou Estados motivados por razões criminosas ou políticas onde – em contraste com o assassinato – o objeto da violência não corresponde ao alvo da ação. As vítimas imediatas podem ser escolhidas de forma randômica (oportunidade) ou seletiva (representativa ou simbólica) no interior de uma população alvo, servindo como geradores de mensagens. Processos de comunicação baseados na ameaça e violência entre organizações terroristas, vítimas e alvos são utilizados para manipular estes últimos, transformando-os em receptores de demandas ou atenção, dependendo do objetivo primário da ação: intimidação, coerção ou propaganda. (SCHMID; JONGMAN apud ESTEVES, 2005, p. 472).
Sendo essa a compreensão adotada daqui por diante, questiona-se: esse
método de ação marcado pelo sistemático recurso à violência é capaz de formar, ou
alterar, a identidade de um local, de um povo? Se afirmativo, de que maneira?
Como foi debatido anteriormente, a linguagem tem importância fundamental na
análise das formações de identidades, na compreensão sobre o que é, ou não, uma
ameaça – visto que essas são questões construídas discursivamente. A partir disso,
também pergunta-se: como o uso ao terror político, e como ações de combate a este,
podem impactar a formação da identidade, seja do grupo terrorista, da comunidade que
este defenda, ou do país envolvido?
Para que seja possível obter uma resposta, é necessário que se entenda a
noção de engrenagem, analisada por Crenshaw (1995b). Ao ser escolhido como prática
de ação, o terrorismo acaba por gerar esse mecanismo, que implica em
um processo no qual os meios ganham autonomia em relação aos fins a que se encontram referidos. Tal processo é, ao mesmo tempo, involuntário e mecânico. A imagem de um mecanismo que se movimenta autonomamente através de correias de transmissão que conectam seus pólos corresponde a um ciclo de violência e retaliação em forma tit-for-tat (...). A engrenagem articula antagonismos em um contexto em que cada uma das posições se apresenta, a um só tempo, como defensora de valores fundamentais, bem como vítima de uma violência ilegítima. (ESTEVES, 2005, p. 468)
Essa noção de que as partes envolvidas no conflito entram em um processo
mecânico de violência, que a ação cometida por uma parte deve ser prontamente
respondida pela outra, é fundamental para a formação de identidade, quando o
terrorismo se encontra envolvido.
84
Remete-se, então, ao Dilema de Segurança e como essas questões podem ser
compreendidas no caso da Irlanda do Norte. Como indagado anteriormente, esse país,
durante o The Troubles, não se encontrava em estado de anarquia. Porém, os
republicanos questionavam a legitimidade do Estado que, para eles, operava para
privilegiar os protestantes unionistas. Isso era particularmente sensível quando
afirmavam que a polícia era um instrumento de opressão e não de defesa de todos os
cidadãos. Na ausência desse ator fundamental para a garantia da proteção de todos,
eles se armavam, financiavam e apoiavam o IRA. A existência e a força dele tornaram-
se motivos para que os grupos paramilitares unionistas também se armassem cada vez
mais, gerando um estado de insegurança similar ao descrito por Herz (1950).
Portanto, mesmo que o emprego do terror possa gerar relações e respostas
mecânicas, isso não implica irracionalidade. Jackson (2005) aponta que a linguagem do
contra-terrorismo não deve ser entendida não só como um puro reflexo da realidade,
como também uma reação espontânea ao ato de violência empregado.
Ao contrário, é um grupo de palavras [a linguagem contra-terrorista], suposições, metáforas, formas gramaticais, mitos e formas de conhecimento, composto deliberadamente e meticulosamente – é um discurso cuidadosamente construído – designado para conquistar um número de objetivos políticos: normalizar e legitimar a proposta atual de contra-terrorismo; para dar poder às autoridades e protegê-las de críticas; para disciplinar a sociedade doméstica ao marginalizar o dissidente ou o protesto; para reforçar a unidade nacional ao reificar um concepção estreita de identidade nacional. (JACKSON, 2005, p. 2 – tradução nossa)135
Dentro da percepção pós-estruturalista, a prática do terrorismo – o ato, por si
próprio – e a linguagem empregada devem ser entendidas conjuntamente, devido ao
fato de estarem intrinsecamente ligadas. Isso é de fundamental importância para se
estudar a formação de identidade, pois, ao se analisar os discursos relacionados ao
135 “Rather, it is a deliberately and meticulously composed set of words, assumptions, metaphors, grammatical forms, myths and forms of knowledge – it is a carefully constructed discourse – that is designed to achieve a number of key political goals: to normalise and legitimise the current counter-terrorist approach; to empower the authorities and shield them from criticism; to discipline domestic society by marginalising dissent or protest; and to enforce national unity by reifying a narrow conception of national identity”.
85
terrorismo, a questão das oposições binárias136 torna-se distintamente clara. Pode-se,
facilmente perceber posições que destacam o bem/mal, racional/irracional, moderado/radical
que geram processos identitários, seja dos grupos ou dos seus opositores.
Assim sendo, dentre outras formas possíveis, pode-se entender o processo de
formação de identidade como ocorrendo da seguinte maneira:
1. por razões políticas particulares de cada grupo, uma ação terrorista é empregada
em uma certa localidade;
2. a destruição material e a possibilidade de vítimas inocentes – especialmente
civis – permitem às autoridades locais criarem uma figura do grupo, responsável pelo
ato. Expressões como “seres malévolos”, “bárbaros”, “selvagens” são frequentemente
empregadas. Abre-se espaço para ações de repressão, sejam elas violentas ou não.
3. Ao mesmo tempo, aquele grupo responsável pelo ataque se diz defensor de uma
certa causa, ou comunidade, “vítima de uma autoridade que se julga legítima”,
“defensor de uma minoria oprimida”, entre outros.
4. As ações de combate ao terror tornam-se justificativas para novos atos por parte
dos grupos. Estes, por sua vez, também passam a ser utilizados como justificativas
para ações de combate: percebe-se, aí, a engrenagem supracitada.
A partir dessa cadeia formada tem-se um processo de construção identitária
extremamente significativo, visto que a forma em que ela é estabelecida pode acabar
por se tornar a causa de mais atos terroristas. Como colocado por Jackson (2005), ao
falar da “guerra contra o terror”,
uma das mais características mais notáveis e ubíquas da linguagem do contra-terrorismo é o seu apelo invariável à identidade: terroristas são infinitamente demonizados e taxados como vilões como sendo o mal, o bárbaro e o desumano, enquanto os Estados Unidos e sua aliança de parceiros são descritos como heróis, decentes e pacifistas – os defensores da liberdade. Uma clara implicação dessa linguagem é que a identidade, ao invés da deliberação, é a base da ação humana: terroristas se comportam da forma que se comportam, não porque são atores políticos que calculam os seus atos
136 O objetivo, ao lidar com elas, é ressaltar que aquilo que existe não é uma coexistência pacífica entre os termos, e sim, um hierarquia violenta, na qual o primeiro termo governa o segundo, sem qualquer possibilidade de existência de uma neutralidade.
86
racionalmente, mas simplesmente, porque faz parte da sua natureza ser do mal. (JACKSON, 2005, p. 59 – tradução nossa)137
Dessa forma, é possível estabelecer que, ao se caracterizar o Other como
ameaçador, como inimigo, cria-se um processo de fortalecimento da identidade
coletiva. Daí, têm-se duas consequências fundamentais: em primeiro lugar, ao se definir
discursivamente quem é o inimigo, pode-se tanto estabelecer medidas para combatê-lo
– seja por parte dos grupos terroristas, quanto para quem os combate, como se deixa
um espaço para se redefinir quem ele é.
Ao mesmo tempo, ao se fortalecer essa identidade coletiva, intensifica-se a
noção de nação, de uma identidade comum, que é fundamental para as partes
envolvidas no conflito. Define-se quem faz parte daquele grupo e quem não faz, por
quem se luta e quem será combatido. No caso dos republicanos, tem-se a idéia de uma
nação que seja diferente da britânica, ao passo que para os unionistas, é justamente
esta que eles buscam reafirmar.
Reforça-se, então, o quanto o Dilema de Segurança torna-se um elemento chave
para se compreender a produção dessas duas identidades. A profunda insegurança
gerada por décadas de conflito; a compreensão, por uma das partes, de que o Estado
não exerce a sua função básica de proteção faz com que os lados se sintam obrigados
a se armarem. Gera-se uma escalada, cada vez maior, do processo de violência, além
da percepção, de que as partes se vejam como crucialmente opostas, antagônicas.
De acordo com Huysmans (2006), a insegurança é um fenômeno construído política
e socialmente, e sua conceituação depende da natureza da ameaça e do objeto de
referência ameaçado. Surge de práticas moduladoras discursivas e institucionais, em
termos de segurança nacional, que torna políticas inteligíveis como práticas de segurança.
Antes que um evento possa mobilizar políticas de segurança e retóricas, é necessário que ele seja concebido como uma questão de insegurança, e que esse conceito seja sustentado por práticas discursivas que reiteram suas qualidades ameaçadoras. Um domínio de insegurança é, assim, não
137 “One of the most noticeable and ubiquitous features of the language of counter-terrorism is its invariable appeal to identity: terrorists are endlessly demonised and vilified as being evil, barbaric and inhuman, while America and its coalition partners are described as heroic, decent, and peaceful – the defenders of freedom. The clear implication of this language is that identity rather than deliberation is the basis of human action: terrorists behave as they do not because they are rationally calculating political actors but simply because it is in their nature to be evil”.
87
simplesmente construído através de reações políticas a uma ameaça, mas em primeiro lugar, por discursos de perigo (...), atos de fala de segurança (...), ou jogos de linguagem de insegurança (...) que remodelam um evento a uma condição de insegurança. De certa forma, isso significa que a insegurança não é um fato da natureza, mas que sempre requer que seja escrito e dito para que possa existir (HUYSMANS, 2006, p. 7 – tradução nossa)138.
O autor volta a Foucault para entender que as modulações de segurança são
geradas quando esta é discutida porque os atos de fala ocorrem em cima de “conjuntos
particulares que são imanentes para práticas [de segurança] e que se definem em suas
especificidades” (FOUCAULT apud HUYSMANS, 2006, p. 24 – tradução nossa)139.
