Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa...
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
Doutorado
As metáforas do corpomídia em cena:
repensando as ações físicas no trabalho do ator.
Sandra Meyer Nunes
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Comunicação e Semiótica - área
de concentração Signo e Significação nas
Mídias, sob a orientação da Professora Doutora
Christine Greiner.
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Agradecimentos
Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi
essencial durante o longo processo deste trabalho. Pelas conversas provocativas e por me
fazeres acreditar que era possível. Agradeço por existires...
e Iaell, pelas doces e entusiásticas palavras de incentivo.
Christine, que me conduziu delicada e sabiamente durante todo o processo e me
proporcionou tantos insigths, ajudando-me a entender o sentido da palavra theoría: ação de
olhar.
Helena, continuas a representar o singular e feliz encontro que descrevi nos
agradecimentos de minha dissertação de mestrado, há dez anos atrás. Foste mesmo um divisor
de águas...
PICDT/CAPES, pela bolsa de estudos que me permitiu realizar este trabalho de
pesquisa, incluindo estágio na Universidade Paris 8, França.
UDESC. O interesse pelo assunto abordado nesta tese vem de minha prática como
professora de Expressão Corporal e Técnica de Teatro e Dança no Curso de Licenciatura em
Artes Cênicas no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. As experiências
compartilhadas com colegas do Departamento e com os alunos foram fundamentais neste
percurso.
Persona Cia de Teatro. Algumas experiências foram incorporadas a este estudo como
atividades de pesquisa complementar e informal. O trabalho como atriz iniciado juntamente
com o período da tese no espetáculo E.V.A., com a Persona Cia de Teatro, de Florianópolis,
propiciou a vivência de muitas das questões apontadas no transcorrer da pesquisa. As
observações silenciosas e as conversas com Jefferson, Gláucia, Higor, Malcon e Melissa foram
preciosas para cercar o problema de outras formas possíveis, ainda mais dinâmicas e
processuais, como bem convinha ao campo de estudos escolhido.
4
RESUMO
Esta tese propõe uma revisão das metáforas que orientam o conceito de ação física no
trabalho do ator à luz das ciências cognitivas e da teoria do corpomídia desenvolvida pelas
professoras Helena Katz e Christine Greiner no Programa de Estudos Pós-graduados em
Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Presente na gênese
das teorias de representação e no conceito moderno de atuação, a noção de ação é fundamental
para os estudos acerca da comunicação do ator.
A pedagogia proposta por Constantin Stanislavski (1863-1938) por meio do método das
ações físicas, e posteriormente desenvolvida por Jerzy Grotowski (1933-1999), alterou os
processos de pesquisa e formação do ator. O trabalho parte da hipótese de que a abordagem da
ação física, proposta por ambos, realiza uma revisão do dualismo corpo-mente no trabalho do
ator, apontando para questões presentes, hoje, nas teorias das ciências cognitivas. Ao relacionar
o sistema de ações físicas do ator com os estudos do corpo na contemporaneidade, este estudo
aborda a ação, considerada um sistema processual e dinâmico, na perspectiva de uma teoria do
corpomente.
As pesquisas dos filósofos-cientistas António Damásio, Daniel Wegner, George Lakoff,
Mark Johnson e Alain Berthoz fundamentam as hipóteses apresentadas a respeito das metáforas
que dão ignição à ação do corpo e fortalecem a articulação teórica-prática necessária para a
abordagem do problema da ação cênica.
Palavras chave: Comunicação. Teatro. Representação. Ação física. Ciências Cognitivas.
5
ABSTRACT
This thesis analyzes metaphors that guide the concept of physical action in the work of
an actor through the perspective of the cognitive sciences and the theory of body-media
elaborated by professors Helena Katz and Christine Greiner in the graduate program of
Communications and Semiotics at the Catholic University of São Paulo. The notion of action is
essential to studies about the communication of the actor and is present in the genesis of
theories of representation and in the modern concept of action.
The pedagogy proposed by Constantin Stanislavski (1863-1938) by means of a method of
physical actions, and later developed by Jerzy Grotowski (1933-1999), altered the processes of
research and education for the actor. This study is based on the hypothesis that the approach to
physical actions, proposed by both authors, revises the body-mind dualism in the work of the
actor and points to issues now present in the cognitive sciences. By relating the system of
physical actions of the actor with he studies of the body in the contemporary world, this study
considers action as a procedural and dynamic system, from the perspective of a body-mind
theory. The studies of philosophers and scientists António Damásio, Daniel Wegner, George
Lakoff, Mark Johnson and Alain Berthoz are the foundations for the hypotheses presented about
the metaphors that spark the action of the body and strengthen the theoretical-practical
articulation needed to approach the problem of scenic action.
Key words: Communication. Theater. Representation. Physical action. Cognitive sciences.
6
ILUSTRAÇÕES
1 Anatomia humana 1 e 2 - Andreas Vesalius 35
2 Retrato de David Garrick 36
3 Desenhos de Charles Le Brun 38
4 Os autômatos de Vaucanson 39
5 O sistema nervoso mecânico 41
6 As experiências de Galvani 43
7 Duchenne de Boulogne 44
8 Biomecânica de Meyerhold 51
9 Ryszard Cieslak 64
10 As paixões: o terror. 67
11 O golpe do punhal 73
12 O gesto: Hacks 75
13 A fisionomia de Lavater 77
14 O Pavor: Le Brun 78
15 Os captadores sensoriais 87
16 A cólera: Le Brun 143
17 Mecanismos dos espíritos cartesianos 145
18 A atuação de Garrick 146
19 Estudo das emoções 152
20 O caminho das emoções 159
21 Os córtices somatossensoriais 164
22 A arvore dos sentimentos 165
23 O Sorriso falso e o verdadeiro 168
24 Gráfico das emoções 170
25 Os agentes mímicos 172
26 Stanislavski 177
27 Grotowski 177
7
SUMÁRIO
Introdução 09
1 AS METÁFORAS DO CORPO EM AÇÃO 17
1.1 O método das ações físicas.– a práxis proposta por Stanislavski e as
contribuições de Grotowski 17
1.2 Genealogia da metáfora 27
1.3 A metáfora do corpo como instrumento 30
1.4 O corpo cênico como máquina 33
1.5 O gesto do ator: entre uma estátua animada e uma pintura transitória 36
1.6 O organismo: um mecanismo metafórico vital 42
1.7 A marionete como metáfora do corpo 47
1.8 A organicidade: da fisiologia à psicologia 51
1.9 Uma outra idéia de organicidade 55
1.10 A linha orgânica e a linha artificial 58
2 AS METÁFORAS E A ORGANICIDADE DA AÇÃO FÍSICA 65
2.1 O trânsito entre o dentro e o fora 65
2.2 Do centro do corpo à periferia 73
2.3 Repensando as metáforas de demarcação 79
2.4 O fluxo das imagens 85
3 PENSAR EM AÇÃO. FINALIDADE, INTENCIONALIDADE E
CONSCIÊNCIA 92
3.1 A finalidade na ação e sua dimensão prática 92
3.2 Ação e intencionalidade 101
3.3 A intencionalidade prática 106
3.4 Intenção prévia e intenção na ação 110
3.5 A ilusão da vontade consciente 114
3.6 Sobre o estado de consciência 121
3.7 O modelo interno 125
3.8 Na sacola do inconsciente 128
8
4 NA REDE DAS AÇÕES FÍSICAS: DAS PAIXÕES ÀS EMOÇÕES E
SENTIMENTOS. 142
4.1 A mecânica das paixões 142
4.2 A teoria da sensibilidade 147
4.3 A psicologia do ator e a memória das emoções 153
4.4 A biologia das emoções 158
4.5 O sentimento de uma emoção 166
4.6 A botânica das paixões 170
Considerações Finais. 178
Referências Bibliográficas 182
9
Introdução
Uma das grandes revoluções do teatro do século XX foi desencadeada pelo viés
pedagógico do diretor e encenador russo Constantin Sergueevich Stanislavski (1863-1938).
Trata-se do reconhecimento de que o ofício do ator não visa somente o entretenimento, mas é
uma forma de conhecimento. Em meio ao processo, eminentemente empírico do trabalho de
ator, Stanislavski estabeleceu marcos teóricos que o faz ser reconhecido como o fundador da
moderna pedagogia teatral ocidental (SERRANO, 2004). O sistema global, concebido por
Stanislavski durante toda a sua trajetória artística, permanece como referência inconteste para os
estudos teatrais e, especialmente, para a formação do ator, no Brasil e no mundo. Sua
metodologia, constantemente auto-avaliada, continua como um sistema aberto e vivo, capaz de
gerar questões fundamentais para a investigação do trabalho do ator, na atualidade.
Stanislavski teria formulado os principais problemas ontológicos e metodológicos da
atividade do ator, tendo o diretor polonês Jerzy Grotowski (1933-1999) buscado, a seu modo,
suas próprias respostas para tais problemas. Ninguém mais, desde Stanislavski, como lembra o
diretor inglês Peter Brook (GROTOWSKI, 1992, p. 9), investigou o fenômeno da representação
teatral no Ocidente, a natureza e a ciência de seus processos “mental-fisico-emocionais” tão
profunda e amplamente quanto Grotowski. Stanislavski apontou para a necessidade do
“trabalho do ator sobre si mesmo”, o que Grotowski reiterou como uma experiência que só
poderia advir de um conhecimento prático (DE MARINIS, 2004). Stanislavski e Grotowski
propuseram novos entendimentos acerca de como o ator conhece e elabora seus processos
cognitivos, com questões referentes às relações entre corpo e alma, ou corpo e mente,
enunciadas por eles como aspectos físicos e psíquicos.
A busca de integração das dimensões “interior e exterior” ou “física e espiritual” do ator
foi constante na trajetória artística de Stanislavski e configurou procedimentos de ignição dos
aspectos mentais e corporais, numa unidade psicofísica que justificaram a sua ação. A noção de
ação física teve um papel central na nova configuração pedagógica, ressaltada como chave para
que a criação e a emoção surgissem, já que não poderiam ser despertadas inteiramente pela
vontade ou consciência do ator. Ao invés de evocar um estado mental ou emocional inicial,
Stanislavski entendeu que o ator deveria acionar a materialidade do seu corpo. É quando
concebe o método das ações físicas. Neste sentido, a estratégia de conhecimento foi alterada,
pois é a partir das ações do corpo que o ator articularia os demais elementos da representação e
se aproximaria da “natureza criadora”.
A presente tese traz uma colaboração no sentido de relacionar o sistema das ações
10
físicas do ator, concebido por Stanislavski, com os estudos do corpo na contemporaneidade e,
conseqüentemente, de seus novos entendimentos na construção do conhecimento. Proponho
uma investigação do conceito de ação física no trabalho do ator, à luz de teorias das ciências
cognitivas e da teoria do corpomídia, formulada por Katz e Greiner (2005), levantando algumas
hipóteses para uma revisão das metáforas que delineiam o conceito de ação na
contemporaneidade. Parto da hipótese de que, através do método das ações físicas, Stanislavski
propôs uma determinada relação entre cognição e ação, a que denomino como uma cognição na
ação, e que conformaria uma teoria do corpo.
As questões referentes à pesquisa das ações do ator, por ele formuladas, permitem
estabelecer diálogos com teorias contemporâneas do conhecimento. Stanislavski estabeleceu, no
início do século XX, procedimentos que apontavam para novos entendimentos acerca dos
processos de conhecimento e aprendizagem nas relações entre corpo e mente, e que foram
desenvolvidos por Grotowski na segunda metade do mesmo século. Este direcionamento
implicava num conhecimento operativo e numa experiência de transformação, eminentemente
prática, das conexões entre os estados físicos e os não físicos, enunciados pelos encenadores
como estados espirituais. Na escuta da materialidade do corpo, outras conexões se
estabeleceram. Uma das questões ontológicas mais insistentes e debatidas na filosofia,– a
natureza dos processos mentais e suas relações com mundo físico – é nomeada como o
“problema corpo-mente” (CHURCHLAND, 2004).
Para ressaltar que o corpo, ao qual me refiro, não está separado da mente, os termos
corpo e mente serão acoplados, gerando a terminologia corpomente, numa licença lingüística
que se justifica, na ausência de uma terminologia que abranja o entendimento encarnado da
mente e a perspectiva de um corpo que pensa.
Ao diferenciar a ação física do gesto e do movimento, Stanislavski e Grotowski
circunscreveram um campo de inferências próprio a cada um. Mais do que discutir as diferenças
entre estes termos, que não é o alvo específico deste trabalho, importa entender como
pensamentos, idéias e conceituações se materializam no corpo e na mente, a tal ponto de
formatarem tais categorizações e produzirem conhecimento. Neste estudo, o método das ações
físicas será abordado por meio das metáforas que o norteiam, com enfoque na revisão do
dualismo corpo-mente no desempenho do ator.
A visão da metáfora enquanto processo cognitivo e acional desenvolvida por Lakoff e
Jonhson (1999, 2002) é a estratégia escolhida para a análise destas práticas e discursos sobre o
corpo-mente. As metáforas não só propõem visões alegóricas de mundo e revelam padrões de
pensamento, mas dizem respeito à própria atividade cognitiva, proporcionando ignição aos atos
11
do corpo. O trânsito de metáforas como o interior e o exterior, o dentro e o fora, o centro e a
periferia e as partes e o todo fundamentam o conceito de ação física e os níveis de
expressividade e comunicabilidade do corpo. É por meio destas metáforas que Stanislavski e
Grotowski explicitaram o seu entendimento acerca das relações entre o corpo e a alma (ou
mente) e o ambiente.
Não obstante, há problemas ontológicos relacionados às categorizações metafóricas
utilizadas para descrever a noção de corpo, mente e ação. Os complexos processos que
envolvem a ação humana têm estado à mercê, por muito tempo, de metáforas provenientes de
uma visão mecanicista e dualista do corpo e da mente e de uma leitura de causa e efeito entre
corpo e ambiente. O entendimento do corpo como um instrumento da alma ou da mente
configura o paradigma mecanicista, relacionado à idéia do corpo como máquina e,
posteriormente, o vitalista, com suas analogias acerca do organismo e da organicidade e energia
vital do corpo. O termo oitocentista vitalismo designou as teorias que consideram os fenômenos
vitais como irredutíveis aos fenômenos físico-químicos, ou seja, não podem ser explicados por
causas mecânicas (ABBAGNANO, 2000, p.1005). O vitalismo foi defendido por filósofos e
cientistas entre meados do século XVIII e meados do século XIX, mas podem ser chamados de
vitalistas os conceitos clássicos que entendem o organismo como regido por forças vitais,
identificando a essência da vida com a alma.
As metáforas subjacentes à noção de corpo, de mente e de ação derivam de contextos
históricos, culturais e sociais e a relação entre o saber artístico e outros saberes. O enfoque deste
estudo tratará especificamente da ressonância destas metáforas mecanicistas e vitalistas na
construção da ação física do ator idealizado por Stanislavski e, posteriormente, por Grotowski.
Entre o corpo observado e manipulado enquanto instrumento e o corpo vivido enquanto
organismo há modos distintos de se perceber as relações entre o corpo, a mente, o cérebro e o
ambiente.
Se as soluções cênicas que o ator encontra depende dos circuitos que desencadeiam os
processos de conhecimento e aprendizagem, quais seriam, então, as metáforas mais apropriadas
para descrever a ação do corpo em vida e o trabalho do ator sobre suas ações na
contemporaneidade? Ao invés das metáforas do corpo-máquina e corpo-organismo, moldadas a
partir do entendimento mecanicista e vitalista, o corpo do ator passa a ser abordado como um
sistema dinâmico e auto-organizativo. A metáfora que se torna mais apropriada, neste caso, é a
dinamicista. Neste sentido, o problema da ação é aqui abordado a partir de uma perspectiva
sistêmica e processual, por meio de novos entendimentos das relações entre o corpo e a mente
provenientes de teorias cognitivas.
12
Stanislavski e Grotowski sistematizaram um pensamento sobre o corpo, não se
resumindo, inclusive, ao corpo do ator, sob um contexto metafórico vitalista. A crítica à atuação
mecânica e ao artifício conduziu suas pesquisas em direção a organicidade da ação cênica. As
reflexões de Stanislavski relativas à natureza dos processos físicos e psíquicos, contudo, já
apontavam para uma perspectiva dinâmica e auto-organizativa, com conexões significativas
com as mais recentes abordagens cognitivas. Na pedagogia das ações físicas o conhecimento se
dá no corpo em ação, e a ação, neste sentido, não seria a resultante de intenções psicológicas ou
intelectuais motivadoras somente, e sob o controle do agente, tampouco se organiza de forma
linear e causal em sua interação com o meio.
A atuação do ator já pressupunha, para Stanislavski, um ponto de vista da experiência
humana, do corpo do ator em ação no mundo. Como demonstra o método das ações físicas, o
entendimento destes processos, por parte do mestre russo, estava conectado ao contexto
epistemológico de sua época. Um olhar mais acurado para as teorias teatrais, que tratam do
trabalho do ator, demonstra que a insistência em determinado entendimento do corpo e da ação
cênica tem ocorrido, em algum nível, em consonância com as idéias sobre a relação corpo e
mente, na filosofia e na ciência. Estas consonâncias se constituem enquanto respostas para
questões ontológicas semelhantes e compartilhadas evolutivamente por estes campos de
conhecimento – arte, filosofia e ciência. Nem sempre estas conexões estão claramente
enunciadas pelos teóricos, encenadores ou atores, mas a sua ocorrência é perceptível através das
metáforas presentes nos discursos teóricos e nas práticas cênicas.
No tipo de atividade do ator, os processos cognitivos e os processos artísticos se
entrecruzam de sobremaneira que não há como separá-los. Ao recriar a conduta humana para
colocá-la em situação cênica, o ator utiliza, necessariamente, seu próprio organismo, estando a
mercê da natureza de ser e dos estados deste. A escassa revisão e atualização dos processos
cognitivos que envolvem a encenação do ator, tais como as relações entre corpo, mente,
emoção, razão, consciência, vontade, intencionalidade e controle, vem contribuindo para o
entendimento pouco preciso a respeito destes procedimentos, provocando uma espécie de
lacuna epistemológica.
É possível uma conexão das questões próprias ao desempenho do ator com aquelas
discutidas no âmbito das ciências e da filosofia, como já aparece, por exemplo, nas teorias sobre
a expressividade do corpo e suas relações com a alma atreladas à evolução da fisiologia, no
século XVII, à biologia, no século XVIII e XIX e, mais tarde, à psicologia, no século XX. Na
medida em que tinham no estudo das paixões e, posteriormente, das emoções e sentimentos, um
foco de interesse comum, eram estes campos teóricos que respondiam às questões sobre o corpo
13
e o gesto do ator, e a efetividade das teorias teatrais estava garantida pela sua coerência com o
entendimento de como o corpo e a alma se conectavam.
Portanto, no primeiro capítulo, apresento o conceito de ação física desenvolvido por
Stanislavski e Grotowski e as hipóteses estabelecidas por eles para o problema corpo-mente do
ator em suas conexões com o pensamento filosófico e as teorias científicas. Do amplo espectro
das teorias do conhecimento, serão ressaltadas aquelas que se estruturam por meio das
metáforas do corpo-máquina e do corpo-organismo sobre os quais as teorias do ator de
Stanislavski e Grotowski se edificaram.
A visão mecanicista e a visão vitalista, em conformidade, primeiramente, com as teorias
sobre a fisiologia das paixões, adquirem uma leitura proveniente dos estudos sobre a emoção e
o sentimento a partir do século XVIII. A noção cartesiana de um automatismo mecânico é
transformada, paulatinamente, com a noção de sensibilidade e reflexibilidade, evidenciando-se,
cada vez mais, o processo orgânico e as teorias psicofísicas. Iluminadas pelo materialismo
vitalista, estas conexões se encontram de forma precursora no pensamento do filósofo e teórico
teatral francês Denis Diderot (1713-1784), cujas idéias sintetizaram o mecanicismo e vitalismo
na descrição do corpo do ator, e na teoria dos condicionamentos reflexos do fisiologista e
dramaturgo inglês George Henry Lewes (1817-1878). A análise destas conexões segue a
abordagem do teórico teatral Joseph Roach (1985).
A psicofisiologia de Stanislavski dialoga com os problemas enunciados por Diderot e
sistematizados por Lewes: os aspectos objetivos e subjetivos da ação do ator. Nestes aspectos,
estão enunciadas as relações entre corpo e espírito (alma, mente) e corpo e ambiente. Ainda
fortemente presentes nas teorias do ator, na atualidade, estas correntes teóricas, em sua busca
pela atualização das metáforas da ação do corpo em conformidade com os pressupostos
científicos e filosóficos de sua época, anteciparam avant la lettre abordagens hoje melhor
elucidadas pelas ciências cognitivas.
No segundo capítulo, discuto os princípios do conceito de ação física por meio das
metáforas que dão ignição à construção do corpomente do ator. Tais metáforas são chamadas
por Lakoff e Johnson (1999, 2002) como ontológicas e orientacionais, e determinam
entendimentos concernentes aos aspectos psicofísicos envolvidos na conduta do ator apontados
por Stanislavski e Grotowski, como o trânsito entre o dentro e o fora, o interior e exterior, as
partes e o todo e o centro e periferia. Neste estudo interessa investigar como o conceito de ação
física e suas metáforas ontológicas e orientacionais sobrevivem com as atuais hipóteses acerca
do problema corpo-mente.
A relação corpo (entendido como não separado da mente) e conhecimento, e a
14
perspectiva do corpo que pensa sua ação em ação será discutida no terceiro capítulo. É neste
contexto que a metáfora dinamicista se torna a mais indicada para dialogar com os modos de
organização da práxis vislumbrada por Stanislavski e posta em evolução por Grotowski. O tipo
de práxis a que o ator está sujeito especifica uma estratégia de conhecimento onde o
pensamento se dá no processo acional, ou seja, como salientou Grotowski (1992), num pensar
em ação ou num pensar em movimento. O processo vivido pelo ator ultrapassa o nível literário
ou imagético, na descrição de personagens e do contexto envolvido – havendo ou não texto
teatral referente – e envolve a complexidade da ação humana e a imprevisibilidade das relações
espaços-temporais momentâneas (SERRANO, 1996). A idéia de um pensar em movimento
difere do entendimento cartesiano, onde a mente pensa e corpo executa. Pensar e mover não são
acontecimentos separados, mas aspectos de um mesmo processo cognitivo dinâmico,
possibilitando ao ator situações cênicas constantemente reconstruídas. Similar ao que ocorre no
método das ações físicas, nos estudos das ciências cognitivas na atualidade o corpo aparece
como desencadeador dos processos cognitivos, o que não significa apenas uma troca de
supremacias, pois o corpo enunciado nestas teorias não se separa da mente quando age no
mundo.
Para a discussão das questões que envolvem a práxis especifica do ator, bem como do
aspecto voluntário e teleológico da ação, recorro à noção aristotélica de razão prática. O termo
grego se apresenta no pensamento acional de Aristóteles (384 a.C-322 a.C) e subtende um saber
de ordem prática e processual, que é inerente ao fazer artístico. Tanto no teatro como na
filosofia, o discurso sobre a ação tende a uma origem voluntária e consciente e a objetivos
teleológicos. O conceito de ação física se edificou a partir de um entendimento que o
movimento do corpo deve se justificar, intencional e conscientemente, em relação a um dado
contexto, mas as próprias reflexões de Stanislavski provenientes de suas investigações junto a
atores já demonstravam que a prerrogativa de que o ato voluntário ou intencional é,
necessariamente, dotado de consciência não se sustentava.
A revisão do conceito de ação envolve igualmente a forma com que intenção e
consciência vêm sendo discutidas na conformação da ação cênica, e serão abordadas ainda no
terceiro capítulo. As reflexões de Stanislavski à cerca do trabalho do ator sobre suas ações
envolve questionamentos em torno da vontade, das emoções e da possibilidade ou não de
controle do ator sobre os processos cognitivos que propiciam a ação, discutidas em torno da
relação consciente e inconsciente. Já Grotowski, reacende a questão da intencionalidade.
As hipóteses do lingüista cognitivo George Lakoff e do filósofo Mark Johnson (1999,
2002), do filósofo Daniel Wegner (2002), do lingüista John Searle (2002) e do neurofisiologista
15
Alain Berthoz (2003), apontam para as investigações sobre ações intencionais e suas conexões
com a consciência e dialogam com as questões formuladas neste estudo a cerca da natureza
processual e dinâmica das ações, antevistas por Stanislavski e Grotowski. Da mesma forma, as
pesquisas do neurologista António Damásio (1996, 2000, 2004) a cerca da consciência, do self,
da emoção e do sentimento apresentam pistas para a melhor compreensão destes processos
envolvidos na ação.
O enfoque sobre as paixões e, posteriormente, sobre as emoções e sentimentos, será
desenvolvido no quarto capítulo. A constatação da instabilidade dos estados emocionais foi uma
das questões mais apontadas por Stanislavski como justificativa para a sua revisão
metodológica. As ações físicas seriam a chave para a articulação destes estados, e envolveriam
aspectos referentes à fisiologia, biologia e memória das emoções.
O conceito de ação não é objeto de reflexão somente das teorias teatrais, mas campo de
investigação nascido da filosofia da ação e matéria de interesse das ciências que tratam de
entender como o homem se conhece e as operações envolvidas nos processos cognitivos. A
obra Dynamics in Action, Intentional Behavior as a Complex System (2002), de Alicia Juarrero,
traz uma importante contribuição para o entendimento da ação. Com o objetivo de compreender
como o ser humano percebe, pensa, fala, age e compreende, as ciências cognitivas vem se
afirmando uma nova ciência dos processos psicobiológicos, envolvendo os comportamentos
humanos e suas formas simbólicas, tais como a linguagem e a cultura. Ciências essas que
podem ser compreendidas como uma nova ciência do “espírito”, pois une a experimentação
científica às interrogações da filosofia, a partir da tentativa de compreensão das relações entre
cérebro, corpo e mente. As abordagens dos “filósofos-cientistas” cognitivos aqui apresentados,
ao abrigarem diversos campos de conhecimento, fortalecem uma articulação teórico-prática,
fundamental para a abordagem do problema da ação do ator, na atualidade. As disciplinas mais
diretamente ligadas às ciências cognitivas são as neurociências, a inteligência artificial, a
psicologia cognitiva, a lingüística cognitiva e a filosofia. A interação destes campos de saberes
vem provocando uma ruptura onto-epistemológica, incidindo numa profunda mudança na
compreensão que o ser humano tem de si mesmo, de sua natureza e comportamento.
O quadro epistemológico que Stanislavski e Grotowski nos delegaram, permite perceber
o estado natural de “indisciplina” que os estudos sobre o corpo-mente requisitam. As conexões
das questões próprias ao trabalho do ator àquelas discutidas no âmbito das ciências cognitivas
são inerentes ao campo epistemológico gerado pelas investigações de Stanislavski e Grotowski
acerca da ação, considerando que processos artísticos são, inextricavelmente, processos
cognitivos. A noção de disciplina não seria, como salientam Greiner e Katz (2005), capaz de
16
abarcar um campo de conhecimento tão complexo, e para tratar do corpomente, não basta juntar
conhecimentos disciplinares, o que comumente chamamos de trans ou interdisciplinaridade. A
condição do organismo vivo pede pela substituição da noção de disciplina pela de indisciplina,
na tentativa de nos aproximarmos do caráter dinâmico e processual da ação. Ao ressaltar as
ações orgânicas enquanto processos de comunicação, a teoria do corpomídia atua no sentido de
estabelecer diálogos entre áreas da comunicação e da cultura e suas alianças indissociáveis com
a natureza. Katz e Greiner (2005) destacam as ressonâncias entre a teoria do corpomídia e a
proposta de Muniz Sodré em Antropológica do espelho (2002) no que se refere à noção de
indisciplina. Quando as redes transdisciplinares são requisitadas como estratégias de pesquisa,
acabam virando indisciplinares, ou seja, um campo de desestabilização e subversão dos objetos
de pesquisa que se assemelham a “atratores ou buracos negros”, mas que, neste caso, são
capazes de nos aproximar do dinamismo necessário aos estudos do corpomente.
17
1 AS METÁFORAS DO CORPO EM AÇÃO
1.1 O método das ações físicas – a práxis proposta por Stanislavski e as contribuições de
Grotowski
Eis como abordo um novo papel. Sem qualquer leitura, sem
qualquer conferência sobre a peça, os atores são convocados
para ensaiá-la1. (STANISLAVSKI, 1995, p. 225).
Em meio à reação perplexa frente a sua proposição, o diretor Tórtsov, porta-voz de
Constantin Stanislavski para suas narrativas, insiste para que os atores executem pequenos
objetivos físicos por meio de ações, pesquisando sua lógica e consecutividade com sinceridade
e verdade mesmo sem terem analisado detalhadamente a personagem, como comumente
faziam.
Esta proposta contrapunha-se aos métodos de atuação já estabelecidos por tradições
teatrais anteriores e pelo próprio Stanislavski, e representa toda uma mudança de entendimento
das estratégias possíveis de conhecimento do ator no início do século XX. O diretor e pedagogo
argentino Raúl Serrano (2004), em sua obra Nuevas tesis sobre Stanislavski salienta que os
textos escritos por volta de 1934 (dentre eles o descrito na citação acima), e os quatro anos que
se seguem até sua morte reúnem um material inquestionável para a formulação de uma
pedagogia teatral de caráter mais científico, no sentido de sua sistematização. É quando
Stanislavski formaliza o método das ações físicas, um marco epistemológico indiscutível para
as teorias do ator contemporâneo.
As teorias de atuação de Stanislavski formam um sistema que pode ser analisado a partir
dos aspectos nomeados por ele como físicos e psíquicos, e a sua célebre trilogia os apresenta em
evolução. A preparação do ator aborda os aspectos mais subjetivos do processo do ator,
incluindo as investigações sobre a memória e o subconsciente. A construção da personagem,
como a metáfora arquitetural indica, define mais objetiva e tecnicamente alguns procedimentos,
onde a questão do corpo já ganha maior status, como a caracterização física, a forma de tornar
expressivo o corpo, o tempo-ritmo e plasticidade no movimento, a dicção e o canto, títulos estes
que abrem os capítulos do livro. Em A Criação de um papel os aspectos ditos subjetivos e
objetivos, físicos e psíquicos são mais claramente enunciados por Stanislavski como
1 Reflexões geradas nos ensaios de “O Inspetor Geral”, de Gogol.
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indissociados. Esta busca de unidade entre corpo e espírito é estabelecida por meio dos estados
conscientes e inconscientes, e é a ação física a estratégia para a ignição do trabalho do ator.
Stanislavski aborda, acima de tudo, a complexidade do organismo humano e seu sistema
de atuação não pode ser compreendido, plenamente, sem as conexões com as teorias
psicofísicas de sua época. Enfatizo que não é uma relação de causa e efeito, ou de filiação ou
influência de procedimentos da ciência na arte, ou vice-versa, mas do compartilhamento de
processos de conhecimento e hipóteses investigativas num determinado contexto. O diretor
russo elaborou questões ontológicas, filosóficas e epistemológicas sobre o trabalho do ator a
partir de procedimentos extremamente experienciais, e constantemente auto-avaliados,
provenientes da própria arte teatral, e que não se restringiam a uma abordagem teórica, no
sentido do estabelecimento de categorias gerais ou a priori2. “Arte não é ciência”, reconhece
Stanislavski (1995, p. 80), embora, para ele, o artista devesse buscar, constantemente, materiais
e conhecimentos na vida e na ciência.
As investigações junto a seus atores culminariam em novas diretrizes para os estudos a
respeito da interpretação do ator e, mais do que isso, para uma teoria do corpo. O seu sistema
apresenta uma consistente contribuição para os estudos do corpo e da ação, por meio de
questões sobre a relação corpo e mente e corpo e ambiente. As questões que Stanislavski (1989)
propôs possibilitam ao ator “trabalhar sobre si mesmo” e sobre a personagem3, apontando para
procedimentos a respeito de como o ator conhece e se conecta com o seu ambiente, se relaciona
com sua memória, imaginação, consciência, inconsciente e vontade, e altera seus estados
corporais e mentais.
O sistema de Stanislavski enfatizou a dimensão prática do trabalho do ator por meio do
problema mente-corpo, sendo as reflexões quanto ao método das ações físicas o ápice desta
dimensão.
Em outras palavras, não analisamos nossas ações com a razão,
friamente, teoricamente, mas as atacamos pela prática, do ponto
de vista da vida, da experiência humana [...] trata-se de um
processo de análise interior e exterior de nós mesmos, como
seres humanos nas circunstâncias da vida de nosso papel.
(STANISLAVSKI, 1995, p. 249).
2 Por a priori entende-se o enunciado tautológico ou analítico e por a posteriori a verdade empírica. De acordo com a noção kantiana, o conhecimento a priori é obtido pela razão pura, pelo raciocínio, anterior e independente da experiência (ABBAGNANO, 2000, p. 76). 3 Em Minha vida na arte, Stanislavski (1989) define seu método como dividido em duas partes: o trabalho do ator sobre si mesmo e sobre o papel.
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O método das ações físicas é enunciado por Stanislavski como o resultado das
investigações de toda a sua vida, após um período inicial de pesquisas relacionadas aos
processos emocionais. Porque ele utilizou o termo ação “física” ao invés de “psicofísica”? Esta
questão apontada por Richards (2001) importa na medida em que a busca de Stanislavski é
permeada, todo o tempo, pela união entre corpo e espírito, nas dimensões físicas e psíquicas do
ator. O termo ação física, no entanto, não pode ser entendido como exclusão ao que é
comumente descrito como não físico, mas a partir da premissa de que a entidade física carrega a
dimensão psíquica ou espiritual em sua própria operacionalidade, sendo possível ser
vislumbrada do exterior, ou seja, na ação do corpo.
Ao requisitar o comprometimento do corpo do ator na experiência, Stanislavski não
excluiu a necessidade do pensar ou do analisar, mas instaurou uma espécie de deslocamento da
atividade cognitiva. Ao invés da exclusiva análise por meio das operações eminentemente
cerebrais (o “frio” cérebro) ou mentais, ele propôs ao ator pensar com suas ações, ou seja,
pensar com todo o seu corpo. Esta formulação permite estabelecer conexões com as mais
recentes abordagens das ciências cognitivas, como veremos no decorrer deste estudo. O
conhecimento do que o corpo em ação experimenta e desencadeia favorece a construção de um
outro tipo de entendimento para os processos cognitivos, secularmente creditados a incidência e
hegemonia de uma mente (enquanto uma entidade imaterial) sobre um corpo que se faz
instrumento.
Não é sem motivo que a palavra drama é derivada de ação4, e o ator, visto como aquele
que age, posto que “a vida é ação”, enfatiza Stanislavski (1995, p. 63). Quando formula o
método das ações físicas o mestre russo admite que o corpo em ação fornece um caminho mais
natural e seguro para que o ator atinja uma postura cênica. Esta descoberta estava relacionada à
constatação de que não há controle sobre os sentimentos, sob o entendimento de que os
fenômenos do espírito são imateriais e evanescentes. Esta é, segundo Grotowski (1990), a
grande revelação do último período de investigação daquele que ele considerava como seu
mestre. Nos primeiros anos de pesquisa Stanislavski intensifica o enfoque sobre os processos
interiores, nomeando como “linha das forças motivas” da vida psíquica o trabalho sobre a
emoção e o sentimento. Isolados das suas causas naturais, as emoções e sentimentos deveriam
ser revividos através de um processo introspectivo e a mente e a vontade seriam as responsáveis
4 O drama pode ser definido etimologicamente como em ação, do original grego Spãua. Stanislavski (1995, p. 62) salienta que no sentido grego, a ação refere-se à literatura, à dramaturgia, à poesia, e não ao ator e sua arte. Ainda assim, o ator tem direito de apropriar-se da palavra.
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por desencadeá-los5. As emoções do ator estavam, para o diretor, ligadas a evocação de resíduos
da memória de suas experiências, passíveis de serem relacionadas as da personagem e em
circunstâncias dadas. Estas circunstâncias diziam respeito aos elementos, geralmente ditados
pelo texto teatral, referentes ao contexto existencial e histórico da personagem e aos demais
aspectos da encenação.
Com o método das ações físicas, o universo afetivo guardado na memória do ator e,
anteriormente, despertado por meio de processos mentais, passa a ser atualizado pelo corpo. O
ator é motivado a responder a questão do “reviver” experiências “organicamente”, através da
improvisação de ações físicas. Ainda assim, adverte Isaacsson (2004), não significa que
Stanislavski tenha afirmado, categoricamente, que a ação gera a emoção, mas que os afetos
podem ser estimulados pelo corpo. Não por um movimento qualquer, mas pela compreensão
das razões e impulsos que motivam as ações. Stanislavski afirma que a ação física é a chave
para as emoções e a esfera criativa do ator, na medida em que percebe que os aspectos físicos e
espirituais possuem elos indissociados. Vinculada ao corpo, a noção de memória das emoções é
estendida, posteriormente, para a memória das sensações, fruto da experiência dos sentidos.
A afirmação da opção metodológica via ações não parece ter sido de fácil aceitação
inicial, em sua época. A idéia de que “uma série simples de ações físicas, realísticas, tem a
capacidade de engendrar e criar a vida mais elevada de um espírito humano em um papel”
causava estranhamento até entre os seus atores, já que o próprio diretor, anteriormente,
orientava-os a penetrar nas vias do sentimento através da memória afetiva (STANISLAVSKI,
1995, p. 250). É conhecida a consonância inicial de Stanislavski com as teorias do psicólogo
francês Théodule Ribot (1839-1916) a respeito das emoções e da memória, cuja nova
abordagem aproxima-se das ciências biológicas, tema este que será abordado com mais
profundidade no capítulo 4.
A análise das ações físicas era realizada nas circunstâncias determinadas da personagem
e pressupunha não a participação exclusiva do cérebro, mas o comprometimento de todo o
organismo, via ação: “Vocês estarão em movimento e não parados num só lugar, ou pensando
nas coisas com o seu intelecto. Vocês estarão em ação”, argumenta o mestre russo ao salientar a
importância de criar a vida física do papel (STANISLAVSKI, 1995, p. 245). O conhecimento
adquirido pelos atores nos primeiros anos de investigação, através da análise via intelecto e
emoção, e realizados nos exaustivos trabalhos de leitura de mesa parecia afastá-los, de alguma
5 O período da Linha das Forças Motivas corresponde ao do Teatro de Arte de Moscou, fundado juntamente com Dântchesko, em 1898, quando Stanislavski toma contato com autores contemporâneos como Tchékhov, ao da experiência com o Estúdio de Ópera. Fundado em 1918, este Estúdio propiciou a experimentação com elementos que culminariam no método das ações físicas.
21
forma, da possibilidade de um conhecimento encarnado, só possível através do corpo em ação.
O que não quer dizer que Stanislavski teria negado totalmente a etapa do trabalho de mesa, ao
propor o método das ações físicas. O que houve foi um desmanche dos limites e da seqüência
entre estes dois processos, o de, primeiramente, “sentir e analisar o papel” e a posterior
“corporificação” da lógica e consecutividade do personagem na ação6.
Para o diretor russo, a mais simples ação física obrigaria o ator a criar “toda sorte de
ficções imaginarias, circunstâncias propostas e ‘ses’”, demonstrando que a nova abordagem
metodológica absorvia as suas descobertas anteriores (STANISLAVSKI, 1995, p. 250). O
“como se” faria o ator se aproximar do universo da personagem, perguntando-se o que e como
faria se estivesse nas circunstâncias deste. O acesso físico ao papel agiria como uma espécie de
“isca” para fisgar o sentimento criativo, este mais difícil de manejar, mais “esquivo, efêmero e
caprichoso” (STANISLAVSKI, 1995, p. 162). A iniciação física dos papéis atenderia às ordens,
aos hábitos e à disciplina. Sendo mais “material”, o corpo é “convocável”, admite o mestre
russo, ao contrário dos processos mentais e do sentimento, que para ele pertenciam a uma esfera
mais imaterial. Se as ações elaboradas pelo corpo fossem vividas sinceramente, com sentimento
de fé e verdade, a “vida espiritual” do papel emergiria (STANISLAVSKI,1995, p. 169).
Na concepção de Stanislavski, as ações são elementos do comportamento, ações
elementares verdadeiramente físicas, mas ligadas ao fato de acionar outras ações. Grotowski
(apud JIMENEZ, 1990, p. 493) exemplifica por meio de uma cena hipotética, que demonstra
um jogo de forças contraditórias: “Olho nos olhos do outro, trato de dominar. Observo que está
contra. Não olho, porque não encontro em mim os argumentos”. Todas as forças elementares do
corpo se orientam em direção a si mesmo e a alguém, como escutar, olhar, atuar com um objeto,
encontrar os pontos de apoio etc. A questão do ritmo também contribui para a consolidação da
ação física, na medida em que Stanislavski (1989, p. 81) percebia que era um elemento
unificador da palavra e do gesto, o que chamou de um tempo-ritmo interno e espiritual, mais do
que um tempo-ritmo físico externo.
Muitos fatores determinaram o direcionamento de Stanislavski para uma pedagogia do
corpo. Serrano (1996) aponta para as prováveis implicações políticas, pois a afirmação da
materialidade do corpo estava próxima da formulação marxista, que sustentava a necessidade de
começar o trabalho a partir das questões materiais e visíveis, para, só então, criar as condições
para a aparição da vida espiritual e, mais especificamente, para o mestre russo, da vida
subconsciente. Importa salientar o ambiente no qual ele estava inserido, dado que a União 6 “Não estou contra as discussões em si, nem tampouco contra o trabalho de mesa, mas contra realizá-lo no tempo indevido. Tudo tem que ter um tempo”. (STANISLAVSKI apud JIMENEZ, 1990, p. 242).
22
Soviética, neste período, tinha o marxismo como filosofia oficial. O método das ações físicas
pode, de certa forma, ter respondido a estas demandas materialistas, associado aos estudos do
fisiologista russo Ivan-Petrovitch Pavlov (1849-1936), cuja concepção biológica do
comportamento teria fornecido argumentos para a leitura russa do materialismo dialético.
A concepção do método das ações físicas (com a convicção de que os elementos
espirituais e físicos dos processos de criação estavam irremediavelmente ligados) se devia tanto
às reflexões sobre a própria prática artística de Stanislavski e o contexto estético da produção
teatral russa dos anos 20 e 30 do século XX (incluída aí a sua iniciativa em direção às idéias de
Vsevolod Meyerhold (1874-1940), um de seus alunos mais brilhantes) quanto à contaminação
por uma visão materialista de mundo e pela doutrina dos fisiologistas russos. Pidoux (1986,
p.114) chega a afirmar que a concepção stanislavskiana de que o gesto pode suscitar o
sentimento é baseada numa ontologia científica – numa espécie de “determinismo behaviorista”
- e não sobre uma reflexão estética, e que seria menos flexível, processual e sutil que a de seus
alunos (Meyerhold e Vakhtangov), que estariam mais avançados nesta pesquisa.7 O
behaviorismo define os estados mentais em termos de suas conexões com circunstâncias e
comportamentos publicamente observáveis. O “behaviorismo filosófico” afirma que “falar
sobre emoções, sensações, crenças e desejos não é falar sobre episódios espirituais interiores,
mas um modo abreviado de falar sobre padrões de comportamento, potenciais ou reais”.
(CHURCHLAND, 2004, p. 49) Neste sentido, os estados mentais poderiam ser “parafrazeados”
a partir de uma sentença sobre que comportamento iria resultar se a pessoa estivesse numa
circunstância observável qualquer. Em detrimento da critica behaviorista e suas implicações,
que aprisionaram o comportamento e as ações a uma moldura mais determinista, e as possíveis
pressões políticas provenientes do materialismo soviético, uma leitura mais contemporânea
acerca das relações entre os fenômenos físicos e psíquicos por meio das ciências cognitivas
revela que as hipóteses de Stanislavski eram legítimas, como buscaremos salientar neste estudo.
Ele não negou a introspecção, o que foi alterada foi a estratégia de acesso a ela.
Tais relações políticas, bem como outras implicações culturais e sociais mereceriam um
estudo à parte. O surgimento de um teatro tendendo aos aspectos da “materialidade” do corpo
do ator não se apresentava como fato isolado, e se manifestava nos inúmeros procedimentos e
técnicas corporais que transformavam a moda, as artes, as ciências e os desportos nas primeiras
décadas do século XX (NUNES, 1996). O foco deste estudo direciona-se, especificamente, para
as questões formuladas por Stanislavski e as práticas cognitivas decorrentes de sua incansável 7 O “parentesco” entre o método das ações físicas e a biomecânica concebida por Meyerhold se fortaleceu a partir do compartilhamento das idéias provenientes das teorias dos reflexos condicionados, como salientaremos ainda neste capítulo.
23
busca em relacionar os aspectos psicológicos (ou espirituais) e os físicos do trabalho do ator,
especialmente àqueles que geraram o método das ações físicas, e suas implicações na pedagogia
do ator. Tais formulações seriam retomadas e repensadas por Grotowski.
Há um processo complexo que envolve vários níveis do aparato cognitivo na ação de
um corpo no mundo. Stanislavski percebeu que o conhecimento do ator envolveria um ponto de
vista da experiência, um modo especial de práxis8. O que o ator conhece não se resume a
conceitos e idéias separadas de uma prática, pois é o corpo como um todo que aprende enquanto
age. O entendimento do conceito de ação e, mais do que isso, a sua “encarnação”9 enquanto
conhecimento no corpo é apontado como um dos desafios mais instigantes na prática do ator.
Os momentos de desamparo e dúvidas na geração de ações justas e orgânicas para as
personagens sempre ocorrerão, já advertia Stanislavski (1995), não importa quantos papéis o
ator já tenha construído.
Embora ciente da dificuldade de retirar do ator seu modo de pensar analítico ou
dedutivo, Grotowski (1992) também requisitou um ator que pensa com o corpo, ou melhor, com
suas ações. Um pensar-em-ação, ou pensar-em-movimento mais próximo de uma organicidade
proveniente do corpo em ação em tempo presente. A mente discursiva, para Grotowski,
classificaria demasiado e prenderia o fluxo das ações no mundo. O conceito de pensamento
passa a ser entendido enquanto uma ação experienciada no mundo e não somente processo que
requisita uma mente ou razão separada, a “razão pura ou nobre” enfatizada historicamente pela
filosofia ocidental. Este tipo de entendimento de corpo e pensamento aproxima o fazer teatral
das teorias das ciências cognitivas aqui apresentadas.
Não seria possível conhecer senão partindo do que se faz, a partir deste operar recursivo
entre o sujeito e o meio. O corpo e sua ação, portanto, significam a condição para o processo
cognitivo. Grotowski, por sua vez, deixou claro que o essencial é que tudo deve vir do corpo.
Primeiramente, o ator deve reagir fisicamente a tudo que o afeta. Antes de reagir com a voz,
deve-se reagir com o corpo. E o pensamento não se encontra separado, mas se funde na ação do
corpo.
8 Relevamos neste contexto a práxis no seu sentido arcaico grego, que significa ação, prática, o que o homem faz (BURNS, 1990), e menos como a terminologia marxista a designou, enquanto o conjunto de relações de produção e trabalho que constituem a estrutura social. Na filosofia marxista, a práxis permite ao homem, pelo seu trabalho, transformar a natureza, transformando-se também a si mesmo, numa relação dialética. (ABBAGNANO, 2000). 9 O sentido de encarnação empregado não se refere a algo imaterial que adentra o corpo, mas a corporificação, ou no termo inglês embodied das idéias, no sentido de algo que se torna conhecimento no corpo a partir da ação deste no mundo envolvendo o sistema sensório-motor.
24
Se se pensa, deve-se pensar com o corpo. No entanto, é melhor
não pensar, e sim agir, assumir riscos. Quando falo em não
pensar, quero dizer não pensar com a cabeça. Claro que se deve
pensar, mas com o corpo, logicamente, com precisão e
responsabilidade. Deve-se pensar com o corpo inteiro, através de
ações. (GROTOWSKI, 1992, p. 174).
Considerando que é a ação do ator que conecta os elementos da atuação e a sua
constituição é um processo de conhecimento, o tipo de práxis a que o ator está sujeito pede por
uma estratégia de conhecimento onde o pensamento se dá no processo acional, ou seja, como
salienta Grotowski (1992), num pensar em ação. Hoje quase todas as teorias cognitivas que
pesquisam estas questões não duvidam das implicações sensório-motoras e da fisiologia dos
estados mentais e da correlação dos processos do corpo e da mente, mas ainda é possível
detectar discursos e práticas artísticas que tratam o corpo como um instrumento de uma
entidade imaterial e desencarnada (mente, alma ou espírito) e o pensamento separado do corpo.
A extrema oposição entre matéria e mente, a algum tempo, foi abandonada pelas ciências da
mente e um novo entendimento da relação corpo e mente requer o abandono da decantada idéia
cartesiana de distinção abissal entre a mente e o corpo, da nítida divisão entre percepção,
cognição e ação e da separação entre pensamento e ação.
O ator do início do século XX precisou se convencer de que tinha todo um corpo
expressivo, além das mãos e do rosto para “espelhar sua alma”, e desenvolveu técnicas para
poder “instrumentalizá-lo” devidamente. O movimento recuperou a importância frente aos
outros elementos teatrais e, a partir de então, o ator direcionou o seu ofício para as ações do
corpo através de inúmeras técnicas que se desenvolveram para este fim. Estava o ator, estava o
seu corpo, evidentemente. Mas, ainda, um corpo comandado por um “piloto fantasma”, mesmo
que dedicado. Já detectada por encenadores como Eugênio Barba, a metáfora mecanicista não
deveria se sustentar mais: “[...] o corpo não é um instrumento, não é algo que alguém possa
forçar a se expressar” (BARBA, 1994, p. 92). O corpo não pode ser plenamente manipulado ou
controlado por um comando central mental a priori, posto ser um “ente-em-vida”, em constante
estado de instabilidade e auto-organização, segundo uma complexa rede de conexões
distribuídas por todo o organismo. O ator não tem um corpo. Ele é o seu corpo, e para entendê-
lo, há que contemplá-lo em ação, em vida.
Quando valorizou os impulsos internos e o fluxo das ações, Stanislavski buscou romper
com a visão mecanicista, aproximando-se da visão vitalista. A noção de organicidade da ação
25
física ganha implicações ainda maiores com as investigações efetuadas por Grotowski (1990). A
vitalidade e seu circuito interno de sensações, impulsos e afecções, próprios aos sistemas
orgânicos, tornaram-se a chave para o contraponto aos resquícios de uma atuação mecânica, no
sentido de uma previsibilidade e literalidade, observada na repetição de gestos e padrões mais
fixos de representação. A noção de organismo e de organicidade, contudo, não pode ser
entendida longe de sua oposição à noção de máquina e de mecanismo, pois ambas são figuras
de organização e harmonia do universo e do homem. (SCHLANGER,1971, p. 59).
Até mesmo Vsevolod Meyerhold (1874-1940), o genial “discípulo” que se oporia às
idéias introspectivas iniciais do mestre Stanislavski reconheceu as armadilhas decorrentes da
analogia à precisão e organização da máquina. O “defeito do mecanicismo”, de acordo com
Meyerhold (apud HORMIGÓN,1992, p. 291), “[...] consiste em haver estudado com a maior
seriedade a personagem, mas privá-lo de sua alma, de modo que o ator começa a tomar uma
espécie de estado definitivo e a recorrer a procedimentos acrobáticos. O ator se transforma,
assim, em um fantoche”. Uma interpretação mecanicista estaria ligada ao fato de o “cérebro
humano estar adormecido, então os reflexos normais atuam por si sós”. (MEYERHOLD apud
HORMIGÓN,1992, p. 291).
As propostas do sistema biomecânico, enunciadas por Meyerhold em 1922, foram
apresentadas, de acordo com ele, muitas vezes como uma “falsa luz”, e reduzidas a uma função
estética. O ator biomecânico deveria conhecer as leis rítmicas e espaciais do corpo,
desenvolvendo capacidade de reação a estímulos externos, mas os exercícios deveriam ser
propostos com uma clara função pedagógica. Tampouco a agilidade e a precisão do movimento
deveriam se eximir de motivações relacionadas a personagem, sua psicologia e a idéia geral do
espetáculo.
[...] não treinamos somente a fisiologia, mas também o cérebro, e
não se trata de um simples treinamento, mas de uma visão
dialética do treinamento [...] Não fazemos uma distinção entre a
matéria espiritual e física, como os vitalistas e os mecanicistas
[...], o ator para nós não é somente um corpo, o ator para nós é
um tribuno, um filósofo. (MEYERHOLD apud CHAVES, 1999,
p. 130).
Na abordagem das ações físicas, Stanislavski (apud JIMENEZ, 1990, p. 253) chamava a
atenção para os clichês e a atuação “mecânica”: “[...] evitem ‘atuar’ simplesmente, recorram ao
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‘o que faria?’. Isto produzirá em vocês a necessidade interna da ação”. A resposta viria pelo
comprometimento do corpo em ação ao fisgar os conteúdos internos. Stanislavski afirmou a
natureza extensa e material do corpo, posto que é, incomparavelmente, mais “sólido” e pode ser
“convocado”, opondo-o a natureza intangível de estados internos como os sentimentos. Não
obstante a esta atribuição dualista, sua busca pela unidade corpo-alma, quando concebeu o
método das ações físicas, atribuiu ao corpo em ação uma possibilidade de desencadeamento de
processos antes creditados, exclusivamente, aos processos mentais. A concepção dos primeiros
anos de pesquisa de Stanislavski estava impregnada de aportes espiritualistas, contaminada,
inclusive, pelas filosofias orientais. A “comunicação teatral”, termo que ele utilizava no
período, dos atores de sua época era visto como algo fundamentalmente espiritual e a cargo das
emoções e sensações, sendo os planos imateriais e os corporais definidos e separados. Serrano
(1996) enfatiza que esta concepção cartesiana de corpo foi sendo modificada na medida em que
o diretor russo avançava no método das ações físicas.
As observações de Stanislavski apontavam para o fato de que a repetição das ações
engendrava, cada vez mais, um fio contínuo e ininterrupto das ações, o que ele chamou de
“linha do ser vivo”. O ser físico do papel, contudo, já criava a entidade espiritual, por sua conta
e independente da vontade e consciência. Quanto mais os atos físicos eram realizados, mais
definida ia se tornando a linha espiritual. Stanislavski (apud JIMENEZ, 1990, p. 253) utilizava a
metáfora da fertilidade das sementes para explicitar esta relação, uma vez que, “[...] quanto mais
idéias imaginativas o ator criar, mais elas cobrarão vida e se fundirão com a entidade física, ao
mesmo tempo em que evocarão novas ações”. Afirma, ainda, Stanislavski (1995, p. 239) que
“em toda ação física, a não ser quando é puramente mecânica, acha-se oculta alguma ação
interior, alguns sentimentos”. Assim se formariam os dois planos da vida de um papel – o
interior e o exterior. O interior suscita a metáfora da organicidade e o exterior a da
mecanicidade. A atuação justificada se oporia à atuação mecânica.
As idéias de Stanislavski aparentam, a princípio, uma dualidade nas relações entre corpo
e espírito, interior e exterior, mas um olhar mais acurado revela a sua incansável investigação
das conexões entre aos fenômenos materiais e imateriais da conduta humana. A conclusão a que
ele chega é que, apesar de serem substâncias distintas, há um elo entre o corpo e alma que é
indissolúvel. E que os aspectos materiais e extensos do corpo também dão ignição e legitimam
os processos criativos próprios à entidade espiritual.
A abordagem dualista do problema mente-corpo sustenta que a natureza da mente e da
inteligência consciente, ou da alma ou espírito, está em algo não físico, e que não pode ser
compreendido ou reduzido em termos dos conceitos das ciências físicas. Esta qualidade não
27
física, é independente mais se conecta aos corpos físicos. O filósofo René Descartes (1596-
1650), mais do que Platão, formatou o chamado dualismo da sustância. A teoria cartesiana
instituiu uma importância não somente para a substância pensante, por meio do célebre “penso,
logo existo”, mas para a substância material, que ocupa extensão no espaço. Porém a substância
mental restou ainda ausente de atributos físicos. Descartes foi um dos filósofos e fisiologistas
mais entusiásticos e criativos de sua época, defensor de uma filosofia “mecânica”.
