Pobreza e Desigualdade Na a.l.

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PRODUO DE POBREZA E DESIGUALDADE NA AMRICA LATINA

Alberto D. Cimadamore Antonio David CattaniORGANIZADORES

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Clacso 1 edio 2007 Direitos reservados Tomo Editorial Ltda. A Tomo Editorial publica de acordo com suas linhas e conselho editoriais que podem ser conhecidos em www.tomoeditorial.com.br. Editor: Joo Carneiro Traduo dos artigos escritos em castelhano: Ernani Ss Reviso tcnica da traduo: A. D. Cattani Reviso: Nara Widholzer Editorao eletrnica e capa: Daniel Cls Diagramao: Tomo Editorial

C573p

Cimadamore, Alberto D. Produo de pobreza e desigualdade na Amrica Latina / Alberto D. Cimadamore ... [et al.] ; organizadores: Antonio David Cattani, Alberto D. Cimadamore ; traduo: Ernani Ss. Porto Alegre : Tomo Editorial/Clacso, 2007. 240 p. ISBN 978-85-86225-50-5 1. Sociologia. 2. Desigualdade Social. 3. Amrica Latina. I.Ttulo. II.Murillo, Susana. III.Leguizamn, Sonia Alvarez. IV.Daz, Laura Mota. V.Bialakowsky, Alberto L. VI.Lpez, Ana L. VII.Patrouilleau, M. Mercedes. VIII.Antunes, Ricardo. IX.Pochmann, Marcio. X.Cattani, Antonio David. XI. Ss, Ernani (trad.). CDD 305.569

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Bibliotecria responsvel: Vera Lucia Linhares Dias CRB-10/1316

Tomo Editorial Ltda. Fone/fax: (51) 3227.1021 [email protected] www.tomoeditorial.com.br Rua Demtrio Ribeiro, 525 CEP 90010-310 Porto Alegre RS Brasil

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PRODUO DE POBREZA E DESIGUALDADE NA AMRICA LATINA

Alberto D. Cimadamore Antonio David CattaniORGANIZADORES

Alberto D. Cimadamore Susana Murillo Sonia Alvarez Leguizamn Laura Mota Daz Alberto L. Bialakowsky Ana L. Lpez M. Mercedes Patrouilleau Ricardo Antunes Marcio Pochmann Antonio David Cattani

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Secretario Ejecutivo Emir Sader Comit Directivo Miembros Titulares Julio Csar Gambina Fundacin de Investigaciones Sociales y Polticas Argentina Gaudncio Frigotto Universidad Estadual de Ro de Janeiro Brasil Gustavo Verduzco Igarta Centro de Estudios Sociolgicos El Colegio de Mxico Mxico Marielle Palau BASE Investigaciones Sociales Paraguay Margarita Lpez Maya Centro de Estudios del Desarrollo Universidad Central de Venezuela Venezuela Vctor Vich Instituto de Estudios Peruanos Per Adalberto Ronda Varona Centro de Estudios sobre Amrica Cuba

Director Cientfico Tom Skauge Comit Cientfico Atilio Boron, Chair, Argentina Lucy Williams, Vice-Chair, EUA Santosh Mehrotra, Vice-Chair, India Abderrezak Benhabib, Argelia Alicia Ziccardi, Mxico Juan Manuel Arbona, Bolivia Layi Erinosho, Nigeria Leif Jensen, EUA Fatima Adamu, Nigeria Karima Korayem, Egipto Adebayo Olukoshi, Senegal Murray Leibbrandt, Sudfrica Peter Saunders, Australia Ragnhild Lund, Noruega Blandine Destremau, Francia Arjun Sengupta, India Carlos Sojo, Costa Rica Du Xiaoshan, China Penina Mlama, Kenia

CLACSO Executive Secretariat Callao 875, piso 3 C1023AAB, Buenos Aires, Argentina Tel.: (54 11) 4811 6588 / 4814 2301 Fax: (54 11) 4812 8459 [email protected]

CROP Secretariat Nygardsten 5, N - 5020 Bergen, Norway Tel.: 47 55 58 97 44 Fax: 47 55 58 97 45 [email protected]

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SUMRIOA construo da pobreza e da desigualdade na Amrica Latina: uma introduo ................ 7 Alberto D. Cimadamore | Antonio David Cattani As polticas de produo de pobreza: construindo enfoques tericos integrados ............................... 15 Alberto D. Cimadamore Produo de pobreza e construo de subjetividade ................ 39 Susana Murillo A produo da pobreza massiva e sua persistncia no pensamento social latino-americano ....... 79 Sonia Alvarez LeguizamnInstituies do Estado e produo e reproduo da desigualdade na Amrica Latina ....................... 125 Laura Mota Daz Prticas governamentais na regulamentao de populaes extinguveis ........................... 151 Alberto L. Bialakowsky, Ana L. Lpez e M. Mercedes Patrouilleau A desconstruo do trabalho e a exploso do desemprego estrutural e da pobreza no Brasil ....................... 195 Ricardo Antunes e Marcio Pochmann Riqueza substantiva e relacional: um enfoque diferenciado para a anlise das desigualdades na Amrica Latina .................... 211 Antonio David Cattani

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Antonio D. Cattani

E DA DESIGUALDADE NA AMRICA LATINA: UMA INTRODUO

A CONSTRUO DA POBREZA

A pobreza e a desigualdade so construes sociais que se desenvolvem e consolidam a partir de estruturas, agentes e processos que lhes do forma histrica concreta. Os pases e regies da Amrica Latina moldaram, desde os tempos coloniais at nossos dias, expresses desses fenmenos sociais que, embora apresentem as peculiaridades prprias de cada contexto histrico e geogrfico, compartilham um trao em comum: altssimos nveis de pobreza e desigualdade que condicionam a vida poltica, econmica, social e cultural. O conceito de construo praticamente similar ao de produo, sendo utilizado aqui para enfatizar que a pobreza o resultado da ao concreta de agentes e processos que atuam em contextos estruturais histricos de longo prazo. Reiteradamente, esses problemas foram identificados como os mais relevantes que enfrentam as sociedades latino-americanas ao buscar a consolidao dos regimes democrticos, socialmente justos. Mais importante ainda, observa-se que a pobreza e a desigualdade habitualmente esto ligadas, retroalimentam-se e reproduzem-se medida que contem com condies polticas, econmicas e sociais favorveis para tanto. Essa interao tende, alm disso, a consolidar os nocivos efeitos sociais de sua conjuno. A desigualdade gera pobreza proporo que, em um determinado ponto histrico, a distribuio do estoque de recursos econmicos faa parte de um jogo de soma zero. Certamente, em tese, pode se pensar de maneira distinta a questo da distribuio de bens (econmicos e de outro tipo) nas sociedades, particularmente quando se inclui a dimenso tempo (futuro) e se pensa em incrementar o estoque de bens para facilitar sua7

