PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP · 2019. 1. 31. · Aos meus anjos da...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Marilia Cerqueira Lima
A Proteção Integral e o Egresso da Medida Socioeducativa de
Internação na Perspectiva de Reinserção Social
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2018
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Marilia Cerqueira Lima
A Proteção Integral e o Egresso da Medida Socioeducativa de
Internação na Perspectiva de Reinserção Social
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito – Direitos Humanos, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Dias de Souza Ferreira.
São Paulo
2018
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Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura: _______________________________________________________ Data: 05/11/2018 E-mail: [email protected]
L732 Lima, Marilia Cerqueira
A proteção integral e o egresso da medida socioeducativa de internação na perspectiva de reinserção social/ Marilia Cerqueira Lima. – São Paulo: s.n., 2018.
168 p. ; 30 cm. Referências: 156-168 Orientador: Prof. Dr. Eduardo Dias de Souza Ferreira Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2018.
1. Adolescente; 2. Ato infracional; 3. Medida de internação; 4. Egresso; 5. Proteção integral; 6. Política pública.
CDD 340
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Marilia Cerqueira Lima
A Proteção Integral e o Egresso da Medida Socioeducativa de
Internação na Perspectiva de Reinserção Social
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito – Direitos Humanos.
Aprovada em: __/__/__
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Dr. Eduardo Dias de Souza Ferreira – PUC-SP
______________________________________________
Dr. Motauri Ciocchetti de Souza – PUC- SP
______________________________________________
Dr. George Sarmento Lins Júnior – UFAL/AL
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Dedico este trabalho a todos os que amam, lutam e sonham com uma
realidade infanto-juvenil mais coerente e justa, em que o real sentido da
corresponsabilidade pela família, pela sociedade e pelo Poder Público na
promoção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, seja
assumido e vivenciado como fundamento da proteção integral e vetor
prioritário do respeito à condição de “ser em desenvolvimento”.
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AGRADECIMENTOS
Diante das minhas convicções, agradeço primeiramente a Deus, sob
forma de oração, pelo dom da vida, por encher a minha alma de paz,
esperança e felicidade, mesmo nas turbulências da vida.
Agradeço especialmente aos meus sagrados, meus amados pais,
Waldemar Vieira Lima e Flora Cerqueira Lima, e meus filhos, Raphael
Cerqueira Lima de Mendonça Gomes e Ricardo Cerqueira Lima de
Mendonça Gomes, luzes e razões da minha vida.
À minha família, que preenche minha existência.
Aos meus amadíssimos e fiéis amigos(as) e companheiros(as) da
jornada vida, meu muito obrigada, por todo o carinho, amor, disponibilidade,
dedicação, generosidade, força, enfim por serem luzes no meu caminho. Em
especial, agradeço a Lean Antônio Ferreira de Araújo, Isaac Sandes Dias e
Maurício André de Barros Pitta, que sempre se disponibilizaram a ajudar com
brilhantes ensinamentos, leituras e revisões deste trabalho.
Aos meus anjos da guarda, sempre cuidando de mim, muito obrigada!
Aos meus amigos(as) e companheiros(as) de Mestrado, meus
agradecimentos pela vivencia solidária e carinho inesquecíveis, saibam que
todos moram no meu coração. Em especial agradeço à Ana Carolina
Domingues, Kamila Gouveia, Lícia Christynne Ribeiro Porfírio e Lívia Maria
Tenório Jacintho.
Aos meus queridos e eternos professores do Programa de Mestrado
de Direito da PUC-SP, meus sinceros agradecimentos pelos brilhantes
ensinamentos, atenção, generosidade e carinho a mim dispensados, em
especial a Professora Carolina de Souza Lima, Professor Motauri Chiocchietti
de Souza, Professor Willis Santiago Guerra Filho e Professor Oswaldo
Henrique Duek Marques.
Ao meu querido Orientador, Professor Eduardo Dias de Souza
Ferreira, meu agradecimento especial, pelas riquíssimas lições, atenção,
confiança, generosidade e carinho a mim dispensados.
A todos os magnânimos Professores que integraram as minhas
Bancas de Qualificação e Defesa, meus sinceros agradecimentos, dentre
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estes, os Professores George Sarmento Lins Júnior e Lauro Luiz Gomes
Ribeiro, tendo os demais já sido citados.
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[...] A igualdade não é um dado – ele não é physis, nem resulta de um absoluto transcendente externo à comunidade política. Ela é um construído, elaborado convencionalmente pela ação conjunta dos homens através da organização da comunidade política [...]. (LAFER, Celso).
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CDC CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
CASA FUNDAÇÃO CENTRO DE ATENDIMENTO
SOCIOEDUCATIVO AO ADOLESCENTE
CEDICA/RS CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS DA CRIANÇA DO
RIO GRANDE DO SUL
CEJIL CENTRO DE JUSTIÇA E DIREITO INTERNACIONAL
CF CONSTITUIÇÃO FEDERAL
CIDH COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
CNJ CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
CNMP CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
CNACL CADASTRO NACIONAL DE ADOLESCENTES EM
CONFLITO COM A LEI
COTEIDH CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
CONANDA CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA
CRAS CENTRO DE REFERÊNCIA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
CREAS CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL
ECA ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
FASE FUNDAÇÃO DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO
FBSP FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA
FEBEM FUNDAÇÃO ESTADUAL PARA O BEM-ESTAR DO MENOR
FIA FUNDO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
FUNABEM FUNDAÇÃO NACIONAL DO BEM-ESTAR DO MENOR
INESC INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS
IPEA INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA
LDO LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS
LOA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL
LOAS LEI ORGÂNICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
MSE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
OC-17 OPINIÃO CONSULTIVA-17/2002
OCA ORÇAMENTO DA CRIANÇA
OEA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS
ONU ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
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PAEFI SERVIÇO DE PROTEÇÃO E ATENDIMENTO
ESPECIALIZADO A FAMÍLIAS E INDIVÍDUOS
PAIF SERVIÇO DE PROTEÇÃO E ATENDIMENTO INTEGRAL À
FAMÍLIA
PIA PLANO INDIVIDUAL DE ATENDIMENTO
PIDSEC PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS ECONÔMICOS,
SOCIAIS E CULTURAIS
PNBEM POLÍTICA NACIONAL DE BEM-ESTAR DO MENOR
PEMSEIS PROGRAMA DE EXECUÇÃO DE MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO E SEMILIBERDADE
DO RIO GRANDE DO SUL
PNAD PESQUISA NACIONAL DE AMOSTRA POR DOMICÍLIO
PNAS POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
POD RS SOCIOEDUCATIVO PROGRAMA DE OPORTUNIDADES E
DIREITOS RS SOCIOEDUCATIVO
PPP PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO
PPA PLANO PLURIANUAL
PROCON PROGRAMA DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR
SAM SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA A MENORES SCFV
SERVIÇO DE CONVIVÊNCIA E FORTALECIMENTO DE
VÍNCULO
SDG SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS
SEPREV SECRETARIA DE ESTADO DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA
SINAJUVE SISTEMA NACIONAL DE JUVENTUDE
SINASE SISTEMA NACIONAL DE ATENDIMENTO
SOCIOEDUCATIVO
SPDCA SUBSECRETARIA DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
SUAS SISTEMA UNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
SUMESE SUPERINTENDÊNCIA DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
TCU TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO
UFs UNIDADES FEDERATIVAS
UNICEF FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA
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Lima, Marilia Cerqueira. A proteção integral e o egresso da medida socioeducativa de internação na perspectiva de reinserção social. 2018. 168 p. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018.
RESUMO
O tema central deste estudo é a abrangência da proteção integral e a análise das políticas públicas necessárias, suas estratégias, mecanismos e instrumentos de ação e sua respectiva relação de responsabilidade para a promoção do resgate do adolescente em conflito com a lei e sua posterior reinserção sociofamiliar, enquanto egresso da medida socioeducativa de internação. Assim, este trabalho parte inicialmente da investigação da trajetória social da criança e do adolescente, as influências e determinações das relações de desigualdades sociais e o respectivo suporte jurídico-social do sistema especial de proteção. Em seguida, há a observância da tutela diferenciada como expressão da garantia desta proteção integral e da prioridade absoluta, pautadas no direito à liberdade, à igualdade, à inclusão social, a não discriminação, ao devido processo legal e à dignidade humana. Considerando a inserção deste jovem no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, o ato infracional, as medidas socioeducativas - notadamente a de internação, a política de atendimento, o processo socioeducativo e a condição de egresso, o objetivo passa a ser o enquadramento da necessária proteção social, sob forma de rede de atenção especial, como condição emancipatória, capaz de conduzi-lo à respectiva ressocialização. Foram utilizadas diversas pesquisas bibliográficas e documentais, além da indicação de dados como marcos situacionais da realidade nacional e, em especial, do Estado de Alagoas, para análise, definição de desafios e estratégias de ação frente a políticas de enfrentamento. Palavras-chave: adolescente; ato infracional; medida de internação; egresso; proteção integral; política pública.
