Poetica - Aristóteles(Trad. Eudoro Souza)

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    IPoes ia e imita~ao.Especies d e p oe sia im i ta tiv a,

    c la s sif ic ad a s s e gund o 0m eio da imita~ao.1447 a 1. Falemos da poesia - de lamesma e das suas especies, da efetiv i-

    dade de cada uma delas, da composi-~ao que se deve dar aos mitos, se qui-se rm os q ue 0 p oe ma resu lte p erfeito, e ,ainda, de quantos e quais os elem entosde cada esp ec ie e , sem elhantem ente , detudo quanto p ertence a esta indagacao- comecando, como e natural, pelasco isas p r ime iras .

    13 2. A epopeia, a tragedia, assimcomo a poesia ditirambica e a maiorp arte da aule tica e da c itaris tica, todassao, em geral, imitacdes, Diferem,porem, umas das outras, por tresaspectos: ou porque imitam por meiosdiversos, ou porque imitam objetosdiversos ou porque imitam por modosd iv ersos e n jio d a m esm a m an eira.

    17 3 . Pois tal como ha os que imitammuitas coisas exprimindo-se comcores e figuras (por arte ou por costu-me), ass im acontece nas sobreditasartes: na verdade, todas e las imitamcom 0 ritmo, a linguagem e a harmo-nia, usando estes e lementos separadaou conjuntam ente. Por exem plo, s O deharmonia e ritmo usam a aule tica e ac itaris tica e quaisquer outras artescongeneres, como a siringica; com 0ritmo e sem harmonia, im ita a arte dosdancarinos, porque tambem estes, porr itmo s g es tic ul ad os , im itam c ara cte re s,a fe to s e ae de s.

    27 4 .. M as [a epopeia e]a arte que ape-

    nas recorre ao simples verbo, querm etrificado quer nao, e , quando m etri-ficado, misturando metros entre sid iversos ou servindo-se de uma soespecie metrica - e is uma arte que, 1 44 7 bate h oje ,p erm an ece u in om in ad a. E feti-vamente , n iio temos denominadorcomum que designe os mimos de So-fron e de Xenarco, os dialogos socra-ticos e quaisquer outras composicoesim ita tiv as , e xe cu ta das m ed ia nte trim e-tros jambicos ou versos e legiacos ououtros versos que tais. Porem , ajun- 13tando a p alav ra "p oe ta" 0 nome deuma s O esp ecie m etrica, aconteceudenominarem-se a uns de "poe tase legiacos", ~ outros de "poe tas ep i-cos", des ignando-os assim , njio pe laimitacao praticada, mas unicam entep elo m etro u sad o.

    5 . D esta maneira, se alguem com- 16p user em verso urn tratado de m edic inaou de fisica, esse se ra vulgarm ente cha-made "poeta"; na verdade , porem,nada ha de cornum entre Homero eE mp ed oc le s, a n ao se r a m etrific ac ao 1 :aq ue le m erec e 0 nome de "poeta", eeste , 0 de "fisiologo", mais que 0 depo eta. Pe lo mesmo motivo, se alguernfize r 'obra de imitacao, ainda que m is-ture versos de todas as especies, como

    1 No te -s e q ue o s p rime ir os f ilo so fo s, o s p re -s oc ra -t ico s, chamados f is io logos po r Ar is to te le s , e s cr eve -ra m s ua s re fle xc es em v ers o. (N , d o E .)

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    444 ARIST6TELESo fez Querernon no Centauro, que euma rapsodia tecida de toda a casta demetros, nem par isso se the deve recu-sar 0nome de "poeta".

    23 6. Fiquem assim determinadas asdistincoes que tinhamos de estabelecer.Poesias ha, contudo, que usam detodos os meios sobreditos; isto e, de

    ritmo, canto e metro, como a poesiados ditirambos e dos nomos, a tragediae a comedia - s6 com uma diferenca:as duas primeiras servem-se junta-mente dos tres meios, e as outras, decada urn por sua vez. Tais sao as dife- 27rencas entre as artes, quanto aos meiosde imitacao,

    IIEspecies de poesia imitativa, classificadas

    segundo 0objeto da imitacao.1448 a 7. Mas, como os imitadores imitam

    homens que praticam alguma acao, eestes, necessariamente, ~ao indivfduosde elevada ou de baixa indole (porquea variedade dos caracteres so seencontra nestas diferencas [e, quanto acarater, todos os homens se distinguempelo vicio ou pela virtude]), necessaria-mente'tambem sucedera que os poetasimitam homens melhores, piores ouiguais a n6s, como 0 fazem os pinto-res: Polignoto representava os homenssuperiores; Pauson, inferiores; Dioni-sio representava-os semelhantes a n6s.Ora, e claro que cada uma das imita-e;:Oesreferidas con tern estas mesmasdiferencas, e que cada uma delas hit devariar, na imitacao de coisas diversas,desta maneira.

    8. Porque tanto na danca como na 9auletica e na citaristica pode haver taldiferenca; e, assim, tam bern nos gene-ros poeticos que usam, como meio, alinguagem em prosa ou em verso [semmusical : Homero imitou homens supe-riores; Cleofao, semelhantes; Hege-mon de Taso, 0 primeiro que escreveupar6dias, e Nic6cares, autor da Delia-da, imitaram homens inferiores. E amesma diversidade se encontra nosditirambos e nos nomos, como 0 mos-tram [Ar] ga, Tim6teo e Fil6xeno, nosClclopes.9. Pois a mesma diferenca separa a 16

    tragedia da comedia; procura, esta,imitar os homens piores, e aquela,melhores do que eles ordinariamentesao.

    IIIEspecies de poesia imitativa, classificadassegundo 0modo da imitacdo: narrativa, mista, dramatica,Etmologia de "drama" e "comedia".

    /9 10, Hit ainda uma terceira diferencaentre as especies [de poesias] imitati-vas, a qual consiste no modo como seefetua a imitacao, Efetivamente, comos mesmos meios pode urn poeta imi-

    tar os mesmos objetos, quer na formanarrativa (assumindo a personalidadede outros, como 0 faz Homero, ou napr6pria pessoa, sem mudar nunca),quer mediante todas as pessoas imita-

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    POETIC Adas, operando e agindo elas mesmas.Consiste pois a imitacao nestas tresdiferencas, como ao principio disse-mos - a saber: segundo os meios, osobjetos e 0 modo. Por isso, num senti-do, e a imitacao de Sofocles a mesmaque a de Homero, porque ambos imi-tam pessoas de carater elevado; e, nou-tro sentido, e a mesma que a de Arist6-fanes, pois ambos imitam pessoas queagem e obram diretamente.11. Dill 0 sustentarem alguns que

    tais composicoes se denominam dra-mas , pelo fato de se imitarem agentes

    29 [dr6ntas]. Por isso, tambem, os D6riospara si reclamam a invencao da trage-dia e da comedia; a da cornedia,pretendem-na os megarenses, tanto os

    445da metr6pole, do tempo da democra-cia, como os da Sicilia, porque la viveuEpicarmo, que foi muito anterior aQuionidas e Magnes; e da tragediatambem se dao por inventores algunsdos d6rios que habitam 0 Peloponeso:dizem e1es que, na sua linguagem, cha-mam komai as aldeias que os atenien-ses denominam demoi, e que os "come-diantes" nao derivam seu nome dekomazein, mas, sim, de andarem de al-deia em aldeia (k6mas) , por nao seremtolerados na cidade; e dizem tambem 1448bque usam 0 verbo driin para significaro "fazer", ao passe que os ateniensesempregam 0 termo p rtu te in .12. Damos por dito tudo que se re- 2fere a quantas e quais sejam as diferen-

    cas da imitacao poetica.

    IVO rig em d a p oe sia . C au sa s. H is t6ria d a

    po e s i a tragica e cdmica.13. Ao que parece, duas causas, e

    ambas naturais, geraram a poesia. 0imitar e congenito no homem (e nissodifere dos outros viventes, pois, detodos, e ele 0 mais imitador, e, por imi-tacao, aprende as primeiras nocoes), eos homens se comprazem no imitado.14. Sinal disto e 0 que acontece naexperiencia: nos contemplamoscomprazer as imagens mais exatas daque-

    las mesmas coisas que olhamos comrepugnancia, por exemplo, [as repre-sentacoes de] animais ferozes e [de]cadaveres, Causa e que 0 aprender naoso muito apraz aos fil6sofos, mas tam-bern, igualmente, aos demais homens,se bern que menos participem dele.Efetivamente, tal e 0 motive por que sedeleitam per ante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre 0 queseja cada uma delas, [e dirac], porexemplo, "este e tal". Porque, se suce-

    der que alguem nao tenha visto 0 origi-nal, nenhum prazer the advira da ima-gem, como imitada, mas tjio-somenteda execucao, da cor ou qualquer outracausa da mesma especie,15. Sendo, pois, a imitacao propria 20

    da nossa natureza (e a harmonia e 0ritmo, porque e evidente que os metrossao partes do ritmo), os que ao princi-pio foram mais naturalmente propen-sos para tais coisas pouco a poucoderam origem a poesia, procedendodesde os mais toscos improvisos.16. A poesia tomou diferentes for- 24mas, segundo a diversa indole particu-

    lar [dos poetas]. Os de mais altoanimo imitam as acoes nobres e dasmais nobres personagens; e os de maisbaixas inclinacces voltaram-se para asaedes ignobeis, compondo, estes, vitu-perios, e aqueles, hinos e encomios,Nao podemos, e certo, citar poemas

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    4 46 ARIST6TELESdeste genero, dos [poetas que viveram]antes de Romero, se bern que, verossi-milmente, muitos tenham existido;mas, a comecar em Romero, temos 0Margites e outros poem as semelhantes,nos quais, por mais apto, se introduziuo metro jambico (que ainda hoje assimse denomina porque nesse metro seinjuriavam [itlmbizon]). De modo que,entre os antigos, uns foram poetas emverso her6ico, outros 0 foram em versojambico.