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distribuio. Muitas das teorias que subscrevem a poltica de fazer o bolo crescer para depois distribuir partem dessa premissa. No entanto, uma simples descrio histrica do crescimento econmico registrado por vrios dos pases da regio mostra que este no se traduziu em uma significativa diminuio da pobreza, pela simples razo de que o estoque de bens to desigualmente distribudo, que seus efeitos estruturais tendem a concentrar inercialmente os lucros em grupos reduzidos da populao. Essa realidade condiciona qualquer objetivo de se conseguir uma reduo significativa da pobreza e consolida quando no aumenta uma desigualdade mpar no mundo inteiro. A esses argumentos, subjaz a hiptese de no ser possvel diminuir a pobreza na Amrica Latina sem diminuir a desigualdade, o que est implcito e explicitamente sugerido nas discusses das pesquisas que conduziram a esta obra. Crescentemente, elas fazem parte de um consenso nas pesquisas sobre pobreza que subscrevem teorias e perspectivas crticas dos enfoques predominantes no passado recente, tanto no discurso oficial dos pases da regio, como nos informes das organizaes internacionais que se ocupam do tema. As Cincias Sociais e, mais especificamente, a tradio do pensamento social que o Conselho Latino-Americano de Cincias Sociais e a Associao Latino-Americana de Sociologia historicamente subscreveram no so nem podem ser indiferentes aos efeitos do crculo vicioso que gera a interao entre pobreza e desigualdade na Amrica Latina. Com essa convico, da qual compartilhamos como cientistas sociais e como cidados comprometidos com nossas realidades, lanamos um processo de cooperao entre as duas talvez maiores e mais ativas redes de cientistas sociais da Amrica Latina e do Caribe destinado a compreender e expor a lgica, a dimenso e as mltiplas facetas do crculo vicioso desigualdade-pobreza que encerra o futuro das sociedades latino-americanas. Este livro o primeiro resultado da colaborao entre dois grupos de trabalho da ALAS (GT 19, Reestruturao Produtiva, Trabalho e Dominao Social, e GT 9, Desigualdade, Vulnerabilidade e Excluso Social) e o Programa CLACSO-CROP, do Comparative Research Programme on Poverty (CROP), vinculado ao Conselho Internacional de Cincias Sociais (ISSC). A cooperao entre essas instituies surgiu a partir da identificao da conjuno entre pobreza e desigualdade como o principal problema que a sociedade latino-americana enfrenta na atual conjuntura histrica. Nas primeiras trocas de idias entre ambas as comunidades acad8

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micas, tambm ficou claro, em seguida, que a compreenso dos dois fenmenos individualmente e em suas mltiplas interaes recprocas constitua um passo fundamental para se dar mais visibilidade questo, contribuindo assim para promover os debates e consensos necessrios para implementar as polticas econmicas e sociais que possibilitassem superar o crculo vicioso da reproduo conjunta de pobreza e desigualdade. Partimos desse propsito inicial e do diagnstico de que grande parte dos estudos sobre esses tpicos esteve concentrada em questes relacionadas medio da pobreza e da desigualdade, assim como na discusso sobre polticas (planos, programas, experincias, etc.) destinadas a reduzir seu impacto nas sociedades latino-americanas. Na seqncia, consideramos oportuno voltar a enfatizar as questes conceituais afeitas origem e perpetuao desses fenmenos. Em outras palavras, decidimos pr em primeiro plano da discusso as questes relativas construo, produo e reproduo da pobreza e da desigualdade. A iniciativa comeou a evoluir com a organizao de uma mesaredonda sobre Trabalho, produo de pobreza e desigualdade na Amrica Latina e no Caribe, no contexto do XXV Congresso da ALAS, ocorrido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no ano de 2005. A continuao deu-se com uma oficina e uma apresentao pblica organizada no Instituto de Investigaes Gino Germani, da Faculdade de Cincias Sociais, Universidade de Buenos Aires. Os autores participantes da srie de encontros que desembocou neste livro concordam, alm disso, que, durante as ltimas dcadas, conceitos como pobreza e desigualdade foram adquirindo novos significados na realidade latino-americana. Em frente a essa circunstncia, podem os cientistas sociais utilizar acriticamente esses conceitos? Tanto os eventos mencionados acima, como os textos resultantes, pretendem revitalizar um debate que d respostas a essas e outras interrogaes relacionadas com o impacto conjunto da pobreza e da desigualdade latino-americanas e dos possveis caminhos para sua eliminao. Pretendem tambm questionar alguns dos termos em que ambos so tratados em muitos crculos de conhecimento e poder, tentando apresentar uma perspectiva que supere a pretensa neutralidade cientfica implcita nas descries e explicaes causais das correntes do pensamento que habitualmente chegam s primeiras pginas das publicaes e do processo de tomada de decises. Dessa perspectiva, situa-se em primeiro plano a noo de construo ou produo/reproduo de pobreza e desigualdade. Essa noo9

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alude ao fato de que a produo da pobreza um fenmeno complexo em que interagem diferentes processos (econmicos, sociais, polticos, culturais e tnicos), que podem ser analisados em longa, mdia e curta duraes. Esse fenmeno visualizado como fruto da interao entre estruturas e agentes concretos que produzem e reproduzem, em diferentes nveis, as condies que geram e multiplicam a pobreza e a desigualdade. O conceito de construo social da pobreza e da desigualdade requer ento uma anlise em termos de complexidade terica, ao mesmo tempo em que exige identificar, com a maior clareza possvel, os processos e polticas concretas, assim como os criadores, executores e responsveis pelas situaes sociais de extrema desigualdade e pobreza que afetam a regio. Nesse contexto, os conceitos de trabalho e de produo situam-se como temas centrais que permitem pr em primeiro plano suas estreitas vinculaes com as persistentes condies de desigualdade e pobreza na regio. O trabalho normalmente considerado como uma fonte regular de renda cuja magnitude essencial para determinar os nveis de pobreza e desigualdade. , tambm, um eixo fundamental das integraes social e poltica e se constitui em um dos fatores essenciais quando se examinam as condies de produo e reproduo da pobreza e da desigualdade nos diferentes perodos da evoluo do capitalismo na Amrica Latina. Em segmentos desta obra, enfatiza-se a fragilidade social a que esto expostos os pases da regio, onde quase a metade da populao est na pobreza ou no limite de cair nessa situao. Mais ainda, a experincia histrica mostra que esse limite ou fronteira facilmente ultrapassvel, tal como o demonstrou, em princpios deste sculo, uma das sociedades relativamente mais desenvolvidas da regio, quando vrios milhes de argentinos considerados de classe mdia passaram em pouco tempo para a pobreza. Uma crise econmica, fruto da ao concreta de agentes econmicos e polticos facilmente identificveis, transformou, rapidamente, um pas que alcanara dcadas atrs uma qualidade de vida mpar no continente sul-americano. Em um espao social alterado, mais da metade da populao caiu na pobreza, com nveis de desigualdade que no podem ser tolerados sem se alterar a prpria noo de democracia. Nas ltimas dcadas, mesmo os mais otimistas foram obrigados a reconhecer que, no mundo todo, a pobreza no s perdurou, como se reproduziu em termos alarmantes. A necessidade de reduzi-la consensual, mas as aes concretas nesse sentido esbarram em grandes dificuldades, a comear pela ausncia de uma teoria explicativa sobre as mltiplas causas10

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do fenmeno. O dficit explicativo afeta as formas de mobilizao dos agentes, a implementao de polticas pblicas e a elaborao de projetos alternativos. O texto que abre este livro destaca a importncia desse dficit terico-metodolgico e a necessidade de se construrem outras perspectivas que integrem mltiplos nveis de anlise. Alberto D. Cimadamore prope um modelo terico bsico que articula estruturas e agentes sob o enfoque interdisciplinar das Cincias Sociais para tentar explicar causas e conseqncias da produo e reproduo da pobreza e da desigualdade. O modelo testado a partir de trs estudos especficos (produo de castanha na Bolvia, de soja no Paraguai e de abacate no Mxico). O exerccio comprova as responsabilidades do Estado e dos seus agentes: por um lado, destacando sua inoperncia, e, por outro, seu potencial na soluo dos problemas. Os resultados evidenciam as possibilidades de generalizao do modelo e de realizao de estudos comparativos que permitiro aperfeioar ainda mais a capacidade explicativa do enfoque integrado proposto. Os temas eruditos da Filosofia Poltica sobre justia, igualdade, pacto social, razo e direitos universais so retomados por Susana Murillo, para analisar as estratgias discursivas que buscam legitimar as prticas do capitalismo contemporneo. Conceitos e definies no so inocentes e menos ainda correspondem a categorias auto-evidentes. No que concerne pobreza e desigualdade, a ofensiva liberal vale-se de duas estratgias discursivas: a primeira, naturalizando as diferenas, ao apresent-las como ontolgicas, e a segunda, substituindo o paradigma clssico, ao destituir o coletivo, as estruturas e o Estado de sua importncia, os quais passam a ser subordinados pelo individual e pelas aes pseudo-autnomas. Ao mercado, atribudo o papel de grande ordenador, e a razo e os direitos sociais e universais cedem lugar fora e ao pragmatismo utilitarista. Murillo localiza essa estratgia discursiva nos documentos do Banco Mundial que orientam as aes concretas em curso na Amrica Latina e no Caribe, aes essas que perpetuam e reproduzem a injustia e a desigualdade. Entretanto, dialeticamente, as tentativas de se criar uma subjetividade subserviente e de se empoderarem os pobres em moldes capitalistas encontram resistncias coletivas, e a rebeldia social continua criando novos espaos de confrontao. Como analisa Sonia Alvarez Leguizamn em seu artigo, as explicaes sobre as causas e a persistncia da pobreza na Amrica Latina esto11

