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Poesia de satisfatória mim mesmo

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Nada do que social e humano mais real que as utopias. Na sua vertente eutpica, as utopias constituram sempre o fundamento simblico e mtico sem o qual nenhuma forma de organizao social se sustenta, justifica ou sobrevive. E criam, tanto na vertente eutpica como na distpica, o vocabulrio da revoluo e da mudana: sem os amanhs que cantam (ou choram) teramos, em vez de Histria, um presente intemporal e eterno - como o dos faras ou o de Francis Fukuyama.Aldous Huxley publicou o seu Brave New World em 1932. George Orwell, que no tinha em grande conta este livro ou o seu autor, publicou 17 anos depois a sua prpria distopia, Nineteen Eighty-Four. Entre estas duas datas interps-se a Segunda Grande Guerra: no admira que na primeira a tcnica bsica da opresso do Estado fosse a manipulao gentica e que na segunda, depois do descrdito em que o regime nazi lanou o eugenismo, as tcnicas principais da opresso sejam a lavagem ao crebro, a crueldade gratuita e a manipulao da linguagem.Apesar desta e de outras diferenas, os dois textos foram muitas vezes lidos, nas dcadas seguintes, como os dois plos - um hedonista, outro o oposto disto - duma mesma distopia, a que os sinais dos tempos davam e do plausibilidade. Esta distopia bipolar identificvel em grande parte com a ideia de modernidade; e hoje a invocao da modernidade, sempre na boca dos polticos e dos capites da indstria, soa aos nossos ouvidos tanto a ameaa como a promessa.Do texto de Aldous Huxley, o que entrou na linguagem corrente, traduzido para todas as lnguas, foi o sobretudo o ttulo: "admirvel mundo novo". A expresso utilizada em toda a parte mesmo por quem nunca leu a obra: das mesas dos cafs aos blogues, das crnicas dos jornais aos debates nos media. Do texto de Orwell, toda a gente utiliza, prpria ou impropriamente, expresses como Big Brother, newspeak (que at teve, em portugus, honras de traduo: "novilngua"), ou ainda doublethink. Uma coisa certa: nenhuma destas expresses se teria conservado at hoje no uso corrente se no tivesse referentes no real quotidiano.A mesma sorte no teve 1985, de Anthony Burgess, publicado em 1978. Um texto anterior de Burgess, tambm ele distpico, de longe mais conhecido, talvez pela verso filmada que dele fez Stanley Kubrik: A Clockwork Orange. 1985 recupera alguns temas e tropos deste texto e apresenta-se como um balano crtico de Nineteen Eighty-Four. Divide-se em duas partes: um ensaio sobre o texto de Orwell e a construo duma distopia alternativa, imaginada por Burgess 29 anos mais tarde. A frase final da primeira parte do livro : 1984 is not going to be like that at all. Frase corajosa, vinda dum escritor que admirava e respeitava o objecto da sua crtica. E com ela que Burgess nos autoriza a fazermos ns tambm o balano crtico da sua alternativa, decorridos mais que outros tantos anos desde a sua publicao.Vejamos ento o que sobreviveu melhor ao curso da histria: se Nineteen Eighty-Four aos ltimos 60 anos, se 1985 aos ltimos trinta e um.As diferenas entre as duas distopias no surpreendem, sabendo que uma foi escrita por um socialista libertrio, pouco vontade no seu estatuto social de nascena que o colocava nas franjas do poder, e a outra escrita por um conservador a quem o facto de pertencer a uma elite social e intelectual no incomoda minimamente. Na primeira, o opressor um Estado por assim dizer anti-utilitarista, ou seja: inteiramente dedicado prossecuo do maior mal do maior nmero. Burgess faz notar, na sua crtica a Orwell, que um Estado assim nunca existiu nem pode existir. Mesmo os regimes que mais se aproximam deste modelo so intrinsecamente instveis: Calgula acabou assassinado, e o Imprio nazi, que era para durar mil anos, durou doze. Reconhece Burgess, contudo, que