POLÍTICA - BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia - humcertoalguém
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NORBERTO BOBB10
LIBERALISMO E
DEMOCRACIA
Traduciio:
Marco Aurelio Nogueira
e d i t o r a b r a s i l i e n s e
5/6/2018 POLÍTICA - BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia - humcertoalguém - slidepdf.com
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Copyright © by Franco Angeli Libr i, s . f. 1., Viale Monza 106
Miliio, Italia
Titulo original: Liberalismo e democrazia
Copyright © da traduciio brasileira: Editora Brasiliense S.A.
Nenhuma parte desta publicacao pode ser gravada,
armazenada em sistemas eletronicos, fotocopiada,
reproduzida por meios mecdnicos ou outros quaisquer
sem autorizacdo previa do editor .
Prime ira edicdo, 1988
6." edicdo, 1994
4. a reimpressiio, 2000
Revisiio: C arm em T . S . Costa
Capa: Gilberto Miadaira
Dados Internacionais de Cata1oga~ao na Publica9ao (CIP)
(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bob_bio, Norberto, 1909-
Liberalismo e democracia I Norberto Bobbio
tradu9ao Marco Aurelio Nogueira. -- Sao Paulo
Brasiliense, 2000.
Titulo original: Liberalismo e democrazia.
4& reiropr. da 6. ed. de 1994.
Bibliografia.
ISBN 85-11-14066-2
1. Democracia2. Libe~a~~~o + :
00-3144 CDD-320.51
indices para <=:'at~oqo ~i.stexn!tico:
1. Liberalismo : CiencLa politica 320.51
editora braslliense s.a.
Matr iz : Rua Ai ri, 22 - TatuapeCEl' 03310-010 - Sao Paulo - SP
Fone I Fax: (Oxxl I) 218.1488
E-mail: [email protected]
www.editorabrasiliense.corn.br
Iodice
I. A . liberdade dos antigos e dos modernos 7
§(}s direitos do horn ern 11
Os limites do poder do Estado 17
_ Liberdade contra poder . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. 20
\. 0antagonismo e fecundo , 26
(,. Demoeracia dos antigos e dos modernos , 31
(j) Democraeia e.igualdade 37
H. 0encontroentre liberalismo e democracia , 42q. Individualis1n:o e organicismo . . . . . . . . . . . . . . .. 4S
10 . Liberais e democratasJ:lo seculoXfX , 49
I I. A . tirania da maioria S5
I 2. Liberalismo eutilitarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 62
IJ. A democraciarepresentativa 68
14. Liberalismo e democracia na Italia 72
15. A democracia diante do socialismo 79
16.0 novo liberalismo , 85
17. Democracia e ingovernabilidade 92
Bibliografia :. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 98
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1. A liberdade dos
antigos edos modernos
I
I
I
I
J \. existencia atual de regimes denominados liberal-
dl 'IlIOlT[lticos ou de democracia liberal leva a crer que li-
bcrulisrno e democracia sejam interdependentes. No en-
t .uuo. 0 problema das relacoes entre e1ese extremamente('OIIlP1cxo,e tudo menosIinear: Na acepcao mais comum
!los dois ,termos, por t'liheralism.o~' entende-se uma de-
(crtuiuada C9nc~BGao de Estado, na qual 0 Estado tern
podcrcs e ,funGoeSlimitadas, e como tal se contrapoe tan-to ao Estado absolute ,quanto ao Estado que hoje cha-
1 1 1 :1 I I I os de socialJ por'~'etrlocracia" entende-se uma das
v a r i . r x Iormas de governo, ern particular aquelas em que
\I poder nao esta,nas maos de urn s6 ou de poucos, mas
dl' (odos, ou melhor, da maior parte, como tal se contra-
poudo a s Iorrrias autocraticas, comoa monarquia e a oli-
garqi.lia.iUm Estado liberal nao e necessariamente demo-. _ ,· f
l ' I ' : ' 1 I ico.ao contrario, realiza-sehistoricamente emsocie-
dades nas quais a participacao no governo e bastante res-
[rita, l imitada as classes possuidoras, Urn governo demo-
cratico nao da vida necessariamente a urn Estado liberal:
ao contrario, 0Estado liberal classico foi posto em crise
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8 NORBERTO BOBBIO LIBERALISMO E DEMOCRACIA 9
pelo progressivo processo de democratizacao produzido
pela gradual ampliacao do sufragio ate 0 sufragio uni-
versal.
Sob a forma da contraposicao entre liberdade dos
modernos e liberdade dos antigos, a antitese entre libera-
lismo e democracia foi enunciada e sutilmente defendida
por Benjamin Constant (1767-1830) no celebre discurso
pronunciado no Ateneu Real de Paris em 1818, do qual epossivel fazer comecar a historia das dificeis e con trover-
tidas relacoes entre as duas exigencias fundamentais de
que nasceram os Estados conternporaneos nos paises
economic a e socialmente mais desenvolvidos: a exigencia,
de urn lado, de limitar 0poder e, de outro, de distribui-lo .
Nao podemos mais usufrir da liberdade dos antigos,
que era constituida pela participacao ativa e cons-
tante no poder coletivo. A nossa liberdade deve, ao
contrario, ser constituida pela Iruicao pacifica da in-
dependencia privada. 2
oobjetivo dos antigos - escreve ele - era a distri-
buicao do poder politico entre todos os cidadaos de
uma mesma patria: era isso que eles chamavam de
liberdade. 0 objetivo dos modernos e a seguranca
nas fruicoes privadas: eles chamam de liberdade as
gar anti as acordadas pelas instituicoes para aquelas
fruicoes.'
Constant citava os antigos, mas tinha diante de si
1 1 1 1 1 alvo bern mais proximo: Jean-Jacques Rousseau. De
1', ,10, 0 autor do Contrato Social havia inventado, nao
~1.'1lI fortes sugestoes dos pens adores classicos, uma re-
publica na qual 0 poder soberano, uma vez instituido
pela concordada vontade de todos, torna-se infalivel e
"1I,'toprecisa dar gar anti as aos suditos, pois e impossivelque 0 corpo queira ofender a todos os seus membros". 3
NflO que Rousseau tenha levado 0 principio da vontade
~l'ral au ponto de desconhecer a necessidade de limitar 0
IHl(k-r do Estado: atribuir a ele a paternidade da "demo-
nacia totalitaria" e uma polemica tao generalizada
qnanlo erronea. Embora sustentando que 0 pacta social
d:1 ao corpo politico urn poder absoluto, Rousseau tam-
bern susten:ia::.quei"o corpo soberano, da sua parte, nao
pnde soorecal;.;r,egaros siiditos com nenhuma cadeia que
sd'll inutil a"'comunidade" ..4 Mas e certo que esses li-
lIIile~"~ao sao pre-dmstituidos ao nascimento do Es-
lltdo. como quer adoutrina dos direitos naturais, que
rcprcscnta 0micleo doutrinal do Estado liberal. De fato
l'lllhora admitindoquevtudo aquilo que, com 0 pacto
social, cada urn aliena de seu poder. .. e unicamente a
parte de tudo aquilo f'ujouso e importante para a co-
Como liberal sincero, Constant considerava quees-ses dois objetivos estavam emc~ntnist~ entre si. A pirti~
cipacao direta nas decisoes coletivas terminapor subme-
ter 0 individuo a autoridade do todo e portorna-lo nao li-
vre como privado; e isso enquanto a liberdade do privado eprecisamente aquilo que 0 cidadao exige hoje do poder
publico. Concluia:
(1) Benjamin Constant, De la 'Liberte des Anciens Comparee a celie
des Modernes (1818), in Collection Complete des Ouvrages, vol. 4, parte 7,
Pa ris, Bechet Librair e, 1820, p. 253 (trad. it., in B. Constant, introducao e
tr aducao de Umberto Cerroni, Roma , Samona e Savelli, 1965, p. 252) .
(2) Trad. cit., p. 252.
(3) 1.-1. Rousseau, Du Contrat Social, 1,7 ( trad . it ., in J.-J. Rousseau,
S..,.ill; Politici, P. Alatri (org.), Turirn, Utet, 1970, p. 734).
(4) Trad. cit., p. 744.
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10 NORBERTa BOBBIO
munidadc", Rousseau conc1ui que "0unico corpo sobe-
rano ejuiz dessa importancia".'
2. Os direitos do homem
(5) Trad. cit., p. 744.
1 " 0 pressuposto filos6fico do Estado liberal, entendi-,.do como Estado limitado em contraposicao ao Estado
ahsoluto, e a doutrina dos direitos do homem elaborada
pcla escola do direito natural (ou jusnaturalismo): dou-
Irina segundo a qual 0 homem, todos os homens, indis-
criminadamente, tern por natureza e, portanto, indepen-
dcntcmente de sua propria vontade, e menos ainda da
vontado de alguns poucos ou de apenas urn, certos di-
reil(ls fundamentals, como 0 direito a vida, a liberdade, a:,q~llralH;a, a Ielicidadec- direitos esses que 0 Estado, ou
111"is concretamente aqueles que num determinado mo-
IIIl' IIIII hist6rico detem 0 poder legitimo de exercer a for-
1;:1 para obter a obediencia a seus comandos devem res-
pvitnr, e portanto nao invadir, e ao mesmo tempo prote-
~'.\'I' contra toda possivel invasao por parte dos outros],
;\Iri huir a alguem urn direito significa reconhecer que
ell' tern afaculdade de fazer ou nao fazer algo conforme
sell desejo e tambem 0poder de resistir, recorrendo, em
ultima instancia, a Iorca (propria ou dos outros), contra 0
eventual transgressor, 0 qual tern em consequencia 0de-
I
I
II
I'
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12 NORBERTO BOBBIO
ver (ou a obrigaciio) de se abster de qualquer ato que
possa de algum modo interferir naquela faculdade de fa-
zer ou nao fazer. "Direito" e "dever" sao duas nocoes
pertencentes a linguagem prescritiva, e enquanto tais
pressupoem a existencia de uma norma ou regra de con-duta que atribui a urn sujeito a faculdade de fazer ou
nao Iazer alguma coisa ao mesmo tempo em que impoe
a quem quer que seja a abstencao de toda acao capaz de
impedir, seja por que modo for, 0 exercicio daquela fa-
culdade. Pode-se definir 0 jusnaturalismo como a dou-- .... . , " . . . . -.. - ..... --" . - ' ..
trina segundo a qual existem lei~Jlao pastas pela vontade_~ .. "'__"'__""-~'~-"'"._"~".,_.,.". "__~~_~c··.~·.,,.·__.~-"-.,.~.~«- .._..,_._ .__....•........•._•... _ __ . .•."._ ___. _._ - . _-". _ " . _
humana -- que por is so mesmo precedem it formacao de
todo grupo social e sao reconheciveis atraves da pesquisa
racional - das quais derivam, como em toda e qualquerlei moral ou juridica, direitos e deveres que sao, pelo
proprio fato de serem derivados de uma lei natural, dire i-
tos e deveres naturaisi Falou-se do jusnaturalismo como
pressuposto "filo~ofico;' do liberalismo porque ele serve
para fun dar os limites do poder a base de uma concepcao
geral e hipotetica da natureza do homern que prescinde
de toda verificacao empiric a e de toda prova historica,
No capitulo IIdo Segundo Tratado sobre 0 Governo, Lo-
cke, urn dos pais do liberalismo moderno, p~_rte._c!Q._~s_t,t_:
do de natureza descrito como urn estado de perfeita li-
·~~fadeelgualdade~-govemado por uma lei da natureza
qll~
ensina a todos os homens, desde que desejem con-
sliTta:=ra,que,sendo todos iguais e independentes,
ninguem deve provocardanos aos demais no que se
refere a vida, a saude, a liberdade ou as posses. 6
(6) John Locke, Two Treatises of Government (1690), n ,6 (trad, it.,
L. Pareyson (org.), Turim, Utet, 3~ ed., 1980, p. 231) .
L1BERALlSMO E DEMOCRACIA 13
Essa descricao e fruto da reconstrucao fantastic a de
1 1 1 1 1 presumivel estado originario do homem, cujo unico
ohjctivo code aduzir uma boa razao para justificar os
limites do poder do Estado. A doutrina dos direitos natu-
ruis, de fato, esta na base das Declaracoes dos Direitosproclarnadas nos Estados Unidos da America do Norte (a
vomecar de 1776) e na Franca revolucionaria (a comecar
lit' 17H9), atraves das quais se afirma 0 principio funda-
IIIClllal do Estado liberal como Estado limitado:
o objetivo de toda associacao politic a e a conserva-\·rto dos direitos naturais e nao prescritiveis do ho-
I11cm(art. 2? da Declaracao dos Direitos do Homem
e do Cidadao , 1789).
Lnquanto teoria diversificadamente elaborada por
I'ili,sllros, teologos e juristas, a doutrina dos direitos do
luuucm pode ser considerada como a racionalizacao pos-
tumu do cstado de coisas a que conduziu, especial mente
1111 1 1 1 1 . : 1 < 1 terra e muitos seculos antes, a luta entre a mo-
III1rqllia cas outras forcas sociais, que se conc1uiu com a
I'llllressilo cia Magna Carta por parte de Joao Sem Terra
( I.~IS). quando as faculdades e os poderes que nos seen-
Iw, Iuluros scrao chamados de "direitos do homem" sao
H'I'ollilccitios sob 0 nome de "liberdade" (libertates,
/I'{",I'I,i,\I''\, freedom), on seja, como esferas individuais
0 1 . 11'. ,," (. d p posse de bens protegidos perante 0 poder
" 1 1 , , 1 1 , , " t I . , r e - i . Embora esta e as sucessivas cartas.tenham
II 1 ' . 1 1lila j u r i r l i c a de concessoes soberanas, elas sao de fa-
III II n-sultado de urn verdadeiro pacto entre partes con-
II illI"S lOIS 110 que -diz respeito aos direitos e deveres reci-
PIIWIIS IIa relacao politica, isto e , na relacao entre dever
dl' prote\~ao (por parte do soberano) e dever de obedien-\Iii (IIi' qual consiste a assim chamada "obrigacao politi-
••" pOI' parte do sudito), comumente chamado de pac-
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14 NORBERTO BOBBIO
tum subiectionis . Numa carta das "liberdades" 0 objeto
principal do acordo sao as formas e os limites da obe-
diencia, ou seja, a obrigacao politica, e correlativamente
as formas e os limites do direito de coman dar . Essas an-r., ·,tigas cartas, como de resto as cartas constitucionais oc-
\'/ troyees" das monarquias constitucionais da idade da res-
tauracao e depois (entre as quais 0 estatuto albertino de
1848), tern a Iigura juridica da concessao, que e urn ato
unilateral, embora sejam de fato 0 resultado de urn acor-
do bilateral. Sao por isso uma tipica forma de ficcao ju-
ridica, que tern por objetivo salvaguardar 0 principio da
superioridade do rei, e portanto assegurar a perrnanen-
cia da forma de governo monarquica, nao obstante a
ocorrida limitacao dos poderes tradicionais do detentor
do poder supremo.
Naturalmente, mesmo nesse caso, 0 cursu historico
que da origem a uma deterrninada ordenacao juridica e a
sua justificacao racional apresentam-se com os termos
invertidos:[?istoricamente,og§!~Q9g£.c:ra,1 .nasce c l§
uma continua e progressiva~Tosa~Lg_QP()cl~r.a.bsoluto do
rei e:-emperiodos hlst6ricos de crise mais aguda, de uma
~tura revolucionaria (exemplares as casos da Inglater-
fa do secufoXVlfe"(Ia Franca do fim do seculo XVIII);
racionalmente, 0 Estado liberal e justificado como 0 re-
resultado de urn ac~rd()- entre'-1l1di~iduosinidaJmente u -vres que COnve!lcI(~nam estabelecer os vincuIos estrita-
mente necessaries a uma convivencia pacifica e dura-
doura~lEnquanto 0cursu historico procede de urn estado
iniciaf.lde servidao a estados sucessivos de conquista de
espacos de liberdade por parte dos sujeitos, atraves de
urn processo de gradual liberalizacao, a doutrina percor-
re 0caminho inverso, na medida em que parte da hipote-se de um estado inicial de liberdade, e apenas enquanto
(*) Em frances no original: outorgadas, (N. T.J
UBERALISMO E DEMOCRACIA IS
concebe 0homem como naturalmente livre e que conse-
gue construir a sociedade politic a como uma sociedade
corn soberania Iimitada, Em substancia, a doutrina, es-
pccialmente a doutrina dos direitos naturais, inverte 0
andamento do curso hist6rico, colocando no inicio como
Iundamento, e portanto como prius, aquilo que e histori-IIICIIe 0 resultado, 0posterius .
Afirrnacao dos direitos naturals e teoria do contrato
sm'jal, ou contratualismo, estao estreitamente ligados. A
id{'ia de que 0 exercicio do poder politico .apenas e legi-
I l u i o - sc fundado sobre 0 consenso daqueles sobre os
'Iuais dcve ser exercido (tambem esta e uma tese lockea-
1111:1), c portanto sobre urn acordo entre aqueles que deci-tlt'llI xubmeter-se a urn poder superior e com aqueles a
quem esse poder e confiado, e uma ideia que deriva da
pn·ssllposi~ao de que os individuos tern direitos que nao
d('pclI<icm da instituicao de urn soberano e que a institui-
!,'IIO do xoberano tern a principal funcao de permitir a
IIdl x hi la explicitacao desses direitos compatlvel com a
Ii"f.{lIralll,'a social[Q_5l1l:~~lln~a doutrina dos direitosdo
I.H~111!'111 c o contratualis1po e a comum. concepcao indivi-
Iftlal1:.LI d ii sOCledade:'~a concepcao segundo a qual pri-
1111'1111 n:isk 0 individuo singular com seus interesses e
\ '11111 SIl;I~; carencias, que tomam a forma de di;~'it~se~
vlrtu.l« da assuncao de uma hipotetica lei da natureza, e
tI('Plli~ a sociedade, e nao vice-versa como sustenta 0 or-
""ldd~1II0 em todas as suas formas, segundo 0 qual a
.IIiw!c·dllde (~anterior aos individuos ou, conforme a for-
1 I 1 1 1 1 1 1 uristotelica destinada a ter exito ao longo dos secu-
Ill'" 0Indo 6 anterior as partes:jb contratualismo moder~
1111 rvprcxcnta uma verdadeira revira~~lta na historia d~
pl'lIsalllcnto politico dominado pelo organicismo na me-dliia L '11l que, subvertendo as relaeoes entre individuo e
~Il('j(:dade,faz da sociedade nao mais um fato natural, a
('xislir independentemente da vontade dos individuos ,
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16 NORBERTO BOBBIO
mas urn corpo artificial, criado pelos individuos a sua
imagem e - s e m e l h a n < ; a e p a r a a s a t is f a ! ; a o de seus interes-
ses e carencias e Qrnais amplo exercicio de seus direitos.]
