Poemas para o coveiro - Fernando Sales
-
Upload
fernando-sales -
Category
Art & Photos
-
view
281 -
download
3
Transcript of Poemas para o coveiro - Fernando Sales
![Page 1: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/1.jpg)
1
![Page 2: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/2.jpg)
2
A Úmero Card’Osso, que me fez acreditar uma vez mais na poesia.
![Page 3: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/3.jpg)
3
Profissão de fé
A arte que eu crio, só eu posso criá-la. E se não a invento, ela jamais existirá.
![Page 4: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/4.jpg)
4
DOENÇAS 5-17
LIRISMO 18-47
METALINGUAGEM 48-54
IMPRESSÕES 55-67 COM GRAÇA OU DESGRAÇA? 68-77
HOMENAGENS 78-87
![Page 5: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/5.jpg)
5
DOENÇAS
![Page 6: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/6.jpg)
6
As asas fantásticas da juventude Aos amigos dos primeiros tempos
Meus amigos já foram todos imortais E eu mais que eles. A pura virgindade Morava em nossos olhos sempre surpresos. Já fomos pequenos pedaços do eterno Num tempo de certezas e de espanto Diante da música frenética do mundo. Tremíamos de ódio ao vermos a força De velhos tão cheios de dúvidas E, no fim, mais fracos que nós. A arma poderosa do milagre morava Em cada mente que enfrentava O mundo inteiro com a liberdade Que hoje nem as drogas podem comprar. Não nos preocupávamos com o fim Ou mesmo com a vida ou com o tempo Vivíamos como pássaros sem rumo, Asas fantásticas ao sabor do vento. Nada do que existiu ou existe Podia abalar minimamente A firme convicção de que nós Jamais morreríamos.
![Page 7: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/7.jpg)
7
Hoje, meio gastos, semivivemos Alguns já abraçaram o indecifrável Sepultos sob a terra ou sob o capital Outros seguem firmes, mas mascarados Num carnaval às avessas a que chamam vida. A inocente convicção foi vencida Pela tola sabedoria e pela frágil melodia: Todos morremos todos os dias.
![Page 8: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/8.jpg)
8
A velha pantera Ela caminha à beira do lago Agora sozinha, esquecida dos afagos É uma velha pantera que se recolhe Para que ninguém tenha pena de seu anoitecer Leva no peito os sonhos mortos Antes que o corpo os acompanhe Deixa para trás os vencedores todos E abraça, cega, o beijo do último uísque Eles caíram um a um a seu lado Mas resistiu como um iceberg inútil Do qual só conhecem o que me menos importa O doce sabor da derrota amarga Na boca que já amou mais que qualquer homem Porque amou em sua vida só um homem.
![Page 9: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/9.jpg)
9
O fiscal do povo O que eu vejo é que mata seus iguais por seus honestos reais pra sustentar vampiros sociais poderosos. Só por um pouco mais pra ser talvez alguém de mais vai a pisar em quem não o ofende. O que eu vejo é o poder de quem subiu sobre uma lâmina, e ainda não caiu: por um segundo está maior. Ataca a greve, o movimento, porque o estômago ronca e a criança chora e implora: para salvar alguns, condena dezenas. É bela sua honestidade, e egocêntrica é admirável sua fidelidade de cão amestrado mas salva sua pele e sai contentado.
Sobre os mantenedores da ordem à época dos protestos de 2013.
![Page 10: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/10.jpg)
10
Sou o Outro Estou longos passos longe do outro E assim inevitavelmente Me afasto de mim Inutilmente Dou-lhe as costas, corro, voo Ignoro insensato que é na alma do outro Que me encontro e me conto Compreendo-o é que deito no oásis de mim E entendendo-o sei-me, enfim, Como quem desperta pela primeira vez Para o deserto humano inevitável Mas por saber o mundo inteiro Saberei de cada um Seu medo, seu sonho, sua fragilidade Sua força Sua sensibilidade. Porque eu sou o Outro, sou você E você ainda não sabe, Mas também me é.