Orwell tem bons modelos para a sua terrvel inveno: o franquismo contra o qual lutou, o estalinismo que assassinou na Catalunha os seus camaradas anarco-sindicalistas, ou o nazismo, de cujos horrores se comeava a tomar conhecimento quando o livro foi escrito. Bastou a Orwell absolutizar e levar ao extremo do concebvel estas realidades histricas, et voil: a temos o Ingsoc, abreviatura de English Socialism, ou seja: Socialismo Ingls.Burgess nota, com a indulgncia a que as suas prprias contradies o obrigam, a ironia de um socialista chamar socialismo ao regime mais monstruoso que consegue imaginar; mas no precisa de explicar, e no explica, as razes bvias desta opo. Ns, habitantes do Sculo XXI, habituados pela propaganda vigente a equacionar "esquerda" com "estatismo", tambm podemos ver ironia na escolha deste nome. As razes de Burgess para notar esta ironia so, contudo, um pouco diferentes das nossas. Burgess no era um anti-estatista doutrinrio, mas sim um conservador na tradio burkeana, a quem a ideologia anarco-capitalista e revolucionria representada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan repugnaria tanto como a qualquer militante da esquerda dita radical. No acredita que o Estado seja a emanao do Mal, mas exige dele essa coisa fora de moda que a responsabilidade moral. No captulo "Clockwork oranges" de "1985", declara os seus pressupostos tico-polticos:A chemical substance injected into [Alex's] blood induces nausea while he is watching the films, but the nausea is also associated with the music. It was not the intention of his State manipulators to introduce this bonus or malus: it is purely an accident that, from now on, he will automatically react to Mozart or Beethoven as he will to rape or murder. The State has succedeed in its primary aim: to deny Alex free moral choice, which, to the State, means choice of evil. But it has added an unforeseen punishment: the gates of heaven are closed to the boy, since music is a figure of celestial bliss. The State has commited a double sin: it has destroyed a human being, since humanity is defined by moral choice; it has also destroyed an angel.O Estado aqui descrito no imoral, como o de Orwell, por opo metafsica da oligarquia que o dirige: , mais realisticamente, um Estado amoral. H, e houve, Estados imorais, mas nunca houve nenhum que se definisse exclusivamente pela imoralidade. Burgess tem razo neste ponto. Monstros desta natureza relevam mais de fices como Harry Potter ou Lord of the Rings do que da realidade poltica que vivemos. O Mal absoluto, diz Burgess, to desinteressado como o Bem; e todas as tiranias estveis esto ao servio de interesses.No que no nos sintamos tentados, por vezes, a elaborar fantasias deliciosamente assustadoras sobre os "Senhores do Mal"; mesmo ns, portugueses, c no nosso cantinho, detectamos um eco distante destas fantasias quando ouvimos um poltico, um economista ou um empresrio deixar no ar a ideia de que tudo o que impopular necessariamente justo e acertado e tudo o que beneficia o cidado comum injusto e desastroso. Levada inteiramente a srio, esta ideia implicaria uma negao total e radical da democracia; mas somos, tal como Burgess, demasiado sensatos para levar muito a srio ou muito letra tudo o que diz o poder, e por isso que no confundimos Jos Scrates ou Maria de Lurdes Rodrigues com Voldemort.Ao contrrio de Thatcher e de Reagan, Burgess no via no Estado a nica, nem necessariamente a principal, fonte de opresso. O Estado que Burgess denuncia no o pesadelo de Orwell, que para Burgess no passa disso mesmo: dum pesadelo. Nem o Moloch burocrtico da lenda negra anti-socialista. , acima de tudo, o Estado de Ivan Petrovitch Pavlov e de Burrhus Frederic Skinner:The Soviet State wished to remake man and, if one knows Russians, one can sympathize. Pavlov deplored the