Por sua vez, 0acordo que da origem ao Estado e possivel
porque, ses.!lop<lo.a teoria do direito natural, existe nanatureza {;maleique atribui a todos os individuos alguns
'oireh()s fundamentais de que 0 individuo apenas pode se
despir voluntariamente, dentro dos limites em que esta
remincia, concordada com a analoga remincia de todos
os outros, permita a cornposicao de uma livre e ordenada
convivencia,
Sem essa verdadeira revolucao copernicana, a base
da qual 0 problema do Estado passou a ser visto nao
mais da parte do poder soberano mas da parte dos sudi-tos, nao seria possivel a doutrina do Estado liberal, que ein primis a doutrina dos limites juridicos do poder esta-
talIJem individualismo nao ha liber.al!~_!l}g)
3. Os Iimltesdo poder do Estado
lulou-se ate aqui genericamente de Estado limitado
till , I e - limites do Estado. Deve-se agora precisar que essa
1'~lm'~s,\(lcompreende dois aspectos diversos do proble-
1 1 1 1 1 . aspectos que nem sempre sao bern distinguidos: a)
n s lh u it c» dospoderes; b) os limites dasfun{:oes do Esta-
till, 1\ doutrina liberal compreende a ambos, embora
pIISS.1I11 des ser tratados separadamente, urn excluindo 0
11111 I ' l l . \ ! > liberalismo e uma doutrina do Estado limitado
IUllto ~'Olll rcspeito aos seus poderes,.9.'i1antoa!isr~as .f:un-
,. ' . .".)\ IHH;;'lO corrente que serve para representar 0 pri-
111I· ' rd(· Fst ado de direito; a nocao corrente para repre-
' 1 1' 1 11 1 1 1 ' 0 segundo e Estado minimo JEmbora 0 liberalis-
11111 \'11 I I ( ' (. 11 o Estado tanto como Es'tado de direito quan-
IIIl'\llllll Estado minimo, pode ocorrer urn Estado de di-
lI'tllI qlll' nao seja minimo (por exemplo, 0Estado social
1'llllit' llIjlllrfmeo) e pode-se tambem conceber urn Estado
tuiuuuo que nao seja urn Estado de direito (tal como,1'11111 rcspeito a esfera economica, 0 Leviata hobbesiano,
!jill' (.ao rnesmo tempo absoluto no mais pleno sentido da.,.~
[urlavra e liberal em economia):3§nquanto 0 Estado de
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18 NORBERTO BOBBI0 LlBERALlSMO E DEMOCRACIA 19
direito se contrapoe ao Estado absoluto entendido como
legibus solutus, 0Estadc minimo se contrapoe ao Esta-
do maximo: deve-se, entao, dizer que 0Estado liberal se
afirma na luta contra 0 Estado absoluto em defesa do
Estado de direito e contra 0Estado maximo em defesa do
Estado minimo, ainda que nem sempre os dois movimen-
tos de emancipacao coincidam historic a e praticamente "]
Por Estadogedireiioentende-se geralmente urnEs::'"
t(ldoell1q~~~~ip~deres publicos sao regulados por nor-
mas gerais (as leis fundamentais ou constitucionaisye
devem ser exercidos no ambito das leis que os regulam,
~ a i v o odireito do cidaaao de recorrer aumjtiizillg.epen-
dente para fazer com que seja!,econhecido -~ refl~t~d~' 0
abusQ__Q_l!J~:(~S~§~QcJeoder. Assim entendido, 0 Esta-(fO-de direito reflete a velha doutrina - associada aos
classicos e transmitida atraves das doutrinas politicas
medievais - da superioridade do governo das leis sobre
o governo dos homens, segundo a formula lex tacit re-
gem,' doutrina essa sobrevivente inclusive na idade do
absolutismo, quando a maximaprinceps legibus solutus"
e entendida no sentido de que 0 soberano nao estava su-
jeito as leis positivas que ele proprio emanava, mas est a-
va sujeito as leis divinas ou naturais e as leis fundamen-
tais do reino. Por outro lado, q~H!:rlg.oe fala de Estado
de direito no ambito da doutrina liberal do Estado, deve-
se acrescentar a definicao tradicional uma determinacao
ulterior: a constitucionalizacao dos direitos naturais, ou
seja, a transformacao desses direitos em direitos juridi-
camente protegidos, isto e , em verdadeiros direitos posi-
tivos. Na doutrina liberal, Estado de direitosigQ.iJi<:,! nao
so subordinacao dos poderes piiblicos de qualquer grau
as leis gerais do pais, limite que e puramente formal,
mas tambem subordinacao das leis ao limite material do
reconhecimento de-alguns (lireita!'; fUlldamenfiis c'on-si-
derados constitucionalmente,. eportanio eii1'Hiihacle
principio "inviolaveis" (esse adjetivo se encontra noa:-rt.
~~)da constitui~ao italian a). Desse ponto de vista pode-se
Ialar de Estado de dire ito em senti do forte para distin-
gui-lo do Estado de dire ito em senti do fraco, que e 0Es-tado nao-despoticn, isto e, dirigido nao pelos homens,
l~laspelas leis, e do Estado de direito em sentido fraquis-
sUllo, tal como 0Estado kelseniano segundo 0 qual, uma
vez resolvido 0Estado no seu ordenamento juridico todo
Estado e Estado de dire ito (e a propria nocao de Estado
de ~Freito perde toda Iorca qualificadora).~Do Estado de dire ito em senti do forte, que e aquele
proprio da doutrina liberal, sao parte integrante todos
os mecanismos constitucionais que impedem ou obstacu-
lizam 0 exerdcio arbitrario e ilegitimo do poder e impe-
dem ou desencorajam 0 abuso ou 0 exercicio ilegal do
poder. Desses mecanismos os mais importantes sao: 1) 0
controle do Poder Executivo por parte do Poder Legisla-
tivo; ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe 0
Poder Executive, por parte do parlamento, a quem cabeem ultima instancia 0 Poder Legislative e, a orientacao
politica; 2) 0 eventual controle do parlameritono exerci-
cio do Poder Legislativo ordinario por parte de uma corte
jurisdicional a quem se pede a averiguacao da consti-
tucionalidade das leis; 3) uma relativa autonomia do go-
verno local em todas as suas form as e em seus graus com
respeito ao governo central; 4) uma magistratura inde-pendente dopoder politico.
(7) H. Bracton, De Legibus et Consuetudin ibus Angliae, G. E. Wood-
bine (org.), Cambridge. Mass .• Harvard University Press. 1968. vol. 2, p. 33.
(8) Ulpiano, Dig .• I. 3, 31.
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LlBERALISMO E DEMOCRACIA 21
4. Liberdadecontra poder
internacional.ljco pensamento liberal, teoria do controle
do poder e teoria da limitacao das tarefas do Estado pro-
cedem no mesmo passo: pode-se ate mesmo dizer que a
segunda e a conditio sine qua non da prirneira, no senti-
do de que 0controle dos abusos do poder e tanto mais fa-
cil quanto mais restrito e 0ambito em que 0 Estado pode
estender a propria intervencao, ou mais breve e simples-
mente no sentido de que 0Estado minimo e mais contro-
lavel do que 0Estado maximo] Do ponto de vista do indi-
viduo, do qual se poe 0 liberalismo, 0 Estado e conce-
bido como urn mal necessario: e enquanto mal, ernbora
necessario (e nisso 0 liberalismo se distingue do anar-
quismo), 0Estado deve se intrometer 0menos possivel na
esfera de acao dos individuos. As vesperas da revolucaoamericana, Thomas Paine (1737·1B09), autor de urn en-
saio em defesa dos direitos do hornem, expressou com
grande clareza tal pensamento:
\
[Os mecanismos constitucionais que carac~eri~~m 0
Estado de dire ito tern 0 objetivo de defender 0 individuo
dos abusos do pode(~Em outras palavras, sao garantias
de liberdadc. da assim chamada liberdade negativa, en-
tendida como esfera de acao em que 0 individuo nao esta
obrigado por quem detem 0poder coativo a fazer aquilo
que nao deseja ou nao est a impedido de fazer aquilo que
deseja(Ha uma acep~a~ de.liberdade - que e a acep~~o
prevalecente na tradicao liberal - segundo a qual .'lle
berdade" e "poder" sao dois termos antiteticos, quede-
notam duas realidades em contraste entre si .e sao, por-
tanto. incornpativeis: nas relacoes entre duas pessoas, amedida que se estende 0poder (poder de coman dar ou de
impedir) de uma diminui a liberdade em senti do nega-
tivo da outra e, vice-versa, arnedida que a segunda am-
plia a sua esfera de liberdade diminui 0poder da prime~-
raJDeve-se agora acrescentar que para.o pens~mento 11-
beral a liberdade individual esta garantida, mars que pe-
los mecanismos constitucionais do Estado de direito, (tambem pelo Iato de que ao Estado sao reconhecidas ta-
refas limitadas a manutencao da ordem publica interna e
A sociedade e produzida por nossas carencias e 0
governo por nossa perversidade; a primeira promove
a nossa Ielicidade positivamente mantendo juntos os
nossos afetos, 0 segundo negativamente mantendo
sob freio os nossos vicios. Uma encoraja as relacoes,o outro cria as distincoes. A primeira protege, 0 se-
gundo pune. A sociedade e sob qualquer condicao
uma bencao: 0governo, inclusive na sua melhor for-
ma, nada mais e do que urn mal necessario, e na sua
pior forma e insuportavel. 9
Urna vez definida a liberdade no sentido predomi-
nante da doutrina liberal como liberdade em relaciio ao
(9) Thomas Paine, Common Sense (1776) (trad, it., in Thomas Paine,
I Diritti deLrUomo, T. Magri (org.), Editori Riuniti, 1978, p. 6S).
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22 NORBERTO BOBBIO LIBERALISMO E DEMOCRACIA 23
Estado , o processo de formacao do Estado liberal pode
ser identificado com 0progressivo alargamento da eslera
de liberdade do individuo, diante dos poderes publicos
(para usar ostermos de Paine), com a progressiva eman-
cipacao da sociedade ou da sociedade civil, no senti dohegeliano e marxiano, em relacao ao Estado. As duas
principais esferas nas quais ocorre essa emancipacao sao
a esfera religiosa ou em geral espiritual e a esfera econo-
mica ou dos interesses materiais, Segundo a conhecida
tese weberiana sobre as relacoes entre etica calvinista e
espirito do capitalismo, os dois processos estao estreita-
mente ligados. Mas, independentemente dessa discutida
conexao, e urn fato que a historia do Estado liberal coin-
cide, de urn lado, com 0 fim dos Estados confessionais ecom a formacao do Estado neutro ou agnostico quanto
a s crencas religiosas de seus cidadaos, e, de outro lado,
com 0 fim dos privilegios e dos vinculos feudais e com
a exigcncia de livre disposicao dos bens e da liberdade de
troca, que assinala 0nascimento e 0desenvolvimento da
sociedade mercantil burguesa.
Sob esse aspecto, a concepcao liberal do Estado con-
trapoe-se as varias form as de paternalismo, segundo as
quais 0 Estado deve tomar conta de seus suditos talcomo 0pai de seus filhos, posta que os siiditos sao consi-
derados como perenemente menores de idade. Urn dos
lins a que se propoe Locke com os seus Dois Ensaios so-
bre 0Governo code demonstrar que 0 poder civil, nas-
cido para garantir a liberdade e a propriedade dos indivi-
duos que se associam com 0 proposito de se autogover-
nar e distinto do governo paterno e mais ainda do patro-
nal. 0paternalismo tambem e urn dos alvos melhor de-
finidos e golpeados POl' Kant (1724-1804), para quem
sobre os filhos, isto e , urn governo paternalista (im-
perium paternale), no qual os suditos, tal como fi-
lhos menores incapazes de distinguir 0 util do preju-
dicial, estao obrigados a se comportar apenas passi-
vamente, para esperar que 0chefe do Estado julguede que modo devem e1es ser felizes e para aguardar
apenas da sua bondade que ele 0 queira, urn gover-
no assim e 0pior despotismo que se possa imaginar.'?
Kant preocupa-se, sobretudo, com a liberdade mo-
ral.dos individuos. Sob 0 aspecto da liberdade economic a
ou da melhor maneira de prover aos proprios interesses
materiais, nao menos clara e conhecida e a preocupacao
de Adam Smith, para quem, "segundo 0 sistema da li-berdade natural", 0 soberano tern apenas tres deveres de
grande importancia, vale dizer, a defesa da sociedade
contra os inimigos externos, a protecao de todo individuo
das ofens as que a ele possam dirigir os outros individuos,
e 0provimento das obras piiblicas que nao poderiam ser
executadas se confiadas a iniciativa privada. Embora
possam ser distantes os pontos de partida de cada urn
deies[tanto em Kant quanta em Smith a doutrina dos
iimite-s das tarefas do Estado funda-se sobre 0 primado
da Iiberdade do individuo com respeito ao poder sobera-
110 e, em consequencia, sobre a subordinacao dos deveres
do soberano aos direitos ou interesses do individu~:-(
Ao final do seculo das Declaracoes dos Direitos, de
Kant e de Smith, Wilhelm von Humboldt (1767-1835)
excreve a sintese mais perfeita do ideal liberal do Estado,
com as Ideias para um "Ensaio sobre os Limites da Ati-
(10) E. Kant, Uber den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig
srin, taugt aber nicht fur die Praxis (1793) (trad. it., Sopra ildetto comune:
"Questa pu6 essere giusto in teoria ma non valeper fapratica"; in E. Kant ,
Scritti Politici e di Filosofia della Storia e del Diritto, Turim, Utet, 1956,
p.255).
urn governo fundado sobre 0 principio da benevo-
lencia para com 0povo, como 0 governo de urn pai
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24 NORBERTO BOBBIO
vidade do Estado" (1792). Como se nao bastasse 0 titulo,
para compreender a intencao do autor podemos recorrer
a maxima inserida no primeiro capitulo, extraida de Mi-
rabeau pai:
o dificil e promulgar apenas as leis necessanas e
permanecer sernpre fiel ao principio verdadeiramen-
te constitucional da sociedade, 0 de se proteger do
furor de governar, a mais funesta doenca dos gover-
nos modernos.
Sobre 0ponto de partida do individuo em sua inefa-
vel singularidade e variedade, 0 pensamento de Hum-
boldt e seeo e conciso. 0 verdadeiro objetivo do homem,
afirma, e a maximo desenvolvimento de suas faculdades.
Em vista do alcance desse fim, a maxima fundamental
que deve guiar 0Estado ideal e a seguinte:
ohomern verdadeiramente razoavel nao pode dese-
jar outro Estado que nao aquele no qual cada indivi-
duo possa gozar da rnais ilimitada liberdade de de-
senvolver a si mesmo, em sua singularidade incon-
fundivel, e a natureza Iisica nao receba das maos
do homem outra forma que nao a que cada indivi-duo, na medida de suas carencias e inclinacoes, a
ela pode dar par seu livre-arbitrio, com as unicas
restricoes que derivam dos limites de suas Iorcas e
de seu direito."
A conseqiiencia que Humboldt extrai dessa premis-
sa e que a Estado nao deve se imiscuir "na esfera dos
(11) W.von Humboldt, Ideen zu einem "Versuch die Grenzen desStaates zu bestimrnen" (1792) (trad. it., Idee per un "Saggio sui Limiti dell'
Azione dello State", F. Serra (org.), Bolonha, I IMulino, 1961, p. 62).
LIBERALISMO E DEMOCRACIA2 S
negocios privados dos cidadaos, salvo se esses negocios se
traduzirem imediatamente numa ofens a ao direito de urn
por ~~rte ~e outro" .12 Ao lado da subversao das relacoes
tradicionais entre individuos e Estado, proprio da con-ce~c;a~ organic a, ocorre tarnbem, com respeito a essas
~rop:las relacoes, a subversao dos nexos entre meio e
fim:\,§egundo Humboldt, 0 Estado nao e um Iim em si
Il1csm~, mas apenas urn meio "para a formacao do ho-
mcm". ~e 0Estado tern urn fim ultimo, esse e 0 de "ele-var os cldadaos ao ponto de poderem eles perseguir es-
~)o,~taneamente 0 fim do Estado, movidos pela unica
ideia da vantagem que a organizacao estatal a eles ofere-
ce pa~a 0 alcance dos proprios objetivos individuals". 13
Repetidas vezes se afirma no ensaio que fim do Estado eupenas a "seguranca", entendida como a "certeza da li-
berdade no am bi to da lei" .14
(12) Trad. cit., p. 63.
(13) Trad. cit., p. 99.
(14) Trad. cit., p. 113.
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5. 0 antagonismo e
fecundo
Ao lado do tema da liberdade individual como fim
unico do Estado e do tema do Estado como meio e nao
como fim em si mesmo, 0 escrito de Humboldt apresenta
urn outro motivo de grande interesse para a reconstrucao
da doutrina liberal: 0 elogio da "variedade". Numa cer-
rada critic a ao Estado providencial, ao Estado que de-
monstra excessiva solicitude para com 0 "bem-estar" dos
cidadaos (uma critic a que prefigura a analoga deminciados presumiveis equivocos do Estado assistencial por
parte do neoliberalismo conternporaneo), Humboldt ex-
plica que a intervencao do governo para alem das tarefas
que lhe cabem - relativas a . ordem extern a e it ordem
intern a - terrnina por criar na sociedade comportamen-
tos uniformes que sufocam a natural variedade dos cara-
teres e das disposicoes, Aquilo a que os governos tendem,
a despeito dos individuos, sao 0 bem-estar e a calma:
"Mas 0 que 0 homem persegue e deve perseguir a algocompletamente diverso, e variedade e atividade" _ IS Quem
(15) Trad. cit., p. 6S.
LIBERALISMO E DEMOCRACIA 27
pens a diversamente suscita a fundada suspeita de consi-
derar os homens como aut6matos. "De decenio em dece-
nio" - anota (mas 0 que nao teria afirmado diante da
"cela de aco" do Estado burocratico de hoje") - "au-mentam, na maior parte dos Estados, 0 pessoal dos fun-
cionarios e os arquivos, enquanto diminui a liberdade
dos suditos" .16 Conc1ui: "Desconsideram-se assim os ho-
~nens... para ocuparern-se das coisas; as energias para
interessarern-se pelos resultados" Y
Desse modo, a defesa do individuo contra a tentacao
do Estado de prover ao seu bem-estar golpeia nao apenas
a csfera dos interesses, mas tambem a esfera moral; hoje
cstamos demasiadamente influenciados pela critic a ex-
clusivamente econ6mica ao Wei/are State para nos dar-
1l10S conta de que 0 primeiro liberalismo nasce com uma
forte carga etica, com a critica do paternalismo, tendo a
sua principal razao de ser na defesa da autonomia da
pessoa humana. Sob esse aspecto, Humboldt vincula-se
a Kant, este e Humboldt a Constant. Mesmo em Smith,
que de resto antes de ser urn economista foi urn moralis-
la, a liberdade tern urn valor moral.
Ao tema da variedade individual contraposta it un i-
Iormidade estatal vincula-se 0outro tema caracteristico eiuovador do pensamento liberal: a fecundidade do anta-
W mismo. Atradicional concepcao organic a da sociedade
('....ima a harmonia, a concordia mesmo que forcada, a
subordinacao regulada e controlada das partes ao todo,
cundcnando 0 conflito como elemento de desordem e de
desagrcgacao social. Ao contrario disso, em todas as cor-
rcutos de pensamento que se contrapoem ao organicismo
nfirma-se a ideia de que 0 contraste entre individuos e
grupos em concorrencia entre si (inclusive entre Estados,
(16) Trad. cit.. p. 73.
(17) Trad. cit., p. 74.
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I
I
, I
II
II I
1 \ 1 1
II I
j'
28 NORBERTO BOBBIO
don de 0elogio da guerra como formadora da virtude dos
povos) e benefice e e uma condicao necessaria do pro-
gresso tecnico e moral da humanidade, 0 qual apenas se
explicita na contraposicao de opinioes e de interesses di-
versos, desde que desenvolvida essa contraposicao no de-
bate das ideias para a busca da verdade, na competicao
economic a para 0alcance do maior bem-estar social, na
luta politica para a selecao dos melhores governantes.
Compreende-se assim como e que, partindo dessa con-
cepcao geral do homem e da sua hist6ria, a liberdade
individual entendida como emancipacao dos vinculos
que a tradicao, 0 costume, as autoridades sacras e pro-
Ianas impuseram aos individuos no decorrer dos seculos,
torne-se uma condicao necessaria para permitir (junta-mente com a expressao da "variedade" dos carateres in-
viduais) 0conflito e, no conflito, ° aperfeicoamento reci-
proco.
No ensaio Ideia de uma Historia Universal de um
Ponto de Vista Cosmopolita (1784), Kant expressou com
o maximo despreendimento a conviccao de que 0 anta-
gonismo e "0meio de que se serve a natureza para reali-
zar 0 desenvolvimento de todas as suas disposicoes", 18
entendendo por "antagonismo" a tendencia do homemde satisfazer os pr6prios interesses em concorrencia com
os interesses de todos os demais: uma tendencia que exci-
ta todas as suas energias, 0 induz a veneer a inclinacao apreguica e a conquistar urn posta entre QS seus cons6cios.
Sobre 0 significado nao apenas economico mas moral da
sociedade antagonica contraposta a sociedade harmoni-
ca, Kant formula urn juizo que pode muito bern ser con-
siderado como 0micleo essencial do pensamento liberal:
(18) E. Kant, Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbiirgerlicher
Absicht, 1784 (trad. it., Idea di una Storia Universale dal Punto di Vista Cos-
mopolitico , in Scritti Politici, cit ., p. 127) .