![Page 11: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/11.jpg)
11
O que pensaremos Quando dermos conta De nossa profunda cumplicidade Nossa flagrante semelhança Essa existencial percepção De queda livre compartilhada De solidão mútua e insuportável? O que faremos Quando o silêncio disser mais?
![Page 12: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/12.jpg)
12
Controversos As crianças deste tempo não puderam sonhar Cresceram duras, secas: cresceram antes. Os adolescentes deste tempo só puderam comprar Cresceram amargos, intensos: tensos. Os adultos deste tempo tentam segurar o ponteiro Não cresceram: e já velhos, não viveram.
![Page 13: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/13.jpg)
13
Iluminados! Ou rivotril, fluoxetina, flúor e ritalina Cansamos de nossa escravidão: Não pelos pulsos atados Mas pelas almas e mentes tomadas E nossos corpos dopados
![Page 14: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/14.jpg)
14
Desencontros quase banais Quantas coisas vão em vão E outras, ficam e fincam Quanto corte certo Em tanta face falsa Quanto altar a atar E tanto livro a livrar Quantas rezas são em vão E tantas santas mancas Quanta loucura que cura Em meio a tanta puta pura!
![Page 15: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/15.jpg)
15
Morte em vida Não há mais o suco das frutas O sol se pôs com rigor sobre elas Despojou-as de seu suculento sabor Deixou-as inodoras, insípidas. Traidoras de si mesmas, Desagradam aos olhos, ferem ao paladar Não encantam nem alegram Perderam-se prematuras No momento em que as sementes gemiam Pedindo luz.
![Page 16: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/16.jpg)
16
III Guerra ou Toda Guerra Mas subjaz a essa guerra uma outra, mais crua Que faz das almas douradas ou empestadas E pendemos dentro dela como em um sino Como num jogo em que desconhecemos os vilões Matar ou morrer é ser marionete das previsões É cumprir o que planejaram pra que fosse seu destino Somos todos em meio ao deserto crianças abandonadas A verdade para nós ainda não se fez nua Toda guerra só se faz em sangue porque antes se faz [em medo Enganados, não perceberemos isso muito cedo Preferiremos, cegos, mil vez mais a dor Desprezaremos que o contrário do medo é o amor Profetizaram há milênios um caminho estreito Esqueceu acaso o que leva de mais sério em seu peito? Morar neste sino (amor e medo, medo e amor) É o que faz de nós, humanos – nossa chama e flor!
Pouso Alegre, 24 de março de 2013
![Page 17: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/17.jpg)
17
Um camponês Ele pôs seu mesmo velho chapéu Sobre a mesma cabeça quase velha Pegou suas coisas sem ver o céu E não havia em seus olhos centelha Com método trabalhou, comumente. Nem mais nem menos que o que já fazia: A semente e a terra sem fantasia Praticadas sistematicamente. Deteve-se para o almoço e o café. E ao horário costumeiro ele ia. Mas parou súbito e a um amigo disse: - Espere, esqueci a chave - e sem ter fé, Olhou para uma árvore que servia. Subiu e saltou sem que ninguém visse.
![Page 18: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/18.jpg)
18
LIRISMO
mas sentir é enxurrada...
![Page 19: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/19.jpg)
19
Nem os magos podem devolver
A palavra salvadora e clara Eu a esqueci Beijei a todo instante o trivial Fiz de mim o banal E esbanjei-me E gastei-me Na eternidade de um relógio parado Como se ele marcasse para sempre o infinito. Sei que um dia morrerei E corro Porque em mim reside a morte Irmã do tempo, Madrasta dos homens, Filha da vida e mãe da sabedoria Faltou-me a palavra na hora certa E nas erradas disse todas Perdido não estudei alquimia E tanto faz: Nem os magos podem devolver O mais inútil segundo Que da ampulheta escorreu. Cada grão de areia corre-me Inevitável, inflexível, Entre os vãos dos dedos, Para encontrar de novo meu destino.