wild-eyed, sloppy, romantic, indisciplined, inefficient, anarchic texture of the Russian soul, at the same time admiring the cool reasonableness of Anglo-Saxons. Lenine deplored it, too, but it still exists. Faced with the sloth of the waiters in Soviet restaurants (sometimes three hours between taking the order and fulfilling it), the manic depression of Soviet taxi-drivers, the sobs and howls of Soviet drunks, one can sometimes believe that without communism this people could not have survived. But one baulks, with a shudder, at the Leninist proposal to rebuild, with Pavlov's assistance, the entire Russian character, thus making the works of Chekhov and Dostyevsky unintelligible to readers of the far future.B. F. Skinner foi um behaviourista radical, bem conhecido pelos professores como terico da Educao cujas teses ainda hoje tm influncia poltica no nosso Pas e noutros. Mas tem outras facetas menos conhecidas: como filsofo poltico, produziu em 1948 Walden Two, uma eutopia - ou distopia, conforme o ponto de vista - em que as tcnicas de psicologia do comportamento conduzem a uma harmonia social perfeita; como filsofo moral, produziu em 1971 Beyond Freedom and Dignity, ttulo este que no pode deixar de dar calafrios a Burgess - e, creio bem, a muitos de ns. Burgess denuncia o Estado Sovitico no tanto por pretender privar o homem da sua liberdade econmica como por pretender priv-lo, na esteira de Pavlov e Skinner, da sua liberdade moral.Mas se o Estado no a nica nem a principal fonte potencial de opresso, ento no basta a Burgess denunciar o Estado, como em A Clockwork Orange; preciso enumerar e denunciar as outras foras potencialmente hostis liberdade (leia-se: liberdade moral) do ser humano:There are, indeed, forces always ready to diminish State power, though oppressive enough in their own ways. Multinational companies that can make and break governments but don't give a damn about matters of responsibility to thought, art, sentiment, health, morality, tradition. The manipulators, the true investigators into the power of propaganda, meaning doublethink, subliminal suggestion, rendering us unfree in the realm of what we consume. Trade unions. Minority groups of all kinds, from the women's liberationists to the gay sodomites. And where we expect the State, that takes our money, to protect us from the more harmful of the anarchic forces of the community, there we find the State peculiarly powerless. Se Burgess soa aqui como um cruzamento anti-natural entre um manifestante anti-globalizao e um moralista reaccionrio, reflictamos que o texto foi escrito antes de, quer o neoliberalismo, quer o movimento politicamente correcto terem adquirido o estatuto de verdades dificilmente questionveis.Na segunda parte de 1985, Burgess j no toma como alvo o Estado de Pavlov e Skinner, mas sim uma das foras que enumera nos captulos anteriores. O vilo principal de Burgess , nesta narrativa, o movimento sindical. No o movimento sindical tal como existiu nos pases democrticos ao longo dos sculos XIX e XX, mas aquilo em que ele parecia estar a tornar-se no Reino Unido em 1978: um sindicalismo totalitrio que se substitui ao Estado e regula despoticamente todos os aspectos da vida em sociedade. Este retrato do movimento sindical era em parte, mesmo naquele tempo e lugar, pura e mal intencionada propaganda; mas propaganda em que Burgess acreditou. Tal como Orwell se tinha alegrado, trinta anos antes, com a vitria avassaladora do partido Trabalhista nas primeiras eleies que se seguiram Guerra, possvel que Burgess se tenha alegrado com o triunfo de Margaret Thatcher, no ano seguinte ao da publicao de 1985, com base num programa explicitamente anti-sindical. Se assim foi, esta alegria deve ter durado pouco.Na novela de Burgess, a personagem principal um professor de Histria e lnguas clssicas, desafecto a um sistema