LlBERALlSMO E DEMOCRACIA 29
"Scm a insocialidade, todos os talentos permanece-
riam fechados numa vida pastoral arcadica ... ; sem ela os
hornens, tal como as boas ovelhas conduzidas ao pasto-
reio, nao dariam valor algum a existencia". E do enun-
dado desse juizo categ6rico extrai 0 seguinte hino a sa-
piencia da criacao:
Devemos, entao, dar gracas a natureza pela intra-
tabilidade que gera, pela invejosa ernulacao da vai-
dade, pela cupidez jamais satisfeira de possuir e de
dominar! Sem isso, todas as excelentes disposicoes
naturais intrinsecas a humanidade permaneceriam
cternamente adormecidas sem qualquer desenvol-
vimento.v
Como teoria do Estado limitado, 0 liberalismo con-
trupbe 0Estado de dire ito ao Estado absoluto e 0Estado
uunimo ao Estadomaximo. Atraves da teoria do pro-
Mrcssomediante 0 antagonismo, entra ern campo a con-
tI'llposicao entre os livres Estados europeus e 0 despotis-
1110 oriental. A categoria do despotismo e antiga e sempre
Irwc, alem do seu significado analitico, urn forte valor
pol(·lllico. Corn a expansao do pensamento liberal, a elaM' ncrcsccnta lima ulterior conotacao negativa: precis a-
uu-utc em de~orrencia da submissao geral - pela qual,
1'011111j[l havia dito Maquiavel, 0 principado do Turco ej.!lIwrllado "por urn principe e todos os outros sao ser-
vos" ,'Il ou entao, como dira Hegel (17'70-1831), nos rei-
!IllS dcspoticos do Oriente "apenas urn e livre"?' -, os
(19) 'I'rad. cit., p. 128.
(20) N. Machiavelli, II Principe, cap. 4, in Tutte le Opere, F. Flora
(," g.). Milao, Mondadori, 1949, vol. 1, p. 14.
(21) G. W. F. Hegel, Vorlesungen iiber die Philosophie der Geschichte
lit "d. it., Lezione sul/a Filosofia della Storia, Florenca, La Nuova I tal ia , 1947,
, , , I . I. p. 158).-
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]() NORBERTO BOBBIO
Estados despoticos sao estacionarios e imoveis, nao es-
tan do sujeitos a lei do progresso indefinido que vale ape-
nas para a Europa civil. Desse ponto de vista, 0 Estado
liberal converte-se, mais que numa categoria politica ge-
ral, tambem num criterio de interpretacao historica.
6. Democracia dos
,antigos e dos modernos
Como teoria do Estado (e tambem como chave de
lnterpretacao da hist6ria), 0 liberalismo e moderno, en-
quanta a democracia, como forma de governo, e antiga.
() pcnsamento politico grego nos transmitiu uma celebre
Ilpologia das formas de governo das quais uma e a demo-
cracia, definida como governo dos muitos, dos mais, da
muioria, ou dos pobres (mas onde os pobres tomam a
diuulcira
esinal de que 0 poder pertence ao plethos ,
aIIIIINsa), em suma, segundo a propria composicao da pa-
IIIVI'Ol, como governo do povo, em contraposicao ao go-
VI'IIIII de uns poucos. Seja 0 que for que se diga, a verda-
til' (,que, nao obstante 0 transcorrer dos seculos e todas
liS discussoes que se travaram em torno da diversidade da
deuiocracia dos antigos com respeito a democracia dos
uiodcrnos, 0 significado descritivo geral do termo nao se
ullerou , embora se altere, conforme os tempos e as dou-
trinas, 0 seu significado valorativo, segundo 0 qual 0 go-
vcrno do povo pode ser preferivel ao governo de urn ou de
1 )( iucos e vice-versa. 0 que se considera que foi alterado
1 1 < 1 passagem da democracia dos antigos a democracia
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32NORBERTO BOBBIO
dos modernos, ao menos no julgamento dos que veem
como iitil tal contraposi~ao, nao e 0titular do poder poll-
tico, que e sempre 0 "povo", entendido como 0 conjunto
dos cidadaos a que cabe em ultima instancia0
direito detomar as decisoes coletivas, mas 0modo (mais ou menos
amplo) de exercer esse direito: nos mesmos anos em que,
atraves das Declara~oes dos Direitos, nasce 0 Estado
constitucional moderno, os autores do Federalista con-
trapoem a democracia direta dos antigos e das cidades
medievais it democracia representativa, :que e 0 unico
governo popular possivel num grande Estado. Hamiltonse exprime do seguinte modo:
E impossiveller a respeito das pequenas republic as
daGrecia e da Italia sem provar sentimentos de hor-
ror e desgosto pelas agita~oes a que estavam elas
submetidas, e pela rapida sucessao de revolu~oes
que as mantinham num estado de perpetua incerte-
za entre os estadios extremos da tirania e da anar-quia. 22
Madison the faz eco:
odefensor de governos populares jamais se encon-
trara tao embara~ado em considerar 0 carater e 0
destino deles como quando apreciar a facilidade
com que degeneram aquelas formas corruptas do vi-ver politico. 23
(22) A. Hamilton, J. Jay e J. Madison, The Federalist (1788) (trad. it.,II Federalista, M. D'Addie e G. Negri (orgs.), Bolonha, II Mulino, 1980,p.83).
(23) Trad. cit., p. 89.
L1BERALISMO E DEMOCRACIA 33
Afirmar que 0 defeito da democracia citadina Iosse
() agitar-se das Iaccoes era, na realidade, urn pretexto e
refletia 0 antigo e sempre recorrente desprezo pelo povo
por parte dos grupos oligarquicos: as divisoes entre par-
tes contrapostas iriam se reproduzir sob a forma de par-
lidos nas assembleias dos representantes. 0 que, ao con-
trario, constituia a unica e solida razao da democracia
representativa eram objetivamente as grandes dimensoes
dos Estados modernos, a comecar da propria uniao dastreze colonias inglesas, a respeito de cuja constituicao
os escritores do Federalista estavam discutindo. Havia
reconhecido isso 0 proprio Rousseau, admirador apai-
xonado dos antigos que tinha tornado a defesa da de-
mocracia direta sustentando que "a soberania nao pode
scr representada" e, portanto, "0povo ingles ere ser
livre, mas se equivoca redondamente; so 0 e durante a
eleicao dos membros do parlamento; tao logo sao esses
clcitos, ele volta a ser escravo, nao e mais nada" . 2 , 4 Rous-
M'all, entretanto, tambem estava convencido de que
"IIlila verdadeira democracia jamais existiu nem existi-
Ii,", puis exige, acima de tudo, urn Estado muito peque-
IH1, "110 qual seja Iacil ao povo se reunir"; em segundo
Iligar, "uma grande simplicidade de costumes"; alem do
IIIl1is, "urna grande igualdade de condicoes e fortunas";
pOI' rim, "pouco ou nada de luxo". Donde era levado a
(',,"clllir: "Se existisse urn povo de deuses, seria gover-
undo democraticamente. Mas urn governo assim perfeito
11:,06 feito para os homens", 25 Tanto os autores do Fede-ralista quanta os constituintes franceses estavam conven-
cidos de que 0 unico governo democratico adequado a
1 1 1 1 1 povo de homens era a democracia representativa,
aquela forma de governo em que 0 povo nao toma ele
(24) 1. J. Rousseau, nil Contra! Social, Il, 15(trad. cit., p. 802).
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34 NORBERTO BOBBIO
mesmo as decisoes que the dizem respeito, mas elege seus
proprios representantes, que devem por ele decidir. Mas
nao pensavam realmente que instituindo uma democra-
cia representativa acabariam por enfraquecer 0principio
do governo popular. Prova disso e que a primeira consti-tuicao escrita dos estados da America do Norte, a da Vir-
ginia (1776) - mas a mesma formula se encontra tam-
bern nas constituicoes sucessivas -, diz: "Todo 0 poder
repousa no povo e, em conseqiiencia, dele deriva; os ma-
gistrados sao os seus fiduciaries e servidores, e durante
todo 0 tempo responsaveis perante e1e"; eo artigo 3? da
Declaracao de 1789 repete: "0 principio de toda sobera-
nia reside essencialmente na nacao. Nenhum corpo, ne-
nhum individuo pode exercer uma autoridade que naoemane expressamente da nacao" . A parte 0fato de que 0
exercicio direto do poder de decisao por parte dos cida-
daos nao e incompativel com 0 exercicio indireto atraves
de representanteseleitos, como demonstra a existencia
de constituicoes, como a italian a vigente (que previu 0
instituto do referendum popular, embora apenas com
eficacia ab-rogativa), tanto a democracia diretaquanto a
indireta descendem do mesmo principio da soberania
popular, apesar de se distinguirem pelas modalidades e
pelas form as com que essa soberania e exercida.De resto, a democracia representativa tambem nas-
ccu da conviccao de que os representantes eleitos pelos
cidadaos estariam em condicoes de avaliar quais seriam
os interesses gerais melhor do que os proprios cidadaos,
fechados demais na contemplacao de seus proprios inte-
resses particulares; portanto, a democracia indireta seria
mais adequada precisamente para 0 alcance dos fins a
que fora predispostaa soberania popular. Tambem sob
esse aspecto a contraposicao entre democracia dos anti-
gos e democracia dos modernos termina por ser desvian-
te, na medida em que a segunda se apresenta, ou e apre-
LIBERALISMO E DEMOCRACIA 35
sentada, como mais perfeita, com respeito ao fim, do que
a primeira. Para Madison, a delegacao da acao do go-
verno a urn pequeno mimero de cidadaos de provada sa-
bedoria torn aria "menos provavel 0 sacrificio do bern do
pais a consideracoes particularistas e transitorias" .26 Masisso desde que 0deputado, uma vez eleito, se comportas-
se nao como urn homem de confianca dos eleitores que 0
tinham posto no parlamento, mas como urn representan-
Ie da nacao inteira. Para que a democracia fosse em sen-
lido proprio rep resentativa , era necessario que fosse ex-
cluido 0mandato vinculatorio do eleitor para com 0 elei-
to, caracteristico do Estado de estamentos, no qual os
cstamentos, as corporacoes, os corpos coletivos transmi-
Ham ao soberano, atraves de seus delegados, as suas rei-vindicacoes particulares. Tambem nessa materia 0 ensi-
namento vinha da Inglaterra. Burke havia dito:
Exprimir uma opiniao e urn direito de todo homem;
ados eleitores e uma opiniao que pesa e deve ser res-
peitada, e urn representante precisa estar sempre
pronto a escuta-la ... Mas instrucoes imperativas,
mandatos aos quais 0membro das AssemblCias deve
cxpressa e cegamente obedecer, tais coisas sao com-
plctamente estranhas as leis dessa terra. 27
Para tornar inclusive formalmente vinculatoria a
M~para<:fLO entre representante e representado, os consti-
IlIillles Iranceses, seguindo a opiniao eficazmente expos-
II pOI" Sieyes (1748-1836), introduziram na constituicao
,I" 1 791 a proibicao de mandato imperativo com 0 art. 7?,
II.. se<;. III, do cap. I, do titulo II, que prescreve: "Os
rcprcscntantes nomeados nos departamentos nao serao
(26) The Federalist, cit., p. 96.
(27) Edmund Burke , Speech at the Conclusion of the Poll on his Being
/ I" . .lured Duly Elected, in The Works. J. Dodsley , 1792, vol . 2, p. 15.
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36 NORBERTO BOBBIO
representantes de urn departamento particular, mas da
nacao inteira, e nao podera ser dado a eles nenhum man-
dato" .28 Desde entao, a proibicao feita aos representantes
de receber urn mandato vinculatorio da parte de seus
e1eitores tornar-se-a urn principio essencial ao funciona-
mento do sistema parlamentar, 0 qual, exatamente em
virtu de desse principio, distingue-se do velho Estado de
estamentos em que vigor a 0 principio oposto da repre-
sentacao corporativa fundada sobre 0vinculo de manda-
to do delegado que e institucionalmente chamado a de-fender os interesses da corporacao, disso nao se podendo
distanciar sob pena de perder 0 dire ito de representacao.
A dissolucao do Estado de estamento liberta 0 individuo
na sua singularidade e na sua autonomia: e ao individuoenquanto tal, nao ao membro de uma corporacao, que
cabe 0 direito de eleger os representantes da nacao - os
quais sao cham ados pelos individuos singulares para re-
presentar a nacao em seu conjunto e devem, portanto,
desenvolver sua acao e tomar suas decisoes sem qualquervinculo de mandato. Se por dernocracia modern a enten-
de-se a democracia representativa, e se a democracia re-
presentativa e inerente a desvinculacao do representante
da nacao com respeito ao singular individuo representa-
do e aos seus interesses particularistas, entao a democra-
cia moderna pressupoe a atomizacao da nacao e a sua
recomposicao num nivel mais elevado e ao mesmo tempo
mais restrito que e 0 das assembleias parlamentares.
Mas tal processo de atomizacao e 0 mesmo processo do
qual nasceu a concepcao do Estado liberal, cujo fund a-
mento deve ser buscado, como se disse, na afirmacao dos
direitos naturais e inviolaveis do individuo.
(28) Para urn comentario sobre 0tema, ver P < Violante, La spazio della
Rormresentanza. I. Francia 1788·1789, Palermo, Renzo Mazzone Editore,
7. Democracia eigualdade
o liberalismo dos modernos e a democracia dos an-
Iig()s foram frequentemente considerados antiteticos, no
scntido deque os dernocratas da antigiridade nao conhe-
Ci:1Il1 nern a doutrina dos direitos naturais nem 0 dever
(1" I '>.;tadode limitar a propria atividade ao minirno ne-
('l'~:;:lri() para a sobrevivencia da comunidade. De outra
!lllrk,Los modernos liberais nasceram exprimindo uma
profunda desconfianca para com toda forma de governo
popular, tendo sustentado e defendido 0 sufragio restrito
duran te todo 0 area do seculo XIX e tambem posterior-
1111'111( ' . 1 £ 1 a democracia modern a nao so nao e incompa-
IIVI'i ('(-;i"n0 liberalismo como pode dele ser considerada,
Nub ruu ilos aspectos e ao menos ate urn certo ponto, urn
natural prosseguimento.
Corn uma condicao: que se tome 0 termo "demo-
l'l";tl'ia" em seu significado juridico-institucional e nao no
dico, ou seja, num significado mais procedimental do
que substancial. E inegavel que historicamente "demo-vracia" teve dois significados prevalecentes, ao menosna
origem, conforme se ponha em maior evidencia 0conjun-
to das regras cuja observancia e necessaria para que 0
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38 NORBERTO BOBBIO
poder politico .seja efetivamente distribuido entre a maior
parte dos cidadaos, as assim chamadas regras do [ogo,
ou 0 ideal em que um governo democratico deveria se
inspirar, que e 0 da igualdade. A base dessa distincao
costuma-se distinguir a democracia formal da substan-
cial, ou, atraves de uma outra conhecida forrnulacao, a
democracia como governo do povo .da democracia como
governo para 0povo. Nao e 0caso, aqui, 'de repetir ainda
uma vez que nessas duas acepcces a palavra "democra-
cia" e usada em dois significados diversos 0 suficiente
para produzirem imiteis e interminaveis discussoes,
como a dedicada a saber se e mais democratico um regi-
me em que a democracia formal nao se faz acompanharde uma ampla igualdade ou 0regime em que uma ampla
igualdade e obtida atraves de um governo desp6tico.
Desde quena Ionga hist6ria da teoria democratica se
combinam elementos de metodo e motivos ideais, que
apenas se encontram fundidos na teoriarousseauniana,
na qual 0 ideal fortemente igualitario que a move s6 en-
contra realizacao na formacao da vontade geral, ambos
os significados sao historicamente legitimos, Mas a legi-
timidade historica de seu usa nao permite nenhuma ila-
<;aosobre a eventual presenca de elementos conotativoscomuns.
Dos dois significados, eo primeiro que esta histori-
camente ligado a formacao do Estado liberal. No caso de
se assumir 0segundo, 0problema das relacoes entre libe-
ralismo e democracia torna-se muito complexo, tendo ja
dado lugar, e ha motivos para crer que continuara a dar
lugar, a debates inconclusivos. De fato, nesse modo 0
problema das relacoes entre liberalismo e democracia se
resolve no dificil problema das relacoesentre liberdade eigualdade, um problema que pressupos uma resposta
univoca a essas duas perguntas: "Qualliberdade? Qualigualdade?" .
LIBERALISMO E DEMOCRACIA 39." ..
~Em seus significados mais amplos, quando se esten-
dum a esfera economica respectivamente 0 direito a li-
bcrdade e 0direito a igualdade, como ocorre nas doutrinasopostas doliberismo* e do igualitarismo, liberdade e igual-
dude sao valores antiteticos, no sentido de que nao se
rode realizar plenamente um semlimitar fortementeo
oiuro: uma sociedade liberal-liberista e inevitavelmente
I1l1o-iguaHt£uia, assim como lima sociedade igualitaria einevitavelmente nao-liberaC'J_,ibertarismo e igualitarismo
Iundam suas raizes em concep<;oes do homem e da socie-
dude profundamente diversas: individualista, conflitua-
Iista e pluralista a liberal; totalizante, harmonica e mo-
nista a igualitaria.!'J?ara 0 liberal, 0 fim principal e a ex-
punsao da personalidade individual, mesmo se 0 desen-
volvimento da personalidade mais rica e dotada puder se
nfirrnar em detrimento do desenvolvimento da persona-
lldade mais pobre e menos dotada; para 0 igualitario, 0
fill! principal eo desenvolvimento da comunidade em seu
conj I I 1 1to, mesmo que ao custo de diminuir a esfera deIlIwrdade dos singulares,
\ A {mica forma de igualdade que nao s6 e compativel( '0111 II liberdade tal como entendida pela doutrina libe-rul, max que e inclusive por essa solicitada, e a igualdadelilt lihcrdade: 0 que significa que cada urn deve gozar de
1 1 1 1 1 1 / 1 liberdade quanto compativel com a liberdade dos
0111 ros, nodendo fazer tudo 0 que nao of end a a igual li-
h("! 'dade dos outros:lj>raticamentr desde as origens do
ENtudo liberal essa forma de igualdade inspira dois prin-
dpills fundamentais, que sao enunciados em normas
l'ollstitucionais: a) a igualdade perante a lei; b) a igual-
( ...) Como ficara claro ao longo do texto, e particularmente no capi-
1111"Ih, infra, em italiano Ia la-se em "liberismo" para designar sobretudo 0
unlverso do liberalismo economico, do livre-cambismo, ficando 0 termo "libe-
rulismo" reservado para 0universo do Iiberalismo polit ico. (N. T.)
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40 NORBERTO BOBBIO
-!
dade dos direitos. \0 prirneiro pode ser encontrado nas
constituicoes fran~esas de 1791, 1793 e 1795; e depois
gradativarnente no art. 10 da Carta de 1814" no art. 6°
da constituicao belga de 1830, no art. 24 do estatuto al-bertino (1848). De igual dimensao e considerada a XIV
Ernenda da Constituicao dos Estados Unidos, que deseja
assegurada a cada cidadao "a igual protecao das leis". 0
segundo encontra-se afirrnado solenemente no art. 1? da
Declaracao dos Direitos do Hornern e do Cidadao de
1789: "Os hornens nascem e devem permanecer livres e
iguais em seus direitos". Ambos os principios atravessarn
toda a historia do constitucionalismo moderno e estao
conjuntamente expressos no art. 3?, primeiro paragrafo,
da constituicao italiana vigente: "Todos os cidadaos tern
identica dignidade social e sao iguais perante a lei".
o principio da igualdade perante a lei pode ser in-
terpretado restritivamente como uma diversa Iormulacao
do principio que circula em todos os tribunais: "A lei eigual para todos" Nesse senti do significa simplesmente
que 0juiz deve ser imparcial na aplicacao da lei e, como
tal, faz parte integrante dos remedies constitutivos e
aplicativos do Estado de direito, sendo assim inerente ao
Estado liberal pela j:i mencionada identificacao do Esta-
do liberal com 0Estado de direito. Extensivamente isso
significa que todos os cidadaos devem ser submetidos as
mesmas leis e devem, portanto, ser suprimidas e nao re-
tomadas as leis especificas das singulares ordens ou es-
tados: 0 principio e igualitario porque elimina uma dis-
criminacao precedente. No preambulo da constituicao de
1791, le-se que os constituintes desejaram abolir "irre-
vogavelmente as instituicoes que feriam a liberdade e a
igualdade dos direitos", e entre tais instituicoes sao in-cluidas as mais caracteristicas instituicoes feudais. 0
preambulo se encerra com uma frase: "Nao existem mais
para parte alguma da nacao, nem para algum individuo,
LIBERALISMO E DEMOCRACIA 41
qualquer privilegio ou excecao ao direito comum de to-
dos os franceses", que ilustra a contrario, como melhor
na o se poderia desejar, 0 significado do principio da
lgualdade diante da lei como recusa da sociedade por
estamentos e, assim, ainda uma vez, como afirmacao dasociedade em que os sujeitos originarios sao apenas os
lndividuos uti singuli.