    33 17. Mas Romero, tal como foisupremo poeta no genero serio, pois sedistingue nao s6 pela excelencia comopela feicjio dramatica das suas imita-9i>es, assim tam bern foi 0 primeiro quetracou as linhas fundamentais da co-media, dramatizando, njio 0 vituperio,mas 0 ridicule, Na verdade, 0 Margi-tes tern a mesma analogia com acomedia que. tern a Iliada e a Odisseiacom a tragedia,

    1449 a 18. Vindas a luz a tragedia e acomedia, os poetas, conforme a pro-pria indole os atraia para este ou aque-le genero de poesia, uns, em vez dejambos, escreveram cornedias, outros,em lugar de epopeias, compuseramtragedias, por serem estas ultimas for-mas mais estimaveis do que as primei-ras.6 19. Examinar, depois, se nas form astragicas [a poesia austera] atinge ounjio atinge a perfeicao [do genero],quer a consideremos em si mesma,quer no que respeita ao espetaculo -isso seria outra questao.9 20. Mas, nascida de urn principioimprovisado (tanto a tragedia, como a

    comedia: a tragedia, dos solistas doditirambo; a cornedia, dos solistas doscantos falicos, composicoes estasainda hoje estimadas em muitas dasnossas cidades), [a tragedia] pouco apouco foi evoluindo, a medida que sedesenvolvia tudo quanto nela se mani-festava; ate que, pas-adas muitastransforrnacdes, a tragedia se deteve,logo que atingiu a sua forma natural.Esquilo foi 0 primeiro que e1evou de 15urn a dois 0mimero dos atores, dirni-nuiu a importancia do coro e fez dodialogo protagonista. S6focles introdu-ziu tres atores e a cenografia. Quanto a 19grandeza, tarde adquiriu [a tragedia] 0seu alto estilo: [s6 quando se afastou]dos argumentos breves e da elocucaogrotesca, [isto e,] do [elemento] satiri-co, Quanto ao metro, substituiu 0tetrametro [trocaico] pelo [trimetro]jambico. Com efeito, os poetas usaramprimeiro 0 tetrametro porque as suascomposicoes eram satiricas e maisafins a danca; mas, quando se desen-volveu 0 dialogo, 0 engenho naturallogo encontrou 0 metro adequado; poiso jambo e 0 metro que mais se con-forma ao ritmo natural da linguagemcorrente: demonstra-o 0 fato de muitasvezes proferirmos jambos na conversa-9ao, e s6 raramente hexametros, quan-do nos elevamos acima do tomcornum,21. Quanto ao mimero de epis6dios -e outros omamentos que se haja acres-centado a cada parte, consideremos 0assunto tratado; muito laborioso seriadiscorrer sobre tudo isso em pormenor.

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    vA comedia: evolucao do genero. Comparacao datragedia com a epopeia.

    _ '2 22. A comedia e , como dissemos,imitacao de homens inferiores; nao,todavia, quanto a toda a especie de vi-cios, mas so quanta aquela parte dotorpe que e 0 ridiculo. 0 ridicule e ape-nas certo defeito, torpeza anodina einocente; que bern 0 demonstra, porexemplo, a mascara comica, que,sendo feia e disforme, nao tern [expres-sao de] dor.36 23. Se as transformacoes da trage-dia e seus autores nos sao conhecidas,as da comedia, pelo contrario, estaoocultas, pois que delas se nao cuidou

    L~9b desde 0 inicio: so passado muito tempooarconte concedeu 0 cora da comedia,que outrora era constituido por volun-tarios. E tambem so depois que teve acornedia alguma forma e que achamosmemoria dos que se dizem autoresdela. Nao se sabe, portanto, quemintroduziu mascaras, pro logo, mimerode atores e outras coisas semelhantes.A composicao de argumentos e [pra-tical oriunda da Sicilia [e os primeirospoetas comicos teriam sido Epicarmoe F6rmide] ; dos atenienses, foi Crates

    .0 primeiro que, abandon ada a poesiajambica, inventou dialogos e argumen-tos de carater universal.24. A epopeia e a tragedia concor- 9dam somente em serem, ambas, imita-

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    4 48 ARIST6TELESgem que tern ritmo, harmonia e canto,e 0 servir-se separadamente de cadauma das especies de omamentos signi-fica que algumas partes da tragediaadotam so 0 verso, outras tam bern 0canto.

    30 29. Como esta imitacao e execu-tada por atores, em primeiro lugar 0espetaculo cenico ha de ser necessaria-mente uma das partes da tragedia, edepois, a melopeia e a elocucao, poisestes sao os meios pelos quais os ato-res efetuam a imitacao, Por "elocu-cao" entendo a mesma composicaometric a, e por "rnelopeia", aquilo cujoefeito a todos e manifesto.35 30. E como a tragedia e a imitacaode uma ac;:ao e se executa mediantepersonagens que agem e que diversa-mente se apresentam, conforme 0 pro-prio carater e pensamento (porque esegundo estas diferencas de carater epensamento que nos qualificamos asaedes), dai vern por consequencia 0serem duas as causas naturais que

    1450. determinam as acoes: pensamento ecarater; e, nas aedes [assim determina-das] , tern origem a boa ou rna fortunados homens. Ora 0mito e imitacao deacoes; e por "mito" entendo a compo-sicao dos atos; pos "carater", 0que.nosfaz dizer das personagens que elas terntal ou tal qualidade; e por "pensamen-to", tudo quanto digam as personagenspara demonstrar 0 quer que seja oupara manifestar sua decisao.31. E portanto necessario que sejamseis as partes da tragedia que consti-tuam a sua qualidade, design ada-mente: mito, carater, elocucao, pensa-mento, espetaculo e melopeia, De sorteque quanto aos meios com que se imitasao duas, quanto ao modo por que seimita e uma so, e quanto aos objetos

    13 que se imitam, sao tres; e alern destaspartes nao ha mais nenhuma. Podedizer-se que, de todos estes elementos,nao poucos poetas se serviram; com

    efeito, todas as tragedias comportamespetaculo, caracteres, mito, melopeia,elocucao e pensamento.32. Porem, 0 elemento mais impor- 16tante e a trama dos fatos, pois a trage-dia njio e imitacao de homens, mas deac;:5ese de vida, de felicidade [e infeli-cidade; mas felicidade] ou infelicidade.reside na ac;:ao, e a propria fmalidadeda vida e uma ac;:ao,njio uma qualida-de. Ora, os homens possuem tal ou talqualidade conformemente ao carater,mas sao bern ou mal-aventurados pelasac;:6es que praticam. Daqui se segueque, na tragedia, njio agem as persona-gens para imitar caracteres, mas assu-mem caracteres para efetuar certasacoes; por isso as acoes eo mite-cons-tituem a fmalidade da tragedia, e afmalidade e de tudo 0 que maisimporta.33. Sem ac;:ao nao poderia haver 23tragedia, mas poderia have-la semcaracteres. As tragedias da maior partedos modemos nao tern caracteres, e,em geral, ha muitos poetas desta espe-cie. Tambem, entre os pintores, assim e

    Zeuxis comparado com Polignoto,porque Polignoto e excelente pintor decaracteres e a pintura de Zeuxis naoapresenta carater nenhum.34. Se, por conseguinte, alguem or- 28denar discursosem que se exprimamcaracteres, por bern executados quesejam os pensamentos e as elocucoes,nem por isso havera logrado 0 efeitotragico; muito melhor 0 conseguira atragedia que mais parcimoniosamenteusar desses meios, tendo, no entanto, 0mito ou a trama dos fatos. Ajuntemos

    a isto que os principais meios por quea tragedia move os animos tambernfazem parte do mito; refiro-me a peri-pecias e reconhecimentos. Outro sinal -~da superioridade do mito se mostra emque os principiantes melhores efeitosconseguem em elocucoes e caracteres,

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    POETIC Ado que no entrecho das acoes: eo quese nota em quase todos os poetasantigos.35. Portanto, 0mito e 0 principio ecomo que a alma da tragedia; s O de-pois vern os caracteres. Algo seme-

    "50 b lhante se verifica na pintura: se alguemaplicasse confusamente as mais belascores, a sua obra nao nos comprazeriatanto, como se apenas houvesse esbo-cado uma figura em branco. A trage-dia e , por conseguinte, imitacao deuma acao e, atraves del a, principal-mente, [irnitacao] de agentes.36. Terceiro [elemento da tragedia]e 0 pensamento: consiste em poderdizer sobre tal assunto 0 que the e ine-rente e a esse convem. Na eloquencia,o pensamento e regulado pel a politicae pela oratoria (efetivamente, nos anti-gos poetas, as personagens falavam alinguagem do cidadao, enos modernosfalam a do orador). Carater e 0que re-vela certa decisaoou, em caso de diivi-

    449da, 0 fim preferido ou evitado; per issonao tern carater os discursos do indivi-duo em que, de qualquer modo, se naorevele 0 fim para que tende ou 0 qualrepele. Pensamento e aquilo em que apessoa demonstra que algo e ou nao e ,ou enuncia uma sentenca geral,37. Quarto, entre os elementos [lite- 12rarios] , e a elocucao. Como disse,denomino "elocucao" 0 enunciado dospensamentos por meio das palavras,enunciado este que tern a mesma efeti-vidade em verso ou em prosa.38. Das restantes partes, a melopeia 15e 0principal ornamento.39. Quanto ao espetaculo cenico, 16decerto que e 0mais emocionante, mastambem e 0 menos artistico e menosproprio da poesia. Na verdade, mesmosem representacao e sem atores, pode atragedia manifestar seus efeitos; alemdis so, a realizacao de urn born espeta-culo mais depende do cenografo quedo poeta.

    V IIEstrutura do mito tragico. 0 mito como ser vivente.

    40. Assim determinados os elemen-tos da tragedia, digamos agora qualdeve ser a composicao dos atos, pois eesta parte, na tragedia, a primeira e amats importante.41. Ja ficou assente que a tragedia eimitacao de uma acrao completa, cons-tituindo urn todo que tern certa grande-za, porque po de haver urn to do quenao tenha grandeza.42. "Todo" e aquilo que tern princi-pio, meio e fim. "Principio" e 0 quenao con tern em si mesmo 0 que querque siga necessariamente outra coisa, eque, pelo contrario, tern depois de sialgo com que esta ou estara necessa-riamente unido. "Fim", ao inves, e 0que naturalmente sucede a outra coisa,

    pot necessidade ou porque assim aeon-tece na maioria dos casos, e que, de-pois de si, nada tern. "Meio" e 0 queesta depois de alguma coisa e ternoutra depois de si.43. E necessario, portanto, que os 32mitos bern compostos nao comecemnem terminem ao acaso, mas que seconformem aos mencionados princi-pios.44. Alem disto, 0 belo - ser viven- 34te ou 0 que quer que se componha departes - njio so deve ter essas partesordenadas, mas tambem uma grandezaque nao seja qualquer. Porque 0 belaconsiste na grandeza e na ordem, eportanto urn organismo vivente, peque-nissimo, nao poderia ser belo (pois a

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    450 ARIST6TELESvisao e confusa quando se olha portempo quase imperceptivel); e tambernnjio seria belo, grandissimo (porque

    1451 a faltaria a visao do conjunto, escapandoi t vista dos espectadores a unidade e atotalidade; imagine-se, por exemplo,urn animal de dez mil estadios ... ).Pelo que, tal como os corpos e organis-mos viventes devem possuir uma gran-deza, e esta bern perceptivel como urntodo, assim tam bern os mitos devemter uma extensao bern apreensivel pelamemoria.45. Determinar 0 limite pratico

    6 desta extensao, tendo em conta ascircunstancias dos concursos drama-ticos e a impressao no publico, tal nao

    e 0mister da arte poetic a, pois se hou-vesse que por em cena cern tragedias[em urn s O concurso dramatico] , 0tempo teria de ser regulado pela clepsi-dra, como dizem que se fazia antiga-mente.rPorem, 0 limite imposto pelapropria natureza das coisas e 0 seguin-te: desde que se possa apreender 0 con-junto, uma tragedia tanto mais belasera quanto mais extensa. Dando umadefinicao mais simples, podemos dizerque 0 limite suficiente de uma tragediae 0 que permite que nas arrees umaapos outra sucedidas, conformementeit verossimilhanca e it necessidade, sede 0 transe da infelicidade it felicidadeou da felicidade it infelicidade.