que no lhe permite ensinar nada que possa ser considerado "elitista". Esta dissidncia leva-o primeiro demisso e escolha de um trabalho manual (pasteleiro) que no lhe suscita problemas deontolgicos, depois clandestinidade e por fim priso perptua.Em Nineteen Eighty-Four a personagem principal um burocrata chamado Winston Smith; o professor que protagoniza 1985 chama-se Bev Jones. A escolha dos nomes no trivial, como assinala explicitamente Burgess a propsito do nome que escolheu para o protagonista de A Clockwork Orange: Alex, diminutivo de Alexander, ou seja, em grego, "salvador de homens". " Smith" e "Jones" so os sobrenomes mais banais do mundo anglo-saxnico. O nome prprio "Winston" produz, associado a "Smith", um efeito dissonante que se repercute em " Bev Jones. O nome prprio dado personagem pelo pai pode constituir uma homenagem a uma de trs figuras histricas: Ernest Bevin, organizador sindical, dirigente do Partido Trabalhista e Ministro do Trabalho a partir de 1940 no governo de coligao de Winston Churchill; Aneurin Bevan, Ministro da Sade a seguir vitria trabalhista de 1945, arquitecto do Servio Nacional de Sade, e Ministro do Trabalho a partir de 1951, cargo de que se demitiu em protesto contra a introduo de taxas moderadoras destinadas a financiar a participao britnica na Guerra da Coreia; ou William Beveridge, parlamentar do Partido Liberal cujo relatrio, apresentado em 1942, veio a servir de base instituio do Welfare State no Reino Unido.Bev Jones , assim, simultaneamente a continuao e o oposto de Winston Smith, facto que se reflecte nas bvias diferenas e nas surpreendentes semelhanas entre os dois textos.Ambas as tiranias descritas so pavlovianas ou skinnerianas: Winston Smith e Bev Jones so ambos "reeducados" a dado passo. Em ambas est presente, como de resto em Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, a averso do intelectual a qualquer poder de facto ou de direito que se dedique destruio de livros; mas o que imediatamente salta vista quando lemos os dois textos o relevo que Orwell e Burgess do manipulao da linguagem. Em 1985 proibe-se s escolas que ensinem a norma culta da lngua inglesa e impe-se em vez dela o chamado Worker's English; em Nineteen Eighty-Four o consenso artificial de que a tirania necessita construdo recorrendo ao Newspeak.Apesar de partirem de princpios ideolgico-polticos aparentemente opostos, os dois textos partem de princpios morais muito semelhantes e de concepes muito prximas da liberdade. Para a personagem principal de Orwell, ser livre significa poder acreditar que 2+2=4; para Burgess, ser livre significa ser capaz de escolhas morais.Hoje, olhando nossa volta, podemos concluir que o erro e a ingenuidade que Burgess aponta a Orwell podem no ter sido erro nem ingenuidade: o hiperfascismo de Nineteen Eighty-Four pode ser uma figura retrica, uma hiprbole, da qual no se espera que o leitor faa uma interpretao literal, mas tem afloramentos numerosos e bvios nas sociedades actuais, mesmo nas mais democrticas.J o erro de Burgess mais difcil de levar conta de retrica. O Alex de A Clockwork Orange reaparece em 1985 sob a forma de um gang juvenil particularmente violento que acolhe e protege Bev Smith em troca de lies de Histria, Latim e Grego. Faz rir a ideia dum bando de skinheads ou equivalente a interessar-se pela cultura clssica, mas Burgess justifica esta implausibilidade pela irreverncia e pela revolta "naturais" na adolescncia: se a autoridade probe o ensino da Histria, das lnguas clssicas e da lngua materna na sua norma culta, ento a oposio dos jovens autoridade lev-los- a procurar o que lhes proibido.Hlas, no foi isto que aconteceu nos ltimos trinta anos. verdade que certas tribos urbanas, como os "gticos" ou os "emos", do alguns sinais de ter conscincia da falta de alguma coisa essencial na herana que nos preparamos para