Assim, convenções são criadas através de estruturas de significados que organizam
políticas e relações sociais. Nesse sentido, a segurança só pode ser entendida quando
se leva em consideração a dimensão política que tornou plausível tal modulação
(WALKER apud HUYSMANS, 2006). Como esta foi feita por cada uma das tradições?
Através das análises dos murais, um grande fator de insegurança para os
republicanos estava nas instituições locais fortemente atreladas aos seus inimigos,
principalmente a polícia – a RUC. Muitos justificavam o apoio ao IRA pelo fato de que
não podiam contar com as forças locais, que serviam apenas aos
protestantes/unionistas. Assim, o desmembramento daquela era tema recorrente140,
exemplificado na Figura 23.
138 “Before an event can mobilize security policies and rhetoric, it needs to be conceived of as a question of insecurity and this conception needs to be sustained by discursively reiterating its threatening qualities. A domain of insecurity is then not simply constructed through policy reactions to a threat but first of all by discourses of danger (…), speech acts of security (…), or language games of insecurity (…) that reframe an event into a condition of insecurity. In a sense it means that insecurity is not a fact of nature but always requires that it is written and talked into existence.” 139 “ A particular set of rules that are immanent to [security] practice and define it in its specificity”. 140 É importante observar que um dos grandes motivos pelos quais o IRA resistia a se desarmar – exigência principal dos unionistas, se dava justamente pelo fato de que essa não protegia a população republicana.
88
Figura 23: Membro do RUC usando colete da Ordem Orangista. Local e data: Lecky Road, Derry, 1995. Fonte: ROLSTON, 1998.
Entretanto, essa demanda foi parcialmente atendida em uma das cláusulas do
Acordo. A polícia não foi exatamente desmembrada, mas sofreu reformas, até mesmo
no nome, que passou a ser PSNI – Police Service of Northern Ireland.
Pelo lado dos unionistas, entende-se que o grande fator de insegurança
permanece o mesmo, desde a divisão da ilha, em 1921, até os dias de hoje: o
julgamento de que eles estão “sitiados”. Apesar de terem sido os detentores do poder,
tanto político quanto econômico na região, por todo esse tempo, além de serem a maior
parte da população da Irlanda do Norte, tudo isso mudaria caso deixasse de fazer parte
do Reino Unido e se reunificasse a República da Irlanda.
Assim, slogans como No Surrender, Ready for War tornam-se extremamente
significativos para uma população que entendia que, com a reunificação, poderia ser
dizimada, ou algo similar. Outros pontos que corroboram esse entendimento estão na
representação militar dos murais, que tendo guerrilheiros com as suas armas em
punho, não apontam para um alvo específico; além disso, passam a sensação, para as
pessoas de que os observam nas ruas, de que elas são os alvo, independentemente do
ponto em que estão. A representação desses militares sempre encapuzados, sem
terem suas faces desenhadas também sustentam essa argumentação.
Assim, a lógica do Dilema de Segurança pôde ser percebida no caso da Irlanda
do Norte, fundamentalmente antes do Acordo de Belfast, mesmo não sendo ela um
Estado anárquico.
Partindo-se do pressuposto de que os grupos militares são atores racionais, com
objetivos políticos claros – sejam eles a reunificação da Ilha, ou a manutenção do status
89
quo – a insegurança gerada pela existência do outro, pelos atos terroristas cometidos
os obrigavam a se armar cada vez mais e mais. A Figura 24 reflete uma das principais
posições unionista no conflito.
Figura 24: Union Jack e emblemas da Ulster Volunteer Force e Protestant Action Force. ‘Nós nunca vamos aceitar uma Irlanda reunificada. O Ulster ainda diz não’ 141. Local e data: Percy Street, Belfast, 1992. Fonte: ROLSTON, 1998.
A reafirmação dos objetivos políticos, aliados à troca de ofensas entre as partes,
reforçam a insegurança. A Figura 25 representa uma acusação por parte dos
republicanos em relação ao recrudescimento do processo de militarização por parte dos
unionistas. Essas acusações ocorriam em vias de mão dupla, já que os unionistas
insistiam na relação do IRA com a Líbia e no forte armamento que o grupo tinha
disponível. Isso fazia com que ambos os lados se sentissem ameaçados e, assim,
forçados a adquirir cada vez mais armas, corroborando a teoria de Herz (1950).
141 ‘We will never accept a united Ireland. Ulster still says no’.
90
Figura 25: Armas unionistas ‘vendida na África do Sul, comprada pela MI5, fornecida para os esquadrões de morte da UFF e UDA’.142 Local e data: Springhill Avenue, Belfast, 1994. Fonte: ROLSTON, 1998.
Os republicanos ainda faziam uso de um outro instrumento, que era a tentativa
de colocar o governo inglês como colaborador do norte-irlandês, sendo ambos
repressores dos republicanos, que seriam, consequentemente, vítimas de instituições
imparciais, como observado na Figura 26.
Figura 26: “Time to go for British soldiers, Police, judges and capitalists.” Hora de ir para soldados, policiais, juízes e burgueses britânicos. Local e Data: Rossville Street, Derry, 1995. Fonte: ROLSTON, 1998.
Dessa maneira, a engrenagem supracitada se reproduz nos murais, assim como
as bases para a perpetuação da violência da região. Como o Acordo de Paz interfere
nessa questão?
Assinado em 1998, ele demonstrou que nenhum dos lados teriam seus objetivos
fundamentais alcançados. Tampouco teve efeitos imediatos no que se diz respeito às 142 ‘Sold in South Africa, bought by MI5, supplied to UFF/UDA death squads’.
91
“questões secundárias”. Pelos republicanos, a unificação da Ilha não aconteceu, assim
como a independência da Irlanda do Norte perante o Reino Unido. No lado unionista, o
manutenção do status quo era a grande questão e a divisão de poder entre as partes
não era desejada; porém isso acabou acontecendo. Entretanto, ambos tinham, em
comum, a anistia de seus presos que, pelo Acordo, viria a acontecer dois anos após a
sua ratificação. Até então, esse tema foi recorrente nos murais de ambos – Figuras 27 e
28.
Figura 27: Mural unionista que clama pela liberdade Johnny Adair. Local e data: Hopewell Crescent, Belfast, 2001. Fonte: ROLSTON, 1998.
Figura 28: Liberdade para os Prisioneiros de Guerra. Local e data: New Lodge Road, Belfast, 1997. Fonte: ROLSTON, 2003.
4.3.2 – Conclusão
92
Durante toda essa seção, buscou-se compreender como tanto o Dilema de
Segurança, como a insegurança são capazes de afetar, de influenciar a formação de
identidades, no caso de republicanos e unionistas na Irlanda do Norte, através dos
murais. A conclusão obtida gira em torno de três pontos fundamentais, todos fortemente
ligados entre si.
A primeira refere-se à modulação da segurança proposta por Huysmans (2006).
Como essa ocorreu para republicanos e unionistas? Mesmo tendo cada um dos lados
lutado por objetivos diametralmente opostos, uma questão tornou-se fundamental para
ambos: o desarmamento dos grupos paramilitares, principalmente o IRA.
Para os republicanos, durante todo The Troubles, até o processo de paz, esse
ponto não era cogitado. A argumentação dada era um tanto quanto plausível, ao se
levar em conta o ponto de vista deles: não podendo a população católica confiar na
polícia, o desarmamento do IRA (e de outros grupos paramilitares) era ilógico, já que
ficariam desprotegidos perante seus inimigos. Foi somente com a perspectiva de
reforma da RUC e com a percepção de que o processo de paz não aconteceria (e,
posteriormente, não seria implementado totalmente) sem o desarmamento, que o IRA
finalmente o fez, em 2001, como visto no Capítulo 1.
Já os unionistas aclamavam, veementemente, que não tinham como confiar no
Exército Republicano Irlandês, com seu grande arsenal e apoio popular. O grupo, de
fato, foi responsável por grandes ataques, e sua capacidade militar não foi contida,
durante todas essas décadas, nem pela política, tampouco pelo exército britânico.
Argumentavam que não dialogariam com terroristas e que só seria possível começar a
se falar em paz na região com a entrega das armas. Anos após isso ter acontecido,
grupos paramilitares unionistas tomaram a mesma atitude.
Percebe-se assim que ambos os lados modulam sua segurança, principalmente
quanto ao Acordo de Paz em torno da questão do desarmamento, e como esse passou
a ser objeto de barganha nas negociações.
O segundo ponto a ser analisado é a engrenagem. Como visto logo acima, toda
a violência gerada, por décadas de disputas, gerou uma reação mecânica das partes,
que justificavam o seu “não-desarmamento” na insegurança criada pelo outro. O
93
mesmo processo pode ser percebido no que se diz respeito à formação das respectivas
identidades em uma situação em que o terror é um ator de grande relevância.
Os atos terroristas – sejam eles físicos ou verbais – chegaram a tal ponto,
principalmente durante o The Troubles, que ocorriam como resposta automática às
ações do inimigo (fossem elas outros atos terroristas, decisões políticas, entre outros).
As consequências geradas passavam a ser objetos fundamentais para a
caracterização do inimigo – por todo o mal gerado por ele – e para a consolidação da
identidade coletiva.
Enquanto o Other passa a ser caracterizado como malévolo, como disseminador
da violência, do caos, do estado constante de insegurança, o Self era reforçado como
o mantenedor dos objetivos da sua respectiva população.
O terceiro ponto é a relevância do Dilema de Segurança. Já mencionado
previamente, o caso da Irlanda do Norte não pode ser considerado como um perfeito
exemplo da explicação dada por Herz. Além de não se tratar de um Estado anárquico
por excelência, sendo este um trabalho de cunho pós-estruturalista, é possível
questionar a relação causa-efeito quando se tem uma anarquia que gera o
comportamento de self-help por parte dos atores.
Como visto no Capítulo 1, a situação de violência na região é bem anterior ao
The Troubles. Séculos de rivalidades, humilhações, levantes e questionamentos de
autoridade possibilitaram a criação de todo o quadro institucional que culminou com a
violência da década de 70 em diante (tendo a engrenagem como ponto fundamental de
compreensão dessa).
Para os unionistas, a sensação de estarem sitiados por uma população que, no
entender deles, os dizimariam caso a reunificação da República com a Irlanda do Norte
acontecesse, os levava a não somente se armarem cada vez mais, mas também a criarem
leis que praticamente impossibilitavam a obtenção dos objetivos dos republicanos.