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Lima, Marilia Cerqueira. The full protection and egress in the social-educative measure of internment in the social reinsertion perspective. 2018. 168 p. Dissertation (Masters in Law). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018.
ABSTRACT
The central theme of this study is the coverage of full protection and the analysis of necessary public policies, their strategies, mechanisms and instruments of action and its respective responsibility relationship to the promotion of adolescents’ rescue conflicting with the Law and their posterior social-familiar reinsertion, as an egress of internment social-educative measure. Therefore, this work stems from, initially, the investigation of a child’s and adolescent’s social trajectory, the influences and determinations of social inequality relationships and its respective juridical-social support from the protection special system. Henceforth, there is the compliance of the special custody as an expression of collateral for this full protection and absolute priority, guided by the right to freedom, equality, social inclusion, non-discrimination, proper legal process and human dignity. Considering the insertion of this juvenile in the System of Assurance of Child and Adolescent Rights, the infractional act, the social-educative measures – notably the internment one, the service policy, the socio-educational process and the egress condition, the objective becomes the framework of needed social protection, under the form of a special attention network, as an emancipatory condition, capable of conducting him or her to the respective rehabilitation. Diverse bibliographic and documental researches were used, besides the indication of data as situational milestones of national reality and, specially, of the State of Alagoas, for analysis and formulation of challenges and action strategies before confront policies. Keywords: adolescent; infractional act; internment measure; egress; full protection; public policy.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 15
CAPÍTULO 1 - A HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E AS RELAÇÕES DE DESIGUALDADES SOCIAIS ............................................... 18
1.1. A violência estrutural no Brasil e a trajetória da criança e do adolescente .................................................................................................. 18
1.2. Dados da realidade brasileira: a relação entre a pobreza resultante de direitos fundamentais irrealizados e a violência contra jovens ..................... 40
CAPÍTULO 2 - PROTEÇÃO INTEGRAL: DIMENSÃO E GARANTIA ASSECURATÓRIA ..................................................................................................... 47
2.1. Sistema Global de Proteção da Organização das Nações Unidas – ONU ..............................................................................................................48
2.2. Sistema Regional de Proteção Interamericano ...................................... 60
2.3. Sistema Nacional de Proteção ............................................................... 66
CAPÍTULO 3 - TUTELA ESPECIAL DE PROTEÇÃO JURÍDICO-SOCIAL ..... 90
3.1. O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente ......... 90
3.2. O Ato infracional e as medidas socioeducativas .................................... 95
3.3. A política de atendimento ao jovem em conflito com a lei .................. 100
3.3.1. Trajetória no Brasil ................................................................................. 104
3.3.2. Instrumento de proteção/intervenção: Plano Individual de Atendimento – PIA ............................................................................................. 108
3.3.3. Do orçamento público. Do orçamento da criança e do adolescente – OCA ..................................................................................................................... 110
3.3.4. Da Ordem Social ..................................................................................... 117
3.4. O Egresso ............................................................................................ 118
3.4.1. O egresso na perspectiva de ressocialização adotada na política de atendimento socioeducativo no Estado do Rio Grande do Sul .................. 123
CAPÍTULO 4 - PROTEÇÃO SOCIAL DO EGRESSO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO ............................................................... 126
4.1. Dados da realidade nacional sobre a proteção social do egresso da medida socioeducativa de internação ......................................................... 126
4.1.1. O Sistema Socioeducativo no olhar do Relatório CNMP/2015 ....... 126
4.1.2. Estudo sobre Reincidência Infracional do Adolescente no Estado de São Paulo ............................................................................................................ 133
4.1.3. Pesquisa no Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei – CNACL, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ .............................. 136
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4.2. Sistema de Atendimento Socioeducativo do Estado de Alagoas ......... 137
4.2.1. Dos Planos Decenais Estaduais de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul e de São Paulo ................................................................. 141
4.3. A responsabilidade do Estado e a efetivação do sistema de proteção social na perspectiva de ressocialização .................................................... 143
4.4. Rede de proteção e desafios da interinstitucionalidade e intersetorialidade ........................................................................................ 147
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 152
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 156
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INTRODUÇÃO
O projeto inicial desta pesquisa objetivava investigar a realidade dos
jovens em conflito com a lei, submetidos à medida socioeducativa de
internação frente ao direito subjetivo público da educação e a necessidade de
sua efetividade para uma proposta emancipatória. Contudo, a partir do estudo
e amadurecimento da temática promovida, vislumbramos a importância de
conhecermos mais sobre o egresso do Sistema de Atendimento
Socioeducativo e suas reais perspectivas de superação da condição de conflito
com a lei, capaz de conduzi-lo a uma vivência cidadã na sociedade brasileira,
notoriamente marcada pela irrealização ou realização precária dos direitos
fundamentais de crianças e adolescentes.
Assim, a ideia aqui será a construção de um entendimento a partir
do espelhamento de possíveis causas, do conhecimento do suporte jurídico-
social existente num Sistema Especial de Proteção infanto-juvenil, passando
pelo estabelecimento de instrumentos e ações estratégicas, com políticas
públicas voltadas à pretensa promoção de proteção social no processo de
reinserção sociofamiliar do adolescente egresso de medida que implica em
privação de liberdade.
No primeiro e segundo capítulos, serão delineados os aspectos
históricos e sociais atinentes ao adolescente em conflito com a lei no nosso
país, ao mesmo tempo que trará uma reflexão acerca da raiz da desigualdade
social e da violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Em
seguida, será desenhado o sistema especial de proteção de crianças e
adolescentes, em que há a definição do suporte jurídico-social relativo à
proteção integral, enquanto moldura definida tanto internacionalmente –
Sistema Global e Sistema Regional Interamericano, como na nossa Carta
Constitucional e nas correspondentes legislações infraconstitucionais. Esse
suporte configura-se regido substancialmente pelo devido processo legal, que
permeia os direitos infanto-juvenis e, em especial, é garantia na condição do
adolescente em conflito com a lei e egresso do sistema socioeducativo.
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Será tratada nesse contexto, acerca dos fundamentos e abrangência
do princípio da proteção integral, sua elevação à condição de garantia
fundamental dos direitos da criança e do adolescente, mormente daquele que
violou o direito de outrem, bem como acerca da definição da
corresponsabilidade da família, da sociedade e do poder público na promoção
e consecução dos direitos fundamentais e especiais daqueles que estão numa
fase de pessoa em desenvolvimento, e que, por isso mesmo, gozam da
proteção especial e da primazia de seus interesses.
O terceiro capítulo seguirá com a exposição do Sistema de Garantia
de Direitos da Criança e do Adolescente e a respectiva tutela judicial especial;
na sequência serão tratados o ato infracional e o sistema socioeducativo em
que se inserem as medidas socioeducativas, em especial a medida de
internação, seu fundamento, requisitos, princípios, implicações e perspectivas,
tendo como contraponto a respectiva proposta de responsabilização, enquanto
face ambígua de uma mesma relação que também intenta à promoção da
cidadania mediante a garantia dos direitos dos adolescentes internos, bem
como dos egressos.
Adiante, será tratada a política de atendimento à criança e ao
adolescente no Brasil, sua trajetória, passando do assistencialismo,
institucionalização e repressão à concepção da proteção integral, garantia de
direitos e prioridade absoluta, bem como as correlatas definições Constitucional
e legais atinentes a um processo democrático e participativo, pautado na
articulação em rede de órgãos governamentais e não-governamentais com
destaque à descentralização político-administrativa e à municipalização do
atendimento.
Evidencia-se, neste momento, uma oportunidade para a reflexão
acerca dos instrumentais de proteção e intervenção disponíveis, sendo
amadurecida a importância do Plano Individual de Atendimento – PIA e a
necessária apropriação do conhecimento sobre o Orçamento Público, em
especial o referente à área prioritária da criança e do adolescente, sua
destinação, interesses e possíveis inferências num permanente diálogo com o
compromisso dos atores do Sistema de Garantias de Direitos.
Haverá, outrossim, a fundamental verificação da condição de
egresso, observada a evolução de sua concepção e tratamento legal
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dispensado, bem como será objeto de reflexão a existência de políticas e
programas correspondentes no país, seguido no quarto capítulo de indicações
de estudos e resultados de pesquisas.
Neste último capítulo indicado, dados de diversas realidades serão
demonstrados, diagnósticos sociais expostos, os quais permitirão as
respectivas análises e ponderações acerca das possibilidades de realizações
de ações estratégicas que venham a afiançar a pretensa concretização de
proteção social nas situações de vulnerabilidades e riscos psicossociais,
notadamente na condição de egresso da internação proveniente do sistema de
atendimento socioeducativo, sendo enfrentadas as multidimensões da
territorialização e da complexidade do contexto familiar e comunitário em que o
indivíduo está inserido, bem como os desafios da interinstitucionalidade e
instersetorialidade.