Quanto a igualdade nos ou dos direitos, ela repre-
scuta urn momento ulterior na equalizacao dos indivi-
duos com respeito a igualdade perante a lei entendida
como exclusao das discriminacoes da sociedade por es-
tumcntos: significa 0 igual gozo por parte dos cidadaos
de alguns direitos fundamentais constitucionalmente ga-
ruutidos. Enquanto a igualdade perante a lei pode serintcrpretada como uma forma especifica e historic amen-
to deterrninada de igualdade juridica (por exemplo, no
dlreito de todos de ter acesso a jurisdicao comum ou aos
principais cargos civis e militares, independentemente do
nnsci rnento) , a igualdade nos direitos compreeende a
lMlialdade em todos os direitos fundamentais enumera-
! lo s n urn a constituicao, tanto que podem ser definidos
como fundamentals aqueles, e somente aqueles, que
dcvcm ser gozados por todos os cidadaos sem discrirni-
l Iu,, '( ')es derivadas da classe social, do sexo, da religiao, da
1 ' 1 1 , , ' 1 1 , etc. 0 elenco dos direitos fundamentais varia de
(-po('a para epoca, de povo para povo, e por isso nao se
pwk fixar urn elenco de uma vez por todas: pode-se ape-
IIiIS diver que sao fundamentais os direitos que numa de-
[orutiuada constituicao sao atribuidos a todos os cida-
dflw; indistintamente, em suma, aqueles diante dos quais
1 1 ) ( los (IS cidadaos sao iguais,
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L1BERAlISM() I', DEMOCRACIA 43
8. 0 encontro entre
Iiberalismo edemocracla
que e, como se viu, a soberania popular. 0 unico modo
de tornar possivel 0 exercicio da soberania popular e a
atribuicao ao maior numero de cidadaos do dire i to de
participar direta e indiretamente na tomada das decisoes
coletivas; em outras palavras, e a maior extensao dos di-
reitos politicos ate 0 limite ultimo do sufragio universal
tnasculino e Ieminino, salvo 0 limite da idade (que em
geral coincide com a maioridade). Embora muitos escri-
(ores liberais tenham contestado a oportunidade da ex-
tensao do sufragio e no momenta da formacao do Estado
liberal a participacao no va to fosse consentida apenas
<lOS proprietaries, a e que 0 sufragio universal
na o e em linha de contrario nem ao Estado de
direito nem ao Estado minimo.Ao contrario, deve-se di-
zer que se foi Iorrnando uma tal interdependencia entre
lim C outro que, enquanto no inicio puderam se Iormar
I ':stados liberais que nao eram democraticos (a nao ser
nas dcclaracoes de principio), hoje Estados liberais nao-
dcmocraticos nao mais concebiveis, nem Estados
dcmocraticos que nao Iossern tambem liberais. Existem,
em surna, boas razoes para crer: a) que hoje 0 metodo
dcmocratico seja necessario para a salvaguarda dos direi-
los Iuudamentais da pessoa, que estao na base do Estado
direitos seja necessa-ria pard 0 correto do metodo democra-
IH'I\.
Com respeito ao primeiro ponto deve-se observar 0
IIII!' St'!',lIC: a maior garantia de que os direitos de liber-
datil' sl'jam protegidos contra a tendencia dos govern an-
k:, dt' limita-los e los esta na possibilidade que
(I. ('jrbdilos ten ham defends-los contra os eventuais
uhusos , 0 melhor remedio contra 0 abuso de poder sob
qualquer forma - mesmo que "melhor" nao queirarc.rlmente dizer nem otimo nem infalivel -- e a partici-
p,,\~l() direta au dos cidadaos, do maior mimero
Nenhum dos principios de igualdade, acima ilustra-
dos, vinculados ao surgimento do Estado liberal, tern a
ver com 0 igualitarismo democratico, 0 qual se estende
ao ponto de perseguir 0 ideal de uma certa equalizacao
economica, estranha a tradicao do pensamento liberal,
Este se projetou ate a aceitacao, alem da igualdade juri-
dica, da igualdade das oportunidades, que preve a equa-
lizacao dos pontos de partida, mas nao dos pontos de
chegadaf Com respeito, portanto, aos varios significados
possiveis de igualdade, liberalismo e democracia estaodestinados a nao se encontrar, 0 que explica, entre ou-
tras coisas, a contraposicao historica entre eles durante
uma longa fase. Em que senti do , entao, a democracia
pode ser considerada como 0prosseguimento e 0 aperiei-
coamento do Estado liberal, ao ponto mesmo de justifi-
car 0 usa da expressao "liberal-democracia" para desig-
nar urn certo mimero de regimes atuais? Nao s6 0 libera-
lismoe compativel com a democracia, mas a democracia
pode ser considerada como
°natural desenvolvimento do
Estado liberal apenas se tomada nao pelo lade de seu
ideal igualitario, mas pelo lado da sua formula politica,
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44 NORBERTO BOBBIO
de cidadaos, na formacao das leis. Sob esse aspecto, os
direitos politicos Sao urn complemento natural dos direi-
tos de liberdade e dos direitos civis, ou, para usar as co-
nhecidas expressoes tornadas celebres por Jellinek (1851
-1911), os iura activae civitatis constituem a melhor sal-
vaguarda que num regime nao Iundado sobre a sobera-
nia popular depende unieamente do direito natural de
resistencia a opressao,Com respeito ao segundo ponto, que se refere nao
mais a necessidade da demoeracia para a sobrevivencia
do Estado liberal, mas, ao contrario, ao reconhecimento
dos direitos inviolaveis da pessoa sobre os quais se funda
o Estado liberal para 0born funeionamcnto da democra-
cia, deve-se observar que a participacao no voto pode ser
considerada como correto e eficaz exercicio de urn poderpolitico, isto e , 0 poder de influenciar a formacao das
decisoes coletivas, apenas caso se descnvolva livremente,
quer dizer, apenas se 0 individuo se dirige as urn as para
expressar 0 proprio voto goza das liberdades de opiniao,
de imprensa, de reuniao, de associacao, de todas as li-
berdades que constituem a essencia do Estado liberal, e
que enquanto tais passam por pressupostos necessaries
para que a participacao seja real enao ficticia.
Ideais liberais e metodo democratico vier am gra-
dualmente secombinando num modo tal que, se e ver-
dade que os direitos de liberdade foram desde 0 inicio a
condicao necessaria para a direta aplicacao das regras do
jogo democratico, e igualmente verdadeiro que, em se-
guida, 0 desenvolvimento da democracia se tornou 0
principal instrumento para a defesa dos direitos de liber-
dade. Hoje apenas os Estados nascidos das revolucoes
liberais sao democraticos c apcnas os listados democra-
ticos protegem os direilos do homcm: todos os Estados
autoritarios do nuuulo sao ;H) IllesIII0 tempo antiliberaise antidemocra InIS.
9. Individualismo e• •orgamcismo
Esse nexo reciproco entre liberalismo e democracia
e possivel porque ambos tern urn ponto de partida co-
mum: 0 individuo. Ambos repousam sobre uma concep-
cao individualista da sociedade. Toda a historia do pen-
samento politico esta dominada por uma grande dicoto-
mia: organicismo (holismo) e individualismo (ato-
mismo). Mesmo que 0 movimento nao seja retilineo,
pode-se dizer com uma certa aproximacao que 0 organi-
cismoe antigo, e 0 individualismo moderno (ou pelo me-
nos dele se pode fazer comecar a teo ria do Estado mo-
derno): uma contraposicao historicamente mais correta
que a proposta por Constant entre democracia (antiga) e
liberalismo (moderno). Enquanto 0 organicismo consi-
dera 0Estado como urn grande corpo composto de partes
que concorrem - cada uma segundo sua propria desti-
nacao e em relacao de interdependencia com todas as
demais - para a vida do todo, e portanto nao atribui
nenhuma autonomia aos individuos uti singuli, 0 indivi-dualismo considera 0Estado como urn conjunto de indi-
viduos e como 0 resultado da atividade deles e das rela-
\" " . . . ." . " " " . " " " ' ". " ; L I " ' " " ' . - - - - - , I I U U & i i l l . l ll l i l i U i l iU ~ l l i l i I U I1 1 . l i l l • • • • • • • • •
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46 NORBERTO BOBBIO
coes POI' des estabelecidas entre si. 0 principio constitu-
tivo do organicismo foi formulado de uma vez para sem-
pre por A ristoteles, nas primeiras paginas da Politica:
"0 todo precede necessariamente a parte, com 0 que,
quebrado 0 todo, nao havera mais nem pes nem maos",
com a conseqiiencia de que "a cidade e por natureza
(atente-se: "por natureza") anterior ao individuo" .29 Para
se encontrar uma cornpleta e perfeitamente consciente
teoria individualista e preciso chegar a Hobbes, que par-
te da hipotese de urn est ado de natureza em que existem
apenas individuos separados uns dos outros por suas
paixoes e por seus interesses contrapostos, individuos
Iorcados a se unir de comum acordo numa sociedade po-
Utica para Iugir da destruicao reciproca, Essa reviravolta
no ponto de partida tern conseqiicncias decisivas para 0
nascimento do pensamento liberal e dernocratico moder-
no. No que diz respeito ao liberalismo, uma coerente
concepcao organica, que considera 0Estado como uma
totalidade anterior e superior as suas partes, nao pode
conceder nenhum espaco a esferas de acao independen-
tes do todo, nao pode reconhecer uma distincao entre
esfera privada e esfera publica, nem justificar a subtra-
.;ao dos interesses individuais, satisfeitos nas relacoes
com outros individuos (0mercado), ao interesse publico.No que diz respeito a democracia , que se funda sobre uma
concepcao ascendente do poder, o organicismo, fundan-
do-se ao contrario sobre uma concepcao descendente, se
inspira em modelos autocraticos de governo: dificil ima-
ginar urn organismo em que sejam os membros a co-
mandar e nao a cabeca,
Resta dizer que, ernbora xcndo 0 liberalismo e a de-
mocracia conccpcoes irulividualistas, 0 individuo do pri-
(2'1) /\,i·.I"klo--_. I', .{,I ••. , I '-. II II,,,,, II.,(. i\ _Viall" (org.), Turim,
U te l, l q_ ', .~ , \ '. ' ,· 11
IIII
, I I II. .
LlBERAUSMO l'DLMOCRAClA 47
meiro nao eo mesmo individuo da segunda, ou para di-
zer melhor, 0 interesse individual que 0primeiro se pro-
poe a proteger nao e 0 protegido pela segunda. 0 que
pode servir para explicar, ainda uma vez, porque e que a
cornbinacao entre liberalismo e democracia nao apenas e
possivel, como tam bern necessaria.
Nenhuma concepcao individualista da sociedade
prescinde do fato de que 0 homem e urn ser social, nem
considera 0 individuo isolado. 0 individualismo nao deve
ser confundido com 0 anarquismo filos6fico a Stirner
(1806-1856). Mas as relacoes do individuo com a socie-
dade sao vistas pelo liberalismo e pela democracia de
modo diversos: 0primeiro extrai 0 singular do corpo or-
ganico da sociedade e 0 faz viver, ao menos por uma lar-
ga parte da sua vida, fora do ventre materno, pondo-o nomundo desconhecido e pleno de perigos da luta pela so-
brevivencia; a segunda 0 reune aos outros homens, a ele
semelhantes, para que da uniao deles a sociedade seja
recomposta nao mais como um todo organico, mas como
uma associacao de individuos livres. 0 primeiro reivin-
dica a liberdade individual tanto na esfera espiritual
quanto na economic a contra 0Estado; a outra reconcilia
o individuo com a sociedade fazendo desta 0 produto de
urn acordo dos individuos entre si. 0 primeiro faz dosingular 0protagonista de toda atividade que se desenro-
la fora do Estado; a segunda 0 faz protagonista de uma
forma divers a de Estado, na qual as decisoes coletivas
sao tomadas diretamente pelos singulares ou POl' seus
delegados ou representantes, Do individuo 0 primeiro
poe em evidencia a capacidade de se autoformar, de de-
senvolver as proprias faculdades, de progredir intelectual
e moralmente em condicoes de maxima liberdade em
relacao a vinculos externos impostos coercitivamente; a
segunda exalta, sobretudo, a capacidade de superar 0
isolamento atraves de varies expedientes capazes de per-
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48 NORBERTO BOBBIO
mitir a inslilui(,:i'to de um poder comum nao tiranico, Das
duas faces do individuo 0 primeiro obscrva a que esta
voltada para 0 interior; a segunda, a voltada para 0 exte-
rior. Trata-se de dois individuos potencialmente diver-
sos: 0 individuo como microcosmo ou totalidade em si
mesma completa, ou como particula indivisive 1(atomo),
mas diversamente componivel e recomponivel com ou-
tras particulas semelhantes numa unidade artificial (e,
portanto, sempre decomponivel).
Tanto 0 individualismo liberal quanto 0 individua-
lismo democratico nascem, como sc disse, em contraste
com as varias formas de organicixmo, mas atraves de
dois processes diversos: 0primciro por gradual corrosao
da totalulade, atraves da qual ox individuos, como filhos
tornados maiorcs de idudc, dcstacam-se do grupo primi-
tivo onipotcnte e oniprcxcnte e conquistam espacos sem-
pre mais amplos de acao pcxxonl: 0segundo por dissolu-
cao interua da compacta unidade global, donde se for-
mam partes indcpcndentes umax <lasoutras e todas jun-
tas do inteiro, e comecam a ter vida propria. 0 primeiro
processo tem POI' efeito a reducao aos minimos term os do
poder publico, 0 segundo 0 reconstitui, mas como soma
de poderes particulares, 0 que e evidente no contratua-
lismo que funda 0 Estado sobre um instituto juridico,como 0 contrato, proprio da esfera do direito privado,
onde se encontram vontades particulares para a forma-
cao de uma vontade comum.
10. Liberals edemocratas
no seculo XIX
No continente europeu, a historia do Estado liberal
e da sua continuacao no Estado dernocratico pede ter seu
inicio fixado justarnente na idade da restauracao que,
com uma certa enfase retorica - nao desprezivel noana
do decimo aniversario do regime faseista, quando aque-
las paginas foram publicadas (1932) -, Benedetto Croce
(1866-1952) chamou de idade da "religiao da liberdade",
na qual acreditava ver 0 "periodo germinal" de umanova civilizacao. 30 Em seu conceito de liberdade, Croce
incluia sem maiores distincoes tanto a liberdade liberal,
por exemplo na passagem em que fala de "substituicao
do absolutismo de governo pelo constitucionalismo",
quanto a liberdade democratica, ao falar das "reformas
no eleitorado e da ampliacao da capacidade politica", as
quais acrescenta a "libertacao do dorninio estrangeiro"
(ou liberdade como independencia nacional). Mas quan-
(30) Benedetto Croc.., Storia d'Europa nel Secolo Decimonono, Bari,
Laterza. 1932, p. 21.
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50 NORBERTO BOBBIO
to ao "periodo germinal", embora nao desejando chegar
as "florestas germfinicas" em que teria nascido a liber-
dade dos modernos, segundo Montesquieu retomado por
Hegel, a teoria e a praxis moderna do Estado liberal ti-
nham na verdade comecado na Inglaterra do seculo
XVII, que permaneceu por seculos 0modelo ideal para a
Europae os Estados Unidos da America. Naquele cadi-
nho de ideias, naquele pulular de seitas religiosas e de
movimentos politicos que foi a revolucao puritana, abri-
ram caminho todas as ideias de liberdade pessoal, de re-
ligiao, de opiniao e de imprensa destinadas a se tornarem
opatrimonio duradouro do pensamento liberal. Em seu
exito sangrento se havia afirmado a superioridade do
parlamento sobre 0 rei, que, embora gradualmente e de
maneira alternada, terminaria por impor 0Estado repre-
sentativo como forma ideal de constituicao, cuja eficacia
ainda subsiste (inclusive porque nao foi substituida por
nada melhor); a doutrina da separacao dos poderes ins-
pirou Montesquieu e atraves dele 0 constitucionalismo
americano e europeu. Se por democracia se entende
como fazemos aqui, a extensao dos direitos politicos a
todos os cidadaos maiores, entao 0 ideal democratico
teve a sua primeira afirmacao forte nos anos da great
rebellion: foram de fatos os Niveladores que, no Pactodo Livre Povo Ingles (1649), afirmaram pela primeira
vez, contra 0 principio dominante (e por dois seculos
mantido intangivel) da limitacao dos direitos politicos
apenas aos proprietaries, 0principio democratico segun-
don qual
a suprema autoridade da Inglaterra e dos territories
a eia incorporados ser;1(~residir{t de agora em diante
numa rcprcscn t :11:;111o PIIVll cornposta por quatro-
centas peSSllas, 11;1\. tuais, na eleicao das quais -
justa a lei da 11;1111n'/Il todos os homens maiores
L1BERAI.lSMO E DFMOCRACIA 51
de vinte e urn anos ... terao direito de voto e serao
elegiveis para aquele cargo supremo."
Alem domais, apenas na Inglaterra, a partir da se-
gunda revolucao (1688), a passagem da monarquia cons-
titucional a monarquia parlamentar, da monarquia limi-
tada a democracia alargada, ocorre por evolucao inter-
na, sem tremores violentos ou retrocessos, atraves de urn
processo gradual epacifico.
Na Franca, que sob tantos aspectos foi urn guia para
a Europa continental, 0 processo de democratizacao foi
bern mais acidentado: a tentativa de irnpo-lo pela Iorca
na revolucao de 1848, rapidamente debelada, levou ainstauracao de urn novo regime cesarista (0 segundo im-
perio de Napoleao II!). Enquanto 0 ultimo regime cesa-
rista ingles, a ditadura de Cromwell, estava ja distante,
na Franca a rapida passagem da republica jacobina ao
imperio napoleonico suscitou nos escritores fortes senti-
mentos liberais antidernocraticos, que nao morrerao tao
cedo e deixarao profundas marcas no debate sobre a pos-
sivel e auspiciosa continuidade entre Estado liberal e Es-
tado democratico. Junto aos escritores conservadores
tornou-se quase urn lugar-comum, nao sem reminiscen-
cias classicas eem particular platonicas, a tese segundo a .qual democracia e tirania sao as duas faces de uma mes-
rna moeda e 0cesarismo nada mais tinha sido do que a
natural e terrivel consequencia da desordem provocada
pelo advento da republica e dos demagogos. Nas ultimas
paginas da Democracia na America, Tocqueville (1805-
1859) formulara sua celebre profecia:
Imaginemos sob quais novos aspectos 0 despotismo
poderia ser produzido no mundo: vejo uma multi-
(31) Ver in V. Gahricli, Puritanesimo e Liberia, Turim, Einaudi,
1956. pp. 155-156.
i
I
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52 NORBERTOBOBBIO
dao inumeravel de homens semelhantes e iguais,
que nada mais fazem que girar sobre si mesmos,
em busca de pequenos e vulgares prazeres com que
saciar a alma... Acima deles ergue-se urn poder
imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de Ihesgarantir a satisfacao dos bens e de velar POl' sua sor-
teo E absoluto, minucioso, sistematico, previdente e
brando."
A passagem ainda mais rapida da efemera republica
(1848) ao Segundo Imperio pareceu dar razao ao perspi-
caz descobridor da democracia americana.
POl' todo 0 seculo os processos de liberalizacao e de
democratizacao continuaram a se desenvolver, ora con-juntamente, ora separadamente, con forme 0 alargamen-
to do sufragio fosse considerado como uma necessaria
integracao do Estado liberal ou como urn obstaculo ao
seu desenvolvimento, urn acrescimo ou uma diminuicao
de liberdade. A base desse diverso modo de viver a rela-
.;ao entre Estado liberal e democracia, prolongou-se no
amplo alinhamento liberal a contraposicao entre urn li-
beralismo radical, ao mesmo tempo liberal e democrati-
co, e urn liberalismo conservador, liberal mas nao demo-cratico, que jamais renunciou a batalha contra qualquer
proposta de .alargamento do direito de voto, considerado
como uma ameaca a liberdade, Do mesmo modo, no
ambito do amplo alinhamento democratico, passaram a
existir dernocratas liberais e democratas nao-liberais,
esses segundos interessados mais na distribuicao do po-
del' que em sua limitacao, nas instituicoes do autogover-
no mais que na divisao do govnllo central, mais na sepa-
(32) 1\11 \;\ .kl ... ' I'" vil l. : /1 " l., " " 1 1 " " ' 1 , 1 / " " ('/I Amerique (1835-1840)
(trad. ir.. in 1\ , 0 1 ' I . .. 'I'''' ill, \, III/I """11"1, N. M atteuci (org .), Turim ,
,Utet, vol, z , 1', !II ' \
L1BII<I\I.ISM() I, DEMOCRACIA 53
racao horizontal que na vertical dos poderes, mais na
conquista da esfera publica que na cuidadosa defesa da
esfera privada, Enquanto liberais democrat as e demo-
cratas liberais terrninarao por confluir uns nos outros na
promocao gradual das varias etapas, mais ou menos nu-
merosas, do alargamento dos direitos politicos ate 0 su-
fragio universal, os democratas puros ficarao vizinhos
aos primeiros movimentos socialistas, embora numa re-
lacao frequentemente de concorrencia, como acontece na
Italia com 0 partido mazziniano. Entre os democratas
puros e os liberais conservadores a distancia e tamanha
que faz com que sejam reciprocamente incompativeis.