Já para estes, o que é possível perceber é uma situação de um dilema de
segurança duplicado. Por um lado havia toda a insegurança gerada pelo confronto com
os norte-irlandeses unionistas. As separações territoriais (que serão analisadas
posteriormente), os constrangimentos gerados por leis que os reprimiam de se
expressarem cultural, política e economicamente, os conflitos armados faziam com que
94
a população republicana visse a unionista como aquele inimigo que está bem próximo,
“logo ao lado”.
Porém, não eram somente estes os rivais a serem considerados. Os ingleses (que
eram retratados nos murais, mas que não os confeccionavam) eram constantemente
acusados de agirem em conluio com os unionistas. Por ser a Irlanda do Norte parte do Reino
Unido, os republicanos reclamavam que a Inglaterra, fundamentalmente, agia a favor dos
interesses dos inimigos, e nada impediam no que se diz respeito à aprovação de leis que os
beneficiavam, como visto anteriormente na Figura 9.
Por isso, percebe-se a situação de um dilema de segurança duplicado, em que o
grau de insegurança vivido pelas populações aumentava exponencialmente, com o
passar do tempo. A consequência disso foi a percepção, por parte de todos, que a
única forma de sair de tal situação era através de um Acordo de Paz.
No que se diz respeito às identidades, a conclusão obtida foi que a insegurança
reforçava a produção e reafirmação de identidades coletivas que deveriam permanecer
seguras, estáveis, dentro de um ambiente absolutamente inconstante.
4.4 Memória
Memórias não provêem respostas, mas podem, algumas vezes, prover razão para se fazerem
perguntas que minam certezas articuladas em relação às guerras.
Maja Zehfuss, 2007, p. 121143
Como representar a memória? Qual a importância do seu estudo para as
Relações Internacionais e como ela pode ser relevante dentro de um cenário de
conflito, de guerra?
Ela é entendida como um
143 “Memories do not provide answers, but they may at times provide reasons to ask questions that undermine the certainty articulated in relation to war.”
95
fenômeno individual e psicológico (...). A memória liga-se também à vida social (...). Esta varia em função da presença ou da ausência da escrita (...) e é objeto da atenção do Estado que, para conservar os traços de qualquer acontecimento do passado (passado/presente), produz diversos tipos de documento/monumento, faz escrever a história (...), acumular objetos (...). A apreensão da memória depende deste modo do ambiente social (...) e político (...): trata-se da aquisição de regras de retórica e também da posse de imagens e textos (...) que falam do passado, em suma, de um certo modo de apropriação do tempo (...). (LE GOFF, 2005, p.419)
O presente trabalho focará a questão da memória coletiva e como ela se torna
relevante para estudos de Segurança Internacional. Mais especificamente, como se deu
a articulação da memória do conflito na Irlanda do Norte, para ambos os lados –
unionistas e republicanos – tendo como ponto de referência o Acordo de Belfast? Como
as memórias de décadas de conflito foram evocadas durante o processo de paz?
De acordo com Brewer (2006),
a intensificação da violência organizada com a globalização criou as novas guerras (...) e transformou as antigas (...) para fundamentalmente alterar o foco na ciência social sobre o nacionalismo genocida (...). O novo interesse da ciência social em relação à memória, à verdade e ao sofrimento (...) pode ser atribuído ao impacto negativo que vários casos de genocídios nacionalistas tiveram nas nossas noções de modernidade como ilustrada e progressiva (...). A descoberta da memória na ciência social é, na verdade, o retorno do genocídio para a experiência contemporânea. Teorias de nacionalismo sempre foram sensíveis à ligação entre nação, violência e memória, mas nós agora precisamos reformular esses relacionamentos a fim de entender os novos problemas enfrentados por nações após traumas sofridos. (BREWER, 2006, p. 1 – tradução nossa)144
Dessa maneira, este autor afirma que a memória pode ser fundamental para
estudos e estratégias de paz, visto que podem se tornar obstáculos para o sucesso em
negociações entre partes conflituosas; ao mesmo tempo também podem ser objetos de
políticas públicas a serem adotadas visando-se ao fim da violência.
144 “The intensification of organized violence with globalization has created new wars (KALDOR 1999) and transformed old ones (MOORE 2000) to fundamentally alter the focus in social science on genocidal nationalism (SHAW 2003). The new interest in social science with memory, truth and suffering (on the latter see Wilkinson 2004) can be attributed to the negative impact that several cases of genocidal nationalism have had on our notion of late modernity as enlightened and progressive (BAUMAN 1989). The discovery of memory in social science is really the return of genocide to contemporary experience. Theories of nationalism have always been sensitive to the link between nation, violence and memory, but we now need to recast their relationship in order to understand the new problems faced by post-trauma nations.”
96
O presente trabalho aceita o pressuposto de Maja Zehfuss (2007) de que a
memória, enquanto clama evocar um passado retrospectivamente, passa a produzi-lo.
A autora aponta que, embora quando se fala em memória, exista uma sensação de
segurança e certeza, é justamente ao fazer uso dela que se torna possível questioná-la,
além da realidade criada por ela. “Apesar de que memórias e outras referências ao
passado são normalmente evocadas com convicção (...) o recurso à memória envolve
incerteza.” (ZEHFUSS, 2007, p. 2 – tradução nossa)145.
Politicamente, isso pode gerar tensões visto que atores envolvidos utilizam
memórias da forma que lhes forem convenientes, enfatizando algum momento histórico,
alguma frase. Assim, conseguem aceitação por parte de uns e contestações por parte
de outros.
Memória social é mais do que apenas os benefícios ou os aspectos sociais da memória pessoal. Não apenas trabalha através das memórias pessoais individuais como um conjunto de conseqüências no nível social derivado de relembranças individuais. Memória social é isso, mas também é um conjunto de lembranças públicas específicas que são manipuladas e construídas por várias práticas sociais. As formas pelas quais as memórias sociais foram manufaturadas e manipuladas para os propósitos do nacionalismo e construção de nações são exemplos óbvios. (BREWER, 2009, p. 2 – tradução nossa)146
Ao ir além dos discursos oficiais históricos e ter como fonte de informações a
literatura, as artes, abre-se a possibilidade de se desafiar um passado estabelecido,
dado como certo e, até mesmo, inquestionável. Contudo, certamente, pode-se ter um
resultado em que, ao invés de se desafiar o passado, este pode acabar sendo
reforçado pelo recurso à memória.
O que faz com que o ato de examinar as memórias seja um movimento frutífero é a função dupla da literatura. Não somente oferece memórias particulares – algumas vezes como testemunho – mas também faz refletir e gera questionamentos sobre o que significa lembrar. Ao contrário do debate político que parece simplesmente assumir que nós sabemos o que significa lembrar – e
145 “Although memories of and other references to the past are usually called upon with conviction, and in order to undermine the certainty of what it is claimed, recourse to memories involves uncertainty”. 146 “Social memory is more than just the social benefits or social aspects of personal memory, and social memory does not just work through people's personal memory as a set of consequences at the societal level deriving from individual remembrances. Social memory is this, but it is also a set of specific public remembrances that are manipulated and constructed by various social practices. The ways in which social memory has been manufactured and manipulated for the purposes of nationalism and nation-building are obvious examples”.
97
que isso não é problemático – romances contam memórias e ao mesmo tempo desafiam a sua possibilidade. A isso tem-se o potencial de se provocar o pensamento crítico. (ZEHFUSS, 2007, p. 20 – tradução nossa)147.
Dessa forma, apesar do que se lembra possa ser questionado, o fato é que não
é possível evitar as memórias. O seu conteúdo pode trazer implicações éticas e
políticas quando não são compatíveis com o imposto pelas narrativas oficiais.
Quando se trata de memória relacionada a guerras e conflitos é muito comum
ver campanhas que insistem nas lembranças de certos fatos, para que eles não caiam
no esquecimento. Memoriais são criados – como aqueles para soldados desconhecidos
– com esses fins. Mas qual o significado do lembrar? Qual é a sua relevância?
Para Zehfuss (2007), campanhas contra esquecimento implicam que lembrar é
bom e é crucial para que se evite que a história se repita. Entretanto, dependendo da
forma em que as palavras são ditas, podem provocar tanto sentimentos de
reconciliação, como de vingança.
O uso da memória como algo que possa gerar conflito pôde ser percebido no
The Troubles, em torno do uso da figura do Cú Chulainn, herói na mitologia irlandesa.
Também conhecido como o “Cão do Ulster”, ou Setanta, essa mítica figura celta pode ser encontrada em ambos murais Republicanos e [mais recentemente] Unionistas. Opostamente, ele é retratado morrendo contra uma coluna após ter lutado contra o Exército da Rainha Maeve de Connaught, que só teve certeza de seu falecimento após um corvo pousar em seu ombro. Ele incorpora superação contra invasores, assim provando ser uma figura apta para ambas as comunidades católicas e protestantes. (CAIN – tradução nossa)148
De acordo com Rolston (1998; 2003), durante séculos essa figura foi vista como
o perfeito símbolo da causa republicana, por representar a luta contra invasores e
sempre teve sua imagem ligada ao Levante da Páscoa. Foi, assim, com temas de
147 “What makes examining novels a fruitful move is the double function of literature. It not only offers up particular memories – sometimes as testimony – but also reflects upon and raises questions about what is means to remember. Unlike the political debate which seems to simply assume that we know what it means to remember – and that this is unproblematic – novels tell memories and at the same time challenge their possibility. This has the potential to provoke critical thinking” 148 “Also known as the 'Hound of Ulster', or Setanta, this Celtic mythical figure can be found on both Republican and (more recently) Loyalist murals. Opposite he is shown dying against a pillar after he fought Queen Maeve's armies of Connaught, who were only sure he was dead after a raven landed on his shoulder. He embodies resilience against invaders, thus proving to be an apt figure for both Protestant and Catholic communities.” Ver: http://cain.ulst.ac.uk/images/symbols/crosstrad.htm.
98
vários murais, como visto na Figura 29, abaixo. Entretanto, durante a década de 90 os
unionistas resolveram adotar como símbolo de sua causa, porque a batalha entre Cú
Chulainn e o Exército da Rainha Maeve de Connaught ocorreu no Ulster. Ele seria um
defensor da região, especificamente, contra os inimigos. Quando sua imagem apareceu
pela primeira vez em um mural unionista (Figura 30), em 1992, os republicanos se
viram ultrajados com o uso dessa memória pelo inimigo.