Para a elaboração deste estudo, vamos utilizar tanto informações
quantitativas, como recursos qualitativos, possuindo como base uma
interpretação dinâmica, em que serão feitas pesquisas bibliográficas, de
autores nacionais e estrangeiros, não só no campo da ciência jurídica, mas de
outras áreas do conhecimento, com a revisão de literatura e dos fundamentos
usados, o que exigirá a produção de um texto argumentativo, numa sequência
ordenada quanto ao objeto e objetivo propostos.
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CAPÍTULO 1 - A HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E AS RELAÇÕES DE DESIGUALDADES SOCIAIS
1.1. A violência estrutural no Brasil e a trajetória da criança e do adolescente
Primeiramente uma reflexão sobre a desigualdade social e sobre a
violência, envolvendo adolescentes no Brasil, pressupõe a priori um olhar
sobre nosso processo de evolução econômica, como determinante e/ou
condicionante ativo, que impõe os contornos do desenvolvimento das relações
sociais, políticas e ideológicas na nossa sociedade, especial palco de
demandas em que fenômenos como submissão, opressão, isolamento,
exclusão, segregação, discriminação, marginalização e outras formas de
violência ocorreram e ainda ocorrem, as quais, por sua vez, traduzem-se em
violações dos direitos humanos.
Assim, é de ser esclarecido, como ponto referencial desta primeira
análise, o pensar sobre o longo caminho histórico de desenvolvimento e
evolução da cidadania no Brasil, em que avanços e retrocessos são
apontados, desde a Colônia até o período de redemocratização do país,
sempre numa correlação dos respectivos contextos econômicos, políticos e
sociais, perpassados pelo jogo de interesses entre grupos dominantes e
grupos dominados.
Nesta perspectiva, esta investigação nos leva a possíveis causas
apontadas e implicações identificadas, num movimento dialético que vai seguir
um rumo próprio de desenvolvimento capitalista no Brasil, diverso da dinâmica
da evolução europeia, mas a partir de peculiaridades marcantes, como a
passagem da aristocracia agrária com seu estatuto colonialista para o
capitalismo com sua caracterização, através das novas formas de atividades
econômicas, divisão de classes sociais, desenvolvimento urbano, crescimento
de uma economia interna, e, assim, todo um esforço voltado à criação de um
Estado Nacional.
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As mudanças, por óbvio, não ocorreram repentinamente, mas
paulatinamente, através das brechas do sistema estruturado anteriormente e
diante do citado jogo de interesses presente à superestrutura deste. Desse
modo, vão sendo definidas, a partir do modo de produção, a organização e
funcionamento da sociedade, donde hão de vir ações e posições políticas
capazes de oferecerem suporte à manutenção ou modificação deste mesmo
sistema, e onde serão, muitas vezes, escamoteadas as reais intenções,
através de formas de representações de acordo com os interesses
hegemônicos do grupo dominante.
Nesta senda dimensiona Iamomoto:
O processo capitalista de produção expressa, portanto, uma maneira historicamente determinada de os homens produzirem as condições materiais da existência humana e as relações sociais através das quais levam a efeito a produção. Neste processo se reproduzem, concomitantemente, as ideias e representações que expressam estas relações e as condições materiais em que se produzem, encobrindo o antagonismo que as permeia [...]. Na sociedade de que se trata, o capital é a relação social determinante que dá a dinâmica e a inteligibilidade de todo o processo da vida social1.
No Brasil, o processo de instalação do capitalismo foi se firmando a
partir dos contornos existentes no estatuto colonialista, ainda que num molde
diverso da definição tradicional deste e, somente num momento posterior,
eclodem mudanças advindas do avassalador desenvolvimento industrial. Desta
forma, através do estabelecimento de novas relações de produção, seguiram-
se as redefinições atinentes às relações de poder, presentes a todas as formas
de organização social e que quase sempre trazem consigo a capacidade de
dissimulação ideológica de interesses.
Assim, na primeira forma de organização da sociedade brasileira, no
Brasil Colônia, o domínio interno, basicamente, integrava as forças
oligárquicas, calcadas em privilégios advindos do desenvolvimento econômico
voltado para a exportação, com benefícios evidentes à Coroa Portuguesa, mas
que representavam legitimamente benesses aos donos dos meios de
1 IAMAMOTO, Marilda Vilela; CARVALHO, Raul de. Relações Sociais e Serviço Social no
Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 4. Ed. São Paulo: Cortez; [Lima, Peru]: CELATS, 1985, p. 30.
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produção. Estes tinham um poderio superior representado econômica e
socialmente, estando em posição de domínio na relação senhorial, em que
negros eram trazidos para a Colônia para servirem como mão de obra escrava
na exploração agrária - inicialmente na monocultura da cana-de-açúcar -, além
de serem espoliados de qualquer condição humana de subsistência digna.
Ao contrário, podemos aferir que tal condição escravocrata com
suas representações, dentre estas a utilização de práticas violentas, não era
objeto de interesse e de discussão quanto a possíveis modificações, já que era
uma sociedade estruturada em estamentos e a relação de poder e dominação
era escravagista com todas as suas possíveis implicações.
De acordo com Comparato 2 , “há um simbolismo advindo da
mitologia grega entre a relação de poder e força ou violência” e, desta maneira,
adverte para o que os pensadores clássicos chamam de “vínculo estreito que
une o poder à força ou violência”.
Nesta relação de dominação senhor/escravo, havia o objetivo de
impor uma submissão e obediência desmedidas às ordens então definidas,
numa hierarquia previamente estabelecida e engessada em bases que tendiam
a minar quaisquer possíveis formas de organização política dos escravos que
porventura tivessem pretensões referentes a terem uma condição de vida
diversa daquela a que estavam submetidos.
Desse modo, fica evidenciado que os senhores encontravam
legitimação para agirem em nome da manutenção e reprodução desta relação
(quer pela omissão ou ideia de aceitação existente, quer pelo temor ou pela
caracterização proveniente da própria submissão), através do emprego da
violência, da segregação, da não promoção de qualquer possibilidade de
acesso à educação, enfim, da imposição à submissão dos escravos às
diversas formas degradantes de sobrevivência, sempre permeadas por
proibições e, desta forma, qualquer desrespeito seria passível de
“disciplinamento”, castigo e punição.
Outrossim, é importante destacar, como marco no campo do
desenvolvimento da relação de poder na sociedade brasileira, a existência de
2 COMPARATO, Fábio Konder. A Oligarquia Brasileira: visão histórica. São Paulo: Editora
Contracorrente, 2017, p. 12.
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21
uma verdadeira coligação oligárquica, conforme assinalado por Comparato3, na
união entre os controladores da produção e distribuição dos produtos para
serem exportados com a chamada burocracia estatal, formada através da
mercantilização de elevados cargos públicos, o que traduzia-se em uma
associação de interesses, ainda que de pequenos grupos, os quais detinham o
poder nas mãos, sempre em detrimento do interesse público, voltado à
satisfação dos anseios do povo, este com o rótulo de “grande ausente deste
regime”, ou seja, a associação de pequenos grupos dominantes, detentores de
privilégios e interesses comuns, numa certa relação de apoio e dependência,
sempre foi a regra como traço marcante na formação da nossa sociedade. Se
necessário, articulam-se e aliam-se na consecução de interesses pessoais.
Nas Colônias, nos dizeres de Comparato4, a fidalguia confundia-se,
de uma maneira geral, com a riqueza pessoal, e “essa estreita ligação da
riqueza com o prestígio pessoal tem sido, desde sempre, um traço marcante da
sociedade brasileira”, revelando-se, desta forma, mais um fermento da nossa
relação de poder.
Na mesma linha de raciocínio, temos como um mito presente na
mentalidade coletiva e nos costumes vigentes no Brasil a concepção de que há
um distanciamento “natural” entre os integrantes do nominado grupo social
dominante e o grupo dos dominados e, por via de consequência, haveria a
impossibilidade de uma comunhão entre estes, guardando sempre viva a
correlação direta com os institutos do latifúndio e o da escravidão e suas
respectivas representações5.
Diante dessas premissas de dominação, de associação para a
promoção e a perpetuação de interesses e de privilégios, revelada está a
incidência de uma dinâmica estratégica de ampliação de proteção, manutenção
e reprodução do status quo, ao tempo em que são expostos e utilizados
mecanismos que fomentam o processo de desigualdade e de exclusão que,
por sua vez, está presente em todo o processo de desenvolvimento social no
Brasil. Assim, a massa da população brasileira não estava satisfeita e
protegida, já que não fazia parte do contexto de privilégios estamentais,
3 COMPARATO, Fábio Konder. A Oligarquia Brasileira: visão histórica. São Paulo: Editora
Contracorrente, 2017, p. 18-19. 4 Ibid., p. 45.
5 Ibid., p. 29.
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tampouco da própria representação da sociedade civil, uma vez que imperava
como base uma construção racial, social e econômica, estabelecida a partir do
restrito estatuto da Colônia.