    VIIIUn id a d e d e a~ao:u n id ad e his t6ric a e u n id ad e poetica,

    46. Uno e 0 mito, mas nao por se16 referir a uma so pessoa, como creem

    alguns, pois ha muitos acontecimentose infmitamente varies, respeitantes aurn so individuo, entre os quais nao epossivel estabelecer unidade alguma.Muitas sao as arrees que uma pessoapode praticar, mas nem por isso elasconstituem uma arrao una.47. Assim, parece que tenham erra-19 do todos os poetas que compuseramuma Heracleida ou uma Teseida ououtros poemas que tais, por entende-rem que, sendo Heracles urn so, todasas acoes haviam de constituir uma

    unidade.48. Porem Homero, assim como se22 distingue em tudo 0 mais, tambem pa-rece ter visto bern, fosse por arte oupor engenho natural, pois, ao compor aOdisseia; nao poetou todos os sucessosda vida de Ulisses, por exemplo 0 tersido ferido no Parnaso e 0 simular-se

    louco no momento em que se reuniu 0exercito. Porque, de haver acontecidouma dessas coisas, nao se seguianecessaria e verossimilmente que aoutra houvesse de acontecer, mas com-pos em torno de uma aryaouna a Odis-seia - una, no sentido que damos aesta palavra - e de modo semelhante,e Iliada.49. Por conseguinte, tal como enecessario que nas demais artes mime- 29

    ticas una seja a irnitacao, quando 0seja de urn objeto uno, assim tambem 0mito, porque e imitacao de aedes, deveimitar as que sejam unas e completas,e todos os acontecimentos se devemsuceder em conexao tal que, uma vezsuprimido ou deslocado urn deles, tam-bern se confunda ou mude a ordem dotodo. Po is njio faz parte de urn todo 0que, quer seja quer nao seja, nao alteraesse todo.

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    IXPoesia e hist6ria. Mito tragico e mito tradicional. Particulare universal. Piedade e terror. Surpreendente e maravilhoso.

    50. Pelas precedentes consideracoesse manifesta que njio e oficio de poetanarrar 0 que aconteceu; e, sim, 0 derepresentar 0 que poderia acontecer,quer dizer: 0 que e possivel segundo averossimilhanca e a necessidade. Comefeito, nao diferem 0 historiador e 0poeta por escreverem verso ou prosa(pois que bem poderiam ser postos emverso as obras de Her6doto, e nem porisso deixariam de ser historia, se fos-sem em verso 0 que eram em prosa) -diferem, sim, em que diz um as coisasque sucederam, e outro as que po de-riam suceder. Por is so a poesia e algode mais filoscfico e mais serio do que ahist6ria, pois refere aquela principal-mente 0 universal, e esta 0 particular.Por "referir-se ao universal" entendoeu atribuir a um individuo de determi-nada natureza pensamentos e aesque, por liame de necessidade e veros-similhanca, convem a tal natureza; eao universal, assim entendido, visa apoesia, ainda que de nomes as suaspersonagens; particular, pelo contra-rio, e 0 que fez Alcibiades ou 0 que lheaconteceu.51. Quanto a comedia, ja ficoudemonstrado [este carater universal dapoesia]; porque os comedi6grafos,compondo a fibula segundo a verossi-rnilhanca, atribuem depois as persona-gens 05 nomes que lhes parece, e naofazem como os poetas jambicos, que sereferem a individuos particulares.52. Mas na tragedia mantem-se osnornes ja existentes. A razao e aseguinte: 0 que e possivel e plausivel;ora. enquanto as coisas nao aconte-cem, nao estamos dispostos a crer que

    elas sejam possiveis, mas e claro quesao possiveis aquelas que acontece-ram, po is nao teriam acontecido se naofossem possiveis.53. Todavia, sucede tambem que 19em algumas tragedias sao conhecidosos nomes de uma ou duas personagens,

    sendo os outros inventados; em outrastragedias nenhum nome e conhecido,como no Anteu de Aragao, em que saoficticios tanto os nomes como os fatos,o que nao impede que igualmente agra-de. Pelo que nao e necessario seguir arisca os mitos tradicionais donde saoextraidas as nossas tragedias; poisseria ridicula fidelidade tal, quando ecerto que ainda as coisas conhecidassao conhecidas de poucos, e contudoagradam elas a todos igualmente.54. Daqui claramente se segue que 27o poeta deve ser mais fabulador queversificador; porque ele e poeta pelaimitacao e porque imita acoes. E aindaque the aconteca fazer uso de sucessosreais, nem por isso deixa de ser poeta,pois nada impede que algumas das co i-sas que realmente acontecem sejam,por natureza, verossimeis e possiveis e,por isso mesmo, venha 0 poeta a ser 0autor delas.55. Dos mitos e acoes simples, os 32epis6dicos sao os piores. Digo "epis6-dico" 0 mito em que a relacao entreurn e outro episodic nao e necessaria

    nem verossimil. Tais sao os mitos demaus poetas, por [impericia] deles, eas vezes de bons poetas, por [condes-cendencia com os] atores. E que, paracompor partes declamat6rias, chegama forcar a fabula para alem dos pr6-

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    II 452 ARIST6TELES

    prios limites e a romper 0 nexo daaciio.14S2a 56. Como, porern, a tragedia nao s Oe imitaejio de uma ayao completa, ,como tam bern de casos que suscitam 0terror e a piedade, e estas emocdes semanifestam principalmente quando senos deparam aes paradoxais, e,perante casos semelhantes, maior e 0espanto que ante os feitos do acaso eda fortuna (porque, ainda entre os

    eventos fortuitos, mais maravilhososparecem os que se nos afiguram aeon-tecidos de proposito - tal e , porexemplo, 0 caso da estatua de Mitis emArgos, que matou, caindo-lhe em cima,o proprio causador da morte de Mitis,no momenta em que a olhava -, poisfatos semelhantes njio parecem devidosao mero acaso), daqui se segue seremindubitavelmente os melhores os mitosassim concebidos.x

    Mito simples e complexo. Reconhecimento e peripecia,11 57. Dos mitos, uns sao simples, ou-tros complexos, porque tal distincaoexiste, por natureza, entre as acoes queeles imitam.

    13 58. Chamo acao "simples" aquelaque, sendo una e coerente, do modoacima determinado, efetua a mutacaode fortuna, sem peripecia ou reconheci-mento; ayao "complexa", denominoaquela em que a rnudanca se faz pelo

    reconhecimento ou pela peripecia, oupor ambos conjuntamente.59. E porern necessario que a peri- 17pecia e 0 reconhecimento surjam dapropria estrutura interna do mito, desorte que venham a resultar dos suces-sos antecedentes, ou necessaria ouverossimilmente. Porque e muito diver-so acontecer uma coisa por causa deoutra, ou acontecer meramente depoisde outra.

    XIElementos qualitativos do mito complexo:reconhecimento e peripecia.

    22 60. "Peripecia" e a mutacao dossucessos no contrario, efetuada domodo como dissemos; e esta inversaodeve produzir-se, tambern 0 dissemos,verossimil e necessariamente. Assim,no Edipo, 0 mensageiro que viera noproposito de tranqiiilizar 0 rei e deliberta-lo do terror que sentia nas suasrelacoes com a mae, descobrindo quemele era, causou 0 efeito contrario; e noLinceu: sendo Linceu levado para amorte, e seguindo-o Danau para 0

    matar, acontece 0 oposto - estemorre e aquele fica salvo.61. 0 "reconhecimento", como in- 30dica 0 proprio significado da palavra, ea passagem do ignorar ao conhecer,que se faz para amizade ou inimizadedas personagens que estao destinadaspara a dita ou para a desdita.62. A mais bela de todas as formas 31de reconhecimento e a que se da junta-mente com a peripecia, como, porexemplo, no Edipo. E outras ha ainda,

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    POETIC Apois com seres inanimados e casos aci-dentais tambem pode dar-se 0reconhe-cimento do modo como ficou dito; etam bern constitui reconhecimento 0haver ou nao haver praticado umaacao. Mas e a primeira forma aquelaque melhor corresponde a essencia domito e da acao, porque 0 reconheci-mento com peripecia suscitara terror e

    1452 b piedade, enos mostramos que a trage-dia e imitacao de acoes que despertamtais sentimentos. E demais, a boa ourna fortuna resultam naturalmente detais aedes.

    3 63. Posto que 0 reconhecimento ereconhecimento de pessoas, certos

    453casos ha em que 0 e somente de umapor outra, quando claramente se mos-tra quem seja esta outra; noutroscasos, ao inves, da-se 0 reconheci-mento entre ambas as personagens.Assim, Ifigenia foi reconhecida porOrestes pelo envio da carta, mas, paraque ela 0 reconhecesse a ele, foi misteroutre reconhecimento.64. Sao estas duas das partes do 9mito: peripecia e reconhecimento. Ter-ceira e a catastrofe, Que sejam a peri-pecia e 0 reconhecimento, ja 0 disse-mos. A catastrofe e uma a~aoperniciosa e dolorosa, como 0 sao asmortes em cena, as dores veementes, osferimentos e mais casas semelhantes.

    XIIPartes quantitativas da tragedia,

    14 65. Temos tratado daquelas partesda tragedia de que se deve usar, comode seus elementos essenciais. Mas, se-gundo a extensao e as a~es em quepode ser repartida, as partes da trage-dia sao as seguintes: prologo, epis6dio,exodo, coral - dividido, este, em pa-rodo e estasimo. Estas partes sao co-muns a todas as tragedias; peculiares aalgumas sao os "cantos da cena" e oskommoi.

    18 66. Prologo e uma parte completada tragedia, que precede a entrada docoro; episodic e uma parte completa

    da tragedia entre dois corais; exodo euma parte completa, a qual nao sucedecanto do coro; entre os corais, 0 paro-do e 0 primeiro, e 0 estasimo e urncoral desprovido de anapestos e tro-queus; kommos e urn canto lamentoso,da orquestra e da cena a urn tempo.67. Tratamos das partes da tragedia 25que devem ser usadas como elementosessenciais; estas sao, por sua vez, as

    partes da tragedia considerada emextensao e nas secoes em que e possi-vel reparti-la.