Esquematicamente, a relacao entre liberalismo e
dernocracia pode ser representada segundo estas trescombinacoes: a) liberalismo e democracia sao compati-
veis e, portanto, componiveis, no senti do de que pode
existir urn Estado liberal e democratico sem, porem, que
se possa excluir urn Estado liberal nao-democratico e urn
Estado democratico nao-liberal (0primeiro e 0 dos libe-
rais conservadores, 0 segundo 0 dos democrat as radi-
cais); b) liberalismo e democracia sao antiteticos, no sen-
tido de que a democracia levada as suas extremas conse-
qiiencias termina POl' destruir 0 Estado liberal (comosustentam os liberais conservadores) ou pode se realizar
plenamente apenas num Estado social que tenha aban-
donado 0 ideal do Estado minimo (como sustentam os
democratas radicais); c) liberalismo e democracia estao
ligados necessariamente urn a outra, no sentido de que
apenas a democracia est a em condicoes de realizar ple-
namente os ideais liberais e apenas 0Estado liberal pode
ser a condicao de realizacao da democracia. Usando as
categorias da moralidade, quanta a a, a relacao e de pos-
sibilidade (Iiberalismo vel democracia); quanta a b, a re-
lacao e de impossibilidade (liberalismo aut democra-
cia); quanto a r, {.de necessidade (liberalismo e de-
Ii
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\
54 NORBERTO BOBBIO
mocracia). No momento mesmo em que a democracia,
como forma de governo, se conjuga tanto com 0 libera-
lismo quanta com 0 socialismo, tambem a relacao entre
dernocracia e socialismo pode ser representada de igual
modo como relacao de possibilidade ou de possivel coe-
xistencia, de impossibilidade (por parte dos democrat as
liberais ou, no extremo oposto, dos defensores da ditadu-
ra doproletariado), ou de necessidade, como nas doutri-
nas enos movimentos social-democratas, segundo os
quais apenas atraves da democracia se realiza 0 socialis-
mo e apenas no socialismo 0 processo de realizacao da
democracia chega aoseu pleno cumprimento. 11. A tirania da • •maiona
As duas alas do liberalismo europeu,a mais conser-
vadora ea mais radical, sao bern representadas, respecti-
vamente, pelos dois maiores escritores liberais do seculo
passado, Alexis de Tocqueville eJohn Stuart Mill (1807-
1873). Contemporaneos (0primeiro nascido em 1805 e 0
segundo em 1807), chegaram a se conhecer e se estima-
ram. Mill escreveu naLondon Review, orgao dos radicais
ingleses, uma longa resenha do primeiro volume da De-
mocracia na America. 33 Na obra sobre a democracia re-
presentativa, pubIicada quando 0amigo ja estava morto
(1861), recorda aos seus leitores aquela great work .34
Da sua parte, Tocqueville, ao receber ja moribundo 0
ensaio sobre a liberdade,escreve ao autor: "Nao duvido
que voce sinta a todo instante que neste terreno da liber-
(33) J. S. Mill, "Tocqueville on Democracy in America", in London
Review, junho-janeiro, lIB5-1'U6, pp. 85-129 (trad. it., D. Cofrancesco(org.),Napoles, Guida, 1971, PI'. ')()lhl).
(34) J. S. Mill, ((",,,idcmlions on Representative Government, in Col-
lected Papers of John .')111",., Mill, Londres, University of Toronto Press,
Routledge and Kegan 1',,,,1. 1.t>Il<ires, 1977, vol. 19, p. 468.
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56 NORBERTO BOBBIO
dade nao possarnos caminhar sem nos darmos a mao" .3S
Mesmo considerando a diferenca de tradicoes, decultura
e de temperamento, a obra dos dois gran des escritores
representa bem 0 que de eomum havia nas duas maiores
tradicoes do pensamento liberal europeu, a inglesa e a
francesa, Tocqueville havia dedicado anos de estudo e de
reflexao a democracia de uma sociedade nova e projeta-
da para 0 futuro, como a americana: Mill, de outra par-
te, menos insular do que muitos de seus compatriotas,
conhecia 0 pensamento frances, a cornecar de Comte
(1798-1857).
Tocqueville foi antes liberal que democrata. Estava
firmemente convencido de que a liberdade, principal-
mente a liberdade religiosa emoral (mais que a economi-
ca), era 0 Iundamento e 0 ferrnento de todo poder civil.
Mas havia compreendido que 0seculo nascido da revolu-
cao caminhava impetuosa e inexoravelmente em direcao
a democracia. Era um processo incontrolavel, Na intro-
ducao a primeira parte (Livro I) da sua obra (1835) per-
guntou-se
Por acaso existe alguem capaz de pensar que a de-
mocracia, depois de ter destruido0
Ieudalismo evencido os reis, retrocedera diante dos burgueses e
dos ricos? Sera possivel que interrompa sua marcha
justamente agora que se tornou tao forte e seus ad-
versarios tao Iracosf "
Tocqueville explicava que 0seu livro havia sido es-
crito sob a impressao de uma espccie de terror religioso
perante a "revolucao irrexistivcl" que, sobrepujando
(.l~) "Tul'Ql)4'vllk II1I Iknlil l 1111V ill Auu-ricu". trad. cit., p. 13.
(3h, Ah- x i-. d~" I til qlll\d\I "" III /),:,mwralie en Amerique, trad, cit.,
n, p. 19.
L1BERALISMO E DEMOCRACIA 57
todo obstaculo, continuava a avancar em meio as ruinas
por ela mesma produzidas. Por toda a vida, ap6s a via-
gem aos Estados Unidos em que procuraracompreender
as condicoes de uma sociedade democratic a num mundo
tao diverso do europeu e na qual pudera apreender "aimagem da propria democracia", foi assediado pela per-
gunta: "Podera a liberdade sobreviver, e como, na socie-
dade democratica?".
Na linguagem de Tocqueville "democracia" signifi-
ca, por urn lado, como forma de governo em que todos
participam da coisa publica, 0contrario de aristocracia;
por outro lado, significa a sociedade que se inspira no
ideal da igualdade e que, ao se estender, acabara por
submergir as sociedades tradicionais fundadas sobreuma ordem hierarquica imutavel. A ameaca que deriva
da democracia como forma de governo e para ele, comode resto para 0 amigo John Stuart Mill, a tirania da
maioria: 0 perigo que a democracia corre como progres-
siva realizacao do ideal igualitario e 0 nivelamento, cujo
efeito final e 0 despotismo. Sao duas formas diversas detirania, e, portanto, ambas embora de maneira diversa,
sao a negacao da liberdade. 0 fato de que na obra de
Tocqueville esses dois significados de democracia jamais
tenham sido muito bern distinguidos pode induzir 0 lei-
tor ajuizos diversos, se nao opostos, a respeito da postu-
ra tocquevilliana diante da democracia. Considerada a
democracia nao como conjunto de instituicoes das quais
a mais caracteristica e a participacao do povo no poder
politico, mas como sistema que exalta 0valor da igualda-
de nao s6 politic a como social (igualdade das condicoes
em prejuizo da liberdade), Tocqueville se revela sempre
um escritor liberal c nao-democratico, Jamais demonstra
a menor hesitacao em antepor a liberdade do individuo aigualdade social, 11:1 mcdida em que esta convencido de
que os povos deIII()(. i'li icos, apesar de terem uma inclina-
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58 NORSERTO BOSBIO
cao natural para a liberdade, tern "uma paixao ardoro-
sa, insaciavel, eterna, invencivel" pela igualdade e em-
bora "desejem a igualdade na liberdade" sao tambem
capazes, se nao podem obte-la, de "desejarern a igual-
dade na escravidao". 37 Estao dispostos a suportar a po-
breza, nao a aristocracia.
A tirania da maioria Tocqueville dedica 0 capitulo
setimo da segunda parte do Livro I de A Democracia na
America. 0 principio de maioria e urn principio iguali-
tario na medida em que pretende fazer com que prevale-
ca a forca do mimero sobre a Iorca da individualidade
singular; repousa sobre 0 argumento de que "existem
mais cultura e mais sabedoria em muitos homens reuni-
dos do que num s6, no mimero mais do que na qualidade
dos legisladores. E a teo ria da igualdade aplicada a inte-ligencia" .38
Entre os efeitos deleterios da onipotencia da maio-
ria, estao a instabilidade do Legislative, a conduta Ire-
quentemente arbitraria dos funcionarios, 0 conformismo
das opinioes, a reducao do mimero de homens ilustres na
cena politica. Para urn liberal como Tocqueville, 0 poder
e sempre nefasto, nao importa se regio ou popular. 0
problema politico POl' excelencia e 0 relativo nao tanto a
quem detem 0 poder quanto ao modo de controla-lo elimita-lo. 0 bom governo nao se julga pelo numero gran-
de ou pequeno dos que 0 possuem, mas pelo numero
grande ou pequeno das coisas que lhe e licito fazer.
A onipotencia e em si coisa rna e perigosa ... Nao ha
sabre a terra autoridade tao respeitavel em si mes-
rna, ou revestida de um dircito tao sagrado, que eu
deixaria agir scm coni role C dominar sem obstacu-
(37) ' 1 ' ' - ; 1 < 1 . ,·il , II. I' 'iii1
(3t» '1'1'".1. (II .II I' "II
LIBERAlISM() I ;. III'MOCRACIA 59
los. Quando vejo conccdidos 0 direito e a faculdade
de tudo fazer a urna potencia qualquer, seja ela
povo ou rei, dernocracia ou aristocracia, exercida
numa monarquia ou numa republica, afirmo: esta
ali 0 germe da tirania."
Tocqueville teve aguda compreensao da inconciliabi-
lidade em ultima instancia do ideal liberal - para 0 qual
o que conta e a independencia da pessoa na sua esfera
moral e sentimental - com 0 ideal igualitario, que dese-
ja uma sociedade composta tanto quanta possivel por
individuos semelhantes nas aspiracoes, nos gostos, nas
necessidades e nas condicoes, Jamais teve muitas ilusoes
a respeito da sobrevivencia da liberdade na sociedade
democratica, embora nunca se tenha resignado a aceitarpara os seus contemporaneos e para as geracoes futuras
o destino dos servos satisfeitos. S~tOmemoraveis as ulti-
mas paginas do segundo livro da sua "grande obra" (pu-
blicado em 1840), nas quais sente que se aproxima 0
momenta em que a democracia ira se traduzir em seu
contrario, POl' portal' em si os germes do novo despotis-
mo, sob a forma de urn governo centralizado e onipresen-
teo A sugestao da democracia dos antigos desaprovada
POl' Constant, e, portanto, da onipotente vontade geralde Rousseau, faz com que ele afirme:
Nossos contemporaneos irnaginam urn poder unico,
tutelar, onipotente, mas eleito pelos cidadaos; com-
binam centralizacao e soberania popular. Isso lhes
da urn pouco de alivio. Consolam-se do fato de es-
tarem sob tutela pensando que eles mesmos escolhe-
ram os tutores ... Num sistema desse genero, os ci-
(39) Trad. cit., II, I' 299:
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6 0 NORBERTO BOBBIO
dadaos saem por urn momento da dependencia;
para designar 0 seu patrao, e depois nela reingres-
sam."
Nao, a democracia, entendida como participacaodireta ou indireta de todos no poder politico, nao e POl' sis6 remedio suficiente contra a tendencia a se constitui-
rem sociedades cada vez menos livres: "Ninguem jamais
Iara acreditar - exclama no final - que urn governo
liberal energico e sabio possa sair dos sufragios de urn
povo de servos" .41 Os remedies, que Tocqueville acredita
existirem e nao se cansara de propor, sao os classicos
remedies da tradicao liberal, acima de tudo a defesa de
algumas liberdades individuais, como a liberdade de
imprensa, a liberdade de associacao, e em geral a defesa
dos direitos do individuo que os Estados democraticos
tendem a desconsiderar em nome do interesse coletivo, e,
portanto, 0 respeito as formas que garantam ao menos a
igualdade perante 0 direito e, por fim, a descentrali-
zacao.
Pela mesma razao porque foi antes liberal que de-
mocrata, Tocqueville jamais chegou a ser tentado pelo
socialismo, pelo qual manifestou em varias ocasioes a
mais profunda aversao. Pode-se ser democrata e liberal,democrat a e socialista, mas e muito dificil ser ao mesmo
tempo liberal e socialista. Radicalmente nao-democrati-
co quando deve confrontar a democracia com 0 sublime
ideal da liberdade, Tocqueville torna-se urn defensor da
democracia quando 0adversario a ser refutado e 0 socia-
lismo, no qual ve a confirmacao do Estado coletivista que
daria vida a uma sociedade de casto res e nao de homens
livres. Num discurso sohrc () direito ao trabalho proferi-
(40) Trad. cit.. II, II Hll
(41) Trae!. (';1., II. p. HI',
LIBEHAUSMO E DEMOCRACIA 61
do na Assembleia Constituinte, em 12 de setembro de
1848, evoca e exalta a democracia americana, observan-
do, entre outras coisas, ser ela completamente imune ao
perigo socialista e afirmando que democracia e socialis-
rno nao sao de fato solidarios: "Sao coisas nao apenasdiferentes mas contrarias". Tern em comum uma unica
palavra, a igualdade, "Mas. estejam atentos a diferenca,
conclui: a democracia deseja a igualdade na liberdade e
o socialismo deseja a igualdade na molestia e na servi-
dao."42
(42) Alexis de 'I'ocqucville, Discours sur la Revolution Sociale (1848)
(trad. cit., T, p. 289).
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12. Llberalismo e
utilitarlsmo
Ao contrario de Tocqueville, Mill foi liberal e demo-
crata: considerou a democracia, e em particular 0 gover-
no representative (que ele tambem chamava de "governo
popular"), como 0desenvolvimento natural e conseqiien-
te dos principios liberais. Nao que ele nao percebesse os
males de que sofria 0 governo democratico. Mas bus-
cou-lhes os remedies com maior confianca num futuro de
progresso gradual e necessario. Em seus ultimos escritos
considera ate mesmo como nao incompativeis 0 libera-
lismo e 0 socialismo. Suas duas principais obras de teor
politico (ele Ioi, sobretudo; urn filosofo e urn economista)
sao intituladas, respectivamente, Sabre a Liberdade
(1859) e Consideracoes sobre 0 Governo Representativo
(1863). Tocqueville foi urn historiador e urn escritor poli-
tico; Mill foi tambem urn teorico da politic a e, bern mais
do que seu admirado amigo Irauces, teve a vocacao e 0
talento do reforrnador.
Como le(lI'ico, l'I'IIH'klldo,sc a filosofia utilitaristade seu mcstrc ma ior, "'WillY Bentham (1748-1832), pos a
doutrina lihcrn] \Obll' 11111 Iundamento diverso do dos es-
L1BERAUSMO I', DEMOCRACIA 63
critores precedentes, dan do vida (ou, para dizer melhor,
uma notavel sustentacao) a corrente do liberalismo que
sera depois largamente prevalecente. A doutrina prece-
dente havia fundado 0 dever dos governantes de restrin-
gil' 0exercicio do poder publico sobre a existencia de di-reitos naturais, por isso inviolaveis, dos individuos. Num
escrito de 1795, Anarchical Fallacies, Bentham havia
desfechado urn violento ataque contra as Declaracoes
dos direitos franceses, pondo em relevo com corrosiva
ironia, sua debilidade filos6fica, sua inconsistencia logica
e seus equivocos verbais, alern de sua total ineficacia pra-
tica. A proposito da declaracao de que todos os homens
nascem livres, exclama: "Absurda e miseravel boba-I" E li "N- .gem.. exp ica: ao existe nada de semelhante a di-
reitos naturais, nada de semelhante a direitos anteriores
as instituicoes de governo, nada de semelhante a direitos
naturais opostos ou em contradicao com os legais" .43 Em
contraposicao a secular tradicao do jusnaturalismo, Ben-
tham formula 0 "principio de utilidade", segundo 0 qual
o unico criterio que deve inspiral' 0born legislador e 0 de
emanar leis que tenham POl' efeito a maior felicidadc do
maior rnimero, 0 que quer dizer que, se devcm existir
limites ao poder dos governantes, e1es nao derivarn da
pressuposicao extravagante de inexistentes e de modo al-gum demonstraveis direitos naturais do hornem mas da
consideracao objetiva de que os homens desejam 0prazer
e rejeitam a dor, e em consequencia a melhor sociedade ea que consegue obter 0 maximo de felicidade para 0
maior mimero de seus componentes. Na tradicao do pen-
samento anglo-saxao, que certamente e a que forncccu a
mais duradoura e coerente contribuicao ao deser.volvi-
mento do liberalismo, a partir de Bentham utilitaris-
(43) Jeremy Bentham, Anarchical Fallac ies, in The Works, J. Bowring
(org.), Edimburgo, William Tait, vol. 2, p. 500,
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64 NORBERTa BOBBIO
mo e liberalismo passam a caminhar no mesmo pas-
so, e a filosofia utilitarista torna-se a maior aliada teorica
do Estado liberal. A passagem do jusnaturalismo ao uti-
litarismo assinala para 0 pensamento liberal uma verda-
dadeira crise dos fundamentos, que alcancara 0 renova-
do debate a respeito dos direitos do homem desses ulti-
mos anos.