(CHURCHLAND, 2004, p. 27).
Para Descartes, o “eu” não é o corpo material, mas a substância pensante, que ele
considerava como imaterial e não espacial, localizada dentro da cabeça. Mas um problema já se
impunha a Descartes: se a substância mente é diferente da substância corpo, como se daria a
influência causal da substância incorpórea sobre a matéria? Descartes acomodou o problema
sugerindo que eram os “espíritos animais”, uma substância material muito sutil, que transmitia a
influência da mente sobre o corpo. A máquina do corpo seria movida pela alteração dos
movimentos dos espíritos, cabendo a estes abrir espaços no cérebro. O contato direto entre as
duas substâncias se daria por meio da glândula pineal, a única parte do cérebro capaz de unificar
as imagens dos sentidos, por não possuir a conformação dupla comum à estrutura cerebral e aos
órgãos do sentido (olhos, mãos, orelhas).
Atualmente, não seria mais possível afirmar a ausência de extensão da mente, tampouco
a extensão da matéria. Se, por um lado, a mente tem sido entendida pelas ciências como
encarnada, as partículas da matéria, como os elétrons, por outro, têm sido descritas, há algumas
décadas, após o advento da física quântica, como partículas pontuais sem extensão nem posição
definida no espaço. A separação entre mente e corpo por meio da categorização de substâncias
tornou-se tênue, mas a teoria do “fantasma na máquina”10, cujo corpo é visto como um
mecanismo comandado por uma substância misteriosa de constituição totalmente diferente,
ainda assombraria as teorias teatrais. A idéia do corpo como instrumento conforma as metáforas
corpo-máquina e corpo-organismo, dando suporte para as noções de mecanicidade e
organicidade nas ações físicas do ator.
1.2 Genealogia da metáfora
Antes de analisar as implicações das metáforas mecanicistas e vitalistas na construção
da ação física do ator, desenvolvida por Stanislavski, saliento o diferencial do conceito de
10 Gilbert Ryle (1949), em O conceito de mente, faz uma crítica ao dualismo fazendo alusão à metáfora do fantasma na máquina.
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metáfora aqui empregado, pois rompe com o consolidado enfoque ditado pela tradição retórica
ocidental. A década de 1970 marcou o início do deslocamento dos estudos sobre a metáfora do
campo da linguagem para a sua inserção no campo da epistemologia e da psicologia cognitiva.
A metáfora passa a ser entendida não somente como padrão de pensamento e organização da
linguagem, mas como estruturadora da própria atividade cognitiva, proporcionando ignição aos
atos do corpo. O sentido de metáfora que está na etimologia grega – transporte ou transferência
de significado com base numa analogia, ou seja, atribuir a uma coisa um sentido que pertence à
outra coisa – não ocorreria somente no emprego sedutor e eloqüente da palavra, mas na forma
de pensarmos e agirmos como um todo11. No caso da metáfora mecanicista, o corpo é visto
como instrumento da alma, ou o corpo é uma máquina, sendo que as propriedades e
procedimentos próprios ao funcionamento das máquinas e a noção de instrumento são
transportados para o ambiente orgânico.
O lingüista George Lakoff e o filósofo Mark Johnson instauraram de vez o novo
entendimento demonstrando que a metáfora faz parte da vida cotidiana e que é essencial para a
conceitualização do mundo. Desde a Antiguidade a aplicação figurada da palavra e as regras de
eloqüência da retórica colocaram a metáfora no campo da emoção e imaginação, vista como
algo “subjetivo” e longe, portanto, da explicação “objetiva” das coisas. O novo entendimento de
metáfora une razão e imaginação, oferecendo uma alternativa à oposição entre concepção
objetiva e subjetiva. Ela é, neste sentido, uma racionalidade imaginativa, ou seja, uma forma
imaginativa da racionalidade imprescindível a nossa conceituação do mundo (LAKOFF;
JOHNSON, 2002, p. 304). Os conceitos estruturam nossa percepção e comportamento no
mundo, e estes processos de organização do pensamento são, em grande parte, metafóricos.
Johnson estabeleceu na década de 1980 uma relação entre corpo, movimento e
conhecimento tendo as metáforas como desencadeadoras dos processos cognitivos. Partindo dos
estudos da lingüística os dois pesquisadores iniciaram uma investigação do que Johnson
chamou de “corpo na mente” (the body in the mind) (Greiner, 2003, p. 142). A origem motora
das metáforas diferenciaria estas relações. De acordo com Lakoff e Johnson (1999) para evocar
quaisquer questões usualmente creditadas ao ato de volição, usamos uma razão formatada pelo
corpo, por uma cognição inconsciente que não temos acesso direto e pensamentos metafóricos,
ou seja, conexões neurais associadas à experiência sensória motora, o qual nós pouco
11 Até mesmo os mais recentes estudos críticos sobre a Retórica já sinalizam que as chamadas figuras ou artifícios de elocução não são apenas manipulações verbais enumeradas a maneira de um catálogo, mas surgem em relação a procedimentos de pensamento e a um contexto de todo o enunciado (BARTHES, 2001).
29
percebemos. Para compreender as coisas e agir no mundo categorizamos experiências, objetos e
pessoas e estas categorias, antes de serem conceitos estabelecidos, emergem diretamente de
nossa experiência na interação de nossos corpos com o ambiente. A estruturação de nossa
experiência por meio da metáfora se manifesta nas ações cotidianas e nas ações ficcionais da
arte, evidentemente, e se dá de forma consciente e inconsciente. Mesmo subterraneamente é
possível vislumbrarmos campos metafóricos reincidentes na relação do corpo com o ambiente.
Do amplo estudo sobre a metáfora, interessa para este estudo captar as maneiras com
que certas metáforas nortearam o conceito de corpo e a formulação da ação física no
pensamento de Stanislavski e Grotowski. As metáforas enunciadas no discurso de ambos
provinham de uma práxis intensa e sistemática junto aos atores. Stanislavski (1995, p. 245), ao
expor sua nova metodologia através do método das ações físicas, se valeu de metáforas tais
como as coisas do espírito “são evanescentes” para falar da não confiabilidade dos sentimentos
no trabalho do ator e da imagem de “trilhos sólidos” para falar da concretude e materialidade
das ações físicas. Desta forma, a “vida espiritual” deveria ser acessada por intermédio da
“entidade física”. Mas há outros princípios metafóricos reincidentes que estruturam a visão de
corpo e a noção de ação física, como veremos mais adiante.
O que é mais importante, de acordo com Lakoff e Johnson (2002), não é somente que
temos corpo e que nosso pensar é, de alguma forma, incorporado, mas sim que a natureza
peculiar de nossos corpos molda nossas possibilidades de conceituar e categorizar. Um conceito
incorporado é uma estrutura neural que faz parte ou usa o sistema sensório-motor do nosso
cérebro12 e, neste entendimento, a categorização que efetuamos a fim de compreendermos e
agirmos no mundo não seria uma atividade mental “pura” e desencarnada que se aplica a priori,
condicionando o conhecimento intelectual e a própria experiência. A categorização, este
instrumento conceitual de investigação e expressão lingüística e comportamental, não é produto
de uma consciência separada, mas da participação do aparelho sensório-motor. A formação de
conceitos e categorias é experiencial. O pensar-em-ação proposto por Stanislavski e Grotowski
não implica somente em caminhar ao pensar, ou mover o corpo enquanto se racionaliza sobre
algo, mas significa que o processo que nos permite pensar e criar categorias e metáforas
requisita o aparelho sensório motor representado em regiões localizadas no cérebro. O que
implica, por exemplo, que ao realizar uma ação física – que envolve necessariamente o sistema
motor, o ator aciona, simultaneamente, circuitos responsáveis pelos processos emocionais e
racionais.
12 Traduzimos o termo em inglês embodied como incorporado. (LAKOFF ; JOHNSON, 1999, p. 20).
30
Outro aspecto a considerar é que somente uma pequena porcentagem de nossas
categorias é formada conscientemente, pois é impossível termos controle sobre todo o processo.
Mesmo quando pensamos que estamos controlando deliberadamente a categorização e
conceituação do mundo, nosso inconsciente está agindo metaforicamente. Nem sempre
percebemos que expressões e ações são metafóricas, e elas certamente agem sobre nossa
concepção de mundo. Metáfora tais como corpo é instrumento, atuação mecânica, mente como
computador, linha espiritual, presença orgânica ou corpo como máquina se naturalizam nos
discursos teatrais, mesmo naqueles mais atentos às armadilhas dualistas, pois muitas destas
formulações estão impregnadas de conceitos questionáveis, na atualidade, no que se refere ao
problema corpo-mente.
A nossa experiência, de acordo com Johnson (1987), é estruturada através do
embodiment de certos esquemas de imagens sinestésicas. Um deles é o esquema do recipiente
ou contêiner, que consiste na distinção de fronteiras entre o dentro e o fora. Aparentemente
separados do mundo por meio da superfície de nossa pele, vemos o mundo como fora de nós.
Conceitualizamos uma infinidade de atividades em termos desta imagem e, mais do que isto,
entendemos e experienciamos nosso próprio corpo como contêiner. Dos comportamentos da
vida cotidiana aos cênicos, toda coisa inicia ou está sempre dentro ou fora de um determinado
contexto, no interior ou no exterior ou no máximo, na fronteira entre ambos. Experienciamos a
nós mesmos como entidades separadas do mundo e, mesmo que não haja fronteiras definidas,
quando o tato e a visão não dão conta de averiguar, temos a propensão de projetar contornos e
limites.
Das tantas metáforas que surgem no processo de formação do ator e que interferem no
“trabalho sobre si mesmo” e na materialização das ações, está a mais antiga e difundida
concepção de corpo: a que o considera o instrumento da alma. Desta visão instrumentalista se
originam as metáforas do corpo-máquina e do corpo-organismo, e que conformariam o conceito
de ação física. O próprio conceito de mente separada do corpo é um conceito metafórico
baseado no princípio do corpo como recipiente de uma alma ou mente desencarnada.
1.3 A metáfora do corpo como instrumento
As descrições de caráter mecanicista e organicista do corpo se mostram no discurso
artístico de maneira, muitas vezes, explícita, com referências incontestes à visão do corpo como
máquina, marionete ou instrumento, outras vezes, de forma sutil ou, até mesmo, involuntária.
Mais do que presentes no discurso verbal ou escrito, as metáforas estão incrustadas nas formas
31
de ação e sustentam o comportamento humano em geral. A metáfora do instrumento conforma a
idéia de que alguém ou algo de fora manipula e coordena as atividades de dentro. A do corpo
como máquina, embora reivindique o entendimento de uma estrutura autônoma que se mantém,
ainda requisita algo de fora que lhe legitime. Já o termo organismo submete sua estrutura
biológica às leis mecânicas, com as noções de harmonia e organização das partes, em função de
um todo.
O conceito de alma descrito no Phaedrus de Platão (428-348 a.C) introduz as primeiras
concepções ocidentais sobre controle e coordenação, localizando na alma o princípio gerador do
movimento. Platão afirma que o que faz mover o corpo, a alma, é imortal. Ou seja, a distinção
entre a natureza material do corpo e imaterial da alma se encontra na gênese do conceito de
movimento e de ação. Platão define a alma como independente de sua ligação ao corpo. Mas,
contrariamente a perspectiva separatista de Platão, Aristóteles considera a alma ligada
fundamentalmente à atividade do corpo, ainda que não misturada a ele. Segundo uma
perspectiva biológica e metafísica e admitindo a união entre coisas sensíveis e formas, afirma
que é a alma que forma o corpo (QUILLIOT, 2003). Interessado em observar e descrever o
comportamento físico dos vivos, do animal ao homem, Aristóteles estuda as funções do
organismo segundo a perspectiva da união existencial da alma e do corpo.
Aristóteles (apud ABBAGNANO, 2000, p. 21) mantém a visão do corpo como “certo
instrumento natural” da alma; sendo a alma o princípio primeiro do movimento. O machado é o
instrumento de cortar; mas não se assemelha totalmente ao organismo, visto que o corpo “tem
em si mesmo o principio do movimento e do repouso”. Embora diferencie o corpo dos
instrumentos não vivos, o princípio aristotélico não reconhece que este possa se mover, causar
ou mudar a si mesmo, condenando o corpo a instrumento de algo fora dele, ao invés de agente
de seu próprio processo. Os movimentos ocorreriam pelo atrito dos átomos a partir de uma
força causal externa, e não a partir de uma causa interna ou própria ao corpo. O estado do
organismo dependeria de algo fora dele, pois nem o corpo, tampouco a alma poderiam causar a
si mesmos. O princípio ativo do movimento do animal e do homem necessita de algo externo;
um animal feroz necessita da imagem externa de uma gazela para que sua alma, até então
passiva, cause o movimento interno do corpo, igualmente passivo (JUARRERO, 2002, p. 18).
Na antiguidade clássica, a metáfora sobre o movimento humano era a do ser vivo. A
idéia de uma natureza inanimada surgiria somente no século XVI, possibilitando a noção de
corpo como máquina. Aristóteles diferenciou o movimento vivo do movimento de uma
marionete, pois a manipulação de cordas do inanimado provocaria um movimento determinado.
Já o movimento do ser vivo apresentava variações, conforme a natureza. Todo ser se move por
32
algo, e este movimento é sempre algo distinto do movido.
O termo organismo deriva etimologicamente do radical grego organon, e designa o
corpo vivo naquilo que o distingue do corpo não vivo. A idéia de totalidade é a principal
característica na noção de organismo, e se determina pela sua estrutura finalista. Formulado
primeira vez por Aristóteles, o conceito de organismo associa-se igualmente à noção de
ferramenta, pois “o corpo, que é um instrumento como o machado – visto que cada uma de suas
partes, assim como sua totalidade, tem uma finalidade própria, da mesma forma que o
machado” (ARISTÓTELES apud ABBAGNANO, 2000, p. 732). Nesta noção, a estrutura do
organismo subordina-se à sua função, isto é, sua finalidade de sobreviver como organismo.
Cada parte do corpo tem um fim próprio, uma ação específica, e se subordinam ao todo.
A partir de Aristóteles, o conceito de fim fundamenta a noção de organismo, e
permanece quando Descartes considera o organismo como uma máquina. Um relógio ou
qualquer outra máquina também tem seus fins, e o organismo, ao ser comparado a ela, reafirma
sua finalidade. Contudo, para Descartes, a estrutura finalista do organismo não depende de uma
força exterior a ele, a alma, como pensavam Aristóteles e Platão, mas da coordenação de suas
partes, ou seja, da organização, tal qual um autônomo. O corpo cartesiano é uma configuração
articulada de órgãos, mas que dispensa a alma para impulsionar o seu movimento.
As relações de causa e efeito e a explicação de qualquer coisa, incluso o comportamento
humano, desde Aristóteles, requer a identificação do papel que cada causa desempenha. O
desenvolvimento de potencialidade em atualidade é um dos aspectos centrais na filosofia de
Aristóteles, e é explicada em termos das quatro causas que fazem gerar as coisas no mundo:
a) a causa material (elementos e substância segundo os quais algo é criado);
b) a causa eficiente (as forças e os meios pelos quais o objeto é criado);
c) a causa formal (a expressão e totalidade do que o objeto é);
d) a causa final (a finalidade para a qual foi criada a coisa, para a qual tende).
Tomemos o clássico exemplo de uma escultura em mármore. A causa material é o
elemento mármore, que conteria a potencialidade da estátua em sua massa amorfa. A causa
eficiente é a ação do escultor, que transforma o mármore em forma. A causa formal é a idéia da
escultura completa e que existe como plano na mente do escultor. A causa final é o propósito
para o qual a escultura aponta ou se dirige.
O entendimento aristotélico de que o organismo não causa a si mesmo e depende de
fatores externos, associados à concepção mecânica newtoniana (e da filosofia moderna) de que
a causalidade é o impacto de forças externas na matéria inerte teve reflexos incalculáveis nas
teorias sobre ação e movimento. O conceito tradicional de ação na filosofia, assim como em
33
determinadas teorias teatrais do ator, carrega ainda a noção clássica de causalidade e efeito.
Gerada no âmbito da filosofia, a teoria da ação busca marcar limites entre a ação e a não ação, o
comportamento voluntário e o não, e a relação entre consciência e comportamento, já
sinalizadas por Aristóteles na Ética a Nicômaco.
Salienta Juarrero (2002), que muitos enganos persistirão até a teoria da ação abandonar a
visão mecânica da causalidade. Em detrimento das mudanças de pensamento sobre o corpo e
suas aptidões cognitivas, a herança de Platão e Aristóteles, aliada à visão iluminista e ao
dualismo cartesiano corroborarão para a permanência da idéia de que o corpo é um instrumento
de algo fora dele mesmo, seja nos seus procedimentos naturais como em suas habilidades
culturais. Este pensamento gerou a metáfora do “fantasma na máquina”, que advoga que somos
habitados por uma alma imaterial, e que não pode ser reduzida a funções cerebrais. A
neurociência nos mostra, hoje, que todos os aspectos da vida mental, como emoção, sentimento,
pensamento e memória podem ser vinculados a atividades fisiológicas e biológicas, como
Stanislavski e Meyerhold já intuíam de certa maneira, e a estruturas do cérebro. Não obstante, a
metáfora mecanicista e seu fantasma terão uma sobrevida extraordinária na arte.
1.4 O Corpo cênico como máquina
A noção de corpo como máquina remete para algo que pode ser manipulado (ligado e
desligado), com níveis de operacionalidade e eficiência, e um tipo de mecanismo interno e fonte
de energia própria. A filosofia de Descartes consolidou o entendimento de corpo separado de
seu pensamento e sua alma. O corpo seria uma “estátua movente ou máquina”, tendo no seu
interior todas as peças necessárias para o seu funcionamento, apenas pela disposição dos órgãos.
Os meios que o filósofo dispunha para observar o funcionamento interno do corpo eram
provenientes das experiências de dissecação anatômica, procedendo do visível para o invisível.
Descartes eleva o status do corpo na ciência, tendo a máquina como metáfora onipresente, em
sintonia com as leis mecânicas vigentes na época, presentes nos demais fenômenos do
Universo.
O uso do termo mecanicismo, segundo Meijer (2001, p. 47), expandiu-se em várias
áreas do conhecimento e no senso comum e explicita a idéia de que a mecânica “é a teoria para
tudo”, uma extensão da organização da máquina para a explicação do universo e do vivo. As
metáforas mecanicistas enraizaram-se no Renascimento, em meio a recorrente discussão entre
realidade física e realidade mental. A relação causal entre as operações do corpo e do espírito
era a questão mais debatida na filosofia do século XVII e conduziria as discussões mais
34
importantes sobre a arte do ator, desde então.
Como concepção filosófica de mundo, o mecanicismo apresenta-se, desde a
Antiguidade, como atomismo, ou seja, a concepção do mundo como sistemas de corpos em
movimento, como uma grande engrenagem. O século XVII retomou este conceito com a ciência
moderna, através da infiltração do conceito de causalidade em todos os fenômenos. Na física
newtoniana, consiste na hipótese de que os fenômenos da natureza devem ser explicados pelas
leis da mecânica. Na visão mecanicista do universo, de acordo com Prade (2004, p. 24), se
encontrava a transformação econômica da época, o uso crescente da máquina e as analogias
mecânicas utilizadas por Galileu Galilei (1564-1642). Este buscou demonstrar, em seus
métodos científicos, que era possível a existência de uma teoria mecânica que abrangeria todos
os corpos que ocupassem espaço no mundo, fundando a moderna ciência do movimento e os
fundamentos da dinâmica. A partir do século XVIII, a concepção mecânica se transformaria em
princípio diretivo de todas as outras ciências naturais, como a biologia, a psicologia e a
sociologia (ABBAGNANO, 2000, p. 654-655).
A metáfora renascentista do homem como máquina criou analogias do corpo como
engrenagem de um relógio, instrumento musical, autômato ou estátua reforçada pela crescente
mecanização da fisiologia humana. Do grego phýsis (natureza) e lógos (tratado), esta se
constitui como ciência do estudo das funções dos órgãos nos seres vivos, animais ou vegetais.
O mecanicismo renascentista atrelava-se a uma visão tanto teleológica quanto teológica da
natureza. As leis mecânicas organizavam-se segundo uma finalidade e com a figura de Deus, “o
grande relojoeiro”, velando para assegurar a ordem do universo. O pressuposto mecanicista
afirmava a governabilidade do universo por forças mecânicas, cuja tarefa do cientista e do
artista era de sistematizar as relações entre as várias peças desta maquinaria, incluindo o corpo
humano.
No final da Idade Média, ainda persistiam os antigos conceitos de medicina de Claudius
Galeno (129-201 A.C.), cujo conhecimento do corpo era incontestável. Andreas Vesalius
(1514-1564) provocou uma revolução no pensamento científico da época e transformou a
imagem do corpo na ciência e na arte. Até então, a anatomia era simbólica, sem a visibilidade
que adquire com a obra De Humani Corporis Fabrica (1543). Descartes considerará as
investigações do anatomista em sua filosofia. Vesalius descreveu o músculo como instrumento
do movimento voluntário e, ao explicar a função dos ligamentos e músculos que movimentam
os dedos em direção ao rosto, o fez através da ilustração de um homem sentado com cordas
amarradas nos dedos maiores dos pés e a outra ponta da corda manipulada pelas próprias mãos.
O movimento humano é representado por forças externas e se assemelha ao da marionete,
35
compactuando com a popularidade do autômato no século XVI. Este, juntamente com o relógio,
se converte na metáfora maior do mecanicismo renascentista (MEIJER, 2001, p. 18).
Figura 1: Pintura da anatomia masculina do livro Humani Corporis Fabrica (Da estrutura do Corpo Humano), de
Andreas Vesalius. Cientific American Brasil, São Paulo, 2005
Analogia eficaz para a descrição do corpo humano, o relógio, a mais autônoma e
refinada das máquinas, se tornou, para a filosofia clássica, um modelo por excelência da
autonomia racional e da lógica mecanicista. A primeira e mais importante metáfora do
renascimento surgiu durante o reinado de Charles V (1500-1558)13. Sua obsessão por relógios,
de acordo com Meijer (2001), perpassava o gosto estético e constituia-se como exemplo do
problema da coordenação e controle num mundo que aparentava ser regido por leis mecânicas e
como importante analogia para o estudo da ciência do movimento.
Sendo o modelo lógico mais emblemático a serviço das concepções mecanicistas do
universo e da sociedade, a analogia do relógio é um conceito puramente metafísico, como
chama a atenção Schlanger (1971, p. 52). Entendimento, hoje, considerado redutor para
descrever a complexidade dos sistemas vivos, ele designava no século XVII a noção de um todo
que é soma de suas partes, estas não modificadas umas pelas outras. Não há interação ou
13 A obsessão de Charles V por relógios levou-o a tentar uma sincronização entre os exemplares de sua vasta coleção, na tentativa de controlar e coordenar seu funcionamento. Os relógios mecânicos surgiram na Itália no inicio do século XIV, mas o autômato antigo se deslocava no espaço, já o autômato moderno se deslocava no tempo.
36
interdependência, pois cada parte se responsabilizaria por sua função: “O relógio é a máquina
que funciona sozinha, um sistema fechado e animado, e dotado de regulação interna [...] um
mecanismo que dura, que precisamente controla e mede o tempo”, ao invés de ser susceptível a
ele (SCHLANGER, 1971, p. 52).
1.5 O gesto do ator: entre uma estátua animada e uma pintura transitória
A recorrente metáfora iluminista – de que o corpo humano era mecanicamente animado
– se atualizava no teatro, em sintonia com a descrição cartesiana do corpo humano como uma
“estátua movente”. A comparação entre as artes era determinante nos manuais e teorias de
dança e teatro do século XVII e XVIII. O estudo da escultura e da pintura por parte de atores,
bailarinos e cantores proporcionava uma série de imagens, as quais poderiam acionar padrões
de movimentos precisos para expressão das paixões14. À medida que estas artes convergiam na
expressão da natureza humana e na possibilidade de falar à alma da audiência, corroboravam
com a metáfora da mecanização do corpo. Sendo a pintura, escultura e gravura modelos de
representação pictóricos e referência para o estudo das paixões, a interioridade destas só poderia
ser julgada pelos signos externos traduzidos pelo corpo, na imitação das figuras ilustradas do
gesto.
Figura 2: Garrick como Hamlet, gravura de J. MacArdell (1754).
Roach (1985). The Players’ Passion. Studies in the Science of
Acting.
14 Grandes cantores de ópera, também considerados grandes atores, costumavam, como Cavaliere Nicolini Grimaldi (1673-1732) representar as paixões com uma seqüência de ações meticulosamente calculadas a partir da observação da arte estatuária (ROACH, 1985, p. 69).
37
A virtuose das performances dos atores elevava-os a “pinturas vivas”, e não à toa que o
inglês David Garrick15, por seu estilo interpretativo, foi o mais retratado ator de sua época.
Congelados em poses como se aguardassem os aplausos do público, os retratos pintados destes
artistas contribuíam para reafirmar a figura do ator moderno, verdadeiro agente de seu papel.
Um ator, importante ressaltar, que já reivindicava um controle absoluto sobre seu corpo e sua
alma pela expressão das paixões.
A contribuição de Garrick (1744), em seu Essay on Acting foi no sentido de considerar
os pressupostos científicos para auxiliar o ator a descobrir o trabalho do espírito nas
transformações da matéria. Aliverti (1998) afirma que o grande ator shakespeariano se referia
ao corpo como uma estátua que se movia, e buscava entender a ação dos diferentes membros do
corpo. O trabalho do ator deveria perpassar a eficiente declamação do texto para almejar um
nível de expressão autônoma, entre a arte da pintura e da poesia, mas buscando sua
especialidade. A arte do ator e do bailarino16 se colocava como ponto de intersecção entre as
artes veiculadas no tempo (poesia e música) e no espaço (pintura e escultura). Entre as
metáforas de “estátua animada” e de “pintura transitória”, cabia ao ator manejar as transições
entre poses fixas emblemáticas 17.
A arte do ator era pensada a partir da estatização das referências pictóricas, e ainda
carecia de uma teoria própria para dar conta da especificidade do movimento contínuo e
inestancável do corpo em ação e do gesto. Roach (1985, p. 72) defende a hipótese de que o
cartesianismo já descrevia as paixões enquanto seqüências de funções do corpo, como um
processo e não como uma pintura estática. Mas a lógica mecanicista da época encontrou uma
ressonância maior, a exemplo, na iconografia das paixões desenhadas pelo pintor e desenhista
francês Charles Le Brun (1619-1690), devido a sua tentativa bem sucedida de fixar e classificar
as ações mais caras à representação do ator na época: as das paixões. A obra de Le Brun
envolveria representações gráficas de caracteres idealizados, inaugurando um corpo moderno na
literatura visual: a representação das paixões pelas pinturas (ROACH, 1985, p. 67).
15 David Garrick (1717-1779), grande intérprete de Shakespeare, era o ator mais respeitado pelos filósofos e traduzia as idéias de Diderot com precisão. A imagem iconográfica do ator foi construída através de mais de 250 retratos, representando um modelo de ator liberal. Foi o primeiro ator moderno a falar de sua vocação e profissão no meio social burguês (ALIVERTI, 1998). 16 Os balés também eram vistos como quadros ou poemas vivos. Menestrier, Cahusac e Noverre salientaram que a dança ultrapassaria as possibilidades de imitação, se comparada às outras artes. Sendo a dança o espelho da alma em movimento, sua expressão seria maior que a palavra do poema e a imagem estática da pintura. A dança teria todos os momentos sucessivos, um movimento real que desenha as paixões de quadro a quadro. 17 Em Hamburg Dramaturgy (1767) Gotthld Ephreim Lessing coloca estas questões: “A arte do ator se encontra entre a pintura e a poesia. Como uma bela pintura deve ser da mais alta qualidade, mas como uma pintura em movimento é necessário também que possua a postura de dignidade que faz das esculturas antigas serem tão imponentes (LESSING apud ROACH, 1985, p. 73).
38
O manual Método para aprender a desenhar as paixões e a pintura das paixões de Le
Brun passam a ser também referências a serem seguidas pelos atores.
Figura 3: Desenhos de Charles Le Brun: o desespero. Tratado das Paixões.
Paris. Museu do Louvre. Catálogo da exposição “Da alma ao corpo”.
Paris:Gallimard/Electra, 1993/1994
Graças à classificação de sua fisiologia, as criaturas vivas eram passíveis de serem
entendidas. Assim como o Traité de l’homme (Tratado do Homem) e Les Paissons de l’âme (As
Paixões da Alma), ambos escritos por Descartes (1633, 1649), a obra do médico Julien Offray
de La Mettrie (1709-1751), L’homme-machine (O Homem-máquina) (LA METTRIE, 1748), e
os autônomos célebres do engenheiro mecânico francês Jacques de Vaucanson (1709-1782)
endossaram a perspectiva mecanicista, vendo neste modelo a chave universal do vivo. A relação
entre mente e corpo – que animaria as teorias teatrais nos próximos séculos, inclui a hipótese de
La Mettrie: o homem é uma máquina. A proposta de Descartes é referenciada, e o corpo
humano é visto como uma máquina que dá cordas em sua própria engrenagem, numa alusão ao
movimento perpétuo. A visão fisiologista de La Mettrie compreendia os mecanismos do corpo
por meio de uma atividade vital, cuja origem estava na estrutura física e na organização
funcional da matéria, e não em alguma substância não material. Porém, ele sugeria que a
atividade mental, ao contrário de Descartes, resultava também da matéria física
(CHURCHLAND, 2004).
A figura do autômato assume um papel nas experiências de Vaucanson na simbolização
desta metáfora. Sua mais famosa “criação” consistia num pato mecânico que reproduzia as
ações do vivo, cujos mecanismos internos mecânicos e pneumáticos produziam
comportamentos simples como comer, beber e espanar na água. Vaucanson não se ateve ao
funcionamento mecânico do corpo de animais, e sonhou com a criação de um homem artificial
dotado de fala.
39
Figura 4: O mecanismo da Tocadora de viola (esquerda) e do pato mecânico (direita), dois dos autômatos de
Vaucanson. Coppélia. Paris, Ballet Danse L’Avant Scène. Nov./jan. 1981.
A analogia mecânica aristotélica se aplicava ao movimento animal, associando-o ao
funcionamento de uma máquina, mais exatamente de uma máquina de guerra. A imagem
metafórica assemelha-se às estratégias de guerra da época, como o braço de uma catapulta no
lançamento de projéteis. Descartes manterá a associação do movimento a uma máquina, mas
por meio da metáfora do mecanismo dos autômatos hidráulicos, referências naturais à
tecnologia dos moinhos movidos a água, dos relógios, fontes artificiais, autômatos e demais
máquinas de sua época.
O mecanismo se torna analogia para o mundo natural, onde o comportamento global, a
exemplo das máquinas, é dado pela soma das partes individuais. A metáfora maquímica é o
cerne da cosmovisão clássica e newtoniana, fortalecida pelas propostas de Galileu e Descartes.
A natureza adquire caráter determinista pela identificação dos fenômenos naturais, a partir da
separação das partes, como propunha Descartes em seu método de análise. Identificados os
atributos das partes, se reconstituiria as características de um sistema como um todo. Contudo, a
variedade e imprevisibilidade do organismo se impunham. A recusa da redução dos organismos
vivos a meros sistemas mecânicos, segundo Oliveira (2003, p. 142), reacenderia uma versão da
antiga doutrina vitalista. O vitalismo acrescentou à matéria uma substância vital, uma espécie de
sopro ou força que vivificaria a entidade física mecânica.
As contundentes metáforas mecanicistas ainda ecoavam fortemente nos discursos sobre
40
a atuação, mas outras conjunções ligadas ao conceito de organismo se insinuariam no
entendimento de corpo e que determinariam novas leituras teóricas sobre o trabalho do ator a
partir do século XVIII. Aliado ao mecanicismo, o caráter orgânico tornaria o entendimento de
corpo mais complexo. Salienta Schlanger (1971, p. 55), que as máquinas seriam dotadas de
disposição, de figura e de movimento. Quanto ao organismo, possuiria uma disposição
mecânica, como todo sujeito corporal, mas um mecanismo organizado que se torna instrumento.
O relógio seria um instrumento organizado, um organismo, portanto, na função de sua
finalidade, que é marcar precisamente as horas. E o corpo seria um organismo não somente
porque agrega órgãos, mas porque ele é instrumento da alma racional e executa as finalidades
desta. O organismo é o “lugar em que o mecanismo está em harmonia com um fim”
diferenciando-se de outras máquinas, digamos, menos complexas (STAHL apud
SCHLANGER, 1971, p. 55).
A harmonia e a organização convergiam mundos aparentemente divergentes, o das
máquinas naturais e o das artificiais. Em detrimento do tratamento mecânico dado pelo
dualismo cartesiano, a ênfase sobre o organismo e o processo interior e imaginativo do ator não
é descartada. A oposição entre a visão interna e externa das paixões se acirrava, forjando
brechas no rígido conceito mecanicista. A excelência dos artistas estava atrelada ao
desenvolvimento da ciência e a questões filosóficas, e o estudo das paixões suscitava algumas
ambivalências e contradições, que se estenderiam à prática cênica: a emoção do ator iniciaria
mentalmente para, então, criar seus efeitos sobre o corpo ou a simples performance das ações
associadas às emoções adequadas produziria o sentimento? O ator deve experimentar a emoção,
senti-la, enquanto atua?
Não havia a noção de causa interior como deflagradora da emoção, no sentido moderno
de inconsciente ou subconsciente, mas a constatação de que o homem não era uma máquina
como outra qualquer, já estava presente. Uma máquina sim, porém, vivente, dirigida por forças
auto-suficientes. A mecanização da fisiologia já não respondia a todas as questões e mostrava os
limites do mecanicismo também na definição da arte cênica, e os estudos sobre a biologia
deflagraram um novo entorno para a noção de paixão.
Roach (1985) aproxima o pensamento de Stanislavski ao de Denis Diderot (1713-1784)
a partir da noção de um modelo interno na mente – e que será discutido nos capítulos 3 e 4, pois
ambos teriam formulado suas técnicas “psicofísicas” entendendo que a emoção pode ser
processada em arte através da memória, imaginação e ação. Diderot, enquanto filósofo, faz seu
o discurso de La Mattrie presente em O homem máquina, mas com ressalvas ao reducionismo
materialista, que atribui ao funcionamento do vivo um mecanicismo de caráter hidráulico. Os
41
cientistas da época tentavam explicar a vida recorrendo a fluidos vitais e Descartes acreditava
que estes fluídos moviam o corpo hidraulicamente. Ao colocar a mão sobre uma chama, o calor
provocaria o estímulo de um canal (nervo) que iria até a glândula pineal, localizada no cérebro.
Com isto, se abriria uma válvula que liberaria fluídos vitais por um tubo que, por sua vez,
inflaria os músculos para afastar a mão da chama. Hoje, estes processos são vistos através de
nervos, neurônios e receptores, mas a metáfora dos fluidos ou energia vital se mantém.
Figura 5: O sistema nervoso do homem máquina
em ação – a glândula pineal, tubos e espíritos
animais, descritos por Descartes (1666) em
Tratado do homem. Roach (1985).
Ao falar da ação da alma sobre o corpo, Diderot (1979) já chamava a atenção para a
organização complexa do cérebro respectivo de cada ser. Tendo como preocupação dominante a
biologia, Diderot se dedica ao conhecimento das faculdades cerebrais, atribuindo à alma uma
qualidade fisiológica. Toda a carreira científica do filósofo se dirigiu ao estudo psicofísico do
homem, com um projeto particularmente ambicioso e pioneiro, e que teria ressonâncias na sua
visão de um novo comportamento do ator, bem como contaminaria as teorias do século XX.
Pela síntese do conhecimento fisiológico e anatômico de sua época, ele se propôs a
redefinir o lugar do homem na natureza, afirmando que a psicologia do cérebro era inseparável
de sua fisiologia (CHANGEUX, 2002). A abordagem de Diderot (1986) não deixa dúvidas
sobre sua preocupação em rediscutir a relação corpo e mente sob bases biológicas, o que o leva
a ser, de certa forma, um pioneiro na discussão do corpo nas teorias teatrais em sintonia com as
teorias científicas que tratam destas questões. Diderot anteviu a complexidade do vivo, através
da visão da transformação das espécies, idéia que viria a ser, posteriormente, desenvolvida por
Darwin e seus discípulos (DIDIER, 2001, p. 171).
O filósofo proclamava um tipo de disposição orgânica em resposta ao “enfadonho jogo
de cena” que proibiria o ator de levantar a mão a uma certa altura ou que determinaria o ângulo
de inclinação do corpo:
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Então, decidistes ser manequim para sempre? A pintura, a boa
pintura, os grandes quadros, eis vossos modelos; o interesse e a
paixão vossos amos e guias. Deixai-os falar e agir com toda a
força. 18 [...] As regras vos tornaram de madeira e, à medida que
se multiplicam, automatizai-vos. É como se Vaucanson
acrescentasse outra mola ao seu Tocador de flauta.19
(DIDEROUX, 1986, p. 161).
Ele critica as convenções do teatro clássico francês e a extrema mecanização do ator.
Reconhecendo as limitações da visão mecânica de corpo e as imitações servis, o grande
pensador Jean-Georges Noverre (1727-1810), em suas Cartas sobre Dança n. 15 (NOVERRE,
1760) requisitará uma espécie de sensibilidade análoga à idealizada por Diderot (e um novo
entendimento da natureza humana para a dança através do balé de ação):
Os grandes comediantes estarão com o sr. Diderot, os medíocres
serão os únicos que se levantarão contra o gênero indicado por
ele. Por que? É por que esse gênero, sendo tomado da natureza,
exige homens e não autômatos para representá-lo. Exige
perfeições que não se adquirem sem que já se possua o germe em
si mesmo. Trata-se de sentir, de ter alma e não somente de atuar.
(MONTEIRO, 1998, p. 384).
1.6 O organismo: um mecanismo metafórico vital
A falência do modelo de transmissão hidráulica e mecânica das emoções já se anunciava
desde a experiência de Francis Glisson, em 1662, do London College of Physicians, quando este
eliminou a infusão de espíritos animais cartesianos como a possível causa das contrações
musculares. No mesmo ano, o naturalista Jan Swammerdan demonstrou por meio da vivisseção
de pequenos animais que o coração e outros músculos mantinham seu poder de contração e
reação depois de removidos do corpo e completamente desconectados dos pequenos filetes dos
nervos que se acreditava indispensáveis para a atuação dos espíritos animadores das paixões e
18 Diderot descreve no Discurso sobre a Poesia Dramática uma conversa entre amigos, em que o ator Garrick teria fundamentado a importância da pantomima para incrédulos através de uma cena improvisada, porém contundente, onde o ator inglês não teria se restrito as regras de atuação na cena. 19 Em 1738, Vaucanson constrói um primeiro autômato andróide, Le Joueur de Flûte (O tocador de flauta).
43
ações (ROACH, 1985, p. 94). Ao demonstrarem, por volta de 1800, que estímulos elétricos
podiam induzir os músculos de animais ao movimento, o anatomista Luigi Galvani e o físico
Alessandro Volta modificaram definitivamente o entendimento da fisiologia humana, antes sob
a lógica mecânica somente20. A eletricidade se torna a nova chave para a explicação do
princípio da vida. E, também, para a emoção do ator.
Figura 6: Luigi Galvani. “De virubus
electricitatis in motu musculari (1791). Catálogo
da exposição: “Da alma ao corpo”. Paris,
Gallimard/Electra. 1993/1994.
A descoberta de Guillaume-Benjamin Duchenne de Boulogne (1806-1875) a cerca da
possibilidade de excitar nervos e músculos através da pele contribuiu para o nascimento da
neurologia, constituindo o que seria posteriormente o eletrodiagnóstico. O seu livro O
mecanismo da fisionomia humana e a análise eletrofisiológica da expressão das paixões
(BOULOGNE, 1862) obteve grande êxito entre artistas plásticos e atores da segunda metade do
século XIX, sendo convidado a realizar conferências nas Escolas de Belas Artes e nos
Conservatórios em cenas organizadas por artistas. O livro mostra ilustrações fotográficas que
exemplificavam a manipulação elétrica dos músculos, estimulando a mímica facial de maneira
artificial. A aplicação mostrava a correlação entre a contração e relaxamento dos músculos e a
expressão da paixão correspondente, possibilitando a criação de personagens “à maneira de
Shakespeare” (PÉREZ-RINCÓN, 1998, p. 39). A estimulação dos nervos traria, finalmente, o
invisível à sua visibilidade. O mundo interno emergia ao exterior, literalmente, por meio da
estimulação artificial e elétrica da periferia do corpo em direção ao interior.
20 O grande invento de Volta foi a primeira bateria elétrica, dando continuidade a alguns experimentos de seu parceiro Luigi Galvani. Galvani era anatomista e ao dissecar uma rã, percebeu que o tecido muscular úmido da rã conduzia uma corrente entre dois tipos diferentes de metal. Volta modificou este efeito para produzir o primeiro fluxo contínuo de corrente elétrica. Por volta do ano de 1800 inventou uma bateria umidificada que chamou de "Pilha" voltaica (http://en.wikipedia.org.).
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Figura 7: Guillaume-Benjamin Duchenne estimula
eletricamente a musculatura de uma atriz da Comédia
Francesa com a finalidade de modificar a expressividade
facial das emoções. Pérez-Rincón, (1998). El Teatro de las
Histéricas. México, Fundo de Cultura Econômico.
As metáforas baseadas nos autômatos hidráulicos com seus tubos e espíritos dariam
lugar a modelos de investigação a partir do comportamento elétrico e acústico da natureza. Da
estática para a dinâmica, as novas analogias associavam ao mecanicismo uma vitalização e
sensibilização dos procedimentos relacionados ao comportamento do corpo, cérebro e mente. A
descoberta da eletricidade fornecerá à ciência um candidato aceitável para o principio da vida e
do pensamento. A “alma elétrica” dominará o universo cientifico e literário até o final do século
XIX, mantendo até nossos dias uma vitalidade extraordinária (BOSSI, 2002).
O vocabulário utilizado por teóricos e atores vai mudando substancialmente e novos
termos entram na descrição de fenômenos ligados ao surgimento das paixões no corpo e suas
formas de atuação cênica. A terminologia mecanicista permanecia simultânea à nova
enunciação referendando as forças vitais do corpo, com analogias tais como o fogo elétrico e as
vibrações da corda de um instrumento. A visão orgânica, aliada à mecânica, se reforça a partir
das novas teorias vitalistas. Ou seja, os fenômenos do organismo não poderiam ser inteiramente
explicados com causas mecânicas nem a força que constitui a vida estaria tão facilmente a
mercê da investigação científica, pelo menos a de visão mecanicista. Segundo o vitalismo, as
coisas vivas contêm algum tipo de substância física, um élan vital, mas que é igualmente
misteriosa como a substância mental não física do postulado dualista21.
Pouco a pouco o termo mente vai se incorporando à atuação. Não era mais possível falar
da noção de alma enunciada no mecanicismo num corpo agora tomado pelas questões da
eletricidade e sensibilidade, termo este que passa a constituir o processo criativo do ator. A
21 O élan vital é recuperado no século XX como um elemento importante da ação física. Sua tradução remete para a noção de impulso, arremesso, e figurativamente como ardor, entusiasmo ou ímpeto. Burnier (2001) destaca seu sentido no trabalho do ator como algo que remete ao vivo, sem reduzir-se à técnica. Uma espécie de consciência que atravessa a matéria orgânica e a organiza. O élan de uma ação pode ser entendido como seu “sopro de vida”, ou “impulso vital” ou movimento orgânico criador.
45
descoberta pela ciência da natureza elétrica da impulsão nervosa colocaria o órgão da alma, o
cérebro, no alvo das pesquisas científicas. O cérebro como gerador da eletricidade animal já
havia sido apontado pelo galvanismo, mas o entendimento da alma como um fenômeno da vida,
intimamente ligado ao sistema nervoso, virá posteriormente com a descoberta da unidade do
neurônio.
Às idéias mecanicistas, que se expandiram em todos os ramos da ciência, opunham-se
cada vez mais às teorias que justificavam o funcionamento do corpo por princípios orgânicos. O
filósofo alemão Emmanuel Kant (1724-1804) estabelece a distinção entre a finalidade da
máquina e do organismo, desestabilizando a perspectiva mecanicista de causalidade e a idéia de
um corpo-objeto. As peças de um relógio existem em função das outras peças, mas não por
meio delas. No organismo, ao contrário, “[...] cada parte é concebida como existente somente
por meio das outras, para as outras e para o todo, [...] como um instrumento que produz as
outras partes e é reciprocamente produzido por elas” (ROACH, 1985, p. 733). Os princípios da
metáfora parte-todo se modificam.
Neste sentido, o organismo não possuiria uma força motriz simples como a máquina,
mas uma força formadora organizativa, que não poderia ser explicada somente pelas leis
mecânicas do movimento e seus princípios de causalidade. O organismo teria uma espécie de
finalidade intrínseca, que não é mera soma de suas partes, como na máquina. O organismo não
resulta da causalidade eficiente exterior, mas contém nele mesmo sua própria causalidade e
finalidade. Em aparente contradição à mecânica de Newton, no qual todas as forças causais são
externas ao sistema, Kant (1996) salienta que os organismos exibem uma força formativa
construída, não são meros mecanismos, ou seja, exibem uma espécie de lógica auto-
organizativa22.
A visão mecanicista de causa persistiu até o século XIX, quando os conceitos de
entropia postulados pela 2a lei da termodinâmica, o desenvolvimento da biologia e as teorias
evolucionistas re-introduzem a noção de tempo, irreversibilidade e seleção natural. No século
XX as teorias sobre complexidade, sistemas adaptativos e sistemas fora do equilíbrio chamaram
a atenção para o fato dos organismos trocarem matéria e energia com seus ambientes. Novas
leis estabeleceram evidências sobre a auto-organização dos organismos, desta forma,
enfraquecendo os argumentos das metáforas mecanicistas da natureza e da instrumentalidade do
corpo em relação ao movimento da alma. 22 Na Critica da Faculdade de Julgar, Kant (1996) repreende o paradigma cartesiano demonstrando a irredutibilidade do organismo ao mecanismo, visto que um ser organizado não é simplesmente uma máquina, pois a máquina procede unicamente de uma força motriz, mas o ser organizado possui uma força formatriz que se auto-reproduz. A distinção da máquina e do organismo se daria a partir de três critérios: a auto-produção, auto-construção e auto-regulação/auto-reparação.
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A inspiração vitalista servirá como contraponto ao ambiente desencadeado pelos modos
de produção industriais do fim do século XIX, cujas linhas de produção configuram uma
fragmentação e modulação do gesto. Poetas românticos descreviam modelos de organismo e a
definição de espontaneidade como algo livre que surge sem premeditação ou esforço se tornava
a mais apropriada para descrever a arte. O acesso às forças criativas da natureza se daria pelos
processos orgânicos mais sensíveis, e menos pelas metáforas mecânicas da fisiologia cartesiana.
A negação da mecanização da natureza transformaria as teorias sobre criatividade e emoção.
O desenvolvimento da biologia determinou novos conceitos sobre o organismo, e este se
tornou, no século XIX, uma chave racional para interpretação da natureza, da vida ou do destino
da sociedade. A organicidade da arte na visão romântica está atrelada à expressão da harmonia e
perfeição do todo. Um modelo fundador que não se restringe a simples descrição classificatória
de órgãos ou organismos biológicos e botânicos: “[...] esta figura racional é essencialmente um
suporte de noções.” (SCHLANGER, 1971, p. 114).
Como figura de racionalidade universal, o organismo do século XIX ainda é entendido
por meio de uma unidade global, onde as partes podem agir simpaticamente umas sobre as
outras sem estar em relação ou em contato direto, garantindo a convivência harmônica e a
racionalidade do vivo, do universo ao individuo.
No século XX, a imagem do mundo natural se reconfigura e a metáfora maquímica
clássica é substituída pela imagem da complexidade. O entendimento dos fenômenos físicos e
mentais se renova num mundo em que o invisível passa a ser acessado pelas investigações da
ciência, especialmente pela física quântica. “Quando o invisível foi avistado, a natureza deixou
de ser monótona.” (OLIVEIRA, 2003, p. 148). O mecanicismo mantinha o mesmo parâmetro
de análise do todo à parte, estendendo-o a todos os fenômenos da natureza, do micro ao
macrocosmo, do grão de areia às estrelas. Com a ciência contemporânea, a natureza deixou de
ser percebida como uniforme e determinista, diluindo antigas distinções e fronteiras entre
natureza e cultura, sujeito e objeto e indivíduo e meio. Segundo Barba (2002, p. 355), no século
XX se produz a revolução do invisível, e a importância das estruturas ocultas se impõem em
vários campos, como na ciência, especialmente na física, na psicologia e nas artes. Ainda de
acordo com Barba (2002), tal fenômeno se deu também no teatro, com o desdobramento de
processos interiores do ator e da cena, incluídas as noções estabelecidas por Stanislavski a cerca
da memória emotiva e do sub-texto, a última relacionada às questões que envolvem a
interpretação subterrânea da trama complexa do texto teatral, estabelecendo pontos de apoio
para a vida interior das ações físicas.
Mesmo com a ciência apontando na direção da negação da mecanização da natureza, a
47
metáfora do corpo como máquina sobrevive nas artes e, especificamente, no teatro, chegando ao
século XX com diferentes atualizações. A metáfora mecanicista adquire um papel determinante
nas vanguardas artísticas do século XX, depois das experiências cênicas inspiradas nos escritos
de Heinrich Von Kleist (1777-1811) e Gordon Edward Craig (1872-1966). É quando o
organismo é considerado inadequado como mídia teatral e a figura da marionete evoca um
modelo de representação ideal do corpo, então livre das fragilidades humanas.
1.7 A marionete como metáfora do corpo
A imagem da marionete evocada por Kleist é um exemplo contundente da permanência
da metáfora mecanicista nas teorias teatrais, com desdobramentos no XX. Em seu célebre artigo
Teatro de Marionetes (KLEIST apud GUINSBURG, 2001, p. 45) imagina o encontro entre o
narrador e um bailarino da Ópera de Paris frente a um espetáculo de marionetes23. O
“transporte” da figura da marionete para a figura humana propõe um conceito mais abstrato de
corpo, com linhas puramente ideais que permitam visualizar o movimento e gesto, sem o
maneirismo expressivo da época. Ao contrário do homem, que hesita frente a suas paixões, a
marionete simboliza a possibilidade de um corpo ajustado a leis mais universais. O ideal
romântico de recuperação da originalidade perdida é invocado na figura da marionete, o grau
sígnico mais puro da estrutura corporal. Mais do que a evocação de um novo modo de
representação para o ator ou bailarino, a metáfora evoca um ideal de natureza humana original,
tão caro a pensadores como Rousseau (GUINSBURG, 1978, p. 49).
Poeta e homem do teatro do romantismo alemão, Kleist foi o primeiro a sugerir a
substituição do ator por uma marionete. O teatro, assim, obteria o estado de conhecimento da
realidade, diretamente, sem passar pela fragilidade humana, pois o organismo humano,
submisso às leis da natureza, constitui uma ingerência estrangeira. O movimento mecânico não
contaminado pelos acidentes de uma atuação psicológica e realista poderia restituir o ideal de
graça e justeza. O gesto da marionete nunca seria afetado, pois a afetação aparece “quando a
alma se acha em algum outro ponto que não o centro da gravidade do movimento” (KLEIST
apud GUINSBURG, 1978, p. 49). Os afetos tenderiam a criar uma distância entre o centro
motor e centro de gravidade.
A marionete e sua obediência à lei da gravidade propõem uma limpeza formal ao gesto
cênico, raramente evocada no Ocidente. A coluna vertebral é para o homem, assim como para a 23 Escrito em 1810 para um diário berlinense – Berliner Abendblatter, fundado pelo próprio Von Kleist, o texto só teve repercussão no século XX, quando teóricos da modernidade encontraram eco nas suas reflexões sobre a natureza do movimento e a expressão do corpo humano perdida.
48
marionete, o centro do corpo cênico que, suspensa sob fios, não se submete a seu próprio peso e
arbitrariedades, mas somente às leis mecânicas. A ausência de consciência da marionete a dota
de uma graça divina, original, visto que resta ao homem “não ter consciência nenhuma ou a
consciência infinita”, ou seja, aproximar-se “do manequim ou de Deus” (KLEIST apud
GUINSBURG,1978, p. 51).
Craig (apud ROOD, 1977) afirmava que, para criar uma obra de arte, seria preciso
servir-se de materiais que apresentem certezas. A arte não admitiria acidentes e a natureza
orgânica do homem tenderia à instabilidade, com sua escravidão à emoção e espontaneidade das
sensações do corpo. Craig (apud ROOD, 1977, p. xvi) idealizava um ator que unisse uma
natureza generosa a uma alta inteligência, onde esta governaria a natureza das paixões e o
pensamento, o movimento do corpo. O corpo, como previu, “tende à independência” e não a
ordem e certezas. Não seria mesmo o corpo, inevitavelmente, esta matéria instável, tão temida
pelo encenador? Não seria esta a condição própria humana e a razão de ser do teatro conectar-
se com os paradoxos, ambigüidades e vicissitudes deste corpomente? Não para Craig, pois o
controle sobre o corpo importava à medida que subvertia a matéria a certezas.
O transporte metafórico da figura da marionete para a figura humana propõe mais do um
conceito abstrato de corpo, com linhas ideais que permitam visualizar o movimento e do ator
sem um maneirismo expressivo. A graça atingida pela marionete idealizada por Kleist, esta
espécie de animação natural do corpo, “momento incontrolável, efêmero e singular”, sugere a
existência de uma alma, excluída, porém, de uma consciência de si mesma (ENAUDEAU,
2001, p. 37). O mecanismo harmonioso da marionete é privado de consciência, visto que o
movimento gracioso poderia destruir-se frente à conduta consciente. Esta levaria o homem à
afetação, ao oposto da graça. A ausência de consciência da marionete, ao contrário, permite
inocência e originalidade aos movimentos. É a perfeita adequação a si mesma, em sua
simplicidade, que propicia a verdade de seu gesto.
No texto Ator e a Supermarionete (1908) Craig afirma veemente que o corpo humano
falhou como instrumento da arte teatral. O que não significa o abandono da antiga metáfora do
corpo como marionete, nem a negação da idéia de corpo como instrumento. O ideal do
autômato prevalecia. Suas idéias encontram ressonância no imaginário do século XX, referente
à abstração e automatização do movimento e da mecanização humana. A fascinação por estes
“reflexos incertos do homem” estava nas criaturas mecânicas idealizadas pelo cinema, poesia,
pintura e fotografia 24 (PLASSARD, 1992).
24 Dos manequins de De Chiricco, as bonecas de Bellmer e ao andróide de Metropolis, as figuras automatizadas se multiplicavam, inscritas nas mutações sociais e progressos tecnológicos.
49
As reflexões geradas no centro da polêmica entre biólogos vitalistas e mecanicistas, e
enunciadas no teatro por Diderot, permaneciam em Craig através de uma questão central
abordada por Roach (1985, p.161):
O corpo do ator, enquanto instrumento, seria interpretado como
um organismo vital espontâneo cujos poderes inatos de
sentimento poderiam de alguma maneira predominar
naturalmente ou o corpo seria uma máquina biológica,
estruturada e redutível a processos físicos e químicos, cuja
receptividade a reflexos condicionados determina o seu
comportamento?