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associadas aos embates polticos que definem a identidade do continente. De um lado, h as produes intelectuais identificadas com o poder: explicaes biologistas, neomalthusianas, culturalistas, keynesianas e, mais recentemente, neoliberais. De outro, est o pensamento social crtico formulado por autores que so identificados com as causas nacionais e populares e que reconhecem na dependncia, no imperialismo, na corrupo e no entreguismo dos setores dominantes locais os elementos estruturantes e reprodutores da pobreza. Alvarez Leguizamn realiza uma sntese da histria desse permanente embate terico que tem desdobramentos concretos em termos de polticas pblicas e de aes empresariais, mas, tambm, relativamente a buscas de alternativas e a resistncias populares. Identificada com a corrente terica neo-institucionalista, Laura Mota Diaz centra sua anlise do processo de produo e reproduo da pobreza na Amrica Latina na figura do Estado. Instituio decisiva, o Estado , desde os primrdios da colonizao, capturado por interesses minoritrios. Ao longo dos sculos XIX e XX, os processos mudaram formalmente, mas, na sua essncia, o Estado continua como elemento central, assegurando condies especficas de apropriao e distribuio dos ativos, a ponto de, em determinadas situaes nacionais, no lugar de captura, poder-se falar de seqestro do Estado por segmentos econmicos. Mesmo quando se observa um importante esvaziamento de suas funes em benefcio da regulao por agncias e empresas multinacionais, como neste incio do sculo XXI, o Estado continua sendo o elemento-chave na manuteno clientelista de privilgios e, conseqentemente, na distribuio injusta da riqueza social. Tambm centrados nas prticas governamentais, Alberto Bialakowsky e sua equipe analisam dimenses terrveis do processo contemporneo de extino das populaes vulnerveis. Durante certo tempo, o sistema capitalista pretendeu normalizar a sociedade sob um modelo pretensamente racional: subordinao e controle da fora de trabalho, manuteno de um exrcito industrial de reserva, para exercer presso sobre os integrados ao sistema, e uma franja de excludos, os inteis para o mundo, mantidos nos limites da sobrevivncia. A partir do exemplo argentino, esses pesquisadores sustentam a existncia de prticas governamentais que produzem um continuum de subordinao-excluso-extino. Nesses termos, no existem mais contornos ntidos entre os incorporados ao sistema (normalizados) e os demais (exrcito industrial de reserva e populao excedente, os subnormalizados). Guetificao, criminalizao12

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e gesto punitiva e fragilizao dos corpos fazem parte da normalidade do sculo XXI. Pobreza, excluso e extino de determinadas populaes no so fenmenos localizados, mas compem um processo social de trgicas conseqncias. O artigo de Mrcio Pochmann e Ricardo Antunes analisa o processo recente de desconstruo do trabalho. Em menos de trs dcadas, a mundializao, a reestruturao produtiva e a aplicao dos princpios neoliberais a polticas pblicas e desregulao do mercado alteraram profundamente as caractersticas e a dinmica do mercado de trabalho. Mesmo quando atingia volumes expressivos, o desemprego era considerado uma varivel de ajuste do sistema. Agora, ele estrutural e aparece como horizonte inelutvel para um nmero importante de trabalhadores. Ainda que autores tomem como exemplo apenas o caso brasileiro, o significado do processo praticamente o mesmo em toda a Amrica Latina. A flexibilizao (dos salrios, dos horrios, dos contratos e das funes) traduz-se em perdas de direitos que haviam sido duramente conquistados nos perodos anteriores e resulta no empobrecimento. O trabalho aparece, assim, como um componente fundamental do processo de produo da pobreza e da desigualdade. O ltimo artigo apresenta uma anlise distinta das anteriores. Reconhecendo a importncia dos estudos sobre a pobreza, Antonio D. Cattani sustenta a tese de que necessrio recuperar-se a dimenso relacional entre o plo pobreza e o plo riqueza. A brecha social vem aumentando como resultado de processos convencionais de extrao de mais-valia, mas, tambm, como conseqncia de estratgias empresariais tornadas possveis pela desmedida na concentrao de renda. Dada a correlao de foras desfavorvel aos trabalhadores e aos setores populares, as classes abastadas valem-se de mltiplos expedientes para ampliar seu poder e sua riqueza. A riqueza substantiva garante privilgios e impunidade, bem como assegura transferncias permanentes de recursos da massa trabalhadora para segmentos cada vez mais restritos que permanecem estrategicamente escondidos do olhar crtico das Cincias Sociais. A busca de solues para o problema da pobreza e da desigualdade que atinge todo o continente latino-americano um imenso desafio. O objetivo desta obra colocar em lugar de alta visibilidade processos e agentes responsveis, afirmando a necessidade de se romper com o crculo vicioso que retroalimenta a pobreza com a desigualdade, consolidando-as no tempo. Identificando-se a natureza dos processos em curso, os13

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perpetradores e suas vtimas, descartam-se solues messinicas, as afrontas democracia, os remendos filantrpicos e as aes empresariais e governamentais que, sob a lgica do mercado concorrencial, produzem e reproduzem mais pobreza e desigualdades.

Buenos Aires e Porto Alegre, junho de 2007

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Alberto D. Cimadamore*

AS POLTICAS DE PRODUO DE POBREZA: CONSTRUINDO ENFOQUES TERICOS INTEGRADOS

INTRODUO

A pobreza tem estado presente na histria da humanidade sob diferentes formas e intensidades, produzindo diversos efeitos sobre o conjunto da sociedade. Os ltimos anos do sculo XX e os primeiros do sculo XXI mostraram haver um crescente consenso pelo menos retrico sobre a necessidade de reduzi-la, e chegou-se, inclusive, a falar em elimin-la (Organizacin..., 1995). Isso possvel? Certamente, possvel reduzir os nveis de pobreza e eliminar suas expresses extremas. Existem recursos materiais para tanto, assim como um consenso em nvel discursivo por parte de governos, organizaes internacionais e diversos grupos sociais e econmicos (Dean; Cimadamore et al., 2005). No entanto, isso no est acontecendo. Estratgias e polticas de reduo da pobreza so implementadas com mais ou menos xito em diversas partes do mundo, mas os nveis de pobreza continuam sendo alarmantes, e existem srias dvidas sobre se alcanarem os modestos objetivos do Milnio,1 pelo menos na Amrica Latina.* Doutor em Relaes Internacionais, University of Southern California, Los Angeles, EUA. Professor Titular de Teoria das Relaes Internacionais, Universidade de Buenos Aires (UBA), e Pesquisador do Conselho Nacional de Investigaes Cientficas e Tecnolgicas (CONICET), Argentina. 1 Os oito objetivos de desenvolvimento do Milnio abrangem desde a reduo da pobreza extrema metade at a deteno da propagao do HIV/AIDS e a realizao do ensino bsico universal para o ano 2015. Tais objetivos fazem parte de um plano acertado por todas as naes do mundo e todas as instituies de desenvolvimento mais importantes em nvel mundial. Ver: http/www.un.org/spanish/millenniumgoals/15