![Page 20: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/20.jpg)
20
Santo pecador Sou o homem, sou o bicho Mão que a pedra afaga Num instante, caridade Mas sem piedade Com um olho, todo amor E no outro, pura dor O que encanta e assombra Que alimenta dois lobos Para a briga, para a luta Meu bem, meu eu No ringue, na rinha Sendo o filho preferido Distante vou existindo Paradoxo: santo pecador Sublime rastejante Humano, divino, tormenta Mais do que devia
![Page 21: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/21.jpg)
21
Ser feliz me arrebenta A plenitude é lenta Mas caço e caio Levanto e saio Médico e monstro Amor e medo Insanidade de marasmo Vício, sou covarde Tentação, sou impasse Resistência, sou herói Provisório, me corroo E voo E suo E sumo Pra um retorno esperado Desesperado Na virada, na escalada Todo inteiro pela metade Muito velho, pouca idade Sou capaz do melhor Mas ajo pela média Faço milagres Peco em detalhes Recupero amando
![Page 22: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/22.jpg)
22
E a alma, no campo Corpo é cidade Ambição descartável Involuntária, Humana e guiada Cada dia os dois lados Da unidade controversa Reversa Autossabotada Na batalha À procura do salto O além E ainda refém Da fé! Da fé! No Além... Amém.
![Page 23: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/23.jpg)
23
Abraçar o diabo Não é realizar todas as fantasias É multiplicá-las de mil a mil Milhão a milhão E lenta ou ferozmente sofrer A impossibilidade debochada De toda realização.
![Page 24: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/24.jpg)
24
Sou a reminiscência da distância, desando de mim.
![Page 25: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/25.jpg)
25
Quem paga a conta Das coisas que nasceram Fadadas ao nunca?
![Page 26: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/26.jpg)
26
Todos os lados Do meu coração São avessos
![Page 27: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/27.jpg)
27
No instante em que se percebe Que vida se planta e se colhe Não é de estação em estação É todos os dias ter pela frente E é só você quem escolhe Mente ou coração
![Page 28: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/28.jpg)
28
Não ter tempo de viver mata Mais do que saber que estamos sempre morrendo É o legado de um mundo doente: quem vive?
![Page 29: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/29.jpg)
29
Uns certos raios Entravam por janelas distraídas que eram o sol despedaçado que era uma montanha de olhos e luzes e era quando o dia me chamava para a morte Mas a noite convencia-me da vida
![Page 30: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/30.jpg)
30
Abraço
segundos
HEDÔNICOS
depois
vazio
DE NOVO
![Page 31: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/31.jpg)
31
Todos os dias tateio no escuro As paredes do labirinto Da identidade que não sinto
![Page 32: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/32.jpg)
32
À sua espera Os sonhos que abandonei Agora dançam de braços dados À beira do abismo
![Page 33: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/33.jpg)
33
Em todas as noites do futuro Pra mim mesmo não minto Se tudo se perde, seguro, Recorro a mais um vinho tinto
![Page 34: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/34.jpg)
34
Beatriz, o Divino Paraíso Três vezes três e ao fundo do inferno cheguei A cada camada afundando-me mais no lodo humano Porque à porta já pude ler espantado: "Deixai aqui toda esperança, oh vós que entrais". Entrei, fui ao pior e pude incrivelmente sair Porque nas camadas da purgação escalei Encontrando e deixando o orgulho, a inveja, A ira, a preguiça, a avareza e a prodigalidade... Vi ainda a gula, temerosa, a luxúria, sedutora. Estava tudo ali diante de mim e fui tentado Por cada capital de cada estado humano E ao final de tudo pude ver uma luz que me puxou. Eu, homem; ela, fé. Frente a frente, pé a pé A iluminada, a brilhante, a pura Beatriz. Porque o que eu não sabia e era lógico Era que só depois de conhecê-la eu seria real Só então poderia a vida começaria Depois de morrer para o passado inteiro E viver para a realidade que ela trazia. Beatriz: a porta do paraíso ela me abria.
![Page 35: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/35.jpg)
35
Porque vou morrer Nesta noite vou Gemer a epiderme A dose extra Extravasar Ambos os polos Extrapolar Ir pulando até as estrelas Até vê-las De perto Tenho a íris apaixonada Pelo imenso arco-íris Ardo toda noite À meia-noite E deslizo no sorriso Impreciso E sem siso Da criança Inter- Estelar: Estela.