As idéias mecanicistas e organicistas do final do século XIX oscilavam entre a noção
introspectiva da emoção e do inconsciente e as teorias sobre os reflexos e, entre a
espontaneidade e o automatismo do corpo. A noção de espontaneidade, para Diderot (apud
ROACH, 1985), estava identificada com um tipo de automatismo, uma canalização para o
hábito; não é a livre expressão natural, como entendem os românticos. Seria uma segunda
natureza, onde o corpo executa, de forma automática, ações repetidas o suficiente, a ponto de a
mente agir estando a consciência ausente.
A versão de Craig (apud ROOD, 1977) para a segunda natureza levava a ver a
ambigüidade da metáfora da marionete, se atualização do mero autômato ou a concretização de
um novo tipo de movimento do corpo humano, dotado de uma técnica que respondesse às
demandas de representação do início do século XX. Craig não negava a figura humana em si
mesma, mas, acima de tudo, a visão imprecisa de sua época em relação à atuação cênica e as
vicissitudes do organismo. O status que o corpo adquire não poderia estar mais à mercê de um
“espontaneísmo”, da “exacerbação” emotiva dos atores que não levaram a sério os conselhos de
Diderot. A arte do ator seria resultante de uma ação voluntária e consciente, eliminando, desta
forma, os acidentes da arte (e do corpo).
A busca pela precisão, organização, técnica e abstração aproxima algumas vanguardas
artísticas do início do século XX da idéia de mecanização, não somente pelas metáforas dos
manequins e marionetes, mas por meio da própria máquina e suas tecnologias, sobretudo os
futuristas e dadaístas. Menezes (1994) salienta que, no futurismo italiano, a influência das
inovações tecnológicas e as conquistas científicas do período se dão mais no campo imaginário
e simbólico do que na realização técnica. Já no dadaísmo, a máquina é vista como um elemento
50
de ironia que se põe como metáfora do próprio homem e da desordenação e caoticidade da vida
moderna. É um elemento de crise e se coloca como metáfora mediadora da relação arte-vida.
Diferentemente dos europeus, o movimento de vanguarda russo de vertente
construtivista instaura a máquina como elemento técnico na elaboração das obras. Incorporadas
no processo de criação, e não como “fetiche tecnológico”, as metáforas se inserem como
método de organização de técnicas e linguagens artísticas. Desta forma, a mecânica se sobrepõe
à própria máquina (MENEZES, 1994, p. 108).
O ator biomecânico concebido por Meyerhold (apud PICOLIN-VALLIN, 1990) utilizou
o princípio do corpo máquina para facilitar a execução de tarefas, como economia de energia,
conquista de ritmo, equilíbrio e precisão. É quando a metáfora mecanicista ganha novos
contornos através da contaminação pelas teorias da psicologia comportamental, tais como o
condicionamento reflexo, onde toda ação é uma resposta a uma excitação de nervos. Sem
separar os atos psicológicos dos fisiológicos, a biomecânica de Meyerhold, crítica ao sistema
inicial de introspecção proposto por Stanislavski, destacaria as idéias de Ivan Pavlov, na atenção
aos reflexos do ator. A decomposição do movimento em fragmentos e o controle de cada parte
do corpo teriam a eficiência da máquina, segundo as novas leis do trabalho, bem como uma
“espacialização do conceito de emoção” (PICOLIN-VALLIN, 1990, p. 122). O ator deveria
treinar sua máquina, o corpo, a fim de que respondesse, mais rápida e eficientemente, às
consignas estéticas propostas pela encenação.
Para que o corpo fosse objeto de estudo, teria que ser comparado à idéia de mecanismo,
pois a noção de organismo parecia demasiado imprecisa para ser objetivamente estudada. No
“Programa de Biomecânica”, direcionado à realização de oficinas com atores, Meyerhold (apud
ROACH,1985, p. 203) listou os tópicos essenciais para o desenvolvimento do trabalho do ator,
que se dava a partir de um esquema de encadeamento para as ações de caráter reflexionista:
“preparação – ação – reação” :
O organismo humano, como um mecanismo automativo;
Complexo de movimentos de todo organismo ou cadeias de movimentos;
Atos de inibição (não fazer);
Estudo dos mecanismos de reação no sistema nervoso;
Reações físicas como objeto de estudo científico;
Fenômeno físico, simples reações químico-fisicas...puramente reflexos
fisiológicos;
Reflexo instintivo;
51
Reflexos, suas conexões, seqüência, dependência mutua;
Mecanização, atos habituais subconscientes.
Figura 8: Seqüência de exercícios do Programa de Biomecânica. Desenhos de Lutse (1922). Guinsburg, J.
Stanislavski, Meierhold & Cia. SP, Perspectiva, 2001.
1.8 A organicidade: da fisiologia à psicologia
A noção cartesiana de um automatismo mecânico é transformada com a noção de
sensibilidade e reflexibilidade, evidenciando-se, cada vez mais, o processo orgânico vitalista e
as teorias psicofísicas (ROACH, 1985, p. 183). Tendo, nas experiências com animais em
laboratório, o reforço para este novo entendimento, a teoria dos condicionamentos reflexos do
fisiologista, crítico e dramaturgo inglês George Henry Lewes (1817-1878) deram uma
fundamental contribuição ao pensamento psicológico que se formava. Tais entendimentos
norteariam as teorias da psicologia objetiva do início do século XX, e o pensamento formulado
por Stanislavski e Meyerhold. Com sua visão, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva do
problema corpo e mente, Lewes (apud ROACH, 1985) abre o terreno para a teoria da emoção
de William James (1842-1910). Théodule Ribot trabalharia com as idéias dele, todos
influenciados pelo pensamento do crítico inglês. O estudo de Lewes sobre as bases físicas da
mente repercute igualmente na Rússia, a partir da publicação de suas obras, em 1861. Ivan
Michailovich Séchenov (1829-1905), considerado o pai da fisiologia russa, publica em 1863 um
ensaio sobre as bases do processo fisiológico, em sintonia com as teorias dos reflexos de Lewes.
Pavlov, por sua vez, acessa as obras de Séchenov. Lewes, Séchenov, James e, posteriormente,
Pavlov configuram um campo de conhecimento para o desenvolvimento das teorias russas
acerca do comportamento dos anos 20 e 30 do século XX. Contrapondo-se a visão introspectiva
da psicologia mais tradicional e rejeitando a noção de alma e de um inconsciente inatingível, os
“objetivistas” procuravam outras formas de explicar o comportamento, tendo a teoria dos
52
reflexos como hipótese. O organismo vivo seria um tipo de máquina “auto-atuante”
respondendo ao estímulo de acordo com as leis naturais e o cérebro, uma espécie de
coordenador deste sistema reflexo integrado. Novamente a metáfora da máquina e do autômato
subsiste em acordo com a visão de organismo.
A inovadora teoria da consciência de Lewes sugeria que a sensação e consciência não
estavam limitadas ao cérebro25. Enquanto um monista, Lewes defendia a visão da mente e do
corpo formando uma só entidade. O monismo diz respeito mais especificamente à escola
filosófica iniciada no século XVIII, e que defendia a idéia que todos os fenômenos podem ser
explicados por um princípio unificador, ou como uma manifestação de uma única substância (a
mente ou um outro tipo de energia), mas o termo continua a ser utilizado por muitos cientistas
cognitivos, na atualidade, em oposição ao dualismo de substância. Acreditando em um contínuo
cérebro-mente, de acordo com Lewes, o comportamento, a mente e suas propriedades e
manifestações seriam a expressão de um complexo sistema biológico a partir do sistema
nervoso, desencadeando o conceito de reflexo. O corpo era o aspecto objetivo do processo
subjetivo da mente, sendo que toda alteração mental teria uma correspondência física e todo ato
era fruto do organismo como um todo. Stanislavski considerará esta hipótese em seu sistema e
afirmará que todo o físico está relacionado a um estado psíquico.
Os estudos sobre o corpo animal traziam à tona questões inadiáveis sobre a relação do
corpo com o cérebro e os estados de consciência. Fisiologistas já haviam descoberto que a
coluna vertebral poderia responder mesmo na ausência da função cerebral e as hipóteses de
Lewes (1853) partiam destas evidências empíricas26. Em suas pesquisas por meio de
experiências com animais, Lewes traz, definitivamente, para o corpo as discussões sobre a
sensibilidade e o pensamento, concluindo que todo corpo pensa. “É o homem e não o cérebro
que pensa; é o organismo como um todo e não um órgão que sente ou age” (ROACH, 1985, p.
183). Suas hipóteses partiam de duas premissas:
a) toda a ação é baseada num “arco reflexo” no qual o cérebro e a espinha formam
um eixo de reflexão;
b) toda ação, como uma ação reflexa, conforma um complexo mecanismo
fisiológico.
O cérebro seria o centro da coordenação dos altos reflexos, mas não seria o único lugar
das sensações. Quando o cérebro é removido, a coordenação reflexa garante ao corpo a
25 Lewes escreveu, dentre outras obras: Physiology of Common Life (1859-60) e History of Philosophy (1845-46). 26 Na obra Bases Físicas da Mente, Lewes relata as experiências de Freidrich Goltz (1834-1902) e Eduard F.W. Pfluger (1829-1910) com animais, repetindo a experiência realizada por estes em 1853.
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aparência de um mero mecanismo, mas com a diferença de que o organismo se mantém
sensível. Embora, para Lewes, todas as ações são ações de um mecanismo reflexo, elas não
seriam meramente mecânicas. Por serem atividades sensíveis, as ações são sempre orgânicas,
mesmo quando inconscientes. O mecanismo vital permanece como contraponto ao mero
sistema de forças do mecanicismo.
Quando o cientista Lewes escreve sobre o teatro, refuta a inspiração ou sentimento
como caminho para representação do ator. “Não é suficiente o ator sentir, ele deve
representar”27. (ROACH, 1985, p. 184). Reforçando a opinião de Diderot através das teorias
reflexas, advoga o treinamento e estudo consciente por parte do ator. Atento aos clichês
provenientes das fórmulas pantomímicas, Lewes introduz a analogia entre uma atuação fraca,
cujo corpo e mente não respondem satisfatoriamente, e a mutilação de animais em laboratório,
cujos centros de reflexos foram cortados. Os animais em estado normal respondem com níveis
de flexibilidade e variedade enquanto seres orgânicos, já os animais alterados em laboratório
reagem com uniformidade e previsibilidade, ou seja, “mecanicamente” (ROACH, 1985, p. 185).
A oposição à atuação mecânica se dará pela atuação orgânica. Outro aspecto dos estudos de
Lewes acerca da relação entre o corpo biológico e o corpo cultural do ator refere-se à idéia de
descarga e controle da tensão nervosa, entendendo que o ator deveria lidar, conscientemente,
com as transições orgânicas da emoção desencadeada pela excitação nervosa.
Desdobra-se um novo paradigma fundado sobre a rentabilização das forças e energias e
sobre a dinâmica dos corpos. Na busca pelo equilíbrio psicossomático, o corpo começa a ser
percebido, de fato, em movimento e visto como agente transformador, através de experiências
de exercícios e de uma ideologia de liberação de todas as suas potencialidades produtivas. Na
nova ordem social que se instala, médicos e pedagogos assumem a responsabilidade de
trabalhar sobre as potencialidades do corpo. Vale lembrar que a partir do século XIX surgia
uma efervescência experimental por conta da descoberta de que o movimento não produz
somente modificações na disposição espacial dos corpos, mas no valor de sua energia potencial.
A concepção do homem capaz de transformar energia teve uma ressonância não só científica,
mas, também, cultural, no início do século XIX, com o surgimento da Termodinâmica
(PRIGOGINE,1991, p. 87). A utilização do calor transformando a matéria e as mudanças de
estados e propriedade desta matéria determinaram, também, a idéia do corpo humano que
armazena e gasta energia, do corpo como energia em potencial.
O corpo encontrava em si próprio as condições indispensáveis para sua transformação.
A nova visão de que eram as fibras nervosas que proporcionavam a elasticidade e firmeza aos
27 Roach refere-se à obra escrita por Lewes (1875): On Actors and the Art of Acting.
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órgãos e totalidade do corpo evidenciou uma finalidade interna, nunca antes destacada. Esta
visão possibilitou um novo olhar para organismo e o decorrente desenvolvimento dos exercícios
físicos na manutenção da vida (CRESPO, 1950, p. 562). As pedagogias ocidentais instituíam
um papel cada vez maior ao aspecto físico e a suas implicações mecânicas, rítmicas e espaciais.
A unidade entre corpo e natureza se restabelecia, como bem convinha ao pensamento naturalista
herdado do século XIX. O corpo saudável passa a ser o que transforma energia a seu favor28. O
teatro do início do século XX também estava inserido neste contexto e contamina-se pelos
princípios pedagógicos de educação do corpo. Emerge, neste contexto, a tradição dos “diretores
pedagogos”, segundo expressão cunhada por Meyerhold (apud DE MARINIS, 2004), cujo
enfoque é o trabalho sobre o ator. Uma herança fundamental iniciada por Stanislavski e que
teria continuidade nas teorias de Grotowski, Meyerhold, Peter Brook e Eugênio Barba, dentre
outros importantes reformadores da pedagogia do ator.
O surgimento dos pioneiros estúdios para formação do ator evolui para o conceito de
laboratório e de treinamento, e outros tantos procedimentos coletivos surgidos no século XX,
tendo o corpo, e com ele as relações com a mente, como agente transformador das técnicas e
linguagens artísticas. Foi Stanislavski (1989) que formulou a necessidade do trabalho de
laboratório e ensaios, como processos criativos sem o vínculo direto com a cena e sem
espectadores, desenvolvendo um procedimento continuado junto aos atores.
No desenvolvimento de sistemas de treinamento para o ator, na primeira metade do
século XX, as técnicas e procedimentos de busca, tanto de uma disciplina e de um rigor técnico
quanto uma espontaneidade e organicidade do corpo, adquirem importância vital. Com
resoluções teóricas e práticas distintas, as metáforas do mecanicismo e organicismo ainda
permaneciam como fontes para a abordagem do problema mente-corpo, com ênfase importante
nas relações entre os mecanismos de controle e a espontaneidade orgânica da emoção e da ação
cênica. Coube às teorias do ator da segunda metade do século XX o desafio de lidar com a
persistente herança mecanicista e buscar a conexão com aspectos cada vez mais presentes da
complexidade do organismo vivo.
Ainda que entendendo que a arte do ator não é uma “disciplina científica” Grotowski
(1992, p. 102-103) apontou para o que deve ser objeto de estudo de uma pesquisa metódica, e
que possa definir leis objetivas e processos pessoais e individuais. Sendo uma arte imperativa,
que ocorre em um determinado tempo e num momento preciso, o ator deve criar métodos para 28 Em 1880 a educação física é oficialmente incorporada ao sistema de ensino nas escolas dos Estados Unidos e Inglaterra, após a sua implantação na França e Suécia. A ginástica sueca será largamente difundida, tendo Stanislavski a incluído em seu treinamento com atores, com vistas a um corpo saudável, flexível, expressivo e decidido (STANISLAVSKI, 1994, p 60-64).
55
não se tornar refém da inspiração, do talento e de outros fatores imprevisíveis do próprio
organismo e de sua relação com o meio:
a) estimular um processo de auto-revelação, recuando até o subconsciente e
canalizando este estímulo para obter a reação necessária;
b) poder articular este processo, discipliná-lo e convertê-los em gestos [...]
compondo uma partitura cujas notas sejam minúsculos pontos de contato,
reações ao estímulo do mundo exterior;
c) eliminar do processo criativo as resistências e os obstáculos causados pelo
organismo, tanto físico, quanto psíquico (os dois formando um todo).
Esta superação de limites é, para Grotowski (1992, p. 105), um processo de
conhecimento, “desde a fonte instintivo-biológica através do canal da consciência e do
pensamento, até aquele ápice difícil de definir onde tudo se transforma em unidade”.
1.9 Uma outra idéia de organicidade
A organicidade no trabalho do ator ganha ênfase no século XX. As metáforas
decorrentes da noção de organicidade são fundamentais na nova abordagem proposta por
Stanislavski e, posteriormente, desenvolvida por Grotowski. Meyerhold também se dedica à
pesquisa da organicidade do ator, traçando um novo território para o papel desta por meio de
uma ciência pragmática e objetiva. Ele chamará de “essência do movimento cênico” e
Stanislavski de “organicidade do corpo-mente”, com vistas a especificar igualmente a via cênica
do bios (BARBA, 1988, p. 88).
O sistema de Stanislavski tratava de procedimentos psico-fisiológicos, definidos por
Ruffini (apud BARBA, 1988), como “corpo-mente orgânico”, no sentido de que as exigências
da mente são respondidas pelo corpo de forma precisa. Stanislavski percebia que, ao entrar em
cena, o corpo do ator tendia a tornar-se redundante e incoerente, se recusando a reagir
naturalmente. A organicidade e a vida que possuía antes de entrar em cena se perdia. Neste
sentido, o corpo do ator deveria responder a todo mínimo impulso da mente, e a antiga analogia
do corpo, como um precioso instrumento musical, foi utilizada repetidas vezes por Stanislavski.
Ruffini (apud BARBA, 1988) reafirma que o corpo-mente orgânico é, para Stanislavski, o
fundamento e o sentido do papel e a personagem seria o corpo-mente orgânico do ator, nas
condições dadas pelo texto dramatúrgico. Se não há organicidade, a personagem perde o sentido
e as ações não respondem às exigências do papel, tornando-se execuções mecânicas exteriores.
Insatisfeito com o seu próprio desempenho em cena, Stanislavski passou a questionar o
56
ator que se direciona para a maneira de representar esse ou aquele papel e não para a forma com
que é organicamente criado. Inicialmente, a sua representação, de acordo com o próprio
Stanislavski, era de certa forma superficial, e imitava as aparências externas da ação e a própria
experiência, repetindo, ainda, as fórmulas do convencionalismo teatral, ao qual questionava
quando iniciou o movimento do Teatro de Artes de Moscou. A cópia de modelos aliada à
ausência de informações, pesquisas e exercícios práticos relativos à natureza criadora
manteriam este tipo de postura “mecânica”. O oficio do ator ensina-o como entrar em cena e
representar, mas a arte verdadeira, de acordo com Stanislavski (1989, p. 536), “deveria ensinar
como o ator deve despertar conscientemente em si mesmo a natureza criadora inconsciente para
a criação orgânica supra-consciente”.
Thomas Richards (2001), o discípulo mais próximo a Grotowski e que se tornaria um
parceiro nos métodos de investigação do diretor polonês, define a organicidade no pensamento
de Stanislavski como as leis naturais da vida cotidiana que, por intermédio de estruturas
significativas de composição, se transformam em arte, desta forma, trazendo à cena a
naturalidade ou naturalismo da vida. Enquanto que, para Grotowski, organicidade indicaria algo
como a potencialidade, uma corrente de impulsos, um “fluxo de vida quase biológica que vem
do interior do organismo e vai a busca da realização de uma ação precisa” não se atendo,
especificamente, à criação de um papel. (RICHARDS, 2001, p. 93).
Tanto Stanislavski quanto Grotowski situaram o trabalho sobre as ações e o
comprometimento do corpo como chave para o contato com a memória, as emoções, os
sentimentos e demais estados considerados anímicos. As ações permitiriam o acesso a um
potencial criativo e orgânico, evitando a hegemonia do pensamento analítico e racional, visto
como empecilho e amarra para a livre associação de idéias e imagens e a organicidade final do
ato. O sentido de organicidade, para Thomas Richards (2001) seguindo a linha de investigação
de Grotowski, opõe-se ao pensamento discursivo da mente, e refere-se à dinamização nas ações
de um fluxo de vida originário, quase primitivo, não filtrado pela razão. O movimento do
animal torna-se metáfora para este encontro com as forças corporais naturais e não mediadas:
Se observo um gato, noto que cada um de seus movimentos está
no seu devido lugar, pois o seu corpo pensa por si. No gato não
há uma mente discursiva a bloquear a reação orgânica imediata, a
fazer obstáculos. A organicidade poderia encontra-se também no
homem, mas está quase sempre bloqueada por uma mente que
esta fazendo o próprio trabalho, uma mente que tenta conduzir o
57
corpo, pensar velozmente e dizer ao corpo o que fazer e como.
Disso deriva um modo de se mover quebrado e desconexo.[...]
Para que o homem possa chegar a tal organicidade, a sua mente
deve prender o modo justo de ser passiva, ou aprender a ocupar-
se só de sua própria tarefa, retirando-se do meio, de maneira que
o corpo possa pensar por si. (RICHARDS, 2001, p. 93).
O sentido de organicidade, além dos aspectos ligados ao vivo e ao natural, também se
refere aos níveis de organização de um sistema qualquer, com a precisão e fluidez de suas
conexões. Neste contexto, as ações codificadas do ator pedem por um sentido de organicidade e
podem ser consideradas como orgânicas, a exemplo da artificialidade das ações construídas
pelas técnicas de danças clássicas ocidentais e orientais ou, mesmo, pelo mimo corporal criado
por Étienne Decroux (1898-1991). Grotowski percebe o paradoxo entre o que chama de linha
orgânica e linha artificial29. Em tradições orientais como a Ópera de Pekin, há uma linha e
tonalidade artificial na composição e elementos acrobáticos que veiculam uma imagem visual
para o espectador, já a linha orgânica passa por outros canais perceptivos, requisitando certos
processos interiores, tanto do ator quanto do espectador. O tipo de imagem se diferencia. Neste
sentido, de acordo ainda com Grotowski, a representação dos atores na Ópera de Pekin não se
baseia em um processo psicológico de identificação, mas de execução precisa e perfeita de uma
partitura de ações, e que porta níveis de organicidade.
Entendendo que o ator é, essencialmente, corpo, presença em cena, a forma de se chegar
a uma arte do ator, para Decroux (apud PEZIN, 2003), se daria, igualmente, por meio de um
trabalho técnico consistente e sistematizado. O mimo corporal por ele elaborado se constitui em
um novo gênero teatral e, em sua extrema codificação, um caso quase único no teatro ocidental.
O ator deveria ter controle pleno de seus materiais expressivos e, assim como Craig, Decroux
entendia o trabalho do ator como ação voluntária, consciente e disciplinada, eliminando os
acidentes da arte (e do corpo). De acordo com De Marinis30, Decroux ressaltava que a ausência
do conhecimento e consciência corporal, aliada a ausência de tradições voltadas para a
codificação e transmissão técnica corroboravam para as deficiências do ator ocidental
(INFORMAÇÃO VERBAL). O fato de o ocidente manter uma fragilidade quanto à presença de
técnicas codificadas para o ator dever-se-ia a certas desvantagens, ainda de acordo com
Decroux, tais como o corpo ser antropomorfo, ou seja, já ter uma forma pré-concebida
29 Palestra gravada em 1997. Coleção “Le livre qui parle”. Paris, Collège de France. 30 Palestra ministrada pelo teórico italiano Marco de Marinis no Seminário “Artaud, Decroux e Grotowski”, Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina. 10 a 12 ago. 2005.
58
(diferindo de outras artes, como a escultura, cujo mármore apresenta-se de forma mais bruta) e
pela condição da arte do ator, cuja matéria a ser trabalhada é ele mesmo31 (INFORMAÇÃO
VERBAL).
A noção de organicidade e de corpo vivido, em contrapartida à noção cartesiana de
corpo objeto ou instrumento da mente ou alma, foi disseminada no século XX especialmente
pelo pensamento fenomenológico, ressaltado na filosofia de Merleau-Ponty. Este nos lembrou
que não temos um corpo, mas somos um corpo, num entendimento de corpo como relação, e
não como instrumentalização. Reafirmando que a forma com que agimos no mundo depende do
esquema sensório-motor, Merleau-Ponty (1980) reorganiza o lugar do corpo e do sensível,
trazendo noções como a de um corpo que, simultaneamente, toca e é tocado. Um corpo que se
vê vendo e que se toca tocando. A opção pela terminologia carne (chair), ao invés de corpo,
tenta resolver um problema semântico, que é falar de corpo, sempre visto em oposição ao
espírito, sem usar a palavra corpo. O filósofo francês Bernard (2001) utilizará a noção de
corporeidade (corporeité), numa tentativa de pensar o corpo e o organismo afastado do modelo
mecanicista de explicação, ou seja, do sistema institucional que não leva em conta a circulação
e o fluxo de intensidades e de transformação do corpo.
1.10 A linha orgânica e a linha artificial
A relação entre mecanismo e organismo no trabalho do ator caminha para uma ênfase
menos oponente e contraditória, na segunda metade do século XX. Contribuíram para isto as
reflexões sobre o rito e sua relação com o teatro exposto pelo pensamento de Antonin Artaud
(1896-1948), atualizadas na tentativa de fusão destes conceitos por Grotowski. No início de sua
carreira, no final dos anos 50 do século XX, Grotowski acreditava na possibilidade de renascer
o ritual, vindo de seu interesse antropológico e religioso. Foi na força coletiva viva e originária
dos ritos de diferentes tradições que o encenador buscou as fontes para re-instaurar a
organicidade necessária a relação ator e espectador. Os procedimentos eram baseados em um
compromisso físico, tanto do ator quanto do espectador, procedimentos estes já evocados por
Artaud em sua crítica a discursividade do teatro. A oposição de Artaud à hegemonia do
pensamento racional, em especial à sua própria cultura racional francesa, é reafirmada por
Grotowski (1992).
A idéia inicial de que a dimensão orgânica era privativa das performances rituais e ao
31 Seminário “Artaud, Decroux e Grotowski”, ministrado pelo teórico italiano Marco de Marinis. Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina. 10 a 12 de ago. 2005.
59
teatro restaria a dimensão demasiado mecânica ou artificial é ampliada, mais tarde, por
Grotowski. Este percebe não uma dimensão oposta entre o artificial e o orgânico, mas que
ambos, teatro e rito, possuem uma dimensão orgânica, pertencente ao fluxo vital, e uma
dimensão artificial, relacionada com a forma, a estrutura, a codificação e a convenção (DE
MARINIS, 2004). Cada vez mais interessado pelo trabalho do ator sobre si mesmo, Grotowski
encontra no rito um equivalente para esta finalidade. As buscas se encaminham para um “rito
sem ritual” baseado no ato total do individuo em direção ao conhecimento de si, pela
possibilidade não de reviver o ritual, mas de extrair certos elementos desta prática coletiva para
o desenvolvimento de técnicas pessoais. Em sua obstinada busca pela precisão técnica e pela
disciplina através do corpo, Grotowski atualiza os ritos de maneira estruturada e pragmática,
valorizando a função do ritual como conhecimento orgânico, vivificado e “fisicalizado” na voz,
no corpo, no movimento, no ritmo, no espaço.
Pelos procedimentos rituais e performáticos das sociedades mais arcaicas, Grotowski
pretendia alcançar algo que não estivesse contaminado pela lógica cartesiana e que portasse
uma organicidade mais originária. O historiador francês Georges Banu associa o trabalho de
Grotowski à memória, mas não à emocional, como seu mestre Stanislavski proporia, mas à
“memória da origem, do ser”.32 A noção stanislavskiana do trabalho do ator sobre si mesmo tem
sua continuidade em Grotowski através do que De Marines (2004) nomeou como “yoga do
ator”, uma investigação para aproximação de um estado de organicidade. Esta noção de yoga,
num sentido mais amplo e direcionado ao trabalho do ator, é definida por Taviani (apud DE
MARINES, 2004) como uma prática que conjuga aspectos mentais e físicos, baseada em
estruturas técnicas e exercícios que permitissem ao ator sair de sua mecanicidade e da repetição
da vida cotidiana para reencontrar um fluxo vital na vivência do momento presente. A idéia de
se opor à mecanicidade se associa à negação da repetição da vida cotidiana e de suas respostas
condicionadas e à busca da organicidade na experiência do momento presente, por meio de um
fluxo vital e espontâneo.
Grotowski aprofundou o seu procedimento técnico para o ator ainda com vistas para a
construção cênica no transcorrer da década de 1960, o que é nomeada por De Marinis (1988)
como a “fase dos espetáculos”, como montáveis memoráveis como Fausto, Akrópolis e O
Príncipe Constante. A fase “Para” teatral, no decênio 1970-1980, foi marcada por encontros,
com uma vivência coletiva e pesquisas intensas em diferentes culturas. Entre 1979-1982, o
trabalho sobre o individuo se intensifica, mas sem finalidade espetacular. É quando retorna ao
32 Palestra ministrada por Georges Banu no Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, 1996, no SESC (SP).
60
“trabalho sobre si mesmo”, naquilo que o ator pode fazer por si só. Nesta fase, chamada de
“Teatro das fontes”, Grotowski (1992) se interessa pelos rituais e pela antropologia, buscando
aspectos essenciais e originais. A fase em que busca um sentido mais objetivo, uma
formalização no próprio corpo e na voz, o “Drama objetivo”, antecede a sua última fase, a “Arte
como veículo”, onde as formulações a respeito do trabalho do ator sobre si mesmo se
intensificam. Desde 1983, Grotowski (apud DE MARINIS, 1988, p. 96), pesquisou mais
precisamente os aspectos técnicos da interação ritualizada. Buscou descobrir quais são “os
efeitos ‘objetivos’ das técnicas ritualísticas (religiosas, artísticas) independente dos significados
intencionais que transmitem”. O drama objetivo foca a descoberta de elementos performativos,
como movimento, voz, ritmo e uso do espaço, que produzem certos resultados energéticos em
quem pratica, e em quem os testemunha. Estas técnicas envolvem ações físicas extremamente
precisas e as fontes de pesquisa incluíam, numa determinada época, expedições a lugares onde
os ritos arcaicos ainda estavam vivos.
Grotowski pesquisou, durante 25 anos, antigos textos, rituais e cantos sagrados, atento,
mais precisamente, a sua qualidade vibratória e ao poder de comunicação do homem consigo
mesmo e com o outro. Sua pesquisa compreendeu cânticos de berço ocidental, como os gregos,
egípcios, sírios, israelenses e africanos, aos de berço oriental, tais como os indianos e chineses.
Estudou, por exemplo, o fenômeno dos mantras indianos, percebendo um “encantamento
preciso” e uma técnica “altamente desenvolvida que age diretamente sobre o homem”. Nos anos
de 1970, Grotowski e seus atores voltaram-se às pesquisas em florestas, onde julgavam haver
locais de “potencial de poder”. Buscavam descobrir certas maneiras de caminhar de tribos mais
primitivas para desbloquear as forças vitais e atingir uma organicidade: “atrás da maneira de
andar das tribos, que não é fácil, existe uma espécie de yoga que não para só no desbloqueio dos
sentidos e da tensão, mas porta algo de verticalidade”33 (INFORMAÇÃO VERBAL).
Apesar de utilizar-se da arte como veículo para pesquisar os “antigos mistérios”,
Grotowski advertiu que não é um processo puramente imitativo ou dogmático. Existe uma
metodologia de pesquisa na tentativa de religação entre o corpo e o canto, onde “o corpo ajuda o
canto, e o canto ajuda a transformar a energia biológica, orgânica, mais densa em mais leve,
luminosa, sutil” Grotowski, (INFORMAÇÃO VERBAL)34. Algumas técnicas, entretanto,
segundo Grotowski, tendem a bloquear o corpo, a exemplo dos mantras. Como o imprescindível
para o diretor era o envolvimento do corpo do ator, estes não funcionaram dentro do seu 33 Nunes (1996). Monografia (não publicada), com reflexões acerca das colocações de Grotowski e Richards durante o Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 e 16 de out. 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC. 34 Palestra de Gotowski ocorrida no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 e 16 de out. 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC.
61
processo de trabalho. Após anos de busca, encontrou nos cantos africanos a organicidade
desejada. A vivacidade e os impulsos das manifestações vocais e corporais da cultura africana
apresentou, para Grotowski, o material de pesquisa necessário para um envolvimento maior
entre corpo e voz.
O que Grotowski pretendeu com o trabalho vocal foi muito além da dicção eficiente
exigida para ator. Um dos fundamentos de Grotowski para explicar a utilização dos cantos no
seu trabalho vem da sua potencialidade de transformação no que se refere à energia do ator.
Para ele, a ressonância da voz no corpo e o que pode emanar, a partir desta relação, é o que
parece importar realmente: “o corpo é o primeiro vibrador, a primeira caixa de ressonância”. O
ator deve falar com o corpo num todo, reagir com ele. Para tanto, se valeu, inicialmente, de
exercícios de respiração adaptados da Hatha Yoga e do teatro clássico chinês, onde a respiração
ideal seria o que chamou de “respiração total”, envolvendo a região superior do peito e a região
abdominal. Já os cantos propiciariam um refinamento das energias do ator:
O canto entra cortando o corpo, ressonando, e junta a qualidade
de força no ponto de nascimento do impulso - próximo do plexo
solar. Esta força abre um canal de passagem de energia que corre
ao longo do corpo, trabalha sobre o eixo interno, e a energia
começa a transformar-se para um estado mais sutil, mais coração
(INFORMAÇÃO VERBAL) 35.
O que Grotowski chamou de ato total do ator em busca da autenticidade e intensidade
assemelha-se ao que o homem experimentava nas cerimônias rituais. A noção de organicidade é
relacionada à vida intima do corpo humano, mas, também, do comportamento animal. Ao
comparar o corpo humano ao do animal, Grotowski aproxima a noção de organicidade a um
estado, de acordo com as leis naturais, que não visa ilustrar ou representar algo, mas que se
sucede como fenômenos latentes, tais como o movimento dos ventos ou o fluxo e refluxo das
marés (MAGNAT, 2000, p. 11). A metáfora do comportamento animal é evocada para
descrever um processo vivo autêntico que caracteriza uma ação não elaborada anteriormente, ou
seja, um processo fundado sobre o menor espaço entre percepção e ação, ação e reação. Um tipo
de impulsividade natural necessária ao ato criador, que não se abstém, contudo, de seus aspectos
estruturais.
Através de um processo orgânico, a interação entre a espontaneidade e a disciplina, 35 Palestra de Thomas Richards ocorrida no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 e 16 de out. 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC.
62
precisão e organicidade, aparentemente tidas como noções opostas, proporcionaria a gênese do
ato total, aniquilando os conflitos produzidos pelo aparente antagonismo entre matéria e
espírito, mecanismo e organismo. Este problema, fundamental do teatro contemporâneo, de
aliar espontaneidade e estrutura, para Meyerhold (apud, JIMENEZ, 1990, p. 89), demandaria
preservar a capacidade de improvisação sem transgredir a forma precisa que o diretor confira ao
espetáculo:
Se a improvisação está ausente das atuações, o ator está parado
em seu desenvolvimento. As duas condições principais do
trabalho do ator são: a improvisação e o poder de restringir-se.
Quanto mais completa é a combinação destes dons, maior é a
arte do ator.
Grotowski, ao enfocar a relação espontaneidade e disciplina, se propunha a atingir uma
dimensão humana que perpassava o caráter espetacular. No vídeo-documentário A arte como
veículo36, com demonstrações de exercícios individuais e coletivos praticados por atores e sob
coordenação de Grotowski e Richards, é perceptível a existência de um trabalho estruturado.
Por detrás da aparente conotação mística dos corpos, que entoam cantos com uma intensa
vibração corporal e vocal, precisa e repetitiva, há um intrigante trabalho dirigido e intencional,
excluído de vôos de liberação ou improvisação ou cenas de caráter meditativo ou
transcendental.
Nos primeiros anos de trabalho em seu laboratório teatral, Grotowski confessou que tinha
muitas idéias metafísicas, mas abandonou-as e seguiu as leis de trabalho tangíveis, precisas,
imprimindo um trabalho rigoroso de organização de uma estrutura para permitir o fluxo
criativo37. Somente através de uma estrutura técnica coerente e precisa seria possível empreender
um vôo criativo maior. Contrariando o senso comum na arte de que é a liberdade de improvisar
que conduz a uma condição criativa, o diretor admitia somente a possibilidade de evolução
pessoal, tendo como base uma confiável estrutura. Grotowski, ironicamente, comparou um certo
tipo de improvisação ao “vôo da galinha”, que não vai muito longe em seu intento, expondo o
seu temor ao caos e sua preferência, a certas leis estruturais. Dentro de um processo regido por
leis, um sistema qualquer tem mais possibilidades de estocar informação, permanecer e se 36 O Vídeo foi apresentado no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 e 16 de outubro de 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC. 37 Palestra de Gotowski ocorrida no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 e 16 de outubro de 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC.
63
reconhecer. O caos, a que Grotowski se refere, pode levar ao descontrole ou a perdas
irreversíveis e representar ausência de memória que, para o diretor, parece representar ausência
de conhecimento, reminiscências prováveis do mau entendimento, por parte de inúmeros grupos
de pesquisa teatral, a partir da década de 1960, de suas idéias e de seus procedimentos
metafísicos.
Ao mesmo tempo em que Grotowski descreveu a necessidade de uma estrutura precisa
para ser absorvida plenamente, colocou a idéia da improvisação a ser realizada pela “alma”,
onde criatividade e espontaneidade, sendo atributos desta, tal qual pensava Stanislavski,
aflorariam como produto de uma aperfeiçoada preparação técnica. “No processo interior há a
liberdade, a improvisação é na alma. No lado de fora, a forma, onde tudo é determinado”38
(INFORMAÇÃO VERBAL). A valorização do conteúdo ante a forma só não é maior porque
Grotowski pressupôs a eclosão deste conteúdo mediante e somente a manifestação e
estruturação da forma, de certa maneira buscando não dissociá-las.
A organicidade era, para Grotowski, como uma corrente biológica de impulsos que vêm
do interior de cada um, algo que deve ser buscado ou reencontrado. Uma reação primária e
primitiva, não filtrada pela razão, e que parece estar preservada interiormente, esperando
somente pela experiência técnica para revelar-se. A noção do algo esquecido é, antes de tudo,
corpórea. Corpo enquanto instância que busca o conhecimento. O Performer, na visão de
Grotowski, pode ser um “homem do conhecimento”, como o Dom Juan nos livros de
Castanheda ou o Dom Juan de Nietzsche. A figura do Performer, estabelecida por Grotowski,
estimula uma ação e recepção muito mais “cognitivo-sensória” do que predominantemente
“racional”. “Performer, com a letra ‘P’ maiúscula é uma pessoa de ação, não alguém que
representa outro, não é um ator”39. Este se afasta do conceito estabelecido a partir da década de
1970 de performance enquanto acontecimento ou representação estética e investe no Performer
enquanto ser humano ao encontro do conhecimento. A idéia da arte como veiculo confirma, de
certa maneira, a idéia do corpomente do ator grotowskiano como uma mídia num sentido
dinâmico e processual, cujo mote é a transformação constante de si mesmo. Esta experiência de
transformação tem a ver com a noção do Performer, numa formulação extrema da idéia
stanislavskiana do trabalho do ator sobre si mesmo, tendo o enfoque maior do indivíduo sobre si
38 Declaração de Gotowski na palestra ocorrida no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and
Thomas Richards, de 07 e 16 de outubro de 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC. 39 Palestra de Gotowski ocorrida no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards,
de 07 e 16 de outubro de 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC.
64
mesmo. De Marinis (INFORMAÇÃO VERBAL)40 ressalta que Grotowski se apropriou do
conceito de arte como veículo criado por Peter Brook.
Grotowski ampliou a idéia de treinamento para formação cênica como método
dedutivo e mera soma de habilidades técnicas, para um processo interligado de amadurecimento
do ser humano que busca conhecer-se, relacionar-se, comunicar-se e atuar criativamente no
mundo. Grotowski optou por um procedimento de despojamento e de eliminação de bloqueios e
resistências mentais-corporais por parte do ator, introduzindo o conceito de “via negativa” em
contraposição à “via positiva” de acúmulo de um repertório técnico. O corpo então se coloca
como “veículo” para despertar as energias que impulsionariam o ator para a ação frente a si
mesmo e ao outro. Tendo sido este “outro”, nos últimos anos, os cerca de 150 grupos de teatro
que freqüentaram o espaço de pesquisa teatral dirigido por Grotowski em Pontedera, Itália, a
convite do diretor, desde que ele decidiu, no início da década de 1970, por um trabalho junto
aos seus atores, longe do alcance do público e do circuito teatral. Grotowski abandonou a noção
de espetáculo, mas não o teatro. Tampouco o enfoque que herdou de Stanislavski: o trabalho do
ator sobre si mesmo.
Figura 9: Ryszard Cieslak em “O Príncipe Constante”. Foto
Teatro-Laboratório. (Grotowski, 1992).
40 Seminário “Artaud, Decroux e Grotowski”, ministrado pelo teórico italiano Marco de Marinis. Florianópolis, Universidade do
Estado de Santa Catarina. 10 a 12 de ago. 2005
65
2 AS METÁFORAS E A ORGANICIDADE DA AÇÃO FÍSICA
2.1 O trânsito entre o dentro e o fora
Uma questão importante que esteve presente durante todas essas discussões sobre o
corpo-máquina e o corpo-organismo, envolvendo a mecanicidade, a artificialidade, a vitalidade
e a organicidade das ações está relacionada ao fluxo de informações entre o dentro e o fora do
corpo. O trânsito entre metáforas relativas ao interior e ao exterior, bem como ao centro e à
periferia e às partes e ao todo fundamentam a noção de ação física, contrapondo-a às noções de
gesto e de movimento. Lakoff e Johnson (2002) nomeiam estas metáforas como ontológicas e
orientacionais. Uma vez que as metáforas formatam o pensamento e dão ignição aos atos do
corpo, conforme a analogia adotada, conforma-se um tipo de tratamento dado ao corpomente e
uma determinada abordagem pedagógica e estética.
O entendimento de metáforas mais simples, como a idéia de que “o futuro será melhor”
às mais complexas, como “ela está deprimida” estaria associada, por exemplo, à noção de alto e
baixo por nós experimentadas fisicamente na infância. Estas metáforas, chamadas
orientacionais, reafirmam que o que é bom é “para cima” e o que é ruim, “para baixo”
respectivamente, e não são arbitrárias, elas tem base em nossa experiência física e cultural.
Conceitos tais como “para cima” ou “mais perto” não são puramente compreendidos em seus
próprios termos, mas emergem de um conjunto de funções motoras, constantemente realizadas,
resultantes da posição ereta em relação ao campo gravitacional e de nossa constante experiência
espacial, isto é, de nossa interação com o ambiente (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 128).
A ontologia diz respeito a caracteres fundamentais e necessários do ser, o que todo o ser
tem e não pode deixar de ter (ABBAGNANO, 2000, p. 662). As metáforas chamadas
ontológicas incidem sobre a identificação de nossas experiências, a partir de entidades e
substâncias. Uma vez identificadas, é possível categorizá-las, agrupá-las e quantificá-las e, desta
forma, raciocinar sobre elas e tomar decisões. A nossa experiência com substâncias e objetos
físicos propicia uma base para a compreensão das coisas, e que vai além da orientação. Estas
metáforas são necessárias para lidarmos racionalmente com nossas experiências e agirmos no
mundo. Segundo Lakoff e Johnson, (2002), os nossos conceitos de objetos, pessoas ou
atividades envolvem muitas dimensões e interações no que diz respeito à sua função, atividade
motora, objetivo, substância etc, que formam não um conjunto (entendido como soma de
partes), mas uma gestalt com proporções que emergem de nossa experiência. Dentre tantas
metáforas, há as de:
66
a) quantificação (se transpostas para o trabalho do ator, diríamos que ele é muito
técnico);
b) identificação de causas (o ator não consegue imprimir um ritmo à cena ou traçar
objetivos);
c) ações (o ator encontrou o tom certo da personagem).
Da mesma forma que as experiências básicas das orientações
espaciais humanas dão origem a metáforas orientacionais, as
nossas experiências com objetos físicos (especialmente com
nossos corpos) fornecem a base para uma variedade
extremamente ampla de metáforas ontológicas, isto é, formas de
se conceber eventos, atividades, emoções, idéias etc. como
entidades e substâncias. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 76).
A mais contundente das metáforas ontológicas relacionadas ao trabalho do ator opõe o
dentro e o fora (ou interior e exterior), e diz respeito à idéia de que a verdade ou a organicidade
deve vir do interior do corpo ou de um ponto central deste. Portanto, um movimento intencional
para ser orgânico (consciente ou não) deve originar-se do centro do corpo e se expandir para as
extremidades, em direção a sua periferia. Os movimentos que nascem de uma espécie de
impulso vital se conformam como ação física; se nascerem das extremidades (mãos e rosto),
tendem a ser classificados como gestos. Nesta tradição se inclui, principalmente, a derivada do
sistema de Stanislavski, seguida por Grotowski. Salientando os aspectos espirituais da ação e
não os materiais ou externos, Stanislavski enfatizou que a ação cênica não significa “mover-se
para todos os lados, gesticular em cena”. “Não é algo que ao ator finge representar, não é uma
coisa exterior; é antes, uma coisa interna, não física, uma atividade espiritual”.
(STANISLAVSKI, 1995, p. 63).
A ação cênica é o movimento da alma para o corpo, do centro para
a periferia, do interno para o externo, da coisa que o ator sente para
a sua forma física. A ação exterior em cena, quando não é
inspirada, justificada, convocada pela atividade interior, só poderá
entreter os olhos e os ouvidos. Não penetrará no coração, não terá
importância para a vida de um espírito humano em um papel
(STANISLAVSKI, 1995, p. 63).
67
A ênfase sobre a expressividade do gesto se valendo da metáfora dentro-fora, contudo,
não é recente. As teorias do ator do século XVII descrevem a imitação das afeições interiores da
alma fundada sobre as impressões que estas imprimem naturalmente no corpo e sobre o
“julgamento efetuado do comportamento e inclinação das pessoas a partir de seus movimentos
exteriores” (MENESTRIER, 1972, p. 160). A própria noção de expressão é vista comumente
como exteriorização de um impulso interno do sujeito, por meio das extremidades de seu corpo.
A discussão sobre a interioridade, o poder deste mundo de dentro e sua relação com o de fora
legitima os níveis de dramaticidade e expressividade do corpo.
Johann Jacob Engel (1741-?), em Idéias sobre o gesto e a ação teatral (1795) defendeu
a autonomia do oficio do ator e a possibilidade de formar uma arte do gesto por meio do estudo
e classificação do gesto e da ação, sendo a noção de ação (actio) vinculada, ainda, aos estudos
da retórica. “Há muitos escritos sobre esta matéria, em muitas línguas, mas não se conhece
nenhuma que nos traga regras particulares, exatas e precisas do jogo do ator. Há que se criar
uma teoria inteiramente nova.” (ENGEL, 1979, p. 6-9). O teórico alemão reconheceu a
existência da arte do ator dramático, debate aberto por Sainte-Albine com a obra O Comediante
em 1747, cujo Paradoxo do Comediante, de 1773, de Diderot, é um outro reflexo. Engel
chamou a atenção para a diferença da emissão de “estados da alma pelos signos exteriores
arbitrários” que seriam próprios às situações cotidianas e os que devem ser emitidos sobre a
cena. As modificações exteriores do corpo seriam o efeito natural das flutuações interiores da
alma, que se manifestam mesmo sem nenhum esforço. Mas ao ator, “não há outra forma de
alcançar a perfeição do que estudar todas as nuances particulares e que os signos exteriores das
paixões e dos sentimentos oferecem, efeitos da variedade de caracteres e temperamentos, e de
formar um método geral.” (ENGEL, 1979, p. 6-9).
Figura 10: A classificação das paixões: terror, da obra de Engel (1785)
Idéias sobre o gesto e ação teatral. (ROACH, 1985, p. 76).
68
Ao abordar a motivação de cada gesto e suas especificidades na cena, Engel antecipa
algumas questões propostas pelo sistema stanislavskiano, cem anos depois. A força das
reflexões presentes na obra Idéias sobre o gesto e a ação teatral reside na imbricação entre
teoria e a prática, constituindo-se, assim, em um dos primeiros sistemas históricos relativos à
atuação do ator. Nesta obra, Engel aborda a noção de dentro e fora da ação enfocando a
observação dos signos exteriores do corpo com vistas a formação de uma teoria do gesto:
Nós não conhecemos a natureza da alma se não pelas suas
operações; e nós encontraremos certamente a solução de um
número de dificuldades, se observarmos com mais atenção o
modo destas operações, assim que as expressões variadas de suas
paixões e os movimentos que estas paixões produzem no corpo.
Não podemos ver de uma maneira imediata, mas podemos ser
mais atentivos para examinar seu espelho, ou melhor, seu véu,
que é bastante diáfano e bastante móvel, para, através de suas
dobras leves, nós podermos perceber o vir a ser da forma.
(ENGEL, 1979, p. 20).
Ao descrever as maneiras de expressar um gesto de amizade, Engel acentuou o aperto
de mão como menos intenso, pois reúne somente as duas extremidades do corpo, e o beijo e o
abraço, como mais intensos, pois aproximam inteiramente os dois indivíduos e reúnem as duas
partes superiores do corpo. Já o habitante do campo, cuja “corrupção da cidade ainda não
degradou o coração”, reserva o abraço para momentos de entusiasmo. A amizade não é apenas
um aperto de mão, mas a “expressão interior do coração”, é pleno de força, energia e calor
(ENGEL, 1979, p. 30).
Utilizando-se de exemplo similar, Grotowski (apud RICHARDS, 1995, p. 75) chamou a
atenção para os camponeses, que, ligados à vida tradicional, iniciam um aperto de mão com um
movimento que começa de dentro do corpo, ao inverso do homem urbano, cujo enfoque é
periférico, ou seja, gestual. Já as ações, nascem do interior do corpo. Como movimentos das
extremidades do corpo, os gestos não envolveriam nem transferência nem suporte do peso,
tampouco a participação do eixo corporal central.
Numa breve, porém decisiva passagem em A criação de um papel, Stanislavski aponta
para a importância do trabalho sobre os impulsos, que não foi desenvolvido plenamente, em
decorrência de sua morte. Para ele, as ações orgânicas nascem efetivamente a partir do estímulo
69
dos impulsos internos do corpo: “[...] o essencial não está nessas pequenas ações realísticas, e
sim em toda a seqüência criativa que é efetivada graças ao impulso dado por essas ações
físicas”. Ao invés da análise “fria” das ações com a razão, é pelos impulsos interiores para a
ação, pela prática, do ponto de vista da experiência humana e de seu subconsciente, que o ator
toma contato com sua própria “natureza”. (STANISLAVSKI, 1995, p. 238- 249).
Por meio da “participação direta de todos os elementos interiores humanos, com o seu
impulso natural para a ação física” nas condições determinadas pelo papel, e não por meio de
uma análise puramente intelectual, Stanislavski (1995, p. 236) determina que o foco não está na
ação propriamente dita, mas na evocação natural dos impulsos para agir. Uma vez estabelecidos
os impulsos interiores, as ações se desenvolveriam espontaneamente. Atento aos clichês,
“procurando não fazer qualquer movimento”, o impulso, no entendimento do mestre russo, é, de
certa forma, comunicado pela periferia do corpo, mais precisamente pela expressão facial, pelos
olhos e pelas pontas dos dedos (STANISLAVSKI, 1995, p. 238).
A idéia de que é o impulso interno que dá origem ao movimento está presente também
no sistema de Rudolf Laban (1879-1958). Ele denomina por meio do termo esforço a ação
resultante que ocorre em qualquer movimento corporal, com seu ponto de origem interior e
determinante das atitudes, em grande parte inconscientes e involuntárias (LABAN, 1978, p. 51).
O domínio do movimento, por parte do artista cênico, viria com a ação corporal externa e
concreta de estágios de preparação interior – Atenção, Intenção e Decisão, envolvendo aspectos
relativos as possíveis combinações entre dinâmicas de movimento e aos fatores peso, tempo e
espaço41.
É Grotowski (1993), contudo, quem retoma os impulsos como a chave para a
composição de ações físicas orgânicas. Para ele, os impulsos provêm de uma tensão muscular
que porta uma intenção, não no sentido estritamente psicológico, mas algo que se opera no
corpo. Os impulsos sempre precedem às ações, vindos do interior do corpo para a sua periferia.
A reação autêntica começa no interior do corpo. Se não trabalhada conscientemente, o que
poderia ser uma ação se restringe a um gesto que, para Grotowski, é periférico. Ele localiza o
impulso da ação vindo de uma região denominada cruz, na parte inferior da coluna vertebral,
com toda a base do corpo até a base do abdômen – e se expandindo ao resto do corpo. O que é
exterior, o detalhe ou o gesto, seria somente a conclusão deste processo interior. Se o
movimento não nasce desta região, torna-se artificial, falso e sem vida. A noção de interioridade
da ação, neste caso, é associada à de organicidade. Grotowski adverte que esta localização não 41 De acordo com Laban (1978, p. 131), “O individuo que aprendeu a relacionar-se com o Espaço, dominando-o fisicamente, tem Atenção. Aquele que detém o domínio de sua relação com o fator Esforço-peso tem Intenção; e quando a pessoa se ajustou no tempo, tem Decisão”.
70
pode ser aplicada como uma receita. Só se pode ser relativamente consciente para desbloquear
esta região, mas não para manipulá-la durante os exercícios e, jamais, durante a ação, pois não é
uma verdade absoluta. Todo o corpo é memória, haveria muitos outros pontos de partida. Ele
salienta que existem pequenos impulsos no corpo que são sintomas, tais como quando se
enrubesce, e que não são ações, visto que não dependem da vontade, pelo menos da vontade
consciente.
O diretor e teórico teatral Eugênio Barba define a ação física iniciando, igualmente, pela
necessidade de distinção do simples movimento ou do simples gesto. A ação física seria aquela
que, por menor e menos perceptível que fosse, mesmo numa tensão imperceptível da mão, por
exemplo, modificasse a tonicidade do corpo por inteiro. Neste caso, a parte modifica o todo,
análogo ao que Meyerhold (apud HORMIGON, 1992) estabeleceu como princípio de
agrupamento corporal ao sinalizar que, se a ponta do nariz se mexe, todo o corpo responde, pois
nada poderá estar fora da ação. Uma verdadeira ação teria este poder de modificar o corpo como
um todo e, por conseqüência, causar uma alteração na percepção do espectador. Barba (2002, p.
356) mantém a localização no tronco, apontada por Grotowski como local originário da ação:
“Não é pelo cotovelo que a mão se movimenta, não é o ombro que movimenta o braço, mas é
no torso que se localizam as origens de todo impulso dinâmico. É uma das condições que
propicia a ação orgânica.” Neste sentido, o exercício, conforme afirma Barba, funcionaria como
uma “ficção pedagógica”, capaz de ensinar o ator a pensar organicamente com a globalidade do
corpo-espírito. Ao trabalhar com o visível, através de formas susceptíveis de serem repetidas –
as partituras, o ator estabelece um diálogo entre o visível e o invisível, o que pode ser entendido
como interioridade.
O invisível dá vida àquilo que o espectador vê e à sub-partitura
do ator. Com o termo sub-partitura não me refiro a um andaime
escondido, mas a um processo pessoal freqüentemente
impossível de verbalizar. Sua origem pode residir em uma
ressonância, em um movimento, imagem ou constelação de
palavras. Esta sub-partitura pertence ao nível de organização
básico sobre o qual se apóiam os ulteriores níveis de organização
do espetáculo, da eficácia da presença individual dos atores ao
entrelaçamento da relação deles, da organização do espaço às
escolhas dramatúrgicas. A interação dos diversos níveis de
organização provoca o sentido que o espetáculo assume para o
espectador. (BARBA, 2002, p. 355).
71
As diferenças entre Stanislavski e Grotowski estariam, salienta Richards (2001), no fato
de o primeiro valorizar, ainda, o impulso pela periferia do corpo (rosto, olhos, mãos), ao passo
que o segundo define o impulso como uma reação que começa dentro do corpo, partindo,
especificamente, da coluna, e não se exterioriza, tão explicitamente, na periferia. Contudo,
Stanislavski (1995, p. 63) já sinalizava que a questão não está no movimento dos braços, das
pernas ou do corpo, mas nos movimentos e impulsos interiores. Eis como Grotowski (apud
RICHARDS, 1995, p. 94) exemplifica: ao invés do ator olhar diretamente para quem está
sentado ao lado, ou seja, olhar exteriormente para esta pessoa, ele realiza somente o impulso de
olhar. Da mesma forma, realiza um impulso para, quase imperceptivelmente, tocá-la. O que
implica em não deixar a ação se exteriorizar facilmente, somente desencadear o seu início e, de
certa forma, suspendê-la no tempo e no espaço. Realizar o impulso de caminhar sem se levantar
de uma cadeira é outra forma apontada por Grotowski para treinar as ações físicas, ao invés de o
ator enfatizar o treinamento do movimento de caminhar em si mesmo.