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Se for logicamente possvel reduzir-se substancialmente (seno eliminar) a pobreza extrema, se existem os recursos para faz-lo, se se fizeram declaraes e assinaram-se compromissos, por que isso no acontece? Indubitavelmente, as Cincias Sociais tm uma grande responsabilidade em tratar de responder a essa pergunta. Grande parte das respostas de especialistas, acadmicos e governos fixa-se nas deficincias das polticas e programas de reduo da pobreza. A discusso e a anlise tendem a se concentrar nos projetos, alcances, implementao, contextos sociais e demais aspectos relacionados com a ao governamental e das organizaes sociais que buscam mitigar os efeitos da pobreza. Suas referncias situam-se, habitualmente, em nveis de anlises nacionais e locais, salientando, em muitos casos, o papel discursivo e efetivo de organizaes internacionais que trabalham no tema da reduo da pobreza. Alm de estudos ou anlises que incorporam espordica e assistematicamente a dimenso internacional, possvel argumentar-se que as Relaes Internacionais como disciplina cientfica no incluem, em suas correntes principais de pesquisa e produo terica, a problemtica da pobreza. Durante a dcada de 1990, parece no haver mudado muito essa situao, pois, conforme sustentam Durfee e Rosenau (1996), as correntes principais da teoria das Relaes Internacionais no levam em conta esse tema. A idia principal que se desenvolve neste trabalho parte do diagnstico oportunamente difundido por esses autores e sustenta, em primeiro lugar, que, sem uma teoria que envolva os nveis de anlise internacional, nacional e subnacional, no possvel encontrarem-se as razes da permanncia da pobreza ao longo da histria da humanidade. De igual modo, sugere que, sem se lanar luz sobre as condies que geram ou produzem a pobreza em distintas escalas e nveis de maneira complementar e integral com a pesquisa que enfoque sua reduo , no ser possvel encontrarem-se explicaes satisfatrias para tal permanncia (Cimadamore, 2005). Essas duas questes cognitivas so, alm disso, condies necessrias para se avanar rumo a um vnculo efetivo entre cincia e poltica com a finalidade de reduzir a pobreza e erradicar suas formas extremas. Este trabalho prope as bases para se desenvolver um modelo terico que possa contribuir para descobrir e explicar situaes de produo de pobreza em diversos contextos histricos e geogrficos facilitando, alm disso, os estudos comparados a partir de uma perspectiva que abrange os principais nveis de anlise utilizados na disciplina das Relaes In16

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ternacionais. O modelo terico que se esboa tenta integrar alguns dos conceitos mais relevantes das Cincias Sociais (Estado, mercado e sistema internacional, assim como os agentes que operam nessas estruturas em nveis local, nacional, regional ou internacional), para identificar as condies que levam tanto produo de pobreza como sua eventual reduo ou eliminao.

CINCIA E URGNCIASA existncia de nveis eticamente intolerveis de pobreza em grande parte do nosso mundo um convite irrecusvel s Cincias Sociais para explicarem ou aumentarem o entendimento acerca de por que resultou historicamente impossvel reduzi-la ou eliminar suas expresses extremas, apesar de existirem recursos para faz-lo. Nesse sentido, um objetivo especfico seria o de iluminar os processos paralelos de produo/ reproduo e reduo da pobreza, como passo prvio ao de dirigir as energias e recursos sociais de maneira mais efetiva. H poucas dvidas, no mundo da cincia, de que o conhecimento terico seja essencial para se caminhar em tal direo. No entanto, h ainda muitos cticos no mundo da poltica e da sociedade particularmente nas reas em que se tomam decises sobre a relevncia que possam ter as idias e as teorias em questes to materiais como a pobreza, de modo que preferem privilegiar a ao. No se trata aqui de aprofundar o debate sobre esse tema to importante, mas talvez baste lembrar que alguns dos conceitos mais utilizados no momento de se falar sobre produo/reproduo de pobreza, desigualdade e excluso, tanto no debate acadmico como na discusso poltica, sejam precisamente os de Estado, mercado e sistema internacional. Qualquer pessoa que reflita sobre o tema que nos ocupa e preocupa aqui estaria, em princpio, de acordo em assumir que esses trs conceitos so muito relevantes para se descreverem e explicarem as condies que favorecem a produo e a manuteno da pobreza, a desigualdade e a excluso social (como seu reverso, a reduo e/ou eventual erradicao). Inumerveis estudos empricos derivados dessas noes tericas contribuiriam como de fato ocorre para se reafirmarem diversas hipteses derivadas daquela afirmao. No entanto, algum viu algum desses conceitos no mundo real? Claro que no. Eles no podem ser vistos17

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nem tocados porque so imateriais. So idias, construes mentais que usamos para compreender alguns aspectos fundamentais das relaes polticas, sociais, econmicas e internacionais. No obstante, os entendimentos, julgamentos e preconceitos que se tenham acerca dessas idias e construes intelectuais condicionam a ao (e a omisso) dos agentes sociais e polticos que, dia-a-dia, lutam com ou contra a pobreza (produzindo ou reduzindo-a). Naturalmente, tais ajuizamentos afetam o discurso, a compreenso e a transmisso de idias e conhecimentos para se configurar o nexo entre cincia e poltica. O programa CLACSO-CROP de Estudos sobre Pobreza na Amrica Latina e no Caribe estimulou e apoiou a realizao e difuso de pesquisas originais sobre temas considerados cruciais para se pensarem as condies de produo e alvio da pobreza, a partir de contribuies internacionais em que se tentou privilegiar uma perspectiva comparada. Os trs casos de estudo examinados mais adiante surgiram nesse contexto. Os resultados alcanados at o momento por essa ambiciosa iniciativa foram heterogneos. Por um lado, avanou o fortalecimento das bases para se conformar uma rede internacional de pesquisadores de temas relativos pobreza, ao se facilitar a dedicao pesquisa e a interao em espaos reais ou virtuais. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se est tentando abrir novos caminhos para o pensamento na problemtica especfica da pobreza na regio, observa-se uma significativa disperso das temticas, metodologias e enfoques tericos utilizados em investigaes sobre a pobreza. Um grande nmero dessas pesquisas constitui estudos de casos focalizados em distintos nveis de anlises principalmente nacionais e/ou subnacionais , cujos achados so de complexa comparao entre si, o que naturalmente dificulta o processo de acumulao de conhecimento sobre as condies de produo e/ou reproduo da pobreza. Essas dificuldades originam-se tanto do tipo de mtodo privilegiado (isto , estudo de casos), como de diversas questes metodolgicas e tericas relacionadas aos problemas clssicos de definio de variveis e de falta de homogeneidade na utilizao de conceitos. Tambm se observa que muitos desses estudos esto focalizados em questes muito especficas, o que dificulta um olhar mais geral sobre a problemtica da pobreza, isto , a criao de uma teoria empiricamente baseada nas causas e condies de produo e reproduo do fenmeno. Em alguns casos, poderia se falar da existncia de uma ambio interpretativa que tenta transcender os casos especficos. No entanto, as limitaes empricas ou tericas que os estudos18