lhes deixar; mas no sabem que coisa essa, e muito menos lhes passa pela cabea que possa ter alguma coisa a ver com o ensino da Histria ou do Latim.Mais grave ainda: o populismo anti-elitista e anti-intelectual que Burgess temia acima de tudo veio-nos, no pela mo dos sindicatos, mas pela mo daqueles de quem ele esperava proteco. O apelo rebeldia, ao individualismo, mudana rpida, ruptura com o passado, vem-nos hoje, como mostra Thomas Frank em One Market under God, j no da contra-cultura dos anos sessenta, mas sim da publicidade com que as grandes empresas inundam os media. Os bilionrios j no so uma elite gananciosa e exploradora: usam jeans, comem hamburgers e so vtimas, como qualquer pessoa vulgar, da perseguio que lhes move uma casta privilegiada, snob, elitista, intelectual e acadmica que tem a veleidade de "saber mais que os mercados" e no aceita submeter-se a eles com a mesma confiana simples e cega com que um bom muulmano se submete a Allah.E assim se restaura a luta de classes: do lado dos oprimidos vemos Bill Gates, de brao dado com o nosso vizinho do lado: se no os une a condio econmica, une-os a condio de "homens simples" a f comum num catecismo (orwelliano que baste) que afirma, entre outras coisas, que a verdadeira prosperidade est em trabalhar cada vez mais por cada vez menos dinheiro e que a verdadeira igualdade a desigualdade extrema. Do lado dos opressores esto todos os que se atrevem a pr em dvida estas verdades sagradas; e em representao destes "privilegiados" surgem, em primeiro plano, os professores e os acadmicos.Nota: Durante os longos dias que demorei a escrever este texto, no deixei de acompanhar os textos a todos os ttulos notveis que o Ramiro Marques tem estado a publicar no ProfEducao, nomeadamente a srie "H um plano para imbecilizar as novas geraes" No parania: h mesmo esse plano. Espero que a leitura ou releitura dos livros que aqui comento ajude a clarificar as estratgias de marketing poltico que o apoiam.A histria de Tony Blair podia ter sido tirada inteirinha de Tcito. Um rapazinho como tantos outros da classe mdia com todas as atitudes correctas (os ricos tm o dever de subsidiar os pobres, as foras armadas devem ser mantidas sob controlo, os direitos civis tm que ser defendidos contra a intruso do estado) mas sem bases filosficas e reduzida capacidade de introspeco, e sem outra bssula que no seja a ambio pessoal, embarca na viagem da poltica, com todas as distores a que esta sujeita quem a faz, e acaba por se tornar um entusiasta da ganncia empresarial e um pau-mandado dos seus senhores em Washington, fingindo lealmente que no v nada (no ver o mal, no ouvir o mal) enquanto os seus agentes na sombra assassinam, torturam e "desaparecem" pessoas sem quaisquer entraves.Em privado homens como Blair defendem as suas aces dizendo que os seus crticos (sempre designados como crticos de sof) se esquecem que neste mundo longe do ideal a poltica a arte do possvel. E vo mais longe: a poltica no para maricas, dizem, entendendo-se por maricas quaisquer pessoas que revelem relutncia em comprometer os seus princpios morais. Por natureza a poltica incompatvel com a verdade, dizem eles, ou pelo menos com a prtica de dizer a verdade em todas as circunstncias. A Histria h-de dar-lhes razo, concluem - a Histria com a sua viso de longo prazo.Tem acontecido pessoas recm-chegadas ao poder jurarem a si prprias praticar uma poltica de verdade, ou pelo menos uma poltica que evite a mentira. possvel que Fidel Castro tenha sido em tempos uma destas pessoas. Mas como breve o tempo at as exigncias da vida poltica tornarem impossvel ao homem no poder distinguir a mentira da verdade!Tal como Bair, Fidel dir em privado: muito fcil para os crticos fazer os seus julgamentos idealistas, mas no sabem a que presses eu estava sujeito. O que estas pessoas aduzem sempre o chamado princpio