Subsiste a noção de que o que “vem de dentro” é sinônimo de maior organicidade e
verdade do que o que “vem de fora”; a ação que nasce do interior do corpo, portanto, tende a ser
mais qualitativamente considerada. Os aspectos subjetivos são primeiramente apontados por
Stanislavski por meio das técnicas de resgate dos estados emocionais, para, mais tarde,
requisitar meios objetivos do corpo, pelo método das ações físicas. É quando a sua proposta
metodológica abre maior espaço para o trânsito entre o dentro e o fora. O foco é ora direcionado
para os conteúdos interiores, ora para os estímulos exteriores, numa relação de alternância entre
corpo e meio. O interesse quase obsessivo de Stanislavski pelo processo psicológico interno se
mantém com o método das ações físicas, mas a ignição não seria atributo somente dos
processos mentais, ou do modelo interno concebido por Diderot (1986) com a memória e
imaginação. A ação do corpo é que funcionaria como isca, ou seja, entendida enquanto um
estímulo vindo “de fora” para fazer emergir o mundo “de dentro”, do subconsciente. O trabalho
sobre o corpo é visto ainda como algo externo, garantindo a sobrevivência da metáfora do
corpo-máquina.
Em Minha vida na arte, Stanislavski (1989, p. 539) descreve seu sistema em duas partes
principais, dividindo o trabalho do artista sobre si mesmo e no papel, em interno e externo:
O trabalho interno consigo mesmo consiste na elaboração de uma
técnica psíquica que permite ao artista desencadear em si mesmo
o estado criador, no qual a inspiração lhe vem de modo cada vez
72
mais fácil. O trabalho externo consigo mesmo consiste em
preparar a máquina do corpo para personificar o papel e
transmitir com precisão a vida interna deste. O trabalho sobre o
papel consiste em estudar a essência espiritual da obra dramática.
Em sua metodologia de confrontação e erradicação de bloqueios físicos e psíquicos do
ator, Grotowski (1992, p. 14) priorizou a eliminação do lapso de tempo dentre impulso interior
e ação exterior, de “modo que o impulso se torna já uma reação exterior”. Mas é Meyerhold
quem romperá mais enfaticamente com a atitude introspectiva e a hegemonia do dentro, ao
propor um movimento que reaja por meio de um estímulo proveniente do exterior. Neste
sentido, não há a supressão da emoção e outros estados ditos interiores, mas estes surgiriam
desencadeados pelo estado físico reativo. Uma expulsão, mais do que uma impulsão da ação. A
hierarquia e supremacia dos aspectos interiores e subjetivos do ator são questionadas através
dos argumentos das teorias reflexionistas. Toda ação física passa a ser entendida como um
mecanismo desencadeado por um processo orgânico e ocorrente a partir de uma resposta à
excitação. O estado psicológico é determinado pela precisão do processo físico, requisitando um
ator vivo e “nervoso”, não no sentido patológico, mas com o sistema nervoso com boa saúde e
respondendo aos estímulos externos com eficiência (PICON-VALLIN, 1990). O efeito do
comportamento na prática do ator se daria através de um processo de condicionamento de
reflexos resultante da experiência a partir do binômio estímulo-resposta ao meio. A ação do ator
passa a ser uma reação, uma resposta a uma demanda de fora, sob princípios de execução
precisos e rápidos, decompostos em três fases – intenção, execução e reação, seguindo o modelo
do reflexo (excitação – resposta – reação) (PICON-VALLIN, 1990, p. 109).
Meyerhold (apud PICON-VALLIN, 1990, p. 111) coloca em jogo a materialidade do
corpo do ator em movimento, considerando a arte como produtora de uma realidade pela ação
direta sobre a própria matéria, o corpo do ator, e identificada com a sua construção técnica. Um
dos exercícios da biomecânica, direcionados a desenvolver a reação instantânea a um estímulo
vindo do exterior, envolve marchas, lançamento de objetos imaginários e caminhadas com
recipiente de água na mão ou cabeça, buscando a estabilidade e o equilíbrio. Outros exercícios
mais complexos, em torno de 22, intitulados de estudos, trabalhavam sob princípios tais como o
da oposição e da fixação do ponto inicial e final do movimento, com finalidade de trabalhar
uma “resposta elétrica”, ou seja, instantânea, a uma demanda proveniente do exterior.
73
Figura 11: exercício de biomecânica. Golpe de punhal. Picon-Vallin (1990,
p.108)
2.2 Do centro do corpo à periferia
A idéia de um centro que se estende para a periferia é outro parâmetro para descrever a
ação do ator, e revela e valida um determinado entendimento da relação entre corpo e alma ou
corpo e meio. Experimentamos nossos corpos como tendo centro (órgãos internos, esqueleto) e
periferia (dedos, cabelo). O centro é visto como mais importante que a periferia em dois
sentidos: o centro define a identidade do individuo, ao contrário da periferia ou parte, e a
periferia é vista como dependente do centro, mas não o contrário. Da mesma forma, o interior
carrega a idéia de profundidade e verdade, em oposição à noção de exterioridade e superfície.
Inúmeras metáforas reforçam estas afirmações, onde o que é mais importante é entender o
significado central, ou definir o centro de uma questão, ou partir do centro ou interior do corpo.
Os parâmetros que ditam o que é central e o que é periférico, contudo, não são
absolutos. O rosto e as mãos nem sempre foram entendidos como efeitos periféricos no trabalho
gestual do ator como Stanislavski e Grotowski descreviam. Por muito tempo, mantiveram-se
como bases expressivas e “resumos da humanidade”, portanto, centrais para expressão do
corpo. Hacks (1990), na obra O Gesto, um dos primeiros livros a discutir a noção de gesto
especificamente, sem se restringir ao enfoque dado pelos tratados de retórica, classifica os
gestos das mãos em sua extraordinária capacidade de exprimir idéias sem que o homem tenha a
necessidade de se mover muito.
A face “palmária” teria seis posições principais que, somadas à posição indicativa do
dedo index, traduziriam todos os gestos humanos, que serviriam tanto para analisar o gesto
cotidiano quanto o do orador e o do ator. A face da palma da mão voltada para a terra, a
exemplo, veicula a idéia de base, apoio, solidez e autoridade. Para cima, pode denotar súplica.
74
Mãos trêmulas indicariam hesitação.
Observando atentamente os movimentos e posições múltiplas das
mãos, podemos estabelecer, em geral, que todos os gestos têm
um centro comum que os produz, o interior da mão, a face
palmaria, pois qualquer que seja o gesto realizado, a exceção do
gesto indicativo, o interior da mão é sempre o princípio do gesto.
A palma da mão faz todos os gestos, exprime todas as idéias. É
ela quem concede, que recebe, que repousa ou atira, que explica,
que faz, suplica, que acompanha de seu gesto todo ato ou todo
pensamento, que resume a humanidade. Podemos afirmar que a
humanidade é a palma da mão. (HACHS, 1900, p. 45).
A noção de centro e interior persiste quando Hacks afirma que o interior da mão é o
princípio do gesto. Inserido, igualmente, no problema da expressão, ou seja, a idéia do gesto
como comunicação de um significado interior, François Delsarte (1811-1871) apontará para um
novo pensamento sobre o corpo e a expressividade. O pensador francês deslocará, de forma
contundente, a fonte motora da extremidade (rosto, mãos) para o centro (torso), inaugurando
uma outra relação para o trânsito das metáforas do dentro e fora. Quando traz a expressão para o
centro do corpo Delsarte (apud PORTE, 1992) coloca em cheque a tradição retórica da
expressividade em sua valoração das extremidades do corpo e a relação do gesto com a
linguagem verbal. O torso não possui a visibilidade do rosto e das mãos, mas será considerado
por Delsarte como fonte e meio essencial de uma verdadeira expressão emocional, e que
Grotowski (1993) enfatizará como região dos impulsos internos da ação, com ênfase na base da
coluna vertebral. Encerrando as vísceras e órgãos vitais, o tronco fará circular o movimento das
emoções, em oposição à visão mecanicista em que as paixões se fazem ver no rosto, olhos e
mãos, os tais espelhos da alma que Descartes e os teóricos teatrais iluministas ressaltaram. O
termo gesto, utilizado por Delsarte de forma mais ampla, indicaria o movimento expressivo de
qualquer parte do corpo ou rosto.
75
Figura 12: Gesto que indica a idéia de
afastamento. “O gesto”. Charles Hacks. Paris,
Librairie Marpon 8 Flammarion, 1900.
Tendo sido cantor e vivido sérios problemas relacionados à aprendizagem do canto em
conservatórios, ocasionando, inclusive, a perda de sua voz, Delsarte, em seu percurso como
pesquisador, estabeleceu um tipo de respiração diafragmática. Esta seria adotada por cantores e
atores, envolvendo o trânsito entre o dentro e o fora com a noção de inspiração, suspensão e
expiração, bem como o estudo da sua relação com os sentimentos. Chamada Lei da
Correspondência, cada função do corpo corresponderia a uma ação do espírito. A lei de
sucessão (juntamente com a oposição e paralelismo) pensada por Delsarte (apud PORTE, 1992)
dará uma espécie de liberdade para a coluna vertebral e o torso e permitirá a abertura à
passagem incessante do fluxo vital do centro para a periferia42. Alfred Giraudet, ator francês,
aluno de Delsarte, e professor do Conservatório Nacional da Música e Declamação, em sua obra
Mimique. Physionomie et gestes, méthode pratique d’aprés le systhéme de F. del Sarte pour
servir à l’expression des sentiments (1895), salienta que o gesto, até então, não havia tido um
estudo especializado. Os estudos científicos de Delsarte acerca da fisiologia do movimento
teriam coberto esta lacuna, contribuindo para que “a expressão não se acomode em imitação
mecânica.” (GIRAUDET, 1895, p. 10). O fantasma da mecanicidade persiste. As leis em que
Delsarte se baseou, de acordo com Giraudet (1895), seriam fruto da observação e estudo de
regras concernentes às leis naturais, e estas leis seriam confirmadas pelos trabalhos científicos
42 O bailarino e coreógrafo norte-americano Ted Shawn, em sua obra “Every Little Movement, a book about Delsarte” (1954) chama a atenção para a utilização das sucessões na dança moderna americana do inicio do século XX, partindo do torso, e propagada ao exterior e ao interior do corpo. (PORTE, 1992).
76
da época, a exemplo de Darwin e Duchenne de Boulogne.
Grotowski (1992, p. 120) adverte que este tipo de análise do corpo e suas reações devem
ser reinterpretados, por estarem condicionados às convenções teatrais do século XIX. Ele
utilizou alguns exercícios baseados no sistema Delsarte, particularmente a divisão em impulsos
introvertidos e extrovertidos relacionados a reações faciais. Os movimentos extrovertidos
criariam um contato com o exterior, os introvertidos chamariam a atenção para os aspectos mais
interiores do ator, com estágios intermediários e neutros. Um dos sistemas de formação do ator
no século XX, que reforçam igualmente a relação centro-periferia, é o mimo corporal criado por
Decroux (apud PAVIS, 2003). Toda ação parte do centro antes de se propagar para o resto do
corpo, por meio de uma execução técnica precisa do tronco, ao invés da periferia de expressões
faciais ou manuais. O gesto seria o resultado do trabalho de todo o corpo. De acordo com Pavis
(2003, p. 296), após a desmaterialização provocada pela metáfora da marionete (Kleist e Craig),
Decroux propôs uma re-materialização ou uma re-corporalização do corpo humano: “A
centralização do corpo impõe uma solidariedade inter-orgânica que religa as diversas partes do
organismo e coloca a importância da sintonia das articulações, dos músculos e de todo elemento
mobilizante do corpo”.
A lógica de correspondência entre o visível (corpo) e o invisível (alma, espírito,
sentimento), sustentada pelos fisionomistas, será mantida por Delsarte, ou seja, trazer o invisível
à sua visibilidade. Ele valorizará o aspecto interno das paixões por meio do estudo e da
classificação de movimentos manifestados no corpo visível. O ombro, por exemplo, seria um
termômetro do sentimento e sua elevação ou caimento determinaria o grau do calor da
expressão, do abandono à exaltação. O estudo das posturas do corpo e das feições do rosto
(fisionomia) tem sido fonte inesgotável para o artista (GIRAUDET, 1895).
Vale lembrar que, já no século XVII, a fisionomia encontra eco entre pintores e atores.
Esta “pseudociência” – que teve suas origens na Grécia43, sob impulsão do teólogo Johann
Casper Lavater (1741-1801)44 – é renovada, apropriando-se do entendimento das paixões
cartesianas e reforçando a tese de que a expressão das paixões poderia ser sistematizada. A
variedade das expressões humanas e animais deveria obedecer a uma regra, pois a natureza
apresentaria certas coincidências.
43 Etmologia do termo physiognomie: physis, “natureza” e gnômôn, “que sabe” (BARIDOU, 1999). 44 Obras referências de Lavater: La physiognomie ou l’art de connaître les homes e Essays on Physiognomy (1775-1778), onde o autor acreditava ter descoberto uma ciência de correspondência entre o interior e exterior do homem.
77
Figura13: desenho fisiológico de Johann Casper Lavater.
Catálogo exposição “Da alma ao corpo”. Paris, Gallimard,
2002
A fisionomia buscava o conhecimento da parte invisível do caráter do homem, pela
observação do conjunto de traços físicos e do aspecto geral do rosto, fazendo do corpo o
espelho da alma. A partir de cada parte do corpo e determinada expressão, entendia-se que o
caráter como um todo poderia ser decifrado. Também eram considerados os movimentos das
mãos, as atitudes e a voz como representação das inclinações da alma. A fisionomia seria uma
ciência da correspondência entre o homem exterior e o interior, entre a superfície visível e o
conteúdo invisível. Entre o dentro e o fora. Um bom fisionomista poderia fazer o percurso
inverso. Ao olhar a fisionomia, perceberia os traços interiores da alma.
A fisionomia do rosto seria a parte mais útil à expressão, por onde os movimentos da
alma se manifestam com maior contundência. “Como sabeis, é no rosto dos homens que as
paixões se imprimem, que os movimentos e os afetos da alma se manifestam, que a calma, a
agitação, o prazer, a dor e temor e a esperança desenha-se sucessivamente.”45 (NOVERRE,
apud MONTEIRO, 1998, p. 271). Sobre os sinais exteriores das paixões, Descartes (1996, p.
190) salienta que “não há nenhuma paixão que alguma ação particular dos olhos não declare
[...] pode-se dizer quase o mesmo das ações do rosto que também acompanham as paixões”.
O rosto e os olhos tinham, igualmente, para Engel (1979), a vantagem incontestável de
45 Em Cartas sobre Dança, Jean-Georges Noverre (1727-1810), o grande reformador da dança, compactua com as idéias de Diderot acerca da conversão da dança em arte de imitação, em ação dramática. Através da expressão gestual da pantomima a dança poderia tornar-se menos “mecânica” e veicular significados e emocionar. “Todos os movimentos do corpo são meramente automáticos e não significam nada se o rosto se mantém mudo, se de alguma forma não os anima ou vivifica”. (NOVERRE, apud MONTEIRO, 1998, p. 271).
78
expressar o que se passa na alma. Ele entendia a fisionomia como uma arte semelhante à
pantomima, porque as duas se ocupariam de fazer ver as expressões da alma nas modificações
externas do corpo. Mas as diferenciava a partir de sua contingência, chamando a atenção, desta
forma, para a dinâmica do movimento do ator. A primeira dirigiria a pesquisa sobre os “traços
fixos e permanentes, sobre o qual podemos julgar o caráter do homem em geral” e a segunda
sobre “os movimentos momentâneos do corpo, que indicam esta ou aquela situação particular
da alma.” (ENGEL, 1997, p. 5). Através de seus comentários, Engel examina a questão da
expressividade do corpo, por meio da teoria das paixões e de acordo com a mimese clássica e
seus mecanismos imitativos. Descartes e Le Brun são suas referências ao tratar das paixões da
alma e das regras de expressão gestual. É sobre os traços essenciais, gerais e naturais do gesto
que Engel estabeleceu uma teoria da arte do ator. O gesto é estudado enquanto suporte
mimético de uma referência já estruturada das “situações” da alma, tais como a ira, o desejo, o
orgulho, o desespero.
Figura 14 : O pavor, uma das paixões da alma, por Le Brun. Catálogo
exposição “Da alma ao corpo”. Paris, Gallimard, 2002
As reflexões de Engel e Delsarte se aproximam em seu esforço de transformar a arte do
gesto e do movimento em uma espécie de ciência universal, elevando-a a uma condição
autônoma e relevante, frente a outras artes. Embora a dinâmica das emoções seja natural e
culturalmente moldada de forma diferenciada em cada indivíduo, há indícios, como salienta
Damásio (2000), (o que Darwin já comprovou em sua catalogação) de que a maioria das
reações emocionais resulta de uma história compartilhada pelas espécies, por meio de ajustes
evolutivos. Vistas “do alto”, são as semelhanças que saltam aos olhos.
79
O método de análise delsartiano propunha-se a ser um instrumento de exame do corpo, a
partir das semelhanças das reações emocionais. A relação entre o dentro e o fora se revelaria por
meio da classificação das diferentes modificações do corpo ao expressar a condição humana,
numa tentativa de unir corpo e alma. O complexo sistema elaborado por Delsarte já apontava
para os aspectos rítmicos, dinâmicos e espaciais, relacionando o movimento, mais
enfaticamente, a determinados sentimentos e emoções46. Cada emoção engendrava sobre o
corpo modificações específicas que poderiam ser classificadas e ensinadas, como salientava
Engel (1979), sob a crença em uma expressão essencial e universal fundada sobre cada paixão.
Em posse destes mecanismos, e formado um conjunto de regras, o ator poderia não só imitar
todos os signos e modificações do corpo, como melhor compreendê-los.
Mecanismos de classificação de expressões não estão imunes ao estancamento do
movimento das emoções em determinados signos. Os gráficos dos estudos de Delsarte, em
especial os publicados nos Estados Unidos, por exemplo, foram transformados em manuais que
reduziam as relações, de certa forma dinâmicas, entre gesto e emoção por ele estabelecidas.
Avesso aos clichês gestuais, agora de atores já consagrados, uma vez que se exigia que alunos
seguissem seus mestres, Stanislavski (1994, p. 20) chamaria a atenção para a “atuação
mecânica”, enquanto “imitação artificial da periferia dos sentimentos físicos”, que diferia do
processo pessoal vivente e interno que ele proporia em seu sistema, por meio da memória
emotiva.
2.3 Repensando as metáforas de demarcação
A busca de integração dos aspectos interiores e exteriores, físicos e espirituais (ou
psicológicos) vem norteando as investigações acerca do trabalho do ator, e esta herança se
manterá em Stanislavski que instaurará procedimentos que serão seguidos por Grotowski. A
relação entre o dentro e o fora, o interior e o exterior, o centro e a periferia, o todo e a parte, a
profundidade e a superfície tornaram-se parâmetros de qualificação da conduta cênica do ator e
de elaboração de procedimentos pedagógicos. São metáforas que denotam oposição e
demarcação de fronteiras e que persistem naturalmente nos discursos para falar dos fenômenos
do corpomente, mas que requisitam uma atenção para que não se transformem em imagem
redutora das complexas operações do organismo em seu meio. Enquanto metáforas de ignição
46 Rudolf Laban, no século XX, estabelecerá relações de identificação do movimento a leis universais contextualizadas no tempo e espaço, desvinculando de certa forma a correspondência mais causal e taxionômica entre movimento e emoção atribuída por Delsarte.
80
poética e de atos do corpo, estas imagens do dentro e do fora, do centro e da periferia, da parte e
do todo têm sua eficácia. Todavia, talvez não reflitam, de fato, os complexos processos
cognitivos e as relações entre os aspectos ditos físicos e mentais do organismo.
As metáforas presentes nas teorias sobre o corpo do ator estão demasiadamente sob o
efeito de uma lógica centralizadora e interiorizada, se considerarmos que o conhecimento sobre
a relação corpo e mente, na atualidade, aponta para um sistema dinâmico disposto em rede, com
exímia plasticidade e menos centralidade. Há um papel cooperativo e interativo do corpo, nos
processos cognitivos, de forma que a idéia de um ponto centralizador e irradiador, enquanto
emissor e receptor de informações que vêm do cérebro e da mente, tende a se esvaziar. Da
mesma forma, perde adeptos a idéia de interior resguardado e desvinculado do meio no qual
está inserido.
Uma das questões mais debatidas entre cientistas da área cognitiva (Damásio, 2004;
Dennett 1997; Lakoff ; Johnson, 1999; Varela, s/d) é relativa ao entendimento de como algo que
estava fora, passa a pertencer ao organismo. Ou seja, como algo que apreendemos se “encarna”,
se transforma em corpo. A metáfora do recipiente ou contêiner se fragiliza, se pensarmos que o
corpo não é um lugar onde as informações se acondicionam, mas um fluxo inestancável que faz
com que corpo e ambiente formem uma rede de conexões em vários níveis, envolvendo
aspectos sensório-motores, emocionais, racionais, dentre outros. Estas operações entre o dentro
e o fora têm particularidades, pois a cada vez que o corpo percebe algo de si mesmo ou do
ambiente, consciente ou inconscientemente, ele se re-organiza. O corpo não é um meio onde
uma informação entra impunemente, sem estabelecer quaisquer relações com as demais
informações que lá já estão. É neste sentido, que Katz e Greiner (2005) afirmam que o corpo é
um selecionador que vai se autoconstituindo de forma co-evolutiva como o seu ambiente, uma
mídia de si mesmo, ou um corpomídia. O conceito de mídia, bem como a idéia de veículo
comunicador, como um mero transmissor de informações, é alargado para contemplar os
processos de comunicação do vivo e a noção de processo. Neste sentido, o corpo não é um
instrumental de mediação, tal qual um aparelho de rádio que re-codifica e transmite as
informações ao mundo, mas um auto-organizador e transformador de processos que ocorrem
em seu próprio meio e nas relações que estabelece com o seu ambiente. A noção de
comunicação do corpo não pode ser restrita a significados, “pois não se trata de uma série
estática de representações”:
Afinal, nem tudo o que se comunica opera em torno de
mensagens já codificadas. Há taxas diferentes de coerência,
81
incluindo, por exemplo, a comunicação de estados e nexos de
sentido que modificam o corpo. Esses processos têm lugar no
tempo real de mudanças que ainda estão por vir, no ambiente, no
sistema sensório motor e nervoso. Quem dá início é o sentido do
movimento. É o movimento que faz do corpo um corpomídia.
(KATZ;GREINER, 2005, p. 133)
A relação entre o dentro e o fora é própria tanto dos organismos vivos, quanto de
máquinas. O diferencial fica por conta da dinâmica e dos níveis de organicidade e plasticidade
presentes no vivo, borrando as fronteiras limítrofes entre o interior e o exterior. Se comparada à
central de processamentos de um computador – a metáfora de máquina mais contundente de
nossos tempos – a função dos neurônios parece ser a transformação de conjuntos de freqüências
de pulsos em outras freqüências de pulsos. Enquanto as propriedades funcionais de uma porta
lógica de um computador são fixas, as do cérebro são dotadas de exímia plasticidade, dado que
o desenvolvimento de novas conexões sinópticas e a ruptura e degeneração das antigas podem
modificar a função da entrada/saída da célula (CHURCHLAND, 2004). Os neurônios, nossos
dispositivos de processamento de informação, diferem da lógica de um computador, o que não
significa que, devidamente programada, estas máquinas não possam simular, de certa forma, as
atividades dos neurônios. É a partir de experiências do gênero, por parte das neurociências, que
tem havido um considerável avanço de pesquisas relativas aos processos cognitivos.
A relação dinâmica entre as informações do dentro e fora envolve, também, a noção do
todo e da parte. Na metáfora mecanicista, o todo se configura de partes que, como um relógio,
não se alteraram pelas outras partes, apenas cumprem sua função em relação à eficácia de
funcionamento do todo. O mecanicismo mantém o mesmo parâmetro de análise do todo à parte,
estendendo-o a todos os fenômenos da natureza. Mas o organismo não é mais entendido
somente como um todo que se compõe de uma soma das partes, mas um sistema integrado onde
quaisquer modificações das partes podem alterar outras partes e o todo. Possuímos inúmeros
processos de auto-organização, como os de “auto-afecção” que mudam constantemente nossa
própria estrutura em relação ao meio interno e externo. Os sistemas mecânicos “respondem”
mais linearmente a demandas do dentro e fora, já os sistemas complexos e auto-organizativos,
“adaptam-se” a elas (OLIVEIRA, 2003, p. 149).
Há uma necessidade, cada vez maior, de compreender os sistemas cognitivos,
relacionando-os com processos emergentes e auto-organizativos, e menos com relações causais
de entrada e saída de informações na mente do sujeito. Como afirma Varela (s/d), até a década
82
de 1970, as hipóteses cognitivas haviam se afastado demais das estratégias biológicas de
flexibilidade e plasticidade, preferindo um processamento embasado em regras mecânicas mais
seqüenciais e lineares, a exemplo do cognitivismo, quando a metáfora da máquina é atualizada,
pela presença do computador.
Como primeira alternativa ao modelo cognitivista clássico, surgiu o conexionismo.
Neste novo entendimento, o processo cognitivo partiria de componentes que se conectam
dinamicamente entre si, onde cada componente opera num âmbito local. Como estes
componentes estão conectados em rede, há uma cooperação global que emerge
espontaneamente quando os estados de todos os neurônios participantes alcançam um estado
satisfatório. Salienta Varela, que este tipo de sistema não requer uma unidade processadora
central que guie a operação: “este trânsito das regras locais à coerência global é o coração
daquilo que em cibernética se chamava de auto-organização.” (MATURANA; VARELA, 1994,
p. 115). A rede pode ser considerada como uma metáfora possível para a organização do
corpomente, e do corpomídia, em seu trânsito de informações entre os processos internos e
externos, e entre as partes e o todo.
Aliada a metáfora da rede, a noção de sistema alarga as fronteiras limítrofes entre o
dentro (corpo) e o fora (ambiente). A noção de sistema difere da noção de agregado. Num
sistema as propriedades dos componentes dependem do contexto do sistema o qual fazem parte,
e a sua correlação e coordenação conferem um tipo de unidade. Já a idéia de agregado remete a
partes que não se alteram em relação ao conjunto geral. A raiz da idéia de sistema, de acordo
com Nicholas Rescher (Apud JUARRERO, 2002, p.109) remonta a de uma integração dentro
de um todo ordenado que funciona como uma “unidade orgânica”. Quando organismos vivos se
relacionam em determinado contexto, emergem propriedades que não ocorreriam em sistemas
agregados, a exemplo das máquinas.
A estrutura interna de um sistema consiste em componentes específicos e as relações
entre eles. Juarrero (2002) chama de estrutura externa ou “condições de fronteira e limite” a
interação entre os componentes e o ambiente que afeta ou é afetado pelo sistema em questão (e
não o ambiente como um todo). Juntas, a estrutura interna e externa constitui a estrutura total de
um sistema, atenuando as fronteiras entre o dentro e o fora. O sistema externo pode afetar a
estrutura interna, mas não no sentido de causa eficiente aristotélica ou clássica, tal qual uma
tacada numa bola de bilhar (uma força externa na matéria inerte), mas permite à estrutura
interna a possibilidade de auto-gerir-se e auto-organizar-se. Como a organização das máquinas é
realizada “de fora”, máquinas são alopoiéticas. Organismos vivos são exemplos de sistemas
autopoiéticos, ou seja, sistemas auto-organizados que alteram seus próprios parâmetros de
83
controle (JUARRERO, 2002, p. 112). É neste sentido que a teoria de sistemas dinâmicos
renovaram o estudo da ação.
Outro dado a salientar é que sistemas orgânicos, tais como o digestivo, são “estruturas
em processos” (Joseph Early apud JUARRERO, 2002, p.112) e os sistemas cognitivos e as
ações são vistos igualmente como estruturas dinâmicas em processos. Em sistemas processuais
as conexões, sendo dinâmicas, são nomeadas como fluxos. Se um fluxo físico ocorre para
transportar informação, a conexão é chamada de informacional e o sistema como um todo de
sistema informacional. Pessoas, intenções e ações são também sistemas de informação, assim
como o é sistema genético. São corposmídias.
Trazendo o ator novamente ao foco, e tratando-se de suas ações, verifica-se que elas se
estruturam por meio das impressões que este capta do meio e daquelas que se organizam em seu
próprio organismo e, à medida que é modificado, pela percepção de si mesmo e do meio, as
suas ações se reorganizam. Geradas num espaço de fronteira, não há como precisar onde e como
se inicia a percepção e a ação gerada. Há uma coordenação por parte da atividade cerebral que
regula os processos de vida do organismo, tanto da coordenação das operações internas do
corpo, como pelas interações do organismo como um todo e os aspectos físicos e sociais do
ambiente (DAMÁSIO, 2004).
Ao explicitar as diferenças entre ação física, atividade, movimento e gesto Grotowski
(apud RICHARDS, 1993), ao mesmo tempo em que valoriza o impulso interno como motor da
ação, revela o processo dinâmico que envolve o que chama de ciclo de ações:
O que é preciso compreender logo, é o que não são ações físicas.
As atividades no sentido de limpar o chão, lavar os pratos, fumar
cachimbo não são ações, são atividades. Pessoas que pensam
trabalhar sobre o método das ações físicas fazem sempre esta
confusão. Muito freqüentemente o diretor que diz trabalhar
segundo as ações físicas manda lavar pratos e o chão. Mas a
atividade pode se transformar em ação física. Por exemplo, se
vocês me colocarem uma pergunta muito embaraçosa, que é
quase sempre a regra, eu tenho que ganhar tempo. Começo então
a preparar meu cachimbo de maneira mais ‘sólida’. Neste
momento vira ação, porque isto me serve neste momento. Estou
realmente muito ocupado em preparar o cachimbo, acender o
fogo e depois posso responder a pergunta. (GROTOWSKI apud
RICHARDS, 2001, p. 74).
84
Os atores “gesticulariam” muito, acreditando que este é o caminho da ação. O caminhar
ou o ato de fumar um cachimbo, por exemplo, que por si só, são atividades cotidianas banais,
podem vir a ser uma ação física em que o ator, em contato com seu entorno, estabelece um jogo
de intenções numa dinâmica de ações, atento as suas próprias reações e as de todo o ambiente:
É fácil confundir ação física com movimento. Se eu caminho em
direção a porta, não é uma ação, mas um movimento. Mas se
caminho contestando as perguntas estúpidas a mim dirigidas,
ameaçando que irei terminar a conferência, haverá um ciclo de
ações e não somente o movimento. Este ciclo de ações envolve o
contato com o outro, a forma com que percebo suas reações;
enquanto caminho para a porta, manterei um controle em direção
a ele, percebendo se minha ameaça está funcionando. Não será
somente um andar enquanto movimento, mas algo mais
complexo em torno do fato de caminhar. O engano de muitos
diretores e atores é fixar o movimento em vez de um ciclo todo
de ações (ações, reações, pontos de contato) o qual aparece
simplesmente na situação do movimento (STANISLAVSKI
apud JIMENEZ, 1990, p. 76).
Os processos cognitivos se organizam na esfera menos visível, ao menos a olho nu,
localizados no corpo. O que não quer dizer que estejam centralizados ou descolados do exterior.
O trânsito cognitivo entre as informações do corpo e do mundo se organiza num fluxo constante
e incessante, dificultando a demarcação de fronteiras entre o que pertence a cada campo (interno
e externo), criando um sistema de complexidade em torno de uma ação, tal qual descreveu
Grotowski (apud JIMENEZ, 1990, p. 76), ao diferenciá-la do movimento e do gesto. Percepção,
pensamento e ação não se estruturam com separação abissal entre o que está dentro do corpo do
sujeito, aparentemente centralizado ou preservado, e o que está fora dele, no mundo dos outros
sujeitos e dos objetos. Os processos cognitivos se dão na zona permeável do “entre” corpo e
mundo, na impossibilidade de se rastrear o ponto inicial de uma informação processada como
conhecimento e a ação gerada por um corpo. As ações físicas se organizam nesta zona
indeterminada, nas relações entre o corpo do ator e o corpo do mundo (no momento em que
atua, envolve o público e demais os atores com quem contracena). Entra em jogo um
entendimento não dualista entre corpo e mente, numa perspectiva de pensar o pensamento e a
cognição, enquanto processos encarnados. Considerar conceitos como incorporados ou
85
encarnados significa abdicar da separação ou hierarquia entre habilidades mentais e o sistema
sensório-motor, ou seja, da separação abissal entre razão, percepção e ação.
Os níveis de controle na geração de ações é outro dado a se considerar. A idéia de uma
ação que se organiza sem um agente controlador central e por meio de processos auto-
organizativos, não inviabiliza a existência de graus de intenção ou vontade consciente, por parte
do sujeito. Mas o que faz emergir os processos de auto-organização e escolha não é,
exclusivamente, a vontade ou intenção do sujeito, este não controla toda a emergência dos
padrões de ações, visto que o controle é feito, sistematicamente, e em parceria, com conteúdos
inconscientes. Assim como nos processos evolutivos mais amplos da natureza, as formas e
padrões de ações que surgem não são ideais nem permanentes, mas soluções aproximadas e
competentes para resolver problemas pontuais do momento, na relação corpo-ambiente. Assim
como o corpo não é um produto, mas está sempre em processo, assim o é o ambiente em seu
entorno. Considerando que o ambiente não é só um espaço geográfico ou um lugar, mas uma
rede viva de informações.
É possível falarmos, então, dos processos de conhecimento a partir da lógica de nítida
demarcação ou oposição entre o dentro e o fora? É possível valorar o que é “verdadeiro e
orgânico” como o que vem de dentro? Afinal, o que vem de dentro? O que vem de fora? Se
considerarmos que o homem nunca está separado de seu ambiente e os processos cognitivos são
processos emergentes e auto-organizativos, como se dá esta conexão e a relação entre a
paisagem do organismo e a do mundo?
2.4 O fluxo das imagens
A criação de uma vida que não é do ator, mas da personagem, exige um exercício de
imaginação, e o artista, para Stanislavski (1994), deveria desenvolver uma “corrente” constante
de imagens de seu mundo interior em conexão com o exterior, incluindo, especificamente, a
relação em cena com outros atores. Estas imagens mentais, vistas por Stanislavski como
imagens sonoras e visuais interiores, aliavam-se às da memória de experiências passadas, para
que pudessem ser matérias a trabalhar para a vida do papel. Esta “película”, considerada “uma
série ininterrupta de imagens”, para Stanislavski (1994, p. 82), estava projetada como visão
interior, fazendo vivas as circunstâncias nas quais o ator se move, reavivando o “modelo
interno” diderotiano. Ainda que os objetos e idéias fossem sugeridos pela vida exterior,
primeiro tomavam forma, de acordo com ele, “dentro” do ator, em sua imaginação e em sua
memória.
86
E quanto a estas imagens internas, é correto dizer que as
sentimos em nosso interior? Possuímos a capacidade de ver
coisas que não estão presentes concretamente, formando uma
imagem mental delas. Esta corrente interna de imagens [...] é
uma grande ajuda para o ator, ao fixar sua atenção na vida
interior de seu papel. Este mesmo processo ocorre com os sons.
Ouvimos ruídos imaginários com um ouvido interior.
(STANISLAVSKI, 1994, p. 82).
A formação de imagens não diz respeito somente à atividade imaginativa do ator, com
vistas à construção da personagem, como Stanislavski ressaltou, mas é condição para a
emergência do pensamento e da consciência. É por meio de imagens que percebemos a nós e ao
mundo. Quer seja para a percepção de situações no interior do organismo ou no seu exterior, as
operações do cérebro dependem da criação e manipulação de imagens mentais. Ou seja, as
imagens mentais formam o processo que chamamos de pensamento, e que permitem forma um
“modelo interno”. Estas imagens perceptivas não são somente visuais e sonoras, como
descreveu Stanislavski, mas padrões neurais de cada uma das modalidades sensoriais – visuais,
táteis, auditivas, gustativas, olfativas e somato-sensitivas. Segundo Berthoz (1997), não
teríamos cinco sentidos, como na concepção clássica, mas cerca de nove, incluindo várias
outras formas de percepção, como a dor, por meio dos sistemas muscular, visceral e vestibular.
Temos os captadores sensoriais que são localizados nos músculos, tendões e articulações, num
conjunto denominado de muscular e articular. Há, ainda, os localizados nas duas orelhas
internas, que formam o sistema vestibular. Estes permitem medir a rotação e a horizontalidade
da cabeça em relação à gravidade, o sentido de equilíbrio e as inclinações do corpo no espaço.
Berthoz (1997) chama de “sentido do movimento” o trabalho efetuado por estes captadores
sensoriais47.
47 Alain Berthoz é engenheiro, psicólogo e neurofisiologista. Suas hipóteses provêm de seus estudos no Laboratório de Fisiologia da Percepção e da Ação do Collège de France, Paris, onde atua como professor e pesquisador.
87
Figura 15: Os captores sensoriais (visuais, vestibulares,
musculares, cutâneos e músculo-articulares) que
participam do sentido do movimento. Ilustração de
Fréderic Lacloche em Le Sens du mouvement. Alain
Berthoz. Edição Odile Jacob, Paris, 1997.
É a combinação de imagens em movimento que nos permite perceber a nós mesmos e
ao meio. As imagens descrevem o próprio organismo e o seu entorno, de estados viscerais ao
movimento dos corpos no mundo. Evocadas a partir do passado, da percepção do presente e da
predição do futuro, as imagens se formam num conjunto de áreas cerebrais. A construção destas
imagens possibilita os processos incessantes entre o dentro e fora, porém não se trata de um
centro, mas de uma intricada interconexão neural. As imagens constituem narrativas que são
incorporadas ao fluxo de pensamentos e, neste processo, não assistimos a uma “película” no
interior do cérebro. Não há um expectador externo dentro de nós mesmos, pois somos o filme,
somos, simultaneamente, personagens e criadores desta narrativa imagética não verbal
(DAMÁSIO, 2004). E temos ciência deste fato, graças aos processos de consciência.
Berthoz (2001) alerta para a reversão do que entendemos como função cerebral, a
exemplo do senso comum que vê a separação entre percepção e ação. Como não há,
praticamente, nenhum dispositivo sensorial que não se encontre conectado a sinais motores, a
ação seria, também, organizadora da percepção, e não somente a sua resultante. Há um
movimento continuo entre percepção e ação nas operações entre o dentro e o fora, o centro e a
periferia, a parte e o todo. Segue-se o tempo todo da ação à percepção e da percepção à ação,
considerando que não são processos separados temporal e hierarquicamente. Perceber já é,
afirma Berthoz (2003), de alguma forma, agir, pois a percepção já é uma ação simulada. A
percepção é guiada para a ação e a intenção da ação modifica a percepção (BERTHOZ apud
CORIN, 2001, p. 92). No exemplo do ciclo de ações geradas pela caminhada em direção à
88
porta, descrito anteriormente, Grotowski permite visualizar a ação física como uma via de mão
dupla dos processos perceptivos e acionais, pois, à medida que se constroem imagens de si
mesmo em contato com o outro, as ações vão se reorganizando.
Se o corpo não é instrumento ou objeto, mas a própria condição de ser e estar no mundo,
quanto olhamos algo, somos, simultaneamente, olhados, quando tocamos algo ou alguém,
somos, simultaneamente, tocados, no sentido em que a percepção altera a ação e vice-versa,
reorganizando constantemente os estados orgânicos. Desfaz-se a nítida separação entre sujeito e
objeto, corpo e mundo. Como apontou Merleau-Ponty (2004), o corpo se vê, vendo e se toca,
tocando, numa operação simultânea. A disseminação pelo pensamento fenomenológico do
entendimento do corpo, como estrutura física e vivida ao mesmo tempo, ampliou o
reconhecimento do fluxo de informações entre o interior e exterior (GREINER, 2005, p. 23). É
na observação dos processos biológicos acerca de como conhecemos, que o reconhecimento
deste fluxo ganha maior clareza.
As estruturas cognitivas emergem dos modelos sensórios-motores, numa relação estreita
entre percepção e ação. Este entendimento de percepção (que não é atividade “puramente”
mental) não entende o mundo como pré-dado e independente do receptor, mas implicado,
diretamente, na sua estrutura sensório-motora. Fica mais claro o carater sensório-motor
atribuído às metáforas por Lakoff e Johnson (2002). O domínio cognitivo não seria pré-dado,
mas emergiria na experiência imediata no mundo. Isto implica em uma não separação entre o
ser e o mundo. A operacionalidade do sistema nervoso, para cientistas como Maturana (1994),
não funcionaria nem num extremo representacional, totalmente dependente do meio, nem
solipsista, bastando a si mesmo, mas na interação destes.
A riqueza plástica do sistema nervoso não está no fato de guardar
representações do mundo externo, senão em sua contínua
transformação, que permanece congruente com as
transformações do meio como resultado de cada interação que o
afeta. (MATURANA, 1994, p. 113).
Mas como o cérebro cria imagens na nossa mente? Como as imagens adquirem a
propriedade da subjetividade, que faz com que sejam percebidas como nossas? De acordo com
Damásio (2004), o cérebro e os processos a que chamamos de mente produzem duas espécies
de imagens do corpo. As “imagens da carne”, que são constituídas por imagens do interior do
corpo, baseadas na representação da estrutura e do estado das vísceras e do meio interior. O que
89
nos possibilita sentir dor ou perceber um mal estar súbito. E a segunda espécie, que diz respeito
a imagens que ocorrem quando os órgãos sensitivos periféricos são modificados por objetos
exteriores ao corpo. São componentes tais como a retina, no fundo do globo ocular e a cóclea,
situada no ouvido interno, que nos possibilitam ver ou sentir a presença de alguém ou o
restabelecimento do equilíbrio numa queda ocasional, sendo os captadores do sentido do
movimento (fig.15), apontado por Berthoz (1997). Em quaisquer destes processos, a gama de
alterações corporais que o cérebro mapeia é muito vasta, desde as microscópicas, no nível
químico-físico, ou as visíveis a olho nu, quando um corpo se move em nossa direção
(DAMÁSIO, 2004, p. 206-207).
Em ambas as imagens, seja proveniente da carne ou de ondas sensitivas, o mecanismo
de produção é similar. Na perspectiva de Damásio (2004, p. 208), as imagens que constituem a
base da “corrente mental”, metáfora que Stanislavski utiliza também, quando se refere a estes
processos, são imagens de acontecimentos corporais, seja de acontecimentos que tem lugar na
profundidade do corpo ou numa onda especializada, “próxima da superfície do corpo”. Estas
imagens formam mapas neurais que representam a estrutura e os estados do nosso corpo, a cada
momento. E pouco importa que alguns dos mapas descrevam o mundo no interior do organismo
e que outros descrevam o mundo que nos rodeia, ou se estão na profundidade (coluna vertebral,
vísceras) ou periferia (ouvido, olhos). A lógica cognitiva parece não corresponder fielmente à
hierarquia de metáforas articulada pelas teorias teatrais, quando priorizam somente o interior ou
centro do corpo, ou somente as mãos ou rosto. O que acaba por ser mapeado nas regiões
sensitivas do cérebro e que emerge na nossa mente sob a forma de uma idéia e, posteriormente,
de uma ação, tem a sua origem em estruturas gerais do corpo que se encontram “num
determinado estado e em determinadas circunstâncias.” (DAMÁSIO, 2004, p. 209).
A noção de estado torna-se chave para um novo entendimento do corpo e dos processos
cognitivos. Não se trata de apreender os gestos e ações, limitando-se as imagens construídas em
taxionomias e categorizações pré-fixadas e localizadas (tal emoção, em tal parte do corpo), mas
de perceber os estados possíveis do corpo em seu fluxo de imagens que, a cada nova
circunstância, adentra ou afora o organismo. Soluções cênicas emergirão destas conexões. O
estado que resulta no corpo é fruto do trânsito simultâneo entre as imagens que se produzem na
carne e as que provêm de situações percebidas do exterior, no movimento inestancável entre
percepção e ação.
Contudo, as imagens que o ator tem de si mesmo e do mundo, ao mesmo tempo em que
são constantemente reconstruídas, tendem a se formalizar num padrão metafórico. A mente do
ator cria imagens que constroem metáforas, que, por sua vez, estruturam a sua ação e as
90
soluções cognitivas pré-determinadas e mais estáveis tenderão a se manifestar como hábito. Se
uma metáfora entra no sistema conceitual em que baseamos nossas ações, ela tenderá a alterar
este sistema e as percepções e ações a que este sistema deu origem. Às vezes, são tão
onipresentes em nosso pensamento, como lembram Lakoff e Johnson (2002), que as metáforas
se tornam evidentes por si mesmas e descrições diretas dos fenômenos. Tornam-se modelos
mentais que orientam ações no mundo e que, por sua vez, “corporizadas” em ações, tendem a
permanecer até que surjam outras metáforas que reorientem para outras relações com o mundo.
As metáforas têm o poder de definir realidades por meio de uma rede de implicações, que
ilumina determinados aspectos e oculta outros, podendo ser profecias auto-suficientes
(LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 257). Definimos nossa relação com o mundo e conosco
mesmos pelas metáforas e agimos com base nelas, da mesma forma que elas agem sobre nós,
considerando que a estruturação metafórica se dá de forma também inconsciente.
Se metáforas são, primordialmente, uma questão de imagem (pensamento) e ação e,
apenas secundariamente, de linguagem, cabe, inicialmente, ao ator perceber, investigar e
reestruturar os campos metafóricos (ontológicos e orientacionais) nos quais está inserido e suas
noções instituídas. Aí entra o trabalho “sobre si mesmo” e os modos de investigação, tais como
a improvisação, o exercício técnico e a atenção constante, para que os atores ampliem a
percepção e construção imagética. A vida imaginária ou a fantasia criativa que Stanislavski
destacou como fundamental para o exercício do ator. Como lembra Greiner (2005), a chave está
na transgressão do que Lakoff e Johnson chamam de metáforas ontológicas e orientacionais e
suas noções de borda, começo, fim, centro, periferia, dentro, fora, interior, exterior,
continuidade e assim por diante, com vistas e ampliar o campo imagético.
Assim, ao construir metáforas, o homem age (aciona o sistema
sensório-motor) e ao agir, abre a possibilidade de fazer ou
desfazer o que foi conceituado antes, instaurando novas
possibilidades de pensar e mover: corpo, idéias e mundo.
(Greiner, 2003, p.143).
O que Damásio considera como o “conceito de si mesmo” seria a corrente de imagens
que representam aspectos do próprio organismo e de suas interações com outros seres e o meio
a qual está inserido, o que significa a organização de modo simultâneo e em tempo real da
imagem do objeto percebido, da imagem da resposta orgânica a este objeto percebido pela
dinâmica instável das modificações e a imagem da descrição do organismo, ele mesmo, durante
91
o processo de mudança (GREINER, 2005). A atitude de exploração de novas possibilidades
acionais pode ser exercitada a cada momento, pois a mente transmite ininterruptamente imagens
metafóricas que orientam escolhas, e que se “fisicalizam” em ações. O controle, que temos
sobre uma imagem que gostaríamos que fosse indutora, ou que permaneça ou desapareça de
nossos pensamentos e ações, é limitado, mas pode-se ter algum êxito por meio de processos
conscientes.
As metáforas ontológicas e orientacionais se estendem a outros princípios norteadores
do conceito de ação física. Além da idéia de que a ação física nasce do interior ou do centro do
corpo, como já foi abordado, há referências a outros princípios:
a) a ação consciente estimula o inconsciente;
b) a ação é intencional;
c) a ação deve ter finalidade e objetivo.
No próximo capítulo, serão discutidas as questões que envolvem a finalidade e a
intencionalidade na ação, bem como a relação consciente-inconsciente. Estas questões
estruturam os processos de conhecimento do ator e se articulam sob determinado entendimento
na concepção de Stanislavski e Grotowski, configurando o que nomeei como uma cognição na
ação, ou um pensamento em ação.
92
3 PENSAR EM AÇÃO. FINALIDADE, INTENCIONALIDADE E
CONSCIÊNCIA
3.1 A finalidade na ação e sua dimensão prática
Ator, este é seu nome e não por causalidade, é ele quem
age. Não quem fala, ou quem emociona ou quem mostra,
senão quem aciona porque, desta forma, pode englobar
todo o restante. (SERRANO, 1996, p. 47).
Ao acentuar o aspecto da repetição na construção da ação, nas dedicadas análises das
experiências dos atores, Stanislavski (apud JIMENEZ, 1990, p. 261) chama a atenção para a sua
finalidade. Por meio do discurso do diretor fictício Tórtsov, relata que as ações “verdadeiras,
efetivas e ajustadas ao fim” tanto no aspecto físico quanto psíquico, nasciam no ator por si
mesmas, sem a participação da sua vontade. As ações apareciam “externamente na mímica, nos
olhos, na entonação da voz e nos movimentos expressivos de seus dedos, em todo o corpo”. Em
cada repetição, as ações se tornavam mais convincentes, ainda que o ator não se desse conta do
que fazia. Os pequenos impulsos internos, prévios à ação, se delineavam à medida que
apareciam os movimentos involuntários. Ainda que tentasse estabelecer com que finalidade
realizava suas ações, seguisse uma lista de tarefas físicas baseadas na obra dramática,
provocasse os impulsos prévios à ação fixando-os através da repetição, as ações “reais, efetivas
e com fim determinado”, nasciam por si mesmas. “Para isto se preocupará a natureza, que faz
milagres.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 250). A lógica e a conseqüência das ações vivas
ajudariam a fixar a verdade e a vida da “alma”. A sensação experimentada não somente pela
alma, mas pelo corpo, se converteria na mais real sensação e análise da personagem e da obra.
Stanislavski reflete acerca da ingenuidade de se pensar que se poderia administrar totalmente as
ações.
No relato acima descrito, a finalidade nascia do movimento, do trato com a matéria e de
seu devir, gerando uma ação que construía sua tendência teleológica48 em seu próprio percurso.
Ou seja, uma finalidade vista como contigüidade e não somente como traço anteriormente
concebido. À medida que iam sendo executadas, as ações provocavam uma demanda própria de
justificação, funcionando como “iscas” para os processos introspectivos, pois, no entendimento 48 O termo teleologia indica a parte da filosofia natural que explica os fins das coisas. O mesmo que finalismo, que admite a causalidade do fim, no sentido que a finalidade é a causa da organização das coisas. O mundo está organizado com vistas a um fim e a explicação dos eventos consiste em determinar um fim para qual o evento se dirige. (ABBAGNANO, 2000, p. 457-943).
93
de Stanislavski (1995), o elo entre corpo e alma é indissolúvel. O método das ações físicas
induziria as forças criativas da natureza a agirem por si só. Sendo autocriação e
autotransformação, a ação voluntária e teleológica do ator parece atuar muito mais como
atividade desencadeadora do que conclusiva. Deve-se ao próprio processo de constituição da
ação humana, com os estados do corpomente em permanente transformação, a abertura para a
imprevisibilidade. O que Stanislavski acreditava como a fonte das forças criativas, a natureza ou
subconsciente, já estava presente na própria operacionalidade do corpomente.
De acordo com o entendimento de Stanislavski (1995) e Grotowski (1992) para que o
ato seja constituído de consciência, a vontade e a intencionalidade ganham relevância, bem
como os objetivos apontados para uma finalidade cênica específica e transformadora. No
método das ações físicas, as ações devem estar associadas a algum desejo, esforço ou objetivo
direcionado, e vinculados a um sentimento interior que os justifique, do contrário são meros
movimentos ou atividades funcionais. Stanislavski e Grotowski salientavam que a ação do ator
deveria ter uma razão que a motivasse e um objetivo, ou seja, um porque e uma finalidade, mas,
ao mesmo tempo, reconheciam a emergência de processos não controláveis e não conscientes
na ação.
A cada ação efetuada, de acordo com Stanislavski (apud JIMENEZ, 1990, p. 261), a
atuação se torna mais precisa e convincente, embora o ator não tenha controle pleno sobre todo
o processo de conhecimento que se instaura. Stanislavski encontra na conduta voluntária das
ações físicas uma certa garantia para a solução da atuação, visto que os estados emocionais
seriam mais imprevisíveis. Acreditando que o corpo é convocável, converte a ação num fator
desencadeador da criação. Contudo, nem mesmo as ações do corpo e sua materialidade
pareciam de todo previsíveis e convocáveis. Nem sempre o que é objetivado e planejado será o
que converterá a ação em algo justo e orgânico a seus fins, cabendo, até mesmo, às ações
involuntárias, como salientou Stanislavski, um papel participativo no processo acional. Ainda
que o ator prepare seu papel cercando-se de certa objetividade e intencionalidade, os estados do
seu corpomente e as informações do meio no momento da criação e da representação em cena,
em especial, influenciam para que este se converta em um momento singular a cada vez que se
atualiza. Em cada momento, a cada informação que adentra o organismo, há um estado de
imprevisibilidade e reorganização sistêmica que não permite o controle sobre todo o processo
de uma ação nem, tampouco, a possibilidade de repeti-la integralmente da mesma forma. Ou
seja, o saber que se engendra na ação ocorre no próprio processo de sua feitura e seu
aperfeiçoamento se dá no exercício da atividade.
Cabe, aqui, ressaltar que a questão da causalidade e finalidade já se enunciava na arte,
94
em Aristóteles, por meio do conceito de razão prática, possibilitando desdobramentos para as
discussões contemporâneas relacionadas ao caráter processual e dinâmico da ação e as relações
entre pensamento e ação no trabalho do ator. Desde Aristóteles, o gênero dramático é entendido
como aquele em que o ator imita as ações humanas pela presença em cena, a cada representação
e, neste sentido, as personagens “não agem para imitar caracteres, mas adquirem os caracteres
graças às ações.” (ARISTÓTELES, 1996, p. 36). Ao imitar a condição humana, o ator não imita
caracteres, mas mostra-os, agindo. Embora restrito a tragédia, o conceito aristotélico de gênero
dramático49 orientou os estudos subseqüentes relativos à ação no teatro. Este gênero se
diferenciaria de outros tipos de mimeses uma vez que representa o homem “agindo” e
“fazendo”, ou seja, um conhecimento prático que é próprio da atividade artística. A finalidade
na arte teatral está na representação ou mimeses do humano. “As ações e a fábula constituem a
finalidade da tragédia e, em tudo, a finalidade é o que importa.” (ARISTÓTELES, 1996, p. 36).
A razão prática, intitulada de téchne, é um dos cinco modos de conhecer e chegar à
verdade, para Aristóteles, e se constitui como um conhecimento diferente de outras formas de
intelecto50. Aristóteles vê a racionalidade de forma plural e a razão prática implica no
conhecimento do que se faz. O raciocínio não é dedutivo, como na ciência, onde importa a
verdade e a prova, mas procede por categorias inventivas e poéticas por meio da mimeses,
próprio às formas artísticas (ARMELLA, 1993). A téchne admite uma intenção e uma causa
final que governa todo o processo produtivo: “Admite-se que toda arte e toda investigação,
assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com
muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem.” (ARISTÓTELES,1991, p. 9).
Mas a finalidade na arte é diferenciada. De acordo com Aristóteles, a arte, sendo um
conhecimento de ordem prática e processual, é adquirida pelo exercício próprio da atividade.