Figura 29: Cú Chulainn, as quatro províncias irlandesas e “Mise Éire mor mo gloir” – Eu sou a Irlanda, fantástico é a minha glória. Local e data: Armagh, 1991. Fonte: ROLSTON, 1998.
Figura 30: Defensores atuais do Ulster. Brigada Oeste da UDA junto ao Cú Chulainn “defensor ancião do Ulster dos ataques irlandeses há mais de 2000 anos.” Local e data: Newtownards Road, Belfast, 1992. Fonte: ROLSTON, 1998.
O recurso à memória coletiva é sujeito à manipulações, reduções, distorções.
Assim sendo, torna-se possível questionar até que ponto uma memória pode ser
tratada como verdadeira.
99
Figura 31: Membro da Royal Ulster Constabulary com balas de plástico. Local e data: New Lodge Road, Belfast, 1995. Fonte: ROLSTON, 1998.
A Figura 31 é um exemplo da tentativa do movimento republicano de fazer com
que as pessoas não se esqueçam das vítimas das balas de plástico.
Isso não significa dizer que as memórias não deveriam ser compartilhadas, ou
esquecidas, mas justamente o contrário: quanto mais se fala e mais se lembra,
menores são as chances de que haja manipulação dos fatos.
Além disso, como aponta Zehfuss (2007), o problema na ordem “esqueça” é que ela
nos lembra que temos que esquecer. É difícil conseguir o verdadeiro esquecimento na
política, portanto aqueles que o promovem acabam por provocar a lembrança. Dessa
forma, a questão deixa de ser se devemos lembrar ou esquecer, mas, como lembrar.
Ainda de acordo com a autora, a oposição binária lembrar/esquecer oferece uma
falsa oposição. Não é possível lembrar tudo do passado, e muito menos, representá-lo
de forma ‘correta’.
Esquecer é uma parte inevitável do lembrar. Não faz sentido algum almejar uma memória “completa”. Tal coisa não existe. Esquecer não é simplesmente a oposição do lembrar. Ao contrário, lembrar é estruturalmente dependente do esquecer, é sempre marcado por isso. Nós sempre lembramos e esquecemos ao mesmo tempo. Isso significa que a idéia de que ter memória se conforma com a “verdade completa” não é apenas uma preocupação estreita, mas também uma fadada ao fracasso (ZEHFUSS, 2007, p. 71 – tradução nossa)149
149 “Forgetting is an inevitable part of remembering. It makes no sense to aim for a ‘complete’ memory. Such a thing does not exist. Forgetting is not simply the opposite of remembering. Rather, remembering is structurally dependent on forgetting, is always already marked by forgetting. We always remember and forget at the same time. This means that the idea of getting memory to conform more closely to the ‘full truth’ is not only a narrow concern, but one doomed to fail.”
100
Ao depender do ‘esquecimento’, não é possível dizer que ter ‘a’ memória
significa lembrar de absolutamente tudo; a partir disso, pode-se dizer que discursos
políticos que clamam por uma memória correta sobre algum evento do passado nada
mais são do que um jogo, uma tentativa de manipulação sobre um evento, com um
propósito político qualquer.
O uso da literatura, por exemplo, como uma forma de questionamento é
fundamental, visto que ela pode apresentar uma variedade de posições, de memórias
que podem abalar a certeza, a convicção e abalar a fé sobre determinados fatos.
Abre-se a possibilidade para se questionar a memória, visto que, mesmo
quando se tem muitas informações sobre um fato, sempre haverá mais para se
saber. Dessa maneira, decisões políticas que são baseadas nesse conhecimento
que é limitado e imperfeito, só podem levar a soluções que serão marcadas pelo
insucesso (ZEHFUSS, 2007).
Como nós lembramos é uma significativa questão ética e política, uma que vai além do conhecimento, particularmente quando memórias são desdobradas no debate político (...). A controvérsia não é em torno do que sabemos, mas sobre o que nós pensamos que temos que fazer, politicamente. Na medida em que o imperativo para lembrar é uma expressão da necessidade de se saber, ele falha em perceber que a questão de como nós devemos lembrar é algo que vai além do conhecimento. O problema de memórias que não são bem vindas (...) não pode se resolvido através de um apelo ao conhecimento. Tentar fazer isso obscurece o que é de fato importante: a tensão inevitável entre diferentes experiências e perspectivas em relação aos eventos, a impossibilidade de se chegar a uma representação que faça justiça a todos. Essa impossibilidade pode ser vexatória para alguns, mas é, ao mesmo tempo, o que mantém o espaço da política aberto. (ZEHFUSS, 2007, p. 74 – tradução nossa)150
Dessa maneira, o uso político da memória pode ser intensamente questionado.
Discursos oficiais buscam no conhecimento, na história e na memória, eventos
150 “How we remember is a significant ethico-political question, one that reaches in some way beyond knowledge, particularly when memories are deployed in a political debate. (…) the controversy is not about what we know but about what we think we ought to do, politically. Inasmuch as the imperative to remember is an expression of the need to know it fails to appreciate that the question of how we should remember reaches beyond knowledge. The problem of ‘unwelcome’ memories (…) cannot be solved through an appeal to knowledge. Trying to do so obscures what is important: the inevitable tension between different experiences and perspectives on these events, the impossibility of arriving at a representation that does justice to everyone. This impossibility might be vexing to some, but it is at the same time what keeps open the space for politics.”
101
supostamente “compartilhados” que sirvam como justificativas, como motivações para
decisões que devem ser tomadas.
Mas como foi apontado anteriormente, lembrar de tudo, ter uma memória
perfeita, não é algo possível, o que implica em exclusões que devem ocorrer a fim de
se ter uma comunidade guiada por parâmetros similares. “Nós podemos ter todas as
informações possíveis, mas ainda sabemos que não sabemos: não sabemos nem o
que o passado foi, nem o que devemos fazer (ZEHFUSS, 2007, p. 73 – tradução
nossa)151. Em cima disso, a autora argumenta que decisões políticas devem ir além do
conhecimento e da segurança gerada por ele e pela memória; já que baseada somente
nisso, a possibilidade de sucesso é baixa.
A Figura 32 é representativa. Quando o Acordo de Belfast foi assinado, uma de
suas aspirações era que as pessoas estariam livres de perseguições sectárias, que
foram praxe durante todo o conflito e fizeram parte da memória da população,
principalmente a republicana. A ideia de que aquilo não mais aconteceria pautou
discursos de políticos após a assinatura. Porém, em 1999, a realidade permanecia a
mesma de antes. As perseguições continuavam e o mural, que no lado esquerdo retrata
a capa do Acordo, enviado para todas as residências do país, é contrastado no lado
direito, que representa a violência continuada na região.
Figura 32: As promessas do Acordo da sexta-feira Santa contrastadas com a realidade de uma continuada perseguição e violência unionista. Local e data: Dromara Street, Belfast, 1999. Fonte: ROLSTON, 2003.
151 “We may have all the available information, but we still know that we don’t know: we know neither what the past was nor what we should do.”
102
Apesar de que o presente trabalho entenda a noção da formação de uma
memória construída por um grupo, ou um Estado, como fundamental, isso só se torna
possível através de relatos, testemunhos individuais que, após um tempo decorrido e
certa repetição, acabam por ser adotadas como memórias coletivas.
A sociologia entende a memória como tendo dimensões individuais e sociais. Lembrar é algo que todos nós como indivíduos fazemos a todo momento, e todos nós temos a nossa coleção pessoal de memórias, únicas por si próprias. O que acontece nas cabeças das pessoas na formação e uso das memórias é uma questão de relembranças individuais. Nós podemos chamar isso de memórias pessoais. O que acontece na sociedade na formação e uso da memória coletiva é uma questão de relembranças sociais. A constatação de que as sociedades lembram o mesmo tanto que os indivíduos recebeu atenção renovada (...) visto que as sociedades nos dias de hoje parecem estar mais dominadas por conflitos, vulneráveis e sujeitas a riscos, e que as evocações de supostas épocas de ouro dominam a memória coletiva. (BREWER, 2009, p. 1 – tradução nossa)152
As memórias coletivas têm grande valor para se entender a formação e
manutenção de uma nação. São dois itens que estão intrinsecamente ligados, visto que
noções como o próprio nacionalismo necessitam de uma memória coletiva comum para
se sustentarem; essas representações compartilhadas são fundamentais para a
construção de uma solidariedade entre as pessoas. Normalmente são discursos
pautados por valores, que podem se relacionar a família, que têm como foco a
manutenção de um passado imaginado e a colonização do presente e do futuro
(SHAPIRO, 2001).
Para Zehfuss (2007), o que constitui algo como “nosso”, o que determina o que
“nós somos”, e assim constitui a identidade de um povo é ligado à memória: “a
implicação da memória (...) tem sido explorada em relação a identidade: memória é
sobre o passado, que é de algum forma (produzido como) ‘nosso’ e assim, fortemente
ligado às representações de quem somos. São, assim, parte das nossas invenções de
152 “Sociology understands memory as having individual and social dimensions. Remembrance is something we all do as individuals all the time, and we all have our own personal set of memories, unique in its constellation to us. What goes on in people's heads in the formation and use of individual memories is a question about individual remembrance. We might call this personal memory. What goes on in society in the formation and use of collective memory is a question of social remembrance. The realization that societies remember as much as individuals has received renewed attention (...) as societies nowadays seem to be more conflict ridden, vulnerable and subject to risk, and as evocations of supposedly golden ages dominate collective memory”.
103
comunidade” (ZEHFUSS, 2007, p. 64 – tradução nossa)153. Assim, entende-se que a
memória tem papel fundamental no que diz respeito à formação da identidade coletiva.
Brewer (2009) compartilha essa noção ao afirmar que as memórias coletivas
ajudam a definir as fronteiras sociais que demarcam uma nação e, assim, definem a
identidade coletiva. Ela é responsável, em parte, por definir grupos familiares, étnicos,
religiosos e raciais, dado seu passado comum e como são, ou não, vangloriados; isso posto,
torna-se notável a relação entre memória, nacionalismo e identidade.