Neste contexto, havia a criança e o adolescente que, como
preleciona Rizzini6, sempre existiu no decorrer da nossa história o objetivo de
exercer um controle em face deles, tendo sido realizadas ações nesse sentido
no Período Colonial, primeiramente sob a forma de catequização das crianças
índias pelos Jesuítas, representando as determinações da Corte Portuguesa e
da Igreja Católica e, depois, mediante a importação africana de mão de obra
escrava, em que as crianças filhas de escravos viviam a situação decorrente da
escravidão com todas as suas representações e mazelas junto às suas mães
escravas.
Góes e Florentino realçam que:
As crianças que as fazendas compravam não eram o principal objeto de investimento senhorial, mas sim as suas mães, que com eles se agregavam aos cafezais, plantações de cana-de-açúcar [...]. Poucas crianças chegavam a ser adultos [...], os escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos cativos falecidos, dentre estes, dois terços morriam antes de completar um ano de idade, 80% até os cinco anos. Aqueles que escapavam da morte prematura iam, aparentemente, perdendo os pais [...]7.
Mais adiante, Góes e Florentin 8 denominam haver um
“adestramento” de crianças escravas, referindo-se às condições a que eram
submetidas: “o adestramento da criança também se fazia pelo suplício. Não o
espetaculoso, das punições exemplares (reservadas aos pais), mas o suplício
do dia a dia, feito de pequenas humilhações e grandes agravos”.
Outra situação que vai sendo gerada no Brasil, inicialmente no
decorrer do Período Colonial e posteriormente sequenciada pelos demais
períodos da história, foi a existência das chamadas Rodas dos Expostos nas
6 RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (Org.). A arte de governar crianças: a história das
políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 17. 7 GÓES, José Roberto; FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas, crianças dos escravos. In:
PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2018, p. 179-180. 8 Ibid., p.185.
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Santas Casas de Misericórdia, as quais abrigavam crianças enjeitadas e
abandonadas pelas famílias, tendo sido criada a primeira Roda na Bahia, em
17269.
Há um importante relato em relação às crianças que ficavam nestas
Casas de Expostos, a princípio seguindo o regimento lusitano, até os sete
anos, sabendo-se que alguns meninos foram enviados para trabalharem em
arsenais ou em navios mercantes10.
As marcas da dinâmica colonial, notadamente relativas ao
escravismo e às desigualdades estruturais, vão se perpetuando no decorrer da
história brasileira – afinal foram três séculos de existência, especialmente
quando analisamos do desenvolvimento da cidadania no Brasil e suas relações
econômico-sociais e, desta forma, notam-se os reflexos nos tempos atuais,
exemplificados adiante nas desigualdades geradoras de violência social, com
demarcação de territorialização, exclusão e consequente marginalização de
crianças e adolescentes, em sua maioria, pobres e negros.
Batista, quanto ao tema, faz menção de que:
[...] a violência é um elemento constitutivo da realidade social brasileira. Ao trabalho compulsório do negro soma-se a despersonalização legal do escravo; o escravo era mercadoria, não era sujeito [...]. Como a transição para o capitalismo no Brasil não destitui a elite agrária, a modernização se dá ‘pelo alto’, pela via conservadora. Sobrevivem intactos até hoje a despersonalização legal das massas negras e pobres urbanas e o desprezo pelo trabalho manual no coração das nossas elites11.
Segundo Fernandes 12 , sequenciadamente, no processo de
evolução histórica e constituição de um Estado nacional, houve modificações
na “estrutura colonial” devido à implantação da “estrutura imperial”, não
significando, com isso, o surgimento de algo novo, apesar da Independência,
9 RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (Org.). A arte de governar crianças: a história das
políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 19; VENÂNCIO, Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. 7.
ed. São Paulo: Contexto, 2018, p. 196.
10 Ibid.
11 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de
Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 38. 12
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1976, p. 32-33, 43.
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24
mas a existência de ajustes e acordos no tocante à ampliação de domínio, em
que o “senhor colonial” passa a ser o “senhor-cidadão”, tão somente,
associando politicamente privilégios sociais, sem, contudo, abarcar
preocupações relativas à situação política de igualdade e à própria defesa dos
direitos dos cidadãos em geral. Tudo passando pelo interesse econômico-
financeiro.
Passagem importante e ilustrativa, de acordo com Fernandes, que
segue neste sentido:
[...] Pela própria dinâmica da economia colonial, as duas florações do ‘burguês permaneciam sufocadas, enquanto o escravismo, a grande lavoura exportadora e o estatuto colonial estiverem conjugados. A Independência, rompendo o estatuto colonial, criou condições, de expansão da burguesia, e, em particular, de valorização social crescente do “alto comércio” [...]. Por fim, desse núcleo é que partiu o impulso que transformaria o antiescravismo e o abolicionismo numa revolução social dos ‘brancos’ e para os ‘brancos’; combatia-se, assim, não a escravidão em si mesma, porém, o que ela representava como anomalia, numa sociedade que extinguira o estatuto colonial, pretendia organizar-se como Nação e procurava, por todos os meios, expandir internamente a economia de mercado (sic)13.
Assim, fica evidenciado, em conformidade com o já destacado, que,
ao fim do período colonial, a grande massa era excluída dos direitos civis e
políticos e que o estabelecimento da monarquia constitucional também não
significou avanços neste campo, mormente pela manutenção da escravidão14,
que trouxe como significado evidentes restrições aos direitos civis.
Nesse sentido, Carvalho (2016, p. 50-51) especifica que:
A herança colonial pesou mais na área dos direitos civis. O novo país herdou a escravidão, que negava a condição humana do escravo, herdou a grande propriedade rural, fechada à ação da lei, e herdou um Estado comprometido com o poder privado [...]. A escravidão só foi abolida em 1888, a grande propriedade ainda exerce seu poder em algumas áreas do país e a desprivatização do poder público é tema da agenda atual de reformas (sic)15
13
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1976, p. 18-19. 14
A Lei da Abolição somente ocorreu em 1888, pela Lei Áurea. 15
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 50-51.
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25
Quanto aos direitos políticos, apesar da permissão ao voto do
analfabeto, estes também eram carreados de restrições, como a proibição do
voto feminino e a referida situação dos escravos, que não eram sequer
considerados cidadãos, afora outras limitações, como o próprio procedimento
das eleições. Substancialmente assinala Carvalho que:
Os brasileiros tornados cidadãos pela Constituição eram as mesmas pessoas que tinham vivido os três séculos de colonização nas condições que já foram descritas. Mais de 85% eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto do governo, um alvará da justiça, uma postura municipal. [...] mais de 90% da população vivia em áreas rurais, sob o controle ou a influência dos grandes proprietários. Nas cidades, muitos votantes eram funcionários públicos controlados pelo governo16.
A questão da escravidão era extremamente séria e imbricada às
nossas raízes, pois, era exercida em todas as províncias e por diversas
pessoas, até as consideradas pobres chegavam a alugar como fonte de renda
seu único escravo, além dos libertos que chegavam a ter também escravos17.
Os negros fugiam das grandes propriedades e procuravam um
refúgio, um esconderijo, um local em que se sentissem abrigados e seguros,
pela total ausência de dignidade vivenciada, espoliados da condição humana e
cultural, dando início à formação de guetos, organizados sob a forma de
comunidades quilombolas, que também faziam o papel de resistência ao longo
da história e, por isso mesmo, foram alvos de inúmeras perseguições e
destruições - um dos mais conhecidos foi o Quilombo dos Palmares, no Estado
de Alagoas18.
Acrescenta Comparato 19 , sobre a utilização da capoeira como
estratégia de sobrevivência dos negros, que dissimulavam se tratar de uma
16
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 37-38. 17
Ibid., p. 54. 18
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 53. 19
COMPARATO, Fábio Konder. A Oligarquia Brasileira: visão histórica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2017, p. 32.
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26
dança, quando, na realidade, tinha uma significação de treinamento para
defesa e resistência20.
Aspecto fundamental a ser observado e destacado é que esta
restrição de liberdade dos negros escravos teve como característica, no
processo de evolução histórica do Brasil, a promoção da respectiva
estigmatização de sua etnia, de um desprestígio e de um preconceito que
parece perseguir a indigna condição de perpetuação da desigualdade. Prova
histórica de tal fato é que por ocasião da abolição da escravidão, os ex-
escravos não foram inseridos em nenhuma política inclusiva de direitos
fundamentais, correspondente à condição de recém-libertos. Ou seja, a
desigualdade, com suas repercussões sociais e políticas determinantes,
revelam, através do preconceito e discriminação subjacentes, a dinâmica da
relação de poder em uma sociedade excludente.