    XIIIA situacao tragica por excelencia, 0 heroi tragico.28 68. Que situacoes os argumentistasdevem procurar e quais devem evitar, etambem por que via haode alcancar 0efeito proprio da tragedia - eis 0 que

    resta dizer depois de tudo quanto foidito.69. Como a composicao das trage- 31dias mais belas nao e simples, mas

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    454 ARIST6TELEScomplexa, e alem disso deve imitarcasos que suscitam 0 terror e a piedade(porque tal e 0proprio tim desta imita-9aO), evidentemente se segue que naodevem ser representados nem homensmuito bons que passem da boa para arna fortuna - caso que njio suscitaterror nem piedade, mas repugnancia- nem homens muito maus que pas-

    1453 a sem da rna para a boa fortuna, poisnao ha coisa menos tragica, faltando-Ihe todos os requisitos para tal efeito;nao e con forme aos sentimentos huma-nos, nem desperta terror ou piedade. 0mito tam bern nao deve representar urnmalvado que se precipite da felicidadepara a infelicidade. Se e certo quesemelhante situacao satisfaz os senti-mentos de humanidade, tambem ecerto que nao provoca terror nem pie-dade; porque a piedade tern lugar arespeito do que e infeliz sem 0merecer,e 0 terror, a respeito do nosso seme-Ihante desditoso, pelo que, neste caso,o que acontece nao parecera terrivelnem digno de compaixao,70. Resta portanto a situacao inter-rnediaria. E a do homem que nao sedistingue muito pel a virtude e pela jus-tica; se cai no inforninio, tal acontecenao porque seja vii e malvado, mas porforca de algum erro; e esse homern hade ser algum daqueles que gozam degrande reputacao e fortuna, comoEdipo e Tiestes ou outros insignesrepresentantes de familias ilustres.

    12 71. E pois necessario que urn mitobern estruturado seja antes simples doque duplo, como alguns pretendem;que nele se nao passe da infelicidadepara a felicidade, mas, pelo contrario,da dita para a desdita; e njio por mal-vadez, mas por algum erro de uma

    personagem, a qual, como dissemos,antes propenda para melhor do quepara pior. Que assim deve ser, 0passa-do 0 assinala: outrora se serviam ospoetas de qualquer mito; agora, asmelhores tragedias versam sobre pou-cas familias, como sejam as de Ale-meon, Edipo, Orestes, Meleagro, Ties-tes, Telefo e quaisquer outros queobraram ou padeceram tremendas coi-sas.72. A mais bela tragedia, conforme 22as regras da arte, e, portanto, a que forcomposta do modo indicado. Por issoerram os que censuram Euripedes, por

    assim pro ceder nas suas tragedias, asquais, a maior parte das vezes, term i-nam no infortunio, Tal estrutura, ja 0dissemos, e a correta. A melhor provae a seguinte: na cena e nos concursosteatrais, as tragedias deste genero mos-tram-se como as mais tragicas, quandobern representadas, e Euripedes, sebern que noutros pontos nao respeite aeconomia da tragedia, revela-se-noscertamente como 0 mais tragico detodos os poetas.73. Cabe 0 segundo lugar, nao obs- 30tante alguns Ihe atribuirem 0 primeiro,a tragedia de dupla intriga, como a

    Odisseia, que oferece opostas solucoespara os bons e para os maus. Estas tra-gedias nao parecem merecer 0 pri-meiro lugar senao por astenia do publi-co, porque poet as complacentes ascompuseram ao gosto dele. Mas 0 pra-zer que resulta deste genero de compo-sicoes e muito mais proprio da come-dia, porque nela os que sao na lend ainimicissimos, como Orestes e Egisto,se tornam por tim amigos, e nenhumdeles e morto pelo outro.

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    POETIC A 455

    XIVo tragico e 0monstruoso. A catastrofe. 0 poeta e 0mito tradicional.

    1453 b 74. 0 terror e a piedade podem sur-gir por efeito do espetaculo cenico,mas tam bern podem derivar da intimaconexao dos atos, e este e 0 procedi-mento preferivel e 0 mais digno dopoeta. Porque 0 mite deve ser corn-posto de tal maneira que quem ouvir ascoisas que van acontecendo, ainda quenada veja, so pelos sucessos trema e seapiade, como experimentara quemouca con tar a historia de Edipo. Que-rer produzir estas emocoes unicamentepelo espetaculo e processo alheio aarte e que mais depende da coregia.75. Quanto aos que procuram suge-rir pelo espetaculo, nao 0 tremendo,mas 0 monstruoso, esses nada produ-zem de tragico ; porque da tragedia njioha que extrair toda a especie de praze-res, mas tao-so 0 que lhe e proprio.Ora.icomo 0 poeta deve procurar ape-nas 0 prazer inerente a piedade e aoterror, provocados pela imitacao, bernse ve que e na mesma composicao dosfatos que se ingerem tais emocoes.76. Consideremos agora quais deentre os eventos do mito parecem detremer, e quais os de se compadecer.77. Acoes deste genero devem ne-cessariamente desenrolar-se entre ami-gos, inimigos ou indiferentes. Se as coi-sas se passam entre inimigos, nao hitque compadecer-nos, nem pelas aedesnem pel as intencoes deles, a nao serpelo aspecto lutuoso dos aconteci-mentos; e assim, tambem, entre estra-nhos. Mas se as aedes catastroficassucederem entre amigos - como, porexemplo, 0 irrnao que mata ou estejaem vias de matar 0 irmao, au urn filhoo pai, ou a mae urn mho, ou urn filho a

    mae, ou quando acontecam outras coi-sas que tais - eis os casas a discutir.78. Os mitos tradicionais nao 21devem ser alterados, e fazer, por exem-plo, que Clitemnestra nao seja assassi-nada pelo mho, e Erifila por Alcmeon.Contudo 0 poeta deve achar e usarartisticamente os dados da tradicao.Vamos explicar 0 que entendemos' por"usar artisticamente",79. E possivel que uma acao seja 26praticada a modo como a poetaram osantigos, isto e, por personagens quesabem e conhecem 0 que fazem, comoa Medeia de Euripides, quando mataos proprios filhos. Mas tambem podedar-se que algum obre sem conheci-mento do que ha de malvadez nos seusatos, e so depois se revele 0 laco deparentesco, como no Edipo de Sofocles(esta acao e verdade que decorre forado drama representado, mas, porvezes, a mesmo se da na propria trage-dia, como a de Alcmeon, na homo-nima tragedia de Astidamas, e a deTelegono no Ulisses Ferido). Ha urnterceiro caso, que e de quem est apara cometer por ignorancia algo terri-vel, e depois 0 reconhece, antes de agir.E alem destas na~ ha outras situacoestragicamente possiveis. Porque age ounao age 0 ciente ou ignorante.80. Destes casos, 0 pior e 0 do sabe- 36dor que se apresta a agir e nao age; erepugnante e njio tragico, porque semcatastrofe: com efeito, raramente umapersonagem pro cede como Hernonpara com Creonte, na Antigona. Vern, 1454.em segundo lugar, 0 caso do agentesabedor. Melhor e, todavia, 0 do queage ignorando, e que, perpetrada a

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    456 AR ISTOTELESacao, vern a conhece-la; a9ao tal njiorepugna, e 0 reconhecimento sur-preende. Mas superior a todos e 0ulti-mo, por exemplo 0 que se da no Cres-fonte, quando Merope esta para mataro filho, e njio mata porque 0 reconhe-ce; e na Ijigenia, em que a irma vaimatar 0 irmao; e na Hele, onde 0 filho,quando vai entregar sua mae, entao areconhece.81. Por esta razjio, como dissemosantes, nao ha muitas familias de cuja

    hist6ria se possa tirar argumento detragedias: quando buscavam situacdestragicas, os poet as as encontraram,nao por arte, mas por fortuna, nosmitos tradicionais, nao tendo mais queacomoda-los a seus propositos; eis porque se constrangeram a recorrer a his-t6ria das famflias em que semelhantescalamidades sucederam.82. Basta 0 que dissemos, quanto it 14composicao dos atos e it qualidade dosmitos.

    xvCaracteres. Verosslmllhanca e necessidade.Deus ex mach ina.

    16 83. No respeitante a caracteres, aquatro pontos importa visar. Primeiroe mais import ante e que devem eles serbons. Ese, como dissemos, ha caraterquando as palavras e as acoes derem aconhecer alguma propensao, se esta forboa, e born 0 carater. Tal bondade epossivel em toda categoria de pessoas;com efeito, ha uma bondade de mulhere uma bondade de escravo, se bern queo [carater de mulher] seja inferior, e 0[de escravos], genericamente insignifi-cante.

    21 84. Segunda qualidade do carater ea conveniencia: ha urn carater .d e virili-dade, mas nao convern Ii mulher serviril ou terrivel.23 85. Terceira e a semelhanca, quali-dade distinta da bondade e da conve-niencia, tal como foram explicadas.26 86. E quarta e a coerencia: ainda

    que a personagem a representar naoseja coerente nas suas aedes, e necessa-rio, todavia, que [no drama] ela sejaincoerente coerentemente.87. Exemplo de maldade de caraterdesnecessaria: 0 Menelau do Orestes;de impropriedade e inconveniencia: as

    lamentacdes de Ulisses na Cila e 0 dis-curso de Melanipa; paradigma de cara-ter incoerente e a Ifigenia em Aulis,porque a Ifigenia suplicante e muitodiversa da Ifigenia que se mostra nofim.88. Tanto na representacao dos ca- -;racteres como no entrecho das aedes,importa procurar sempre a verossimi-lhanca e a necessidade; por isso, aspalavras e os atos de uma personagemde certo carater devem justificar-se porsua verossimilhanca e necessidade, talcomo nos mitos os sucessos de a9aopara a9ao.89. E pois evidente que tambem os "desenlaces devem resultar da propriaestrutura do mito, e nao do deus exmachina, como acontece na Medeia ounaquela parte da Iliada em que se trata ! "O J . ' "do regresso das naves. Ao deus exmach ina. pelo contrario, nao se deverecorrer senao em acontecimentos quese passam fora do drama, ou nos dopassado, anteriores aos que se desenro-lam em cena, ou nos que ao homem evedado conhecer, ou nos futuros, quenecessitam ser preditos ou prenun-

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    POETIC Aciados - pois que aos deuses atri-buimos nos 0 poder de tudo verem. 0irracional tambem nao deve entrar nodesenvolvimento dramatico, mas seentrar, que seja unicamente fora daacao, como no Edipo de Sofocles.90. Se a tragedia e imitacao de ho-mens melhores que nos, importa seguiro exemplo dos bons retratistas, osquais, ao reproduzir a forma peculiardos modelos, respeitando embora asemelhanca, os embelezam. Assimtambem, imitando homens violentos

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    ou fracos, ou com tais outros defeitosde carater, devem os poetas sublima-los, sem que deixem de ser 0 que sao:assim procederam Agatao e Romeropara com Aquiles, paradigma de rude-za.

    91. A tudo isto e preciso atender, e 14mais ainda as regras concernentes assensacoes que necessariamente acom-panham a poesia, pois tambem poreste lado muitos erros se cometem. Detal assunto, porem, bastante tratei nosescritos publicados.

    XVIReconhecimento: classificacao de reconhecimentos.