![Page 36: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/36.jpg)
36
Epifania 1. Há um só momento em que Romeu e Julieta dançam seresta no coreto da praça central e pensam que morrer de amor não é necessário Num flash, a dama e o plebeu se mascaram, livres, na construção de seu Carnaval peculiar E só uma vez Adão e Eva, vestidos de nobres, renomeiam seus movimentos. Não mais pecado, mas amor. É o raro instante em que meus olhos viram palco de festas, em que te vejo.
![Page 37: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/37.jpg)
37
2. O fortuito momento em que nossas mãos, enfim, se cruzarem será chamado de eclipse da lua. E então, não mais de dentro dos meus olhos, Romeus, Julietas; damas, vagabundos; Adões e Evas; Bones e Claides; e mais alguns outros grandes casais pararão com suas danças com seus amores, e até com seus olhares, e à nossa volta, sentados em roda, embasbacados, se porão a aplaudir, enquanto eu e ela nos olharmos pela primeira vez. A festa em homenagem às mãos (que escondiam tantos
[dedos) e aos dedos (que escondiam tanto a vida) não restringirá mais tempos nem espaços Virão Shakespeare, Lorca, Pessoa, virão Monet, Picasso e Van Gogh. E entenderemos o real poder da literatura, da pintura, de todas as artes, e, principalmente, da maior delas: o Amor.
![Page 38: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/38.jpg)
38
Visitaremos as Esfinges, as Pirâmides, Maravilhas Viena, Paris, Noronha, Alexandria, o Império Romano. E faremos amor em cima dos livros,
e Platão, Virgílio e Homero nunca se sentirão tão [honrados.
Mariana, 2004
![Page 39: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/39.jpg)
39
Instante a olhar o céu
Eram fogos de artifício, muitos, e um arco-íris de cinquenta cores! Eram cordas vibrando, muitas!, mal-intencionando um desfoque. ou acorde. E, ao centro, explosões e brilho, muito brilho, É verdade, espalhado, encantado, encantando Tanto, que fazia do céu o reflexo, a cópia, uma foto ou um quadro: miniatura milimétrica do rosto seu nos olhos meus..
![Page 40: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/40.jpg)
40
Aquilo que mora entre a cabeça e o coração Todas as mãos se foram E mesmo assim te restou Um coração e quase a cabeça Firma-a no lugar Bomba-o com cuidado e força Une-os nesse sentido que pressentes Sente com tua cabeça O que pensa teu coração Não há lógica mais despretensiosa Um sorriso te nasce Entre o peito e as madeixas Não deixas que o assassinem Não, aquelas mãos não sabem O que são tuas noites de sono E tuas manhãs de amor. Insistem em trabalhar para o abismo Onde não entra o suspiro E o silêncio de só duas bocas
![Page 41: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/41.jpg)
41
Levem-nos para longe suas mãos Dê-me as tuas, façamos quatro, Façamos seis! Esbanje o sorriso Que não entenderão! E quando a carne e os ossos E essa vida toda passar Teu espírito pairará sobre o sonho Dos novos amantes sedentos...
![Page 42: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/42.jpg)
42
Teu gesto disposto A plenitude de um só momento Infinito no sentido de tempo Leve no sentido de pele Em que nada se deve e tudo se pode Pede um pouco da cor da natureza Para que eu busque e te faça Um colar, um cocar, um olhar Da mais transparente visão O sentido da pele é ser toque O amor, um eterno retoque Que é esse teu gesto disposto A abraçar um futuro inteiro Belamente reinventado A cada passo (de dança).
Pouso Alegre, 19 de outubro de 2012
![Page 43: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/43.jpg)
43
extrassensorial o mais sutil toque o mais suave de todos eu era capaz de sentir porque minha pele era toda lava e meus poros, crateras meus dedos eram mágicas crianças que descobriam o mundo pela inédita vez. nessa pura reintensidade aprendi revivendo tornado para dentro cada arrepio, acorde a me tocar profundamente rumo à sensibilidade e ao que dormia em mim
![Page 44: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/44.jpg)
44
A fragilidade do sagrado Adiaremos o toque Até quase a eternidade Nós amamos o desejo E não a materialidade Próximos do distante Distantes da possibilidade Remarcamos o terreno De uma eterna idade O quase toque O quase beijo Nossos olhos que clamam Vislumbram a súbita magia e multicolorem o dia de fogos que plainam Sobram em nós mãos e dedos E o sonho vai ágil - Espreita e liberta libidos - E não mais concebe respeito à linha tênue e frágil entre o beijo e o amigo.