Mill e urn utilitarista declarado e convicto:
A doutrina que admite como fundamento da mora-
li dade a utilidade ou 0 principio da maxima felici-
dade sustenta que as acoes humanas sao justas na
medida em que tendem a promover a felicidade e
injustas na medida em que tendem a promover 0
contrario da felicidade. 44
E entende a felicidade benthamianamente, como 0
prazer ou a ausencia da dor, a infelicidade como dor ou a
privacao do prazer. Por outro lado, enquanto doutrina
moral que critica e refuta toda outra forma de funda-
mento da obrigacao moral que nao seja a que faz refe-
rencia ao prazer e a dor, 0 utilitarismo se preocupa nao
com a utilidade do individuo isolado com respeito ados
outros individuos, mas com a utilidade social, nao com"a felicidade singular de quem age, mas com a felicidade
de todos os interessados", tal como pode ser avaliada por
urn "espectador benevolo e desinteressado". 4S Conse-
qiientemente, cern coerencia com a critica benthamiana
dos direitos naturais, Mill rejeita a tentacao de recorrer a
doutrina jusnaturalista para fundar e justificar a limita-
cao do poder do Estado. Afirrna cxpressamente na intro-
(44) J. S. Mill, U/ili/wIIII/I.,TII (IHh.l) (trad. it., E. Musacchio (org.) ,Bolonha, Cappelli , «)HI. p. '.H)
(45) Tra(1 . cil ., p . 1 0 / \
L IB ER AL ISM () ,. 1 1I·.M OCR ACIA 65
ducao a Sabre a Liberdadc, onde apresenta e propoe os
principios inspiradores da sua doutrina: "E oportuno
declarar que renuncio a quaJquer vantagem que para
minha argumentacao poderia derivar da concepcao do
direito abstrato como independente da utilidade", pois
"considero a utilidade como 0criterio ultimo em todas as
questoes eticas", desde que se trate "da utilidade em seu
sentido mais amplo, fundado sobre os interesses perm a-
nentes do homem enquanto progressivo" .46
Seguindo a trilha da tradicao do pensamento libe-
ral, a liberdade pela qual se interessa Mill e a liberdade
negativa, ou seja, a liberdade entendida como situacao
na qual se encontra urn sujeito (que tanto pode ser urn
individuo quanto urn grupo que age como urn todo uni-
co) que nao esta impedido por qualquer Iorca externa defazer aquilo que deseja e nao esta constrangido a fazer
aquilo que nao deseja. Trata-se para Mill, entao, de
formular urn principio a base do qual sejam estabeleci-
dos, por urn lado, os limites nos quais e licito ao poder
publico restringir a liberdade dos individuos: por outro
lado, e correspondentemente, 0 ambito no qual os indi-
viduos ou os grupos possam agir scm encontrar nbs-
taculos no pc Ier do Estado; trata-se, entao, em outras
palavras, de delimitar a esfera privada com respeito apublica de modo que 0 individuo possa gozar de uma
liberdade protegida contra a invasao por parte do poder
do Estado, liberdade essa que devera ser a mais ampla
possivel no necessario ajustamento do interesse indivi-
dual ao interesse coletivo. 0 principio proposto por Mill
eo seguinte: "A humanidade esta justificada, individual
ou coletivamente, a interferir sobre a liberdadc de acao
(46) J. S. Mill, On Liberty (1858), in Collected Papers of John StuartMill, cit ., vol, 18 , p , 224 (trad. it . . G. Giore llo e M. Mondadori (orgs.), Milao,
11 Saggiatore, 1981 , p. 34) .
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6 6 NORBERTO BOBBIO
de quem quer que seja apenas com 0 objetivo de se pro-
teger", razao pela qual "0unico objetivo pelo qual se
pode exercer legitimamente urn poder sobre qualquer
membro de urna comunidade civil, contra a sua vontade,
e 0 de evitar danos aos outros". 47 Segue-se dai que "sealguem comete urn ato que prejudica outros, tem-se en-
tao urn motivo evidente para puni-lo com sancoes legais
ou, no caso em que seja de incerta aplicacao, com a de-
saprovacao geral" .48
o objetivo a que se propoe Mill ao enunciar esse
principio e 0de limitar 0direito do Estado de restringir a
esfera da liberdade individual - na qual 0 individuo
pode escolher entre varias alternativas, e de .induzir os
cidadaos a fazer ou nao fazer algo contra a vontade deles
- apenas a esfera das acoes extern as (no senti do kan-
tiano da palavra), isto e , as acoes com as quais urn indivi-
duo, para satisfazer urn interesse proprio, pode interferir
no interesse de urn outro; e, correspondentemente, de
salvaguardar 0 singular da ingerencia do poder publico
em todas as acoes que dizem respeito apenas a ele, como
a esfera da consciencia interior e da liberdade de pensa-
men to e de opiniao, da liberdade de agir segundo os pro-
prios gostos e os proprios projetos, da liberdade de se
associar com outros individuos. No caso de se ter conven-
cion ado chamar de paternalismo toda doutrina politic a
que atribui ao Estado 0 direito de interferir na esfera in-
terior do individuo com base na consideracao de que
todo individuo, inclusive 0 adulto, precisa ser protegido
das proprias inclinacoes e dos proprios irnpulsos, entao 0
liberalismo se revela ainda uma vezem Mill, como em
Locke e em Kant, a doutrina antipaternalista por exce-
Iencia, na rnedida em que parte do pressuposto etico se-
(47) Tt,ul. ..,1 . I' I.'
(48) Tr;I<1.nL. p \.I
LIBERALISMO E DEMOCRACIA 6 7
gundo 0 qual, para lembrar uma forte expressao millia-
na, "cada urn e 0 unico guardiao autentico da propria
saude, tanto fisica quanta mental e espiritual". 49 Nao es-
tou afirmando que nao existam elementos paternalistas
tambem em Mill (como de resto em Locke e em Kant).Tenha-se em mente 0fato de que, na definicao acima re-
ferida, Mill limita 0 proprio assunto aos membros "de
uma comunidade civil", civilizada: 0 principio da liber-
dade vale, portanto, apenas para individuos na pleni-
tude de suas faculdades. Nao vale para os menores de
idade, ainda sujeitos a protecao paterna, e nao vale para
as sociedades atrasadas, que podem ser embloco consi-
deradas como formadas por menores de idade. Sobre
esse ultimo ponto a opiniao de Mill e muito clara: "0despotismo e uma forma legitim a de governo quando se
esta na presenca de barbaros, desde que 0 fim seja 0pro-
gresso deles e os meios sejam adequados para sua efetiva
obtencao" .50 A parte a subordinada concessiva (mas
quem julga 0 fim e quem julga a adequacao dos meios ao
fim?), tal opiniao de Mill em nada difere da tradicional
justificacao dos regimes despoticos, que jf t conforme
Aristoteles eram vistos como adequados aos povos natu-
ralmente servos.
(49) Trad. cit., 1' . . Ih.
(SO) Trad. cir., 1' . . 1 . 1
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13. A democraciarepresentativa
Tanto quanto Tocqucvillc, Mill tambem teme a ti -
rania da rnaioria c a conxidcra 11111 <los males dos quais a
socicdade dcvc sc proteger. Ixxo, porern, nao 0 leva a re-
nunciar ao gOVCrJlO dcmocratico, No livro sobre a demo-
cracia representativa, publicado poucos anos apos 0 en-
saio sobre a liberdade, poe-se 0classicoproblema da me-
lhor forma de governo e responde que ela e , precisa-
mente, a democracia representativa, que constitui, ao
menos nos paises com urn certo grau de civilizacao, 0prosseguimento natural de urn Estado desejoso de asse-
gurar aos seus cidadaos 0maximo de liberdade: "A par-
ticipacao de todos nos beneficios da liberdade e 0 con-ceito idealmente perfeito do governo livre". Tal maxima
e confortada pelo seguinte comentario:
Na rnedida em que alguux. n ; 1 O importa quem, sao
excluidos desses lWlldkios, seus interesses sao dei-
xados sern as gaJ'allti:I.'; conccdidas aos demais, fi -
cando- !Ill'S d i111111111( las as possibilidades e os estimu-
los que dl' ( l11l1.1 1I1 .IIII' II 'a teriam para a aplicacao
1 , 1
~
LlBERALISMO E DEMOCRACIA 69
das energias em prol do proprio bern e do bern da
comunidade."
Trata-se de urn comentario que mostra com grande
clareza0
nexo entre liberalismo e democracia ou, maisprecisamente, entre uma determinada concepcao de Es-
tado e os modos e as formas de exercicio do poder capa-
zes de melhor assegurar a sua atuacao.
A afirrnacao segundo a qual °perfeito governo livre
e aquele em que todos participam dos beneficios da li-
berdade leva Mill a se fazer promotor da extensao do
sufragio, sobre a trilha do radicalismo de origem ben-
tharniana de que nascera a reforrna inglesa eleitoral de
1832. Urn dos remedies contra a tirania da maioria esta
exatarnente no fato de que, para a formacao da maioria,
participem das eleicoes tanto as classes abastadas (que
sempre constituern uma minoria da populacao que ten de
naturalmente a prover aos proprios interesses exc1usivos)
quanta as classes populares, desde que paguem urn im-
posto por menor que seja. A participacao no voto tem
urn grande valor educativo: e atraves da discussao poli-
tica que 0 operario (the manual labourer), cujo trabalho
e repetitivo e cujo ambiente de fabric a e angustiante,
con segue compreender a relacao entre eventos distantes eo seu interesse pessoal e estabelecer relacoes com cida-
daos divers as das suas cotidianas relacoes de trabalho,
tornando-se, assim, membro consciente de uma grande
comunidade: "Numa nacao civilizada e adulta nao deve-dam existir nern parias nem hornens incapacitados, ex-
ceto par culpa propria".'?
o sufragio universal, porem, e urn ideal limite, do
(51) J. S.Mill. (·oll.",I ..raliolls 1111Representative Government, in Col-
leeted Papers, cit., vol . I". I' ·11111.
(52) 01'. ( 'i l . . 1 '1 /11
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70 NORBERTO BOBBIO
qual as propostas millianas ainda estao muito distantes:
alem dos falidos e dos devedores fraudulentos, Mill ex-
clui do direito de voto os analfabetos (pregando 0 en sino
estendido a todos: "0 ensino universal deve preceder 0
sufragio universal") e os que vivem de esmolas das paro-quias, com base na consideracao de que quem nao paga
um pequeno imposto nao tem 0direito de decidir 0modo
peloqual cada um deve contribuir para as despesas pu-
blicas. Por outro lado, Mill e Iavoravel ao voto feminino
(contrariamente a tendencia prevalecente nos Estados
europeus, que em geral chegaram a extensao do voto aos
analfabetos antes que as mulheres), com base no argu-
mento de que todos os seres human os tern interesse em
ser hem governados e, portanto, todos tern igual necessi-
dade de voto para assegurar a parte dos beneficios que
cabe a cada membro da comunidade. Invertendo 0 ar-
gumento habitual dos antifeministas, Mill sustenta que
"se houver alguma diferenca, as mulheres tern maior ne-
cessidade do voto do que os homens, ja que, sendo fisi-
camente mais frageis, dependem para sua protecao mui-
to mais da sociedade e das leis. 53
osegundo remedio contra a tirania da maioria con-
siste, para Mill, numa mudanca do sistema eleitoral, is to
e , na passagem do sistema majoritario - pelo qual todocolegio temo direito de conduzir apenas um candidato e
dos candidatos em disputa aquele que recebe a maioria
dos votos (nao importa se em um ou dois turnos) vence e
os demais perdem - para 0 sistema proporcional (que
Mill acolhe seguin do a Iorrnulacao de Thomas Hare,
1806-1891), que assegura uma adequada 'representa~ao
tarnbem as minorias, em proporcao aos votos recebidos
ou num unico colegio nacional (Ill num colegio amplo 0
suficiente para perruit ir a eki(,~a()de varies representan-
(53) 01'. cir., p. ·11 '1
LIBERALISMO E DEMOCRACIA 71
tes. Ao apresentar as vantagens e as qualidades positivas
do novo sistema, Mill sublinha 0 freio que a maioria en-
contraria na presenca de uma minoria aguerrida capaz
de impedir a maioria de abusar do proprio poder e, por-
tanto, a democracia de degenerar. Mill encontra, assim,ocasiao para fazer urn dos mais altos elogios ao antago-
nismo que 0 pensamento liberal jamais registrou, numa
passagem em que se pode condensar a essencia da etica
liberal:
Nenhuma comunidade jamais conseguiu progredir
senao aquelas em que se desenvolveu um conflito
entre 0 poder mais forte e alguns poderes rivais; en-
tre as autoridades espirituais e as temporais; entre
as classes militares ou territoriais e as trabalhado-
ras; entre 0 rei e 0 povo; entre os ortodoxos e os re-
formadores religiosos."
Nao obstante a plena aceitacao do principio demo-
cratico e 0 elogio da democracia representativa como a
melhor forma de governo, 0 ideal da democracia perfeita
esta ainda bem longe de ser alcancado. Quase para ate-
nuar 0efeito inovador do sufragio ampliado, Mill propoe
o instituto - que acabou por nao ter sucesso - do votoplural, segundo 0 qual, se e justo que todos votem, nao
esta afirrnado que todos devam ter direito a um unico
voto: segundo Mill, 0 voto plural caberia nao aos mais
ricos, mas aos mais intruidos, com a reserva de poder ser
atribuido aos que 0 solicitem e passem por um exarne,
Nao por acaso nas constitui<;oes modernas se afirrna que
o direito de voto deve ser "igual" (como no artigo 48 da
constituicao italian a vigente).
(54) Op, cit .. 1. ·1','1.
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14. Llberalismn e
democrac!ia na Italia
. Com todos os Iimites inerentcs a urn libera1ismo
ainda forte mente impregnado de paternalismo e de uma
democraeia incompleta e nao igualitaria, a obra de Mill
representou urn fecundo encontro entre pensamento U-
be.ra1e pensamento dernocratico. Nao obstante isso, libe-
rais e democratas continuaram. como de resto conti-
nuam ate hoje, a dar vida a movimentos e alinhamentos
politicos diferenciados, contrapostos conformc 0 alvo
principal ~eja ~ crescente invasao do Estado, interpreta-
d~ pel?s Iiberais - nao sem razao - como uma conse-
q.uencla .do processo de democratizacao, ou a persisten-
CIade oltgarquias politic as e de fortes desigualdades eco-
nornicas, interpretadas pelos democratas - nao sem
razao - como uma consequencia da lentidao com que
aquele processo de democratizacao ocorreu e dos obsta-
culos que a ele Ioram inierpllstos pelos beati possidentes.
Nesse senti do, a contrapllsil;ilO entre liberalismo e demo-
crac.ia tambcrn IHHh' .~;n-oll\iderada de urn outro pontode vista: 0 descnvolviuu-ut« da doutrina liberal esta es-
treitamente ligadll ;', (11111;( cconornica das sociedades
• • • 1 " ' . ' . 11 11 1 1 : " 1 1 ' i w - . . . " ' 4 ' . ' u ,~U"UilolJU"", '", I .u",""., , , , , , . , , , ,
L1BERALlSM() I~DEMOCRACIA 73
autocraticas; 0 desenvolvimcnto da doutrina democrati-
ca esta mais estreitamente ligado a uma critica de carater
politico ou institucional. 0 certo e que por todo 0 seculo
passado liberalismo e democracia designam doutrinas e
movimentos antagfmicos entre si: os liberais, que defen-dem a conquista ou a exigencia dos direitos de liberdade,
de que e portadora a idade da restauracao, desconfiam
das nostalgias revolucionarias dos democratas; os de-
mocratas, que entendem nao ter se completado 0 proces-
so de emancipacao popular iniciado com a Revolucao
Francesa e interrompido com a restauracao, rejeitam os
liberais como 0 partido dos moderados. Antes da forma-
~ao dos partidos socialistas, os parlamentares se divi-
diam em dois alinhamentos contrapostos, 0 partido da
conservacao e 0 partido do progresso, correspondentes,
grosse modo, a contraposicao entre liberais e democra-
tas, sendo considerada como a dialetica politica mais
correta aquela que se desenrola alternadamente entre es-
ses dois alinhamentos, embora na patria do parlamento e
do bipartidarismo, a Inglaterra, os dois partidos contra-
postos fossem chamados respectivamente de conservador
e liberal (mas 0 conteiido dos programas dos partidos
muda com 0 passar do tempo, mesmo que nao mude 0
nome deles). Para uma gradual convergencia entre a tra-
dicao liberal e a democratic a contribuem precisamente,
primeiro, a formacao dos partidos socialistas e, ainda
mais, 0 aparecimento, no seculo seguinte, de regimes
nem liberais nem dernocraticos, como os regimes fascis-
tas, e do regime instaurado pela revolucao de outubro na
Russia: diantc da novidadc representada pelos Estados
totalitarios do scculo vinte, as diferencas origin arias
entre liberalismo c dcmocracia tornar-se-ao hist6rica e
politicamente irrek-v.urtcs.No pensamcuto politico italiano da segunda metade
do seculo passado, qll' de resto reflete as linhas gerais do
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74 NORBERTO BOBBIO
pensamento politico europeu, especial mente 0 frances, a
contraposicao entre escola liberal e escola democratic a ebastante clara, especialmente em decorrencia da presen-
ca ativa de um escritor e agitador politico como Mazzini
(1805-1872); sempre incluido, mesmo fora de nosso pais,entre os expoentes mais representatives das correntes
democratic as que agitam as nacoes europeias em luta
contra as velhas autocracias,
Expondo sua interpretacao da obra literaria de
Mazzini, Francesco De Sanctis (1817-1883) tracou as li-
nhas mestras da distincao entre a escola liberal e a escola
democratica, consideradas como as duas correntes vivas
do espirito publico italiano no seculo XIX. Embora pon-
do em destaque sobretudo 0 aspecto literario, De Sanctis
observou que a semelhanca entre ambas estava no fato
de que nelas se tin ham misturado fins politicos, morais,
religiosos, donde, ao contrario das escolas meramente li-
terarias, elas terem agido sobre toda a sociedade italiana
e nao 86 sobre 0 restrito circulo dos literatos. De resto, 0
proprio De Sanctis, dedicando uma parte de seu curso a
Mazzini, julgava estar fazendo obra uti! ao dever de edu-
cacao nacional, na qual incluia a formacao de uma jo-
vern esquerda capaz de assegurar uma nova direcao ao
pais, "uma nova postura diante das classes populares,urn novo conceito do que e nacional, diverse do da direita
historica, mais arnplo, menos exclusivista, menos poli-
cialesco" .55 Interpretava a escola liberal como aquela
que havia rejeitado a liberdade como fim ultimo, da qual
se tinham feito divulgadores os fi16sofos do seculo XVIII ,
mestres da revolucao, e se contentara com a liberdade
como meio ou como metoda au "procedimento", com a
liberdade apenas formal. cia qual cada urn podia servir-se
para os proprios fins.
(55) Francesco p,. S" , ,< 'I I · . . I cucrutura e Vita Nazionale, Turirn, Ei-
naudi, 1950. p. 7.
LIBERALlSM() I': DEMOCRACIA75
Nesta escola liberal _- comentava - entram ho-
mens com fins os mais diversos, como se estivessem
sobre terreno comum: os clericais que querem livre
a Igreja, os conservadores que desejam a liberdade
das classes superiores, os democratas que querem aliberdade das classes inferiores, os progressistas que
buscam seguir em frente sem forear a natureza. 56
Ao contrario. entendia a escola democratic a c.omo a
que era inspirada pelo ideal de uma nova socle~ad.e
"fundada na justica distributiva, na igualdade d~ .direl-
to, a qual, nos paises mais avaneados, tambem e [gual-
dade de fato", e para a qual a liberdade nao era apen~s
procedimento ou metodo mas "substancia" .57 E preci-
sava:
Onde existe desigualdade, a liberdade pode estar es-
crita nas leis, no estatuto, mas nao e coisa real: nao
e livre 0campones que depende do proprietario. nao
e livre 0 empregado que permanece submetido ao
patrao, nao e livre 0homem da gleba sujeito ao tra-
balho incessante dos campos.58
Concluia afirmando que essas ideias conduzem itres publica, que "nao e 0governo deste ou daquele, nao eo poder arbltrario ou dominio de classes: e 0 governo de
todos" .59 Urn Estado que considera a liberdade como
meio pode ser neutro, indiferente ou ateu. Nao pode ser
assim 0Estado de todos, a res publica precisamente, que
(56) Francesco 1kSaUdis, Mazzini e la Scuola Democratica. Turim,
Einaudi, 1951, p. Il.
(57) Op, cir., 1' .1.1.(58) Op. eil . . I' 1,1.
(59) Op. cii., 1'1'. 111·1.
76
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NORBERTO BOBBIO
deve se proper 0 objetivo da educacao nacional e isso
especialmente apos uma unificacao rapida e forcada,
Para permanecer na Italia, esse persistente contras-
te pode ser eficazmente representado pela contraposi~ao
entre os dois maiores protagonistas do nosso risorgi-
me~to*, Cavour (1810-1868) e Mazzini. Urn dos pri-
metros autores de que 0 jovem Cavour absorve certos
principios desde entao jamais abandonados foi alem de
Constant, Bentham. Dele Cavour extraiu a ideia da in-
sustentabilidade das teorias jusnaturalistas e uma forte
conviccao a respeito da bondade do utilitarismo, ao pon-
"to mesmo de se considerar com visivel prazer urn "ben-
thamiano endurci"60.** Num de seus escritos doutrina-
rios mais completos, Os Sistemas e a Democracia. Pen-
samentos (1850), Mazzini faz de Bentham, com sua dou-
~rina utilitarista, 0maior responsavel pelo materialismo
Im_pera~te nas doutrinas democratic as e socialistas, de
Samt-SImon (1760-1825) aos comunistas, mas nao cita
expressamente nem Marx (1818-1883) nem Engels
(1820-1895); alem do mais, chama Bentham de "chefe e
legislador da escola" que compreende todos os "adora-
?o;:es do iitil". 61 A doutrina do iitil Mazzini contrapoe a
ideia do dever e do sacrificio pela santa causa da huma-
nidade:
Na? - exclama -,0 interesse e 0prazer nao sao os
!DelOScom que a democracia podera transformar 0
. (*) l!isorgimento: periodo hist6rico compreendido, grosso modo, entre
o final do seculo XVIII e 1870, no qual sc completou 0 processo de formacaodo Estado unitario italiano. (N. T.)
(60) Extraio essa citacao de R. Romeo, Cavoure i lsuo Tempo I 1810-1842, Bar i, Laterza , 1969, p. 2HH. . ,
. (**) Endurei: em fralin's 1111 lI riMillal - endurecido, empedernido , in-
transigente. (N. T.)
(61) G. Mazzini, / S,sl. ."" , . /11 / )< 'moerazia Pensieri I 'n M "G . I, azzrru,. Galasso (org.), Bolonha. II Mill"" • . 1%1, pp. 101-102.