    92. Que seja 0 reconhecimento, dis-semo-lo antes; mas de reconheci-mentos ha varias especies.93. A primeira e de todas a menosartistica, se bern que a mais usada, porincapacidade [inventiva do poet a] , e aque se efetua por sinais. Dos sinais,uns sao congenitos, como a "lanca queem si trazem os Filhos da Terra", ouas estrelas no Tiestes de Carcino; ou-tros sao adquiridos e, ou se encontramno corpo, como as cicatrizes, ou forado corpo, como os colares ou aquelacestinha, mediante a qual se da 0reconhecimento na Tiro. Mas tambemdestes sinais menos artisticos se podefazer melhor ou pior uso; assim, Ulis-ses foi reconhecido de uma maneirapela ama, e de outra pelos porqueiros.Na verdade, sao estes sinais, usadoscomo meio de persuasao, os menosartisticos; portanto, e em geral, todosos reconhecimentos congeneres, Me-lhores sao os que resultam de umaperipecia, como 0 reconhecimento nacena do Banho.94. Em segundo lugar vern 0 reco-nhecimento urdido pelo poeta, e que,

    por isso mesmo, tambem nao e artis-tico. Exemplo: 0 modo como Orestes,na Ifigenia, se da a conhecer; poisenquanto Ifigenia e reconhecida peloenvio da carta, diz Orestes 0 que 0poeta quer que ele diga, e nao 0 que 0mito exige. Pelo que cai tal reconheci-mento no erro supramencionado, poiso mesmo aconteceria se Orestes levas-se em si qualquer sinal. E outro tantose diria da "voz da lancadeira" noTereu de Sofocles.95. A terceira especie de reconheci- 37mento efetua-se pelo despertar damemoria sob as impressoes que semanifestam a vista, como nos Ciprio-las de Dice6genes, em que a persona- 1455 agem, olhando 0 quadro, rompe empranto; ou na narrativa a Alcinoo, emque Ulisses, ouvindo 0 citarista, recor-da e chora, e assim 0reconheceram.96. A quarta especie de reconheci- 4mento pro vern de urn silogismo, comonas Coeforas, pelo seguinte raciocinio:alguem chegou, que me e semelhante,mas ninguem se me assemelha senaoOrestes, logo quem veio foi Orestes.Reconhecimento por silogismo e tam-

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    458 ARIST6TELESbern aquele inventado pelo sofistaPoliido para a Ifigenia, porque veros-simil seria Orestes discorrer que, se airma tinha sido sacrificada, tambemele 0 havia de ser. Outro exemplo e 0reconhecimento do Tideu de Teodec-tes, em que 0 pai diz: "Venho para sal-var meu filho e eu proprio devo mor-rer". Outro exemplo, ainda, 0 dasFineidas, em que, vendo elas 0 lugar,compreenderam seu destino, con-cluindo que nesse lugar morreriam,porque ali foram expostas.

    12 97. Mas tam bern ha 0 reconheci-mento combinado com urn paralo-gismo da parte dos espectadores. Porexemplo, no Ulisses, Falso Mensa-geiro: [que Ulisses seja 0 unico que

    pode tender 0 arco, e nenhum outrosenao ele, tal e a ficcao e hipotese dopoeta, ainda que] em certo momentodo drama Ulisses diga que reconheceuo arco sem 0 ter visto;ora,o supor queo reconhecimento de Ulisses se efetuedeste modo, eis 0 paralogismo.98. De todos os reconhecimentos, 16melhores sao os que derivam da pro-pria intriga, quando a surpresa result a

    de modo natural, como e 0 caso doEdtpo de Sofocles e da Ifigenia, porquee natural que ela quisesse enviar algu-rna carta. SOos reconhecimentos desta 20especie dispensam artificios, sinais ecolares. Em segundo lugar vern os quepro vern de urn silogismo.

    XVIIExortacoes ao poeta tragico. Os epis6dios na tragedia. .na epopeia,

    22 99. Deve pois 0 poeta ordenar as fa-bulas e compor as elocucoes das perso-nagens, tendo-as a vista 0mais que forpossivel, porque desta sorte, venda ascoisas claramente, como se estivessepresente aos mesmos sucessos, desco-brira 0 que convern e njio lhe escaparaqualquer eventual contradicao, Queassim deve ser, assinala-o a censuraem que incorre Carcino: Anfiarau saiado templo, mas de tal nao se apercebeuo poeta, porque nao olhava a cenacomo espectador, e 0publico protestouporque 0 ofendia a contradicao,

    27 100. Deve tambem reproduzir [porsi mesmo], tanto quanto possivel, osgestos [das personagens] . Mais persua-sivos, com efeito, sao [os poetas] que,naturalmente movidos de animo [igualao das suas personagens], vivem asmesmas paixoes; e por isso, 0 que estaviolentamente agitado excita nos ou-

    tros a mesma agitacao, e 0 irado, amesma ira. Eis por que 0 poetar e con-forme a seres bern dotados ou a tempe-ramentos exaltados, a uns porque plas-mavel e a sua natureza, a outros porvirtude do extase que os arrebata.10l.Quanto aos argumentos, queros que ja tenham sido tratados, quer osque ele proprio invente, deve 0 poeta[dispo-los assim em termos gerais] e sodepois introduzir os epis6dios e dar- , . : ; : 0 : "lhes a conveniente extensao,102. Que entendo por este "[ dispo-los] assim [em termos gerais]", YOUmostra-lo com 0 exemplo da Ifigenia.Certa donzela, no momento de sersacrificada, desaparece aos olhos dossacrificadores e, transportada a terraestranha, onde era lei que os foras-teiros fossem imolados aos deuses, aifoi investida do sacerdocio. Pelo tempeadiante, sucedeu que 0 irrnao da sacer-

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    POETICAdotisa arribou aquela terra (que aordem de vir a este lugar provenha dadivindade, com que intencao a divin-dade 0 tenha feito, e para que 'fim eletenha vindo, tudo isso cai fora doentrecho dramatico), Chegado, epreso; mas, quando ia ser sacrificado,foi reconhecido (ou it maneira de Euri-pides, ou a maneira de Poliido, dizen-do Orestes, como e plausivel que 0 dis-sesse, que nao so a irma tivera de serimolada, mas tam bern ele 0 tinha deser), e assim ficou salvo.

    12 103. Depois disso, e uma vez deno-minadas as personagens, desenvol-vem-se os epis6dios. Estes devem serconformes ao assunto, como, no casode Orestes, 0 da loucura, pe1a qual foi

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    capturado, e 0 da purificacao, pelaqual foi salvo.104. Nos dramas os epis6dios 15devem ser curtos, ao contrario da epo-peia, que, por eles, adquire maiorextensao. De fato, breve e 0 argumentoda Odisseia: urn homem vagueou mui-tos anos por terras estranhas, sempresob a vigilancia [adversa] de Poseidon,e solitario; entretanto, em casa, ospretendentes de sua mulher the conso-mem os bens e armam traicoes aofilho, mas, finalmente, regressa a pa-tria, e depois de se dar a reconhecer aalgumas pessoas, assa lta os adversa-

    rios e enfim se salva, destruindo os ini-migos. Eis 0 que e proprio do assunto;tudo 0mais sao episodios.

    XVIIINo e desenlace. Tipos de tragedia, classificacao pela relaciioentre no e desenlace. Estrutura da epopeia e da tragedia,

    24 105. Em toda tragedia ha 0 no e 0desenlace. 0 no e constituido portodos os casos que estao fora da acao emuitas vezes por alguns que estao den-tro da acao. 0 resto e 0 desenlace.Digo pois que 0 no e toda a parte datragedia desde 0 principio ate aquelelugar onde se da 0passe para a boa ourna fortuna; e 0 desenlace, a parte quevai do inicio da mudanca ate 0 fim.Assim, no Linceu de Teodectes, consti-tuem 0no todos os acontecimentos queprecedem 0 rapto da crianca, 0 mesmorapto, e ainda a captura dos progenito-res; e 0 desenlace vai da acusacao deassassinio ate 0fim.]] 106. Ha quatro tipos de tragedia,pois quatro sao tambem as suas partes,como dissemos: a tragedia complexa,que consiste toda. ela em peripecia ereconhecimento; a tragedia catastro-1456a fica, como as [do tipo] deAjax e lxion,

    a tragedia de caracteres, como as Ftio-tidas e Peleu, e, em quarto lugar, asepisodicas, como as Filhas de Forcis,Prometeu e quantas se passam noHades.107. Os poetas devem esforcar-se 0 3mais possivel por reunir todos esteselementos, ou, se nao todos, pelomenos os mais importantes e a maiorparte, dadas as critic as a que hojeestao sujeitos; porque, se os houveexcelentes em cada parte constitutivada tragedia, pretende-se que urn poetaso haja de ultrapassar todos os bonspoetas em sua peculiar excelencia, 7Ora, 0 que e justo dizer e que, pelomito, melhor que por outro elemento,se estabelece a igualdade ou a dife-renca entre as tragedias; e que saoiguais quando 0 sejam 0 no e 0 desen-lace. Porem ha muitos que bern tecema intriga e mal a desenlacam: 0 que

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    4 60 ARIST6TELESimporta e conjugar ambas as aptidoes.

    II 108. E pois necessario ter presenteo que ja por varias vezes dissemos, enjio fazer uma tragedia como se elafosse uma composicao epica (chamocomposicao epica a que con tern muitosmitos), como seria 0 caso do poet a quepretendesse introduzir numa s6 trage-dia todo 0 argumento da Iliada. Naepopeia, a extensao que e pr6pria a talgenero de poesia permite que as suaspartes assumam 0 desenvolvimentoque lhes convem, enquanto nos dramaso resultado do desenvolvimento seriacontrario a expectativa. Que bern 0mostraram todos os poet as que quise-ram incluir em uma tragedia todo 0argumento da Ruina de Troia, em vezde uma s6 parte, como 0 fez Euripides[na Hecuba], ou toda a hist6ria deNiobe, contrariamente ao que fez Es-quilo. Todos esses poetas falharam ouforam mal sucedidos nos concursos, eo pr6prio Agatao falhou pelo mesmodefeito.

    20 109. Quer nas tragedias com peri-

    pecia, quer nas epis6dicas, podem ospoetas obter 0desejado efeito medianteo maravilhoso, como no caso de urnhomem astuto, porern mau, que e enga-nado, como Sisifo, ou quando corajo-so, mas injusto, e vencido - situacdesestas tanto mais tragicas e mais con-formes ao sentido humano. Todas saoverossimeis ao modo como 0 entendeAgatao, quando diz: verossimilmentemuitos casos se dao e ainda quecontraries a verossimilhanca.110. 0 coro tambern deve ser consi- 25derado como urn dos atores; deve fazer

    parte do todo, e da acao, a maneira deS6focles, e nao a de Euripides. N amaioria dos poetas, contudo, os coraistao pouco pertencem a tragedia em quese encontram como a qualquer outra, epor isso, desde 0 exemplo de Agatao, ecostume cantar interhidios nas trage-dias. Mas que diferenca havera entrecantar interhidios e transpor de umapara outra tragedia recitativos ou epi-s6dios inteiros?

    XIXo pensamento. Modos da elocucao.