Nações requerem um sentido de passado por motivos de coesão social, memórias pelas quais são personificadas em atos públicos de comemorações em imagens públicas, textos, fotografias e rituais que nos socializam sobre o que devemos lembrar. Nação também requer que nos esqueçamos. Amnésias coletivas deliberadas ou negações ajudam o processo de construção de uma nação, já que exclui da narrativa nacional itens que, no presente, são problemáticos. Esses itens podem ser coisas quaisquer que impeçam a construção de uma nação como uma comunidade imaginada e que borram as fronteiras sociais que marcam a nação ou interrompam a formação de uma identidade comum. (BREWER, 2009, p. 2 – tradução nossa)154
Essa questão – a necessidade de se esquecer para a construção de uma nação
– remete à questão analisada acima, de como o esquecer está intrinsecamente ligado
ao lembrar. Um é possibilidade de existência para o outro e, a partir do momento em
que a ordem “esqueça” é dada, ela automaticamente nos faz lembrar.
No caso de nações que passaram, que foram marcadas por conflitos, essa
questão se torna ainda mais plausível. A memória é uma das responsáveis por delimitar
quais são os grupos que serão incluídos e excluídos, quem é o amigo e o inimigo, o
Self e o Other. Assim, modela, socialmente, não só a identidade de um grupo, mas
também a daquele marginalizado (BERWER, 2009).
153 “The implication of memory for the present have been explored in relation to identity: memory is about a past that is in some way (produced as) ‘our’ and therefore inextricably linked to representations of who we are. They are thus part of our inventions of community”. 154 “Nations require a sense of their past for reasons of social cohesion, memories of which are embodied in acts of public commemoration and in public memorials, in public images, texts, photographs and rituals that socialize us in what to remember. Nationhood also requires us to forget. Deliberate collective amnésia or denial helps in nation-building since it excludes from the national narrative items that in the present here-and now are problematic. These items might be anything that prevents the construction of the nation as an imagined community and which blurs the social boundaries that mark the nation or disrupts the formation of a common identity.”
104
Shapiro (2001) recupera em Giorgio Agamben a percepção de que a figura do
‘povo’ representa uma fratura biopolítica fundamental. Por um lado, é uma inclusão
figurativa: ele se refere ao "estado total de cidadãos integrados e soberanos." Por outro,
é uma figura de exclusão, que se refere a uma "multiplicidade fragmentada de corpos
necessitados e excluídos”.
De acordo com Agamben, o discurso político nacional deriva de tentativas de
minimizar essa fratura, de tornar uma multiplicidade em uma unidade, uma unidade
nacional. Além disso, um conflito pode gerar um trauma em uma comunidade que
passa a ser taxada como a autora, ao mesmo tempo em que outra é tratada como
vítima. O peso carregado por ser considerado responsável por massacres, violações de
direitos humanos, destruições de vidas e famílias é um fardo que, por muitas vezes se
perpetua no tempo através de discursos oficiais, da literatura e do uso da memória. A
Figura 33 demonstra a tentativa republicana de tornar os unionistas aquele outro
responsável pela violência.
Figura 33: Nem todas as tradições merecem respeito. Local e data: Falls Road, Belfast, 1996. Fonte: ROLSTON, 2003.
Para Zehfuss (2007), os termos da dicotomia entre vítima e o autor não são
mutuamente excludentes, visto que uma mesma população pode ser os dois ao mesmo
tempo. A literatura pode servir justamente para questionar essa exclusão e para
mostrar que dificilmente um povo será somente um ou outro, mas mais provavelmente,
os dois em um só. “Isso é uma importante contribuição para se entender memórias de
guerra como um problema ético-político. Não é mais suficiente concordar com uma
fórmula correta para lembrar, que em qualquer nível nunca funcionou (ZEHFUSS, 2007,
105
p. 112 – tradução nossa)155. Não significa minimizar crimes cometidos, mas sim que a
memória pode fornecer o contexto pelo qual uma guerra será entendida e, assim, abre-
se a possibilidade de tanto o Self quanto o Other sejam objetos de empatia.
As implicações de se considerar as memórias no debate político são, certamente, como outras coisas quaisquer, não necessariamente boas. É claro que as memórias podem ser instrumentalizadas para a promoção (violenta) de interesses particulares. Elas podem levar para situações em que se olha para o próprio umbigo e que deslocam questões atuais em relação ao other, tanto no que se diz respeito ao passado, quanto ao self. Elas podem apoiar noções nostálgicas de uma “comunidade de sofrimento” e assim servirem para novamente nos distrair da particularidade da situação em questão. O que eu enfatizei foi como a memória pode destacar ambigüidades e tensões que marcam os problemas éticos-políticos. Isso necessita reconhecer não somente a diversidade de memórias, mas também as contradições potenciais dentro delas. (ZEHFUSS, 2007, p. 122 – tradução nossa)156
Este ponto contribui para fortalecer a idéia mencionada no início dessa sessão,
de que, apesar de que as memórias sejam normalmente evocadas pelas certezas, pela
segurança e conforto em torno delas, elas trazem justamente o oposto, quando
avaliadas cuidadosamente.
Mesmo assim, isso não impede que as memórias continuem sendo evocadas,
usando-se até um tom de autoridade ao fazê-lo. Entretanto, elas não são “apenas algo
que tiramos do chapéu quando nos convêm. As memórias podem nos assombrar.
Voltam espontaneamente, de maneiras e formas que não prevemos e, talvez, não
queremos. Pode nos confrontar com dores esquecidas e emoções que poderíamos
preferir ignorar.” (ZEHFUSS, 2007, p. 122 – tradução nossa)157
Esses elementos autorizam o entendimento de que uma memória única, correta,
verdadeira não é possível. Ela muda com o passar do tempo, com a interferência do 155 “This is an important contribution to understanding war memories as an ethico-political problem. It is no longer enough to abide by a politically correct formula for remembering, which at any rate never worked.” 156 “The implications of considering memories in political discourse are, of course, much like anything else, not necessarily good. It is clear that memories may be instrumentalised for the (violent) promotion of particular interests. They may lead to inappropriate navel-gazing that displaces current issues regarding the Other in relation both to the past and to the Self. They may support nostalgic notions of a ‘community of the suffering’ and therefore serve to again distract us from the particularity of the situation in question. What I have emphasised is how memories may highlight ambiguities and tensions that mark ethico-political problems. This necessitates recognising not only the diversity of memories but also the potential contradictions within them.” 157 “Memory is not just something to be pulled out of a hat when it suits us. Memory may hunt us. It comes back unbidden, in ways and shapes that we do not foresee and perhaps, do not want. It may confront us with ‘forgotten’ pain and emotions we would rather ignore.”
106
presente no passado. As pessoas não são as mesmas que eram quando se recordam
de algum momento. Não há uma verdade sobre o passado porque essa mesma muda
com o tempo, ela tem uma história. “Nós não podermos lembrar o que foi como
vivenciamos, porque nós não somos mais quem éramos” (ZEHFUSS, 2007, p. 150 –
tradução nossa)158. Então, a intenção de se representar o passado exatamente como
ocorreu não é plausível.
Isso pode gerar tensões, visto que, politicamente, quando a memória de um
Estado é criada, geralmente é tratada como sendo a verdadeira, com pouco espaço de
abertura para outras versões. Zehfuss (2007) acredita que a literatura serve para
desafiar essa noção; a verdade e a memória não podem ser utilizadas como respostas
para questões políticas. “Examinar memórias e, em particular, as representações
literárias geram dúvidas na nossa habilidade de saber com certeza o que foi e o que
devemos fazer” (ZEHFUSS, 2007, p. 173 – tradução nossa)159
Assim, percebe-se que a memória está fortemente amarrada à temporalidade.
Uma é capaz de alterar a outra, pois ao mesmo tempo que as memórias mudam com o
passar do tempo, este é desafiado por ela. Quando ela é evocada, como bem aponta a
autora, é feita não somente para que as pessoas possam dar sentido ao seu passado,
mas também para a vida no presente. Este é o estado no qual a memória é evocada,
em relação a um evento do passado. Isso pôde ser percebido quando se compara a
Figura 1 a Figura 6, quando a memória do Rei Guilherme de Orange foi retratada e,
claramente, alterada, afim de celebrar um novo herói unionista.
Mais uma vez pode-se notar como a memória é um aspecto fundamental na
construção de identidades.
Não pode haver memória que não seja influenciada pelo presente: nós lembramos como nós somos. Ao mesmo tempo, esse presente é afetado pelo passado que nós lembramos, primeiramente, porque nós lembramos e, em segundo lugar, porque nós lembramos como nós nos tornamos. Esse ‘tornar-se’ sempre é influenciado pelo ‘passado’ ao qual nós não temos a capacidade de retornar porque nós só podemos lembrar pelo que nos tornamos (ZEHFUSS, 2007, p. 178 – tradução nossa)160.
158 “We cannot recall what was as we experienced it then because we no longer are who we are.” 159 “Examining memories and in particular the literary representations throws doubts on our ability to know for sure either what was or what we should do.” 160 “There can be no memory that is not affected by the present: we remember as who we are. At the same time, this present is affected by the past the we remember, firstly, because we remember and,
107
A memória, dessa maneira, desafia o entendimento de passado e presente; ela é
relacionada a um passado, acontece no presente, mas muda com o passar do tempo,
portanto, não está nem aqui nem lá: o passado não somente pertence ao passado, mas
entra no presente (ZEHFUSS, 2007).
Mais uma vez, o uso político da memória pode ser questionado, visto a
necessidade existente da noção linear do tempo. Um político faz uso de um evento
ocorrido no passado para tomar decisões no presente, em relação a este e ao futuro.
O ponto não é que uma história não possa ser contada. Mas que a memória – seja de um horror indescritível ou outra coisa – talvez não possa nunca ser totalmente amarrada pela linguagem. Isso também significa que o ato de se expressar tem o efeito de alteração. Através de cada expressão, a memória muda: torna-se uma variação do que veio antes. A memória não muda com o tempo porque o contexto social muda; ela necessariamente muda em e através da sua articulação. Sempre se relaciona, não somente ao passado, mas também a expressões anteriores do passado. (ZEHFUSS, 2007, p. 226 – tradução nossa)161.
A memória é instável, sempre passível de mudança, desde o momento em que é
evocada. Mas isso não significa que não é utilizada, constantemente, no dia a dia das
pessoas, e tampouco que deixará de ser. Memórias são significativas, envolvem
emoções e subjetividades, além de unir pessoas, povos – e são parte significativa nas
construções de identidade.