Nessa esteira, Carvalho revela que:
No Brasil, aos libertos não foram dadas nem escolas, nem terras, nem empregos [...]. As consequências da escravidão não atingiram apenas os negros. Do ponto de vista que aqui nos interessa – a formação do cidadão -, a escravidão afetou tanto o escravo como o senhor. Se o escravo não desenvolvia a consciência de seus direitos civis, o senhor tampouco o fazia. O senhor não admitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si próprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A libertação dos escravos não trouxe consigo igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o desfavorecimento e humilhação de muitos21.
Neste contexto, tínhamos, inclusive, a criança escrava que ficava
nas mãos de seus senhores mesmo depois da Lei do Ventre Livre, em 1871,
pois estes ainda permaneceriam com o direito de mantê-la até os 14 anos e
seriam ressarcidos dos respectivos gastos, valendo-se de seu trabalho até os
21 anos, ou a entregariam ao Estado, mediante indenização22.
20
“De fato, a capoeira foi, inicialmente, uma forma de defesa dos quilombolas no meio rural. Nos espaços controlados pelo senhor, todavia, os escravos tinham necessidade de dissimular essa característica de combate corporal da capoeira, apresentando-a como forma de dança […].” 21
CARVALHO, José Murilo de, op. cit., p. 57-58. 22
RIZZINI, Irene. O Século Perdido: Raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 18.
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27
Venâncio23 realça também situação de utilização da criança e/ou
adolescente até em situação de guerra no Período Imperial, numa revelação de
violação de direitos, ainda que se argumentasse a possibilidade de lhes serem
ministrados algum estudo e/ou aprendizagem – primeiro eram crianças
enviadas pelas Casas de Expostos, depois começava a haver o recrutamento
de crianças carentes enviadas pelos pais ou tutores e algumas presas por
vadiagem, como se observa em suas palavras:
Em uma primeira fase, após a independência, recrutaram-se crianças para a Marinha, valorizando, no entanto, a formação prévia daqueles que tinham estudado nas Companhias de Aprendizes Marinheiros; em um segundo momento, marcado pela Guerra do Paraguai, os burocratas imperiais assumiram uma postura arcaica, enviando inúmeras crianças sem treinamento algum aos campos de batalha [...]24.
As leis que regiam as Companhias não eram claras quanto à idade
dos garotos e, segundo documentação correlata constante no Arquivo
Nacional, a Instrução para o alistamento de voluntários de recruta para o
serviço da Armada, datado de 14/04/1855, afirmava-se que “os aprendizes
marinheiros devem ser cidadãos brasileiros de 10 a 17 anos” e, mais adiante,
há uma ressalva: “poder-se-á também admitir menores de dez anos que
tenham suficiente desenvolvimento físico para os exercícios do aprendizado”25.
Nesse sentido, outro equívoco já despontava neste Período Imperial,
posto que os “carentes” e os “delinquentes” seriam encaminhados, enquanto
recrutados, para um mesmo alojamento, numa prática institucional que
denotava a ausência de compreensão das condições e necessidades de
atenções e intervenções diferenciadas26.
Na primeira Constituição brasileira, outorgada em 25 de março de
1824, não houve nenhuma especificação quanto à proteção da criança nem do
adolescente. Havia sim, restrições a diversos direitos para os indivíduos em
geral, como, por exemplo, a imposição de restrição do direito de votar, que se
23
VENÂNCIO, Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. 7.
ed. São Paulo: Contexto, 2018, p. 192-193.
24 Ibid.
25 Ibid., p. 198.
26 Ibid.
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28
sujeitava a condições pessoais como a alfabetização, ser possuidor de uma
renda mínima para seu exercício, dentre outras. Em seu Título 8o, foram
definidas “garantias de direitos civis e políticos”, mas não raro havia, na
sequência, uma restrição, vista claramente no direito a não perseguição
religiosa, desde que respeitasse a do Estado e não ofendesse a moral pública
(artigo 179, inciso V). Neste artigo, inciso XVIII, há a determinação para a
posterior organização de um Código Criminal. Em suma, a caracterização
maior desta Constituição era a atribuição de legitimidade à vastidão de
atribuições do Poder Moderador.
Registre-se que quanto à menoridade e responsabilidade penal dos
“menores”, o Código do Império de 1831 previa, em seu artigo 10, que “[...] não
se julgarão criminosos [...] os menores de 14 anos”; contudo, em seu artigo 13,
estabelecia que os garotos que, mesmo não atingindo a idade mínima de 14
anos, tivessem cometido crimes, com “discernimento”, ou seja, de forma
consciente, deveriam ser recolhidos à Casa de Correção, pelo tempo que o
Juiz determinasse, contanto que o referido recolhimento não exceda a idade de
17 anos.
Havia então, o estabelecimento da menoridade aos 14 anos, com
ressalva de condição subjetiva a determinar encaminhamento restritivo do
direito à liberdade. Decisão nas mãos do Juiz, em que a Jurisprudência, à
época, procurava nortear os casos para aferir o “discernimento”27.
Isto é, o subjetivismo empreendido sequer levava em conta qualquer
manifestação técnica específica, além de representar uma extrema tendência
de centralização de decisão nas mãos de um Juiz, característica que vai
acompanhar a história da criança e do adolescente nos fins do século XIX, e
que, desta forma, permeava a áurea republicana que se desenhava no Brasil,
sendo também característica que eclodia em todos os continentes –
especialmente o europeu e americano, ainda que cada um tivesse
peculiaridades a serem consideradas. Era uma situação que se configurava
como uma “onda de preocupação mundial com o aumento da criminalidade
infanto-juvenil”.
27
SANTOS. Marco Antônio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século XX. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2018, p. 216.
-
29
Nesta mesma época, no Brasil, ecoavam essas inquietações
internacionais, com a peculiaridade de que o país vivia um momento histórico
marcado pela busca de uma condição emancipadora, de uma identidade
nacional28.
Desta forma, com a Proclamação da República, em 1889, de igual
sorte, sob outras roupagens, o domínio sobre as crianças foi exercido durante
muitas décadas, na busca de perpetuação de um controle, através de políticas
- detalhadas mais adiante, que as aprisionavam na condição de objeto de
intervenção estatal.
O Código Penal da República, em 1890, como o do Império, não
considerava criminosos os “menores de 09 anos completos”, mas trazia uma
mudança na forma de punição daqueles que, tendo entre 09 e 14 anos,
tivessem agido com “discernimento”, em que seriam “recolhidos a
estabelecimentos disciplinares industriais”, pelo tempo que o Juiz
determinasse, não podendo ultrapassar os 17 anos. A ideia de recuperação
passa agora por uma pedagogia de trabalho obrigatório. E, finalmente, aqueles
entre 17 e 21 anos teriam uma penalidade sempre atenuada.
Isso porque nas duas primeiras décadas, com o avanço da
industrialização, urbanização e correspondente aumento da criminalidade, com
a participação de “menores”, além da mencionada influência externa, passava
a ser instituída a ideia da necessária promoção e “recuperação de menores”. O
cenário também se apresentava marcado pela presença de crianças carentes,
“menores nas ruas”, provenientes de famílias sem a assistência devida.
Méndez29destaca inclusive que, nesta época, havia uma verdadeira
“cruzada moral” internacional, em que os chamados Reformistas procuravam
uma construção social mais adequada para a condição da infância e
adolescência, sob o manto da necessária proteção-repressão, quando então foi
28
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 81-88. 29
MÉNDEZ, Emílio García. La legislación de menores en América Latina: una doctrina en situación irregular. In: Derecho de la infancia/adolescencia en América Latina: de la situación irregular a la protección integral. III Seminario Latino Americano. Universidad del Zullia Vicerrectorado Académico (1997) – SERBILUZ – LUZ Repositorio Académico, p. 13-14. Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2018.
http://www.produccioncientifica.luz.edu.ve/index.php/capitulo/article/download/4084/4083
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30
instituído o “Tribunal de Menores” 30 . Contudo, a ideia era o exercício do
controle sobre esse público referenciado, em que a defesa da sociedade seria
o último parâmetro de legitimação das ações. Em verdade, houve o ensejo
para o nascimento da cultura de judicialização das políticas sociais
complementares, na tentativa de suprir as deficiências das políticas sociais
básicas.
Assim, no Brasil, surge a correlata legislação, o Código de Menores
de 1927, que levou o nome do primeiro Juiz da Infância – Código Mello Mattos,
e um tribunal específico, 1o Juizado da Infância e da Juventude, em que
passou a haver uma “justiça de menores”, uma “justiça-assistência”.
Importante evidenciar que havia uma situação de abandono material
e moral desse público específico e, assim, existia uma classificação
correspondente, como sendo o “abandonado”, o “desvalido”, o “vadio”, o
“pervertido”, ou “aquele em perigo de o ser”, existindo, então, uma mobilização
social para “salvar as crianças” ou para “corrigir os menores” e também para
prepará-los “para e pelo trabalho”, ou seja, passariam a ser produtivos e seriam
“regenerados”31.
Em suma, segundo Rizzini 32 , o “menor” era concebido como
categoria jurídica e socialmente construída para designar a infância pobre –
abandonada (material e moralmente), e o delinquente.