No terreno artístico, o fim não será plenamente conhecido até a consecução da forma. A
finalidade emergirá conjuntamente com a matéria, por obra de uma intenção que não é causa
final absoluta, mas probabilidade, pois só fazendo a coisa, se poderá compreender plenamente o
que se busca. Armella (1993), na obra El concepto de técnica, arte y producción em la filosofia
49 Os três Gêneros, as formas literárias de imitar a natureza, tem raízes na República de Platão e Poética de Aristóteles. O lírico, o mais subjetivo, exprime um estado de alma traduzido por meio de orações. Manifestação verbal imediata e intensiva de uma emoção ou sentimento. O gênero épico imita por uma narrativa as ações do passado ou ocorridas fora do palco. Geralmente não exprime os próprios estados da alma, mas narra os de outros seres, os descreve objetivamente. Há uma certa distância e desdobramento entre o sujeito (narrador) e o mundo narrado. No gênero dramático vê-se não apenas a narração sobre uma ação (como na épica), mas presenciamos a ação atualizada através da expressão imediata dos atores (como na lírica), via personagens. A imitação é executada “por personagens em ação diante de nós”.(ARISTÓTELES, 1996).
50 Na ordem especulativa aristotélica a razão tem três modos para abordar o ser necessário: a episteme, que vai as causas próximas do ser, sophia, que investiga as causas primeiras do ser, e nous, que se atém aos primeiros princípios do ser. Na ordem prática, a téchne tende ao bem particular do ser contingente e a phrónesis busca o bem absoluto do ser. (ARMELLA, 1993, p. 32).
95
de Aristóteles, potencializa o pensamento de Aristóteles enquanto instrumento capaz de
iluminar a dimensão prática da arte na contemporaneidade. A lógica do modo de razão prática
considera que, para conhecer as coisas que queremos fazer, há que se agir: “as coisas que temos
de aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-los fazendo.” (ARISTÓTELES, 1991, p. 27).
Neste sentido, o método das ações físicas e a noção de um pensamento que se dá em ação
podem ser entendidos como uma espécie de sabedoria prática. O conceito de téchne não pode
ser entendido como técnica somente, principalmente em sua redução mecanicista de execução
física, mas num sentido mais amplo, como um modo de saber dos princípios produtivos. Esta
compreensão do saber, como salienta Icle (2002), pode ser entendida como compreensão do
saber fazer. O trabalho do ator une investigação e construção de um material cênico ainda não
existente, ou seja, um conhecer construindo (SERRANO, 1996, p. 22).
Em sua revisão crítica das metodologias stanislavskianas o pedagogo argentino Raúl
Serrano (1996), reconhece a conexão entre teorias teatrais e teorias cognitivas, chamando a
atenção para o modo singular de conhecimento empreendido pelo ator em seu trabalho cênico.
Sendo práxis, no trabalho com suas ações, o ator conhece, fundamentalmente, no nível
empírico, implicando num comprometimento sinestésico e corporal na aprendizagem. O ator
deve fazer (agir) para compreender e não tão somente compreender para então fazer
(SERRANO,1996, p. 181). Para este autor, o método das ações físicas, concebido por
Stanislavski, é um modo de conhecer que requisita um corpo em ação, em situação real,
diferente da metodologia proposta pelo diretor russo em seus primórdios, onde o ator só atuava
depois de exauridos o estudo analítico da personagem e seu entorno, o conhecido “trabalho de
mesa”.
A ação não seria somente a resultante de intenções psicológicas ou intelectuais
motivadoras. O ator pensa com suas ações, pensa com seu corpo e atua com ele em tempo
presente, pois, como vimos, os processos de percepção e ação, descritos por Berthoz (1997),
não estão separados e são ininterruptos e inestancáveis. O ator “pensa fazendo e faz pensando”,
numa operação cognitiva simultânea (SERRANO,1996, p. 190). A ação dramática tem uma
espécie de lógica momentânea, que se dá enquanto está sendo executada. O ator nunca sabe
inteiramente o que seu corpo sabe. O corpo registra e libera uma consciência e uma memória
sinestésica para o monitoramento do aqui e agora sem que o ator tenha controle integral. Ou
seja, ainda que nutrida por condições anteriores, é em tempo presente que a investigação da
ação ocorre de fato.
Ao propor uma estética da produção, e não da expressão e da contemplação, o filósofo
Luigi Pareyson (2001) salienta a ordem prática e inventiva aristotélica da arte, pois enquanto é
96
feita, inventa um modo próprio de fazer. E como nenhum processo é da mesma ordem que seu
respectivo fim, o artista não sabe inteiramente o que fazer, e quais os seus fins, até que o faça. A
lei da obra artística é singular, é um fazer que, enquanto se faz, inventa o por fazer e o modo de
fazer. A “verdade” da obra é a liberdade do artista no processo de formação de sua obra. No ato
da imitação, na livre atividade do artista, age a vontade autônoma da obra. O artista não inventa
somente um objeto artístico, mas a legalidade interna deste, a qual ele mesmo se submete.
As noções de ação e de razão prática aristotélica, sendo pilares para a noção de ação no
teatro e na filosofia, permitem reflexões sobre a ação física e o problema do controle e da
finalidade. A natureza de todas as coisas no mundo, para Aristóteles, seria inextricável a seu
telos, ou seja, a seu fim ou meta e só quando há movimento tendendo ao fim, há atividade. Ele
incluiu nesta lógica a atividade poética, ressaltando, contudo, que, na arte, a finalidade só é
conhecida no processo de feitura da obra. A dimensão prática da arte e da conduta do ator
pressupõe a revisão das relações causais na ação, sobretudo a questão da finalidade.
Na lógica aristotélica, a ação do escultor é que libera a potencialidade da estátua. Já os
objetos naturais deteriam essa possibilidade de ação em si mesmo, a exemplo de sementes que
viram plantas. No caso do trabalho do ator, ele não realiza um objeto totalmente exterior a ele,
como uma escultura. Tampouco as suas ações corporais são “objetos” artísticos descolados dele
mesmo, posto que o corpo do ator, seguindo a lógica causal aristotélica, é, simultaneamente:
a) causa material (é no corpo que ocorre a ação cênica);
b) causa eficiente (é o corpo o agente da ação);
c) causa final (que não é conhecida até o término do processo artístico).
Stanislavski descreveu o ator como, ao mesmo tempo, artista e modelo, e o que busca
não é uma pose estática, como um pintor ou escultor que desenha ou esculpe um objeto, senão
um personagem vivo, “organicamente dinâmico em todas as poses imaginárias” (TOPORKOV
apud JIMENEZ, 1990, p. 301). O corpo é, simultaneamente, agente e agido. Tampouco o ator
constrói suas ações com uma mente separada que comanda um corpo objeto ou corpo
instrumento. A nítida separação entre sujeito e objeto e corpo e mente se fragiliza, bem como
suas relações causais, pois, segundo Greiner (2005), o “corpo-artista” se constitui enquanto um
sistema constantemente reconstruído. Sistemas auto-organizativos não possuem uma rigidez em
sua finalidade.
A “verdade” da arte, em Aristóteles, compete ao campo das possibilidades, peculiar aos
seres contingentes e não necessários. Para Aristóteles, os atos da mente podem ser
especulativos, onde a razão atua no campo da necessidade, onde cabe a certeza da ciência, e
inventivos. A razão que leva a parte inventiva da alma não oferece certezas e o silogismo é de
97
cunho prático. Nela se situa a arte. (ARMELLA, 1993, p. 58). Tendo a racionalidade, vista por
Aristóteles, um sentido plural, a possibilidade de conhecer e chegar à verdade envolveria,
igualmente, um saber de cunho prático.
O âmbito prático da razão, em Aristóteles, difere do especulativo, pois não versa sobre a
essência das coisas, mas sobre o como encontrar o essencial das ações. Sendo um processo, de
nada serve “fazer teoria sobre as ações humanas, se não buscar o melhor modo de exercitá-las.”
(ARMELLA,1993, p. 43). A razão prática consiste no exercício da ação. O fim não é
possessão, porque o fim, na razão prática, parece ser distinto em cada atividade e em cada arte.
Mas a práxis do homem não é destituída de uma reflexão e, neste sentido, ela é produzida no
movimento, similar à noção de um pensamento que se dá em ação.
O agir sem um fim determinado – no sentido moderno de intenção ou objetivo, não
significa ausência de lógica, reflexão ou certa consecutividade, sob pena de se agir em geral 51,
como advertia Stanislavski (1995, p. 229), mas o reconhecimento de que a ação humana é
forma de conhecimento processual e dinâmica. Mais do que uma atuação de forma a repetir
padrões estabelecidos e suas finalidades, o método das ações físicas solicita a ação em tempo
presente e o campo aberto de suas possibilidades. O que envolve a investigação da lógica e
sucessão das ações, num trabalho que envolve o comprometimento do já traçado anteriormente,
simultâneo ao que emerge no aqui e agora. Stanislavski enfatizava a necessidade de se pensar
no que fazer, e não nas emoções propriamente ditas, deixando a ver a dimensão prática do
método das ações físicas:
[...] Uma vez que preparamos uma linha de ações físicas, lógica e
coerente [...] descobrimos que, paralela a ela, correrá uma linha
de emoções lógica e coerente [...]. Chegue à parte trágica do
papel em forma gradual e coerente, levando corretamente sua
seqüência de ações físicas externas e crendo nelas[...].Não pense
em suas emoções. Pense no que tem que fazer. Se não se adere
de forma estrita a um padrão absoluto de lógica e continuidade,
estará em perigo de comunicar paixões, imagens e ações em uma
forma generalizada. (STANISLAVSKI apud JIMENEZ, 1990,
p. 262).
51 Stanislavski descreve a ação generalizada como aquela que ocorre sem objetivos específicos, lógica ou consecutividade, e sem atenção a detalhes e estímulos que possam dar vida orgânica e dimensão humana ao papel.
98
O aperfeiçoamento da razão prática está no exercício da atividade, portanto, não está
dado. Para se adquirir o conhecimento é preciso exercer a atividade correspondente, ou seja, só
aprendemos fazendo. Este parece ser o ponto central da razão prática, onde se insere o modo
operante da ação do ator. “No conhecimento pela arte, a única lei que pode governar o processo
é a lei da obra em particular, posto que se desconhece o fim e este só pode encontrar-se ao
término da ação.” (ARMELLA, 1993, p. 48). Neste sentido, o caráter eminentemente
teleológico pode ser redimensionado, se o conceito de ação for revisto como uma rede dinâmica
de relações que envolve a resposta imediata ao meio, através da experiência, e não como algo
eminentemente a priori. Com este entendimento, considera-se que os níveis de controle sobre
nossas ações não são facilmente detectáveis e manipuláveis, ainda que tentemos programar os
seus fins. O ser humano e seu comportamento são fenômenos adaptativos complexos e não é
possível estabelecer prognósticos para o caminho que as ações tomam (JUARRERO, 2002).
Serrano (2004) enfatiza que o objetivo da ação, o “para que” tão caro a Stanislavski, não pode
seguir um modelo mecânico de causa e efeito nem estar despregado do aqui e agora, sob pena
de perder seu caráter transformador imediato na relação percepção-ação do ator.
O corpo deve resolver a situação conflituosa organicamente, sem
rupturas entre a decisão e a ação propriamente dita. O corpo deve
começar a “pensar” de um modo próprio […] o ator deveria se
colocar em uma situação mais próxima ao do jogador de futebol,
que enfrenta a um defensor e ainda leva a bola. Pensa e atua, faz
e decide sem que haja uma ruptura entre ambos os territórios.
(SERRANO, 1996, p. 190).
Os objetivos propostos pelo ator para a criação de suas ações desempenham um papel
determinante como “motores voluntários” para que as demais relações que se estabelecem em
tempo presente possam emergir a partir de uma disponibilização à improvisação. Como salienta
Serrano (1996, p. 224), “se olharmos as ações tão somente como condutas teleológicas
conscientes, isto permitirá construí-las de antemão e longe da situação dramática real, com
longas listas de ações a respeitar..”
O ato criativo emerge em cena, muitas vezes, por ações aparentemente involuntárias,
mas que são orquestradas em uma rede neuronal rica em referências, memórias e ações
imediatas sem o controle intencional do ator. O corpo em ação, em situação de representação,
rompe com a escala temporal entre percepção e ação, decisão e ação, pensamento e ação e pede
99
por uma resposta em tempo presente. O corpo precisa pensar enquanto age, agir em estado de
reflexão, como se conhecesse de um modo próprio. A ação é um conhecimento processual e a
práxis (o que o homem faz, no seu sentido arcaico grego) do ator se organiza em conexão com o
ambiente em tempo real.
Desta forma, o ator pode resolver situações sem rupturas entre a decisão e a ação,
propriamente dita, e a ação se converte em algo menos teleológico. Este entendimento de ação
implica numa revisão da idéia de finalidade como algo passível de ser plenamente engendrado
antes que a ação de fato principie, bem como de intelecto e reflexão como algo anterior ou
despregado da ação. Considerando que a ação só pode ser realizada no presente do indicativo,
pressupõe-se uma presença cênica especifica do ator, um modo de estar no aqui e no agora.
De acordo com Aristóteles (1991, p. 102), a coisa produzida “não é um fim no sentido
absoluto, mas apenas um fim dentro de uma relação particular, e o fim de uma operação
particular”, portanto, cabe à ação em processo determinar sua própria finalidade. A razão prática
é fundamentalmente eletiva, requer razão e comparação reflexiva, mas não há certezas do
desenlace, pois é indeterminação. O conhecimento, neste caso, é pura probabilidade, posto que
deliberar sobre os meios – sobre o que se pode fazer e as formas de lográ-lo – implica,
precisamente, desconhecer o fim da atividade. Deliberamos somente sobre o que podemos fazer
e, na medida em que o objeto é mais impreciso e obedece às leis do acaso, menos temos
controle sobre suas finalidades. As ações humanas tendem a esta incerteza, visto que o corpo
opera numa orquestração constante entre os conteúdos já inatos e os adquiridos na experiência.
O que leva a crer que não temos controle total sobre as finalidades, tampouco sobre todo o
processo acional. Imerso processualmente na linha do tempo, o saber prático aponta para um
devir. Sendo do campo das possibilidades, a ação do ator, neste sentido, também não pode ter
um fim absoluto, em se tratando do corpomente, este é, em si mesmo, movimento e
indeterminação.
Atribuir um caráter prático à arte requer alguns cuidados, a fim de não aproximá-la do
argumento redutor da mecanicidade, a velha armadilha dualista. A definição de arte como um
modo de exprimir delegou ao individuo a exposição de sua visão de realidade sensível. A
dimensão epistemológica que provém do pós-renascimento e da arquitetura de pensamento
proposta por Emmanuel Kant (1724-1804) e pelos românticos inseriu a arte na esfera da
sensibilidade e do gosto, e não nos aspectos da inteligência do intelecto e, nem tampouco, do
conhecimento prático. Ao se criar uma íntima coerência entre as figuras artísticas e o
sentimento que as anima, o aspecto formativo foi esquecido. É, segundo Pareyson (1989), o
chamado espiritualismo estético, acentuando o aspecto interior e a metafísica da arte. Em Kant,
100
o juízo do gosto é estético, não gera conhecimento nem tem caráter objetivo ou prático, pois é
baseado no sentimento do sujeito. A arte não se proporia ao conhecimento, mas ao gosto. A
idéia do teatro como expressão e exteriorização de um conflito já existente no interior do sujeito
e o gesto como veiculação desta interioridade relegaram os aspectos materiais da criação a um
plano secundário.
As obras de arte possuem todas um estatuto material e concreto
(estheticos) que torna o processo de realização parte inseparável
do objeto. O teatro, que participa também deste caráter estético,
com o diferencial de ser objeto em ato desenvolvido na cena, é o
resultado de um processo em que intervém múltiplas
determinações que dificilmente podem ser pensadas, concebidas
em ausência de sua presença real, de sua existência como objeto
nascente. (SERRANO, 1996, p. 38).
Assim como Pareyson (2001), Serrano (2004) entende o produzir e o inventar como
algo formativo e enfatiza o aspecto prático da aprendizagem do ator. Não se trata de achar o
caminho da expressão, mas, sobretudo, da construção das ações geradoras dos afetos. Não
pensar em suas emoções, mas no que se tem que fazer, como aconselhava Stanislavski aos
atores. A pedagogia do ator seria, em última instância, o ensinamento de um “saber fazer”,
advertindo para as posturas idealistas que super valorizam as instâncias expressivas e emotivas
em detrimento do nível material e técnico. (SERRANO, 2004). O que o ator deve saber não se
resume a idéias ou conceitos descolados de uma atividade, nem condenados a uma finalidade
condicionante. Os conhecimentos que o ator adquire são de índole prática e processual52. É o
seu corpo que aprende, e sua memória corporal a que recorda, como enfatizou Grotowski
(1992).
Há que se diferenciar a ação como principio poético em Aristóteles e a ação como
principio da personagem e do ator moderno. O entendimento de finalidade no pensamento
aristotélico tem conotação política no ambiente do coletivo, não é destino do indivíduo. Sendo o
homem um ser político, exerce sua busca no seio da polis. O julgamento público realizado nas
52 Neste sentido, para Stanislavski, os exercícios técnicos, tais como a acrobacia, deveriam servir para desenvolver no ator a qualidade da decisão em ação. Seria desastroso para um acrobata devanear antes de executar um salto mortal. O ator também não poderia “parar para pensar, duvidar, pesar considerações para então se pôr à prova. Tem que agir” [...] “Quando tiverem desenvolvido força de vontade em seus movimentos e ações corpóreas acharão mais fácil transferi-las para a vivência do papel e aprenderão a se entregar, sem refletir, instantânea e totalmente, ao poder de intuição e inspiração.” (STANISLAVSKI, 1994, p. 63).
101
apresentações das tragédias gregas tinha a ver com o bem ou o mal que o agente causaria à
cidade, deliberando sua bem-aventurança ou desgraça perante a coletividade (BURNS, 1990). A
noção de finalidade em Aristóteles visa à tendência para um bem maior, que é a felicidade
(eudaimonia) ou infelicidade (kakodaimonia) da polis, e que é alcançada através da ação, e não
a finalidade das ações específicas do indivíduo53. A noção de finalidade no século XX ganha
outros contornos, e tende a se assemelhar à idéia de objetividade, propósito, motivo ou
justificativa, agora a serviço da ação da personagem e ação do ator. É certo que a arte hoje está
ligada mais à experiência do individuo e não a socialização e celebração da polis, como na
Grécia antiga. A finalidade em Aristóteles é a realização interna da coisa nela mesma, no caso
dos objetos, e a busca por um bem maior, na ação humana, e não algo que o individuo
subjetivamente impõe (ARMELLA, 1993). O que difere da noção moderna de finalidade
passível de manipulação dos objetivos e propósitos pelo sujeito.
3.2 Ação e intencionalidade
Ao reforçar a importância das ações, Stanislavski solicitava aos atores que não
iniciassem a abordagem da personagem por ações complexas, mas por pequenas ações físicas
que pudessem ser sustentadas com sinceridade, e cujo objetivo estivesse claro:
Não peço que se sinta de imediato a personagem, mas que
encontre seu objetivo principal e corrente central, que entenda as
circunstâncias propostas. Sei que isto é muito difícil e, inclusive,
no começo, impossível. Por isto, proponho algo de mais simples,
fácil e acessível: as ações físicas. (STANISLAVSKI apud
JIMENEZ, 1990, p. 245).
Os atores deveriam buscar o porque e o como de cada uma das ações construídas,
mantida a advertência acerca dos movimentos que se encerram em si mesmo. Se fossem meras
atividades, desprovidas de sentido, lógica e conectividade num quadro de relações com a peça e
personagem, não seriam ações físicas (STANISLAVSKI, 1995, p. 229). Para ele, a ação
envolveria vontade e intencionalidade consciente, aliada a uma finalidade. Mas é a ação (cênica
53 O bem do indivíduo não está ausente da filosofia aristotélica, mas o princípio de liberdade na práxis humana ganha sentido inserido nas instituições éticas da cidade. “Embora valha bem a pena atingir este fim para o indivíduo só, é mais belo e divino alcançá-lo para uma nação ou para cidades-Estados (ARISTOTELES, 1991, p. 10).
102
ou não) sempre ato da vontade intencional?
O teatro apresenta modos de representação que não vêm explicitamente do ato da
escolha e vontade. A dramaturgia teatral revela homens na condição subumana, sem livre
escolha e vontade consciente, sofrendo ações mais do que agindo deliberadamente, como em
“Esperando Godot”, de Samuel Beckett (1906-1989). A palavra ator vem do latim e significa
aquele que age, mas o teatro de Tadeusz Kantor (1915-1990), em certos períodos, apresentou
um ator pouco ativo. A sua principal forma de ser era, ao contrário, a passividade. A ação é
colocada no nível zero (SKIBA-LICKEL, 1991, p. 6). O ator de Kantor seria uma espécie de
antiator do sistema de Stanislavski, e que responde à realidade do pós-guerra. No teatro de
Kantor, o ator não é protagonista nem desempenha papel, ele está no mesmo nível que os outros
elementos da cena, como objetos e bonecos.
A ação prevista para a personagem pode esquivar-se ou eximir-se do ato de vontade
consciente e da intencionalidade, em conformidade aos princípios de dramaturgia a qual se
vincule, mas quanto à ação do ator? Toda a ação pode ter uma causa, um motivo, mas que pode
não ser, exclusivamente, um ato de vontade do agente, podendo até ser algo acidental. Tudo que
existe age de alguma forma em seu entorno, de acordo com sua natureza, e de alguma forma
modifica a condição anterior dos objetos e fenômenos. O que caracterizaria a ação humana
então? De acordo com a tradição aristotélica e a teoria da ação na filosofia, trata-se da
consciência que se tem do ato (JUARRERO, 2002). Para ser qualificado como ação, o princípio
do movimento ou causa é do alcance do agente, consciente do que está fazendo. Na ação teatral,
em geral, a afirmativa permanece, pelo ato da vontade e da escolha. O que parece dar
sustentabilidade dramática à função acional? O que vem “de dentro”? É o ato de vontade? Os
objetivos traçados? A consciência ou intencionalidade do ato?
O artista cênico, ao esboçar uma ação, não o faz somente com sua intencionalidade e
vontade consciente, nem tampouco com as do dramaturgo, autor ou diretor. Nada lhe dá
garantias da efetividade e fidelidade de seus propósitos. Outras informações atravessam o corpo
proveniente dele mesmo, das relações com o ambiente, e das conexões que o ator buscou
estabelecer “conscientemente” a partir de dados e objetivos traçados a priori. Das relações entre
estas variáveis emerge em tempo real a ação do ator. Ação esta que tem um modo próprio de
acontecer, segundo uma abordagem fundamentalmente prática.
Para Aristóteles, portanto, a arte não é algo espontâneo, é um saber causal. Embora não
se conheça de antemão o término de sua produção, e por conseqüência, sua finalidade, ainda
assim supõe uma intenção. Teóricos da ação, em geral, concordam que para ser qualificado
como ação, o comportamento deve ser intencional, mantendo uma separação espaço-temporal
103
entre intenção e ação. No teatro de Stanislavski, o entremeio intenção e ação é descrito como
processos internos que se exteriorizam enquanto ação física.
A relação entre intenção e ato e entre pensamento e ação sofreu dos mesmos problemas
atribuídos à leitura de causalidade decorrente de uma conjunção de heranças da filosofia e da
ciência clássica, e que se estenderam à ação humana; a aristotélica, com a idéia de que nada
move ou muda a si mesmo, a newtoniana, com a crença na possibilidade de controle da natureza
por leis fixas externas e a laplaciana, com a ilusão de se prever o futuro de algo pelas condições
iniciais. (JUARRERO, 2002). A filosofia moderna, no século XVII, restringiu o entendimento
dos fenômenos à causalidade eficiente aristotélica, aquela que determina as forças e meios pelo
qual algo é criado. Seguindo os princípios da ciência newtoniana, a causalidade eficiente passa a
ser entendida como impacto do empurrar e puxar de forças externas numa matéria que é vista
como inerte, tal qual um taco que aciona bolas de bilhar. Este entendimento mecânico de causa,
de acordo com Juarrero (2002), provocou sérias conseqüências para a teoria da ação,
particularmente quando combinada com a tese aristotélica que nega que algo possa se mover
por si mesmo. A captura da lei da gravidade por Newton impôs uma descrição eminentemente
física também ao movimento da matéria orgânica, e o conseqüente descredenciamento das
condições biológicas da ação humana. O que permitiu que o corpo fosse entendido por muito
tempo por meio da metáfora do corpo-máquina, bem como a leitura mecanicista do organismo.
Na atualidade, a ação humana, vista como sistema aberto em constante auto-
organização, está longe de ser considerada próxima à causalidade clássica das leis físicas,
afastando, cada vez mais, o entendimento mecânico de causalidade. Este novo entendimento se
estendeu à relação intenção-ação. Em detrimento de acreditarmos que nossos atos foram
gerados por intenções, idéias ou pensamentos que tivemos antes deles ocorrerem, a relação
causa-efeito não é tão óbvia, tampouco atende a lógica mecanicista. Se ampliado o seu espectro,
a ação, seja no espaço ficcional do teatro e ou na esfera cotidiana, não provém da
intencionalidade e vontade consciente exclusivamente, nem tampouco vontade, consciência e
intencionalidade são de todo controladas pelo agente.
Estudos na área cognitiva têm salientado a dificuldade de determinar quando um ato
inicia e quando termina, bem como os níveis de controle do agente. Não se sabe onde começa
uma intenção e onde ela termina, e quais as suas implicações causais, a ponto de podermos nos
perguntar, em dado momento, “se nos movemos ou o movimento nos move”. Nem, tampouco,
nos é dado estabelecer, como vimos, fronteiras nítidas entre as imagens (no sentido atribuído
por Damásio) que provém do interior do corpo e do seu entorno. Ou seja, do dentro ou do fora.
Juarrero (2002) adverte sobre a inabilidade da filosofia moderna em explicar como as causas (a
104
partir da vontade e intenção) dão continuidade, monitoramento e direção a seus efeitos (ações) e
questiona se há, de fato, controle, intenção ou consciência do agente no curso de uma ação, bem
como em seu momento inaugural.
A explicação de Aristóteles acerca do comportamento voluntário e involuntário orienta
as hipóteses adotadas, subseqüentemente, pelas teorias da ação. É ação do agente, segundo
Aristóteles, se o princípio do movimento é conhecido por este. A origem ou princípio do
movimento, como algo conhecido ou não pelo agente, determina a diferença entre
comportamento voluntário ou involuntário. “O voluntário parece ser aquilo cujo princípio motor
se encontra no próprio agente que tenha conhecimento das circunstâncias particulares do ato.”
(ARISTÓTELES, 1991, p. 43). O homem age voluntariamente quando nele se encontra o
princípio que move as partes apropriadas do corpo, visto que este princípio motor também pode
se encontrar fora do agente, no exterior. E é considerado involuntário o que ocorre
[...] sob compulsão ou por ignorância; e é compulsório ou
forçado aquilo cujo princípio motor se encontra fora de nós e
para o qual em nada contribui a pessoa que age e que sente
paixão – por exemplo, se tal pessoa fosse levada a alguma parte
pelo vento ou por homens que dela se houvessem apoderado.
(ARISTÓTELES, 1991, p. 41).
O comportamento é ação do agente, de acordo com Aristóteles, se o princípio do
movimento é, além de conhecido do agente, interno ao corpo. As ações vêm de estados internos
do organismo, mas dependem de algo fora dele para que aconteçam. O princípio interno do
movimento (orexis), seria um campo de ação física, ou anímico, que se estende a um objeto do
mundo externo, percebido pelo homem ou animal como algo significativo. Nem o corpo nem a
alma causariam a si mesmos, é preciso que haja um objeto externo que sirva como causa final
ou objeto de desejo. Aristóteles explica o movimento do animal dividindo o organismo em dois:
a alma (o que move o corpo, embora não mova a si mesmo) e o corpo (o que é movido). Um
leão necessita da gazela para fazer valer seu instinto natural de caça. A psique do leão é uma
entidade não móvel nela mesma, mas que move o seu corpo em direção a sua presa. O dentro se
potencializa em ato pelo estímulo do fora. Ou seja, ao colocar algo fora do organismo como
causa final ou objeto do desejo do comportamento voluntário, Aristóteles já envolve o
organismo no ambiente, embora não aponte para qualquer indício de um movimento auto-
organizativo do corpo ou da alma (JUARRERO, 2002, p. 18). O trânsito entre o dentro e fora
105
seria a chave que proporciona a ação do agente no mundo.
Seguindo este entendimento, a ação seria um comportamento apropriado cujo princípio
do movimento ou causa é conhecido do agente, consciente do que está fazendo, mas que
emerge por meio de estímulos do meio. Quando a causa é ignorada, o comportamento não pode
ser classificado como voluntário, portanto, não é uma ação, visto que “a ignorância das
circunstancias da ação faz do comportamento que é emitido, uma não ação.” (ARISTÓTELES,
1991, p. 41).
Embora sejam consideradas ações, e não somente movimento, somente aquelas que são
o resultado de uma deliberação, nem todo comportamento voluntário é explicitamente escolhido
ou conhecido, salienta Juarrero (2002). Há gradações entre os extremos de uma ação com
intenção voluntária e os comportamentos involuntários, reforçados pela natureza dos processos
cognitivos envolvidos na relação consciente e inconsciente. O mesmo corpo e o mesmo sistema
neuronal envolvem o voluntário e o não voluntário, e suas diferenciações e gradações são
extremamente sutis. Questionar até que ponto exercemos controle sobre nossos desejos,
intenções ou ações é cada vez mais pertinente. Para Juarrero (2002, p. 7) o comportamento se
constitui ação quando a dinâmica auto-organizativa do cérebro, caracterizada pela consciência e
processos de significação, “origina, regula e constrange o processo esqueleto-muscular, o qual
resulta num comportamento que satisfaz o contexto significativo.”
Aristóteles já advertia que nem tudo que é voluntário parece ser objeto de nossa escolha,
pois foge ao nosso poder. O ato voluntário seria um conceito mais extenso. A escolha envolve
um princípio racional, com “as coisas que estão em nosso poder” e se relaciona com os meios e
os esforços de se conseguir algo, já os fins cabem aos desejos, estes fora do alcance da escolha.
Desejamos ser felizes, mas não podemos dizer com acerto, conforme afirma Juarrero (1999, p.
44), que “escolhemos ser felizes, pois, de um modo geral, a escolha parece relacionar-se com as
coisas que estão ao nosso alcance” ou seja, sobre os meios e não sobre os fins. Aristóteles
(1991) inicia a discussão sobre a ação na Ética a Nicômaco ressaltando que o agente não
controla as finalidades de sua ação, pois muitas são as ações e muitos, também, serão os seus
fins.
Para ser qualificada como ação, teóricos da ação insistem que o agente deve tê-la
causado intencionalmente. Teóricos e diretores de teatro, especificamente Stanislavski e
Grotowski, advertem que a causa intencional da ação tem que vir não somente de motivações
psicológicas, mas do impulso interno do corpo daquele que age. Não obstante, mesmo na
ignorância das causas e das intenções precedentes (não conscientes), algo pode ser causado.
Tanto na ação teatral quanto na cotidiana, não há como ter certeza sobre o que causou tal
106
comportamento, movimento ou ação. Vimos por meio das questões formuladas por Stanislavski
e Grotowski que a falta da atividade plenamente consciente e voluntária do ator pode
desencadear uma ação, no sentido de algo que apresente uma lógica e um sentido e que se ajuste
num dado contexto teatral, pois é dado à “natureza criadora” ou ao “subconsciente” efetuar este
trabalho. Neste sentido, estas questões configuram-se como um campo extremamente fértil para
o problema da intencionalidade. É a ação do ator eminentemente intencional? Que noção de
intenção se adequaria à ação do ator? São formulações que cercam o problema da ação, e não se
exclui daquela que ocorre no fazer teatral.
3.3 A intencionalidade prática
A idéia de intenção foi empregada, originalmente, em relação à atividade prática,
enquanto referência de qualquer ato humano a um objeto diferente dele (ABBAGNANO, 2000,
p. 576). O termo intencionalidade teria sido cunhado pelos filósofos medievais, ao notarem a
similaridade entre os fenômenos e o ato de dirigir uma flecha a um determinado alvo (intendere
arcum in). Foi Franz Brentano, no século XIX, que tornou a intenção um fenômeno psíquico.
Os estados mentais, como a percepção e a memória, se referenciariam a um conteúdo, ou em
direção a um objeto. Esta direção ou intencionalidade, para Brentano, é a característica que
define a mente. Edmund Husserl (1859-1938) inspirou-se nas idéias de Brentano para ampliar a
intenção como uma relação própria entre sujeito e objeto, definindo a consciência pela
intencionalidade. Situa-a como característica essencial da esfera das vivências, uma vez que
todas as experiências, de alguma forma, teriam intencionalidade (HUSSERL,1996).
A intencionalidade foi assumida no âmbito da fenomenologia como característica
fundamental para a existência da consciência. Intencionalidade significaria dirigir-se para, visar
alguma coisa, o que implicaria que toda consciência é “consciência de”. A consciência não seria
uma substância nela mesma, enquanto alma, mas uma atividade construída em atos que visam
algo. Husserl (1996) amplificou a noção de intencionalidade distinguindo-a em intencionalidade
de ato e intencionalidade operante. A primeira refere-se a nossos juízos e tomadas de posição
voluntárias e ao momento do conhecimento mais objetivo e a segunda aparece mais claramente
nos desejos e pulsões e fornece o “texto” para a intencionalidade de ato. Esta ampliação do
conceito de intenção abriu precedentes para o conhecer como algo não restrito a representações
ou idéias já concebidas e a uma leitura mais encarnada da intencionalidade.
Considerando que, em sua maioria, os encenadores concordam que toda ação do ator
deva ter uma intenção conectada com algum objetivo traçado, algo que a “justifica”
107
(STANISLAVSKI, 2000) ou a “alimenta” (BURNIER, 2001), é notório, entretanto, o caráter
corpóreo atribuído. O termo intenção vem do latim intentione, ou ação de tencionar; tensão;
vontade determinada; desejo; propósito; pensamento reservado (PÂNDU, 1981). Normalmente,
quando se pensa nas intenções, a vemos como produto de um esforço de operações mentais ou
emocionais. Grotowski (apud RICHARDS, 2001), contudo, acentuou o aspecto físico-muscular
em detrimento de uma leitura mais psicológica. Ele buscou, em sua pesquisa com atores, o
menor espaço entre intenção e ato, por meio de uma conceituação mais física e orgânica da
intenção, no sentido de objetivação dos impulsos internos do corpo. Ao aproximar intenção e
ato, atribuiu ao corpo do ator a possibilidade de desencadear o conhecimento, ampliando, a seu
modo, o conceito de intenção enquanto procedimento exclusivamente mental.
In - tenção – intenção. Não há intenção se não há uma
mobilização muscular própria. Isto também faz parte da intenção.
As intenções existem igualmente no nível muscular do corpo, e
ligadas a um objetivo fora de individuo. [...]. Normalmente,
quando o ator pensa em intenções, ele pensa em fazer vibrar os
estados emocionais. Não é isto. Intenções são ligadas a
lembranças do corpo, a associações, desejos, contato com outros,
mas também a tensões musculares. (GROTOWSKI apud
RICHARDS, 2001, p. 96).
No sentido comumente atribuído ao termo, a intencionalidade determina se o agente tem
ou não controle ou ciência de seu ato, e envolve, normalmente, questões morais. Alguém que
não tenha tido a intenção de matar um outrem pode ser até mesmo absolvido, por o crime ser
acidental ou porque o mesmo não estaria em seu juízo “perfeito”. Aristóteles (1991) discute a
excelência moral e as relações entre as emoções e ações, salientando que somente as ações e
emoções voluntárias são louvadas ou censuradas, enquanto as involuntárias são perdoadas,
inspirando, às vezes, piedade, sendo útil àqueles que legislam ou estudam a natureza humana.
Historicamente, a noção de intencionalidade pressupõe uma relação de causa e efeito em
relação à ação, sendo uma das categorias mais insistentes da filosofia, informando-nos sobre os
existentes captados ou não por nossos sentidos e consciência. Ainda que somente prevendo a
relação seqüencial entre uma causa e um efeito, já a assumimos como possível. Sempre que
algo acontecer, haverá um efeito posterior correspondente. Entretanto, David Hume (1711-
1776) fez ver que a ligação necessária entre causa e efeito e a conexão causal e linear entre o
108
que existe e o que não existe pode ser questionada pela filosofia. A constante da ocorrência de
uma dada causa e seu efeito nos leva a pensar em sua necessária conectividade, mas
deveríamos, adverte Hume (apud JUARRERO, 2002), pensar que as leis da natureza são apenas
as mais prováveis de acontecer. A causalidade não é objetiva, pois nem sempre as mesmas
causas produzem os mesmos efeitos. A expectativa de que um evento ocorra é muito mais
humana do que da coisa ou evento em si. A certeza deve ser substituída pela probabilidade.
Inúmeras teorias filosóficas foram construídas em torno do conceito de intencionalidade.
Contudo, elegi tópicos presentes no pensamento do lingüista John Searle (2002), do filósofo
Daniel Dennett (1997), e dos neuro-cientistas Michel Simon (2001) e Daniel Wegner (2002) por
apresentarem uma revisão da relação causal entre intenção e ação que se aproxima de questões
concernentes à conduta do ator.
A intencionalidade, para Searle (2002, p. 1), pode ser formulada, preliminarmente, como
aquela propriedade de muitos estados e eventos mentais dirigida para objetos e estados de coisas
no mundo. Sendo a intencionalidade sempre direcional, ter a intenção consciente de fazer algo
seria apenas uma forma de intencionalidade, equivalendo, simplesmente, às condições de
satisfação de uma intenção. O sentido inerente de direcionalidade, apontado por Searle, é
ampliado para o entendimento da intencionalidade enquanto “relacionalidade”. Dennett (1997),
um dos grandes pesquisadores sobre a intencionalidade (ao que chamará de postura
intencional), afirma que a competência da intencionalidade é, de algum modo, sobre alguma
coisa. A ação humana germinou, evolutivamente, a partir dos primeiros sistemas intencionais
simples como moléculas e termostatos. Estes “corporificam” informações sobre o meio
ambiente e “agem” respondendo a ele, embora não tenham ciência disto. Por outro lado, mesmo
sendo creditados aos sistemas intencionais mais complexos como o dos seres humanos, os
estados de percepção, memória e emoção exibem relacionalidade sem, necessariamente, serem
“intencionais”, pois podem responder involuntariamente.
Através do microscópio da biologia molecular, é possível testemunhar o nascimento da
ação, ao observar as primeiras macromoléculas que tem complexidade para realizar ações ao
invés de somente permanecer passivas e sofrer ações. Embora eficientes, elas não sabem o que
fazem, ao contrário de nós. Estas pequenas “partes impessoais, irracionais, aparentemente
robóticas”, constituem a base fundamental para toda a ação e consciência humana (DENNETT,
1997). Mesmos destituídos de mente, moléculas, neurônios e anticorpos realizam cegamente
sua tarefa em nosso organismo sem que tenhamos ciência. É curioso pensar, conclui Dennett,
que somos constituídos de inúmeras destas pequenas unidades “inconscientes”, mas que
contribuem para a formação de um conjunto de relações que propiciam a emergência da
109
consciência em nós.
Esta organização auto-reguladora e autoprotetora de todas as coisas vivas é entendida,
em Aristóteles, como um princípio de organização chamado de alma nutritiva. Estes sistemas
simples e ancestrais são como órgãos sensoriais primitivos e os efeitos produzidos são, para
Dennett, como ações intencionais, pois são produzidos por sistemas que modulam informação e
se direcionam objetivamente. O filósofo americano nomeia todos estes sistemas, do mais
simples ao mais complexo, de sistemas intencionais e de postura intencional à perspectiva que
propicia visibilidade a suas ações, contrário ao senso habitual que atribui à intenção uma
natureza eminentemente humana psíquica ou mental (DENNETT,1997, p. 31).
A filosofia “causalista” explica a ação pela intenção do agente, e a intenção como uma
causa mental que produz a sua conduta. A intenção é o canal que produziria os movimentos e os
gestos. Conhecer as intenções do agente é conhecer as causas que o fizeram agir, já que são os
antecedentes que garantem a explicação das ações. Já os “intencionalistas” não vêem a intenção
como a causa da ação, nem tampouco, como um evento mental antecedente e distinto da
conduta do agente. Executamos gestos e movimentos intencionalmente sem ser precedido por
um cálculo anterior à programação destes movimentos, mas, nem por isso, eles são menos
intencionais. A intenção, para os intencionalistas, seria uma espécie de “tendência para”, no
sentido etimológico da palavra, “uma maneira de dispor os atos, de decidir, uma conduta em
função de um objetivo” e não um ato mental puro (SIMON, 2001, p. 152).
A ação, de acordo com Simon (2001, p. 153), seria uma manifestação de uma
capacidade: “a ação intencional não é um efeito do pensamento que agiria como uma causa,
mas uma expressão do próprio pensamento.” Esta noção levaria a uma utilização prática do
termo intenção, salienta Michel Simon (2001), diferente da visão de intenção como
representação mental somente. Ou seja, uma intenção que pode ser engendrada no momento em
que a ação se dá, sem estabelecer uma relação de causalidade ou objetividade previsível, nem
ser dependente de uma vontade consciente. Intencionalistas entendem que a ação humana é
incompreensível sem o conceito de ação intencional, mas através de uma lógica de inferência
prática e não teleológica. A “intenção prática” não seria outra coisa que não a própria ação, não
é o efeito exterior de uma causa mental interior. “Ela é a ação nela mesma, atrelado a seu
aspecto mental, numa finalidade própria.” (SIMON, 2001, p. 154). O movimento e o agir foram
excluídos dos processos mentais pela filosofia clássica e os intencionalistas não somente
definiram o mental pela intencionalidade, como incluíram neste mental o agir, ao invés de
atribuir à ação o papel de conseqüência ou um efeito dos processos mentais, como o
cartesianismo instituiu.
110
O fato é que realizamos muitas ações intencionais sem a consciência de fazê-las. Nosso
pensamento e nossa ação podem ser causados por algo que não é observável, levando a idéias
falsas sobre a relação causa e efeito no espaço entre a intenção e a ação. A prerrogativa de que o
ato voluntário ou intencional é, necessariamente, dotado de consciência, não se sustenta na
atualidade. A análise causal de qualquer coisa sofre de uma incerteza fundamental, lembra
Wegner (2002). Nada pode garantir que haja uma linha comum num processo causal, nem que
ele se repita da mesma forma numa ação.
3.4 Intenção prévia e intenção na ação
Ao abordar a intencionalidade e sua relação com as ações, John Searle o faz segundo
uma abordagem dos estados, processos e eventos orgânicos. Searle (2002) admite que não há
ações sem intenções correspondentes e que ação e intenção são inseparáveis, mas apresenta uma
distinção que também dialoga com as questões da relação intenção e ação no trabalho do ator,
propostas por Grotowski. No momento em que se institui, na prática do ator, a noção de um
pensamento em ação, a relação entre a intenção e ato se rearma seguindo outra lógica.
Antes de tudo, Searle distingue as intenções que são formadas antes das ações e as que o
são no transcorrer da ação. Todas as ações intencionais teriam intenção na ação, mas nem todas
com intenção prévia. Utilizaremos o mesmo exemplo de Searle (2002, p. 118): você tem a
intenção prévia de dirigir até determinado local, mas enquanto está dirigindo, levando a cabo
sua intenção, muda de marcha várias vezes, além de outras tantas ações que ocorrem. Quando a
intenção prévia foi formulada, você não pensou nestas mudanças de marcha do carro, ainda que
estas ações sejam intencionais. Em tal situação, você teve uma intenção na ação ao mudar a
marcha, mas nenhuma intenção prévia. Ter uma intenção na ação difere de ter uma intenção
prévia.
A intenção prévia ocorre quando o agente tem a intenção de realizar a ação antes da
realização da mesma. Mas muitas das ações que realizamos são formadas espontaneamente.
Simplesmente agimos, sem que formemos uma intenção prévia, seja consciente ou não. Uma
outra forma de perceber a distinção é observar a quantidade de ações “subsidiárias”, não
representadas na intenção prévia, mas que, sustenta Searle (2002, p. 118), ainda assim, são
intencionais.
Todas as ações intencionais têm intenções na ação, mas nem
todas têm intenções prévias. Posso fazer algo intencionalmente
111
sem ter formado uma intenção prévia de o fazer e posso ter uma
intenção prévia de fazer algo e, todavia, não fazer nada no
sentido dessa intenção. (SEARLE, 2001, p. 119).
O ato de erguer um braço, a exemplo, envolve dois componentes: um componente
intencional, que é a experiência de agir ao se erguer o braço, e as condições de satisfação desse
comportamento, ou seja, o movimento físico do braço, mas ambos não são independentes.
Searle (2001, p. 128) considera que a experiência do agir já é a intenção em ação, o conteúdo
intencional. A experiência de agir é a causa de o braço se erguer. A intenção em ação já é o
componente intencional, esteja o agente da ação consciente ou não.
Além das ações que teriam, a princípio, uma intencionalidade conhecida do agente, há
as que gravitam em torno destas. São similares ao que Rudolf Laban (1879-1958) chama de
movimentos de sombra, que “precedem, acompanham ou são a sombra das ações planejadas.”
(LABAN, 1978, p. 169). Estes movimentos de sombra relatam o andamento dos processos
interiores que levam à ação, ou seja, às fases de esforço mental54 que se tornam visíveis em
pequenos movimentos corporais, e são realizados inconscientemente. Grande parte dos
movimentos mais característicos de uma pessoa seria realizada de forma inconsciente. A
compreensão da ação, para Laban (1978), viria por intermédio da descoberta, em uma dada
seqüência de movimentos, das atitudes que prevalecem em relação aos fatores do movimento –
Tempo, Peso, Espaço e Fluência – e da relação da ação com suas sombras. Neste sentido, o
estado de humor do ator em cada situação afetaria estes fatores do movimento, imprimindo
texturas psicofísicas diferenciadas às ações.
No curso de uma ação cênica, algumas intenções prévias serão naturalmente igníforas,
outras surgirão no exercício do ato. Similar ao que Searle chama de ações subsidiárias, ou os
movimentos de sombra labanianos, outras ações podem surgir de “improviso” e que
intensificam ou modificam o conjunto de uma ação maior, esta já conhecida e pré-determinada
pelo ator. No teatro, este conjunto de ações é, comumente, nomeado como partitura de ações. A
utilização do termo partitura ganha significância por meio de Stanislavski com o
desenvolvimento do método de ações físicas. Ele observava que quando o ator está em cena e
não sabe o que fazer, e está sendo observado, pensa continuadamente e pouco age. A idéia de
preparação anterior de uma linha de ação contínua o livraria deste problema.
Grotowski retoma, nos anos de 1960, a noção de partitura para designar a estrutura
54Todas as ações práticas, para Laban (1978, p. 168) passariam por quatro fases de esforço mental e que se tornam visíveis em pequenos movimentos corporais expressivos: a atenção, a intenção, a decisão e a precisão .
112
“externa” e precisa que permita a repetição e a motivação ou impulsos “internos” do ator, que
moveria tal estrutura. Stanislavski já apontava para o conceito de partitura como “linha de
ações” e estratégia de atração da vida interior, mas Grotowski imprime um dinamismo ainda
maior: “Pessoalmente, prefiro uma partitura baseada, por uma parte, sobre o fluir dos impulsos,
e por outra, sobre o princípio de organização. Isto significa que deveria existir algo como um
leito de um rio.” O trabalho do ator não estaria fixado de forma estática, mas estaria num espaço
entre uma cena dada, em um momento dado, sempre imprevisível; “o rio, no qual se entra, é
sempre novo.” (GROTOWSKI apud JIMENEZ, 1990, p. 499). Grotowski adverte que é preciso
definir os pontos da partitura para que os espaços “entre” possam emergir sem que o ator esteja
condenado a pensar continuadamente o que deve fazer. Desta forma, estaria mais disponível
para o imprevisível.
O corpo, como lembra Katz (2005, p. 10), é uma das mais extraordinárias
“acomodações entre Heráclito (tudo flui) e Parmênides (o que é, é) que a natureza promoveu”.
O célebre aforismo de Heráclito por meio da metáfora do rio – não entramos duas vezes no
mesmo rio, pois águas frescas fluem constantemente sobre nós – demonstra a natureza
processual das coisas e eventos. Pertencente ao mundo das dinâmicas, o corpo, e o que parece
ser nele afixado, é sempre um estado temporário que escorre de forma inestancável no tempo e
no espaço. Grotowski trabalhou no sentido de transformar em simultaneidade a dualidade e
aparente oposição Parmênides-Heráclito. O que é designado e repetido como ação-partitura (o
que é) convive simultaneamente com a ação-estado do que não é, e que pode vir a ser. Ryszard
Cieslak, ator emblemático do Teatro-Laboratório de Grotowski nos anos de 1960 utiliza a
metáfora da chama acesa para descrever o caráter dinâmico da partitura:
A partitura é como um vaso de vidro dentro do qual uma vela
queima. O vidro é sólido, está ali, podemos confiar nele. Retém e
guia a chama. A chama é meu processo interno de todas as
noites. A chama é o que ilumina a partitura, o que o espectador
vê através da partitura. A chama é viva. Assim como a chama no
vidro, a partitura se move, palpita, cresce, diminui, está quase por
apagar-se e imprevistamente readquire esplendor, responde a
cada hálito de vento, assim a minha vida interna varia a cada
noite, de momento a momento. (CIESLAK apud RICHARDS,
2001, p. 97).
113
Stanislavski (1995) falava das ações como elementos do comportamento, quando todas
as forças elementares no corpo estão orientadas em direção a alguém, a algo ou a si mesmo. Ele
exigia do ator uma linha de ação ininterrupta para que, quando este estivesse em cena, não
perdesse sua presença e credibilidade. Para o diretor russo, só as ações físicas poderiam
proporcionar um percurso mais seguro para a interpretação, visto que a evocação das emoções e
sentimentos não eram confiáveis, já que independentes da vontade do ator.
Grotowski perfura esta linha ininterrupta e propõe uma partitura vazada, onde seja
possível um princípio de organização mediado pelo ato da vontade, mas com espaços para o
fluir de novos impulsos. Nos espaços que se abrem, no “entre” dos elementos estruturados é
possível, então, emergir novas ações que vitalizem as já previamente arquitetadas. Stanislavski
(1995) já salientava que quando somos atraídos para as ações físicas, deixamos o inconsciente
livre para agir, e o induzimos a trabalhar criativamente. Esta ação da natureza e de seu
inconsciente é tão sutil e profunda, que a pessoa que está efetuando a ação, não percebe. O ator
não tem consciência nem controle do que se processa com ele, “[...] não está no âmbito da
consciência humana a execução deste trabalho oculto e, assim sendo, o que está além de nossos
poderes é realizado pela própria natureza em lugar de nós.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 251).
As intenções que surgem no decorrer da própria ação refinam a atenção e propiciam a
emergência de novos conteúdos, micro-sensações e, até mesmo, ações involuntárias. São ajustes
que ocorrem pela própria natureza dos processos cognitivos, que negociam, permanentemente,
as relações do corpo consigo mesmo e com o ambiente, considerando que uma ação nunca se
repete de forma idêntica. Um estímulo vindo da platéia ou um insight momentâneo são
fenômenos que o ator não experimenta como sendo atos voluntários ou intencionais, mas que
engendram novas conexões com a ação, em tempo presente. A noção de partitura abriga ambas
as conceituações de intenção propostas por Searle, a prévia e a surgida em “tempo real”. A
composição de uma partitura fecha o campo de ação, temporariamente, e dá uma
sustentabilidade para que o ator possa buscar certas minúcias, singulares, detalhes,
probabilidades, enfim, o que é daquele instante. A pré-definição de uma partitura pode propiciar
ao ator tocar em certos estados do corpomente, mantido um comprometimento com o momento
presente. Trata-se de corpos que pensam ou de mentes encarnadas em corpos comprometidos
(SERRANO,1996).
Ao enfatizar a importância de uma estrutura técnica coerente e precisa, impondo uma
partitura preliminar de atos, rigorosamente encadeada, Grotowski revê o sentido mais comum
de improvisação: o de ampla liberdade formal de refazer algo a cada instante como uma
condição criativa. “Trabalhar sobre si mesmo só é possível no que pode ser estruturado e
114
repetido.”55 (INFORMAÇÃO VERBAL). Mesmo buscando um teatro do “instante”, Grotowski
não apelava para um espontaneísmo, e cada detalhe era mantido, a cada encenação. O tipo de
improvisação solicitada, antes de tudo, requer disciplina e uma certa disponibilidade para a ação
imediata, mais no sentido de atuar sem “pensar discursivamente”, do que meramente
desencadear um fluxo de novas ações a todo instante. Uma improvisação efetiva, para
Grotowski, dispensaria o circuito intelectual e discursivo e se realizaria pela ação imediata. A
busca de um método que contemplasse a fusão de espontaneidade (criatividade, organicidade)
com estrutura técnica (precisão, rigor, repetição, disciplina) permeou a busca de Grotowski. A
espontaneidade seria a resultante de uma perfeita preparação técnica e da definição de leis
objetivas de atuação, já apontados neste estudo nas investigações de Grotowski (1990, 1992)
nas tradições e ritos. Neste sentido, o processo de conhecimento do ator residiria num “aprender
fazendo”, a exemplo da lógica da razão prática aristotélica, e não somente através da
memorização e aplicação de idéias e teorias. Estas seriam utilizadas para ajudar a sanar
problemas práticos da ação do ator.
“O que importa é a ação precisa, quente e presente. O que você quer com o seu corpo?
com o do seu parceiro? ele tem que estar presente, engajado”, interroga Richards (1996).
Segundo o ator, o trabalho que realizavam junto a Grotowski tinha, nas ações físicas de
Stanislavski, sua fonte, mas não como no teatro realista. O que é buscado é o início da ação, o
impulso, o engajamento, o que faz a ação do ator ser eficaz. A eficácia nasceria, então, de
dentro do corpo, onde o impulso é o centro vital, e o que liga os parceiros no jogo teatral. “Você
não sai com a ação, você entra com ela.”56 (INFORMAÇÃO VERBAL).
3.5 A ilusão da vontade consciente
Tórtsov (1995), em A criação do papel, discorre sobre a ingenuidade do ator em pensar
que estava criando as ações físicas, “que as estava administrando”, quando declara que não
tinha noção do que se estava processando dentro dele. As ações eram somente reflexos externos
do trabalho criativo longe do controle consciente, do que ia sendo executado pelas forças
subconscientes. O método das ações físicas trazia uma nova qualidade, ressaltada
veementemente por Stanislavski (1995, p. 251): “O meu método induz a agir, por meios
55 Declarações de Grotowski durante o Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, 14 a 16 out. 1996, no SESC, São Paulo.
56 Declarações de Richards durante o Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, 14 e 16 out. 1996, no SESC, São Paulo.
115
normais e naturais, as mais sutis forças criativas da natureza, que não estão sujeitas ao cálculo.”
O método das ações físicas induzia a preparar uma linha simples e acessível para a entidade
física do papel, e o resultado é que, “de súbito”, o ator sentiria dentro de si a vitalidade
espiritual.
Como salienta Wegner (2002), há uma ironia no fato de que, o que parece ser mais
habilidoso em nós como ação, muitas vezes não são experiências que entendemos como
intencionais ou temos um senso vago do a que causou. Há muitos pensamentos que ocorrem
antes da ação voluntária final emergir, de forma que uma idéia ou uma ação criativa pode ser a
ocorrência de algo que temos procurado consciente ou inconscientemente, ainda que não
precedidas por um pensamento intencional claro. Achamos que não causamos intencionalmente
algo, quando não percebemos pensamentos anteriores consistentes em relação à ação executada.