Assim, sejam elas longínquas ou recentes, em situações de conflitos, podem ser
usadas para fins de recrutamento, para estimular os participantes, ao gerar sentimentos
de vingança, por exemplo.
Ao mesmo tempo, podem ser usadas em tentativas de se acabar com os
conflitos, no estabelecimento de processos de paz. Mas a dificuldade é grande já que
sentimentos negativos podem sempre ser utilizados como empecilhos; como vítimas
secondly, because we remember as who we have become. This becoming is always influenced by ‘the past’ to which we are unable to return because we may remember only as who we have become” 161 “The point is not so much that the story cannot be told; it always is. But the memory – be it of an unspeakable horror or of something else – may never entirely be grasped by language. This also means that the act of expression effects an alteration. Through each expression memory changes: it becomes a variation of what has come before. Memory does not merely changes over time because the social context does; it necessarily changes in and through its articulation. It always relates, not only to the past, but also to previous expressions of memory.”
108
são retratadas, como o próprio conflito é retratado, principalmente por aqueles
designados a implementar a paz.
Para Brewer (2009) o que pode facilitar esse processo é justamente o fato da
memória coletiva ser criada socialmente, o que a torna passível de manipulação e
mudanças. Entretanto, ao mesmo tempo em que ela é coletiva, a possibilidade da paz
acontecer só ocorre quando as pessoas, individualmente, aceitam lidar com uma nova
perspectiva de memória coletiva.
Entender as diversas articulações da memória, de que há mais de uma forma de
lembrar o passado e o presente abre a possibilidade de diferentes ações políticas
neste. Para este trabalho, uma questão de extrema importância no que diz respeito aos
processos de paz está na questão da identidade. Nações fortemente marcadas por
conflitos têm suas identidades delineadas por estes, pela delimitação de quem é ou não
o inimigo. O que fazer, então, quando eles chegam a um fim?
Como foi dito na seção de contextualização dos murais, quando os primeiros
surgiram no início do século XX, faziam referência a um passado distante, a Batalha de
Boyne. Com o passar das décadas, a imagem do Rei William era retratada todos os
anos, no mês de junho, o que era algo entendido como uma provocação pelos
republicanos, como visto na Figura 34.
Figura 34: Membro da Ordem Orangista passa pela comunidade nacionalista, que está trancafiada em celas, assistindo a parada em homenagem ao Rei Guilherme. Local e data: Essex Street, Belfast, 1998. Fonte: ROLSTON, 2003.
Até o Acordo de Paz, os murais unionistas, no que concerne ao uso da memória,
ou diziam respeito ao Rei, a memoriais a antigos combatentes, ou a líderes de grupos
paramilitares, como mostrado na Figura 2. Após a assinatura do Acordo, percebe-se a
109
utilização de outros eventos históricos, além de murais que enaltecem protestantes
britânicos famosos, como a Rainha Elizabeth e a Princesa Diana – Figura 35.
Figura 35: Retrato da Princesa Diana “Rainha de Corações”. Local e data: Hopewell Crescent, Belfast, 2000. Fonte: ROLSTON, 2003.
Quando os republicanos passaram a retratar os seus próprio murais, afirmavam
que esse uso da memória, além das paradas organizadas, eram formas de humilhação
e repressão à população católica, como visto na Figura 36.
Figura 36: Secretária de Estado Mo Mowlam, de olhos vendados, lava suas mãos enquanto oficial da RUC, usando a braçadeira da ‘SS’, indica a rota Orangista aprovada para a marcha, através da rua nacionalista Lower Ormeau Road. Local e data: Dromara Street, Belfast, 1997. Fonte: ROLSTON, 2003.
É notório, no caso republicano, que o uso da memória desde os primeiros murais
foi feito de maneira diferente que o dos unionistas. A origem celta, a Grande Fome,
enfim, o fato de que eles remetiam a um passado antigo, seja para mostrar como essa
parte da população sempre sofreu repressão, ou então para enaltecê-lo, foi um
instrumento utilizado desde o início do década de 90.
110
Figura 37: Mural que celebra o 150o Aniversário da Grande Fome. “Quando a safra de batata colapsou, causando a Grande Fome, pessoas assistiram desesperadas, enquanto navios eram acompanhados por tropas britânicas”.162 Local e data: Rosnareen Avenue, Belfast, 1995. Fonte: ROLSTON, 1998.
4.4.1 Conclusão
Como foi mencionado na Introdução deste trabalho, no início de sua elaboração
uma das pretensões era analisar como um mesmo evento era retratado pelos dois
lados do conflito.
Próximo de seu final, uma das mais curiosas conclusões foi a percepção de que
isso praticamente não acontece163. Em uma país que possui uma área total164 de 13.843
km2 uma população de menos de 2 milhões de habitantes165, a forma em que o recurso à
memória foi feito, nos murais, pode ser entendida como se fosse de duas populações que
não compartilham a mesma história. É como se a Batalha do Boyne só tivesse acontecido
para os protestantes, enquanto o Bloody Sunday só para os católicos.
Intrínseca a essa percepção está a relação vítima/autor mencionada
anteriormente. O entendimento que os termos da dicotomia não são mutuamente
162 ‘When the potato crop failed causing ‘the Great Hunger’ people watched in despair as shiploads of food were scorted away by british troops...’ 163 Ao menos, não acontece entre os murais que compuseram essa pesquisa. 164 Para fins de comparação, o estado de Sergipe tem 21.910,348 km2. 165 Ver: http://www.discovernorthernireland.com/
111
excludentes, que um mesmo povo pode ser as duas coisas ao mesmo tempo
(ZEHFUSS, 2007), pode ser percebido nos murais.
Entretanto, um povo se retrata como vítima e o outro como responsável pela
violência, no qual a recíproca não seria verdadeira. Enquanto os republicanos
acusavam os unionistas de manterem relações com a África do Sul na compra de
armas (Figura 25), em seus murais nada se vê sobre as relações deles com a Líbia. O
mesmo acontece do outro lado: enquanto não admitem o comércio com os sul-
africanos, acusam o Sinn Féin de trazer armas da Flórida (Figura 38).
Figura 38: Gerry Adams, presidente do Sinn Féin, como uma maleta e uma arma. “Esse é o comprometimento do Sinn Féin com o processo de paz – ‘Armas vindas da Flórida’, - ‘Treinamento de rebeldes das Farc’, ‘Invasão a Castereagh’ e ‘Espionagem em Stormont’”. Local e data: Boundary Walk, Belfast, 2003. Fonte: ROLSTON, 2003.
Isso permite reforçar o quanto o uso da memória está fortemente ligado à
formação de identidades e ao nacionalismo.
O que faz com que os unionistas busquem um evento ocorrido há mais de três
séculos, todo mês de julho? Qual é a necessidade de republicanos retratarem a Grande
Fome, do século XIX, ou a cultura celta?
A resposta estaria no reforço da identidade coletiva de cada um dos grupos,
embora cada um o faça de formas diferentes.
Ao analisar a posição unionista, é possível perceber a contínua demonstração de
força, de poder que eles tiveram durante todo o conflito. Busca-se na figura de um herói
de um passado antigo não somente o retrato da derrota do inimigo, mas também a
ocultação de que dentro do movimento havia posições conflitantes: os unionistas que
queriam a Irlanda do Norte cada vez mais ligada ao Reino Unido e àqueles que
buscavam sua maior independência. Perante a figura de Guilherme de Orange estão
112
todos unidos na defesa do Ulster, contra a reunificação com a República da Irlanda. E
tendo essa defesa em mente, passaram a buscar outros eventos, como a defesa da
cidade de Derry, em 1689 para reforçar o unionismo. Outros heróis apareceram, como
Oliver Cromwell, os fundadores dos grupos paramilitares, indivíduos que cometeram
ataques contra os inimigos e a Família Real Britânica.
Já o recurso à memória por parte dos republicanos aconteceu,
compreensivelmente, de forma diferente. A noção de vítima, de ser oprimido, é muito
mais sensível em seus murais. Como explicado na seção de contextualização, os
primeiros foram erguidos concomitantemente às greves de fome da década de 80.
Porém, mesmo com o fim delas, esse tema continuou em voga e passou a dividir
espaço com outros.
Assim como os unionistas, os republicanos também remontaram a um passado
distante, mais precisamente às origens celtas da ilha, a fim de criar uma noção de
passado que une aquele povo. A Grande Fome traz a tona um momento de grande
sofrimento para toda a ilha da Irlanda, mas que virou símbolo da luta republicana contra
o imperialismo da Inglaterra.
E justamente todo o martírio que envolve a morte por falta de comida é que
elevou a figura de Bobby Sands – principalmente – ao panteão de heróis republicanos.
Ele se juntou àqueles que participaram do Levante da Páscoa de 1916, aos signatários
da Proclamação da Independência Irlandesa.
Enquanto o recurso à memória, para os unionistas, tem uma conotação de
defesa daquele pedaço de terra, para os republicanos o tom está na luta de um povo
contra os seus opressores.
Percebe-se, assim, que uma das propostas fundamentais do Acordo de Belfast,
de se ter uma Irlanda do Norte multinacional, em que as duas tradições compartilham o
poder e que possam viver de forma mais harmônica, não é claramente percebida
através dos murais. Isso independentemente da plena aceitação que o Acordo teve.
Católicos e protestantes, ou republicanos e unionistas, não demonstram, em
seus murais, intenções de co-existência: ou relatam seus respectivos self ou retratam o
other como aquele responsável pela dor, pela luta. Não há pedidos de desculpas e
pessoas responsáveis por ataques são glorificadas através dos memoriais. Como
113
Messari (2001) afirma, as justificativas em torno dos ataques são dadas por “terem sido
necessárias”, para acabarem com a ameaça existente.
Assim, por mais que sejam povos que se encontram dentro de um mesmo
Estado nacional, as duas nações se colocam em posições tão antagônicas que
parecem não compartilhar uma mesma história.
Por exemplo: o Domingo Sangrento foi um evento que ocorreu e afetou as duas
tradições, seja como vítima ou como responsável166, mas que é retratado apenas pelos
republicanos. O mesmo serve para a Sexta-feira Sangrenta, entre outros. Seria como
se esses fatos só fizessem parte da história de um grupo, e não dos dois. Praticamente
não há uma “disputa da memória”, pelas partes, em relação ao mesmo evento167.