![Page 45: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/45.jpg)
45
O sagrado segredo para dois Ousamos tocar o sagrado E nele fizemos morada Atrevemo-nos a adentrar o proibido, Mobiliamos o templo, E acendemos a chama no altar. Fechamos, então, as portas Escrevemos poemas nos cálices Bebemos do vinho da insensatez E únicos, Fundamos a divina religião Que é o amor.
![Page 46: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/46.jpg)
46
Reconquistas Essa mulher Que conquistei um dia E que conquisto todos os dias A cada dia Nesse sempre medo Dessa constante Primeira vez Tirou-me os abismos Em que eu vivia Repartido em feridas sem corpo E em sangue sem anticorpos. Ela foi a pele que uniu E a cicatriz a mostrar Que o presente de luz Partiu do passado, Que sangrou em enxurrada Enquanto tudo era queda...
Paraná, julho de 2012
![Page 47: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/47.jpg)
47
Assim, quando a carne e os ossos E essa vida toda passar Teu espírito pairará sobre as águas...
![Page 48: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/48.jpg)
48
METALINGUAGEM
![Page 49: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/49.jpg)
49
Poesia
Que o abismo da existência seja iluminado E a cotidianidade seja constantemente trespassada Por essa lança que faz nosso sangue correr e jorrar
![Page 50: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/50.jpg)
50
O Processo 1. Da calha do céu palavras escorrem molhadas como chuva. (O vento que na queda as embala é o que chamam Poesia) A água, quando beija o solo, refaz-se em diversos sentidos E povoa o ar com o cheiro de terra dos versos.
![Page 51: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/51.jpg)
51
2. Quando os primeiros olhos Miram a chuva fina A estrofe enlouquece O ritmo treme suas batidas E uma profusão de imagens Deságua do céu Ah! Quando o nariz Inala o cheiro da Poesia É por dentro que começa A chover A alma Explode em letras Molhadas de versos A alma nua Dança sozinha Na tempestade E de mãos dadas Uivando Se casa sonora Com o vendaval.
![Page 52: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/52.jpg)
52
Ideal Eu quero só o que ainda não existe
O que não existirá Eu quero o que está em sua cabeça De lá não sairá Eu quero a imaginação A criatividade pura Eu quero a completa abstração O infinito do que não é matéria Aquilo que não cria forma nem perde tamanho Quando se desfaz em versos Pinceladas ou acordes Aquilo que é a parte inconcebível do ser Que resiste a qualquer toque Eu quero a essência do impensável, Quero os olhos de uma criança insana!
Pouso Alegre, 16 de fevereiro de 2013
![Page 53: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/53.jpg)
53
Hino à arte O corpo alcança seu máximo prazer, o limite Mas a alma quer mais, quer o além Há qualquer coisa depois do espetacular E isso o corpo jamais vislumbrará Além da vida (quase sempre a superá-la) Está ela, a arte, espetáculo a ser descoberto Espécie de espírito da experiência real Essência que resiste ao que é temporal Ao se amontoarem células humanas Não temos um só ser vivo, se não há a chama Há qualquer coisa de irremediavelmente único No ato de sofrermos desse mal crônico
![Page 54: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/54.jpg)
54
Logo poderei te oferecer As palavras certas Pro momento exato Vinícius tem me ensinado Neruda me visitado Falando de simplicidade Não de espaço sideral Nem de mitologias intocáveis Mas sobre o ser sempre criança Dizendo na língua do povo O que toda a gente Expressa sem esforço. Quando esse tempo me chegar Entregarei de mão beijada O que o peso dos anos Repassou-me em doces palavras: O breve gesto, o certeiro abraço Tudo isso, no momento exato
![Page 55: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/55.jpg)
55
IMPRESSÕES
Confundimos solidão e liberdade. Quando conseguimos aquela, pensamos que é esta. E nenhuma mais tem valor.