    JJ Ill. Resta tratar da elocucao e dopensamento, pois das outras partes datragedia ja falamos.34 112. 0 que respeita ao pensa-mente tern seu lugar na ret6rica, por-que 0 assunto mais pertence ao campodesta disciplina. 0 pensamento incluitodos os efeitos produzidos mediante apalavra; dele fazem parte 0demonstrare 0 refutar, suscitar ernocoes (como apiedade, 0 terror, a ira e outras que

    .456b tais) e ainda 0 majorar e 0 minorar 0valor das coisas.2 113. Evidentemente, quando sejamister despertar as emocoes de pieda-de e de terror, ou 0 acrescimento de

    certas impressoes, a aceitacao de algocomo verossimil, ha que tratar os fatossegundo os mesmos principios. Apenascom uma diferenca: rna poesia]. ossobreditos efeitos devem resultar 50-mente da a~ao e sem interpretacaoexplicita, enquanto [na ret6rica] resul-tam da palavra de quem fala. Po is deque serviria a obra do orador, se 0pen-samento dele se revelasse de per si. enao pelo discurso?n 4 . Quanto a elocucao, ha uma -parte dela, constituida pelos respec-tivos modos, cujo conhecimento e pro-prio do ator e de quem faca profissaodessa arte, que consiste em saber 0 que

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    POETIC Ae uma ordem ou uma suplica, umaexplicacao, uma ameaca, uma pergun-ta, uma resposta, e outras que tais.

    13 115. Assim, pelo conhecimento oudesconhecimento destas coisas, nenhu-rna censura digna de consideracao sepodera enunciar contra 0 poeta comotal. Pois quem poderia crer que Home-ro haja incorrido na falta que the atri-

    461

    bui Protagoras, como se, dizendo"canta, 6 deusa, a ira ... ': houvessepronunciado uma ordem, querendo eleexprimir uma suplica? Com efeito,segundo Protagoras, 0 dizer que sefaca ou se nao faca uma coisa e uma 18ordem. Mas deixemos esta parte daquestao, porque e alheia it poetica.

    A elocucao, Partes da elocucao.xx

    20 116. Quanto a elocucao, as seguin-tes sao as suas partes: letra, silaba,conjuncao, nome, verbo, [artigo], fle-xao e proposicao,

    22 117. A letra e urn som indivisivel,nao porem qualquer som, mas apenasqual possa gerar urn som composto;porque tambern os animais emitemsons indivisiveis e, contudo, a essesnao os denomino letras.25 118. As letras dividem-se em vo-gais, semivogais e mud as. Vogal e aletra de som audivel sem encontro [dos.labios ou da lingua] ; semivogal, a quetern urn som produzido por esse encon-tro, como 0 ~ e 0 P ; a muda, comoo r ou 0~, e a letra que necessita dalingua ou dos Iabios, mas que so vern aser audive l quando unida a uma vogalou a uma semivogal. Depois, diferemas letras de cada urn destes grupos pelaconformacao da boca na promincia,pelo lugarda boca em que se produz 0som, e ainda conforme sao asperas oubrandas, long as ou breves, agudas,graves ou intermediarias; mas estasparticularidades sao da competenciada metrica,

    35 119. Silaba e urn som desprovido designificado proprio, constituido pormuda e soante; efetivamente, as duasletras rjPproduzem uma silaba, sejasem A , seja com A , como.na. silaba

    rPA. Mas tambem estas distincoespertencem it rnetrica.120. Conjuncao e palavra desti-tuida de significado proprio, mas quenao obsta nem contribui para que va-rios sons significativos componhamuma (mica expressao significativa, e 1457 aque se destin a, por natureza, a estarnos extremos ou no meio, nunca,porem, no principio de uma proposi-yao, por exemplo: J . 1 . E V , T i T O ! , O 'ou e urn som desprovido de signifi-cado, cuja funcao e a de reproduzirurn unico sam significative, como( x p . ' . { J , neol e semelhantes; ou e urnsorn nao significativo que indica 0 ini-cio, 0 terrnino ou a divisao no interiorde uma proposicao.121. Nome e urn som significativo, 10composto, sem determinacao detempo, que nao tern nenhuma parteque, como parte do todo, seja significa-tiva de per si; com efeito, nos nomesduplos, njio nos servimos de suas par-tes como se elas tivessem separada-mente urn significado; assim, no nome8oowpw, a parte owpov nao ternsignificado.122. Verbo e som composto, signifi- 14cativo, que exprime 0 tempo, e cujaspartes, como as do nome, fora do con-junto nao tern significado nenhum.Efetivamente, os nomes "homem",

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    462 ARIST6TELES"branco" nao exprimem 0 tempo, masos verbos "anda", "andou" exprimem-no, 0 primeiro, 0 tempo presente, 0segundo, 0 passado.

    /9 123. A flexao tanto pertence aonome como ao verbo, e indica as reia-~es de casos, como "deste", "a este",ou outras relacdes que tais; ou 0 singu-lar e 0 plural, como "homens" e"homem"; ou os modos de expressaode quem fala, como a interrogacao, 0comando; efetivamente, "foi?", "vai!"sao flexoes do verbo segundo estas iil-timas especies,24 124. A proposicao e som compostoe significativo, do qual algumas partes

    sao de per si significantes (porque nemtodas as proposieoes se compdem denomes e de verbos, mas pode havertarnbem uma proposicao sem verbo,como, por exemplo, a definicao dehomem; no entanto, deve conter sern-pre uma parte significativa). Exemplode parte significante e 0nome "Clean"na proposicao "Cleon anda". Umaproposicao pode ser una de duasmaneiras; ou porque indica uma s Ocoisa, ou pelo liame que reune muitascoisas, adunando-as. E assim, a Iliadae una pelo nexo que reune as diversaspartes; e a definicao de homem, porquese refere a urn s O objeto,

    A elocueao poetics.XXI

    32 125. Ha duas especies de nomes:simples e duplos. "Simples", denominoos que nao sao constituidos de partessignificativas, como a palavra 117(terra); todos os outros sao duplos.Estes, depois, ou sao compostos deuma parte nao significativa e de umaparte significativa; ou de partes ambassignificativas (note-se, porem, que 0ser ou nao ser significativo njio per-tence as partes, consideradas dentro donome). E tambem ha nomes triplos,quadruples, multiples, como algunsusados entre os massaliotas: 'EplloKu'iKO~UIi~O~.

    1457 b 126. Cada nome, depois, ou e cor-rente, ou estrangeiro, ou metafora, ouornato, ou inventado, ou alongado,abreviado ou alterado.3 127. Nome "corrente", chamaaquele de que ordinariamente se servecada urn de n6s; "estrangeiro", aquelede que se servem os outros, e por isso eclaro que 0 mesmo nome pode ser aomesmo tempo estrangeiro e corrente,mas, como e natural, nao para as mes-

    mas pessoas; assim a t - y t J l i o l i para oscipriotas e de uso corrente, e paranos, estrangeiro.128. A metafora consiste no trans- 6portar para uma coisa 0 nome deoutra, ou do genero para a especie, ouda especie para 0 genero, ou da especiede uma para a especie de outra, ou poranalogia.129. Transporte do genero para a 9especie e 0 que se da, por exemplo, naproposicao "Aqui minha nave se dete-ve", pois 0 "estar ancorado" e umaespecie do genero "deter-se". Trans-porte da especie para 0 genero, naproposicao "Na verdade, milhares emilhares de gloriosos feitos Ulisseslevou a cabo", porque "milhares emilhares" esta por "muitos", e 0 poetase serve destes termos especificos, emlugar do generico "muitos". "Tendo-lhe esgotado a vida com seu bronze" e"cortando com 0 duro bronze" saoexemplos de transporte de especie paraespecie, No primeiro, 0 poeta usou, emlugar de "cortar", "esgotar", e no

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    POETIC Asegundo, em .lugar de "esgotar", "cor-tar"; mas ambas as palavras especi-ficam 0"tirar a vida".

    16 130. Digo que ha analogia quandoo segundo termo esta para 0 primeirona igual relacao em que esta 0 quartopara 0 terceiro, porque, neste caso, 0quarto termo podera substituir 0 se-gundo, e 0 segundo, 0 quarto. E algu-mas vezes os poetas ajuntam .0 termoao qual se ref ere a palavra substituidapela metafora, Por exemplo, a "urna"esta para "Dioniso", como 0 "escudo"para "Ares" ,e assim se dira a urna"escudo de Dioniso", e 0 escudo,"urna de Ares". Tambem se da amesma relacao, por urn lado, entre avelhice e a vida e, por outro lado, entrea tarde e 0 dia; por isso a tarde seradenominada "velhice do dia", ou,como Empedocles, dir-se-a a velhice"tarde da vida" ou "ocaso da vida".Por vezes falta algum dos quatronomes na relacao analogica, mas aindaassim se fara a metafora. Por exemplo,"lancar a semente" diz-se "semear";mas nao ha palavra que designe "lan-car a luz do sol", todavia esta aciiotern a mesma relacao com 0 sol que 0semear com a semente; por isso se dira"semeando uma chama criada pelodeus". Hit outro modo de usar est aespecie de metafora, 0 qual consiste emempregar 0 nome metaforico.negando,porem, alguma das suas qualidadesproprias, como acontece se alguemchamar ao escudo, nao a "urna deAres", mas a "urna sem vinho",131. [0 ornato J

    463132. "Inventado" e 0 nome que 33ninguem usa, mas que 0 proprio poetaforjou; ao que parece, ha algumaspalavras deste genero, como e p l l t Y y c x r ;em vez de cornos, e Q P T / T i i p c x , por"sacerdote" .133. Ha, depois, os nomes along a-dos ou abreviados. No primeiro caso,o nome tern uma vogal mais long a doque a propria, ou uma silaba a mais; 1458 ano segundo, e omitida uma parte dapalavra. Alongada, por exemplo, e

    T I oA T / O r ; , em vez de T Io A E '~ r; , eI lT / A T / tO : o E ' W , em vez de T I T / A E ' i o o v ,nome abreviado e, por exemplo K p i ,o w , ' 0 1 / 1 em uia r W E 'T C X L ~ 'P O T P W I l iN .134. Alterado e 0 vocabulo do qual 6uma parte e mantida e outra transfor-mada, como O E ' ~ L T E ' p 6 1 l por OE ' ~ i o l l ,na frase: O E '~ tT E 'P O Il K c x T a 1 lE 'L ~ 6 1 l .135. Considerados em si mesmos, 8os nomes ou sao masculinos, ou femi-ninos, ou de genero intermedio. Mas-culinos sao os que terminam em N ou P(ou ~ ), ou em letra composta de ~(duas sao as letras deste tipo: 'It e E);femininos, os que terminam em vogalsempre long a, com Hen ou em vogalalongada A ; e assim, a soma dasterminacoes masculinas e femininasvem a ser igual, porque as terminacoesem E e'ltreduzem-se a uma so (com ~ ).Nenhum nome termina em muda ouvogal breve. Tres sao os nomes termi-nados em I: j . . ( A L , K O I l I l L , 1 T rT E 'P L .Cinco term inam em '/: T O 1 T W V , T O1 Ta I lV , T O rOllO, T O o o p v . Os nomes degenero interrnedio terminam do mes-mo modo, e em N [e P J e ~.