Dessa maneira, apesar do entendimento de as nações serem de fronteiras instáveis
e estruturas variadas, quando entendida como uma forma de apropriação e de exclusão
nesse conflito, elas são representadas como historicamente estáveis. Nem que, para isso,
se apague o fato de as duas tradições compartilharem eventos históricos.
4.5 Territorialidade
De acordo com o que a teoria pós-estruturalista entende por identidade – como
visto no Capítulo 3 – é intrínseco para a formação do Self, a existência e contraposição
com o Other.
Uma das conclusões iniciais que se pode ter, no caso da Irlanda do Norte, é que
as identidades dos Selves (sejam eles unionistas ou republicanos) são formadas a
partir de uma total contraposição com os seus respectivos Others – especialmente até o
Acordo da Sexta Feira Santa.
166 Apesar de que nesse caso, o Exército Britânico tenha sido considerado o responsável pelos assassinatos, na visão dos republicanos, eles atuavam em conluio com os unionistas. 167 A exceção a isso se dá no Cú Chulainn, figura mitológica tradicionalmente retratada em murais republicanos – principalmente aqueles que tratam do Levante da Pascoa – como o grande herói celta irlandês. Quando, em 1992, os unionistas fizeram o primeiro mural que o retratava como herói dessa causa, como um antigo defensor do Ulster de ataques irlandeses, do sul, por mais de duzentos anos, a população republicana recebeu isso com grande choque (ROLSTON, 1998).
114
Como também visto no Capítulo 3, a relação entre os dois não tem que ser,
obrigatoriamente, violenta. Entretanto, retomando Messari (2001), a compreensão de
que quando eles não ocupam um mesmo espaço, quando as relações entre eles são
desiguais, as condutas podem ser muito mais explosivas, aparentando ser mais
pertinente, no caso do The Troubles.
De toda forma, apesar de serem as partes tão antagônicas, havia símbolos que
eram usados por ambas, como: a mão vermelha do Ulster168; o trevo de três folhas, ou
Shamrock169; a harpa170; a fita branca171, e o já analisado Cú Chulainn.
Porém, ao se analisar os murais disponíveis, dificilmente se percebe uma busca
por um passado e, subsequentemente, uma identidade comum, mesmo sabendo-se da
existência desses símbolos. Pelo contrário, é mais fácil notar uma clara busca pela
diferenciação entre as duas tradições, que possuem mais figuras que demarcam essa
oposição do que aqueles que “as unem”.
Pelo lado dos unionistas: as cores laranja (do movimento Orangista); o azul,
branco e vermelho (da bandeira do Reino Unido); os nomes/siglas dos grupos
paramilitares, como UDA, UVF, UFF; slogans, como “No Surrender”172; datas como o
1690; a coroa da família Real; os uniformes, coletes, chapéus da ordem de Orange; e,
um dos mais significativos, a Mão do Ulster cerrada (CAIN).
Pelo lado dos nacionalistas, a cor verde (do movimento republicano irlandês),
além do verde, laranja e branco (da bandeira da República da Irlanda); os nomes/siglas
dos grupos paramilitares, como o IRA, PIRA, INLA; slogans, como “Brits Out”173; datas,
como 1916; a harpa, e o lírio (este, símbolo do Levante da Páscoa); uniformes da
Ordem de Orange e da RUC, porém com a conotação de exigência pelo fim dessas; os
brasões do United Irishmen e da família O’Neil (este, símbolo dos nove condados do
Ulster) (CAIN).
168 Normalmente associada à comunidade protestante, esse é símbolo presente na bandeira da província, sendo, portanto, encontrado em murais das duas tradições (CAIN). 169 Ao contrário do item acima, este é ligado a comunidade católica. É um dos símbolos não oficiais da Irlanda, e de acordo com a lenda, foi usada por São Patrício (santo padroeiro do país) para representar a Santíssima Trindade (CAIN). 170 Simboliza a ilha irlandesa, os nacionalistas vêem na ameaça que ela era a vista pelos ingleses o significado de seu uso, enquanto para os unionistas, ela foi utilizada pelo RUC e pelo United Irishmen (CAIN). 171 Que representa a paz (CAIN). Ver: http://cain.ulst.ac.uk/images/symbols/crosstrad.htm 172 Em português, “não a rendição”. 173 Em português, “britânicos, fora”.
115
No presente capítulo, quando foi feita a análise teórica em relação a temas como
a memória nacional e a identidade, pôde-se perceber como essas, em muito, giram em
torno do Estados, dos Estados-Nações e suas fronteiras, mesmo quando a intenção
está na crítica a isso.
Para que seja possível analisar os murais na Irlanda do Norte é importante, em
primeiro lugar, enfatizar como a demarcação do nacional, para as tradições – de como
elas entendem as suas respectivas nações – não condiz com as fronteiras do Estado
Norte-irlandês. Tampouco a forma em que lidam com suas memórias.
Entretanto, a relação conflituosa entre o self e o other, até o Acordo de Paz,
encontra-se em plena conformidade com o que foi pregado por David Campbell, de
relação de pleno antagonismo entre as partes. De que a formação do Self acontece na
exclusão do Other – mesmo um sendo condição de existência para o outro. Os murais
conseguiam representar a exclusão territorial do outro, em ambos os casos.
Como dito na seção de contextualização, o primeiro mural republicano – Figura 3
– é talvez o maior exemplo disso, já que demarcava a non-go area de Bogside. Ali,
durante anos, britânicos e unionistas simplesmente não entravam. E, assim, se tornou
um mural dentro de outros murais, que representavam a causa republicana, como visto
na Figura 39.
Figura 39: Representação da Batalha de Bogside. Local e data: Rosville Street, Bogside, Derry, 1996. Fonte: THE BOGSIDE ARTISTS.
116
Os unionistas também possuíam murais que demarcavam seus territórios, como
demonstra a Figura 40. Além de simbolizarem que certa região era católica ou
protestante, demarcavam quais grupos dominavam os bairros. Isso era ainda mais
notório já que a UVF, a UDA, e os outros, explicitavam as suas dominações ao
assinarem os murais – Figura 41.
Figura 40: Você está entrando, agora, na loyalist Sandy Row. Coração da UFF Sul de Belfast. Local e data: Sandy Row, Belfast, 2001. Fonte: ROLSTON, 2003.
Figura 41: Paramilitar armado, do Batalhão A da UFF. Escrito: ‘Não é pela glória que nós lutamos, nem riqueza, nem honrarias – mas somente por liberdade. Na qual um homem bom só perde com a sua vida.’174 Local e data: Roden Street, Belfast, 1994. Fonte: ROLSTON, 1998.
Porém, mesmo com as divisões entre as duas partes, algumas observações
devem ser feitas. A primeira é que em ambas as tradições, em todas as épocas, não
são facilmente perceptíveis as diferenças existentes dentro de cada uma delas.
As identidades expressas em cada uma eram claramente marcadas pelas
exclusões de suas contradições internas: nos dois movimentos haviam aqueles que
174 ‘It is not for glory we fight, nor riches, nor honours – but for freedom alone. Which no good man loses but with his life.”
117
eram a favor das causas defendidas, porém contra o uso da violência; a favor da co-
existência pacífica entre as partes. Entretanto, a representação desses, através dos
murais, até onde essa pesquisa conseguiu chegar, é praticamente nula.
Percebe-se, assim, o uso de discursos unificados, que francamente se opõem ao
other, que exclui a possibilidade de co-existência. Instabilidades são apagadas e
movimentos são retratados como estáveis, o que remete a discussão feita em relação à
memória, que em discursos oficiais, principalmente, também buscavam a
homogeneização desta, afim de se criar uma noção de identidade e memória coletiva
mais forte e coesa.
O franco antagonismo também pode ser visto em como os murais implicam uma
noção de otherness, um não-nós, que é ameaçador. Uma vez entendido assim, a
matança torna-se justificada, pois ela ocorre em nome da liberdade, da paz para uma
tradição, contra a violência empregada pelo outro. Os murais, em ambos os casos, não
retratam aqueles que causam dor, violência: é sempre o outro – Figura 42.
Figura 42: 30 anos de chacinas indiscriminadas, cometidas pelos chamados “não-sectários Combatentes da Liberdade Irlandesa.” Local e data: Shankill Road, Belfast, 2003. Fonte: CAIN.
Como foi dito no início desse capítulo, desde 1908, quando o primeiro mural foi erguido,
até a década de 80, com o fortalecimento do caráter militar, é possível entender o forte uso da
memória, pela repetição dessa, por parte dos protestantes, mesmo que relacionado a um
único grande evento: a Batalha do Boyne.
118
Neste caso, percebe-se uma compreensão da história na sua forma tradicional, na qual
o tempo é retratado de forma linear. Isso, de acordo com Campbell (1998), é o que ocorre em
conflitos étnicos/nacionalistas não somente veem a história linearmente, mas também, mesmo
ocorrendo no presente, usam o passado como um recurso para a luta. Para Jacques Derrida,
ela pode ser entendida como um objeto cultural:
Conceber a violência como uma forma de inscrição e transcrição política, ao invés de um produto de uma causa “psicogenética”, como uma performance ao invés de uma prática puramente instrumental, destaca o seu papel constitutivo na identidade política e marca as aclamações sobre as recentes intensificações dos conflitos étnicos/nacionalistas que podem tomar um caráter totalmente diferente. Longe de ser um crescimento natural de animosidades históricas e de conflitos anteriores, nós podemos pensar essas questões de etnicidade e nacionalismo como questões de histórias sendo violentamente empregadas no presente, para objetivos políticos contemporâneos. (DERRIDA apud CAMPBELL, 1998, p. 86 – tradução nossa)175
Com a intensificação do conflito na década de 70, com as primeiras conversas
rumo a um acordo nos anos 80 e, finalmente, com o Acordo de Paz em 1998, o
crescimento da militarização e da violência nos murais é notável.
As décadas de 80 e 90 foram marcadas por uma crescente militarização por
parte dos grupos paramilitares unionistas, que inclusive, foram responsáveis por
um maior número de atentados que os grupos republicanos. Esse fato foi refletido
nos seus murais, e com a perspectiva de um processo de paz, eles aumentaram
consideravelmente, em dois sentidos: havia os murais que eram memoriais –
homenageavam guerrilheiros, responsáveis por atentados, fundadores de grupos
paramilitares e vítimas de atentados republicanos; também havia aqueles que
retratavam as causas defendidas, como a luta contrária a reunificação da ilha
irlandesa, a manutenção da Irlanda do Norte como parte do Reino Unido e a
libertação de prisioneiros.