LIBERALISMO E DEMOCRACIA 77
elemento social; uma teorica do util nao tara com
que os confortos da riqueza sintam os sofrimentos
das classes pobres e a urgente necessidade de urn
remedio.?
Cavour e urn admirador de Tocqueville, com quem
divide a apreensao pela march a inexoravel da humani-
dade para a democracia. Tocqueville, ministro do Exte-
rior da republica frances a de junho de 1849, da a palavra
definitiva sobre a queda da republica romana, e Mazzini
endereca a ele e ao ministro Falloux (1811-1886) uma
veemente carta na qual os apostrofa como "ultimos alu-
nos de uma escola que, comecando por predizer a dou-
trina ateia da arte, terminou na formula do poder pelo
poder'L'" Cavour, defensor do juste milieu, ou seja, de
uma solucao intermediaria, a unica conforme a razao,
entre reacao e revolucao. Mazzini, intransigente propa-
gador da revolucao nacional, que se coloca claramente
num dos dois extremos rejeitados pela flexivel solucao
dos doutrinadores liberais. Cultor da ciencia economic a,
admirador dos grandes economistas, de Smith a Ricardo
(1772-1823), Cavour, liberista convicto e irredutivel, foi
seguidor das teorias do livre-cambismo, que Mazzini
sempre combateu com forca propugnando urn Estado
investido de funcao educativa: e oposto a concepcao libe-
ral do Estado como mal inevitavel e, portanto, limitado
tao-somente ao oficio de agente de policia, Nada demais
distante do pensamento de urn liberal inteiro como Ca-
vour do que a critica mazziniana do Estado "despido de
toda virtude iniciadora, scm outra missao senao a de im-
pedir", tanto que
(62) Op. cil., 1'. 110.
(63) G. Mavviui: 1<'11.. ,,11i SiWlOri Tocqueville e Falloux Ministri di
Francia, in G. Mavz.uu, S, ru tt 1',,/tIil'i, T. Grandi eA. Comba (orgs.), Turim,
Utet , 1972, p. 647 .
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78 NORBERTO BOBBro
substituiu a sociedade por urn agregado de indivi-
duos, obrigados a se manter pacificos, mas dedica-
dos a fins particulares, e livres para escolher cada
urn 0 proprio caminho, ajude ou nao ajude ao cum-
primento da missao comum. Em politic a como em
economia 0 laissez faire, laissez passer e a suprema
formula da escola. 64
Nada de mais hostil a mentalidade cavouriana Iavo-
ravel ao progresso atraves da gradual adaptacao das ins-
tituicoes a evolucao da sociedade que 0 abstrato revolu-
cionarismo mazziniano, que contrapoe ao simples e sau-
davel criterio do iitil 0 imperativo do sacrificio, trans-
forman do a iluminista exaltacao dos direitos individuaisnuma severa predica dos deveres. "Fiel ao seu bentha-
mianismo originario - escreve Romeo -, Cavour fica
persuadido de que 0 progresso econornico realmente nao
contrasta,ao contrariocoincide, com 0 espiritual e mo-
ral'"." Por antitese, fiel ao seu originario antibenthamia-
nismo, Mazzini afirma que 0 progresso espiritual e con-
dicao do progresso material: com a doutrina da felicida-
de e do bem-estar inspirada no utilitarismo, Iormam-se
homens egoistas,' adoradores da materia. "Trata-se,
pois, de encontrar urn principio educativo superior ... E
esse principio e 0 dever" .66
(64) G. Mazvini. / S/sl"/I/l " / 1 1 Democrazia, cit., p. 96.
(6S) R. Romeo. ( '1 11 '' '1 11 , i/ su«. Tempo, cit., p. 288.
(66) G. Mazzini. /1.,/ /)''''''''/ dcit'Uomo, in Scritti Politici, cit., p. 847.
15. A democraciadiante do socialismo
I<,
Nao obstante 0conubio historico, lenta e arduamen-te realizado, entre ideais liberais e ideais dernocraticos, 0
contraste entre liberalismo e democraciajamais chegou a
diminuir. Ao contrario, sob certos aspectos veio se acen-
tuando nos ultimos anos.Para manter vivo 0 contraste e acentua-lo, sobre-
veio, a partir da segunda metade do seculo p~ssado, a
entrada na cena politic a do movimento operario , que se
vai inspirando cada vez mais nas doutrinas socialistas,
antitetlcas as liberais, embora sem repudiar 0 metodo
democratico, que sob revive numa expressiva parte do
movimento, regra geral em sua ala reformista, como, por
exemplo, no partido trabalhista Ingles ou no partido so-
cial-democratico alemao. A relacao entre liberalismo e
democracia, como vimos, nunca foi de antitese radical,
apesar de tel' sido dificil e freqiientemente contestado 0
enxerto dos ideais dernocraticos no tronco originario dos
ideais liberais, e apesar da integracao entre liberalismo e
democracia, onde ocorreu, ter se dado lentamente, nao
sem contrastes e rupturas, A relacao entre liberalismo esocialismo, ao cOlltr[lrio,jQ~ desde 0 inicio uma relacao
de antitese clara, c isso nao apenas, como seria possivel
L1BERALISMO E DEMOCRACIA81
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80 NORBERTO BOBBIO
a~re?it~r, n~ d~utrina marxiana emarxista. Qpomo da
dISCO.r?l~oi a liberdade economica, que pressupoe a de-
f~sa ilimitada da propriedade privada. Por mais defini-
coes que se possam dar do socialismo do seculo passado
(~f~ram dadas centenas), ha ao menos urn criterio dis-
tmtlv~ const.ante e determinante para distinguir uma
do?trma sO~lalistade todas as outras: a critica da pro-
priedade privada como fonte principal da' ~desigualdade
entre oshome~s"(para retomar 0conhecido discurso de
~ousseau) ~a sua eliminacao total ou parcial como pro-
Jet~ d.a sociedade futura. A maior parte dos escritores
~ocla~l~tas e dos movimentos que neles se inspiraram
IdentIfl~ar,a~ 0 l!h~r_a1is1ll()- com ou sem razao, mas no
~lano historico certamente com razao - com a defesa da
b~erdade:eco.n?mica e, portanto, com a defesa da pro-
pne~ad~ individual como unica garantia da liberdade
econ,o~lUca,entendida por sua vez como pressuposto ne-
cessano da real explicacao de todas as outras liberdades.
Nu~~ concep~ao c1assista da hist6ria, que 0movimento
socialista havia herdado da historiografia burguesa se-
gundo a qu~l 0 principal sujeito hist6rico sao as classes e
o~e~envolvlmento hist6rico sefaz com a passagem do do-
mt~10de.uma ~lasse para 0dominio de uma outra classe,
o bbera~lsmo, interpretado como a concepcao segundo a
qual a ltberdade economica e 0 fundamento de todas a
demais ~iberdades.e sem e1a nenhum homem pode se~
verdadeiramente livre, terminava por ser degradado
p~losescritores socialistas enao s6por Marx (que apesa~
disso exc:rceu u~a prevalente influencia na formacao
dos partidos socialistas continentais, especialmente na
Alemanha ~na ~ali~), apura esimples ideologia da classe
b?r~uesa, IStOe, a ideologia da parte adversa que os so-
cialistas deveriam combatcr ate acompleta extincao.
. Enquanto:1 rel;II::1O entre liberalismo e socialismo
foide clara antitesc, lallio xc 0 socialismo fosse julgado
a base de seu projeto de sociedade futura como se Iosse
eonsiderado como a ideologia de uma c1asse destinada a
sueeder a classe burguesa no desenvolvimento progressi-
vo da hist6ria, a relacao entre socialismo e democracia
foi bern mais, desde a origem, urna relacao de comple-
mentaridade, assim como houvera sido ate entao a rela-
Gaoentre democracia e liberalismo. Tornou-se opiniao
eorrcntc\que 0 socialismo, julgado ate entao eomo in-
compativel com 0 liberalismo, nao era de Iato incom-
pativel com a democracia. Para reforcar 0 nexo de
compatibilidade (rnelhor: de complementaridade) entre
socialismo e democracia, Ioram sustentadas duas teses:
antes de tudo, 0 processo de democratiza<;ao produziria
inevitavelmente, ou pelomenos favoreceria, 0 advento de
uma sociedade socialista, fundada na transformac;ao doinstitute da propriedade e na coletiviza~ao pelo menos
dos principais meios de producao: em segundo lugar,
apenas 0 advento da sociedade socialista refor~aria e
alargaria a participac;ao politica e, portanto, tornaria
possivel a plena realizacao da democracia, entre cujas
promessas - que a dernocracia liberal jamais seria ca-
paz de cumprir - estava tambem a deuma distribui~ao
igualitaria (ou ao menos mais igualitaria) do poder eco-
nomico e do poder politico. Com base nessas duas teses,
a indissolubilidade de democracia e socialismo passou a
ser demonstrada, por parte das correntes principais do
socialismo, como uma condicao necessaria do advento da
sociedade socialista e, por parte das correntes democra-
ticas, como uma condicao do desenvolvimento da pro-
pria democracia.Com isso nao sc quer dizer que a relacao entre de-
mocracia e socialislllo tenha sido sempre pacifica. Sob
certos aspectos. ali;ls, Io i corn frequencia uma relacao
polemice, nao div('I'salllcnte da relacao entre liberalismo
e democraci«. J':ra t'Viilcnlc que 0 reciproco reforco da
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82 NORBERTO BOBBIO
democracia pelo socialismo e do socialismo pela demo-
cracia era uma relacao circular. De que ponto do circulo
dever-se-ia comecar? Comecar pelo alargamento da de-
mocracia significava contentar-se com um desenvolvi-
mento gradual e incerto. Era, ao contrario, possivel, de-
sejavel e licito comecar de imediato a transiormacao so-
cialista da sociedade com um saIto qualitativo revolucio-
nario, renunciando, portanto, ao menos provisoriamen-
te, ao metodo democratico? Assim foi que a partir da
segunda metade do seculo passado, ao contraste entre
liberalismo e democracia, foi-se sobrepondo 0 contraste
entre os defensores da liberal-democracia, de urn lado,
freqiientemente aliados entre si contra 0 socialismo con-
sider ado como negador tanto do liberalismo quanto dademocracia, e os socialistas democraticos e nao-demo-
craticos, de outro, divididos nao tanto pela oposicao ao
liberalismo (comum a ambos) quanto pelo diverso juizo
dado a respeito da validade e da eficacia da democracia ,
ao menos no primeiro momento da conquista do poder.
De qualquer modo, a dtivida sobre a validade do metodo
democratico para a assim chamada fase de transicao
jamais cancelou por completo a inspiracao democratica
de {undo dos partidos socialistas, no que se refere ao
avanco da democracia numa sociedade socialista, e a
conviccao de que uma sociedade socialista seria de longe
mais democratica do que a liberal, nascida e crescida
com 0nascimento e 0crescimento do capitalismo.
Em favor desse avanco da democracia socialista com
respeito it democracia liberal, pode-se encontrar na
imensa literatura do ultimo seculo ao menos tres argu-
mentos: a) enquanto a democracia liberal - ou, polemi-
camente, capitalista e, do ponto de vista do sujeito histo-
rico que a prornoveu , hurguesa - nasceu como demo-cracia representativa II;! qual os representantes eleitos
tomam suas decisoes xrm vinculo de mandato, a demo-
_ _ _ m . r iDn.,., ' _ ' _ " u
l' I i ·' i ~ II ' UU , II U ' I 'WU ' I , " "' I J , '' ' I J" ' '' ' I ;' ' 'J J ' J '' ' '. ' ' '' J ' '" . " ", , , , , , , , , , ,, , , , , . , ,, ,
LIBERALISMO E DEMOCRACIA 83
cracia socialista - ou, do ponto de vista classista, prole-
taria - sera uma democracia direta, no duple senti do de
democracia de todo 0 povo sem representantes e de de-
mocracia nao de representantes mas de delegados cujos
mandatos vinculados estao sujeitos a revogac;ao; b) en-quanto a democracia burguesa permitiu, ate 0 extremo
limite do safragio universal masculino e feminino, a par-
ticipacao no poder politico,· central e local, apenas a de-
mocracia socialista permitira a participacao popular
tambem na tom ada de decisoes economic as que numa
sociedade capitalista sao tomadas autocraticamente,
representando nesse sentido nao s6 urn reiorco da parti-
cipacao em intensidade, mas tambem uma extensao
quantitativa, como efeito da abertura de novos espaeos
para 0 exercicio da soberania popular em que consiste a
essencia da democracia; c) enfim, aquilo que mais im-
porta: enquantona democracia liberal a atribuicao ao
povo do direito de participar direta ou indiretamente das
decisoes politicas nao procede no mesmo passo de uma
mais equanime distribuieao do poder economico e, por-
tanto, faz do direito de voto uma mera aparencia, na
democracia socialista essa mais equanime distribuicso.
tornando-se urn dos objetivos primarios da rnudanca do
regime economico, transform a 0 poder formal de part~-cipacao em poder substancial e, ao mesmo tempo, reali-
za a democracia inclusive no seu ideal ultimo, que e 0 damaior igualdade entre os homens. .o fato de que movimentos antiteticos como 0movi-
mento liberal e 0 movimento socialist a tenham ambos
abracado 0 ideal democratico ao ponto de darem origem
a regimes de democracia liberal e a regimes de democra-
cia social, emhora nao socialista (urn regime que seja ao
mesmo tempo delllOcratico e socialista ate agora nao
existiu), podc fOlfn pcnsar que desde dois seculos a de-
mocracia {~ 111));1 l'sl,,':cie de denominador comum de
84 NORBERTO BOBBIO
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todos os regimes que se desenvolveram nos paises eco-
nomica e politicamente mais avancados. Mas nao se deve
acreditar que 0 conceito de democracia permaneceu 0
mesmo quando da passagern da democracia liberal ademocracia social. No binomio liberalismo mais demo-
cracia, democracia significa principalmente sufragiouniversal e, portanto, um rneio de expressao da livre
vontade dos individuos singulares; no binomio democra-
c~a mais socialismo, democracia significa ideal igualita-
no que apenas a reforma da propriedade proposta pelo
socialismo podera realizar. No primeiro binomio e conse-qiiencia, no segundo um pressuposto, Como conseqtien-
cia, no primeiro completa a serie das liberdades parti-
culares com a 1iberdade politica; como pressuposto, no
segundo, sera completada tao-somente pela futura e es-
perada transformacao socialista da sociedade capitalista.
A ambigiiidade do conceito de democracia surge em
toda a sua evidencia na assim chamada "democracia so-
cial", que deu origem ao Estado de servicos (expressao
mais apropriada do que aquelas, respectivamente falsas
por excesso e por defeito, de "Estado-bem-estar" e "Es-
tado assistencial"). A dernocracia social pretende ser,
com respeito a democracia liberal, uma fase ulterior, na
medida em que inscreveu na propria declaracao dos di-
reitos os direitos sociais, alem dos direitos de liberdade;pretende ser, ao contrario, com respeito a democracia
socialista, apenas uma primeira fase. Tal ambigtiidade
se revel a na dupla critica que a democracia social recebe
ora da direita, por parte do liberalismo intransigente,I A '
que ne a entreve uma diminuicao das liberdades indivi-
d.uais; ora da esquerda, por parte dos socialistas imp a-
cientes, que a condenam como solucao de compromisso
entre 0velho e 0 novo que, rnais do que favorecer a reali-
zacao do socialismo, a obxlaculiza e a torna ate mesmo
impossivel.
16. 0 novo liberalismo
Voltando it relacao entre liberalismo e democracia,
nao ha diivida de que a emergencia e a difusao das dou-
trinas e dos movimentos socialistas, bem como a corres-
podente e explicitamente declarada alianca desses mo-
vimentos com os partidos democraticos, reabriram 0
contraste historico entre liberalismo e democracia, exa-
tamente no momenta em que, caminhando os paises
mais avancados rumo ao sufragio universal, parecia que
entre liberalismo e democracia teria havido uma conci-liacao historic a definitiva. Se, efetivamente, como estava
inscrito no programa dos partidos social-democraticos
da Segunda Internacional, 0 processo de progressiva
democratizacao levaria inevitavelmente ao socialismo,
deveriam os liberais favorecer esse processo? Precis a-
mente na reacao contra 0 presumido avanco do socialis-
mo, com sell programa geral de economia planificada e
de coletivizaciio dos meios de producao, a doutrina libe-
ral Ioi cada va, mais se concentrando na defesa da eco-
nomia de mcrca do c da liberda de de iniciativa economica
(bern como da corrcspondente tutela da propriedade pri-
.I.: I t l t i l i t ! • • • ' I ' ! ! I : I : I : I I ' l t 1 1 1 " 1 ' . 11 : II II IW : !: • • : : i I . : 1 i I I : ! : I I : :I : : I I I ! : " ' I i I I ' i I : . : :I t l l ' l l : _ . 1 : . : : 1i II ': !: I: I. I! "I iI i! I: !_ I I II ": II :I iI i" W II I: !l !! H iI II !l !i il ll :" ". "" :" ", , : ' " " 1 , ' 11 : ' ,' : ": 1" 1 :, .1 1 1 1 :1 , , ,, ', ': "; :' 11 '1 ' - '- _ ,
86 NORBERTO BOBBIOLIBERALISMO E DEMOCRACIA 87
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vada), identificando-se com a doutrina economic a que
na linguagem politica italian a recebeu 0 nome de libe-
rismo. Como sempre ocorre, mesmo diante do contraste
entre duas ideologias nascidas em contraposicao uma aoutra e nas suas linhas programaticas antiteticas, como
liberalismo e socialismo, existiram tentativas de media-r;ao ou de sintese, que van do conhecido livro de Hobhou-
se (1864-1929) de 1911, Liberalismo, ao Socialismo Libe-
ral, de Carlo Rosselli (1899-1937), de 1930 e, para ficar
na Italia, ao Iiberal-socialismo, formula desconhecida
em outros lugares, mas que, apesar disso, foi a ideia ins-
piradora de um pequeno partido antifascista, 0 Partido
da Acao, que durou poucos anos (1942-1947). A antitese,
porem, permaneceu e se foi reforcando e enrijecendo nos
dois ultimos decenios, em seguida a dois fenfimenos his-
toricamente muito relevantes: num primeiro tempo, 0
flagrante nao-Iiberalismo dos regimes em que foi tentada
pela primeira vez uma transformaean socialista da socie-
dade; num segundo tempo, a emergencia de aspectos
nao-Iiberais nos regimes em que mais avancou a realiza-
eao do Estado-previdencia. 0socialismo liberal (ou libe-
ral-socialismo) permaneceu ate agora ou urn ideal dou-
trinario abstrato - tao sedutor em teoria quanta dificil-
mente traduzivel em instituicoes - ou uma das formulas
que servem para definir aquele regime no qual a tutelado aparato estatal se estendeu dos direitos de liberdadeaos direitos sociais.
Enquanto a conjugacao de liberalismo e socialismo
foi ate agora tao nobre quanto veleitaria, a progressiva
identificacao do liberalismo com 0 liberismo e urn dado
de fato indiscutivel, cuja constatacao' serve para com-
preender urn aspecto (e nao dos mais irrelevantes) do
atual Iitigio politico que sc estende dos Estados Unidos
a Europa ocidental, Na Italia, urn episodio extrema-mente significative d("s~)('esdarecimento foi a disputa
entre Croce e Einaudi (1874-1961), travada nos ultimos
anos do regime fascista, sobre a relacao entre 0 libera-
lismo etico-politico e 0 liberalismo economico. Nessa
disputa, Einaudi, como economista liberal que era, sus-
tenta contra Croce a tese segundo a qual liberalismo eti-
co-politico e liberalismo economico (ou liberismo) sao in-
dissohiveis, e onde nao ha 0 segundo nao pode haver 0
primeiro. 'por sua vez, Croce, que sob certos aspectos era
mais conservador do que Einaudi, sustenta a tese oposta,
segundo a qual a liberdade, sendo urn ideal moral, pode
se realizar atraves das mais divers as providencias eco-
nomicas desde que voltadas a elevacao moral do indivi-
duo, citando com aprovacao a "bela eulogia e apologia"
do socialismo liberal feita por Hobhouse."