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de caso tm intrinsecamente impedem traduzir essas ambies em generalizaes vlidas para diferentes contextos geogrficos. Uma agenda desse tipo, de longo alcance, permitiria um incremento substancial na qualidade e quantidade do conhecimento sobre o tema que, por sua vez, seria indispensvel para se desenvolver uma estratgia efetiva de reduo e eliminao da pobreza em suas diferentes manifestaes. Os problemas concernentes ao uso das principais categorias e conceitos algo que indubitavelmente est relacionado com o dficit tericometodolgico antes apontado no afetam somente a qualidade da produo cientfica, como tambm transcendem essas esferas e tm impacto sobre a visualizao do problema de uma perspectiva normativa ou de polticas. Um exemplo significativo a falta de consenso nos estudos sobre pobreza acerca da entidade e traos gerais de um conceito central para o pensamento poltico e social dos ltimos trs sculos: o Estado. possvel observar, tanto em trabalhos acadmicos como em discursos sobre o tema da pobreza, que se utilizam indistintamente os termos governo e Estado, sem discernir apropriadamente entre a agncia e a estrutura, omitindo-se o evidente fato de que, enquanto um tem uma entidade fsica, o outro uma construo intelectual. Similarmente, em alguns casos, se fala da sociedade civil como oposta ao Estado, sem se levar em conta que, numa acepo clssica, o Estado inclui a sociedade como um de seus componentes, junto com a ordem jurdico-constitucional, o territrio e o governo. Essas confuses lamentavelmente debilitam os achados ou as concluses dos estudos ou vises que as promovem. Naturalmente, tambm levam a posies normativas ou a visualizaes de polticas que partem de uma percepo errnea do problema do papel do Estado/governo/sociedade na produo ou alvio da pobreza (Cimadamore, 2003). Uma aproximao superficial do que poderia ser o estado-da-arte na rea de estudos da pobreza (algo que, por ora, no temos, embora esteja se tentando construir) provavelmente revelaria que grande parte dos debates centrais sobre o tema est mais concentrada em questes relacionadas com a medio da pobreza certamente relevante de qualquer ponto de vista ou em manifestaes particulares da pobreza em tempo e espaos limitados. Essa concentrao em questes quantitativas ou particulares da pobreza permite uma atribuio de recursos de investigao que tende a desfavorecer o tratamento de pontos substantivos mais gerais, que potencialmente possam contribuir para descrever e explicar a complexidade das situaes que levam a sua produo ou sua reduo em diferentes nveis de anlise.19

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Em outras palavras, poderia se dizer que com risco de cair numa excessiva generalizao no se observam tentativas sistemticas de construir enfoques tericos na rea de estudos sobre pobreza que contribuam para explic-la e da derivar solues em diversos contextos espaciais e temporais. Algo similar acontece com os enfoques centrados na produo da pobreza. Essa uma importante brecha a ser enfrentada pelas Cincias Sociais, em geral e em particular, por todos aqueles interessados em que as pesquisas sobre pobreza tenham um impacto no mundo real.

O HORIZONTE DESEJVELEm face do exposto na seo anterior, a busca por um enfoque terico que integre diversas perspectivas disciplinares das Cincias Sociais e cruze transversalmente distintos nveis de anlise (local, nacional, regional e internacional) torna-se um objetivo central, tanto para os acadmicos como para as instituies que demandam, realizam ou apiam pesquisas sobre pobreza. Uma abordagem integrada que se proponha a cobrir o dficit antes apontado teria ento que se assentar sobre algumas pautas bsicas. Em primeiro lugar, seria necessrio estimular a construo de teorias (ou simplificaes delas, isto , modelos) que, ao mesmo tempo em que tendessem a descrever melhor o universo de estudo complexo por definio , proporcionassem alguma clareza quanto ao uso dos principais conceitos, nveis de anlise e carncias terico-metodolgicas envolvidas na problemtica da pobreza. Esse primeiro passo contribuiria para melhor se especificarem as variveis normalmente utilizadas nesses estudos, para poder-se, a seguir, avanar no tocante a suas possveis relaes causais. Esta etapa, por sua vez, tenderia a favorecer, ou pelo menos possibilitar, a realizao de estudos comparativos, o que indispensvel para se conhecerem as condies de produo, reduo ou eliminao da pobreza nos diferentes contextos. O debate metodolgico necessariamente vinculado ao terico deveria ento apontar para a produo de pesquisas e reflexes comparativas que reduzissem a vulnerabilidade prpria dos estudos de caso e permitissem incrementar os graus de generalizaes dos achados e concluses. Neste ponto, seria necessrio ter-se especial cuidado com os problemas derivados dos nveis de anlise e das interaes das variveis situadas em distintos planos, pois o entendimento da pobreza no mundo contemporneo requer um exa20

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me meticuloso da interao de fatores ou variveis que operam em situaes locais, estaduais, nacionais, regionais e internacionais.

PARA UM ENFOQUE INTEGRADOA construo de um enfoque ou modelo integrado como o que se prope aqui no implica, sob nenhum ponto de vista, a construo de uma s teoria que descreva e explique a problemtica, nem a adoo de um s mtodo que, por definio, seja o mais apropriado para a rea de estudos de pobreza. A idia apenas apontar-se, inicialmente, para a integrao de alguns dos conceitos centrais que operam nos principais nveis de anlise e que so, a priori, relevantes para se descobrirem as condies que levam tanto produo de pobreza como a sua eliminao. Existem poucas dvidas de que os conceitos de Estado, mercado e sistema internacional sejam centrais e transcendam diferentes nveis de anlise, ao mesmo tempo em que faam parte importante de qualquer explicao razovel acerca dos principais temas contidos na agenda atual de estudos sobre a pobreza. No seria muito arriscado apostar-se que, na interao de variveis que operam dentro dessas trs estruturas que normalmente tm como protagonistas agentes claramente visveis , residem algumas das principais causas e condies que levam tanto produo e reproduo, como reduo ou eliminao da pobreza. No entanto, no conheo estudos que sistematicamente trabalhem, a partir de mltiplos nveis, uma perspectiva agente-estrutura (Wendt, 1987, 1999; Wight, 2006) e que tenham o potencial de ser integrados a uma agenda de investigao comparativa das polticas de produo de pobreza. Pode-se comear a discutir uma aproximao terico-metodolgica nos termos antes descritos a partir de uma simplificao de seus principais componentes e da construo de um modelo terico simples. Os elementos bsicos de tal modelo poderiam ser inicialmente aqueles relacionados no Quadro 1. A leitura mesmo rpida desse quadro que apresenta os principais agentes e estruturas com capacidade de explicar a existncia e produo de pobreza revela um fato significativo que, em minha opinio, constitui o eixo estruturante de qualquer teoria multinveis que pretenda dar conta desse fenmeno: o Estado a nica estrutura hierrquica que existe nesse21

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esquema. Este ltimo possui, ento, a capacidade para se opor s outras estruturas (mercado e estrutura internacional), as quais condicionam os agentes em diferentes nveis e caracterizam-se por princpios ordenadores anrquicos (que, por definio, assumem a existncia de um poder formal superior) que fomentam logicamente a produo de pobreza.2 O Estado como estrutura hierrquica em que existe formalmente o monoplio do uso legtimo da fora, uma ordem constitucional que estabelece funes diferenciadas para os agentes e um princpio de soberania com base territorial que tem capacidade para aplicar justia distributiva , teoricamente, a nica unidade que pode condicionar a influncia simultnea de agentes que operam sob a influncia de outras estruturas cujos princpios ordenadores so anrquicos (mercados e estrutura internacional). Sem o Estado, os agentes nacionais e internacionais que operem sob os estmulos dos mercados nacionais ou internacionais esto destinados a gerar pobreza. Isso acontece porque a combinao de estmulos que essas estruturas anrquicas oferecem (que premiam a maximizao de ganhos, a busca de controle monoplico dos mercados, a acumulao ilimitada de poder e lucro, entre muitos outros efeitos da concorrncia e socializao que promovem) ignora o objetivo de distribuio de renda, capacidades e direitos tendentes a limitar ou evitar a produo de pobreza. Novamente, conforme se pode inferir do modelo esboado, isso pode ser feito somente em presena de estruturas cujo princpio ordenador seja hierrquico (Estado) e sob regimes que efetivamente promovam uma justia distributiva que limite a lgica de acumulao do2 Um sistema composto basicamente por estruturas e agentes. Waltz (1988) afirma que os sistemas so compostos por estruturas e unidades (que, por sua vez, podem ser estruturas, como os Estados). Isso assim porque esse autor est pensando no sistema internacional, cujas unidades constitutivas so principalmente os Estados. Uma estrutura internacional uma noo caracterizada por um princpio ordenador (a anarquia definida como ausncia de um superior comum), unidades com funes similares (like units) e distribuio de capacidades entre as unidades (que permite posicion-las no sistema). Pensadas dessa forma, as estruturas so o componente sistmico que permite pensar-se o sistema como um todo. Embora Waltz proporcione as bases do debate estrutural na disciplina das Relaes Internacionais, existem outras definies de sistemas que incluem, alm das estruturas e unidades, outras noes dinmicas que se centram em processos e capacidades interativas no contempladas por aquele autor (ver, por exemplo, Buzan et al., 1993). Para este nvel inicial de desenvolvimento do modelo multinveis, preferimos partir de noes bsicas que depois possam ser tornadas complexas medida que se desenvolva a teoria representada por este modelo.22