da realidade; as crticas que lhes so feitas so sempre utopicas, irrealistas.O que as pessoas normais se cansam de ouvir aos seus governantes so declaraes que nunca so exactamente a verdade: um pouco aqum da verdade, ou ento um pouco ao lado da verdade, ou ento a verdade com um efeito que a faz sair da trajectria. As pessoas esto ansiosas por alguma coisa que as livre destas ambiguidades incessantes. Daqui a sua fome (uma fome moderada, devemos admitir) de ouvir de modo articulado e inteligvel o que outras pessoas capazes de se exprimirem articuladamente e exteriores ao mundo poltico - acadmicos, homens de igreja, cientistas ou escritores - pensam sobre os negcios pblicos.Mas como pode esta fome ser saciada por um mero escritor (para falar s de escritores) quando o domnio dos factos ao seu dispor geralmente incompleto ou incerto, quando at o seu acesso aos chamados factos se faz atravs dos media integrados no campo de foras da poltica, e quando, muitas vezes, e devido sua vocao, est mais interessado no mentiroso e na psicologia da mentira do que na verdade dos factos?A histria de Tony Blair podia ter sido tirada inteirinha de Tcito. Um rapazinho como tantos outros da classe mdia com todas as atitudes correctas (os ricos tm o dever de subsidiar os pobres, as foras armadas devem ser mantidas sob controlo, os direitos civis tm que ser defendidos contra a intruso do estado) mas sem bases filosficas e reduzida capacidade de introspeco, e sem outra bssula que no seja a ambio pessoal, embarca na viagem da poltica, com todas as distores a que esta sujeita quem a faz, e acaba por se tornar um entusiasta da ganncia empresarial e um pau-mandado dos seus senhores em Washington, fingindo lealmente que no v nada (no ver o mal, no ouvir o mal) enquanto os seus agentes na sombra assassinam, torturam e "desaparecem" pessoas sem quaisquer entraves.Em privado homens como Blair defendem as suas aces dizendo que os seus crticos (sempre designados como crticos de sof) se esquecem que neste mundo longe do ideal a poltica a arte do possvel. E vo mais longe: a poltica no para maricas, dizem, entendendo-se por maricas quaisquer pessoas que revelem relutncia em comprometer os seus princpios morais. Por natureza a poltica incompatvel com a verdade, dizem eles, ou pelo menos com a prtica de dizer a verdade em todas as circunstncias. A Histria h-de dar-lhes razo, concluem - a Histria com a sua viso de longo prazo.Tem acontecido pessoas recm-chegadas ao poder jurarem a si prprias praticar uma poltica de verdade, ou pelo menos uma poltica que evite a mentira. possvel que Fidel Castro tenha sido em tempos uma destas pessoas. Mas como breve o tempo at as exigncias da vida poltica tornarem impossvel ao homem no poder distinguir a mentira da verdade!Tal como Bair, Fidel dir em privado: muito fcil para os crticos fazer os seus julgamentos idealistas, mas no sabem a que presses eu estava sujeito. O que estas pessoas aduzem sempre o chamado princpio da realidade; as crticas que lhes so feitas so sempre utopicas, irrealistas.O que as pessoas normais se cansam de ouvir aos seus governantes so declaraes que nunca so exactamente a verdade: um pouco aqum da verdade, ou ento um pouco ao lado da verdade, ou ento a verdade com um efeito que a faz sair da trajectria. As pessoas esto ansiosas por alguma coisa que as livre destas ambiguidades incessantes. Daqui a sua fome (uma fome moderada, devemos admitir) de ouvir de modo articulado e inteligvel o que outras pessoas capazes de se exprimirem articuladamente e exteriores ao mundo poltico - acadmicos, homens de igreja, cientistas ou escritores - pensam sobre os negcios pblicos.Mas como pode esta fome ser saciada por um mero escritor (para falar s de escritores) quando o domnio dos factos ao seu dispor geralmente incompleto ou incerto, quando at o seu acesso aos chamados