    A elocucao poetica: criticas a elocueao nos poemas homericos.XXII

    18 136. Qualidade essencial da elocu-9ao e a clareza sem baixeza. Clans- sima, mas baixa, e a linguagem consti-tuida por vocabulos correntes, como as

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    4 6 4 ARIST6TELEScornposicoes de Cleofonte e Estenelo.Pelo contrario, e elevada a poesia queusa de vocabulos peregrinos e se afastada linguagem vulgar. Por vocabulos"peregrinos" entendo as palavras es-trangeiras, metaforicas, alongadas e,em geral, todas as que nao sejam deuso corrente.

    23 137. Mas a linguagem compostaapenas de palavras deste genero seraenigma ou barbarismo; enigrnatico seo for s6 de metaforas, barbara, seexc1usivamente de vocabulos estran-geiros. Porque tal e a caracteristica doenigma: coligindo absurdos, dizer coi-sas acertadas, 0 que se obtem, njioquando se juntam nomes com 0 signifi-cado corrente, mas, sim, mediante asmetaforas, como no versovi um homem eolando eom fogobronze noutro homem,e em outros semelhantes. E "barbara"e a linguagem composta de nomesestrangeiros.

    31 138. Necessaria sera, portanto,como que a mistura de toda especie devocabulos. Palavras estrangeiras, me-taforas, ornatos e todos os outrosnomes de que falamos elevam a lingua-gem acima do vulgar e do uso comum,enquanto os termos correntes the con-ferem a c1areza.139. Alongamentos e abrevia-mentos, alteracoes dos nomes. contri-1458 b buem em grande parte para a c1areza toelevacao do discurso; afastados daforma corrente e do uso vulgar, fazemesses nomes que a linguagem nao sejabanal, enquanto, pela parte que man-tern do uso vulgar, subsistira a clareza.

    5 140. Por conseguinte njio tern razaoos que representam semelhante manei-ra de falar e ridicularizam 0 poeta,como fez Euclides, 0 Anciao, que dizser facil0versificar desde que se con-ceda a liberdade de alongar arbitraria-mente as palavras; 0 mesmo Euc1ides

    parodiou tais versos, em linguagemvulgar:' E 7 T L X Q p l 1 v E U 50 v M a p Q ~ w va 6 E { h 6 [~ O IIT QO O K W 'Y' e p c lJ J E V O C ; T O v E K E i. vO V E A A ( j o p O V .141. E certo que, pelo dernasiado fIevidente destes modos, se incorre noridiculo, e, por outro lado, a modera-

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    POETIC Ada substituicao resultariab t;.p pov M OX -& r/pO V K ara1?k M LKPW T

    Tpa r r ~av ,Eem vez de~ i o v < ; / 3 0 0 w a w ~W V < ; "pci~ovaw.

    31 143, Arifrades, por seu turno, paro-diava os tragicos por usarem elesexpressoes de que ninguem se serve nalinguagem corrente, escrevendo porexemplo, bWJ . ,Lc lTWV arro, e nao &rro bWMcX -TWV , e ae1?v , e h~ DEVW , e 'AXLAAW

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    466 ARIST6TELESdos acontecimentos). Eis por que des-ses acontecimentos apenas tomou umaparte, e de muitos outros se serviucomo episodios; assim, com 0 "Cata-logo das Naves" e tantos outres quedistribuiu pelo poema.

    1459b 150. Os outros poetas, todavia,compuseram seus poem as ou acerca deuma pessoa, .ou de uma epoca, ou deuma ayao com muitas partes, como,por exemplo, 0 autor dos Cantos Ci-

    prios e da Pequena Ilfada. Por isso,enquanto da Iliada e da Odisseia nao epossivel extrair, de cada uma delas,senao uma tragedia, ou duas, quandomuito, dos Cantos Ciprios, ao inves,muitas se podem tirar, e da PequenaIliada, mais de oito: Juizo das Armas,Filoctetes, Neoptolemo, Euripilo, Ulis-ses Mendigo, Lacedemdnias, Ruina deTroia, Partida das Naves, Simon eTroianas.XXLV

    Diferenca entre a epopeia e a tragedia quanto aepisodios e extensao,8 151. As mesmas especies que a tra-gedia deve apresentar a epopeia, aqual, portanto, sera simples ou com-plexa, ou de caracteres, ou catastro-fica; e as mesmas devem ser as suaspartes, exceto melopeia e espetaculocenico, Efetivamente, na poesia epicatambem sao necessaries os reconheci-mentos, as peripecias e as catastrofes,assim como a beleza de pensamento ede elocucao, coisas estas de que Home-ro se serviu de modo conveniente. Detal maneira sao constituidos os seuspoemas, que a Iliada e simples (episo-dica) e catastrofica, e a Odisseia, com-plexa (toda ela e reconhecimentos) e decaracteres; alem de que, em pensa-mento e elocucao, super am todos osdemais poemas.

    17 152. Mas diferem a epopeia e a tra-gedia pela extensao e pela metrica,18 153. Quanto a extensao.justo limitee 0 que indicamos: a apreensibilidadedo conjunto, de principio a fim dacornposicao. Mas, para nao exceder tallimite, deveria a estrutura dos poem asser menos vasta do que a das antigasepopeias, e assumir a extensao quetodas juntas tern as tragedias represen-tadas num s O espetaculo. Para aumen-

    t81 a extensao, possui a epopeia umaimportante particularidade. Na trage-dia nao e possivel representar muitaspartes da acao, que se desenvolvem nomesmo tempo, mas tao-somente aquelaque na cena se desenrola entre os ato-res; mas na epopeia, porque narrativa,muitas aedes contemporaneas podemser apresentadas, ayaes que, sendoconexas com a principal, virao acres-cer a majestade da poesia. Tal e a van-tagem do poema epico, que 0 engran-dece e permite variar 0 interesse doouvinte, enriquecendo a materia comepisodios diversos; porque, do seme-lhante, que depressa sacia, vern 0 fra-casso de tantas tragedias.154. Quanto a metric a, prova a 32experiencia que e 0 verso heroico 0unico adequado a epopeia; efetiva-mente, se alguem pretendesse comporuma imitacao narrativa, quer em metrodiferente do heroico, quer servindo-sede metros varies, logo se aperceberiada inconveniencia da empresa. Na ver-dade, 0 verso heroico e 0mais grave eo mais amplo, e, portanto, melhor quequalquer outro se presta a acolhervocabulos raros e metaforicos (tam-bern por este aspecto a imitacao narra-

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    POETIC A1460 a tiva supera as outras). Pelo contrario,sao 0 trimetro jambico e 0 tetrametro

    trocaico mais movimentados: este con-vern a danca, e aquele a ayao. Em-preendendo, pois, misturar versos detoda casta, como 0 fez Querernon,extravagante seria 0 resultado; eis porque ninguem se serviu nunca de versoque nao fosse 0 heroico para comporurn poema extenso. Como dissemos, apropria natureza nos ensinou a esco-lher 0metro adequado.155. Homero, que por muitos ou-tros motivos e digno de louvor, tam-bern 0 e porque, entre os demais, so elenao ignora qual seja propriamente 0mister do poeta. Porque 0 poeta deve-ria falar 0 menos possivel por contapropria, pois, assim procedendo, nao eimitador. Os outros poetas, pelo con-trario, intervem em pessoa na dec1ama-yaO , e pouco e poucas vezes imitam, aopasse que Homero, apos breve introi-to, subitamente apresenta varao oumulher, ou outra personagem caracte-rizada - nenhuma sem carater, todasas que 0 tern.12 156. 0 maravilhoso tern lugar pri-macial na tragedia; mas na epopeia,porque ante nossos olhos nao agematores, chega a ser admissivel 0 irra-cion al, de que muito especialmente de-riva 0 maravilhoso. Em cena, ridicularesult aria a perseguicao de Heitor: osguerreiros que se detem e 0 nao perse-guem, e [Aquiles] que lhes faz sinalpara que assim se quedem. Mas, naepopeia, tudo passa despercebido.Grato, porem, e 0 maravilhoso; provae que todos, quando narram algumacoisa, amplificam a narrativa para quemais interesse.

    19 157. Aos outros poetas tambemHomero ensinou 0 modo de dizer 0que e falso - refiro-me ao paralo-gismo. -Porque os homens creem que,Quando do existir ou produzir-se algu-

    4 67

    rna coisa resulta 0 produzir-se outra,tambem da existencia da ultima se hade seguir a existencia ou producao daprimeira. Isto, po rem, e falso. Noentanto, se h a urn antecedente falso eurn conseqiiente que existe ou se pro-duz sempre que 0 antecedente sejaverdadeiro, nos reunimo-los; porque 0saber que 0 segundo e verdadeiro levaa nossa mente a arbitraria conclusaode que verdadeiro seja tambem 0 pri-meiro. Exemplo de paralogismo tal e acena do Banho.158. De preferir as coisas possiveis ,26mas incriveis sao as impossiveis mas

    criveis; contudo, nao deveriam osargumentos poeticos ser constituidosde partes irracionais; preferivel seriaque nada houvesse de irracional, ou,pelo menos, que 0 irracional apenastivesse lugar fora da representacao,como, por exemplo, a ignorancia deEdipo quanto a morte de Laio; e naodentro do proprio drama, como a des-cr icao dos Jogos Piticos, na Electra,ou a personagem que, nos Misios,vinda de Tegeia para a Misia, nao dizpalavra. Ridiculo e pois declarar quesem irracional nao subsistiria 0 mito;em primeiro lugar, nem tais mitos sedeveriam compor; mas, se urn poeta osfizer de modo que parecam razoaveis,esses ainda serao admissiveis, aindaque absurdos. Na verdade, tudo quan- 1460bto de irracional acontece no desem-barque de Ulisses inaceitavel seria, emobra de mau poeta; os absurdos,porem, Homero os ocultou sob primo-res de beleza.159. Importa, por conseguinte, apli-car os maiores esforcos no embeleza-

    mento da linguagem, mas so nas partesdesprovidas de acao, de caracteres e depensamento: uma elocucao deslum-brante ofuscaria caracteres e pensa-mento.