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Quadro 1 Explicando a produo de pobreza: para um modelo terico de dois nveis3

3 Uma primeira aproximao com este modelo foi esboada em trabalho anterior, apresentado originalmente numa conferncia internacional da UNESCO realizada em Braslia (Cimadamore, 2003).23

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mercado capitalista.4 No entanto, necessrio sublinhar que, embora os Estados tenham histrica e logicamente capacidade para limitar ou eliminar a produo de pobreza (por exemplo, no caso da Noruega ou Sucia), fcil argumentar, para a Amrica Latina e outras partes do mundo, que so precisamente essas as estruturas que facilitam a produo de pobreza. Os estudos de casos que apresentamos mais adiante claramente fortalecem uma linha argumentativa neste ltimo sentido. Apesar dessa evidncia emprica (que sempre pode ser refutada por evidncia emprica em sentido contrrio), desde a linha argumentativa derivada da simplificao terica aqui esboada e dos argumentos expostos em outro trabalho anterior (Dean; Cimadamore; Siqueira, 2005), o Estado pode ser tanto a causa eficiente, como a soluo para a problemtica da produo de pobreza em distinta escala. Se ele um ou outro, depende da evidncia emprica que apresente um caso concreto. No entanto, de uma perspectiva terica, essa estrutura continua sendo a nica com capacidade de se opor aos efeitos produtores de pobreza de agentes atuando sob os estmulos de mercados nacionais e internacionais, carentes de regulamentaes baseadas em critrios distributivos e de eqidade (totalmente alheios a essas estruturas e seus princpios ordenadores). A leitura do modelo pe em evidncia os problemas e o desafio que a definio dos principais traos que identificam cada um desses conceitos apresenta, normalmente carregados de significados em funo das teorias e ideologias de quem os enunciam. A multiplicidade de definies to inevitvel como a impossibilidade de se resolver esse debate num trabalho como este. No entanto, concebvel conseguir alguns acordos bsicos sobre os traos ou caractersticas fundamentais de cada conceito, por exemplo, partindo de seu reconhecimento como agente ou estrutura e o nvel de anlise em que operem ou influenciem. As dificuldades a serem superadas so certamente significativas. Os problemas para se identificarem os denominadores comuns do conceito de Estado so evidentes em diversas disciplinas das Cincias Sociais. Eles esto ainda, de certo modo, relacionados variedade de correntes filosficas, ideolgicas e tericas que competem para explicar ou interpelar as relaes de poder numa sociedade.

4 Embora historicamente existam mercados no-capitalistas, neste trabalho utilizamos a noo de mercado no contexto do modo de produo e acumulao capitalistas.24

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Essas dificuldades podem ser observadas inclusive em textos bsicos, sendo ressaltadas por Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998) ao argumentarem que os problemas de definio estariam vinculados dificuldade de analisar completamente as mltiplas relaes que foram se instaurando entre o Estado e o conjunto social para detectar depois os efeitos na racionalidade interna do sistema poltico. Essa viso baseia-se, em parte, numa interpretao centrada no estabelecimento dos direitos constitucionais fundamentais: a tutela das liberdades civis, os direitos sociais, a participao poltica e os problemas de distribuio da renda nacional. O exerccio de definir o Estado complica-se mais ainda quando se tenta incorporar as mudanas ocorridas a partir da segunda metade do sculo XIX, particularmente considerando-se que as vinculaes entre o Estado e a sociedade civil haviam terminado por alterar a forma jurdica do Estado, os procedimentos de legitimao e a estrutura da administrao. Ao tentar definir o que se considera como a estrutura do Estado de direito, ele apresentado como um conjunto de estruturas, a saber: (i) estrutura formal do sistema jurdico, entendida como uma garantia das liberdades fundamentais por meio da lei geral abstrata aplicada por juzes independentes; (ii) estrutura material do sistema jurdico, entendida como liberdade de concorrncia num mercado onde se reconhece o direito da propriedade individual; (iii) estrutura social do sistema jurdico, centrada na questo social e nas polticas reformistas de integrao da classe trabalhadora; e (iv) estrutura poltica do sistema jurdico, basicamente centrada na separao e distribuio do poder (Bobbio et al., 1988). Esse tipo de definies centra-se nas dimenses jurdicas constitucionais do Estado, levando obviamente em conta os aspectos sociais que no podem ser esquecidos em qualquer conceituao dessa estrutura. No entanto, no se centra nas relaes cruciais de outros elementos presentes na noo do Estado moderno: um material (territrio) e outro imaterial (soberania), que interagem para gerar a noo de territorialidade exclusiva e excludente, a qual nutriu o conflito e a mudana nas relaes internacionais modernas e contemporneas. Sem isso, no possvel entenderem-se as noes moderna e contempornea do sistema internacional ou sequer delas se aproximar. Os governos so os agentes do Estado que exercem o poder derivado de formas histricas de governo (democrtico, autoritrio, etc.) e de Estado (federal, unitrio, etc.). Isso quer dizer que esto indissoluvelmente ligados em termos de estrutura social-agente em que se configuram relaes sociais de poder e dominao, que estabelecem parmetros de dominao poltica e25

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acumulao econmica que se projetam a nveis subnacionais, nacionais e internacionais. Essas relaes sociais e polticas realizam-se em contextos estruturados, cuja influncia geralmente se expressa por intermdio de agentes econmicos e governamentais, e so as que tendem a produzir ou reduzir a pobreza, com diversos nveis de intensidade, dependendo das condies especficas dos diferentes contextos histricos. No entanto, destacados expoentes das Cincias Polticas com correlatos no restante das Cincias Sociais no pem em primeiro lugar a natureza interativa das relaes agente-estrutura ao definir, por exemplo, os governos como o conjunto das pessoas que exercem o poder poltico, ou seja, que determinam a orientao poltica de certa sociedade (Bobbio et al., 1998). Apenas ao avanar para a segunda acepo do termo governo, que se apega mais realidade do Estado moderno que no se centra somente no conjunto das pessoas que detm o poder de governo, mas no conjunto de rgos a que institucionalmente lhes est confiado o exerccio do poder , especifica-se que o governo constitui um aspecto do Estado (Bobbio et al., 1998), embora sem destacar a complexidade das interaes dessa estrutura com outras e com agentes que atuem em diferentes nveis de anlise. Esse rpido e incompleto exerccio de examinar criticamente definies como passo prvio a uma reconstruo conceitual de acordo com o modelo terico tem somente o propsito de mostrar a complexidade do exerccio de projeto de modelos teis para entender e explicar a produo de pobreza de maneira comparativa, para avanar assim rumo a generalizaes empricas e avalizadas teoricamente. Esse exerccio dever, em seu momento, abarcar cada um dos conceitos includos no modelo, para poder servir de marco de referncia a estudos de caso e comparados cujas concluses tenham possibilidades de generalizao. O modelo que se apresenta aqui como todo modelo uma simplificao de uma possvel aproximao terica com a problemtica da pobreza, que abrange distintos nveis de anlise. O propsito de sua apresentao muito simples: favorecer um debate crtico para contribuir para diminuir o dficit apontado acima. A tarefa que segue implica, entre outras coisas, definir os principais conceitos, pensar os modos como interagem para gerar ou mitigar a pobreza e apresent-los em forma de hipteses que possam fazer parte de uma agenda de pesquisa comparativa. As provveis hipteses vinculariam logicamente a produo de pobreza (e eventualmente o seu reverso, a reduo da pobreza) como varivel depen26