Portanto, evidenciava-se que não havia uma conotação de
promoção de igualdade, ao contrário, havia uma dicotomia promovida entre a
“infância de crianças em geral” e a “infância de crianças pobres e de
delinquentes” – “menores”; estas sem acesso aos meios que satisfizessem
suas necessidades básicas, a requererem, outrossim, encaminhamentos e
tratamentos diversos, sendo competente para fazer tais encaminhamentos e
encontrar as supostas soluções, a figura central do Juiz de Menores.
Diante desse quadro de realidade descrito, Rizzini33 aponta que a
partir de legislação específica, de 1927, contemplada com 231 artigos, que
tratavam de diversos aspectos atinentes à criança e ao adolescente, o Juiz de
30
O 1o Tribunal foi criado em Illinois em 1899.
31 RIZZINI, Irene. O Século Perdido: Raízes Históricas das Políticas Públicas para a
Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 22-23. 32
Ibid., p.134. 33
Ibid., p. 133.
-
31
Menores passava a ser legitimado a agir também na área social, contudo,
inserido na moldura que definia os “menores” já assinalados e, assim,
determinava, nesta perspectiva, a adoção de medidas “protetivas” e
assistenciais com o intuito de “resolver” o problema desses “menores”,
enveredando por mecanismos “tutelares”, de “guarda”, “vigilância”, “educação”,
“preservação” e “reforma”.
Ressalva necessária a ser feita é a de que a referida “educação”
era concebida no seu aspecto amplamente restrito, como “antídoto à
ociosidade e à criminalidade e não como instrumento que possibilitasse
melhores chances de igualdade social”34.
Surge então, de imediato, a determinação legal para o fechamento
das “Casas de Expostos”, que abrigavam as crianças abandonadas e
desvalidas e promoviam o encaminhamento destas para novas famílias, devido
ao elevado índice de mortalidade infantil nestes ambientes, bem como
corroborando a política higienista que estava sendo protagonizada por setores
de saúde da sociedade neste momento - houve resistência e no Rio de Janeiro
funcionou uma Unidade até 1935, em São Paulo até 194835.
Neste sentido, incidiriam as possibilidades de encaminhamentos
diversos dos “menores” pela autoridade judicial para “asilos”, “escolas de
prevenção ou preservação”, “estabelecimentos industriais”, ou ainda
“patronatos agrícolas” (meios rurais) no tocante aqueles material e moralmente
abandonados; e para os “delinquentes”, os respectivos encaminhamentos eram
para as chamadas “escola de reforma”, sempre com o resgate pela “educação”
e pelo “trabalho” – este desde a infância36.
Carvalho 37 demarca que, de 1889 até 1930, fim da Primeira
República, havia o que chamou de “uma cidadania em negativo” (com a
ressalva dos movimentos abolicionistas e o Tenentismo), predominando uma
união oligárquica dos grandes Estados, sobretudo São Paulo e Minas Gerais, e
um domínio e poderio dos chamados “Coronéis”. Assim, práticas eleitorais
fraudulentas prevaleciam, sem a possibilidade de livre participação popular nos
34
RIZZINI, Irene. O Século Perdido: Raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011p. 144. 35
Ibid., p. 120. 36
Ibid., p. 20, 22, 26. 37
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 47, 50, 62.
-
32
eventos políticos nacionais, por negação de direitos civis, tendo havido uma
herança de um período de escravismo (abolição em 1888), de propriedade
rural fechada à ação da lei e um Estado comprometido como poder privado,
levando a negação do próprio aparelho da justiça.
A Constituição Republicana de 1891 retrocedeu na questão da
obrigatoriedade da educação primária, prevista na de 1924, e proibia a
regulamentação quanto ao trabalho, havendo avanço, contudo, no tocante ao
reconhecimento dos sindicatos rurais e urbanos. Exceto o que fora
regulamentado no Código de Menores de 1927, não houve maior
expressividade na área da infância38.
O Decreto 16.272, de 20 de dezembro de 1923, alterou a maioridade
penal para 14 anos de idade.
A partir de 1930, já se podia dizer da existência de um povo
organizado politicamente num sentimento nacional, com uma aceleração nas
mudanças sociais e políticas, como assevera Carvalho39. Nesse sentido, foi
criada uma legislação trabalhista e previdenciária, completada em 1943, com a
instituição da Consolidação das Leis do Trabalho, tendo sido seguida de um
avanço na legislação social. Quanto aos direitos políticos, estes foram mais
truncados, devido à alternância entre fases ditatoriais, especialmente o Estado
Novo de 1937 até 1945, e democráticas, em especial o período pós 1945, que
posteriormente fora interrompido pelo Golpe de 1964, só retornando, enfim, a
chamada redemocratização em 1985.
Notoriamente houve restrições aos direitos civis e políticos nos
períodos ditatoriais, especialmente o exercício do direito à liberdade, o direito à
liberdade de expressão e de organização, consagrando grandes retrocessos
históricos sob a égide de estado de exceção.
Entretanto, em 1932, foi criado o primeiro Código Eleitoral, sendo
instituído o voto secreto e foi criada uma Justiça Eleitoral, além do direito do
voto da mulher, o que representou avanços da cidadania política, isto no início
da Era Vargas.
38
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 67-68. 39
Ibid., p. 91.
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33
O Código Penal de 1940, utilizando apenas o critério biológico,
alterou a imputabilidade penal para 18 anos, como se verifica em seu artigo 27,
definindo a sujeição do adolescente às normas da legislação especial.
Nesse sentido, se pensarmos em direitos sociais, estes também
foram alvos do jogo estratégico de interesses de governos que se sucederam
na República brasileira, com fins de manutenção no poder, sendo traços
marcantes desta utilização, o populismo, o autoritarismo, a repressão, o
paternalismo, o clientelismo e outras formas de reprodução da condição de
dependência da população em relação às benesses e concessões advindas do
governo com sua política compensatória, sendo exigida, em contrapartida,
“obediência” ao comando hierárquico promovedor da ordem e desenvolvimento
nacional.
Na Constituição de 1934, pela primeira vez numa Constituição
brasileira, foram incluídas normas de proteção e amparo à criança, como a
proibição do trabalho para o menor de 14 anos e a proteção à maternidade,
sendo destinado o percentual de 1% das rendas dos diversos entes
representativos do poder público. Tal proteção é ampliada à luz da Constituição
de 1946, que contemplou a descrição de preceitos mínimos a serem
observados na legislação trabalhista, ao passo que reafirma a vedação do
trabalho para menores de 14 anos e o noturno e em indústrias insalubres para
menores de 18. Ainda traz normas de proteção à criança e amparo à família de
prole numerosa, com obrigatoriedade da assistência à infância e à
adolescência.
Quanto à Constituição de 1937, “dentro de sua política
intervencionista, o Estado colocou a infância e a juventude sob sua direta
proteção [...]”. Uma das maneiras encontradas para proporcionar o pleno
desenvolvimento de crianças e jovens foi fornecer compensações para famílias
tidas como numerosas, na forma da lei. Registre-se ainda, que na vigência
desta Constituição foi criado, no âmbito do Ministério da Educação e Saúde, o
Departamento Nacional da Criança para coordenar as atividades relativas à
proteção à maternidade, à infância e à adolescência40.
40
COELHO, Bernardo Leôncio Moura. A proteção à criança nas constituições brasileiras: 1824 a 1969. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 35, n. 139, jul./set., 1998, p. 102-103.
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34
Já a Constituição de 1969, segundo Coelho 41 , foi tida como “a
Constituição mais autoritária da história constitucional brasileira, pois, apesar
de conter uma longa enumeração dos direitos individuais (art. 153), detinha
poderes de supressão desses mesmos direitos.” Enquanto a Constituição de
1946 adotava a idade mínima de 14 anos para o trabalho, na de 1969 houve a
redução para 12 anos. Já seu artigo 175 prescrevia a proteção à infância e à
adolescência, sem, contudo, se seguir a respectiva regulamentação, o que
tornava prejudicada sua aplicação.
Nesta mesma sequência temporal, aqui explicitada, em referência
aos textos constitucionais da República, encontram-se as políticas voltadas à
infância, as quais correspondiam aos interesses econômicos, políticos e
ideológicos dominantes em cada momento do desenvolvimento histórico da
nossa cidadania, tendo então se notabilizado, como se constata, a existência
de política de recolhimento e segregação de “menores”, sob o manto
idealizador da proteção e assistência.
Rizzini42 assim assinala que:
Com a crescente intervenção do Estado na assistência, a partir da década de 1920, tem início a formalização de modelos de atendimento, não se constatando, no entanto, diminuição da pobreza ou de seus efeitos. Assim, a pretensa racionalização da assistência, através da inclusão de especialistas do campo social, longe de concorrer para uma mudança nas condições concretas de vida da criança e de sua família, foi muito mais uma estratégia de medicalização e criminalização da pobreza. O caso do Serviço de Assistência ao Menor (SAM), estabelecido no início dos anos 40, é exemplar neste sentido [...]. O mesmo se passou com a FUNABEM. Criada na década de 60 em substituição ao SAM, ao final dos anos, 80, fazia a sua própria autocrítica, condenando o modelo ‘correcional-repressivo’, adotado nas duas décadas de sua vigência.