factos se faz atravs dos media integrados no campo de foras da poltica, e quando, muitas vezes, e devido sua vocao, est mais interessado no mentiroso e na psicologia da mentira do que na verdade dos factos?Dez bailarinas deslizampor um cho de espelho.Tm corpos egpcios com placas douradas,plpebras azuis e dedos vermelhos.Levantam vus brancos, de ingnuos aromas,e dobram amarelos joelhos.Andam as dez bailarinassem voz, em redor das mesas.H mos sobre facas, dentes sobre florese com os charutos toldam as luzes acesas.Entre a msica e a dana escorreuma sedosa escada de vileza.As dez bailarinas avanamcomo gafanhotos perdidos.Avanam, recuam, na sala compacta,empurrando olhares e arranhando o rudo.To nuas se sentem que j vo cobertasde imaginrios, chorosos vestidos.A dez bailarinas escondemnos clios verdes as pupilas.Em seus quadris fosforescentes,passa uma faixa de morte tranqila.Como quem leva para a terra um filho morto,levam seu prprio corpo, que baila e cintila.Os homens gordos olham com um tdio enormeas dez bailarinas to frias.Pobres serpentes sem luxria,que so crianas, durante o dia.Dez anjos anmicos, de axilas profundas,embalsamados de melancolia.Vo perpassando como dez mmias,as bailarinas fatigadas.Ramo de nardos inclinando floresazuis, brancas, verdes, douradas.Dez mes chorariam, se vissemas bailarinas de mos dadas. (in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.) William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856) Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque Um esboo de Da Vinci Ceclia MeirelesLamento do oficial por seu cavalo morto Ns merecemos a morte,porque somos humanose a guerra feita pelas nossas mos,pelo nossa cabea embrulhada em sculos de sombra,por nosso sangue estranho e instvel, pelas ordensque trazemos por dentro, e ficam sem explicao.Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,os clculos do gesto,embora sabendo que somos irmos.Temos at os tomos por cmplices, e que pecadosde cincia, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!Que delrio sem Deus, nossa imaginao!E aqui morreste! Oh, tua morte a minha, que, enganada,recebes. No te queixas. No pensas. No sabes. Indigno,ver parar, pelo meu, teu inofensivo corao.Animal encantado - melhor que ns todos! - que tinhas tu com este mundodos homens?Aprendias a vida, plcida e pura, e entrelaadaem carne e sonho, que os teus olhos decifravam... Rei das plancies verdes, com rios trmulos de relinchos... Como vieste morrer por um que mata seus irmos!(in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.) William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864. Alessandro Allori, 1535-1607, Vnus e Cupido Um esboo de Da Vinci Ceclia MeirelesCanoPus o meu sonho num navioe o navio em cima do mar;- depois, abri o mar com as mos,para o meu sonho naufragarMinhas mos ainda esto molhadasdo azul das ondas entreabertas,e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas.O vento vem vindo de longe,a noite se curva de frio;debaixo da gua vai morrendomeu sonho, dentro de um navio...Chorarei quanto for preciso,para fazer com que o mar cresa,e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desaparea.Depois, tudo estar perfeito;praia lisa, guas ordenadas,meus olhos secos como pedrase as minhas duas mos quebradas. William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence Bronzino, Vnus e Cupido Herbert Draper (British, 1864-1920) , Tha water nixie Um esboo de Da Vinci Ceclia MeirelesMurmrioTraze-me um pouco das sombras serenasque as nuvens transportam por cima do dia!Um pouco de sombra, apenas,- v que nem te peo alegria.Traze-me um pouco da alvura dos luaresque a noite sustenta no teu corao!A alvura, apenas, dos ares:- v que nem te peo iluso.Traze-me um pouco da tua lembrana,aroma perdido, saudade da flor!- V que nem te digo - esperana!- V que nem sequer sonho - amor!