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dente da ao de agentes concretos que atuam condicionados por estruturas histricas e tm capacidade de se constituir em variveis independentes. Naturalmente, isso apenas uma primeira aproximao, que pode ser superada a partir de diferentes olhares crticos que resgatem outros conceitos e posies terico-metodolgicas. O que se quer ressaltar nesta proposta a importncia que se atribui explicao do contnuo produo-reduo de pobreza na ao de agentes estruturalmente condicionados por variveis que se situam em distintos nveis de anlise.

PRODUO DE POBREZA E EVIDNCIA EMPRICAA complexidade das relaes entre pobreza e trabalho, exploradas a partir da identificao das condies de produo e reproduo da pobreza, foi o objeto central de discusso no seminrio que o Programa CLACSOCROP organizou em 2004, em colaborao com o CEDLA em Santa Cruz de la Sierra, Bolvia. Vrios estudos de casos apresentados naquela ocasio que depois foram compilados num livro do CLACSO trataram de descrever e explicar situaes em que se enfatizavam os processos produtores e reprodutores de pobreza (Alvarez Leguizamn, 2005). Trs desses trabalhos examinam processos que ilustram a gerao de pobreza em diferentes pases da Amrica Latina (Bolvia, Paraguai e Mxico), proporcionando uma valiosa contribuio emprica para a compreenso desses fenmenos mediante o uso de estudos de casos. A seguir, apresentam-se alguns dos principais achados desses estudos, tratando de respeitar, na medida do possvel, as categorias, conceitos e estrutura da exposio que os respectivos autores adotaram em sua obra. Essa apresentao feita com um propsito duplo: (i) ressaltar o valor intrnseco dessas contribuies, que apresentam um enfoque original e empiricamente fundado, concentrando-se na gerao e produo de pobreza (transcendendo assim as aproximaes mais habituais para a reduo da pobreza), e que, de alguma maneira, consideram a influncia de estruturas e agentes atuantes em nveis subnacional, nacional e internacional; e (ii) refletir sobre o potencial inaproveitado dessas mesmas pesquisas, por no estarem estruturadas num enfoque terico-metodolgico que permita a comparao dessas experincias, e tirar concluses generalizveis, trazendo-se assim uma contribuio para a cincia que sirva para orientar polticas de reduo da pobreza e eliminao de suas formas extremas.27

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CASTANHA E PRODUO DE POBREZA NA BOLVIAO primeiro dos trs estudos de caso que se apresentam a seguir foi desenvolvido por Lourdes Montero (2005) e tem como objeto o processo de produo de castanha no Oriente boliviano. Essa atividade econmica concentra-se em Riberalta, um enclave que gera 90% da produo nacional com este rtulo e est incorporado ao mercado internacional de nozes por meio da exportao. Uma das idias centrais que Montero desenvolve em seu estudo de caso que a distribuio desigual da renda ao longo da cadeia produtiva, as formas de gesto da fora de trabalho e as condies laborais, sociais e polticas predominantes nessa regio da Bolvia estabelecem as bases de um processo ativo de gerao de pobreza. A autora argumenta que a distribuio de renda sem eqidade na cadeia de produo da castanha est intimamente relacionada s estruturas de poder nos elos da cadeia produtiva e no comrcio internacional. O mercado internacional de nozes caracteriza-se por uma oferta de diversos frutos substituveis entre si, o que permite operarem-se mecanismos de mercado que regulam seus preos relativos. A castanha amaznica, que se encontra nas florestas altas da Bolvia, Brasil e Peru, consegue abarcar apenas 2% desse mercado. A demanda do produto relativamente pequena, embora ele alcance um alto preo devido a sua escassez, e concentrouse, durante os ltimos anos, num reduzido grupo de pases desenvolvidos (Alemanha, Austrlia, Canad, Estados Unidos, Holanda e Inglaterra), que adquiriram quase 99% da oferta mundial. Os Estados Unidos concentraram 48% da demanda, seguidos pela Gr-Bretanha (30%) e Alemanha (9%) (Montero, 2005). As condies predominantes no mercado internacional desses produtos contribuem para estabelecer as bases da desigual apropriao do valor gerado pelo conjunto da cadeia da castanha amaznica: enquanto o comrcio internacional obtm trs quartas partes do valor gerado, a indstria nacional fica com a quarta restante. Os agentes internacionais beneficiados pelas condies de mercado so grandes empresas multinacionais de alimentos que controlam o mercado internacional de nozes e importam e distribuem a castanha para empresas processadoras locais ou realizam por si mesmas o processo de transformao. Cabe esclarecer que o processo de elaborao nesse elo da cadeia consiste apenas em condicionar, dar um rtulo e distribuir, aos comerciantes varejistas, um produto que comparado em grandes quantidades no mercado internacional.28

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Essas porcentagens mostram quem so os que ficam com a maior parte dos lucros de um produto que, em 2001, custava US$ 0,94 a libra (FOB) na Bolvia e era vendido no mercado norte-americano a US$ 4,24. Essas cifras sugerem que, se os produtores e exportadores bolivianos pudessem vender seu produto no destino final, poderiam incrementar substancialmente suas rendas. No entanto, o estudo conclui que isso no acontece, no por limitaes de capital ou iniciativa dos empresrios bolivianos, mas devido ao poder monoplico exercido pelas empresas transnacionais de alimentos no mercado mundial, o que lhes proporciona capacidade para boicotar qualquer uma dessas iniciativas (Montero, 2005).

Grfico 1 A cadeia de valor da castanha, 2001 (%)

Fonte: Montero (2005), com base em dados de preos em dlares norte-americanos (US$) por libra do produto.

A distribuio desequilibrada da renda em nvel internacional tem seu correlato em iniqidades geradas no interior do mercado local, onde as condies do mercado de trabalho contribuem para que as quebradoras de castanhas (mulheres em sua grande maioria) e outros trabalhadores29

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obtenham 2% e 1%, respectivamente, do preo varejista. Inexistncia de contratos de trabalho, jornadas no-sujeitas a horrios, pagamento por empreitada, subcontrataes, trabalho familiar no-remunerado e falta de controles estatais, entre outros fatores, contribuem para que se mantenha uma injusta distribuio das rendas que reproduz e gera ao mesmo tempo pobreza e iniqidade nos elos mais fracos da cadeia de produo da castanha. Comea a se delinear aqui claramente a forma pela qual o Estado boliviano convalida/permite/facilita a operao de agentes dominantes no mercado internacional que consolidam as tendncias produtoras e reprodutoras de pobreza nesse pas.