Também na ação do ator, a idéia de uma objetividade e finalidade conclusivas, bem
como a de uma vontade e intencionalidade consciente pode ser revista. A interrogação de
Wegner (2002) é pertinente: Nós causamos conscientemente nossas ações, ou elas
simplesmente acontecem? O autor pondera que, ao mesmo tempo em que sentimos que
causamos conscientemente nossas ações, elas também acontecem sem que tenhamos controle
sobre elas. Embora nosso pensamento tenha importantes conexões causais relacionadas a nossas
ações – conscientes e inconscientes –, a experiência da vontade consciente resulta de um
processo que interpreta estas conexões, não das conexões nelas mesmas (WEGNER, 2002). A
vontade consciente, para Wegner, é uma espécie de ilusão, nunca podemos garantir que nossos
pensamentos causam nossas ações, mas ela é imprescindível como um guia para
compreendermos melhor nossas ações e desenvolvermos um sentido de responsabilidade e de
moralidade.
As intenções podem ou não ser causas de ações, mas nós, quando interpretamos nosso
próprio pensamento, as percebemos como motivadoras de nossa ação, ou seja, quando
experimentada a sensação da vontade ou a intenção consciente. Trata-se da teoria da causa
mental aparente ou a “ilusão da vontade consciente” proposta por Wegner (2002), que reavalia
o link determinista entre pensamento e ação. Para o autor, a intenção consciente não é uma
causa, mas uma experiência e, naturalmente, um processo. O que significa que os pensamentos
que ligamos as nossas ações não são, necessariamente, as verdadeiras causas das ações, sua
relação causal é algo que lhe atribuímos. Como salientou Hume (apud JUARRERO, 2002), o
que nos é dado observar são as regularidades e hábitos. Percebemos os eventos seguirem uns
aos outros, mas não um evento causar outro. A própria existência na natureza de “mecanismos”
de causa e feito é questionada. Hume modifica o entendimento mecânico de causa. Segundo o
116
filósofo, passamos a acreditar que A causa B depois de vivenciar inúmeras experiências que
leva a nossa mente a associar suas possíveis relações, por uma antecipação psicológica de uma
experiência prévia. Quando se trata do corpo e cérebro humanos, as relações causais são de
outra natureza, o que não garante, efetivamente, as relações entre determinada causa e seu
subseqüente efeito, como impunha a lógica anterior.
Acreditamos na idéia de um pensamento ser a causa da ação, porque é freqüente
aparecer uma série de idéias precedendo cada ação, especialmente se ocorrem num intervalo
particular de tempo, nem muito tarde, nem muito cedo. Pensamentos que ocorrem menos de 3
segundos antes da ação podem ficar na mente e serem conectados à ação de forma a
sustentarem uma possível relação causal e serem sentidas como intencionais. Ainda assim, a
experiência de controle e consciência da ação não garante a causalidade, já que mecanismos
inconscientes criam, também, pensamentos conscientes sobre ações. De acordo com Wegner
(2002), nossos pensamentos têm profundas e importantes conexões inconscientes para nossas
ações. Como salientam Lakoff e Johnson (1999), os mecanismos que nos fazem agir são os
mesmos que nos permitem pensar e conceitualizar, e grande parte deste acionamento racional
não é consciente, mas inconsciente.
Se a ação é um comportamento intencional, os novos estudos sobre a área indicam que
não parte somente de um processo racional fundado por instrumentos lógicos. Nosso campo de
visão é demasiado vasto e, muitas vezes, o cérebro decide por conta própria o que considerará,
independente de nossa vontade. Ainda que interajamos com o mundo, sustentados por uma
intenção, este não é um fenômeno exclusivamente consciente, dotado de finalidade e sob
controle do sujeito. Igualmente para Berthoz (2003, p. 9), a ação é sempre a busca de um
objetivo, sustentada por uma intenção, que não é, necessariamente, consciente. A razão é
sempre tomada sobre a ação, ela ganha ao longo da evolução uma maior capacidade de
abstração lógica, mas permanece ancorada no espaço, isto é, “sobre o corpo atuante.”
(BERTHOZ, 2003, p. 169).
No entendimento de Berthoz (2003), o cérebro não é um mero processador de estímulos
em respostas mecânicas, motoras ou emotivas. O cérebro não se contentaria em capturar
passivamente o mundo físico, os sentidos por ele gerados são já organizados em função de
comportamentos possíveis. Sua atividade é, inextricavelmente, ligada a um projeto de ação.
Como já abordei anteriormente, perceber, para o pesquisador francês, já é classificar um
repertório de ações possíveis, o que significa que, quando percebemos algo, já estamos
selecionando, dentre uma quantidade de informações disponíveis, aquelas que parecem ser
pertinentes para a ação projetada. Ou seja, já estamos, de alguma forma, decidindo. Este
117
processo de decisão não é, necessariamente, auspiciado pelo sujeito. A seleção envolve atos da
vontade e de involuntariedade que nem são, plenamente, controlados.
Vamos, o tempo todo, da ação à percepção e da percepção à ação, considerando que não
são fenômenos separados temporalmente. Não há mecanismos de percepção separados da ação,
pois a percepção já é ação simulada. Berthoz (apud CORIN, 2001, p. 92) defende a idéia de que
não existe dispositivo sensorial perceptivo que não esteja conectado a sinais motores. Na área
cerebral que trata das informações vestibulares e visuais do movimento, por exemplo, os
neurônios que codificam as informações captadas pelo olhar são influenciados pela direção do
movimento do olho.
O que Grotowski (1995) buscou, incessantemente, – encurtar os caminhos entre a
percepção e ação e entre intenção e ação – é matéria investigativa desenvolvida por Berthoz no
Laboratório de Fisiologia da Percepção e da Ação do Collège de France, em Paris, onde atua
como professor e pesquisador. Cacá Carvalho, ator brasileiro, que esteve durante dez anos junto
ao Pontedera Teatro, na Itália, laboratório de teatro sob direção de Grotowski57, sustenta que a
ação na realidade não existe. Uma ação é sempre uma reação, pois não nasce do nada. Uma
ação se transforma em outras, e a transição dinâmica entre elas e o devir importa mais do que
cada ação propriamente feita.
Não há um ponto zero, mas um processo inestancável e vezes
inominável. É um reagir, pois tem algo em você que já está vivo
ao qual você reage agindo. Você não percebe o que provocou
aquela reação porque há uma série de ingredientes que se
acionam. A intenção já é uma ação, que se organiza na práxis.58
(INFORMAÇÃO VERBAL).
O relato de Toporkov acerca da metodologia empregada nos ensaios de Tartufo –
realizados com finalidades essencialmente didáticas, e pouco antes da morte de Stanislavski, em
1938, – permite reflexões sobre a questão da percepção. É quando o mestre russo transmite, aos
atores e diretores envolvidos, questões pedagógicas inerentes ao método das ações físicas,
chamando a atenção para a relação entre percepção interior e visualização exterior. A segurança
e justeza das ações surgiriam organicamente somente com uma “percepção visual interior, 57 Surgido na década de 1970 na pequena cidade de Pontedera (Itália) e inicialmente intitulado como Centro de Pesquisa e Experimentação Teatral, a atual Fundação Pontedera Teatro passou a abrigar em 1986 o Workcenter of Jerzy Grotowski, que desde 1996 passou a se chamar Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards.(www1.sp.senac.br). 58 Entrevista concedida à autora em abril de 2004, no Teatro da Universidade de São Paulo, na ocasião da apresentação do espetáculo solo La Poltrona Scura, com direção de Roberto Bacci.
118
concreta e minuciosa”, que deveria considerar a observação de si mesmo e do ator com quem
interage. Trabalhar num papel e desenvolver uma personagem exigia, primordialmente, um
estado de atenção e o desenvolvimento da percepção do ator, sempre em parceria com os outros,
com os quais atua. O ator deveria observar a expressão dos olhos do outro ator com quem
contracena, suas mudanças, e transmitir a sua percepção visual, para poder ver as coisas com os
olhos do outro.
O jogo entre atores é um jogo de xadrez, você não conhece os
movimentos das peças, mas segue atentamente as coisas que
importam: a voz, o tom, o olhar, o movimento de cada músculo
de seu adversário. É nas reações deste que se deve orientar-se
para saber como seguir atuando. Assim se consegue uma ação
autêntica. (TOPORKOV apud JIMENEZ, 1990, p. 323).
Enquanto o ator age, outras informações, em tempo presente, atravessam o corpo
proveniente dele mesmo, das relações com o seu partner, o ambiente, e das conexões que o
agente (ou ator) busca estabelecer a partir de dados e objetivos traçados a priori. Das relações
entre estas variáveis emerge a percepção e a ação, que passam a ser entendidas como processos
vivos em constante elaboração e não o resultado causal final destes acordos. Os processos de
conhecimento em suas redes de interconexões neurais se alteram, conforme a experiência,
segundo propriedades emergentes e auto-organizativas. O processo cognitivo pressupõe
estabilidades, mas, a cada informação que adentra o organismo, o estado corporal se modifica.
Devido a sua natureza co-evolutiva, corpo e ambiente articulam o pré-existente e o adquirido
em tempo presente.
O conceito de ação parece envolver mais do que é exteriorizada e visível a olho nu. No
nível macroscópico há uma síntese, mas, subterraneamente, há várias ações ocorrendo
simultaneamente. Esta síntese, de acordo com a hipótese de Eugene Goldfield (1995), é um
padrão auto-organizativo que se estabiliza e que se dá a ver. São soluções, não definitivas, que o
corpo encontra num determinado momento. No trabalho do ator, a ação nunca é absoluta. Muita
coisa acontece numa ação. Cabe ao ator permitir a emersão de outras micro-ações que se
agreguem à ação dita voluntária:
Na ação, por ser uma estrutura complexa, convivem forças e
componentes opostos, que se manifestam um uma série de inter-
reações na dimensão externa da ação [...]. Deste modo, o que
119
termina sendo a ação manifesta é a resultante da luta com todos
aqueles componentes internos e físicos, que resistem até que o
ato seja cometido. É neste jogo de tensões que o ator executa sua
ação, neste jogo de oposições e permanente desequilíbrio59.
(INFORMAÇÃO VERBAL)
A ação do ator, em detrimento de sua pulsão por significado, objetividade e
intencionalidade não consegue domesticar o corpo e o sentido. A ação intencional e consciente
(incluindo a do ator) emerge, muitas vezes, de movimentos aparentemente involuntários,
orquestrados em uma rede neuronal rica em referências, memórias e percepção do momento
presente sem, necessariamente, o controle intencional anterior do agente. Entra em jogo uma
“intencionalidade prática” ou, mais do que uma “intenção na ação” proposta por Searle, uma
“intenção em ação”. Há um terreno desconhecido que não depende, plenamente, da intenção
prévia do ator, mas que pode ser acionado pela parte cabível ao exercício de sua vontade. A
busca de um detalhamento preciso das ações e a conexão com o momento presente contribuem
para que se desencadeiem espaços de imprevisibilidade e organicidade para o aparecimento do
estado criativo. O que Grotowski chama de simultaneidade entre estrutura e espontaneidade e
Stanislavski de paralelismo entre a atividade consciente e inconsciente, ou da entidade física e
espiritual. A fusão destas linhas paralelas traria uma veracidade psicofísica ao papel.
Tórtsov começou a representar e ao mesmo tempo explicar seus
sentimentos: -Enquanto atuo, vou-me escutando e sinto que,
paralelamente à linha ininterrupta de minhas ações físicas, corre
outra linha, a da vida espiritual de meu papel. É engendrado pela
linha física e corresponde a ela. (STANISLAVSKI, 1995, p.
239).
A objetividade e intencionalidade da ação dependem do trânsito das informações do
próprio corpo e do ambiente, requisitando, a todo o momento, resoluções cujos processos não
controlamos de todo, ou temos oportunidade de estabelecer uma relação plenamente consciente.
A perspectiva dinâmica oferece um entendimento do tipo do controle auto-organizativo e dos
acordos com o meio que ocorrem numa ação intencional. Em meio a estes acordos, a noção de 59 Apontamentos da palestra ministrada por Cazabat efetuada durante o workshop “O ator na construção orgânica de sua ação”. Itajaí, SC, 05 fev. 2003. Diego Cazabat é ator e diretor. Preside o Centro de Investigación Teatral e casa de Studios “El Astrolábio”, em Buenos Aires (AR), onde desenvolve, junto a Périplo Compañia Teatral, trabalhos na área pedagógica e investigação artística partindo essencialmente das ações físicas.
120
sujeito também se altera. As teorias cognitivas na atualidade, em sua maioria, defendem a idéia
de que não há espaço para apenas um eu com existência fixa, unitária, centralizando e
controlando tudo, mas estados (redes) emergentes que respondem a uma auto-organização, a
estados biológicos constantemente reconstruídos. Negam a existência de um “homúnculo”
dentro do cérebro que, como num teatro cartesiano, comandaria o organismo (DAMÁSIO,
1996). A solução do homúnculo para o problema da subjetividade consiste na definição de uma
espécie de criatura interna no cérebro que interpreta e referenda as operações mentais. Negada a
idéia do homúnculo, e mesmo que não exista um comando central na operacionalidade
biológica, algo ainda nos permite ter a sensação e a coerência de um eu, pois continuamos
pensando, sentindo e atuando como se tivéssemos esse eu. E mais, procurando defendê-lo e
realçá-lo ferreamente. Buscamos uma essência real e imutável que nos dê a sensação de uma
identidade no contínuo de acontecimentos e formações mentais e corporais.
Há, de fato, dificuldades de se falar do eu na experiência. Quando vamos investigá-lo, o
colocamos em categorias e conceitos abstratos que não dão conta do estado de mudança (de si
mesmo, em si mesmo) que ele apresenta. Aparentemente, ele revela uma unidade, mas uma
unidade em movimento, numa experimentação mutante. Como ele é um conceito em
movimento, está encarnado, corporificado. O eu que confere subjetividade à nossa experiência
não é um inspetor de tudo o que acontece em nossas mentes, haveria propriedades emergentes
em redes auto-organizativas com estados sucessivos do organismo ancorando o eu que existe a
cada momento.
Neste sentido, não é exclusivamente a vontade e a intenção de um “eu” que controlam a
emergência de padrões de ações, estes se dão através de processos com alta taxa de
complexidade e baixa taxa de acessibilidade. Se o comportamento humano é um fenômeno
adaptativo complexo, o caminho preciso que as ações vão tomar é imprevisível (JUARRERO,
2002). Quanto mais complexo o sistema, mais estados e propriedades ele pode manifestar.
Novas características e leis emergem. Mesmo que desencadeada por uma causa “ignorada”,
algo acontece, e pode emergir carregado de sentido.
Segundo o entendimento proposto até então, a intenção não seria uma atividade mental
que causa uma atividade física, mas a própria operacionalidade da ação. No aqui e agora da
atuação, o contato com o outro e com todo o ambiente redimensiona a estrutura conquistada
durante o processo de ensaio de um trabalho cênico, propiciando ao ator o surgimento de ações,
até mesmo, inesperadas e com uma certa autenticidade e espontaneidade. Intenções
momentâneas se desenham sem uma combinação prévia, fruto da rede de intenções
engendradas no processo de composição da atuação ou da personagem e do momento presente
121
vivido.
A objetividade e intencionalidade da ação do ator depende do trânsito das informações
do próprio corpo e do ambiente, requisitando, a todo o momento, resoluções cujos processos ele
não controla de todo ou estabelece uma relação plenamente consciente, tampouco consegue
repetir as ações da mesma maneira. Independente de o ator preparar suas ações com
objetividade e “intencionalidade prévia”, os estados do seu corpo e as informações do meio no
momento da representação corroboram para a ocorrência de singularidades. O que faz com que
as “intenções em ação” contribuam, sobretudo, para o que Peter Brook (1994) elege como a
razão de ser do teatro: as ações em momento presente.
3.6 Sobre o estado de consciência
Pode um sistema conhecer sua dinâmica cognitiva, se esta
dinâmica (que é o que deseja conhecer) é seu próprio
instrumento de conhecer? (Maturana,1994, p. XIX).
Stanislavski deixa mostras de que, no início do século XX, o teatro discutia os limites da
consciência humana face à criatividade. Sob influência do ambiente psicanalítico de sua época,
Stanislavski (1995, p. 95) declarava que só o reino do inconsciente, “do não acessível ao
cérebro e ao pensamento”, poderia alcançar as “profundezas de um papel, de um ator ou de uma
platéia”. As chaves estão entregues à “natureza do ator” como ser humano, e a natureza é, desde
sempre, o “único criador que tem a capacidade de promover a vida”. Para o diretor russo,
quanto mais sutil fosse o sentimento, mais se aproximaria do superconsciente e da natureza
humana, e mais se distanciaria do consciente: “O Superconsciente começa onde a realidade, ou
melhor, o ultranatural, acaba, onde a natureza se liberta da tutela do cérebro, fica livre das
convenções, dos preconceitos, da força.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 95).
Herança esculpida pelos anos novecentos, a partir das mãos hábeis de Stanislavski, o
interesse pelo trabalho “sobre si mesmo”, condição esta, para ele, imprescindível no trabalho do
ator sobre a personagem, tende a permanecer na atualidade como atividade investigativa do
ator. Neste sentido, o conhecimento dos processos, que cercam a consciência e suas implicações
na ação cênica, alcança um papel cada vez mais significativo. O problema da consciência
configura-se como um dos maiores desafios das ciências da mente e parece estar longe de ser
elucidado. Contudo, não há como desconsiderar o importante percurso conquistado até então.
As perspectivas advindas das ciências cognitivas vêm propiciando, na atualidade,
122
“trilhos sólidos” para o entendimento dos processos que cercam a consciência. Indagações antes
ambientadas no campo da psicologia e da filosofia encontram, cada vez mais, abrigo no campo
da experiência científica. Até o século XX, o problema corpo-mente, central para o
entendimento de quem somos, era próprio da filosofia, fora do campo da ciência empírica60. A
última década do século XX marca a introdução definitiva dos estudos sobre a relação mente-
corpo na agenda científica, como parte especialmente da investigação sobre a consciência, sem,
contudo, se abster das questões ontológicas. Neste sentido, filósofos-cientistas como António
Damásio recorrem às questões tradicionais do pensamento filosófico para relacionar as suas
descobertas na área da neurologia. Suas obras mais marcantes provêm de grandes questões,
como O Erro de Descartes. Emoção, razão e cérebro humano de 1996 e Em busca de Espinosa.
Prazer e dor na ciência dos sentimentos de 2004. As ciências cognitivas vêm reorganizando
saberes que se conectam com questões extremamente relevantes para o entendimento do
trabalho do ator sobre suas ações.
Como salienta Damásio (2004), à medida que os estudos relativos à introspecção foram
confrontados com os fatos da neurologia moderna, a perspectiva do dualismo de substância se
fragilizou, afastando, cada vez mais, a metáfora do “fantasma na máquina”. Muitos fenômenos
mentais são mais concretamente problematizados e observados, quando revelados por meio de
protocolos neurológicos de casos concretos de anomalias relacionadas ao cérebro, o que nos
leva a conhecer mais sobre como o corpo, o cérebro e a mente funcionam. A comprovação
científica da relação causal entre mente e cérebro, contudo, não basta para que o problema
mente-corpo se elucide, há que se mudar o ponto de vista por onde olhar o problema, visto que
permanecem velhos entendimentos acerca da relação corpomente. Damásio (2004) reafirma a
necessidade de partirmos da perspectiva de que a mente emerge num cérebro situado dentro do
“corpo-propriamente-dito”, de seu tecido biológico e que tem ali seus alicerces, partilhando as
mesmas características dos outros tecidos vivos. O uso dos termos “mente” e “corpo” por
Damásio não implicaria numa continuidade da perspectiva do dualismo de substância cartesiano
(pois ele entende os fenômenos físicos e mentais como emergindo de uma só substância
biológica), mas de uma estratégia necessária que permita às pesquisas avançarem em direção ao
conjunto integrado que mente e corpo constituem.
Ao abordar o problema mente-corpo, Searle (2002) coloca uma importante questão: é 60 Importa lembrar que os primeiros fatos de afirmação cientifica do inconsciente foram frutos de investigação médica. Foram os estudos a partir da segunda metade do século XIX sobre histeria (uma doença nervosa) que inauguram esta prática médica, acompanhados da publicação de importantes obras sobre a natureza psicológica das doenças, tais como os estudos de Pierre Janet, Alfred Binet, Charcot e Theódule Ribot. Os sintomas de algumas doenças, como a distração, idéias fixas e fobias, a amnésia e convulsões observados em ação, ofereciam subsídios suficientes para a comprovação experimental da atividade consciente e inconsciente.
123
provável que haja, futuramente, outros princípios diferentes dos que empregamos até agora para
a descrição da relação entre os níveis físicos e mentais, tão diversos quanto foram os
provenientes da física newtoniana e da quântica. Mas é certo que a descrição biológica não
poderá mais ser descartada, como o foi até então, nem tampouco a noção de causa será
newtoniana. O modelo mecanicista de controle e coordenação teve sobrevida espantosa no que
se refere à ontogenia dos sistemas de ação. Um dos problemas herdados do dualismo é o não
reconhecimento de que a causa e a realização de algo estão na mesma estrutura, e no caso das
experiências humanas, que estas possam ocorrer pelo funcionamento do cérebro em respostas a
estímulos a ele direcionados e realizados na sua própria estrutura, que é biológica. Por outro
lado, o conceito de máquina e de controle e coordenação não são mais os mesmos, com as
novas pesquisas e suas decorrentes tecnologias. Os autômatos hoje possuem sensores e outros
artefatos em sistema de rede que diferem da mecânica newtoniana. A metáfora da máquina deve
persistir no sentido de averiguação dos mecanismos de organização dos sistemas, mas, cada vez
mais, sob bases biológicas.
A crença de que as causas das ações deveriam ser externas aos efeitos que elas
desencadeiam, impossibilitaria ao organismo “causar a si mesmo”, ou seja, se autogerir ou se
auto-organizar. A visão de causa exterior à própria estrutura, segundo as leis físicas
newtonianas, favoreceu a permanência da separação entre fenômenos mentais e físicos e a visão
mecanicista de causa. A flexibilidade característica da ação humana foi igualmente reduzida a
padrões mecânicos de estímulo e resposta por algumas teorias do conhecimento, a exemplo das
lógicas reflexionista e behaviorista, movidas pelo mesmo desejo de fazer o comportamento
humano explicável cientificamente.
Hoje, não há como manter uma visão mecanicista do fenômeno da ação. Ao contrário da
mecânica clássica, cujo tempo é visto como reversível, a segunda lei da termodinâmica trouxe a
noção de entropia, do tempo irreversível onde tudo se move entre ordem e desordem. A teoria
da evolução de Darwin chamou a atenção para a complexidade e seletividade. Ambas as teorias
trouxeram o tempo e o contexto novamente ao seio das ciências. No século XX, as teorias sobre
sistemas complexos, sistemas adaptativos e sistemas fora do equilíbrio modificaram
potencialmente o entendimento mecanicista de ação vigente. Estruturas dissipativas não são
processos mecânicos, pois nenhuma molécula “empurra a outra”, como Newton supunha. Os
neurônios no cérebro não respondem à moda da força newtoniana, ativando os outros pelo
choque. Como estruturas em processo, são padrões relacionais, distribuídos em conexões
dinâmicas (Juarrero, 2002, p. 130). A “nova aliança”, proposta por cientistas como Ilya
Prigogine (1991), revê o homem não mais como espectador externo à natureza e buscando
124
dominá-la, mas ele, o homem, sendo a própria natureza, indissolúvel nela. O saber científico
contemporâneo tratou de buscar escutar a natureza de forma mais “poética” – utilizando um
termo “prigoginiano” –, mais inventiva e menos dogmática, respeitando suas taxas de
complexidade.
Enquanto teorias comportamentais, como o behaviorismo, explicavam a ação dentro de
um conjunto de padrões fixos e deterministas – desconsiderando a grande variedade de
respostas possíveis a partir do mesmo estímulo – o cérebro impunha sua plasticidade. Sendo
autoprodutor, o cérebro aciona mudanças nele mesmo, num fluxo em rede em vários sentidos, e
não somente recebe a informação (input) e, mecânica e seqüencialmente, a devolve ao meio
(output). O cérebro não possui uma lógica mecânica de controle das entradas e saídas de
informações, mas exibe plasticidade, dificultando a precisão do que é informação e do que já é
comportamento, ação gerada. Estruturas cognitivas emergem de modelos sensório-motores,
numa relação estreita entre percepção e ação, intenção e ação. A evidência, cada vez maior, de
que a mente humana é auto-organizativa vem desembaraçando o velho entendimento
mecanicista de causa, enquanto impacto de forças externas sobre a matéria inerte e que ainda
persiste no corpo das teorias sobre ação (JUARRERO, 2002). Da mesma forma, o
desenvolvimento motor parece ser o resultado de um processo de auto-organização dinâmica
que ocorre como resultado de interações entre a própria dinâmica espontânea dos organismos e
o seu ambiente.
Reitero, uma vez mais, a validade do ator em conhecer (e o modo como conhece), a si
mesmo e ao mundo, por meio de ferramentas disponibilizadas pelas neurociências. Como
sentenciou Stanislavski, em sua busca pela compreensão da interação dos aspectos físicos e
psíquicos, com alguma coisa mais material, pensada a partir do corpo, é possível ao ator
percorrer trilhos mais sólidos. A exposição dos fundamentos e da evolução da noção de
consciente não são alvos desta pesquisa, mas importa ressaltar o contexto epistemológico, no
qual as teorias do ator do século XX têm oscilado, no que se refere às noções de consciente e
inconsciente, para que se avance no tipo de abordagem proposta pelas ciências cognitivas.
A discussão empreendida por Stanislavski (1995) sobre dos meios conscientes e
inconscientes do ator surge, já no século XVIII, através do paradigma psicológico recém
instaurado. É quando aparecem os primeiros indícios a respeito dos conteúdos inconscientes e o
controle da mente consciente na atuação do ator. Das reflexões filosóficas e fisiológicas de
Diderot (1986), às experiências fisiológicas e psicológicas de Lewes (apud ROACH, 1985)
surge uma rede de conexões sobre a relação corpo e mente que ecoaria nas teorias do ator do
século XX, e que ainda orientam o entendimento destes processos, na atualidade. Grotowski
125
(1990) apontou o dilema de Stanislavski: ter consciência do que se faz não seria tudo, pois não
envolveria a integridade dos processos criativos. O diretor russo buscou, a seu modo, tocar
indiretamente o que era inconsciente.
O abandono progressivo, a partir do século XVIII, da mecânica das paixões orientadas
pelos espíritos animais cartesianos conformou, de acordo com Roach (1985), uma nova
semiótica dos afetos. Esta se orienta por meio da noção de um modelo interno da atuação da
mente consciente e da valorização dos conteúdos inconscientes. O interesse pelas paixões e pela
sua presença nas teorias sobre a atuação do ator foi renovado à luz da moderna ciência e do viés
psicológico que se engendra. Na medida em que as tensões nervosas foram vistas cada vez mais
como processos de natureza menos mecânica e mais orgânica, a solução para a espontaneidade
ou controle das emoções, com seus tremores e descargas, viria através da atuação da mente
consciente. A tentativa de entender as relações entre corpo e alma, ou corpo e mente, se
constitui como o desafio maior do trabalho do ator sobre si mesmo, como apontou Stanislavski
(1995), em suas considerações acerca da vida física e psíquica do ator.
3.7 O modelo interno
A mente e o corpo são coisas distintas ou feitas da mesma substância? Se alimentadas
pelo dualismo cartesiano e consideradas como substâncias diferentes, quem viria primeiro? “É a
substância da mente que causa a existência e ação do corpo e do cérebro, ou será que é a
substância do corpo que vem primeiro e que o cérebro, que dela faz parte, causa a mente”?
Estas indagações expostas por Damásio (2004, p. 193), também estão no cerne das questões
apontadas por Stanislavski nas suas reflexões acerca da vida espiritual e física do papel.
O ator deve agir para suscitar estados mentais e, com eles, os emocionais, ou a evocação
dos conteúdos mentais reacende a ação do corpo? Moeda corrente tanto no senso comum
quanto na agenda científica e filosófica, a perspectiva dualista é uma das questões mais
debatidas pela filosofia da mente. As respostas das ciências cognitivas às questões acima
levantadas ainda não dão conta do problema corpomente nem, tampouco, encontram
ressonância no senso comum. Embora a ciência tenha avançado, consideravelmente, nos
estudos acerca do funcionamento dos circuitos neurais, ainda paira a dúvida sobre as relações
entre estes e os processos mentais que vivenciamos. Por mais que as teorias do teatro busquem a
fisicalidade dos processos de conhecimento, persiste uma resistência quando as operações
mentais e o campo da emoção são aproximados de uma explicação proveniente dos processos
biológicos. Aceitar que o mistério infindável e “imaterial” dos conteúdos mentais, emoções e
126
sensações do ator se explicaria por sua dependência dos circuitos cerebrais e corporais, sem que,
com isto, se destrua a grandeza e a complexidade da condição humana, tão dimensionada
ficcionalmente no teatro, pressupõe uma importante mudança de perspectiva para o
entendimento das relações entre corpo e mente.
A psicofisiologia de Stanislavski e a biomecânica de Meyerhold podem ser consideradas
como soluções para o problema mente-corpo, já enunciados por Diderot e sistematizados por
Lewes, como os aspectos objetivos e subjetivos da ação do ator. A incursão de Lewes ao
subconsciente formata o “aspecto subjetivo” do problema da unidade corpo e mente, levando ao
entendimento de que os impulsos movem do interior do corpo para o exterior, onde o tremor
físico desencadeia o ato. No “aspecto objetivo” o processo se inverte, é quando o ato excita o
tremor físico, gerando, conseqüentemente, as emoções. Lewes (apud ROACH, 1985) explicava
a consciência dividindo-a em duas regiões: a “sensação especial”, cabendo a atuação dos cinco
sentidos (visão, audição, tato, olfato, paladar) e a “sensação sistêmica”, um mundo submerso de
sensações involuntárias, ou seja, um subconsciente, pronto a emergir à consciência por meio de
impulsos ou tremores que se moveriam do interior para o exterior e, ao mesmo tempo, do
exterior ao interior do corpo, excitado pelo ato físico.
As questões referentes aos conteúdos inconscientes já eram matéria de interesse de
Diderot. No estudo sobre a memória, ressaltava que o cérebro “receberia resíduos de
impressões caóticas de tudo o que percebemos do mundo sem que tenhamos conhecimento
delas.” (ROACH, 1985, p. 146). Para Diderot, a memória teria duas implicações na atuação: em
termos de performance, nas suas relações com padrões de movimentos faciais e corporais, e em
termos de criação de um modelo interno, desencadeando uma discussão que é categorizada no
século XX como memória afetiva61. O contato com pintores e escultores refinou as reflexões de
Diderot sobre o papel dos processos técnicos e mecânicos na formatação das energias criativas.
A questão da imitação da natureza, passa a ser mais uma ilusão da realidade na mente do artista,
do que a cópia fiel desta. A noção de “modelo interno” ou a criação de “uma coleção de
imagens que formam uma pintura na mente do artista”, salienta Roach (1985, p. 127), é
empregada de forma pioneira por Diderot, e demonstra que a questão da imagem já se impunha
como estratégia de conhecimento para o ator. A investigação dos fenômenos da natureza, seja
na arte ou na ciência, passaria por métodos subjetivos e objetivos, com a cabeça a controlar os
processos. A premissa fisiológica de Diderot descreve o corpo ainda como uma máquina, de
acordo com o pensamento filosófico de sua época, mas dotada com propriedades pulsantes 61 Seguindo a herança do pensamento de Diderot, são os estudos sobre memória afetiva de Théodule Ribot as referências para a construção do conceito de memória emotiva desenvolvido Stanislavski.
127
vitais de movimento e consciência.
Com referências a não regularidade da máquina corporal humana, Diderot aponta para a
importância da formação de imagens bem construídas na mente acerca do papel a ser
representado para a efetivação da performance no corpo. A criação artística estaria na formação
do modelo interno na mente, uma espécie de modelo ideal, e o corpo seria uma máquina
sensível à fabricação e demonstração destes modelos.
A fisiologia das operações mentais é descrita através da metáfora da vibração sensitiva
dos nervos e, com ela, explica-se a base física da memória e da imaginação. A memória
também suscita, para Diderot (1979), metáforas como a do cérebro enquanto uma massa de cera
que recebe novas impressões ao mesmo tempo em que revive as antigas. Numa analogia
poética, Diderot define a consciência, na obra O sonho de Alembert, comparando a mente e o
corpo a uma aranha e sua teia, que, a cada vibração sensitiva, converte os impulsos ao longo dos
nervos e a memória seria
a propriedade do centro, o sentido específico da origem da rede
tecida. [Os fios estão em toda parte, como uma rede, formada
pelo corpo e a aranha está animada] em uma parte da cabeça, [...]
as meninges, à qual não se poderia tocar sem amortecer toda
máquina. [...] se um átomo faz oscilar um dos fios da teia da
aranha, ela recebe o alarme [...]. No centro, é instruída de tudo o
que se passa em qualquer ponto que seja do imenso apartamento
que atapetou. (DIDEROT, 1979, p. 101-103).
A aparente contradição das metáforas orgânicas e mecânicas se sucede no discurso de
Diderot em sua descrição das funções do organismo e comprova que modelos de pensamento
não são tão excludentes e nem facilmente cambiáveis. Substitui, em sua teoria, a noção de
tubos e espíritos animais em favor de uma terminologia mais moderna, que opera em torno de
uma rede de fibras nervosas, tal qual uma aranha (mente) no centro de sua rede (corpo), por
meio, contudo, de uma matriz mecanicista e centralizadora.
O subconsciente era interpretado por Diderot como depositário de memórias e
imaginação, no sentido psicológico pré-freudiano, mas que já denotava que o homem não
poderia ser explicado inteiramente por sua consciência. As filosofias do inconsciente anteriores
128
a Freud colocavam em jogo outras forças irracionais e ativas. Carl-Gustav Carus62, descreve o
diálogo incessante entre consciente e inconsciente como responsável pelo surgimento das
energias criadoras da natureza: “O inconsciente é a expressão subjetiva que designa o que
objetivamente conhecemos sob o nome de natureza.” (CARUS, apud FILLOUX, 1988, p. 45).
O sentimento, segundo Carus, também não pode ser compreendido sem a recorrência ao
inconsciente, pois
[...] tudo o que trabalha, sofre, cria, age, fermenta na noite de
nossa alma inconsciente [...] tudo isso sobe como um acento
muito particular, da noite inconsciente para a luz da vida
consciente, e a esse acento, a essa maravilhosa confidência do
inconsciente ao consciente, chamamos de sentimento. (CARUS
apud FILLOUX, 1988, p. 48).
Segundo este entendimento, o conhecimento da vida psíquica consciente e criativa tem
na região do inconsciente sua chave, como Stanislavski supunha.
Stanislavski, cuja descrição guarda similitudes com a de Carus, descreve o
subconsciente como inspiração e como criação, não acessível ao intelecto, e a forma de buscá-
lo, sobretudo, seria por meio do sentimento e de um “objetivo emocionante e em sua linha
direta de ação”. Quando o ator está completamente direcionado a um “objetivo comovente, num
estado de inspiração, quase tudo o que ele faz é subconsciente, e ele não tem noção consciente
de como efetua seu propósito.” (STANISLAVSKI, 2000, p. 363). A busca pela unidade dos
aspectos físicos e psíquicos permeia toda a evolução da pesquisa de Stanislavski, considerando
que a relação entre corpo e alma é indivisível, e em todo ato físico há um elemento psíquico e
todo ato psíquico é um ato físico. No desenvolvimento de sua teoria, inicialmente enfoca o
trabalho do ator sobre si mesmo nos aspectos subjetivos, incluindo a doutrina da memória
afetiva como acesso aos conteúdos subconscientes. É no final de sua vida, contudo, quando
concebe o método das ações físicas, que a premissa psicofísica se torna mais pragmática.
O sistema de Stanislavski é, acima de tudo, um meio de manipular níveis de consciência 62 Carl-Gustav Carus (1789-1869), pintor, desenhista, filósofo, médico e psicólogo. Um dos importantes teóricos da pintura romântica, publicou Nove Cartas sobre a pintura de paisagem (1831), e discutiu a questão do inconsciente em Curso de Psicologia (1831) e Psique (1846).
129
para proporcionar ao ator um expressivo controle sobre seu corpo e suas energias criativas
inconscientes, de forma a alcançar certos efeitos específicos, especialmente a ilusão da
espontaneidade. “Permitam-me recordar o nosso princípio cardeal: por meios conscientes
alcançamos o subconsciente.” (STANISLAVSKI, 2000, p. 215).
Em sua prática com os atores, Stanislavski já percebia que a visão de que o ator controla
e coordena seu processo cognitivo era questionável, bem como a hegemonia da mente
consciente frente aos estados inconscientes. A certeza de que o ser humano possui
possibilidades expressivas, e que não é dado a conhecer tão facilmente, o fez inserir as questões
do subconsciente como matérias de interesse do ator em seu processo criativo, bem como as
possibilidades de controle e acesso a este universo.
As reflexões de Stanislavski acerca do trabalho do ator e suas ações, vontade,
sentimentos e sobre a possibilidade ou não de controle sobre os processos cognitivos que
propiciam a ação criativa surgem em torno da relação consciente-inconsciente: “não está no
âmbito da consciência humana a execução deste trabalho oculto e, assim sendo, o que está além
de nossos poderes é realizado pela própria natureza em lugar de nós.” (STANISLAVSKI,1995,
p. 251). Para ele, o ator não convoca o estado criativo por seu ato volitivo, apenas pode permitir
que ocorra mediante o trabalho sobre suas ações físicas, se conectando com o que chama de
expressão da natureza. O trabalho sobre as ações pressupunha, para Stanislavski, um ponto de
vista da experiência humana, do corpo do ator em ação no mundo, e não o que o diretor
chamava de análise fria e racional. O que Stanislavski (1995, p. 250) chamou de nova e feliz
qualidade de “auto-análise induzida naturalmente”, em contraponto ao que denominava de
análise cerebral: “Absolvidos nas ações físicas, não pensamos nem temos consciência do
complexo processo interior de análise que, naturalmente e imperceptivelmente, vai ocorrendo
dentro de nós.”
O ator pode estabelecer um conjunto de ações, tais como os “yogis da Índia”, como
meios preparatórios conscientes com seu corpo, mas não tem como controlar o que emerge de
seu subconsciente, afirmava Stanislavski (1995). O ator tem que convocar seu corpo, via ações,
para estabelecer algum tipo de comunhão com seu inconsciente – já que, para o diretor, este não
é acessível ao cérebro ou pensamento, mas sim aos sentimentos e às emoções criadoras. O ator
precisa saber como “pegar uns punhados de pensamentos e jogá-los na sacola de seu
subconsciente”, deixando-os agir por si mesmo (STANISLAVSKI, 1995, p. 96). Resta ao ator,
complementa Stanislavski, estabelecer uma constante conexão de informações, conhecimentos
e experiências e manter-se em contato com seu ambiente, abastecendo a memória com estudo,
leitura e observação. E achar a justeza de suas ações, evitando os clichês e qualquer espécie de
130
atuação convencional. Como o teatro carece de causas naturais, o desafio do ator consistiria em
manter este fluxo de estímulos de forma espontânea.
Interessado em um método que abrisse os mais profundos níveis do subconsciente,
Stanislavski experimentou vários estímulos criadores que poderiam exercitar as respostas
reflexivas apropriadas para a formulação de sua técnica psíquica. Ele invocou, inicialmente, os
processos de memória e imaginação, para, finalmente, ater-se a concretude das ações físicas,
que poderiam ser mais conscientemente manipuláveis, sempre com a finalidade de desencadear
as emoções criativas e outros conteúdos inconscientes. O diretor chama a atenção para o estudo
do subconsciente como uma importante região que é parte fundamental do seu sistema:
Nossa mente arranja, impondo-lhe um pouco de ordem, os
fenômenos do mundo exterior que nos cerca. Não existe uma
linha demarcatória nítida entre a experiência consciente e a
subconsciente. Nosso consciente muitas vezes, aponta a direção
em que o subconsciente continuará a tarefa. Portanto, o objetivo
fundamental de nossa psicotécnica é colocar-nos em um estado
criativo no qual o nosso subconsciente funcione naturalmente.
(STANISLAVSKI, 1995, p. 335).
Stanislavski reconhece a impossibilidade de se adquirir controle sobre a esfera do
subconsciente, cabendo apenas o desenvolvimento de um método de abordá-lo e se render ao
seu “poder natural” e, ao mesmo tempo, não estar à mercê da ação das emoções. Para tanto,
buscou desenvolver uma psicotécnica consciente para despertar a criatividade subconsciente da
natureza, esta “terra prometida.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 349). E este método não diz
respeito somente à imersão nos conteúdos interiores não conscientes, por meio da convocação
da memória ou de sua emergência natural, ou de atitudes voluntárias, via ação física, mas,
também, nas simples ocorrências do exterior e nos pequenos acasos. São aquelas situações que
não são, necessariamente, ligadas ao personagem ou as circunstâncias do ator, mas que devem
ser consideradas, pois injetam “um pouco de vida real no teatro e que instantaneamente nos
arrebata para um estado de criatividade subconsciente.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 339).
Quaisquer ocorrências espontâneas, tais como uma cadeira que cai em cena ou uma reação da
platéia, e que, devidamente aproveitadas, poderiam ser excelentes meios para aproximar o ator
do seu subconsciente.
Stanislavski acreditava num fluxo de consciência sustentado, e constantemente
131
redirecionado, por impulsos subconscientes e estímulos sensórios. Demonstra, através de seus
escritos, estar ciente, de certa forma, de toda a complexidade inerente a um organismo vivo, em
seus ajustamentos constantes com o ambiente e entre os níveis conscientes e inconscientes, bem
como nas operações do acaso. Ajustamentos estes que caracterizam a busca de um pensamento
menos cartesiano e mais sistêmico acerca do corpo em ação, visivelmente presente nas teorias
cognitivas da atualidade.
A visão de mente, proposta por inúmeros filósofos cognitivistas na atualidade,
redimensiona o conceito de razão, a faculdade que define e guia o ser humano em sua conduta e
ações, e cujo controle visto, até então, como “consciente” diferencia-nos dos outros animais.
Lakoff e Johnson (1999) advertem que a maior parte de nossos pensamentos são inconscientes,
abaixo do nível consciente da cognição em sua operacionalidade, ou seja, pouco acessível à
consciência pela extrema rapidez e complexidade de conexões, impossíveis, ainda, de serem
aferidas e observadas conscientemente, mais do que pelo caráter repressor, no sentido dado pela
psicologia freudiana. O que os levou ao conceito de inconsciente cognitivo.
Nas ciências cognitivas, o termo “cognitivo” é usado para qualquer tipo de operação
mental ou estrutura envolvida em aspectos como a linguagem, percepção, sistemas conceituais e
racionalização. Lakoff e Johnson nomeiam de inconsciente cognitivo toda operação mental
concernente a sistemas conceituais, significados, inferência e linguagem. Muitas destas
operações mentais são inconscientes, no sentido de que não é possível termos consciência sobre
todo o processo que as envolve, por sua complexidade. Os padrões mentais-corporais que
possuímos advém destes processos e no ato de volição63, usamos uma razão formatada pelo
corpo, por uma cognição inconsciente a que não temos acesso direto e por pensamentos
metafóricos o qual nós pouco percebemos. Lakoff e Johnson (1999, p. 13) reafirmam que a
razão não é puramente literal, mas largamente metafórica e imaginativa, nem é puramente
racional, mas emocionalmente engajada. Lembrando que, como vimos, a razão metafórica
citada em Lakoff e Johnson refere-se a associações conceituais que permeiam o ato cognitivo,
como um todo, e que ganham complexidade com a experiência. São conexões neurais
associadas à experiência sensória motora. O ato pensante e o ato consciente passam a ser
entendidos como implementados no corpo em ação no mundo, não mais como atributo de uma
razão descolada, ou anterior, à experiência. A mente, pela lente de grande parte das teorias das
ciências cognitivas, é encarnada, corporificada, e não responde exclusivamente a uma condição
a priori.
63 Considerado pelo senso comum como o processo pelo qual a pessoa adota uma linha de ação; atividade consciente que visa um determinado fim manifestado por intenção e decisão.
132
O inconsciente freudiano faz alusão a conteúdos de uma “psicologia da
profundidade”, vistos os processos psíquicos inconscientes mais abissais e estranhos, e não
como automatismos psicológicos, até então descritos pelos estudos anteriores a Freud. O
conceito de inconsciente, em Freud, está relacionado ao de repressão de desejos, espécie
particular de defesa psíquica frente à perda de unidade do sujeito. Com bases em evidências
obtidas a partir das neurociências e da psicologia cognitiva, o conceito de inconsciente vem
ganhando cada vez mais um status científico, considerando que o inconsciente é anterior a toda
a repressão freudiana e abarca um campo de fenômenos mais amplo. Os processamentos
inconscientes deixaram de ser vistos como versões débeis, irracionais ou ilusórias dos processos
conscientes, já que ambos, consciente e inconsciente, cumprem um papel ativo, construtivo e
controlador das ações. A história tem dado razão a Freud acerca do poder da vida inconsciente e
suas relações com estados afetivos, ações e pensamentos conscientes. Ainda que o tipo de
descrição freudiana do processamento do psiquismo inconsciente venha sendo revista, foi
precisa em sua época.
Afinal, de que tratamos quando falamos de uma ação consciente, hoje? E dos conteúdos
inconscientes? A consciência, sob o ponto de vista das ciências cognitivas, seguindo ainda a
metáfora criada por Freud, parece ser só a “ponta do iceberg”. Lakoff e Johnson (1999, p. 13)
defendem a hipótese de que o pensamento inconsciente representaria 95% de todo o processo
mental e o pensamento consciente seria igualmente o topo de um imenso iceberg. Entretanto,
esta alta porcentagem abaixo da superfície da consciência é que formata e estrutura todo o
pensamento consciente. Todo ser vivo categoriza, e a forma com que efetua esta categorização
depende do aparelho sensitivo e motor, ou seja, a categorização não é produto exclusivo de uma
consciência separada. São nossos corpos que moldam nossas possibilidades de conceitualização
e categorização e somente uma pequena porcentagem de categorias é formada conscientemente.
O homem e sua possibilidade de conhecer é estudado por toda a filosofia, mas é a visão
consolidada por René Descartes (1596-1650), em que a mente é a garantia das faculdades de
pensar e conhecer, bem como o fato de existirmos a partir dela, a que referencia mais
contundentemente a noção ocidental de consciência e o ponto de partida para a revisão do
dualismo. Em relação à emergência da consciência, há uma idéia que persiste, fortemente
impregnada no pensamento ocidental moderno e oficializada pela filosofia dualista de
Descartes, – a de que os “simples” impulsos nervosos não poderiam ser a substância que
poderia nos dar consciência (DENNETT, 1997, p. 69). Eles precisariam, de alguma forma,
serem traduzidos e enviados para algum outro meio maior, uma espécie de comando central que
recebesse toda a informação e dirigisse o corpo. A idéia de que a rede neuronal em si mesma
133
poderia dar conta do corpo e dos processos de cognição e consciência, seria por demais
reducionista para a sua época. Descartes pensava que a glândula pineal era quem fazia a
tradução do meio físico para o não físico, para uma “misteriosa mente”. O acionamento entre
corpo e alma se daria pelo cogito, através dos processos biológicos da glândula pineal que, em
sua época, eram vistos mais como processos mecânicos. A biologia, contudo, já estaria presente
nas preocupações de Descartes, que se interessava pelo seu estudo enquanto manifestação do
ser vivo, e não sobre a dissecação do animal morto.
Para a teórica francesa Annie Bitbol-Hespériès (1990), o cartesianismo não privilegia
totalmente o espírito ou a mente sobre o corpo, como coloca o senso comum, inclusive
científico. Descartes teria construído uma teoria do conhecimento que, mesmo amparada no
cogito, que é o que possibilita pensarmos, duvidarmos e, consequentemente, conhecermos, se
concretiza no corpo. Ainda que estudos revisores chamem a atenção para a possibilidade de um
outro tratamento para o ato de pensar e o papel do corpo nas questões do conhecimento, já em
Descartes, o filósofo não se salvou de ser considerado, ainda hoje, mais do que Platão, como o
grande vilão do dualismo corpo e mente. Hoje em dia, sentencia Dennett (1997), quase ninguém
que trabalha com a mente acredita que haja um meio não físico como este, nem tampouco
crêem em seu poder centralizador. Mas, mesmo entre os que buscam combater a visão de
Descartes, ainda há uma tendência de tratar a mente ou o cérebro como “o chefe do corpo, ou o
piloto do navio” (DENNETT, 1997, p.73). Independente das especificidades dos estudos sobre
a relação mente e corpo nas ciências cognitivas, a noção de uma mente encarnada, ou de um
corpo não separado da mente é consenso.
A consciência seria a parte da mente relacionada ao sentido manifesto do eu e do
conhecimento, sendo que a mente não é apenas a consciência. De acordo com Damásio (2000),
ter consciência é ter um sentido de si mesmo no ato de conhecer, sob a perspectiva de que os
níveis de percepção e consciência que delineiam os estados de presença do corpo em ação no
mundo são constantemente reconstruídos e não temos controle de todos os processos que
envolvem este ato. A consciência ocorreria em pulsos, sendo cada pulso individualmente
desencadeado pelos objetos com que interagimos ou que evocamos. A sensação de si mesmo e
os processos de consciência provém destes pulsos e a continuidade da consciência seria gerada
pela constância e abundância do fluxo de narrativas não verbais, denominadas por Damásio
(2000) como imagens.
Os padrões neurais que se tornam imagens constituem as narrativas mentais e são
incorporadas ao fluxo de pensamento. A analogia a um filme que ocorre no cérebro só pode ser
absorvida, como lembra Damásio, se entendermos que não somos espectadores externos, como
134
num teatro cartesiano, mas estamos no filme. Ou melhor, somos o filme.
Somos conscientes de algo, quando temos um sentido do eu manifesto na interação com
algo percebido (real) ou evocado (memória), e dos aspectos de dentro e fora do organismo.
Temos consciência quando nosso organismo constrói um tipo de “conhecimento sem palavras”,
uma forma de sentimento por relatos imagéticos. A mente existe por que há um corpo que lhe
fornece os seus conteúdos básicos, por outro lado, salienta Damásio (2004, p. 218), a mente
executa tarefas que são cruciais para o corpo, como o controle da execução de respostas
imediatas e automáticas e a antevisão e planejamento do futuro em novas soluções de ações. As
imagens que sentimos fluir em nossas mentes são reflexos da interação entre corpo e meio.
A perspectiva neurobiológica acerca da consciência prevê não só o estudo de como o
cérebro cria imagens na mente, mas, sobretudo, de como estas imagens são percebidas como
sendo de cada indivíduo, formatando o sentido do eu. Lembrando que a noção de imagem
abrange qualquer modalidade sensória, como as sonoras e de movimentos no espaço, e não só
as visuais, como nos descreve Berthoz (1997) acerca dos nove sentidos que possuímos. Estas
imagens dizem respeito ao mundo dito externo e ao interno, como os estados viscerais, a
estrutura esqueleto-muscular e movimentos do corpo e, também, aos processos de memória.
Estas imagens são formadas substancialmente, de acordo com Damásio (2004), na região
cortical mais primitiva. A noção de consciência carrega, inevitavelmente, a noção de
subjetividade, e se assumimos que nosso cérebro-mente é capaz de gerar subjetividade, parece
razoável deduzir que haveria um agente deste processo. Mas o que Damásio chama de self, ou
eu, num sentido cognitivo, é a estrutura neural e estado neurobiológico que nos ajuda a
presumir, sem a inferência baseada na linguagem, que a imagem que percebemos é nossa e de
ninguém mais.
O cérebro que os cientistas cognitivos estão investigando em nada lembra a concepção
de um painel de controle efetuado por um usuário. O self, a alma ou o eu, como queiramos
chamar, para as neurociências, seria uma rede dos sistemas cerebrais (PINKER, 2004, p. 69). O
que não impede que sintamos que existe um eu que, aparentemente, é único e que sente emoção
e que responde por nossas percepções e ações. A mente consciente, contudo não é o chofer
onipresente que controla e direciona o modo como agimos, mas “simplesmente conta uma
história sobre nossas ações”, conforme afirma Pinker (2004, p. 71). Esta noção do eu não se
propõe a explicar todo o processo de emergência da consciência, tampouco implica num
entendimento de que as imagens são manipuladas e controladas por uma central única
localizada no cérebro. A idéia não é ancorada nos pronomes, “eu ou meu”, especialmente na
usual descrição de um “homúnculo” dentro do cérebro, capaz de interpretar as imagens, como
135
num teatro cartesiano.
Quando fala de imagens que geram o modelo interno, é natural que Diderot as
associasse às imagens visuais da pintura, já que era essa área artística a que mais norteava os
estudos estéticos da época e a visão tida como o órgão sensorial privilegiado do cérebro. Já
Stanislavski, alia às imagens visuais as auditivas. A criação e manipulação de imagens mentais
(idéias e pensamentos) não só direcionam procedimentos estéticos eficientes, como bem
apontaram Diderot e Stanislavski, mas são operações essenciais para que os processos mentais
existam. Em organismos complexos como os nossos, como afirma Damásio (2004, p. 205), a
capacidade do organismo de responder a estímulos, de forma deliberada ou automática, depende
da geração destas imagens, tanto as externas, como as auditivas, táteis, olfativas e gustativas,
como aquelas imagens do interior do corpo, como a dor e o mal-estar.
Os padrões de luz e de som são captados por ondas sensitivas no olho e no ouvido, e o
contato com a pele ativa terminações nervosas, processos estes que formatam as imagens (as
chamadas “imagens da carne” e as provenientes de “sondas sensitivas”). A gama de imagens
das alterações corporais mapeadas no cérebro vão dos fenômenos químico-elétricos
microscópicos a suas manifestações macroscópicas, como o mover de um membro do corpo.
Damásio salienta que as imagens não são guardadas intactas num lugar, armazenadas sob a
forma de fotografias ou fac-símiles de coisas, acontecimentos, palavras, pessoas, prontas para
serem desengavetadas, mas são momentaneamente construídas e reconstruídas num conjunto de
áreas, sendo que cada uma das áreas possui uma complexidade e a rede de interconexões é
ainda mais intrincada. Não se trata de um centro de comando, mas de uma rede interada de
áreas no cérebro.
Teríamos dois processos de conhecimento consciente irrigados pelas imagens,
nomeados por Damásio (2000) como a consciência central e a consciência ampliada. A
consciência central refere-se ao aqui e agora, e ocorre por meio de narrativas imagéticas que
emergem em tempo real e que não permanecem estáveis ou preservadas em sua essência. Estas
interagem com o fluxo de narrativas provenientes da consciência ampliada, que constitui as
memórias do passado e a antevisão do futuro, e que, por sua vez, também se modificam a partir
da experiência vivida no momento presente (DAMÁSIO, 2000, p. 228). A consciência
ampliada tem a competência de aprender, e com isso, registrar as infinitas experiências,
conhecidas graças à consciência central, e de reativar estes mesmos registros, “de modo que eles
possam gerar um sentido do eu (self) no ato de conhecer, e assim, ser conhecidos.”
(DAMÁSIO, 2000, p. 253). Sendo que, a cada momento, o cérebro reconstrói o sentido do eu.
Como salienta Damásio, nosso eu não é esculpido em pedra, resistente a transformações, mas
136
um estado do organismo, um padrão vulnerável de operações integradas que tem como
finalidade a sua própria sobrevivência. Os níveis de percepção e consciência delineiam os
estados de presença do corpo em ação no mundo, e são constantemente reconstruídos. A
continuidade da consciência provém do abundante fluxo de narrativas não verbais (imagens) da
consciência central (o aqui e agora) e estas narrativas não permanecem estáveis, preservadas em
sua essência, mas interagem com o fluxo de narrativas provenientes da consciência ampliada
(memórias do passado e a antevisão do futuro), que, por sua vez, também se modificam a partir
da experiência vivida no momento presente (DAMÁSIO,2000, p. 228). O que Damásio
considera como o estudo da base neural do eu poderá auxiliar a esclarecer o processo de
subjetividade, a característica chave para a consciência.