![Page 56: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/56.jpg)
56
Chuva Molha sutilmente meu rosto Enquanto transporta os caules Para dentro de si mesmos Minha pele te ama e responde Arrepiada a teu toque de vida Que em mim pousa, velha conhecida Por todos os lados, é uma e é milhões Inteira mínima e toda completa Ao encontro do solo que te seduz Despenteia o cabelo das plantas Que como eu não se importam Desde que tuas mãos sejam e são carinhosas Agora aplaina, acalma E sabes que sei que sou também parte tua: A gota que um dia ainda te alcançará Na estação que me levar para o céu.
Pouso Alegre, 05 de março de 2013
![Page 57: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/57.jpg)
57
Chuva Quando o som, manso, Chega suave aos ressecados ouvidos É a mais nobre melodia E o mais puro aroma Que molham e perfumam A alma cansada e suada, Que o tempo acumulou De poeira e desesperança. Lava-a de toda essa secura Exala nesta alma terra, água e vida Faz nela acordarem as flores Que dormiam em si esquecidas Traz para ela a beleza divina.
![Page 58: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/58.jpg)
58
O solitário fluvial No entanto, o rio ali está E nos observa como se tivesse Dois olhos a nos fitar E como iluminam O que ninguém mais Pode saber Ao som melodioso De silêncios da noite Percebemos que eles Podem ascender, como nós E como correm sobre as águas Enquanto seguimos parados Ou somos nós que corremos Enquanto estagnam assustados? Não somos nós, por acaso, Um rio a ser observado Por um solitário fluvial que gostaria De ser os dois, que hoje são um só?
![Page 59: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/59.jpg)
59
PLANTAS? Quando a lágrima c a i
u a árvore q u a se
VEGETOU
![Page 60: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/60.jpg)
60
FFFaaarrrooolll
Chove fracamente sobre o forte de teu peito Fortaleza em que não penetram gotas minguantes Os dias de tempestade que inundam teu corpo afogariam o comum dos humanos Mas tu resistes Farol noturno, guardião Resistes e não acolhes nas luzes que emites as ondas calmas que desfilam à tua busca.
![Page 61: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/61.jpg)
61
Pré-casados dos dois pontos
em uma só direção - com certo tremor de dedos
e vistas fracas - partem os fios.
a mão que os tece
é invisível, impalpável,
amiga somente da fonte imaginária: mas a fusão é real. o belo está a caminho, e às vezes o caos faz visita:
contudo o inegável engenho humano
só faz construir... dos novelos delirantes uma só peça integrada.
![Page 62: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/62.jpg)
62
Amor Quando o real e o sonho se tocam Sem que um destrua a realidade do outro
![Page 63: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/63.jpg)
63
amor quando a raiz apodrece contam-se as passagens do sol até que toda ela, inteira venha abaixo
![Page 64: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/64.jpg)
64
Sobre a Morte
Sobre a Morte, Não é ela como a Vida? Naufragam nela Os marujos: Entendimento Compreensão E Costume. Dama singular, Rápida ou lenta vem, Doída ou súbita toma, Sem que a gente aprenda Sua natural espontaneidade fatal Essa Senhora Não revela seus segredos Amedronta, faz buscas Captura um a um Enquanto desprezamos seu abraço É ela a ditadora que leva da gente Os que nunca acostumamos A não ver no dia seguinte. Um parecer que não nos concerta? De alguma forma sabemos Que ela está sempre certa.
![Page 65: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/65.jpg)
65
Essa famosa sedutora Nós nunca de fato a aceitamos. Somos sempre crianças Diante da tia estranha. Para sempre, tia estranha.
![Page 66: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/66.jpg)
66
O olho Um presente soberano Desce sobre nossos abismos E é a salvação Que, simultânea, nos perde Põe-nos próprios, únicos, Perceptivos Do profundo e de nuances, Das cores e das dores, Na inigualável fantasia Que é o levantar As pálpebras.