Enquanto isso, pelo lado dos republicanos, com o fim das greves de fome, viam-se
murais relacionados a temas diversos. Com o processo de paz, muitos passaram a ter como 175 “Conceiving of violence as a form of political inscription and transcription, rather than the product of a "psychogenetic" cause, as a performance rather than a purely instrumental practice, highlights its constitutive role in identity politics and means the claims about a recent intensification of "ethnic/nationalist" conflict can take on a very different character. Far from being a natural outgrowth of historical animosities and earlier conflicts, we can think of these issues of ethnicity and nationalism as questions of history violently deployed in the present for contemporary political goals.”
119
temas, as exigências feitas pelo movimento, como a libertação dos prisioneiros de guerra
(que também era uma demanda unionista, porém estes tratavam como apenas prisioneiros –
sem o termo de guerra), o fim das políticas sectárias, a retirada das tropas inglesas do país e
o fim da polícia.
Entretanto, mesmo com a introdução de novos temas, murais em que os grupos
paramilitares demarcavam seus territórios – principalmente no caso dos republicanos –
continuaram a existir. Eles eram representativos das divisões dos bairros e ruas nas cidades
da Irlanda do Norte. A maior expressão da exclusão territorial do outro está nas chamadas
peace lines – linhas de paz. Erguidas durante o auge do The Troubles, elas literalmente
separavam católicos de protestantes e impediam qualquer tipo de contato entre as partes.
Figura 43: Muro que separa o bairro Católico de Falls Road para o Protestante Shankill Road. Local e data: Vista do muro tirada no lado de Shankill Road, Belfast, 2000. Fonte: CAIN.
Em alguns casos, esses muros tornaram-se locais nos quais murais ou mensagens
escritas eram erguidos. Com o passar do tempo, e pelo fato de que esses murais passaram a
fazer parte dos roteiros turísticos das cidades, pessoas não envolvidas no conflito também
passaram a deixar suas mensagens, que pediam, principalmente, a paz na região.
120
Figura 44: Mensagens de paz. “Seja a solução que você queira ver no mundo. Paz para todos”, “Guinness e política/religião não se misturam. Pense de forma australiana, beba de forma irlandesa”. Local e data: Cupar Way, Shankill, Belfast, 2000. Fonte: CAIN.
4.5.1 Conclusão
A separação territorial entre republicanos e unionistas acontece desde muito
antes do The Troubles. Quando da inserção dos protestantes durante a Reforma, as
duas comunidades passaram a habitar localidades diferentes nas cidades norte-
irlandesas.
No século passado, com a divisão da ilha e com a idéia de que a Irlanda do
Norte seria um estado protestante para protestantes, foram relegados às “fronteiras”
dos bairros católicos as suas possibilidades de manifestações culturais. Dessa forma,
eles viam como total humilhação as passeatas orangistas, todos os meses de Julho,
que passavam pelos seus bairros.
Os murais deixam bem claras essas divisões, visto que, mesmo quando eles não
têm conteúdo militar forte, a simples mensagem retratada torna possível a
compreensão se tal localidade é unionista ou republicana.
E, a partir do momento em que se sabe qual é a “identificação” do bairro, qual
Self ali habita, conclui-se que a presença do Other não é bem vinda. A exclusão do
outro dificilmente poderia estar mais clara do que aquela feita através dos murais.
Entretanto, assim como visto na seção sobre a segurança e sobre a memória,
novamente percebe-se que essa exclusão acontece em cima de ocultações de
diferenças a fim de se estabilizarem os discursos.
121
Em primeiro lugar, é importante sempre ter em mente que esses murais
representam as opiniões de, pelo menos, algumas das pessoas residentes nas regiões
em que eles são erguidos. Porém, como visto na seção de contextualização, haviam
pessoas que não concordavam sequer com a existência deles, então, o que dizer das
mensagens transmitidas por eles?
Em segundo lugar, é notório que nas cidades existiam bairros com posturas mais
radicais que outros (CAIN). Em Belfast, por exemplo, os mais violentos eram Shankill
Road (unionista) e Falls Road (republicanos). Devido ao fato de que eram vizinhos,
vários motins aconteciam, o que culminou com a criação da Peace Line que dividiu os
dois (visto na Figura 43). Ali, a possibilidade de co-existência era praticamente nula, e
até hoje é questionada, visto que esse muro ainda não caiu.
Porém, não somente existem os bairros menos radicais, mas também os mistos.
Entretanto, até onde essa pesquisa conseguiu ir, estes não produzem murais. Nem
mesmo aqueles que poderiam reproduzir, justamente, a tolerância existente, ali, na
convivência entre católicos e protestantes.
Dessa forma, através dos murais pesquisados, o que se pode concluir é o
reforço a idéia de David Campbell da plena exclusão do Other perante o Self. Símbolos
em comum não são suficientes para se criar a noção de um compartilhamento de uma
história, de valores entre as partes.
122
5. CONCLUSÃO
O presente trabalho teve o objetivo de fazer uma análise sobre a formação da
identidade coletiva de republicanos e unionistas, no conflito da Irlanda do Norte, através
dos murais erguidos por eles, principalmente a partir da década de 80.
Alguns pontos devem ser ressaltados, como a importância desses murais. Como
foi dito no início da contextualização, no capítulo 4, eles eram muito contestados pela
população e autoridades locais. Uma das alegações contrárias era que serviam para
aprofundar as rivalidades, o que, pelo visto no presente trabalho, não deixa de ser
verdade. Afinal, não é difícil supor que um republicano tenha se sentido ofendido ao ver
a Figura 11, por exemplo.
Entretanto, durante a elaboração desta dissertação pôde-se concluir que é um
movimento infrutífero aquele que busca destituir a relevância desses murais no conflito
norte-irlandês. Além da evidente manifestação de opiniões que eles representam, são
muito importantes para a formação das identidades representadas – como foi proposto
– e na tomada de decisões políticas locais.
Em segundo lugar, foi mencionado na Introdução, que um dos objetivos
estabelecidos quando do início das pesquisas era entender como um mesmo evento
seria retratado por cada uma das tradições. O objetivo, por si próprio, não foi
alcançado, visto que normalmente a comunidade responsável por alguma tragédia não
faz referência a ela em seus murais.
Porém, seria errôneo dizer que a tentativa foi fracassada, já que se retira uma
conclusão fundamental em relação a isso: a relevância da questão do papel de “vitima”
nos murais. Coloca-se o outro como vilão, como o que gera violência e dor, elevando-se,
assim, a condição de garantidor das comunidades aos respectivos grupos paramilitares.
A terceira constatação importante de se fazer é como o trabalho corrobora a
compreensão de Maja Zehfuss no que se diz respeito ao trabalho de Alexander Wendt.
As exclusões feitas por esse autor, para sustentar a formação das identidades no
123
ambiente internacional176, de fato tornam o seu Construtivismo impraticável. Como foi
claramente proposto, a questão discursiva é absolutamente fundamental na formação
de identidades: sejam elas de indivíduos, grupos ou Estados.
Assim, parte-se para o quarto ponto dessa conclusão: a análise da formação de
identidades através do viés pós-estruturalista. A proposta feita foi identificar esse
processo, no caso de republicanos e unionistas, via murais. Os três focos foram:
segurança, memória e territorialidade. No primeiro, pôde-se perceber como a engrenagem proposta por Martha
Crenshaw tem peso fundamental para a formação das identidades, em um ambiente
marcado pelo terrorismo. Através dela, tem-se a explicação do contínuo processo de
atentados perpetuados por ambos os lados. Mas além disso, compreende-se como
através de reações a esses, cria-se o estigma em torno do inimigo, fortalecendo a
noção de Self, a identidade coletiva.
Mais ainda: através das análises dos murais e dos contextos nos quais eles
foram erguidos percebe-se uma quebra do entendimento do Dilema de Segurança, em
seu sentido tradicional, já que não é a situação de anarquia que justifica o
comportamento dos atores. A violência existente na região, que se remonta há séculos,
gera uma situação elevada de insegurança, por todos os lados envolvidos, que faz com
que as reações se tornem cada vez mais mecânicas. A solução encontrada para dar
um fim a tal conflito foi o Acordo de Paz.
A memória foi o segundo foco dado na análise dos murais. Como dito
anteriormente, buscava-se compreender como um evento seria retratado pelos dois
lados do conflito, nos murais. Ao perceber que isso não acontecia, o que se vê é um
país geograficamente pequeno, mas que possui duas memórias, dois passados que
não aparentam ser comuns aos dois povos. Novamente, tem-se a identidade coletiva
sendo arraigada através da plena contraposição com o outro.
Finalmente, a territorialidade demarca, através dos murais, essa separação
entre os lados. Tem-se representação de que uma região é unionista, outra é
176 Como, por exemplo, a noção de identidade corporativa dos Estados, que já as tem estabelecida antes do contato com outros Estados; ou a exclusão da importância da linguagem, do discurso para a formação das identidades.
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republicana, e que os inimigos não são bem vindos. Homens armados tiram
qualquer dúvida do contrário.
Dessa maneira, apesar de autores pós-estruturalistas afirmarem que a formação
de identidades não necessariamente ocorre através do pleno antagonismo entre self e
other, o que se pode concluir através dos murais é que é isso que acontece no caso de
republicanos e unionistas. Seja antes, durante e após o Acordo de Belfast, já que
mudanças no sentido de uma maior integração entre eles não foram percebidas, nos
murais, até onde essa pesquisa conseguiu ir.
Enfim, o que é possível dizer sobre uma identidade norte-irlandesa? O que
significa ser norte-irlandês?
Apesar de o Acordo de Paz buscar uma maior harmonia, o mesmo estipula que
um cidadão pode escolher a cidadania irlandesa (opção mais escolhida entre os
republicanos), ou britânica (unionistas), e até mesmo ambas.
Portanto, a ideia de uma identidade norte-irlandesa forte, solidificada, e
principalmente, unificada, ainda parece um pouco distante da realidade do país,
embora passos significativos já tenham sido dados rumo a um menor antagonismo
entre os seus cidadãos.
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