A memória das imagens não seria uma estratégia para lembrarmos do passado somente,
mas uma ferramenta de predição do futuro. É baseada nelas, em conjunção com as imagens
geradas em tempo presente, que selecionamos as informações e agimos no mundo. Desta forma,
a ação consciente do ator emerge de movimentos orquestrados em uma rede de memórias,
percepção do momento presente e antevisão do futuro sem o controle intencional deste,
necessariamente. Há um terreno desconhecido e criativo, como se refere Stanislavski (1995),
que não depende plenamente da intenção do ator, e que pode ser acionado, em parte, pelo
exercício de sua vontade, no que é comumente entendido como processo consciente. Ainda que
haja um detalhamento anterior preciso de suas ações, a conexão do ator com o momento
presente contribui para que se desencadeiem espaços de imprevisibilidade. A cada informação
que adentra o organismo, a interação entre a consciência central e a ampliada tratará de
conformar um estado particular a cada ação, singularizando-as. Se o ator trabalha sobre si
mesmo, no sentido de estar em estado atentivo ao momento presente, poderá perceber o espaço
de estados de seu organismo e do meio.
A condição de ascender à ação justa, para Stanislavski e Grotowski, contudo, é o
afastamento de um tipo de consciência analítica. Descrentes das habilidades discursivas da
mente e do cérebro em desencadear um ato “total” do ator, estes diretores propuseram um ator
que pensa com o seu corpo, com suas ações, manifestando-se contra o controle do corpo por
uma espécie de “discursividade” da mente, ou do que denominam de racionalidade do cérebro,
sob o argumento de que tais propriedades não dariam conta do pleno exercício das
potencialidades inventivas do ator. Para eles, o corpo sabe mais e pode mais que sua
compreensão admite, e possui inteligência. Em sua relação com o mundo, há uma faculdade de
invenção e adaptação que é própria do corpo em ação no mundo, e que ludibria a consciência e
o intelecto, ao mesmo tempo em que pode ser bloqueado por estas. Da mesma forma, o cérebro
137
conhece mais do que a mente consciente revela (DAMÁSIO, 2000, p. 63). Fazer calar a mente
discursiva implica em criar condições de “silêncio”, em que não há que se pensar para agir.
Pode-se pensar não na ausência de consciência, mas num tipo de consciência “pré-reflexiva”,
mais imediata e menos mediada por verbalizações internas, e distribuída no organismo como
um todo. O corpo, neste sentido, não é um objeto técnico, mas um estar no mundo. Grotowski
adverte que o estado de consciência não significa formar um “observador interno”, pois a auto-
observação excessiva pode bloquear as reações “naturais”. Richards (1996) descreve o processo
que envolve o corpo, a mente e a emoção, no entendimento de Grotowski. O corpo age, a mente
evoca as imagens precisas e a emoção emerge de acordo com o que a mente e o corpo estão
fazendo. Devidamente ativado, o corpo encontra o caminho natural da organicidade. E a mente,
por sua vez, aprende o momento de ser passiva, de não bloquear o corpo. A mente não seria a
única soberana, o corpo teria seu próprio modo de pensar.
Vivendo em épocas e circunstâncias diferentes, Stanislavski e Grotowski mantiveram a
idéia de teatro como campo de investigação prática da experiência humana. Nesta premissa, a
palavra russa “perezivanie”, utilizada muitas vezes por Stanislavski em seus escritos, representa
um conceito chave para descrever o processo do ator. O termo foi traduzido para o inglês
associado à palavra “feeling” (emoção), já a tradução nas línguas escandinavas estaria mais
próxima de uma “escuta ou consciência afetiva, atentiva”, e de uma “experiência consciente.”
(MAGNAT, 2000, p. 6). Este sentido seria o germe da pesquisa empreendida por Grotowski,
com sua noção de que o processo performativo do ator seria simultaneamente “passivo na ação
e ativo no olhar”, implicando num tipo de percepção e consciência. O estar passivo significa
estar receptivo, e o ativo, estar presente. Para Grotowski, a idéia de consciência não estaria
ligada à linguagem ou pensamento racional, mas à idéia de presença, por sua vez, ligada a
percepção e consciência do momento presente. O ator é desafiado a fazer de fato, no aqui e
agora, no tempo presente, no sentido de uma experiência consciente vivida “sempre como a
primeira vez”, e não “como se fosse a primeira vez”, afirma Magnat (2000, p. 9). O aparente
paradoxo do método de ações físicas elaborado por Stanislavski e aprofundado por Grotowski
reside na reprodução de uma partitura física precisa, que possa ser repetida, mas com a
vivacidade de uma primeira vez. O ator, neste sentido, deverá estar atento para não engessar as
suas ações previamente compostas, introduzindo pequenos elementos que, naturalmente,
emergem no tempo presente ou deixando-os acontecer. Considerando que o organismo re-
organiza constantemente e as ações não se repetem sempre da mesma forma e se singularizam a
cada momento, a consciência central e a ampliada permitem a repetição aliada à invenção.
Grotowski (1992, p. 15) fala dos processos mentais como um “esforço sem esforço”, por
138
meio de uma via negativa. Não no sentido de dominar positivamente o corpo, considerado
instrumento, e dotá-lo de habilidades virtuosas estabelecidas, mas de afiná-lo com o meio,
aberto para a experiência do jogo teatral e as situações menos pré-dadas. Em sua metodologia
de trabalho com os atores, Grotowski (1992, p. 15) descreve o estado necessário da mente:
“uma disposição passiva a realizar um trabalho ativo, não um estado pelo qual ‘queremos fazer
aquilo’, mas ‘desistimos de não fazê-lo’”, contrariando o que se entende comumente por ação –
aquele ato voluntário e escolhido. O diretor polonês indica que é necessário bloquear a mente
discursiva e deixar o corpo manifestar-se com sua inteligência própria, propiciar espaços para a
manifestação do corpomente, fontes estas presentes no processo investigativo acerca das
tradições e seus rituais64.
O pensamento em ação, ou o pensamento não dissociado do movimento implica num
tipo de processo cognitivo engajado no tempo presente, e sem os aspectos creditados a uma
mente discursiva, pronta a se fazer valer de seus julgamentos analíticos. Não que a mente pare
de pensar, o que seria, a principio, humanamente impossível, mas que ela se funda em tempo
presente nas ações. É quando o pensamento se faz corpo, se faz ação. Fazer difere de agir,
entendida a ação como ignição, e não o produto do pensamento. Ao criticar a herança filosófica
cartesiana, Merleau-Ponty (2004), em O olho e o espírito se vale da meditação sobre a pintura,
em especial a de Cézanne, para estabelecer uma crítica ao pensamento reflexivo e requisitar
uma nova filosofia. Filosofia esta feita não pela expressão de opiniões sobre o mundo através de
um pensamento “puro”, mas com um tipo de pensamento que anima a pintura no instante em
que a visão do artista se faz gesto, quando, por exemplo, Cézanne “pensa pintando”. Neste
sentido, a visão do pintor não é um simples olhar sobre um objeto fora dele, mas uma relação,
uma lógica de pensamento contida no ato.
O apresentar as ações em ação pressupõe um tipo de comprometimento do ator, uma
atenção que requisita um dado estado do eu. A ação se coloca como processo de estados e não
como o resultado final exterior da expressão de um estado interior anterior, processo
comumente atribuído à emissão do gesto, no entendimento da estética clássica. Na tentativa de
encontrar um signo corporal mais icônico, um signo “orgânico” cuja forma possua sua própria
lógica, Grotowski (1992, p. 98) buscou ultrapassar a concepção expressiva do gesto
reivindicando uma produção gestual que seja fundadora, e não ilustradora dos tais estados de
64 Aproximando estes conceitos da filosofia taoísta, mais precisamente ao princípio wu-wei, encontraremos similaridades com o procedimento de Grotowski, já que este princípio versa sobre a não ação. Na aparente não ação, há um mundo de movimentação, planejamento, expectativa e elaboração. O wu-wei inspira-se na ação do tigre que, antes de se lançar à presa, se posta numa aparente imobilidade, embora esteja em estado de plena atenção, concentração, força e objetividade para atingir seu alvo (AMARAL,1984, p. 11).
139
alma: “O ator não deve utilizar seu organismo para ilustrar um movimento da alma, deve
realizar este movimento com todo o seu organismo”.
O corpo, ora meramente visto como comandado por um cérebro “inteligente”, começou
a ser percebido, cada vez mais, como possível entidade “pensante”. A consciência não estaria
localizada somente no cérebro, mas presente em todo o organismo, produzindo uma visão de
corpo menos segmentada e dualizada. A relação corpo (entendido como não separado da mente)
e conhecimento sugere a perspectiva do corpo que pensa sua ação em ação, ou seja, um
pensamento em ação, ou um corpo que pensa. Fruto das reflexões nos ensaios de Tartufo,
Stanislavski salientaria que a ação seria a “transmissão de um pensamento próprio”, onde todas
as idéias, palavras, percepções visuais e energias do ator deveriam ser dirigidas sem que o
“objetivo cerebral” se interponha e prive a intuição (TOPORKOV apud JIMENEZ, 1990, p.
322). Laban (1978, p. 42) discorre sobre o pensamento motor, de um pensar em movimento que
se opõe a um pensar em palavras, pois não necessita da formalização da linguagem para surgir.
O pensamento motor estaria, para ele, liberado dos circuitos da consciência requisitados pelo
pensamento em palavras. Para que o ator alcance uma organicidade maior, Grotowski (1992)
diferenciou o pensar em movimento e o pensar em conceitos, sob uma lógica semelhante à de
Laban.
Importa saber se, de fato, o corpo pensa, ou é somente uma metáfora eficiente para dar
ignição à práxis do ator. A idéia de que o pensamento se estrutura por meio do sistema sensório-
motor e de que há uma inteligência própria do corpo foi discutida por Piaget e tantos outros
teóricos do conhecimento e da aprendizagem no século XX. As neurociências, por sua vez, têm
contribuído neste sentido quando apontam para os processos de representação neural ocorrendo
no corpo como um todo, e não somente numa mente ou cérebro geograficamente localizados
(Damásio,1996). A frenologia, idéia de que um centro cerebral produz as grandes funções
mentais tais como memória, emoção, sentimento, consciência e movimento, já foi
exaustivamente revista. Ainda que certas regiões do cérebro sejam altamente especializadas, os
processos da mente e do comportamento resultam da função coordenada de muitas regiões e
sistemas integrados do corpo como um todo.
Ainda não há uma idéia clara de como funciona o cérebro. As teorias tendem a cair em
dois campos antagônicos, o da modularidade e do holismo. A primeira sustenta que diferentes
partes do cérebro são altamente especializadas em determinadas capacidades mentais,
responsáveis pela linguagem, memória, reconhecimento de fisionomia etc. Estas regiões seriam
autônomas, cada uma executa sua tarefa e passa o “bastão” para a região seguinte sem muita
“conversa”. A vertente holista é conhecida hoje como conexionismo, que entende as áreas
140
cerebrais como conectadas, funcionando como um todo, e podendo muitas áreas ser recrutadas
para múltiplas tarefas (RAMACHANDRAN, 2002, p. 34). O cérebro, para este autor, parece ser
uma estrutura dinâmica que emprega os dois modos de forma recíproca e extremamente
complexa. Neste sentido, a localização seria uma forma legítima de se entender como funciona
o cérebro, desde que estejamos cientes de que esta visão não detém todas as respostas. A
interação diz mais do que o entendimento solitário da estrutura e função de cada módulo.
A noção de um pensamento em ação não trata somente de um corpo que pensa enquanto
se move no espaço, mas de uma estratégia cognitiva que se faz em ação, um pensamento e um
modo de reflexão que se organiza a partir dos circuitos sensórios-motores, trazendo o cérebro de
sua posição “fria” e separada de uma práxis, como salientou Stanislavski, para a aventura da
experiência em tempo presente. Aventura esta que parece ser própria do pensamento em seu
processo evolutivo. A nossa habilidade de pensar e a organização e função de nossos cérebros
são baseados no desenvolvimento da motricidade e foram se desenvolvendo através da evolução
(LLINÁS, 2002). Para pensar a realidade, o cérebro necessita de imagens e a externalização de
qualquer imagem interna é efetivada através do movimento (desenhar, falar, gesticular). O
pensamento é movimento, não somente porque acaba por envolver partes do corpo ou objetos
no mundo externo, mas porque o primeiro passo para a cognição é o próprio acionamento
sensório-motor. Quando o ator age, deixa a ver o processo físico do seu pensamento. E quando
pensa, o movimento já se instaura de alguma forma.
É justamente a interação cérebro-corpo que dá suporte para a idéia de que a mente
emerge do organismo em ação como um todo e de um corpo que pensa. As teorias cognitivas,
em sua maioria, defendem a idéia de que não há espaço para apenas um eu com existência fixa,
unitária, centralizando e controlando tudo, mas estados (redes) emergentes que respondem a
uma auto-organização, a estados biológicos constantemente reconstruídos. A existência de um
eu, entretanto, não é descartada. Mas o que confere subjetividade à nossa experiência não é um
inspetor central de tudo o que acontece em nossas mentes, mas um estado biológico específico
que só ocorre com a participação inteirada e plena de diversos sistemas tanto cerebrais quanto
corporais.
Para Ramachandran (2002) e Damásio (1996) é o corpo que, ao modificar-se e
incessantemente criar representações de si e do meio, fornece à mente o material necessário
para que surjam imagens, pensamentos e estímulos para novas ações. Foi a partir da constatação
de que as emoções e sentimentos não eram controláveis e, tampouco, garantiam trilhos sólidos
para o trabalho do ator, que Stanislavski atribuiu um papel vital às ações físicas, colocando o
corpo na experiência, como saída para este impasse. O mestre russo buscou a unidade corpo-
141
espírito enfatizando a materialidade do corpo e a imaterialidade dos sentimentos:
Parece, a princípio, que o melhor material para se usar seriam os
sentimentos genuínos, vivos. Que eles nos conduzem. Mas as
coisas do espírito são evanescentes, é difícil fixá-las com
firmeza. Com elas, não podemos fazer trilhos sólidos, precisamos
de alguma coisa mais ‘material’. O mais adequado, para este fim,
são os objetivos físicos, pois são executados pelo corpo, que é
incomparavelmente mais sólido que nossos sentimentos.
(STANISLAVSKI, 1995, p. 245).
Vistas, nas teorias do ator, como fenômenos pouco controláveis e que aumentam a
instabilidade do organismo, as emoções, evolutivamente, têm proporcionado ao seres a
capacidade imediata de responder a circunstâncias que promovem ou ameaçam a vida. Já os
sentimentos, sendo estratégias aliadas às emoções, introduziram a possibilidade de se trabalhar
sobre os estados emocionais e de criar novas soluções para problemas. A relação entre emoção,
sentimento e ação está no cerne das teorias do ator, e a sua abordagem, desde o século XVII,
demonstra a ancestralidade deste interesse por meio de uma fisiologia das paixões e que, no
século XIX e XX, se conformaria como uma biologia das emoções. Compreender a emergência
das emoções e dos sentimentos oportuniza um maior conhecimento acerca do caráter dinâmico
das ações humanas.
142
4 NA REDE DAS AÇÕES FÍSICAS: DAS PAIXÕES ÀS EMOÇÕES E
SENTIMENTOS
4.1 A mecânica das paixões
De fato, a grande proliferação de imagens das paixões
universais nos textos sobre a atuação do ator no século XVIII
reflete uma visão mecânica da natureza .(ROACH, 1985, p.71.)
A teoria retórica do século XVII, na qual a discussão sobre a atuação teatral ainda se
apoiava, não se atrelava à dramaturgia, mas ao entendimento de como as paixões operavam no
corpo humano65. Questões como a expressão das paixões no plano físico e a encarnação no
corpo do movimento interno da alma eram pauta de interesse das teorias artísticas, retóricas,
fisiológicas e medicinais. A paixão, palavra derivada do latim passio66, se torna a questão
central nas teorias do ator. As teorias iluministas já sinalizavam que a emoção não teria
existência real longe de suas manifestações físicas. Na medida em que tinham as paixões como
seu foco de interesse, eram as teorias fisiológicas que respondiam às questões sobre a
expressividade do ator e do bailarino, e a efetividade das teorias teatrais estava garantida pela
sua coerência com o entendimento contemporâneo de como o corpo funcionava.
Engendrando uma mecanicidade na fisiologia da expressão, as hipóteses defendidas por
Descartes referenciavam, sobremaneira, as teorias teatrais, com desdobramentos na atualidade.
A concepção cartesiana de como agem alma e corpo se evidenciava na descrição dos
movimentos corporais observados em cada paixão. Estas não se restringiriam ao aspecto visível
exterior, como a palidez de um rosto ou um olhar assustado, mas a alterações relacionadas aos
órgãos internos, como no ódio, cujo “pulso é desigual e mais fraco, e amiúde mais rápido; que
se sentem frialdades entremescladas de certo calor áspero e picante no peito.” (DESCARTES,
1996, p. 184).
As reflexões acerca do gesto e ação do ator nutriam-se da fisiologia de paixões como o
ódio, o espanto e a cólera presente na filosofia cartesiana, visíveis, por exemplo, na iconografia
fisionomista de Le Brun e na teoria do gesto de Engel. Ao contrário dos desenhos de Le Brun,
65 A retórica das paixões derivada do trabalho de Quintilano e seus sucessores dominou a discussão sobre atuação até a época de Diderot e Garrick (ROACH, 1985, p. 111). 66 Designa todo estado, condição ou qualidade que consiste em sofrer uma ação ou em ser influenciado ou modificado por ela. As palavras afeto e paixão dizem respeito a situações humanas, que apresentam certo grau de passividade por serem estimuladas ou ocasionadas por fatores externos (ABBAGNANO.2000, p. 19).
143
que transformavam em imagens estáticas os processos fisiológicos descritos por Descartes, as
teorias de Engel, presentes em Idéias sobre o gesto e a ação teatral, ofereciam aos atores uma
leitura mais dinâmica e interna das paixões. No caso da cólera, esta daria forma a todas as partes
exteriores do corpo,
[...] infladas pelo sangue e pelos humores elas se agitam num
movimento compulsivo, os olhos inflamados rolando entre as
pálpebras e lançando olhares faiscantes, as mãos por contrações
violentas e os dentes, sobretudo por rangidos descontrolados,
manifestam uma espécie de tumulto e desordem interior.
(ENGEL, 1979, p. 179).
De acordo com Descartes (1996), o sangue que corre na manifestação da cólera é
bilioso, vindo do baço e das pequenas veias do fígado, e fornecem ao coração um calor mais
áspero, mais ardente e nocivo.
Figura 16: Desenhos de Charles Le Brun: o choro, o riso e a cólera. Tratado das Paixões. Paris. Museu do Louvre.
Catálogo da exposição “Da alma ao corpo”. Paris, Gallimard/Electra. 1993/1994.
Engel (1979, p. 87) nomeia como fisiológicos os gestos involuntários provenientes de
certas paixões, relacionando-os a órgãos e a reações físicas do corpo, signos visíveis dos
movimentos interiores da natureza humana:
Porque as idéias tristes agem sobre as glândulas lacrimais, e as
idéias alegres sobre o diafragma; porque a angústia e ansiedade
alteram a cor da face ou o pudor ou a humilhação desencadeia
um rubor súbito. Eu reunirei todos estes gestos sobre a
denominação comum de gestos fisiológicos.
144
Descartes defendia a hipótese de que a relação entre corpo e alma se dava pela ação
da glândula pineal, localizada no cérebro, onde o órgão pensante, a alma racional, comandaria
as ações do corpo por intermédio dos espíritos, estes incidindo sobre os nervos e o sangue. Ao
perceber um objeto externo, a impressão que um pensamento efetuaria no cérebro conduziria os
espíritos animais pelos nervos e músculos através de tubos (nervos). Os espíritos animais teriam
a incumbência de moldar no corpo a manifestação de paixões como o amor e o ódio. Vejamos
como Descartes explica a questão, a partir da metáfora do corpo-máquina:
Lembramo-nos do que já foi dito sobre a máquina de nosso
corpo, a saber, que os pequenos filetes de nossos nervos acham-
se de tal modo distribuídos em todas as partes que, por ocasião
dos diversos movimentos aí provocados pelos objetos sensíveis,
abrem diversamente os poros do cérebro, o que faz com que os
espíritos animais contidos nessas cavidades entrem diversamente
nos músculos, por meio do que podem mover os membros de
todas as diversas maneiras que estas são capazes de ser movidos
[...]. (DESCARTES, 1996, p. 151).
O clássico exemplo cartesiano de que o medo, posto na alma, se reflete numa fuga
eminente, se explica pelo fato de os espíritos animais, que se encontram nas cavidades do
cérebro, irem ao mesmo tempo para os nervos do coração e para os que mexem as pernas. A
paixão seria uma emoção da alma, mas estaria ligada a um automatismo de natureza circular
capaz de múltiplos condicionamentos, ou seja, uma engrenagem corporal a serviço da alma e
sob a tutela dos espíritos. Isto, de acordo com Roach (1985, p. 80), é a confirmação da idéia
cartesiana de que o corpo funciona por uma necessidade mecânica. Os espíritos animais teriam
um princípio corporal, o que os faz agir, uma espécie de fogo mantido pelo sangue das veias e
circulando por meio dos nervos. Descartes defendia o papel crucial da imaginação para o
estabelecimento do poder da mente sobre o corpo, o fato das paixões proporcionarem
impressões características na fisionomia e o poder dos espíritos animais inflarem os músculos e
nervos em seqüências meticulosas com a finalidade de mover o corpo hidráulica ou
pneumaticamente. O diafragma era visto como barômetro das paixões, associado à respiração,
pensamento e circulação do sangue. (ROACH, 1985, p. 80).
145
Figura 17: mecanismo esquemático que demonstra como os
espíritos incidem sobre o coração, o cérebro e as partes do corpo.
(DESCARTES, 1996, p.153).
A raiva é descrita a partir da disposição interna dos órgãos e músculos e o espanto como
súbita evacuação dos espíritos animais. Esta retirada súbita dos espíritos causaria no corpo um
congelamento momentâneo, como um autômato hidráulico, no qual o fluído foi drenado.
Descartes classifica como paixões primitivas a admiração, o ódio, o desejo, o amor, a alegria e
a tristeza, e as demais como “espécies” que se constituiriam a partir delas. Na descrição das
paixões por meio de suas reações físicas, o filósofo deduz que “há tal ligação entre nossa alma e
nosso corpo que, uma vez unida uma ação corporal a um pensamento, nenhum dos dois pode
apresentar-se-nos em seguida sem que o outro também não se apresente.” (DESCARTES,1986,
p. 189).
No artigo 73 de As Paixões da Alma, ele descreve o espanto:
E essa surpresa tem tanto poder para levar os espíritos
localizados na cavidade do cérebro ao lugar onde está a
impressão do objeto admirado que, por vezes, impele todos para
lá e os deixa de tal modo ocupados em conservar essa impressão
que nenhum deles passa ao cérebro, nem mesmo se desvia de
alguma forma das primeiras pegadas que seguiu no cérebro: o
que faz com que o corpo permaneça imóvel como uma estátua e
que só percebamos do objeto a primeira face que se apresentou,
e, por conseguinte não possamos adquirir dele um conhecimento
mais particular. (DESCARTES, 1986, p. 172).
146
Figura 18: gravura de Benjamin Wilson, retratando a atuação de Garrick.
(ROACH, 1985, p. 88).
Tanto a imobilidade estatuária do espanto como o movimento dos sucos nocivos do
ódio· sustentava a iconografia da época e originavam a concepção imitativa do gesto na pintura,
na escultura e no teatro. O entendimento da retirada dos estímulos dos espíritos do corpo
ressoava nas opções estéticas freqüentes, como pausas e olhares suspensos dos atores em cenas,
imponentes estátuas a imortalizar as paixões. As imagens das expressões poderiam ser
adquiridas pela observação de modelos de representação pictóricos e a interioridade das paixões
julgada pelos signos externos traduzidos pelo corpo, na imitação das figuras ilustradas do gesto.
A fisiologia de Descartes está exposta em vários sistemas de atuação, como na teoria
desenvolvida pelo autor inglês Aaron Hill (1685-1750) em seus artigos, poemas e ensaios. Hill
divide a atuação em quatro passos: primeiramente a imaginação provoca uma idéia, após, marca
impressões características que aparecem primeiro no rosto, porque este é mais próximo da
imaginação. Como terceiro passo, impelido pelo desejo, o espírito animal desprende-se e ativa
os poderes elásticos dos músculos numa posição apta a executar ou expressar o calor da idéia.
“Então o olhar, ar, voz e ação, próprios à paixão, preconcebida na imaginação, se torna uma
mera e mecânica necessidade, sem perplexidade, estudo ou dificuldade.” (ROACH, 1985, p.
81).
A divisão cartesiana da máquina em movimento e alma imaterial forjou o dogma do
fantasma na máquina, o chamado dualismo. Sendo o movimento concebido como algo externo
que atinge a matéria orgânica, cada paixão, como causa, poderia ser identificada por seus
efeitos, uma série de posturas e manifestações físicas que os artistas, por sua vez, tratavam de
fixar e classificar. Não obstante, a incompatibilidade entre a emoção verdadeira e a artística
147
conformava uma crise nas teorias teatrais que seria pautada por novos conhecimentos
científicos que alteravam a crença na ordenação mecânica do corpo. A oposição entre a visão
interna e externa das paixões se acirrava, forçando brechas no rígido conceito mecanicista por
meio de um tipo de comportamento emotivo diferenciado, que extrapolava a imitação mecânica.
Um novo pensamento se instaura no final do século VIII e se baseia na “doutrina da
sensibilidade”. (ROACH, 1985, p. 94).
4.2 A teoria da sensibilidade
Afinal, como o ator poderia comunicar a força física de suas paixões e fazer vibrar com
sentimentos à platéia? A descoberta da eletricidade pela ciência não estava descolada da idéia
descrita por Garrick de um “fogo elétrico” do ator incendiando a platéia (ROACH,1985, p.
105). Novamente é a atuação reputada do ator inglês que intensifica a discussão sobre o
sentimento do ator, graças ao seu poder de mudar de um sentimento para outro, alvo de
aplausos entusiásticos da audiência. A metáfora do espírito cartesiano e seus tubos é substituída
gradualmente pela de eletricidade, com a vibração dos nervos como método de transmissão das
paixões no corpo e sua comunicação para a audiência. Enquanto os autores do Século XVII
favoreciam a imagem da eloqüência do corpo e da voz como instrumentos de sopro e metal, no
século XVIII havia a preferência por metáforas referentes aos instrumentos de corda, como
violinos ou cravos. (ROACH, 1985, p. 105). Na metáfora da vibração acústica, os nervos são
entendidos como cordas de um instrumento musical e parecem descrever melhor a fisiologia
das paixões na atuação do ator do que a condução mecânica hidráulica ou pneumática.
Diderot questionou se o ator poderia sentir ou não emoções, assim como o fizera autores
anteriores, radicalizando, porém, sua posição, argumentando que o excesso de sentimento
transformaria o ator em um artista medíocre. De acordo com Roach (1985) e Didier (2001),
Diderot construiu uma teoria do ator iluminada pelo materialismo vitalista, sintetizando o
mecanicismo e o vitalismo na descrição do corpo. Ele utilizava metáforas derivadas de
maquinarias e organismos, acreditando, entretanto, que o caráter emergia diretamente do
sistema nervoso do ator. No Paradoxo sobre o Comediante, Diderot (1979) constrói uma
textura psicológica, tendo a fisiologia como suporte. As reflexões que o filósofo propõe ao
problema corpo e mente, e a sua expressão via sentimento, seriam aprofundadas por
Stanislavski um século e meio depois.
148
Inúmeros teóricos anteriores utilizaram modelos fisiológicos para
ilustrar a capacidade expressiva do ator; Diderot é o primeiro a
explicar, à luz da ciência de sua época, como a natureza
apresentava certas limitações através da estrutura interna do
próprio corpo (ROACH, 1985, p. 118).
A natureza, para Diderot, não era um sistema puramente físico, como supunham os
materialistas de sua época, mas um sistema orgânico e biológico sob a hipótese da sensibilidade
da matéria. Ao postular o movimento e a sensibilidade inerente a toda matéria como a chave
para o orgânico, integrou ao seu pensamento os primeiros resultados dos estudos que
fundamentariam as teorias evolucionistas do século seguinte.
O materialismo organicista de Diderot (1979, p. XI) entendia o movimento dos corpos
causados não por forças externas, como propunha a herança aristotélica e newtoniana, mas
surgidos internamente, pelo movimento dos próprios átomos: “O movimento seria a própria
essência da matéria, uma espécie de energia cinética, ou potencial, própria e não algo que lhe é
agregado.” O contato com a atuação e reflexões teóricas de Garrick e as inquietações filosóficas
da sua época, em relação à leitura mecanicista da fisiologia, podem ser descritas como
motivações deflagradoras da mudança radical proposta por Diderot, por volta de 1760
(ROACH, 1985). Em sua teoria da sensibilidade, Diderot (1979, p. 192) propõe que os atores
impressionem não quando estão furiosos, mas quando interpretam bem o furor, quando a paixão
não é sentida, mas bem representada.
O filósofo chama de sensibilidade a facilidade de traduzir todas as naturezas, mesmo as
mais ferozes. Conforme a sua acepção fisiológica, a sensibilidade seria:
[...] Esta disposição companheira da fraqueza dos órgãos,
conseqüência da mobilidade do diafragma, da vivacidade da
imaginação, da delicadeza dos nervos, que inclina alguém a
compadecer, a fremir, a admirar, a temer, a perturba-se, a chorar,
a desmaiar, a socorrer, a fugir, a perder a razão, a exagerar, a
desprezar, a desdenhar, a não ter qualquer idéia precisa do
verdadeiro, do bom e do belo, a ser injusto, a ser louco.
Multiplicai as almas sensíveis e multiplicareis na mesma
proporção as boas e más ações de todo gênero, os elogios e as
censuras exageradas. (DIDEROT, 1979, p. 178).
149
O ator não deveria experimentar a emoção enquanto atua, sob pena de oferecer à
audiência uma representação menor. Como as paixões surgiam num contexto não ordenado da
mente, uma espécie de “rebelião dos nervos” fora do controle da alma racional, poriam em risco
a atuação cênica. Diderot compactua com a teoria do diafragma67 como sede da sensibilidade,
local onde convergiria a rebelião nervosa, mas reforça o papel do cérebro na operação de
controle das paixões no corpo68.
O trabalho do ator não seria sentir, mas expressar os sinais externos do sentimento. Os
gestos e suas decorrentes expressões são preparados e estudados de antemão frente ao espelho e
o ator, após a sua atuação, não permanece com sua alma estremecida ou abatida. É o público
que o assistiu que levará as fortes impressões:
O ator está cansado e vós, tristes; é que ele se agitou sem nada
sentir, e vós sentistes sem vos agitar. Se fosse de outro modo, a
condição do comediante seria a mais desgraçada das condições;
mas ele não é a personagem, ele a representa e a representa tão
bem que vós a tomais como tal; a ilusão só existe para vós, ele
sabe muito bem que ele não a é. (DIDEROT, 1979, p. 165).
O ator, “discípulo atento da natureza, copista rigoroso de si próprio ou de seus estudos, e
observador continuo de nossas sensações”, terá sua interpretação fortalecida a cada
representação, e estará longe da “desigualdade dos atores que representam com alma.”
(DIDEROT,1979, p. 163). O comediante que representasse com reflexão, não se entregando aos
ímpetos de sua sensibilidade, pois esta nunca se apresenta sem fraqueza de organização, de
acordo com Diderot, não falharia num dia e triunfaria noutro, mas seria sempre “igualmente
perfeito”. Para tanto, deveria estudar a natureza humana e imitá-la segundo um modelo ideal,
utilizando seus recursos de imaginação e memória. É a conformidade das ações, dos discursos,
da voz, do movimento, do gesto, ajustados a um modelo ideal imaginado, que conformaria o
que Diderot chama de teatro verdadeiro.
É na maturidade que o ator colherá seus melhores frutos em cena, quando diminui o seu
67 Teoria desenvolvida por Albrecht Von Haller (1708-1777) que afirma a importância do diafragma como plexo da sensibilidade, centro de dores e prazeres. A contração violenta do diafragma frente à dor contrastaria com a sua expansão na alegria. Sua teoria da irritabilidade buscava explicar os movimentos musculares pela condução elétrica.
68 O homem sensível fica demais à mercê de seu diafragma para que seja grande rei, grande político, grande magistrado, homem justo, profundo observador e, conseqüentemente, sublime imitador na natureza, a menos que possa esquecer-se e distrair-se de si mesmo, e que, com a ajuda de uma imaginação forte, saiba criar e, de uma memória tenaz, manter a atenção fixada em fantasmas que lhe servem de modelos; mas então não é mais ele quem age, é o espírito de um outro que o domina. (DIDEROT, 1979, p. 185).
150
ímpeto passional e quando sua cabeça está calma e a alma é dominada. Diderot requisita um
ator de “sangue-frio” e de “cabeça-fria”, em oposição ao ator “sensível”, opondo
substancialmente razão e emoção. A extrema oposição entre razão e emoção tem sido revista
não somente no campo das teorias teatrais, mas em sua dimensão neurológica por parte das
ciências cognitivas e neurociências. Damásio, metaforicamente, afirma que a razão e a emoção
“se cruzam” em zonas cerebrais (tais como os córtices pré-frontais ventromedianos e as
amídalas). Em suma, suas pesquisas apontam para a relevância das emoções nos processos de
raciocínio e ao fato de existir um conjunto de sistemas no cérebro, dedicados igualmente aos
processos de pensamento e das emoções e sentimentos, bem como a questão de estarem
interligados com os que regulam o corpo. Podemos concordar com Diderot que um ator tomado
pela emoção sofrerá interferências em sua performance e, por outro lado, como enfatiza
Grotowski, um excesso de ênfase racional – a tal mente discursiva – o impedirá de desfrutar de
certos estados de sentimento. A impossibilidade de averiguação mais precisa no campo da
fisiologia de sua época permitiu a Diderot estabelecer a dicotomia razão-emoção. Contudo, o
estudo dos processos biológicos relacionados à razão e à emoção tem apresentado aos cientistas,
na atualidade, fortes indícios de que não há como raciocinar sem a presença do componente
emocional, nem vice-versa, dado que a emoção possui uma espécie de racionalidade intrínseca.
Fartamente descritas por Damásio (1996), na obra O Erro de Descartes, as correlações
sistemáticas de estudos com pessoas portadoras de danos em determinados locais do cérebro
responsáveis pelas operações de raciocínio e que tiveram comprometimento em seu
comportamento emocional têm oferecido comprovações neste sentido.
Noutro momento do Paradoxo sobre o comediante, Diderot (1979, p. 175) não nega ao
homem a sensibilidade, mas chama a atenção para a observação, a moderação e o domínio deste
fenômeno, encontrando por meio da reflexão “o que cumpre adicionar ou subtrair para melhor.”
Os termos sensibilidade e sentimento, no significado atribuído pelo século XVIII, entram na
pauta das teorias teatrais pela primeira vez com a obra Le Comédien, de Pierre Rémond de
Sainte-Albine (1747). A diferença entre sentimento e sensibilidade importava na medida em que
se acirrava uma recorrente discussão: o ator deveria sentir uma emoção para a ação ser
convincente? A sensibilidade seria a palavra-chave, pois descreveria a capacidade ou disposição
de responder à sensação, enquanto o sentimento seria a sensação nela mesma (ROACH, 1985,
p. 99). Diferente da concepção atribuída por Diderot, a sensibilidade poderia ser traduzida hoje
pelo que Damásio (2004, p. 87) chama de sentimento e o sentimento teria o sentido dado por ele
à emoção. Se as emoções são mecanismos mais imediatos e pouco controláveis, os sentimentos
envolvem os esforços conscientes e deliberados, e abrem a porta para uma nova possibilidade,
151
permitindo o controle voluntário daquilo que até então era automático. Todos os seres vivos têm
uma aptidão para preservar a si mesmos sem que tenham consciência deste empreendimento.
Diferente da emoção, que brota inadvertidamente, os sentimentos orientam os esforços
conscientes e nos ajudam a tomar decisões. Voltarei ao assunto mais adiante.
De acordo com Roach (1985), a teoria da sensibilidade de Diderot antecipou três
questões centrais da pesquisa biológica no século XIX. Estas questões floresceram num
contexto científico contaminado pela idéia de organismo e vitalismo e, desde então, adquiriram
relevância nas teorias do ator: a teoria evolucionista, o monismo e a teoria do inconsciente. O
monismo, filosofia que admite um único gênero de substância, fazia crescer a convicção de que
corpo e alma são um continuo, e não duas substâncias radicalmente separadas, como sustentava
o dualismo. Esta convicção, já demonstrada no pensamento de Lewes, foi assumida por
Stanislavski e se apresenta, como vimos, no seu percurso metodológico quando justifica a
entidade física do papel por meio da existência de um elo com a vida espiritual. Já a visão
proporcionada pelos estudos sobre etologia impunha uma nova particularidade sobre a
manifestação das emoções, emergindo uma doutrina que via o movimento expressivo como
algo inerente, a exemplo de outras espécies animais. De algo conduzido pelos espíritos animais
cartesianos, a emoção passa a ser entendida como uma manifestação vinculada, de fato, à
natureza animal. Esta perspectiva, de acordo com Roach (1985), convidou os teóricos teatrais a
examinarem a emoção à luz das teorias evolucionistas, a mais importante revolução científica
do século XIX, e que iriam se desenvolver principalmente a partir das hipóteses de Charles
Darwin.
O vasto estudo que Darwin empreendeu sobre a natureza das emoções na obra
“Expressões das emoções em homens e animais”, de 1872, as referendou como fenômenos
involuntários, presentes tanto nos homens como nos animais, influenciando diferenciadas
teorias da época. Antes dele, Charles Bell havia publicado, em 1806, a obra “Anatomia e
Filosofia das expressões conectadas com as Artes”, já propondo um método comparativo para
demonstração das continuidades das expressões emocionais entre animais e o homem. Darwin,
contudo, ao relacionar as expressões às espécies por meio da seleção natural e de forma
evolutiva, estabelece uma crítica a Bell, cujos argumentos ainda mantinham o entendimento,
segundo a tradição teológica, de que a face humana conteria músculos criados por Deus com o
propósito de expressar as emoções. A idéia de que o comportamento expressivo é inerente e as
paixões tendem a ser a manifestação de nossa natureza animal fortalece a perspectiva biológica
da máquina humana. Em sua obra Darwin indica que as emoções traduzem-se em movimentos
faciais que remontam às características dos primatas dos quais descendemos. Ao analisar a
152
manifestação dos sentimentos e a linguagem dos gestos, o cientista inglês comprova que
também as expressões das emoções, tanto humanas como as dos animais, obedecem às leis da
hereditariedade.
Figura 19: Estudo das sobrancelhas em A expressão das emoções, de
Charles Darwin. Catálogo exposição “Da alma ao corpo”. Paris,
Gallimard, 2002.
O conceito de seleção natural darwiniano proporciona uma visão mais sistêmica e
dinâmica à ação, envolvendo mais concretamente o organismo e seu entorno. Darwin revelou as
falhas da ciência em não considerar o tempo e o contexto na explicação dos sistemas biológicos.
A seleção natural, considerada um processo regulador, afina os padrões de atividades
envolvendo o corpo e o ambiente. Durante muito tempo, as explicações sobre a ação se
alternavam entre o dentro e o fora, ou o corpo, ou o ambiente. A teoria darwiniana tornou
evidente a idéia de uma ação continua e co-evolutiva entre organismos e meio.
O reconhecimento do jogo de forças inconscientes obscuras, por sua vez, proporcionou
uma fissura na consciência humana. O homem não deixou somente de ser o centro do universo
e da criação, como Copérnico e Darwin comprovaram. Freud fez ver ao homem que ele não é o
centro de si mesmo. Na medida em que deslocou o universo teatral em suas dimensões
metodológica, estética e ética, a revolução que Stanislavski realizou poderia ser considerada
como copernicana, como salienta Guinsburg (2001), mas também no sentido próximo à marca
deixada pela psicologia freudiana. A noção de inconsciente está exposta, visivelmente, no
sistema de Stanislavski, em sua relação com a consciência e as forças criativas, como foi
apontado no capítulo 3, com desdobramentos referentes à imaginação, memória e emoção do
ator.
153
4.3 A psicologia do ator e a memória das emoções.
Antes de elaborar o método das ações físicas, Stanislavski se apoiou na psicologia para
trabalhar com as emoções do ator. Ele acreditava que o ator poderia reviver as emoções
registradas na sua memória e aplicá-las ao personagem e em circunstâncias dadas. Isoladas das
suas causas naturais, as emoções deveriam ser revividas através de um processo mental
introspectivo de reconstituição. A estratégia adotada era o “como se”, rememorando, de forma
imaginativa e hipotética, um passado vivido. Ou seja, do contato com o mundo interior
mnemônico viria a matéria expressiva. Mais tarde, com o enfoque específico sobre o corpo e as
ações físicas, o procedimento introspectivo sofrerá modificações.
O enfoque sobre a memória – iniciado por Diderot e desenvolvida por Lewes e, mais
tarde, por Ribot – formata o que é considerado como o aspecto subjetivo do método de
Stanislavski, denominado Psicotécnica. Lewes já defendia a introspecção como estratégia para o
ator criar a familiaridade e decorrente controle da natureza de suas próprias emoções a fim de
interpretar emoções análogas. A mente do ator e sua capacidade de criar um modelo interno,
como já salientava Diderot, ganham importância cada vez maior no processo de atuação, seja
como observadora dos estados de consciência ou dilapidadora das emoções brutas. Para buscar
o material para a sua arte, o ator recorreria à faculdade da memória, considerada uma espécie de
contêiner ou armazém no qual a introspecção atua e a emoção pode ser processada. Lewes junta
o termo neurofisiológico tremor e o termo psicológico imagem para discutir o processo interno
no qual o artista seleciona as memórias emocionais do passado para desenhar imagens a serem
interpretadas (ROACH, 1985, p. 190).
Stanislavski acessa as obras de Ribot traduzidas em russo e encontra uma ressonância
científica para suas intuições acerca das experiências emotivas69. O fundador da psicologia
científica francesa chamou a atenção para os fenômenos psicológicos inconscientes, questionou
o estudo da memória como uma faculdade exclusiva da alma e elaborou uma definição
biológica para esta. Ao definir o termo emoção dentro da psicologia de sua época, Ribot
chamou a atenção para a utilização deste em substituição aos termos paixões e afecções da
alma, empregados no século XVII, e a relevância ao elemento motor intrínseco a toda emoção
(motus). A própria etimologia da palavra carrega a noção de movimento. Do latim emovere
69 Obras traduzidas em russo que foram, de acordo com Bogdam (1999), consultadas por Stanislavski: Les maladies de la memoire (1881), Les maladies de la volonté (1883), La psycologie de l’attention (1889), la psychologie des sentiments (1896) e L’essai sur l’imagination (1900).
154
(mover para fora), a noção de emoção conduzia ao entendimento de uma força motriz constante.
As emoções, de acordo com Ribot (1999, p. 93), já se constituem como ações e não se
apresentariam com características vagas ou difusas, mas como estados psico-fisiológicos
complexos. Como manifestações materiais organizadas da vida afetiva, compreendem um
estado de consciência particular, modificações da vida orgânica e tendências de movimentos.
Ribot concorda com James sobre os fatores fisiológicos das emoções e compartilha da mesma
empreitada de tratar a emoção cientificamente, através de suas marcas físicas objetivas, como a
inervação muscular e as modificações vaso motoras.
Stanislavski parte, basicamente, das duas noções que Ribot elaborou para discutir o
problema da memória e dos afetos: a vontade é essencial para o processo de cura psiquiátrica e
a memória das experiências afetivas é conservada no sistema nervoso e pode ser reativada por
estímulos sensoriais simples. Entendendo a vontade como um componente psíquico
indispensável ao ator, Stanislavski associa-a ao ato criador e substitui a noção de vontade para a
cura, estabelecida por Ribot, pela de vontade relacionada à criação. Quanto à memória afetiva, a
nomeará como emotiva, relacionando-a a outras memórias sensórias, como a visual, acústica,
táctil e motora (BOGDAM, 1999, p. 122).
Bogdam (1999), referindo-se igualmente a tradução dos termos russos utilizados por
Stanislavski – o verbo “perezivat” e o substantivo “perezivanie” – alerta para o fato de que, pela
sua difícil tradução, foi aproximado das noções de viver com intensidade ou reviver uma
situação. A tradução inglesa e americana do mesmo termo como a arte da emoção e do
sentimento conduziu a erros de interpretação e a conhecida ênfase das teorias americanas para a
vivência emocional. Mas segundo palavras de Stanislavski (apud BOGDAM, 1999, p. 128), “o
ator vive, ri e chora sobre a cena; mas enquanto ele ri e chora, ele observa seu riso e suas
lágrimas. É nesta vida dupla, neste equilíbrio entre vida e jogo que a arte surge.” Não se trata de
uma entrega à vivência das emoções reais, mas uma espécie de equivalência dos afetos, sem
perder de vista a observação consciente destes processos. O que Magnat (2000) descreveu como
a tradução mais correta para a o termo russo “perezivanie”, foi experiência, porém, consciente e
atentiva.
Questionando se há uma memória afetiva real e se acessamos o estado afetivo nele
mesmo ao recordá-los, Ribot (1939, p. 160) responde, a partir de uma distinção entre dois tipos
de memória. Define a memória afetiva verdadeira (ou concreta) como uma reprodução atual de
um estado afetivo anterior, com todas as suas características, e a memória falsa (ou abstrata)
como a “representação de um acontecimento, mais do que uma marca afetiva real”. Nos
processos de cura, a marca afetiva rememorada é reconhecida, mais do que é sentida ou
155
experimentada.
Assim como ocorrem nos estados intelectuais, Ribot reconhece nos estados afetivos a
possibilidade de abstração e de generalização, admitindo uma espécie de materialidade nelas.
As imagens de cólera, dor, ódio ou amor se formaria por imagens genéricas, representações
esquemáticas destes estados, assim como a mente forma imagens genéricas de objetos ou
pessoas. Os estados emocionais são abstrações que podem ser evocadas, uma vez que os estados
afetivos “são uma matéria que pode se submeter a todos os degraus de abstração, como a
matéria sensorial.” (RIBOT, 1939, p. 161).
A memória falsa ou abstrata é a mais freqüente, como a imagem de uma pessoa, uma
paisagem, uma lembrança do passado que não é sentida, mas atua como reconhecimento. É uma
variação da memória intelectual. Já a memória verdadeira ou concreta é o reviver do estado
afetivo nele mesmo, e é acompanhada de estados orgânicos e fisiológicos que formam a emoção
real. Seria impossível para Ribot (1939, p. 161) o reviver do estado afetivo real sem as
respectivas condições orgânicas: “porque uma emoção sem sua ressonância em todo o corpo
não é mais do que um estado intelectual.”
As modificações corporais que seguem imediatamente uma
percepção e nossa consciência destas modificações são o que
James chama de emoção. ‘É porque que choramos que ficamos
tristes [...] porque trememos é que sentimos medo, se suprimido
os batimentos do coração, a respiração ofegante, o tremor, o
estado particular das vísceras, o que restará?’ [...] Um estado
intelectual pálido, incolor, frio. Uma emoção des-corporalizada é
um não ser. (RIBOT, 1939, p. 96).
Seguindo o esquema de metáforas, apontado por Lakoff (1987), entendemos e
experenciamos nosso próprio corpo como contêiner e, a partir desta lógica, a mente é entendida
no senso comum como um contêiner de imagens, emoções, pensamentos e outros conteúdos
prontos a serem evocados. Stanislavski (2000, p. 213) contava com este arcabouço quando
reivindicava o trabalho sobre a memória afetiva. Ele utilizou a idéia de arquivo de memória por
meio da metáfora da uma casa, com muitos compartimentos, armários e gavetas a serem
descobertos. A memória, de acordo com Damásio (2000, p. 209), é armazenada sob a forma
dispositiva, e não sob a forma de fotografias num álbum ou arquivo de recordações afixadas no
156
cérebro. Não haveriam imagens permanentemente retidas. São registros dormentes e implícitos
de objetos e eventos não presentes que se engendram com as imagens dos objetos “reais”
percebidos, que são ativos e explícitos. Quando evocamos a memória, recuperamos os dados
sensoriais característicos, bem como os motores emocionais associados, com as reações que
tivemos no passado. Por isso, podemos ser conscientes do que recordamos tanto quanto do que
vivemos em tempo presente.
Embora não sejam as vivências do afeto nele mesmo, os resíduos destas experiências
passadas retornam como elementos impressos no corpo e contribuem para a percepção e tomada
de decisões no futuro. Damásio denominará a memória corporal que está impregnada de
sensações positivas e negativas, lembranças de prazer e dor, ligadas aos fatos vividos como
marcadores somáticos. Estes marcadores são adquiridos por meio da experiência e são
sensações viscerais agradáveis e desagradáveis. Como são corporais, Damásio (1996, p. 205)
atribuiu o termo soma, do grego corpo, e marcador, porque marca uma imagem no corpo e atua
como um mecanismo preciso, mesmo para a tomada racional de decisões, normalmente
atribuída à mecanismos mentais. Além da razão no sentido tradicional, que nos permite
raciocinar e decidir, seguindo toda uma tradição filosófica ocidental que vem de Platão e se
reforça em Descartes, teríamos a hipótese do marcador somático apontada por Damásio. Neste
caso, as emoções não são descartadas como fenômenos pouco confiáveis para que a razão
soberana possa operar, nem tampouco o sangue e a cabeça se mantêm frios, como aconselhava
Diderot. Os marcadores somáticos são estratégias que aumentam, provavelmente, a precisão e a
eficiência do processo de decisão. São sistemas de qualificação automática de previsões que
atuam como avaliador de situações e são um caso especial do uso dos sentimentos. Somos
aculturados através de inúmeras experiências que conformam marcadores somáticos e que
representam nossa imagem do mundo. Esta sensação no corpo pode surgir tanto na evocação de
uma memória passada quanto numa situação vivida no momento.
A fim de garantir a sobrevivência e o equilíbrio do organismo e trabalhar com as
experiências de dor e prazer que poderiam desestabilizá-lo, o corpo produz uma rápida sensação
visceral que pode ser desagradável ou não, antes que possamos raciocinar acerca de alguma
situação ou problema. É no corpo que se dá este sinal de alarme, ligado a sentimentos e
emoções adquiridos no processo de educação e socialização. Segundo Damásio (1996, p. 202-
205), o marcador somático pode ser encarado como um “sistema de qualificação automático de
previsões”. O que nos propõe Damásio é a “descida do Olimpo” de conceitos antes vistos como
manifestações imensuráveis e fora da matéria do corpo, para bem mais perto de nosso
157
entendimento. “O que se passa é que a alma e o espírito, com toda a sua dignidade e dimensão
humana, são os estados complexos e únicos de um organismo.” (DAMÁSIO,1996, p. 282).
Perto do final de sua vida, Stanislavski percebeu que, mais do que uma memória
emotiva, o ator teria uma memória corporal, e que deveria ser acionada pelas ações físicas. É o
ato voluntário e consciente que funda a ação do corpo no mundo, e a emoção ou sentimento,
mais do que causa da conduta do ator, passa a ser o resultado. Convencido de que as emoções
não poderiam ser convocadas facilmente, passam a ser entendidas como conseqüências naturais
do processo orgânico do ator e fundadas sobre os impulsos internos da ação.
Anos depois, Grotowski afirmaria que não é que o corpo tenha memória, ele é memória.
Desta forma, inverte a noção de contêiner, de uma memória mental guardada e separada do
corpo pronta a ser evocada, para afirmar a idéia de circuitos vitais espalhados por todo o corpo.
Os atos do corpo seriam portadores de uma memória e uma vida que não é informada, de todo,
ao ator. Grotowski reivindicou um corpo-memória, enquanto experiência de vida revelada nos
atos físicos. Certos detalhes dos movimentos das mãos do ator podem se transformar no
regresso ao passado, na experiência de ter tocado alguém: “O corpo pode ditar diferentes ritmos,
intenções, que não são provenientes necessariamente do pensamento, mas tem relação com a
vida. Não se sabe como, mas foi o corpo-memória; o corpo-vida.” (GROTOWSKI, 1993, p.
37). Isto perpassa a noção clássica de memória armazenada no cérebro, mas, também, a de um
corpo que se relaciona com as experiências da vida, de uma memória corporificada. Grotowski
buscou evocar a memória orgânica do ator, capaz de ser reativada por processos que recuperem
um tipo de sabedoria própria do corpo. Nas palavras do diretor:
Já falei muito sobre associações pessoais, mas estas associações
não são pensamentos. Não podem ser calculadas. Eu faço um
movimento com a mão e, depois, procuro as associações. Que
associações? Talvez a associação de que estou tocando alguém,
mas isto é apenas um pensamento. Que é uma associação na
nossa profissão? É algo que emerge não só da mente, mas de
todo o corpo. É um retorno a uma recordação exata. Não
analisem isso intelectualmente. As recordações são sempre
reações físicas. Foi a nossa pele que não esqueceu, nossos olhos
que não esqueceram. O que escutamos pode ainda ressoar dentro
de nós. (GROTOWSKI, 1992, p. 187).
158
Um conceito similar é encontrado nas ciências cognitivas. Quando Dennett (1997, p.
75) afirma que “a evolução corporifica informação em todas as partes de todos os corpos”,
credita ao corpo um modo de articulação própria. Dennett apresenta-nos exemplos em todos os
níveis da natureza. Evolutivamente, a barbatana das baleias corporifica informações sobre seu
alimento e o seu meio, bem como a asa de pássaro corporifica informação sobre o meio em que
tem que atuar. Os órgãos de nosso corpo carregam informações de nossos ancestrais. Estas
informações que estão impregnadas no corpo, segundo Dennett (1997, p. 75), não precisam
estar copiadas no cérebro. “Não precisa estar ‘representada’ em estruturas de ‘dados’ pelo
sistema nervoso”, este pode utilizar-se destes antigos sistemas corporais como uma espécie de
“caixa de ressonância” para sua atuação. Neste sentido, o sistema nervoso também se submete à
sabedoria acumulada pelo corpo.
Utilizando antigos sistemas corporais como uma espécie de caixa
de ressonância, ou audiência reativa, ou crítica, o sistema
nervoso central pode ser dirigido – algumas vezes empurrado,
algumas vezes convencido – na direção de políticas mais sábias.
Na verdade, submeter-se ao voto do corpo [...]. Meu corpo
contém tanto de mim –os valores e talentos, memórias e
disposições de espírito que fazem de mim o que sou – como o
meu sistema nervoso. (DENNETT,1997, p. 75).
4.4 A biologia das emoções
Um homem percebe um animal ameaçador. Imediatamente, manifestações físicas
ocorrem em seu corpo. Como conseqüência destas reações somáticas e viscerais, ocorre a
expressão emocional desprazerosa e, então, ele sente a experiência emocional do medo. A
percepção segue a expressão, e não o oposto, ou seja, porque trememos é que sentimos medo.
Em seu movimento de “biologização” das emoções William James defendeu a idéia que a
manifestação fisiológica é a própria emoção, invertendo o senso comum de que a emoção é um
fenômeno imaterial, separado do corpo ou que precede a ação. Esta última argumentação se
apresenta, por exemplo, na teoria de Walter Cannon. Em 1929, Cannon refutou a teoria de
James, propondo que o estímulo ameaçador conduz, primeiro, ao sentimento de medo, que
causa, então, a reação física.