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    4 6 8 ARISTOTELES

    Problemas criticos.xxv

    6 160. Assunto esclarecido sera 0 dosproblemas e solucoes, de quantas equais as suas formas, se 0 encararmosdo modo seguinte.161. 0 poet a e imitador, como 0pintor ou qualquer outro imaginario;por isso, sua imitacao incidira numdestes tres objetos: coisas quais eramou quais sao, quais os outros dizemque sao ou quais parecem, ou quaisdeveriam ser. T ais coisas, porem, eleas representa mediante uma elocucaoque compreende palavras estrangeirase metaforas, e que, alem disso, com-porta rmiltiplas alteracoes, que efetiva-mente consentimos ao poeta.162. Acresce ainda que njio e igualo criterio de correcao na poetic a e napolitic a, e, semelhantemente, 0de qual-quer outra arte, em confronto com apoesia. Na arte poetic a, erros de duasespecies se podem dar: essenciais ouacidentais. Portanto, se propostos taisobjetos, a imitacao resulta deficientepor incapacidade do poeta, 0 erro eintrinseco it propria poesia; se, pelocontrario, 0 defeito consiste apenas emnao haver concebido corretamente 0objeto da imitacao - como querendoimitar urn cavalo que movesse a urntempo as duas patas do lado direito -o erro nao e intrinseco it poesia, comoo nao e qualquer que se cometa relati-vamente a uma arte particular (medi-cina ou outra), ou quando se repre-sentam coisas impossiveis.163. Importa, por conseguinte, re-solver as critic as que os problemascontem, considerando-as dos pontos devista precedentes.164. Primeiro, vejamos as criticasrespeitantes it propria arte. 0 poet arepresentou impossiveis, E urn erro -

    8

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    20

    23

    desculpavel, contudo, se atingiu a fina-lidade propria da poesia (da fmalidadeja falamos), ese, de tal maneira, resul-tou mais impressionante essa parte dopoema, ou outra qualquer. Exemplo: aperseguicao de Heitor. Mas, casopossa atingir mais ou menos a mesmafmalidade, respeitando as regras daarte, 0 erro e injustificavel, porque,sendo possivel, njio deveria haver erronenhum.165. Mas entao vejamos: sera 0 28erro cometido daqueles que ofend em aessencia da arte, ou nao sera antes urnerro acid ental it poesia? Pois faltamenor comete 0poeta que ignore que acorea nao tern comos, que 0poeta quea represente de modo nao artistico.166. Alem disso, quando no poeta 31se repreende uma falta contra a verda-de, hit talvez que responder como S6fo-cles: que representava ele os homenstais como devem ser, e Euripides, taiscomo sao. E depois caberia ainda res-ponder: os poetas representam a opi-niao com urn, como nas historias quecontam acerca dos deuses: essas histo-rias talvez niio sejam verdadeiras, nemmelhores; talvez as coisas sejam comopareciam a Xen6fanes; no entanto ,assim as contam os homens.167. Outros casos ha que os poetas 1-'

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    ou falou, e a quem, quando, como epara que, se para obter maior bern oupara evitar mal maior.169. Outras dificuldades se resol-vern, bern consider ada a elocucao.Assim, a daquela passagem: "os ma-chos (ovpr,cx,) primeiro ... ", porquenao queria 0 poeta falar de "machos"mas de "sentinel as "; e assim, deDolen, dizendo 0 poeta: "mau ele erade aspecto ': nao entende, par isso, quedisforme era a corpo dele, mas apenas"feio de rosto"; efetivamente, dizem osde Creta "belo de aspecto" por "rostobela". E, "mistura mais forte", deve serentendido nao como "servir maispuro", como se, de beberroes se tratas-se, mas de "servir mais depressa",

    15 170. Outras palavras se dizem me-taforicamente. Por exemplo: "Todos,deuses e homens, dormiam ainda, pelanoite alta ': diz 0 poeta, e logo a seguir:"quando lancava os olhos sobre a pla-nicie de Troia [admirava] 0 tumul-tuoso som das flautas e das. siringes".1 3 , que "todos" est a por "muitos"metaforicamente, porque "todos" euma especie de "muitos", Tambem "soela [esta] excluida [de banhar-se noOceano] " ha de entender-se comometafora: "so" esta por "0 maisconhecido".

    21 171. Cam a prosodia resolvem-seoutras dificuldades; assim explicavaHipias de Taso aquele "gloria nos lhedaremos" e "parte do qual apodrececom a chuva ".172. Outras por dierese, como osversos de Empedocles:"Mas depressa se tornaram mortais[as coisas antes imortais,e misturadas, as que antes eram[simples ... "

    25 173. E outras por anfibolia: "amaior parte da noite passou ", em que"maior parte" tern duplo sentido.174. Enfim, outras se explicam por

    POETIeA 4 69usos da linguagem, A mistura de aguae vinho chamam "vinho", e assim,disse Romero: "enemide de recem-ela-borado estanho "; e porque se da 0nome de "elaboradores de estanho"aos que trabalham 0 ferro, assim eledisse tambem de Ganimedes: "que aZeus servia vinho ... ", se bern que osdeuses nao bebam vinho. Mas istotambem se poderia expliear por usametaforico.175. Se 0 (nome) contem umasigni- 31

    ficacjio contraditoria, e mister procu-rar quantos significados ele po de assu-mir na frase em questiio. Por exemplo,em "aqui se deteve a bronzea lanca",importa verificar de quantas maneiraspode ser entendido 0 "ali haver para-do". A consideracao das varias possi-bilidades [significativas] e pro cedi-mento oposto aquele de que falaGlauco. Alguns criticos partem de pre-venida e absurda opiniao, depois racio- 1461 beinam concluindo pel a censura, comose 0 poeta tivesse pensado algo decontradit6rio ao pressuposto deles. 1 3 , 0que se verifica a prop6sito de Icario:supondo-se que ele fosse lacedemonio,logo se concluiu que era absurdo Tele-maca njio 0 haver encontrado quandochegou a Esparta. Talvez, porem, 0caso se passasse como referem os cefa-lenios: que, tendo Ulisses contr aidonupcias na terra deles, 0 nome do heroiseja Icadio, e nao Icario. 1 3 , pois veros-simil que 0 problema nasca de urnerro.176. Em sum a, 0 absutdo deve ser

    considerado, ou em relacao a poesia,ou ao melhor, ou a opiniao comum.177. Com efeito, na poesia e de pre-

    ferir 0 impossivel que persuade ao pas-sivel que niio persuade. Talvez sejaimpossivel existirem homens quaisZeuxis ospintou; esses porem corres-pondem ao melhor, e 0 paradigmadeve ser super ado. E depois, a opiniao

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    470 ARIST6TELEScomum tam bern justifica 0 irracional,alern de que as vezes irracional pareceo que 0 nao e, pois verossimilmenteacontecem coisas que inverossimeisparecem. Expressoes aparentementecontraditorias, importa examina-lascomo nas refutacoes dialeticas; verifi-car se do mesmo se trata, na mesmarelacao e no mesmo sentido; e analo-gamente, se 0 poet a cai em contradicaocom 0 que ele proprio diz, ou com 0que, sobre 0 que ele diz, pensa umamente sa.

    178. Censuras por absurdo ou mal- 18vadez so sao justas quando 0 poet a,sem necessidade, usa do irracional,como Euripides na intervencao deEgeu, ou de maldade, como Menelau,no Orestes.179. As critic as resumem-se,pois, a 21cinco especies: ou porque [as repre-sentacoes] sao impossiveis, ou irracio-nais, ou imorais, ou contraditorias, oucontrarias as regras da arte. As solu-~es devem reduzir-se aos argumentosindicados, e sao doze.

    XXVIA epopeia e a tragedia, A tragedia supera a epopeia,26 180. E agora poder-se-ia perguntarqual seja superior, se a imitacao epicaou a imitacao tragica,27 181. Se e melhor a menos vulgar, etal e a arte que a melhores especta-dores se dirige, decerto que vulgar e 'aquela que tudo imita. Efetivamente,pela rudeza de urn publico que, semmais, nao entenderia a representacao,entregam-se os atores a toda casta demovimentos, como 0 fazem os mausflautistas, que rodopiam, querendoimitar 0 lancamento do disco, ouarrastam 0 corifeu, quando repre-sentam a Cila. A tragedia teria pois 0defeito que os antigos atores atribuemaos da sucessiva geracao - defeitopelo qual Minisco apelidava Calipidesde "macaco", devido a sua exageradagesticulacao; e 0 mesmo se dizia de

    1-162 a Pindaro. Como estes atores vulgaresestao para os primeiros, assim toda aarte dramatica [estaria] para a epo-peia. Dizem que a epopeia se dirige aurn publico elevado, porque nao exigea exterioridade dos gestos, e a tragedia,aos rudes, e que, sendo vulgar, decertoque e inferior.

    182. Em primeiro lugar, digamosque tal censura nao atinge a arte dopoeta, mas sim a do ator, visto quetam bern e possivel exagerar a gesticu-lacao recitando rapsodias, como Sosis-trato, ou cantando [poemas liricosl ,como Mnasiteo de Oponte. E depois,que nem toda especie de gesticulacao ede reprovar, se nao reprovamos adanca, mas tiio-somente ados mausatores - que tal se repreendia emCalipides, e agora nos que parecemimitar os meneios de mulheres ordina-rias. Acresce ainda que a tragedia podeatingir a sua finalidade, como a epo-peia, sem recorrer a movimentos, poisuma tragedia, so pela leitura, poderevelar todas as suas qualidades. Porconseguinte, se noutros aspectos a tra-gedia supera a epopeia, nao e neces-sario que este defeito the pertencaessencialmen teo183. Mas a tragedia e superior por-que con tern todos os elementos da epo-peia (chega ate a servir-se do metroepico), e demais, 0 que nao e pouco, amelopeia e 0 espetaculo cenico, queacrescem a intensidade dos prazeres

  • 5/17/2018 Poetica - Aristteles(Trad. Eudoro Souza)

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    POETICAque the sao pr6prios. Possui, ainda,grande evidencia representativa, querna leitura, quer na cena; e tam bern avantagem que resulta de, adentro demais breves limites, perfeitamente rea-

    ~~: b lizar a imitacao (result a mais grato 0condensado que 0 difuso por largotempo; imagine-se, por exemplo, 0efei-to que produziria 0Edipo de S6foc1esem igual mimero de versos que a Ilia-da). Alem disso, a imitacao dos epicose menos unitaria (demonstra-o a possi-bilidade de extrair tragedias de qual-quer epopeia), e, portanto, se preten-dessem eles compor uma epopeia [comargumento em] urn unico mito tragico,se quisessem ser concisos, mesquinhoresultaria 0 poema, se quisessem con-formar-se as dimensoes epicas, resulta-ria prolixo. Quando falo de poesiaepica como constituida de rmiltiplas

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    aedes, refiro-me a poemas quais a Ilia-da e a Odisseia, com varias partes,extensas todas elas (se bern que estesdois poem as sejam de composicaoquase perfeita e, tanto quanto possivel,imitacoes de uma acao unica),184. Por conseqiiencia, se a trage- 12dia e superior por todas estas vanta-gens e porque melhor con segue 0efeitoespecifico da arte (posto que 0 poetanenhum deve tirar da sua arte que naoseja 0 indicado), e claro que supera aepopeia e, melhor que esta, atinge asua fmalidade.185. Falamos pois da tragedia e da 16epopeia, delas mesmas e das suas espe-cies e partes, numero e diferencas des-sas partes, das causas pel as quaisresulta boa ou rna a poesia, das critic ase respectivas solucoes. Dos jambos eda comedia ...