Ao se observar 0 significado prevalente de liberalis-mo, com referencia particular as diversas correntes assim
chamadas neoliberais, e preciso admitir que entre 0 fil6-
sofo e 0economista teve razao 0 segundo. Por neolibera-
lismo se entende hoje, principalmente, uma doutrina
economica conseqiiente, da qual 0 liberalismo politico e
apenas urn modo de realizacao, nem sempre necessario:
ou, em outros termos, uma defesa intransigente da liber-
dade economica, da qual a liberdade politica e apenas
urn corolario. Ninguem melhor do que um dos notaveis
inspiradores do atual movimento em favor do desmante-
lamento do Estado de services, 0 economista austriaco
Friedrich von Hayek, insistiu sobre a indissolubilidade
de liberdade economica e de liberdade sem quaisquer ou-
tros adjetivos, reafirmando assim a necessidade de dis-
tinguir c1aramente 0 liberalismo, que tern seu ponto de
(67) Os momiound .."('slTitosde Croce e de Einaudi foram reunidos no
volume Liberismo c:'d"·,.,,h.\1II0, P. Solari (org.), Napoles, Ricciardi, 1957. 0
elogio a Hobhousc s,· ,,",'oulra uo primeiro desses escritos, La Concezione
Liberale come CII/""':',>I,,' '/"/1" Vii" (1927), p. 14.
•••• '•...'1::1.11I m m l W l l t l? _ . : l I i I Y I i I W ! ! ' I i I W ' l i I u! : : :I i I· _ ' * I i IU ; ! U ' l iI t ' .: ! I '. W : - : . ' !I t : .U U i U . : W . : * U : I I i i' : U ! ' :" I I I' ' ji l li f il i li l ll i li l ·' * W I I I I & i l: l ll l lU i ' : 'l I ii i li U i i ll i li l :U ' I I I i' W H t U . ' i W \ ! i I .' " . U I ' . _ w w _ · ! ! lU : ' : ' : : t :. , :: , ; !, i , i i l i iu : i i : !, l t l iJ :l i " " I I •
88 NORBERTO BOBBIO LIBERALlSMO E DEMOCRACIA 89
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partida numa teoria economica, da democracia, que euma teoria politica, e atribuindo it liberdade individual
(da qual a liberdade econornica seria a prime ira condi-
cao) urn valor intrinseco e a democracia unicamente um
valor instrumental. Hayek admite que, nas lutas passa-
das contra 0 poder absoluto, liberalismo e democracia
puderam proceder no mesmo passe e confundir-se um na
outra. Mas agora tal confusao nao deveria mais ser possi-
vel, pois acabamos por nos dar conta - sobretudo obser-
vando a que consequencias nao-Iiberais pode conduzir, e
de fato conduziu, 0 processo de dernocratizacao - de
que liberalismo e democracia respondem a problemas di-
versos: 0liberalismo ao problemas das funcoes do gover-
no e em particular it limitacao de seus poderes; a demo-
cracia ao problema de quem deve governar e com quaisprocedimentos.
o liberalismo exige que todo poder - e, portanto,
tambern 0 da maio ria - seja submetido a limites.
A democracia, ao contrario, chega a considerar a
opiniao da maioria como 0 unico limite aos poderes
governativos. A diversidade entre os dois principios
emerge do modo mais claro ao se atentar aos respec-
tivos opostos: para a democracia, 0 governo autori-
tario: para 0liberalismo, 0totalitarismo."
Naturalmente, tambem 0 termo "Iiberalismo",
como todos os termos da linguagem politica, conheceu
diversos significados, mais ou menos amplos, Porem, 0
pensamento de von Hayek, exposto em numerosas obras
que podem muito bem ser consideradas como a summa
da doutrina liberal contcmporanea, representa uma no-
(68) Friedrich V " " l i avrk . libcralismo, inEnciclopedia del Novecento ,
Rorna, Ist ituto cldl'E"(' id"I ' . .t lia 11. i11"" ;I , vol . 3 , p, 990 .
tavel confirmacao daquilo que foi 0micleo originario do
liberalismo classico: uma teoria dos limites do poder do
Estado, derivados da pressuposicao de direitos ou inte-
resses do individuo, precedentes a formacao do poder
politico, entre os quais nao pode estar ausente 0 direito
de propriedade individual. Tais limites valem para quem
quer que detenha 0 poder politico, inclusive para 0 go-
verno popular, isto e, inclusive para um regime demo-
cratico em que todos os cidadaos tem 0 direito de parti-
cipar mesmo que indiretamente da tomada das grandes
decisoes, e cuja regra e a regra da maioria. Ate on de se
estendem os poderes do Estado e ate onde os direitos dos
individuos, ou a esfera da assim chamada liberdade ne-
gativa, e algo que nao pode ser estabelecido de uma vez
para sempre: porem, e principio con stante e caracteris-tico da doutrina liberal em toda a sua tradicao, especial-
mente a anglo-saxa, que 0 Estado e tao mais liberal
quanta mais reduzidos sao esses poderes e, correlativa-
mente, quanta mais ampla e a esfera da liberdade nega-
tiva. A diferenca entre liberalismo e autoritarismo (me-
lhor que totalitarismo) esta na diversa conotacao positiva
ou negativa dos dois termos opostos, poder e liberdade, e
das conseqiiencias-que disso derivam. 0 liberalismo e a
doutrina na qual a conotacao positiva cabe ao termo "Ii-
berdade", com a conseqiiencia de que uma sociedade e
tanto melhor quanta mais extensa e a esfera da liberdade
e restrita a do poder.
Na Iorrnulacao hoje mais corrente, 0 liberalismo e a
doutrina do "Estado minirno" (0minimal state dos an-
glo-saxoes). Ao contrario dos anarquistas, para quem 0
Estado e um mal absolute e deve, pois, ser eliminado,
para 0 liberal () Estado e sempre um mal, mas e neces-
sario, devendo, porranto, ser conservado embora dentro
de limites os mais restritos possiveis. Precisamente combase na exito < 1 : 1 j'('lt'llluia "Estado minimo" explica-se a
• • : . · lm l rI O -I '- -l lt " I' ! l i l l i ' t l m l - - I I U ! ! l t l t ll l t lt l u : r @ . I , . ,. P ' . 1r ' . ' I i I Q l i l l i l l l l i T l l l i i ! ! ! : I i I I t ! ' I I Ii I : : I I I i W ' i U I I I I ' : i : I i U I I i I I W ' I I i I I W H I I D H ! ! ! H H . , ! ' H Y_I'!U"iI,IJld,"d_ ";,I,iiiiliii,i;ih,IIILlllll li------
90 NORBERTO BOBBIO LIBERALISMO E DEMOCRACIA 91
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vastidao do debate travado em torno ao livro de Robert
Nozick, Anarquia, Estado e Utopia, surgido em 1974.69
A obra de Nozick move-se contra duas frentes: contra 0
Estado maximo dos defensores do "Estado de justica" ,
ao qual sao atribuidas funcoes de redistribuicao da ri-queza, mas tambem contra a total eliminacao do Estado
proposta pelos anarquistas. Embora com argumentos
novos, Nozick retoma e defende a tese liberal classica do
Estado como organizacao monopolista da forca cujo
iinico e limitado objetivo e proteger os direitos indivi-
duais de todos os membros do grupo. Partindo da teoria
lockeana do estado de natureza e dos direitos naturais,
mas repudiando 0 contratualismo como teoria que ve 0
nascimento do Estado num acordo voluntario e se en-
trega a feliz (e talvez tambem falaz) ideia de uma criacaoda "mao invisivel", Nozick constroi 0Estadocomo uma
livre associacao de protecao entre individuos que estao
num mesmo territorio, cuja Iuncao e a de defender os di-reitos de cada individuo contra a ingerencia por parte de
todos os demais e, portanto, a de impedir qualquer for-
ma de protecao privada, ou, dito de outra forma, a de
impedir que os individuos facam justica por si mesmos.Alem do mais, quanto a determinacao dos direitos indi-
viduais que 0 Estado deve proteger, a teoria de Nozick
esta genericamente fundada sobre alguns principios do
direito privado, segundo os quais todo individuo tern di-
reito de possuir tudo 0que adquiriu justamente (ou prin-
cipio de justica na aquisicao) e tudo 0 que adquiriu jus-
tamente do proprietario precedente (principio de justica
na transferencia). Qualquer outra funcao que 0 Estado
(69) Para urn resumo do debate, com a correspondente bibliografia,
ver F. Comanducci, "l.a meta-utopia di Nozick", Materiali per una Stor ia
della Cultura Giuridica , XII, l'lill. 1'1'. 507-523_Tambern existe uma tradu-"ao italiana do livro de Nozn-k , llon-ucu, LeMonnier, 1981.
I: : ! !!!! II I I :!: ., n i l ; ; Wi . 1 I !: : lt : ! ' i' 1 U m ' : ! i t u : : ! " ! ! " U: r : U · \- l u q 'H H H
se atribua e injusta, pois interfere indevidamente na vida
e na liberdade dos individuos. A conclusao e que 0 Es-
tado minimo, embora sendo minimo, e 0 Estado mais
extenso que se possa conceber: qualquer outro Estado e
imoral.A teoria de Nozick poe mais problemas do que ecapaz-de . resolver: esta toda fundada na aceitacao da
doutrina juridica dos titulos de aquisicao originaria e de-rivada da propriedade, sobre a qual 0 autor nao da a mi-nima explicacao. De qualquer modo, represent a exem-
plarmente 0ponte extremo a que chegou a reivindicacao
da tradicao autentica do liberalismo, como teoria do Es-
tado minimo, contra 0Estado-bem-estar que se propoe,
entre as suas Iuncoes, tambem a da justica social. Como
tal, nao pode deixar de acertar as contas com a tradicaodo pensamento democratico, nao tanto no que diz respei-
to a democracia igualitaria (que, como se disse desde 0
inicio, mal se concilia com 0 espirito do liberalismo)
quanto a propria democracia formal, cujo exercicio leva-
ria por toda parte - inclusive onde nao se formaram
partidos socialistas, como nos Estados Unidos - a urn
excesso de intervencionismo estatal incompativel com 0
ideal do Estado que governe 0menos possivel.
LIBERALISMO E DEMOCRACIA 93
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17. Democracla e
lngovemabllldade
A relacao entre liberalismo e democracia foi sempre
uma relacao dificil: nee cum te nee sine te. Hoje que 0
liberalismo parece mais uma vez ancorado, de resto coe-
rentemente com a sua melhor tradicao, na teoria do Es-
tado minimo, a relacao tornou-se mais dificil do que
nunea. Nesses ultimos anos 0tema principal da polemic a
foi 0 da ingovernabilidade." Enquanto que no inicio do
litigio 0alvoprincipal foi, como seviu, a tirania da maio-
ria, donde derivou a defesa intransigente da liberdade
individual contra a invasao da esfera publica mesmo que
regulada it base doprincipio demaioria, hoje 0alvoprin-
cipal e a incapacidade dos governos democraticos de do-
minarem convenientemente os conflitos de uma socie-
dade complexa: urn alvo de sinal oposto, nao 0 excesso,
mas 0defeito do poder.
(70) 0 debate sobre a ingllvtTllahilidade das democracias nasceu com
a obra coletiva de M. Crozier, S. I' 1IIIIItington e J. Watanuki, La Crisi della
Democrazia. Rapporto sulla (;ol"'(11,,/Jihlu della Democrazia alia Commis-
. sione Trilaterale(1975)(lrad.'1 ,Md,,", Franco Angeli, 1977),
otema da ingovernabilidade a que estariam predes-
tinados os regimes democraticos pode ser articulado em
tres pontos:
a) bern mais do que os regimes autocraticos, os re-
gimes democratic os sao caracterizados por uma despr~-
porcao crescente entre 0mimero de demandas proveni-
entesda sociedade civil e a capacidade de resposta do
sistema politico, Ienomeno que na terminologia da teoria
dos sistemas recebe 0nome de sobrecarga. Tal fenomeno
seria caracteristico das democracias por duas razoes
opostas, mas convergentes para 0mesmo resultado. De
urn lado, os institutos herd ados pelo regime democratico
doEstado liberal, que, como se disse, constituem 0pres-
suposto do born funcionamento do poder popular, da li-
berdade de reuniao e de associacao, da livre organizacao
degrupos deinteresse, de sindicatos, de partidos, itmaxi-
maextensao dos direitos politicos, fazem com que se torne
mais Iacil, por parte dos singulares e dos grupos, 0enca-
minhamento de solicitacoes aos poderes publicos para
serem atendidas no rnais breve tempo possivel, sob a
ameaca de urn enfraquecimento do consenso, numa pro-
porcao absolutamente desconhecida pelos governos auto-
craticos, onde os jornais sao control ados pelo governo,
onde os sindicatos nao existem ou sao dependentes dopoder politico, onde nao existe outro partido a nao ser 0
que apoia 0 governo ou e uma emanacao direta dele. I?e
outro lado, os procedimentos predispostos por urn SIS-
tema dernocratico para tomar as decisoes coletivas, ou
que deveriam dar uma resposta as demandas propost~s
pela sociedade civil, sao de ordem que desaceleram e as
vezes esvazia 111 , atraves do jogo dos vetos cruzados, 0
proprio iter da dccisao, it diferenca do que ocorre num
regime autocraticn, onde a concentracao do poder em
poucas maos (S('II:10 ate mesmo urn chefe carismatico
cuja vontade (. h - i ) c a supressao das instancias como °
94 NORBERTO BOBBIO LlBERALISMO E DEMOCRACIA 9S
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parlamento - no qual as diversas opinioes sao confron-
tad as e as decisoes tomadas apenas apes longos debates,
com as proprias decisoes do parlamento podendo ser
submetidas ao controle de urn orgao jurisprudencial
como a corte constitucional ou ao proprio povo atravesdo recurso ao referendum - permitem decisoes rapidas,
peremptorias e definitivas. Com uma expressao sintetica,
pode-se exprimir esse contraste entre regimes democra-
ticos e autocraticos com respeito a relacao entre de-
mandas e respostas dizendo que, enquanto a democracia
tern a demanda facil e a resposta dificil, a autocracia
torna a demanda mais dificil e tem mais Iacil a resposta;
b) nos regimes democraticos a conflitualidade so-
dale maiordo que nos regimes autocraticos, Como
uma das funcoes de quem governa e a de resolver os con-flitos sociais de modo a tornar possivel uma convivencia
entre individuos e grupos que representam interesses di-
versos, e evidente que quanta mais aumentam os con-
flitos mais aumenta a dificuldade de domina-los. Numa
sociedade pluralista,como e a que vive e floresce numsistema politico dernocratico, onde 0 conflito de classe emultiplicado por uma miriade de conflitos menores cor-
porativos, os interesses contrapostos sao rmiltiplos, don-
de nao e possivel satisfazer urn deles sem ofender urnoutro, numa cadeia sem fim. Que 0 interesse das partes
singulares deva estar subordinado ao interesse coletivo euma formula, corn efeito, privada de urn conteiido pre-
eiso. Geralmente 0 unico interesse comurn a que obe-
decem os varies componentes de urn governo democra-
tico, de urn governo em que os partidos singulares devem
prestar contas aos proprios eleitores das opcoes feitas, e ode satisfazer os interesses que produzem maiores con-
sensos e sao sempre interesses parciais;
c) nos regimes dcrnocraticos 0poder esta mais am-
plamente distribuido do que 110S regimes autocraticos;
ne1esseencontra, ern contraste com 0que ocorre nos re-
gimes opostos, 0 fenomeno que hoje se denomina de po-
der "difuso". Uma das caracteristicas da sociedade de-
mocratica e a de ter mais centros depoder (donde 0nome
que bern thecabe de "poliarquia"):0
poder e tanto maisdifuso quanto mais 0governo da sociedade e em todos os
niveis regulado por procedimentos que admitem a parti-
cipacac, 0 dissenso e, portanto, a proliferacao dos lu-
gares em que se tomam decisoes coletivas. Mais que di-
fuso, 0 poder numa sociedade democratic a tambem efragmentado e de dificil recomposicao. As conseqliencias
negativas dessa fragrnentacao do poder com respeito ao
problema da governabilidade sao logo reveladas: a frag-
mentacao cria coneorrencia entre poderes e termina por
criar urn conflito entre os proprios sujeitos que deveriam
resolver os conflitos, uma especie de conflito it segunda
potencia. Enquanto 0 conflito social e dentro de certos
limites fisiologico, 0 conflito entre poderes e patologico
etermina por tornar patologica, exasperando-a, tambem
a normal conflitualidade social.
A demincia da ingovernabilidade dos regimes demo-
craticos tende a sugerir solucoes autoritarias, que se mo-
vern ern duas direcoes: de urn lado, em reforcar 0Poder
Executivo e assim dar preferencia a sistemas de tipo pre-
sidencial ou semipresidencial em detrimento dos sis-
temas parlamentares classicos; de outro lado, ern ante-
por sempre novos limites it esfera das decisoes que po-
dem ser tomadas com base na regra tipica da demo-
cracia, a regra da maioria. Sea dificuldade em que caem
as democracias deriva da "sobrecarga", os remedies, de
fato, podem ser essencialmente dois: ou urn melhor fun-
cionamento dos orgaos decisionais (nessa direcao vai 0
acrescimo do podcr dogoverno com respeito ao do parla-
mento) ou uma drastica limitacao do seu poder (nessadirecao van as propostas de limitar 0poder da maioria).
9 6 NORBERTO BOBBIO LIBERALISMO E DEMOCRACIA 97
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Todas as democracias reais, nao a ideal de Rousseau,
nasceram limitadas, no sentimento ja esclarecido de que
as decisoes que cabem a maioria foram subtraidas desde
o inicio todas as materias referentes aos direitos de liber-
dade, chamadas precisamente de "inviolaveis". Urna das
propostas avancadas por uma corrente de escritores neo-
liberais consiste em exigir que seja limitado constitucio-
nalmente inclusive 0 poder economico e fiscal do parla-
mento, de modo a impedir que a resposta politica a de-
manda social acabe por produzir urn excesso de despesa
publica com respeito aos recursos do pais. Ainda uma
vez 0 contraste entre liberalismo e democracia se resolve
na aceitacao, por parte da doutrina liberal, da demo-
cracia como rnetodo ou como conjunto de regras do jogo,
mas tambem, paralelamente, no estabelecimento perm a-nente dos limites em que podem ser usadas aquelas re-
gras.
Quando no seculo passado se manifestou 0 con-
traste entre liberais e democratas, a corrente democra-
tica levou a melhor, obtendo gradual mas inexoravel-
mente a eliminacao das discriminacoes politicas, a con-
cessao do sufragio universal. Hoje, a reacao democratic a
diante dos neoliberais consiste em exigir a extensao do
direito de participar na tomada das decisoes coletivas
para lugares diversos daqueles em que se tomam as de-
cisoes politicas, consiste em procurar conquistar novos
espacos para a participacao popular e, portanto, em pro-
ver a passagem - para usar a descricao das varias etapas
do processo de democratizacao feita por Macpherson -
da fase da democracia de equilibrio para a fase da demo-
cracia de participacao. 71
(71) C. B. Macpherson. tt...{,iii, find Time 0/ Liberal Democracy, os -ford University Press, 1977 (Ir.ul. il , 1 - : . Albertoni (org.), Milao, II Saggiatore,
1980). Segundo 0 autor, ," ' 1 " " ' 1 1> Ills",; do desenvolvimento da democracia
Para quem examina essa constante dialetica de libe-
ralismo e democraeia de um ponto de vista de teoria po-
litica geral, fica claro que 0 contraste continuo e jamais
definitivamente resolvido (ao contrario, sempre desti-
nado a se colocar ern niveis mais altos) entre a exigencia
dos liberais de urn Estado que governe 0men os possivel e
ados democratas de um Estado no qual 0 governo esteja
ornais possivel nas maos dos cidadaos, reflete 0contraste
entre do is modos de entender a liberdade, costumeira-
mente cham ados de liberdade negativa e de liberdade
positiva, e em relacao aos quais se dao, conforme as con-
dicoes historicas, mas sobretudo conforme 0 posto que
cada um ocupa na soeiedade, juizos de valor opostos: os
que estao no alto preferem habitualmente a primeira, os
que estao embaixo preferem habitualmente a segunda.Como em toda sociedade sempre existiram ate agora uns
e outros, 0 contraste benefice entre as duas liberdades
nao e do tipo das que podem ser resolvidas de uma vez
para sempre, com as solucoes POI' ele recebidas sendo
muitas vezes solucoes de compromisso, Infelizmente tal
contraste nem sempre e possivel: nao e possivel nos re-
gimes em que, no posto da primeira, ha um poder sem
limites; no posta da segunda, urn' poder aeima de qual-
quer controle. "Mas contra um e contra outro, liberalismoe democraeia se transformam necessariamente de irmaos
inimigos em aliados.
sao a democracia prorcrora, a democracia de desenvolvimento, a dernocracia
de equilibrio e, por [jIll (ainda nao realizada), a democracia participativa.