159
Figura 20: o caminho do estímulo sensório à percepção,
experiência e expressão emocional, segundo James e a
teoria de Cannon. Site http://www.cerebromente.org.br
Esta conexão de estados de emoção a condições biológicas interessaria a Stanislavski e
Meyerhold e determina modos distintos de se entender o comportamento mecânico e o orgânico
do ator. Partindo de motivações opostas, os dois encenadores russos reafirmaram,
respectivamente, os aspectos subjetivos (vivificação) e objetivos (ação reflexa) da emoção já
apontados por Lewes, sobre as quais as teorias sobre o ator o século XX se edificariam. Com o
passar dos anos, a abordagem de ambos aumentaria em graus de parentesco.
Meyerhold materializa, em sua abordagem do trabalho do ator, a teoria “periférica” das
emoções de James em sua clássica reversão da experiência emocional. É a resposta somática
que produziria a emoção, e não o contrário e, neste sentido, o sentimento não seria o causador
da reação física, mas a sua conseqüência. Na abordagem do medo, James afirma: vejo um urso,
corro e, então, sinto o medo. Desta forma, não haveria a necessidade de apelar para faculdades
internas e não observáveis da mente para explicar comportamentos dos homens e animais, tais
como a psicologia mais ortodoxa pregava. A concepção do comportamento do ator como uma
série de reflexos naturais e condicionados se fundamenta no entendimento da época de como
funcionavam o cérebro e sistema nervoso. A idéia de que cada reação física tem seu
componente emocional correspondente e de que o corpo reage ao estímulo exterior antes
mesmo que o cérebro perceba e identifique a emoção é assimilada tanto por Stanislavki quanto
Meyerhold, e sustentaria grande parte das teorias de atuação do século XX.
Meyerhold (apud HORMIGON, 1992, p. 297) alertava sobre as características do
sistema nervoso: “de um reflexo nasce outro [...] se me ponho em uma atitude de um homem
triste, posso ficar verdadeiramente triste.” Crítico aos excessos iniciais do sistema
stanislavskiano, cuja ativação dos nervos levava o ator a atingir um estado psicológico interior,
Meyerhold cita um exemplo a partir da lógica de James:
Um homem começou a correr fingindo que estava aterrorizado
por um cachorro que o perseguia. Não havia nenhum cachorro,
160
mas enquanto corria, nasceu a sensação de medo. Esta é a
natureza do reflexo. De um reflexo, nasce outro. Trata-se de uma
característica do sistema nervoso [...]. Se temos que representar
um espetáculo triste, é inútil procedermos como no Teatro de
Moscou (Stanislavski), e nos pormos a vagabundear por ruas
escuras e acumular e concentrar estados de ânimos. Nós dizemos
simplesmente: [...] daremos uma situação em cena em que
sugerirão os estados de ânimo correspondentes a situações físicas
necessárias. (MEYERHOLD apud HORMIGON, 1992, p. 296).
Nos três últimos anos de sua vida, em uma de suas últimas conversações durante os
ensaios de Hamlet, após ordenar uma série de exercícios para eliminar tensões e assegurar o
livre jogo dos músculos, Stanislavski fala a um de seus atores sobre a relação emoção e ação:
Você se prepara para representar o sentimento, uma emoção. Isso
é inútil. Só lhe peço que expresse uma ação, e verá como a exata
compreensão do sentido dessa ação lhe fará experimentar o
sentimento requerido. Pelo contrário, se preocupar-se em
interpretar uma emoção, esta lhe escapará (Apud TOPORKOV,
s/d, p. 115).
Ao buscar uma saída corporal para a alma, Stanislavski pressente o que, quase
cinco décadas depois, Damásio comprovaria através de pesquisas com seus pacientes: a emoção
possui efetivamente bases orgânicas que podem ser inferidas70. Ainda que entendendo os
sentimentos como estados mais do espírito do que do corpo, ao rever o seu próprio método,
Stanislavski inicia experimentos com seus atores partindo da ação concreta do corpo, para
então, atingir determinado estado emocional. O diretor chama a atenção para a importância do
ator encontrar uma correspondência material e corpórea para os seus aspectos interiores, seus
sentimentos e emoções.
70 Sem a pretensão de reduzir a importância de Antonin Artaud a uma nota explicativa, é preciso salientar que ele foi um dos pensadores do teatro do século XX que mais veementemente pensou a emoção e as qualidades físicas dos afetos no trabalho do ator, ao invés do enfoque psicológico. “É preciso admitir, no ator, uma espécie de musculatura afetiva que corresponde a localizações físicas dos sentimentos (...) o ator é como um atleta do coração (Artaud,1993, p.129). Na perspectiva de Artaud, toda emoção teria bases orgânicas, e é cultivando sua emoção em seu corpo que o ator “recarrega sua densidade voltaica” (Artaud,1993, p.136). “Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria, dá sobre as paixões um domínio que amplia nossa soberania. Alcançar as paixões através de suas forças em vez de considerá-las como puras abstrações confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro” (Artaud,1993, p.131).
161
A convincente abordagem de James relacionou a emoção irremediavelmente aos
fenômenos físicos como aceleração cardíaca, respiração suspensa, o aperto no estômago e as
pernas enfraquecidas (Damásio 1996, p. 158). O que ocorre realmente quando experienciamos
uma emoção? O percurso biológico das emoções indica que, ao vivenciá-las, imagens mentais
formam-se, bem como uma mudança no estado do corpo em diversas regiões. Dentre outras
manifestações corporais, o coração acelera, a pele cora ou empalidece, há um aumento de
tensão nos músculos e um brilho diferente nos olhos. Muitas partes do corpo se alteram
significativamente, por vezes perceptíveis só para quem as sente, e em outras vezes,
perceptíveis para um observador externo. A palavra emoção, em sua etimologia, já sugere uma
direção externa a partir do corpo, pois significa, literalmente, movimento para fora. Emoção
implica em ação, movimento, manifestação corpórea. Damásio vê a essência da emoção como
“a coleção de mudanças no estado do corpo que são induzidas numa infinidade de órgãos por
meio de terminações das células nervosas sob o controle de um sistema cerebral dedicado, o
qual responde ao conteúdo dos pensamentos relativos a uma determinada entidade ou
acontecimento” (Damásio,1996, p.168).
O problema colocado por James ultrapassa o fato de que ele teria reduzido os
fenômenos da emoção à perceptiva imediata do corpo, o que levou a diversas críticas, mas, de
acordo com Damásio, pelo fato de ter atribuído pouca ou nenhuma importância ao processo de
avaliação mental da situação que provoca a emoção. A sua hipótese se enquadra num certo
nível de ocorrência das emoções, mas não fazem justiça, como relevou Damásio, ao que se
passa na mente de Otelo antes de extravasar o ciúme e a raiva ou aos motivos que levaram Lady
Macbeth ao êxtase quando arrasta o marido para uma violência assassina (Damásio, 1996:159).
Como a experiência mental da alegria ou tristeza é posterior a modificação dos estados
do corpo, a hipótese de James foi atacada e, de certa forma, ignorada e abandonada durante
quase um século, visto que haveria uma perda de tempo e de eficácia no processo. Contudo, os
mecanismos de reação do corpo nas emoções são mais imediatos do que os processos mentais
do sentimento, adverte Damásio, pois estes levam alguns segundos após as alterações corporais
emocionais ocorrerem. Para avançar na questão, Damásio (2004, p. 122) relata sua alternativa
ao sistema pensado por James, argumentando que os sentimentos não teriam origem,
necessariamente, no “estado real do corpo”, mas no “estado real dos mapas cerebrais” que as
regiões somato-sensitivas constroem a cada momento, quando o corpo é modificado pela
emoção. O sistema somato-sensitivo, ou seja, a percepção sensitiva do corpo, é muito amplo,
formado por vários sistemas que transmitem os estados do corpo a todo e qualquer momento.
Sem a participação destas regiões, não seriamos capazes de sentir as nossas emoções, assim
162
como não enxergaríamos sem as regiões visuais do cérebro. O mapeamento cerebral resultante
provoca uma espécie de estado reflexivo, aliado a um dado estado corporal, que nos permite
sentir que estamos tristes.
Emoções e sentimentos se constituem problemas para o trabalho do ator à medida que
são evanescentes e não controláveis, afirmava Stanislavski. O tratamento dado às paixões,
emoções e sentimentos sempre nos levou a entendê-las como condições além da extensão do
corpo, ou ligadas a manifestações de nossa natureza animal ou às manifestações imateriais
anímicas. Graças a pesquisas que repousam sobre métodos de descrição, comparação e
experimentação, no final do século XIX a psicologia se fortaleceu e captou para si o que, até
então, era exclusivo da filosofia. É quando a noção metafísica de alma cede a uma nova
percepção do universo interior do homem, agora mais susceptível de abordagem científica,
através da análise das funções cerebrais e mentais. Na segunda metade do século XX, seria a
vez das ciências cognitivas.
A emoção foi negligenciada pela ciência por muito tempo em virtude da atribuição
subjetiva adotada e dos vagos apontamentos das questões cerebrais envolvidas. Os estudos de
Darwin, ao veicular a expressão das emoções à evolução das espécies, de Freud, ao indicar os
transtornos emocionais do individuo e sua dimensão psíquica, e de James, com seu enfoque
biológico da emoção, contribuíram, irremediavelmente, para a inclusão da emoção na agenda
científica. Nas últimas duas décadas do século XX, este quadro será irremediavelmente
alterado. Na atualidade, na visão da neurociência e das ciências cognitivas, as emoções e os
sentimentos são, precisamente, tão cognitivos como qualquer outra percepção. São os resultados
de uma curiosa organização fisiológica que transformou o cérebro no público cativo das
atividades teatrais do corpo (DAMÁSIO, 1996, p. 15).
Sentimentos e emoções são percepções diretas de nossos estados corporais e constituem
um elo essencial entre o corpo e a consciência. São processos neurais que ocorrem dentro do
cérebro, desde que, adverte Damásio (1996), esse cérebro interaja com o seu corpo
correspondente. Os termos emoção e sentimento são comumente vistos como sinônimos, mas
encerram suas diferenças. Damásio (2004) propõe uma diferenciação que me parece pertinente
para pensar o comportamento do ator, aliado ao entendimento de que a emoção já é uma ação e
que não está separada abissalmente da razão. O contínuo que conjuga emoção, sentimento e
consciência pode ser entendido a partir de seus estágios: um estado de emoção, desencadeado
inconscientemente, um estado de sentimento, que pode ser representado conscientemente, e um
estado de sentimento tornado consciente, ou seja, que é conhecido por quem está vivendo as
emoções e sentimentos (DAMÁSIO, 2000, p. 57). O que permite a percepção consciente, para
163
Damásio (1996), não são mesmo as emoções, mas os sentimentos e seu caráter reflexivo.
Embora sentimentos e emoções façam parte dos mecanismos básicos de regulação da
vida e ocorram num contínuo, o que nos leva a não distinguí-los tão facilmente, os sentimentos
exibem um outro tipo de complexidade, pois se trata da reflexão sobre os estados emocionais.
Utilizando-se de uma metáfora, aparentemente dualista, mas que pretende clarear os processos,
Damásio (2004, p. 37) propõe a idéia de que as emoções ocorreriam no teatro do corpo, sendo
mais explícitas e de domínio público, e os sentimentos no teatro da mente, num âmbito mais
privado. Neste sentido, os sentimentos são construídos não somente a partir da percepção dos
estados do corpo, as tais emoções, mas, de uma certa forma, do pensar que acompanha estes
estados. O sentimento envolve um tipo de consciência e envolve, também, mapas cerebrais
somatossensitivos capazes de representar estados do corpo. Casos de pacientes com certos
danos cerebrais e alterações de comportamento ressaltaram a idéia, para Damásio, de que a
emoção da tristeza, com seus estados corporais, por exemplo, vem antes do sentimento de
tristeza e de pensamentos consoantes com esta, como a inutilidade da vida e o desejo de morrer.
Desencadeada, involuntariamente, a emoção, seguem-se os sentimentos a respeito dela.
O sentimento seria uma “idéia do corpo”, a um certo aspecto do corpo quando reage a
um objeto ou situação, e um sentimento de emoção seria uma “idéia do corpo quando este é
perturbado por uma emoção.” (DAMÁSIO, 2004, p. 95). Damásio mantém uma linha
semelhante à proposta por James, ao atribuir um sentido corpóreo à manifestação da emoção,
acentuando, contudo, que a origem das percepções que constituem os sentimentos de emoção se
dá pelo mapeamento do corpo em estruturas cerebrais. Um sentimento ocorreria a partir da
“percepção de um certo estado do corpo, acompanhando pela percepção de pensamentos com
certos temas e pela percepção de um certo modo de pensar.” (DAMÁSIO, 2004, p. 77). A
sensação do estado emocional é acompanhada pela consciência de senti-lo.
Sentimentos de emoções seriam estados mais reflexivos, distinguindo das emoções
propriamente ditas, que são involuntárias e não conscientes, como Diderot e Stanislavski
perceberam. Mas o sentimento de uma emoção não é um pensamento reflexivo qualquer, pois
sua essência corporal e sua conexão com o fenômeno da emoção o distinguem de outras formas
de pensamento. Tanto que verbalizamos este estado reflexivo como “sinto-me feliz”, e não
“penso-me feliz”, como salienta Damásio (2004, p. 93). De repente, o ator está disperso, ou
ansioso, ou tranqüilo, ou “presente”, mas a situação de emoção que o levou a estes estados não é
consciente para ele. A emoção, induzida sem que ele saiba, se exterioriza e, para que ele
perceba seu próprio estado, é preciso uma condição de sentimento tornada consciente.
Em sua argumentação sobre as diferenças entre emoção e sentimento, Damásio (2004,
164
p. 77) enfatiza, novamente, a capacidade dos atores em produzir sentimento sem causas
pessoais envolvidas, desta vez, por meio de uma fala de Hamlet, na cena em que faz um elogio
aos comediantes: “forçando sua alma a obedecer a um certo conceito”, fazendo com que a sua
fisionomia e seu corpo por inteiro “se acomode a este conceito.” No caso do ator, ele constrói
pensamentos ou ações que lhe permitam trabalhar com e sobre as emoções e sentimentos, com
estratégias que vão da vivificação à simulação delas.
As emoções precederiam os sentimentos por questões evolutivas. Emoções são reações
biológicas que exibem uma certa simplicidade em relação aos sentimentos, mas que têm
garantido, a mais tempo, a sobrevivência das espécies. Da ameba ao ser humano, há
dispositivos com certa autonomia que solucionam, imediatamente, os problemas básicos da
vida, desde o nível microscópico, com o equilíbrio homeostático dos órgãos internos aos macros
e visíveis a olho nu, como a fuga rápida, na eminência do perigo. Ao invés do termo autômato,
o termo autonômico descreve melhor estes processos de controle que independem de nossa
vontade. Ao contrário do automatismo, que está mais associado à metáfora de um maquinismo
acionado por meios mecânicos, tal qual os autômatos renascentistas de Vaucanson, o sentido de
autonomia abriga a noção de organismo e de seus processos biológicos e de auto-organização.
Os testes experimentais realizados por Damásio com o uso da tomografia por emissão
de pósitrons (PET) indicam que há um recrutamento de áreas diversas de cérebro que realizam o
mapeamento dos estados do organismo por meio do recebimento de sinais de várias partes do
corpo. A estratégia das investigações adotada foi análoga ao “reviver” emoções passadas da
memória emotiva, só que sem finalidades cênicas. Os voluntários pensavam em um episódio
emocional de suas vidas e os parâmetros fisiológicos eram medidos. As áreas somatossensitivas
(córtex do cíngulo, córtex da insula, e os núcleos do tronco central) variavam segundo cada
emoção e a “[...] atividade sísmica da emoção aparecia sempre antes de cada participante
indicar com o movimento de um dedo que o sentimento da emoção estava começando.”
(DAMÁSIO, 2004, p. 109). O resultado da experiência comprovava que a emoção precederia o
sentimento e que este se constitui um processo passível de consciência.
Figura 21: Córtices somatossensoriais.
Damásio (1996).
165
O nosso comportamento é uma polifonia contínua de emoções seguidas de sentimentos,
e que pontuam pensamentos e ações. O organismo acomoda os circuitos de controle pela
vontade (córtex cerebral) e os não controláveis (tronco cerebral, hipotálamo, núcleos límbicos),
por onde transitam as emoções. Em As Paixões da Alma, Descartes descreve movimentos do
corpo que acompanham as paixões e não dependem do controle da alma e as emoções que
podem ser excitadas pelo corpo pela disposição dos órgãos. A alma conserva, sempre, algum
poder sobre os músculos, mas ela não tem nenhum poder sobre o sangue, afirma Descartes
(1996) e, por esta razão, certas ações, como o enrubescer e a palidez súbita dependem pouco ou
quase nada de nossa vontade, enfatiza Engel (1979, p. 56-57). É, novamente, Descartes quem
sustenta a argumentação de Engel, atento a questões acerca da fisiologia das paixões, na atuação
do ator.
As emoções independem da vontade, como pensava Stanislavski, e Damásio (2004, p.
56-57) se vale do exemplo de uma árvore para descrever estes dispositivos autonômicos. Na
raiz e base da árvore, estão as reações que exibem respostas aos processos de metabolismo,
reflexos básicos e os relativos ao sistema imunológico. No caule e ramos médios da árvore,
estariam as pulsões, motivações e comportamentos de prazer e dor. É neste nível que o
organismo reage com uma série de ações, algumas sutis e outras óbvias, para que o seu
equilíbrio biológico se recupere de forma autonômica. Aí estariam as reações de retraimento do
corpo e a proteção de partes afetadas, bem como as expressões faciais de alarme ao sofrimento.
Da mesma forma, se o corpo funciona bem, o conjunto de reações e sinais químicos associados
resultam na experiência de prazer, sendo possível visualizar uma abertura do corpo e expressões
faciais de bem-,estar. As emoções, propriamente ditas – da alegria à mágoa e do medo ao
orgulho – estariam para Damásio (2004) próximas ao cume. Na parte mais alta da árvore, nas
pontas de seus diversos ramos estariam, finalmente, os sentimentos. Falarei, antes, das emoções.
Figura 22: A árvore proposta por Damásio.
O sentimento seria a expressão mental de
todos os outros níveis de regulação
homeostática, incluindo as emoções.
Damásio (2004, p. 44).
166
4.5 O sentimento de uma emoção.
Tudo o que em mim sente, está pensando.
(Fernando Pessoa)
Damásio (2004) classifica as emoções como primárias, sociais e de fundo, ainda que
estejam imbricadas. A visualização das emoções de fundo dependem de manifestações sutis,
como o perfil dos movimentos do corpo e sua freqüência, amplitude, precisão, o que nos
propicia perceber o entusiasmo, a energia ou mal-estar de alguém. São os resultados de
combinações imprevisíveis de possessos reguladores dentro do organismo e reações a situações
exteriores. As emoções primárias ou básicas são, tradicionalmente, mais definíveis e mais
facilmente detectáveis, tanto pelo senso comum, quanto pelos inúmeros estudos científicos, a
exemplo da neurobiologia. O medo, a raiva, o nojo, a surpresa, a tristeza e a felicidade são
considerados como emoções primárias. As emoções sociais incluem a simpatia, a compaixão, a
culpa, o ciúme, a inveja, a admiração e o espanto, dentre outras manifestações, que se aliam às
emoções primárias. O encaixe destes tipos de emoções se dá quando o desprezo utiliza as
expressões faciais de nojo, por exemplo (DAMÁSIO, 2004, p. 51-55).
Sob a afirmação de que “as áreas somatosensitivas constituem uma espécie de teatro
onde podem ter lugar representações de estado do corpo, reais ou falsos”, estão reunidos
estudos, por exemplo, em indivíduos normais cuja tarefa consistia em observar fotografias com
expressões emocionais. A observação ativava, de forma sutil, os respectivos grupos musculares
das emoções retratadas, como se fosse um espelho, embora os participantes da experiência não
se dessem conta do fato, alterações eletromiográficas eram registradas nos músculos do rosto
(DIMBERG; THUNBERG; ELMEHED, 2000, p. 86-89 apud DAMÁSIO 2004, p. 128). Tais
experiências estão relacionadas a estudos onde o cérebro simula certos estados emocionais do
corpo sem que este esteja envolvido, tais como ocorre quando a simpatia se transforma em
empatia. Neste tipo de estado, é possível sentirmos a dor ou náusea de outrem, fenômeno que
Damásio (2004, p. 159) nomeou como uso de um sistema de simulação “como-se-fosse-o-
corpo”.
Algumas pesquisas das neurociências afirmam, de fato, que os estados do corpo
provocam sentimentos. Tais pesquisas partem não só de estudos neuropsicológicos que
correlacionam a perda de sentimentos com regiões cerebrais necessárias à representação dos
estados do corpo. Instruções a indivíduos sem tais lesões sobre o modo de mover seus músculos
167
faciais, conforme os estudos de Paul Ekman (apud DAMÁSIO 1996, p. 179)71 sugerem que
“um fragmento do padrão corporal característico de um estado emocional é suficiente para
produzir um sentimento do mesmo sinal, ou que o fragmento desencadeia subseqüentemente o
resto do estado do corpo e induz ao sentimento”. Sem que qualquer situação real que pudesse
desencadear uma emoção fosse estimulada, uma expressão facial feliz fazia os indivíduos
sentirem felicidade e, da mesma forma, uma expressão facial zangada causava raiva.
As experiências de Ekman puderam comprovar que um fragmento de um estímulo do
padrão corporal característico de um estado emocional é suficiente para provocar um
sentimento. O estudo das emoções, com intuito de auxiliar o artista cênico, já era investigado,
como vimos, por Duchenne de Boulogne, precursor da neurologia, por meio da eletricidade
localizada. Ele acreditava que, através do controle da corrente elétrica e do conhecimento das
causas físicas pelo excitamento de nervos e músculos do rosto se poderia, “como a natureza,
pintar sobre o rosto do homem as linhas expressivas das emoções da alma.” (BOULOGNE apud
DEBORD, 2002, p. 416).
Hoje, as novas tecnologias comprovam que as emoções e pensamentos emitem sinais
físicos e a forma de detectá-los é tão precisa que se pode, praticamente, “ler a mente”,
especificando se a pessoa está imaginando um rosto ou lugar. Mas, adverte Damásio, nem todas
as partes do cérebro se deixam “enganar” por movimentos que não são desencadeados por
formas habituais, tais como as experiências de Duchenne de Boulogne ou Ekman. Novas
pesquisas provenientes de registros eletrofisiológicos demonstram que os sorrisos simulados
originam padrões cerebrais diferentes dos padrões criados pelos sorrisos verdadeiros. Tanto a
primeira quanto a segunda pesquisa, para Damásio, apenas reforçam o que a experiência
cotidiana nos apresenta. Não conseguimos enganar a nós próprios e nem aos outros quando só
sorrimos por cortesia. Deve ser também por isso, conclui Damásio (1996, p. 179): “que os
grandes atores que conseguem sobreviver à simulação das emoções exaltadas a que se
submetem com regularidade, não perdem o controle”.
71 Damásio cita, como introdução à vasta investigação sobre o assunto, as obras de Paul Ekman: “Facial expression of emotion: new findings, new questions”, Psicological Science, n. 3, p. 34-38, 1992 e “Voluntary smiling changes regional brain activity”, Psychological Science, n. 4, p. 342-345, 1993.
168
Figura 23: Em uma situação emocional o mecanismo neural
para o controle da musculatura facial no sorriso “verdadeiro”
(painel superior) difere do mecanismo de controle voluntário
(não emocional) da mesma musculatura (painel inferior). O
sorriso verdadeiro é controlado a partir dos córtices límbicos
e utiliza provavelmente os gânglios basais na sua expressão
(DAMÁSIO,1996, p. 171).
A partir de estudos sobre lesões cerebrais específicas, Damásio (1996) e
Ramaschandran (2002) descrevem os graus de especificidade dos sistemas neurais dedicados à
emoção. Tais como nos casos em que um acidente vascular cerebral destrói o córtex motor no
hemisfério esquerdo do cérebro, acarretando uma paralisia facial direita. Nestes casos, os
músculos passam a não funcionar, a boca tende a ser puxada para o lado que se move.
Experiências comprovam que, quando um doente desta anomalia é solicitado a abrir a boca e
mostrar os dentes, a assimetria só aumentará. Mas quando o doente ri espontaneamente, em
uma situação não premeditada, o sorriso é normal e natural, as anomalias da paralisia
desaparecem. Isso mostra que o controle motor de uma seqüência de movimentos relacionados
com a emoção não se situa no mesmo local que o controle de um ato voluntário (não
emocional). Os movimentos relacionados com a emoção e com o ato voluntário são
desencadeados por diferentes redes do cérebro, “ainda que o palco do movimento, o rosto e sua
musculatura, seja o mesmo.” (DAMÁSIO,1996, p. 170).
Já nos danos no cíngulo anterior, no hemisfério esquerdo, provocados por acidente
vascular, ocorre precisamente o contrário. Em repouso ou em movimentos relacionados com a
emoção, o rosto é assimétrico. Se o doente quiser contrair, voluntariamente, os músculos faciais,
os movimentos são simétricos e normais. O movimento relacionado com a emoção é controlado
a partir da região do cíngulo anterior, de outros córtices límbicos (na face interna do lóbulo
temporal) e dos gânglios basais. Quando este circuito é ativado, numa fração de segundo, toda
uma cascata de eventos acontece para desencadear um sorriso sincero, sem que as partes
pensantes do córtex sejam jamais envolvidas (RAMASCHANDRAN, 2002, p. 37). Isto valer
dizer que não possuímos nenhuma via anatômica que exerça, facilmente, um controle volitivo
169
sobre o cíngulo anterior e os sistemas límbicos, responsáveis pela “naturalidade” de certas
emoções. Para sorrir naturalmente, teríamos duas opções: “aprender a representar ou pedir que
nos contem uma boa anedota.” (DAMÁSIO, 1996, p. 170).
Este “arranjo” natural da neurofisiologia, lembra Damásio, tem demandado dos atores
(ainda que desconheçam estes dados fisiológicos) o desenvolvimento de diferentes técnicas de
representação das emoções humanas, sempre na busca de sua verossimilhança. Stanislavski
criou seu método buscando, inicialmente, a verdade das emoções, a princípio, pelo que Damásio
(1996, p. 171) chama de “criação habilidosa, sob controle volitivo, de um conjunto de
movimentos que sugerem emoção de forma verossímil”. E é o córtex motor na frente do cérebro
o especializado em produzir movimentos voluntários treinados, como tocar piano e dançar.
As experiências laboratoriais relacionadas à fisiologia e biologia das emoções não se
restringem ao campo de conhecimento de cientistas. No artigo Padrões de efeito de emoções
básicas, um método psicofisiológico para treinamento de atores, Susana Bloch, Pedro Orthous
e Guy Santibañez-H propõem uma pesquisa interdisciplinar entre as neurociências e a arte
dramática. A pesquisa relata a observação de padrões de expressão de emoções simuladas e
expressas espontaneamente por atores e não atores. Entendendo que a atuação requer um
processo de aprendizado destes fenômenos e que as emoções básicas e mistas do ator podem ser
representadas, os autores propõem um método de representação que relaciona respiração, tensão
e relaxamento de componentes faciais e posturais. Os procedimentos aliam a experiência
interpretativa direta com atores às experiências laboratoriais para testar algumas hipóteses. O
método científico descrito no artigo, desenvolvido com atores da Universidade do Chile com
direção artística de Orthous, junto a cientistas, revela que a correta performance de efeitos de
padrões de emoções é suficiente para evocar a emoção correspondente nos espectadores. Da
mesma forma, o relato dos atores mostra que a execução destes padrões pode desencadear neles
mesmos o sentimento correspondente. O que difere esta experiência daquelas propostas por
Ekman, realizadas também com atores, de acordo com Bloch, Orthous e Santibañez-H é que
Ekman trabalha a partir do protótipo fácil de uma emoção básica, com a contração muscular
para produzir uma máscara, enquanto eles propõem padrões de ativação respiratória – postural –
facial das emoções que evocam a ativação subjetiva de sentimentos no ator e no observador.
170
Figura 24: Gráfico que sinaliza experiências de Bloch, Orthous e Santibañez-H
a) na simulação das emoções de raiva, tristeza e erotismo
b) e a sua manifestação natural .
Na foto à esquerda, a face de um ator em sua performance e, à direita, a expressão de um não ator a partir de uma
sugestão hipotética em que segura um bebê em seus braços.
Conhecendo os pormenores de como a emoção se expressa por observação externa ou
invocação de seus próprios estados emocionais, o ator as simula. O fato de poucos grandes
atores conseguirem “triunfar” nesta verossimilhança emocional, para Damásio (1996) é um
sinal dos obstáculos que a própria fisiologia do cérebro lhes coloca. Não é fácil estabelecer um
controle racional sobre certos circuitos dotados de espontaneidade, como as emoções.
Em outras técnicas teatrais, lembra Damásio (2004), a criação das emoções por parte
dos atores pode dar origem a uma situação onde a simulação é substituída pela emoção real,
como o método de representação de Lee Strasberg e Elia Kazan, “versão americana” do sistema
de Stanislavski. Para Damásio, estes processos podem ser cativantes e convincentes, mas
demandam dos atores controle e maturidade para refrear os processos automatizados
desencadeados pela emoção “verdadeira”. Tal preocupação remonta ao próprio Stanislavski,
que aconselhava seus atores a não se entregaram a seus devaneios ou emoções pessoais, mas
sim agirem como artistas.
4.6 A botânica das paixões
Por um bom tempo, acreditou-se na aprendizagem e repetição de gestos específicos para
denotar estados emocionais distintos, com ênfase nas mãos ou rosto, para, posteriormente,
abarcar todo o corpo. A classificação das emoções e seus gestos correspondentes foram e
continuam sendo uma estratégia para a representação das emoções em cena. A idéia de que os
gestos podem ser classificados a partir de seus aspectos universais, gerais, essenciais, principais
ou básicos vem iluminando várias teorias e sistemas de atuação, diferenciando-se em seus
métodos. Segundo Engel (1979), as características da natureza moral e as propriedades da
171
estrutura e da organização dos corpos, bem como seus sentimentos e suas expressões variam,
sem, no entanto, alterar sua essência. A possibilidade de se formar um método geral para a arte
do gesto do ator seria fundada sobre regras invariáveis. O teórico alemão propunha uma
“ciência” do gesto expressivo a semelhança do modelo de classificação botânica de Linnaean72.
A aproximação dos traços naturais, universais, gerais e essenciais forneceria uma espécie de
conhecimento:
É pela abstração que se estabelece os princípios gerais, que
encontramos uma forma sistemática para classificar seguindo um
método claro e fácil; separar o essencial do acidental, o geral do
particular e a natureza do arbitrário. (ENGEL, 1979, p. 151).
Em sua argumentação a favor do sistema de François Delsarte e ao nascimento do que
vislumbrava como uma “nova arte”, o ator Giraudet comparou os procedimentos de
classificação dos gestos aos da história natural. Ao questionar se é possível aprender um gesto, e
sendo a arte do gesto, dentre as artes, a que mais se aproxima da natureza (com suas próprias
leis e regras), a arte mímica poderia ter leis fixas com possibilidade de serem classificadas
metodicamente. Giraudet responde aos críticos da época, que entendiam a arte como submissa à
liberdade do espírito, sendo as regras um entrave à criatividade e personalidade do artista:
Porque uma coleção de gestos expressivos não seriam possíveis e
mais úteis que uma coleção de desenhos, de conchas, de plantas e
insetos? E, se esta maneira fosse um dia objeto de estudo sério,
porque não buscar as palavras técnicas e os termos próprios para
esta ciência, que nos é permitido alcançar por meio da história
natural? (GIRAUDET, 1895, p. 8)
O trabalho de pesquisa do movimento desenvolvido por Delsarte coloca em evolução
algumas idéias esboçadas por Engel – como a probabilidade de classificação e ensino do gesto –
e ecoa, anos mais tarde, em pensadores como o músico e pedagogo suíço Émile Jaques-
Dalcroze (1865-1950), em sua abordagem, a rítmica, uma educação psicomotora onde a música
suscita o movimento, e Rudolf Laban, ambos disseminadores de novos entendimentos do
72 Carolus Linnaeus (1707-1778) fundamentou a moderna classificação das espécies durante a grande explosão dos estudos sobre história natural no século XVIII, criando uma taxionomia hierárquica na natureza.
172
movimento e de mecanismos de busca da expressividade do corpo. As emoções primárias (ou
primitivas, segundo Descartes), foram o alvo principal, até o século XX, dos sistemas de
atuação e estudo do gesto e do movimento, visível nas reflexões de Engel e Delsarte. As
semelhanças das emoções, em detrimento das diferenças culturais, permitiram a taxionomia
destas, segundo signos exteriores visíveis, com repertórios amplos de expressão corporal e
facial.
Delsarte mantém em sua semiologia do gesto o histórico interesse pela fisionomia como
forma de compreensão do comportamento humano e estende a classificação dos estados
anímicos e sua exteriorização para todo o corpo, além do rosto e das mãos, por meio de uma
metodologia análoga a do campo biológico. Do amplo sistema delsartiano, vale ressaltar a
classificação dos gestos através da noção de agente mímico, por meio de 13 unidades corporais
que produzem os movimentos expressivos (olho, olhar, sobrancelha, boca, nariz, cabeça,
ombro, torço, braço, mão, dedo polegar, dedo indicador, perna). O seu trabalho assemelha-se ao
de um botânico, que, para definir seu objeto, integra-os por meio de uma catalogação que segue
a lógica de classificação sucessiva em família, gênero e espécie. Para classificar a atitude de um
agente mímico, por exemplo, o olho, o método consiste em caracterizar o gênero, pela posição
da pálpebra superior e a espécie, pela posição da sobrancelha. Um olho meio fechado e uma
sobrancelha elevada determinam uma atitude excêntrico-concêntrica que significa desprezo. Em
seu sistema, o corpo funciona e se exprime através de uma lógica trinitária, formado por
espírito, alma e vida, que representam respectivamente os aspectos mental, moral e vital.
Segundo o sistema trinitário de classificação, o número de atitudes que os agentes mímicos tem
a possibilidade de produzir podem ser multiplicados por 3, 9, 27 e, sucessivamente,
deflagrando, a partir de nove espécies, 27 variedades, 81 subvariedades, 243 tipos, 729
fenômenos corporais e, assim por diante (GIRAUDET, 1895, p. 18). A taxionomia de gestos é
baseada na segmentação do corpo, sob a lógica de correspondência entre alma e corpo. O estado
mental do ser corresponde à ação do corpo, e vice-versa.
Figura 25: Desenho de Gaston Le Doux sobre as posições da cabeça
analisadas por Delsarte, presentes na obra Physionomie et gestes, méthode
pratique d’après de F. Del Sartre pour servir à l’axpression des sentiments . Alfred
Giraudet (1895).
173
As poses fixas dos estados emocionais por meio de ilustrações contribuíram,
inevitavelmente, para a utilização pragmática dos estudos de Delsarte em manuais,
transformando, muitas vezes, em receituário e clichês a sua complexa investigação. Uma vez
que o pesquisador priorizou o ensinamento oral, seu sistema foi exposto por seus discípulos
mais próximos, como os atores Alfred Giraudet, na França, e Steele Mackay, nos Estados
Unidos73, e Geneviève Stebbins. Contudo, as regras definidas por Delsarte constituem em uma
das mais sérias tentativas de estudo do corpo, no cotidiano e na prática cênica, e responderam às
demandas epistemológicas de sua época. Sua taxionomia dos gestos, relacionada aos aspectos
afetivos e espirituais e a segmentação do corpo em agentes mímicos auxiliaram na concepção
da dança moderna no início do século XX74 e foram matéria de interesse de encenadores, em
seu treinamento de atores, a exemplo de Grotowski. A metáfora da mecanização das paixões
foi, paulatinamente, se fragilizando e, aos poucos, o núcleo mais íntimo da vida foi se impondo
com a noção de interioridade e organicidade, conformando outros sistemas capazes de dialogar
com o problema da emoção e do sentimento no trabalho do ator, tais como a memória emotiva e
o método das ações físicas.
A tentativa de fixar as emoções dentro de um cerco psicológico ou defini-las numa
forma fisionômica preestabelecida pode incidir nos riscos apontados por Ferracini (2001) no
trabalho do ator sobre si, como a estagnação do movimento dinâmico e orgânico das emoções.
A interpretação de emoções como a raiva ou o medo sem a equivalência “orgânica” pode levar
à alegoria e ao estereótipo, preocupação esta que já se enunciava nos discursos de Lewes e
Diderot, em sua crítica ao automatismo e mecanicidade da interpretação do ator, bem como na
análise das ações por parte de Stanislavski. Ao invés de evocar ou fixar as emoções, Ferracini
(2001, p. 118) chama a atenção para o “sentir a emoção na musculatura”, no sentido de o ator
descobrir, por meio da ação, maneiras de colocar o sistema “psicofísico” apto e despojado de
todos os bloqueios, permitindo o fluir das emoções75.
Michael Chekhov (1891-1955), considerado por Stanislavski como um de seus mais
brilhantes alunos, não chega a elaborar uma taxionomia fixa para cada emoção, mas, por meio
do conceito de “espécie de movimento”, aponta as qualidades e as sensações como a chave para
os sentimentos. Se o ator define o caráter como agressivo, por exemplo, é aconselhável que 73 Mackay desenvolveu nos Estados Unidos uma aplicação corporal, a harmonic gymnastics, cuja expansão atingiu a moda e a publicidade, contribuindo para a visão reducionista dos estudos de Delsarte. 74 As idéias de Delsarte repercutem na gênese da dança moderna no inicio do século XX. Isadora Duncan (1878-1927) é uma das artistas que considerou a região do tronco, precisamente no plexo solar, como motor expressivo para sua dança, além das conexões entre o gesto e expressões da alma. 75 O ator Renato Ferracini é ator-pesquisador integrante do Grupo LUME – Núcleo de Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais (UNICAMP), um dos grupos de teatro brasileiro que mais enfática e consistentemente pesquisa a organicidade das ações do ator. Ferracini (2001) é autor de “A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator”.
174
sinta os pés com firmeza no chão, pois o vigor do movimento instiga o sentimento
correspondente. O gesto psicológico de Chekhov (1996, p. 89) é um gesto arquetípico, “aquele
que serve como modelo original para todos os gestos possíveis da mesma espécie”. As
qualidades de cada músculo, as inclinações da cabeça, a posição dos braços, a posição final de
todo corpo podem evocar, inevitavelmente, sentimentos. O diretor estabelece uma espécie de
transição entre o enfoque fisionomista e o reflexionista, requisitando, por meio de posições e
partes do corpo, a emergência das sensações e sentimentos.
Tente fazer um gesto forte, bem delineado, mas simples. Repita-
os várias vezes e você verá que, após um certo tempo, a força de
vontade tornar-se-á cada vez mais forte sob influência desse
gesto. A espécie de movimento que fizer, dará a sua força de
vontade certa direção e/ou inclinação [...] assim podemos dizer
que o vigor do movimento instiga a nossa força de vontade em
geral; que a espécie de movimento desperta em nós um definido
desejo correspondente e que a qualidade desse mesmo
movimento evoca nossos sentimentos. (CHEKHOV, 1996, p.
76).
Ribot (1939) argumentou que, se a teoria de James for verdadeira, e se as manifestações
de uma emoção podem ser produzidas voluntariamente pelos movimentos físicos, então seria
possível suscitá-las. Ao mesmo tempo em que Ribot defendeu a hipótese que é possível acessar
o estado afetivo nele mesmo através do reviver da emoção, reconheceu que, na grande maioria
dos casos, o critério de James é inaplicável, pois os fenômenos orgânicos que se manifestam nas
emoções não podem ser produzidos pela vontade facilmente, como concluiu Stanislavski.
Embora sentir vivamente as emoções e as reviver sejam duas operações mentais diferentes, o
que as investigações de Damásio e Ekman confirmariam neurologicamente, Ribot (1939)
argumenta que, se nos mantivermos durante muito tempo sentados numa atitude melancólica, a
tristeza virá76. Como vimos, tais questionamentos são compartilhados primeiramente por
Meyerhold e, posteriormente por Stanislavski. Se a forma é trabalhada com precisão e justeza,
a emoção o seria também, afirmava Meyerhold, pois se trata de, primeiramente, atuar
76 O exemplo da representação do ator é suscitada por Ribot (1939, p. 97): “Muitos atores aparentam uma emoção sem senti-las”. James descreve o resultado de uma curiosa enquête feita na América sobre este ponto: “as respostas variam, uns dizem que atuam com o cérebro, outros com o coração, uns sentem a emoção, outros não”.
175
fisicamente, principio este que também regerá o método das ações físicas. Restaria ao ator saber
se necessitaria criar, inicialmente, em sua mente os pensamentos que permitissem desencadear a
emoção ou, ao executar ações precisas com o corpo, poderia provocar a emoção
correspondente.
É fato que o ator carece de causas naturais e deve trabalhar com a emoção ou sentimento
cenicamente, sem que tenha tido, necessariamente, uma relação causal pessoal com os fatos.
Mas ele não necessita de causas naturais, ou seja, exibir uma emoção real, para que exiba em
cena comportamentos tais como os apontados por Chekhov. A experiência de dor e prazer não é
a causa dos comportamentos de dor e prazer, salienta Damásio (2004), nem necessária para que
esses comportamentos aconteçam. O circuito das emoções “verdadeiras” tem seus
inconvenientes e incertezas por sua inconstância, apontados, exaustivamente, por Stanislavski e
Grotowski, e as neurociências já comprovaram as diferenças neurobiológicas entre as emoções
espontâneas e as deliberadamente provocadas. Ao invés da expressão de certas categorias
afetivas pré-determinadas, a idéia de construção de estados por meio das ações e do “sentimento
das emoções”, num sentido de pensar-sentir atribuído por Damásio, pode se tornar um caminho
mais concreto, quem sabe um “trilho mais sólido”, para o trabalho do ator.
A emoção se exterioriza sem que o ator saiba ou tenha controle e, para que ele perceba
seu próprio estado e possa trabalhar sobre si mesmo, é preciso uma condição de sentimento
tornada consciente. O pensar em ação requisitado por Grotowski, implicando numa consciência
menos discursiva, mais orgânica e menos mediada por “verbalizações internas” (mas não isenta
de estados sensíveis) pode ser aproximada da noção damasiana do pensar sentindo (ou do sentir
pensando).
Damásio, não à toa, ao discutir emoção, sentimento, razão e consciência sempre utiliza a
metáfora do teatro e a atividade do ator. Podemos controlar, de alguma forma, a expressão de
algumas emoções em nosso cotidiano – disfarçar a raiva, controlar o medo – mas não com êxito
total. Talvez esteja aí, como aponta Damásio, o motivo que nos leva a ir ao teatro e ver atores
trabalhando suas emoções. Atores são mesmo exímios desafiadores da natureza “espontânea”
das emoções, tentando trazê-las à cena e à consciência.
Diderot (1979) requisitou um ator que representasse com reflexão, sem se entregar aos
ímpetos de sua sensibilidade. O estudo da natureza humana e a possibilidade de imitá-la
utilizando os seus recursos de imaginação e memória (segundo um modelo imagético interno)
conformaria o que entendeu como postura ideal do ator. Stanislavski (1995) investiu nas ações
físicas como meios conscientes para cooptar as evanescentes emoções criativas. Salientando
que o que permite a percepção consciente, não é, de fato, as emoções, mas o sentimento de
176
emoções, Damásio (1996) rompe com a dicotomia razão-emoção e une reflexão e sentimento. O
sentimento de uma emoção seria um estado mais reflexivo, distinguindo-se das emoções
propriamente ditas, que são involuntárias e não conscientes, como Diderot e Stanislavski
descreveram.
De Diderot até Stanislavski, a descrição do trabalho do ator contava com explicações
próximas ao campo da introspecção, e que norteava abordagens teóricas com enfoque nas
paixões, emoções e sentimentos. O problema fundamental da emoção no trabalho do ator
apontado por Stanislavski é a não confiabilidade em sua aparição ou espontaneidade no
momento requerido. A inconfiabilidade e a imaterialidade atribuídas às emoções dificultavam
uma abordagem mais precisa e passível de análise da atuação e, até mais recentemente, como
Damásio (2004) ressaltou, também não era matéria de objetividade científica. A dificuldade de
“objetivar” o comportamento humano é um dado a se considerar, uma vez que os campos de
conhecimento que tratam mais concretamente destas questões são recentes, acirrados a partir na
segunda metade do século XIX.
A vertente psicológica do estudo do ator no século XX se fragilizou frente não somente
as novas teorias do comportamento humano, mas a partir do contato de diretores e encenadores
com tradições estéticas não ocidentais, a exemplo de Grotowski, em sua incursão aos rituais de
diferentes tradições. Sem esquecer, obviamente, das referências apontadas por Artaud em
relação ao teatro asiático. Pavis (2003, p.49) discute uma provável teoria do ator admitindo que
uma teoria das emoções por si só não é suficiente para descrever o trabalho do ator ou do
bailarino. Seria preciso um quadro teórico diverso, que ultrapassaria, em muito, o campo da
psicologia. A cena contemporânea pede por outras teorias que não se restrinjam à representação
mimética das emoções, sendo esta um aspecto entre vários.
Tendo a discussão sobre o corpo tomado a cena teatral, para a compreensão do
complexo fenômeno da ação do ator, não só é preciso uma revisão da teoria das emoções, como
louvável a proposição de uma teoria das ações, que englobaria outros estados do ator, inclusive
os emocionais. Uma teoria da ação que levasse também em conta o campo da cognição,
considerando o papel do corpomente nestes processos. O caráter cognitivo, e não somente
psicológico, concede aos estados emocionais uma explicação mais ampla e menos dualista,
considerado a não separação abissal dos aspectos biológicos e culturais, físicos e mentais e
racionais e emocionais. Não se trata de uma importação de teorias para a adequação do
problema da ação a um contexto cognitivo, tampouco uma estratégia que reduz o
comportamento cultural do artista cênico às questões biológicas, mas a necessária atualização e
177
reflexão de questões que já estavam na gênese da nova pedagogia teatral inaugurada por
Stanislavski: o método das ações físicas.
Figura 26: Stanislavski no papel de Satin na peça de
M. Górki, No Fundo, 1902. (Guinsburg,2001).
Figura 27: Jerzy Grotowski, 1997.
(Magnat, 2000).
178
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ator deve trabalhar a vida inteira, cultivar seu espírito, treinar
sistematicamente os seus dons, desenvolver seu caráter; jamais
deverá desesperar e nunca renunciar a este objetivo primordial:
amar sua arte com todas as forças e amá-la sem egoísmo.
(STANISLAVSKI, 1994).
A leitura da obra de Stanislavski é uma empreitada fascinante que atravessa, certamente,
as questões que cercavam as tendências teatrais de sua época, envolvendo, principalmente, o
naturalismo e o realismo. Ao abordar o trabalho do ator por meio de questões ontológicas e
filosóficas, – na busca pela união entre corpo e espírito; epistemológicas, – relativas a como o
ator conhece, cria memória e imaginação; e pedagógicas, – quando desenvolve metodologias
como a memória emotiva e o método das ações físicas, o mestre russo propôs determinadas
conexões com as teorias do conhecimento e instaurou procedimentos que orientariam a
pedagogia do ator no século XX. Na descrição da atividade do ator, não por acaso, o ator e
diretor russo utilizava termos subjacentes ao ato cognitivo e a conduta humana em geral, como
intenção, finalidade, desejo, vontade, memória, emoção, consciência e inconsciente, e não uma
terminologia eminentemente teatral.
Ao requisitar o comprometimento do corpo na experiência, por meio das ações físicas,
Stanislavski não excluiu a necessidade do pensar ou do analisar, mas instaurou uma espécie de
deslocamento da atividade cognitiva, como busquei enfatizar neste estudo. Ao invés de uma
análise anterior por operações eminentemente mentais, pelo que denominou como o “frio”
cérebro, ele propôs ao ator pensar através de suas ações. Neste sentido, a estratégia de
conhecimento foi alterada, pois é a partir das ações do corpo que o ator articularia os demais
elementos da representação e se aproximaria do que Stanislavski denominou de a natureza
criadora.
Estas formulações nos permitiram estabelecer conexões com as teorias do conhecimento
em torno do problema corpo-mente. Não somente as conexões com as mais recentes abordagens
das ciências cognitivas, mas com as teorias filosóficas e científicas que, a partir do século XVII,
ressoariam na arte interpretativa, ecoando nas teorias de Stanislavski e Grotowski. Na
perspectiva de um pensar em ação e de um tipo de conhecimento do ator que denomino um
saber prático, pensamento e movimento foram abordados nesta tese não como acontecimentos
179
separados em seus territórios categoriais, mas como aspectos de um mesmo processo cognitivo
dinâmico. O que Stanislavski chamou de o trabalho do ator sobre si mesmo pressupôs, também,
um alargamento de fronteiras entre o próprio organismo e as suas interações com o ambiente,
numa revisão da relação de causa e efeito no fenômeno da ação humana.
Stanislavski percebeu a complexidade que envolve o comportamento humano nas
relações entre matéria e espírito e incorporou os conhecimentos científicos e as questões
filosóficas de sua época, para confrontar as suas hipóteses. O diretor russo foi um dualista no
discurso, mas um monista na sua prática. Ele não se desvinculou totalmente do dualismo de
substância ao enunciar os aspectos materiais do corpo e imateriais das emoções e sentimentos
na procura por um “elo indissolúvel” entre os planos interiores e exteriores, físicos e espirituais,
mas demonstrou, na investigação prática junto aos atores, a sua incessante busca pela não
dissociação destes planos, admitindo um único gênero de substância. A estratégia de busca da
unidade psicofísica ganhou consistência por meio do método das ações físicas, com o corpo
inserido mais diretamente na experiência. Neste sentido, o ato físico conteria em si mesmo a
vida espiritual ou serviria de “isca” para o seu surgimento. Se as emoções são pouco confiáveis
e controláveis, restaria ao ator trabalhar sobre suas ações. Neste sentido, o método das ações
físicas constitui-se uma estratégia de conhecimento em que o estado reflexivo não se separa da
emoção e da ação. Este método foi a tentativa mais aprofundada de Stanislavski para resolver a
dicotomia entre emoção e ação, pensamento e ação, espírito e corpo, razão e emoção, propondo,
como afirmei no decorrer deste estudo, um deslocamento da atividade cognitiva do ator. De
uma cognição “separada” para uma cognição “na ação”.
O espírito investigativo incansável de Stanislavski e sua honestidade científica nas
questões referentes a seus próprios métodos, reavaliando-os sistematicamente, situaram-no
como o grande reformador da pedagogia teatral ocidental do século XX. Não é a aplicação
direta dos ensinamentos de Stanislavski, mas os fundamentos na observação e investigação
contínua do trabalho do ator que orientou a pesquisa de Grotowski e sustentou,
fundamentalmente, o parentesco entre ambos. Em conformidade com Stanislavski, que
propunha ao ator trabalhar a vida inteira e treinar sistematicamente os seus dons, para a
sobrevivência de um sistema metodológico é necessário a sua atualização constante, dialogando
com as necessidades do individuo e do meio. Olhar para as perguntas formuladas por
Stanislavski e Grotowski e as conexões aqui estabelecidas por meio das hipóteses provenientes
das ciências cognitivas e da teoria do corpomídia é perceber que as questões ontológicas,
epistemológicas e metodológicas referentes à ação estão em aberto e que as respostas estão
constantemente em processo. É fato que muitas das questões referentes à nova teoria do corpo-
180
mente proposta Stanislavski, desenvolvida mais enfaticamente nos últimos quatro anos de sua
vida (de 1934 a 1938), ficaram sem continuidade em vista de sua morte, em 1938.
O caráter processual e dinâmico da ação faz do trabalho do ator sobre si mesmo um
desafio constante e continuado. A atividade do ator pressupõe o entendimento da noção de si
mesmo, dos aspectos do próprio organismo e de suas interações com outros seres e o ambiente.
Reconhecer o corpo, na atualidade, como um sistema processual e dinâmico requer o
entendimento de que o cérebro reconstrói o sentido do eu, a cada momento, provocando estados
do organismo constantemente reconstruídos e que delineiam a presença do corpo em ação no
mundo. O que não permite, no caso do ator, controlar todo o processo acional nem, tampouco,
repeti-lo da mesma forma. Há uma imprevisibilidade que depende de inúmeros fatores. Ainda
que o ator prepare obstinadamente suas ações de forma objetiva e intencional, os estados do seu
corpomente e as informações do meio influenciam o processo dos ensaios ou o momento da
apresentação para que se convertam em momentos singulares. O que não significa a ausência de
um processo de estruturação das ações por parte do ator, mas a composição de uma partitura
cênica capaz de absorver qualidades que possam ser engendradas no instante.
Na possibilidade de se pensar o ator como um sujeito não cartesiano, novas relações
devem se estabelecer entre corpo e mente, se constituindo como tópicos essenciais para
discussão do problema da ação. O ato pensante e o ato consciente passam a ser entendidos como
implementados no corpo em ação no mundo, não mais como atributo de uma razão descolada
ou anterior à experiência. A mente, pela lente das teorias das ciências cognitivas aqui
abordadas, é encarnada, corporificada, e não responde exclusivamente a uma condição a priori.
Hoje, as teorias cognitivas que pesquisam estas questões não duvidam da fisiologia dos estados
mentais e do correlacionamento dos processos do corpo e da mente. Surge, a partir daí, a
perspectiva de uma abordagem do corpomente. Se o século XX redescobriu o corpo e o elegeu
como “instrumento” de conhecimento, inclusive para a formação de um novo ator, o enfoque
dos estudos sobre a mente e suas conexões com o corpo tem sido um dos campos
epistemológicos mais férteis na atualidade. Acredito que os novos entendimentos sobre a
intencionalidade, a consciência e os estados emocionais podem auxiliar o ator a trabalhar “sobre
si mesmo” e sobre suas ações, incidindo numa possível transformação de sua prática cênica. A
constituição das ações é um processo de conhecimento, e o problema epistemológico do
trabalho do ator consiste em averiguar os procedimentos que cercam o próprio ato de conhecer.
Ao perceber a rede complexa de conexões que consiste em seus atos, o ator poderá
compreender mais amplamente seus processos de conhecimento de si mesmo e do mundo.
Atento a si, ao meio e ao instante presente, o ator abre-se simultaneamente à experiência
181
imediata e a situações pré-estabelecidas, como convém ao jogo teatral.
O objetivo desta tese não foi o de realizar um estudo exaustivo sobre a trajetória artística
de Stanislavski e Grotowski, mas, fundamentalmente, partir das reflexões em torno do método
das ações físicas por eles desencadeadas, especialmente no que se refere ao problema corpo-
mente. Reflexões estas que se mantém presentes no trabalho do ator na atualidade. Propus neste
trabalho apontar elementos para se pensar uma pedagogia do ator mais atenta a questões
referentes aos processos cognitivos por meio das metáforas, na medida em que proporcionam
ignição às ações do corpomente. A possibilidade de investigar as estruturas que formatam o
pensamento e a ação do ator como procedimentos metafóricos emergentes de processos
sensório-motores implica numa aproximação mais dinâmica entre pensamento e ação, mente e
corpo. As metáforas do corpo-máquina, decorrentes de uma visão mecanicista, e do corpo-
organismo, de uma pulsão vitalista, permanecem ainda como propulsoras de ações nas teorias
do ator. As metáforas dinamicistas (corpo-auto-organizado), não obstante, já se insinuavam nas
experiências formalizadas por Stanislavski e Grotowski como condição da ação do corpomídia
no mundo.
O trabalho do ator sobre si mesmo implica num certo tipo de conhecimento, que não é
só a construção de um modelo teórico sobre as relações corpo e mente, mas um conhecimento
mais operativo sobre estas referências em direção a uma prática transformadora. A arte do ator
tende a permanecer ainda no século XXI como a arte do vivo, da experiência da presença,
requisitando constantemente a revisão ontológica, epistemológica e pedagógica do corpomente
em ação.
182
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