Rizzini 43 também explicita que na década de 20 é instituída a
legitimação de intervenção estatal na família, através da criação do instituto da
suspensão do então “pátrio poder” e da busca e apreensão dos “menores” em
abandono pelas famílias pobres.
41
COELHO, Bernardo Leôncio Moura. A proteção à criança nas constituições brasileiras: 1824 a 1969. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 35, n. 139, jul./set., 1998, p. 107. 42
RIZZINI, Irene. O Século Perdido: raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 191. 43
Ibid., p. 25.
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35
Assevera ainda que, em 1941, em pleno Estado Novo, o SAM
promovia o encaminhamento dos já declinados “menores abandonados” ou
“desvalidos”, às instituições oficiais e particulares conveniadas, enquanto aos
“delinquentes, se fazia o encaminhamento, por determinação judicial, aos
reformatórios”.
A partir de 1964, a questão do “menor” passou a ser encarada como
de segurança nacional, sendo criada a Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor (FUNABEM) e a respectiva Política Nacional de Bem-Estar do Menor
(PNBEM), num viés de controle político deste, tanto na formulação como na
implementação da assistência à infância, havendo um maciço direcionamento
à internação dos “irregulares” nas FEBENS e entidades privadas de
assistência44.
Assim, foi instituído o Antigo Código de Menores, através da Lei
6.697, de 10 de outubro de 1979, em que os “menores” agora estariam
inseridos na chamada doutrina da “situação irregular do menor”, que não difere
das condições eleitas para se encaminhar/determinar a mesma medida de
institucionalização promovida à luz da ação tutelar do Estado - 1o Juízo de
Menores, sob o manto do primeiro Código de Menores de 1927, apenas com
nomenclaturas diversas.
A “Doutrina da Situação Irregular do Menor” tratava a criança e o
adolescente a partir do entendimento de que seriam objetos de tutela ou
intervenção, sujeitos às determinações do mundo adulto. E, assim, em seu
artigo 2o há a definição de “menor em situação irregular” como sendo aquele
“privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução
obrigatória”; “vítima de maus-tratos ou castigos imoderados”; expostos a
“perigo moral”; “privado de representação ou assistência legal”, e, ainda,
incluía-se com “desvio de conduta em virtude de grave inadaptação familiar e
comunitária” e autor de infração penal.
Nesse sentido, havia um tratamento de segregação a ser
determinado para o “menor”, tanto numa situação de risco pessoal e social,
como numa situação de ser este o violador de direitos, não reconhecendo que
eram condições distintas a ensejarem medidas e providências também
44
RIZZINI, Irene. O Século Perdido: raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 27.
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distintas, inclusive, se necessário fosse, em relação à respectiva família. Eram
os “menores irregulares” a carecerem de institucionalização, de retirada do seio
da sociedade. As naturezas assistencialista, repressiva e correcional
imperavam e representavam as determinações da política vigente na época.
Nenhum dos encaminhamentos previstos até então, por
conseguinte, tinham o condão de promover os direitos de crianças e
adolescentes, mas, ao contrário, sob o prisma da assistência, era promovido o
clientelismo, a filantropia e a caridade e, assim, para os “menores” pobres,
abandonados ou delinquentes, deveria haver uma intervenção política.
Não havia ainda nenhuma proposta de rompimento com o
tratamento desigual e desrespeitoso empreendido, muito menos com a
recepção de prioridade quanto aos interesses de crianças e adolescentes.
Somente em 1988, a partir da nossa Carta da República, houve a definição de
um novo tratamento dado à criança e ao adolescente, através de mudanças
paradigmáticas que ocorreram no Brasil, com a instituição de nova doutrina
denominada “Doutrina da Proteção Integral”, como será detalhada mais
adiante.
Uma grande mudança a partir daí foi promovida, pois nunca houvera
antes da nossa Constituição Cidadã de 1988, direitos consignados em prol da
criança e do adolescente, estando apenas consignado, exemplificativamente,
no Antigo Código de Menores, à luz do seu artigo 119, nas Disposições Finais,
do Título III, que o “menor irregular” teria direito à assistência religiosa.
Evidentemente a compreensão era de que o viés desta garantia cingia-se à
consagração de um mecanismo de controle social bastante utilizado no
contexto da época, como já destacado, constatado numa simples análise pela
incongruência que representava, inclusive pelo registro de que sequer havia a
garantia do direito à vida, onde se encontrava a suposta “garantia do direito à
assistência religiosa”.
Considerando, igualmente, que o Estado Constitucional instaurado
contempla o indivíduo como centro de suas ações, de imediato se impõe a
precisa compreensão do conceito de cidadania, até porque não se pode deixar
de reconhecer que a criança e o adolescente apresentam-se na nova
Constituição como sujeitos de direitos fundamentais; e reconhecer a existência
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de direitos fundamentais, contemplando este segmento em desenvolvimento,
significa reconhecer a condição de cidadãos.
Nesta perspectiva, Lafer45 traz com clareza e precisão o alcance
deste conceito de cidadania, que na concepção de Hannah Arendt seria “o
direito a ter direitos”, e que também aponta os direitos humanos como
construção da igualdade, sendo esta uma elaboração coletiva numa
organização política que decide pela promoção e garantia a todos de direitos
iguais.
Ramos46 dimensiona que além da igualdade, a liberdade e a dignidade
devem compor obrigatoriamente o que se configura como núcleo fundamental
desses direitos considerados indispensáveis para uma vida humana. Seriam os
direitos de todos os cidadãos, considerados em sua universalidade,
essencialidade, superioridade normativa ou preferencialidade.
Segundo Saes 47 , contemporaneamente, o conceito de cidadania
presente ao Estado capitalista contempla a “forma-sujeito de direitos”, tanto dos
que detêm os meios de produção como pelos trabalhadores, indo muito mais
além do que qualquer concepção clássica quanto à possibilidade de exercício
de direitos políticos. Há de se ter garantidas as liberdades civis e políticas, as
quais devem ser efetivadas e corporificadas para que não sejam esbarradas
por uma utopia subjacente, ainda que seja através de luta popular e burocrática
pela concretização da lei, percorrendo sempre o ideal de prerrogativas
baseadas na igualdade entre todos os indivíduos.
A concretude da condição cidadã exige, por sua vez, ações positivas
do Estado, isto num cenário marcado por um desenvolvimento social calcado
historicamente num processo de promoção de desigualdade na efetivação de
direitos fundamentais dos indivíduos em sociedade, em especial de crianças e
adolescentes. Estes, desassistidos em suas necessidades básicas para uma
formação plena, enquanto pessoas em processo de construção, com a
trajetória marcada pela presença de políticas assistencialistas e de controle
45
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 207-208. 46
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 24-25. 47
SAES, Décio Azevedo Marques de. A questão da evolução da cidadania política no Brasil. História Política. São Paulo, Instituto de Estudos Avançados da USP, v. 15, n. 42, Maio/ago., 2001, p. 2-3.
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social, em que a filantropia e a indiferença sempre foram as tônicas
norteadoras, são alcançados por um processo de violência social, com
demarcação de territórios, marginalização e exclusão de direitos.
Minayo48, ao tratar da violência social, destaca que está advém da
desigualdade que, por sua vez, produz fenômenos como a alienação no
trabalho, o menosprezo de valores e normas em função do lucro, o
consumismo, a força e o machismo, como exemplos.
Sales49 complementa o raciocínio, destacando o desenho irregular
ou as anomalias na história do desenvolvimento da cidadania, no Brasil, o que
chama de “cidadania escassa”:
[...] Estes e tantos outros mais integram a história de profunda injustiça social e descaso pelo destino de milhões de cidadãos sem sobrenome, sem propriedade, sem estudo, sem dignidade. Dentre tais problemas, a violência avulta como produto da cidadania escassa no Brasil – a qual se traduz como modalidade histórica de inscrição sócio-étnica subalternizada de vários grupos e segmentos sociais na divisão social e repartição de riquezas do país, caso da maioria das crianças e adolescentes pertencentes às classes trabalhadoras, configurando-lhes um acesso precário intermitente aos direitos sociais – e coloca-se como desafio à democracia à criação de um verdadeiro estatuto para os direitos civis: uma realidade que ninguém pode permanecer indiferente.
Tarefa árdua, especialmente quando se tem como disposição
espacial a agravar, o fenômeno da territorialização, que abriga em
comunidades isoladas aqueles que, desprovidos de assistência e atendimento
mínimos a seus direitos fundamentais e essenciais à existência de uma vida
digna, buscam abrigo e proteção. Karam 50 a este fenômeno denomina de
“aparthaid social”.