![Page 67: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/67.jpg)
67
Buraco Negro à minha frente a antimatéria: a verdade. Convicta, certa de si mesma. Nascia a Atração; quem negaria? Universo em mergulho: luzes e homens. Vinham As respostas e explicações para as dúvidas de desde os primórdios; mas baixo, ao ouvido. Sem compreender, distante: Com o orgulho cego, ceguei-me.
![Page 68: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/68.jpg)
68
COM
GRAÇA
OU
DESGRAÇA?
![Page 69: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/69.jpg)
69
As bebidas de Baco ou O sentido prático da horizontal Funcionam de modo Inversamente proporcional: Matam os homens E renascem as mulheres
![Page 70: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/70.jpg)
70
A hora do bêbado É a festa da festa E o riso à beça
![Page 71: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/71.jpg)
71
Meu fígado está morto E eu estou quase vivo O mesmo álcool que me mata Faz-me quase viver
A mesma mente que se abre Fecha as portas e para a razão A cama em que, mal, me deito hoje Ontem me fez bem e foi minha perdição
![Page 72: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/72.jpg)
72
O açougue noturno Em busca do alimento Saem sedentos Noite adentro À caça de carne Compra quem pode Leva quem conduz Vende-se quem aceita Esse comércio legal E as carnes assim tão expostas Sem pudor, sem rancor Parecem sorrir para o próximo Consumidor.
![Page 73: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/73.jpg)
73
A noite que é a vida São pernas que voam e sonhos que afundam na banalidade profunda do raso de uma meretriz A carteira agora vazia Na mesa o relógio que chicoteia as chances E um espelho que não reflete A nova burguesia quis comprar minha alma. Dei meu preço, insinuei uma hipótese, mas não a vendi. Dei-me, enfim, uma chance: fugi a galope Minha presença cavalgou para o cosmo À procura de breves segundos de êxtase.
E fim.
![Page 74: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/74.jpg)
74
Por 9 meses Se você já é pai só pode saber Da incrível delícia Que está pra nascer E se não é só imagina O que ainda Não posso saber É, essa barriga realmente Cresce sem pudor A encurvar minha mulher E ela enjoa, sofre, chora Me pedindo pra buscar Uma calota polar Às vezes me bate a suspeita De que de lá Nada vai sair E conto segundo a segundo Com as noites Em que não vou dormir Poderia chamar isso De amor por antecedência De nova inocência
![Page 75: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/75.jpg)
75
Mas por enquanto Só cabe clamar Pela Santa Paciência
![Page 76: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/76.jpg)
76
No teu tempo Um dia serás avó E terá teus netos Ingratos. Cultivarás as plantas Que antes, marota, Arrancavas. Trocarás teus agitos Da cidade louca Pelo manso campo. Balançarás em cadeiras E terás chorosa Os teus santos. Um dia viverás Dizendo que no teu Tempo era melhor. Gastarás inacreditáveis Tardes inteiras No dominó. E perplexa diante de tudo Te perguntarás: Já sou vó?
![Page 77: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/77.jpg)
77
No Espetáculo da Existência Ninguém me disse o que fazer Nesse breve intervalo Em que as cortinas Já subiram e vão descer
![Page 78: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/78.jpg)
78
HOMENAGENS
![Page 79: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/79.jpg)
79
A Lorca No fim da tarde de hoje O vento tirou todas as árvores para dançar E ensinou uma pipa sem dono a voar. Encorajado por ele Um pássaro desvirginou o céu. O mesmo vento pegou a preguiçosa poeira pela mão E arteiramente lhe deu asas. Uniu as nuvens brigadas Fez cócegas nas tímidas flores, que sorriram. O vento enfim lambeu nossas pernas: A minha e a dela. Foi então que o som intenso do silêncio Uivou que sim para aquela eternidade.