É instalada, assim, como evidência, uma divisão social e política,
que interessa à manutenção de um sistema de característica excludente e
natureza opressiva e segregante, geradora de uma invisibilidade social que se
abate sobre crianças e adolescentes com evidentes prejuízos.
48
MINAYO, M. Cecília. A Violência Social sob a Perspectiva da Saúde Pública. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 10, supl. 1, 1994, p. 8. 49
SALES, Mione Apolinário. (In)visibilidade perversa: adolescentes infratores como metáfora da violência. São Paulo: Cortez, 2007, p. 48. 50
KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, n. 1, p. 4, jan./jun., 1996.
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No sentido da violência, em suma, Sales51 observa que:
A violência é, pois, manifestação do poder, expressão de como as relações sociais estão aqui organizadas, do como o capitalismo se engendrou e se perpetua no país. É exploração, opressão e dominação, mas não é somente força pura, é também ideologia e sutileza. Violência que embora seja estruturalmente produzida pelas elites, como um dos mecanismos que sustentam e fazem a política e a economia, não constitui seu patrimônio exclusivo. Reproduzida pelos mais diversos estratos sociais, tende, porém, a ser associada de maneira reducionista e invertida, pelo senso comum, aos pobres e miseráveis, vistos como “classe perigosa” e de onde provêm os “maus elementos”. Associação que se reforça e ganha visibilidade, sobretudo por meio dos indivíduos mais insubmissos das classes trabalhadoras nos seus embates cotidianos, nem sempre visíveis, contra o processo de sujeição e também como expressão dele. Ações e reações que ora são puro fetichismo e alienação, ora se transmutam em política e revolta.
Cenário hodierno para o desfrute e a atuação de um dos
mecanismos ideológicos muito presentes nas elites, através do sentimento de
medo que, direcionado aqueles rotulados e estereotipados como “indivíduos
perigosos”, levam a um clamor social à promoção de formas de controle social.
Pobres, negros, muitos desempregados, moradores de favelas ou
grotas (portanto, segregados da sociedade), marginalizados pela etnia,
condição pessoal e social e territorialização, seriam sempre, prioritária e
oportunamente, considerados por uma elite dominante como possíveis
violadores de direitos, legitimando, assim, um processo de exclusão social e
moral de grande parte da população e produzindo um distanciamento entre
setores de uma mesma sociedade, a qual aniquila a possibilidade de
comunicação e de interação entre cidadãos, reduzindo-se a uma vivência de
desigualdade e suas mazelas.
Em resumo, infere-se que é a reprodução de uma cultura de
“desqualificação ou valorização do outro”, a depender de sua condição pessoal
e social, marcada pela ausência de oportunidades a uma maioria e privilégios
para uma minoria detentora de concentração de renda, ficando o processo de
mobilidade social engessado em suas bases.
51
SALES, Mione Apolinário. (In)visibilidade perversa: adolescentes infratores como metáfora da violência. São Paulo: Cortez, 2007, p. 59-60.
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Outro destaque no processo de desigualdade, ainda, é a relação
identificável tanto nos espaços sociais locais, quanto regionais, num país de
dimensões continentais como o Brasil.
Rocha e Albuquerque52 fazem observações pertinentes à questão
quando pontuam a importância de dimensionar espacialmente os níveis de
desigualdades sociais, quer locais, quer regionais ou nacionais, ou ainda em
relação ao campo e às metrópoles ou entre estas ou entre os Municípios
menores, o que necessariamente passa pelo desenvolvimento histórico de
cada região e seus condicionantes econômicos, políticos e sociais, como já
traçados para, a partir de então, considerar as variáveis e indicativos, como a
renda familiar e o consumo, a definição de necessidades básicas, o nível de
escolaridade, de analfabetismo, de mortalidade infantil, de trabalho infantil, de
saneamento básico, de acesso a serviços públicos e benefícios sociais
propiciados pelo Estado, programas de geração de emprego e renda, emprego
formal, enfim, fatores capazes de gerar possibilidade de mobilidade social.
Assim, para se aferir a pobreza ou a extrema pobreza - Decreto n.
9.396/201853- no Brasil, há de se observar verificadores como a renda e tantos
outros indicadores sociais e econômicos, a concretude ou não de direitos
fundamentais, os desequilíbrios regionais e as políticas de enfrentamento
antipobreza.
1.2. Dados da realidade brasileira: a relação entre a pobreza resultante de direitos fundamentais irrealizados e a violência contra jovens
A Organização das Nações Unidas – ONU, através do Fundo das
Nações Unidas para a Infância - UNICEF, acaba de divulgar, neste mês de
agosto de 2018, dados relativos a um estudo realizado sobre as várias
dimensões ou faces da pobreza a que vivem milhões de crianças e
52
ROCHA, Sônia; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Geografia da pobreza extrema e vulnerabilidade à fome. Estudos e Pesquisas. Seminário Especial Fome e Pobreza. Rio de Janeiro: INEA – Instituto Nacional de Altos Estudos, n. 54, 2003, p. 3. 5353
Decreto n. 9.396, de 30 de maio de 2018: Art. 2 O Decreto n. 7.492, de 2 de junho de 2011, passa a vigorar com a seguinte alteração; Art. 2 (…) Parágrafo único. Para fins do disposto neste Decreto, considera-se em extrema pobreza a população com renda familiar per capita mensal de até R$ 89,00 (oitenta e nove reais). (NR) Disponível em: . Acesso em: 04 abr. 2018.
http://www.planalto.gov.br/
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adolescentes no Brasil, tendo por base os resultados obtidos na Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio – Pnad – de 201554.
Neste estudo, é apontado que de cada 10 crianças e adolescentes,
6 vivem em situação de pobreza, sendo compreendidas e analisadas como
dimensões, tanto a monetária, quanto a relativa a privações de direitos
fundamentais, o que, por sua vez, é denominado de “privações múltiplas”, a
servir de termômetro de referência da atual situação social a que vivem
meninos e meninas no território brasileiro, expondo objetivamente dados de
uma realidade desigual no país, os quais impactam o respectivo
desenvolvimento e qualidade de vida destes.
Nessa esteira, os dados revelam que:
De acordo com o Pnad 2015, 61% das crianças e adolescentes brasileiros são pobres, seja porque estão em famílias que vivem com renda insuficiente – pobreza monetária -, seja porque não têm acesso a um ou mais direitos – privações múltiplas [...]. São 18 milhões de meninas e meninos (34,3%) afetados pela pobreza monetária – com menos de R$ 346,00 per capita por mês na zona urbana e R$ 269,00 na zona rural. Desses, 6 milhões (11,2%) têm privação apenas de renda. Ou seja: mesmo vivendo na pobreza monetária, têm seus direitos analisados garantidos. Já os outros 12 milhões (23,1%), além de viverem com renda insuficiente, têm um ou mais direitos negados – estando em privação múltipla. A esses 12 milhões, somam-se mais de 14 milhões de meninas e meninos que não são monetariamente pobres, mas têm um ou mais direitos negados. Juntos, eles representam quase 27 milhões de crianças e adolescentes brasileiros com privações múltiplas, sem a garantia de seus direitos fundamentais [...]. (UNICEF, 2018).
Por conseguinte, são explicitadas, através deste estudo da UNICEF
(2018), as dimensões múltiplas de vulnerabilidade das crianças e adolescentes
54
Estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, denominado Pobreza na Infância e na Adolescência, publicado em 13/08/2018. Disponível em: e redes sociais , , . Acesso em: 17 ago. 2018. Foi analisada a renda familiar de meninas e meninos brasileiros de até 17 anos de idade e o acesso deles a 06 (seis) direitos básicos: educação, informação, água, saneamento, moradia e proteção contra o trabalho infantil. Também foi analisada a ausência de um ou de mais desses direitos, sendo segmentados dados por regiões e grupos populacionais, como negros e brancos, ainda tendo sido feito um comparativo de dados de 2005 a 2015. No presente estudo, foi feita uma categorização, separando crianças e adolescente com acesso aos direitos aqui assinalados, daquelas que tinham o acesso com privação intermediária - acesso ao direito de maneira limitada ou com má qualidade – e privação extrema, ou seja, sem nenhum acesso ao direito.
http://www.unicef,org.br/http://www.facebook.com/unicefbrasilhttp://www.instagram.com/unicefbrasil
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42
aos direitos fundamentais básicos indicados, num quantitativo relativo ao total
de privação – intermediária ou extrema -, nos seguintes termos: direito à
educação: 8.789.820; direito à informação: 6.821.649; direito à moradia:
5.889.910; direito ao saneamento básico: 13.329.804; direito à água:
7.647.231; trabalho infantil: 2.529.749.
Ainda são dimensionados alguns destaques que dizem respeito às
referidas desigualdades quanto às diferenças regionais, bem como relativas à
cor e idade deste público especial epigrafado:
Moradores da z