Pouso Alegre, 21 de janeiro de 2013
![Page 80: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/80.jpg)
80
O que se foi A Ian Guest
Havia sido uma bela mãe Que humanamente Acertara e errara Teve seu tempo Suas glórias, seus fiascos E vivera deveras Seu tempo contudo já fora Sua hora exata chegara O melhor já se havia gastado Seu cadáver já sem luz O filho passou a carregar Sobre as costas por onde ia No entanto, pesava o fardo E sentia-se ele infantil Saudoso do passado e do futuro Um homem com braços abertos Gritou-lhe o mais que pôde: LIBERDADE! O susto fez cair-lhe o cadáver Roubaram-lhe rápido o defunto Lançaram-no em cova aberta
![Page 81: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/81.jpg)
81
Indignação, revolta, pranto Um dedo a indicar mil culpados Dois joelhos que se dobram clementes Veio-lhe, pois, alguma inspiração Terra lançou sobre a cova Sua morta estava enterrada Era seu passado sob a terra: Os mortos merecem descanso. Foi então que virou-se e se foi, novo. Sentira-se enfim adulto Pela primeira vez na vida Com a idade pesada que tinha.
![Page 82: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/82.jpg)
82
Aos nossos criadores É, não mudamos muito As cavernas foram compartimentadas Empilhadas Sobrepostas Indispostas Ferindo o céu sem arranhá-lo Elas agora têm cortinas
E vista pra cidade Para o mar
Os machos olham-se desconfiados Ao passarem pela trilha Que chamam de corredor
As mulheres estão pintadas E vestidas Mas despidas De pele e poros ao vento Mortas sobre a carruagem Que as arrasta Os pequenos não conhecem mais O lago O leão A lealdade Aprendem conosco a viverem em tocaias
Cumprindo seu papel De miniadultos
![Page 83: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/83.jpg)
83
Recriem-nos Refaçam-nos Resgatem-nos Acordem-nos da letargia cotidiana (Somos só levados!) Destas paredes que garantem o isolamento E a certeza de um esperado tormento
![Page 84: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/84.jpg)
84
In memorian A Selma Antônio
Hoje amanheceu como amanhecem todos os dias Mas em mim ainda é noite. Passaste. Foste ver o desconhecido E me levaste. E ainda estou aqui. As folhas continuam Caem e adubam Mas o canto mais belo do mais belo pássaro Não te despertaria desse inacreditável sono Acordamos para dormir E dormimos acordados Até que os olhos não mais abrem E tudo vira urgência Ficam teu sorriso, teu gesto Teu abraço a cada dia mais forte Enquanto as horas seguem As folhas verdejam E há cacos por todos os lados
![Page 85: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/85.jpg)
85
Meio-inteiro A Bruno Alves Lopes
És o que tenho sem esforço de conquista Mas de diária permanência Sangue de meu sangue Meio sangue: há pais de mais e paz de menos. Naturalmente indiretos é o que somos: Lados que suportamos lado a lado: horizontais. Mas me vês e me olhas Esquecendo lateralidades: Sou-lhe pronto-pai, novo-pai, irmão-paterno. Sou dois; és dois. Tudo de que mais fugi em mim mesmo Encontrei em ti: Oposto de mim Em que me encontro e me perco. Jamais pensarás, sentirás e serás A mim, como sou: Há pontes instransponíveis Para caráteres peculiares.
![Page 86: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/86.jpg)
86
Eu, casulo, fugitivo, retrato do medo Tu, borboleta e foto da luz. Tudo para que eu o admirasse. Cativos, cativas, defeitos em montante De tua e de minha parte. Surpresa infinda é ser inspiração tua. Alegria é poderes ser mais: Já o és e só não o sabes.
![Page 87: Poemas para o coveiro - Fernando Sales](https://reader034.fdocuments.net/reader034/viewer/2022042507/55c37cc2bb61eb805e8b47e7/html5/thumbnails/87.jpg)
87
O beijo entre o céu e a terra A Bea Sales Há alguma coisa de verdadeiramente especial No modo como a luz pousa seus raios Delicadamente na superfície de seus olhos Impenetravelmente delicados e sutis Algo como se os segredos cegos do mundo Pudessem se encarar em silêncio E brilhassem. E isso fosse um beijo Entre o céu e a terra, entre os deuses e ti. Se o tempo congelasse por um segundo Todos poderiam entender todo o mundo Porque a verdade e a beleza se uniram a fundo E mesmo que o sol já se ponha E um dia tu te envelheças, princesa Jamais deixará a eternidade aquele segundo