SOJA E PRODUO DE POBREZA NO PARAGUAIA pesquisa conduzida por Ramn Fogel (2005) foi direcionada a explicar a expanso da soja transgnica no Paraguai e seus efeitos sobre a produo da pobreza, fruto do desemprego, da concentrao de renda, da degradao ambiental e da corrupo que caracterizam esse fenmeno. Essa pesquisa adota um enfoque micro, em que o autor tenta identificar os indivduos que causam a expanso desse tipo de cultivo e dele se beneficiam, chamando-os de perpetradores de primeira e segunda linhas. Esses perpetradores atuariam no Paraguai com a proteo e promoo do Estado, que baseia sua estratgia de desenvolvimento num modelo agroexportador centrado na soja. Dessa maneira, Fogel desenvolve sua anlise baseando-se na noo de agentes que operam com base em estmulos estruturais, seja em nvel nacional (Estado e mercado paraguaio) ou internacional (mercado mundial da soja). Neste ltimo sentido, Fogel avana rumo a uma relao que condiciona os nveis de pobreza no Paraguai, ao afirmar que esse pas sulamericano depende em grande parte de sua produo agropecuria, j que mais de 90% de suas exportaes originam-se desse setor. Por sua vez, mais de 46% de sua populao esto abaixo da linha da pobreza, e cerca de 22% estariam em condies de pobreza extrema.6 Os grupos mais atingidos pelos altos nveis de pobreza como os causados pelo cultivo de soja transgnica so os indgenas, camponeses sem-terra e minifundirios, especialmente aqueles com famlias numerosas, chefia de famlia feminina e baixo nvel educativo. O desemprego aberto na rea urbana alcana 18% da populao economicamente ativa, e o total das pessoas com pro30

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blemas de emprego (relacionado com a quantidade do trabalho, o usufruto de direitos, etc.) supera um quinto da populao (Fogel, 2005). Em seu estudo, Fogel argumenta que a expanso da soja transgnica em regime de monocultura e associada a um pacote tecnolgico, que inclui o uso intensivo de dessecantes e outros biocidas, produziu uma expanso da fronteira agrcola at lugares onde nunca antes havia chegado. Essa combinao de fatores reestruturou as relaes sociais, econmicas e polticas do Paraguai, alterando as regras do sistema agrrio e suas instituies e estimulando a corrupo. O Estado parece no ter capacidade para intervir nessa rpida expanso do enclave exportador que, nas palavras do autor, limita marcantemente as possibilidades de desenvolvimento do mercado interno e aprofunda os nveis de pobreza por vrias vias, entre as quais se destacam: (i) a expropriao de terras camponesas a favor do capital que sustenta esse modelo; (ii) a expulso de populaes camponesas sem se gerarem fontes de ocupao produtiva para a mo-de-obra que fica disponvel; (iii) os danos real e potencial ao meio ambiente e biodiversidade; e (iv) o incremento da desigualdade social.6 A soja transgnica expandiu-se fortemente no Paraguai durante os ltimos anos. Em 2004, mais da metade da superfcie cultivada do pas foi dedicada soja. A outra face da moeda foi uma significativa e paralela queda nos principais produtos dos camponeses, que, no perodo agrcola 20022003, alcanaram menos da quinta parte do valor total da produo agrcola, em contraste com a soja, que alcanou 68% desse montante (Fogel, 2005). A expanso da soja transgnica e seus efeitos poltico-sociais tendem a se agravar medida que aumentam a produtividade e a taxa de lucro. proporo que se incrementam a produtividade e a inovao tecnolgica nesse segmento da produo agrcola, cria-se menos emprego e expulsa-se mais mo-de-obra desses campos. As taxas de lucro ampliamse, e consolida-se o papel no mercado dos produtores de soja transgnica e das corporaes transnacionais, que no tm apenas as patentes desses produtos, mas tambm contam com o apoio de organismos internacionais e dos Estados onde residem suas matrizes. As rendas extraordinrias que a6 Fogel (2005) considera que essas cifras surgem da aceitao das estimativas do Banco Mundial, que considera que o custo da cesta bsica de alimentos de um dlar norteamericano dirio per capita. No entanto, afirma que, no Paraguai, se estima essa linha em meio dlar norte-americano per capita e que, se a estimativa fosse feita com base nos critrios utilizados por outros pases da regio, essas cifras se veriam duplicadas (ver p. 436 e ss).31

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soja transgnica produz no Paraguai situam seus beneficirios entre os grupos dominantes da sociedade, o que facilita a obteno de polticas pblicas complacentes para seus interesses. Enfim, as concluses desta pesquisa apontam os agentes e as condies criadas pelo Estado e pelos mercados nacional e internacional como os principais contribuintes para a expanso da soja transgnica, com a conseqente produo de pobreza presente e futura no Paraguai. Muitas vezes, essa anlise feita num marco dentro do qual a distino e as influncias recprocas entre esta estrutura e seus agentes no ocupam o primeiro plano.

ABACATE E PRODUO DE POBREZA NO MXICOA pesquisa de Rosala Lpez Paniagua e Pablo Chauca Malsquez sustenta que o emprego precrio no mbito rural no Mxico est crescentemente vinculado (paradoxalmente?) a uma das atividades econmicas mais prsperas. Trata-se da agricultura de exportao praticada em reas como Michoacn, estado localizado no centro ocidental do pas e principal produtor nacional de abacate, cuja plantao de alto rendimento e competitividade, sendo seu fruto conhecido como o ouro verde (Lpez Paniagua; Chauca Malsques, 2005). Nessa atividade econmica, a maior parte da mo-de-obra empregada provm de diaristas que realizam a tarefa de coleta, vivendo em condies de pobreza, em virtude entre outros fatores da falta de organizao, da contratao de trabalho informal e da concentrao da terra. Esses elementos podem ser vistos como variveis independentes ou intervenientes no processo de produo de pobreza num estado como Michoacn, que se encontra acima da mdia nacional quanto concentrao da renda e com nvel de alta marginalizao social. Referindo-se a essa problemtica, a pesquisa de Lpez Paniagua e Chauca Malsquez apresenta-se em quatro seguimentos. No primeiro, os autores analisam a estrutura produtiva do abacate; no segundo, referemse s condies de trabalho dos coletores e suas condies de vida; no6 Nas reas rurais do Paraguai, o ndice de Gini, que mede a desigualdade, aumentou constantemente desde 1995, passando de 0,56 nessa data a 0,61 em 1997 e 0,66 em 1999 (Fogel, 2002; 2005).32

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terceiro, examinam as formas de interveno governamental e das organizaes sociais; e, no ltimo, tratam das implicaes dessa ambivalncia entre prosperidade e pobreza para o desenvolvimento local da zona em estudo. Dessa maneira, esboam um esquema que contempla a influncia tanto de agentes como de estruturas, embora sem articul-lo a um marco referencial integrado. A pesquisa avana com uma descrio detalhada das condies geradoras de pobreza, comeando por qualificar a importncia dessa atividade econmica em Michoacn. Nesse sentido, estima-se que a superfcie cultivada com abacateiros alcance, no Mxico, 96.000 hectares (has.), sendo que, dessa superfcie, cerca de 78.500 has. correspondem a 21 municpios de Michoacn. Tal magnitude o que faz com que Michoacn seja definida como a regio produtora de abacate mais importante do mundo. Por essa razo, os governos federal, estadual e municipal promovem esse modelo produtivo, sem reconhecer o impacto diferenciado e desequilibrado que exerce sobre a regio. Na cultura do abacate, a atividade que requer o maior volume de mo-de-obra a coleta da fruta, calculando-se que ela gere mais de 40.000 empregos permanentes e em torno de 60.000 postos sazonais ao ano em Michoacn. Na zona produtora de abacate desse estado, a populao de origem camponesa e/ou indgena que no tem terra, ou proprietria de moradias muito pequenas, contratada periodicamente (maio-julho) como coletora. Outro grupo de diaristas que se incorpora a este, conhecidos como migrantes ou diaristas andorinha, provm de diversas regies do estado, inclusive muito distantes. A contratao de um diarista passa por um agenciador, pessoa que est diretamente ligada aos proprietrios e/ou administradores dos pomares e que cobra uma cota do trabalhador para lhe conseguir o emprego. Com isso, se estabelecem relaes de tipo clientelista/paternalista, que condicionam o acesso a esse mercado de trabalho. A pesquisa de Lpez Paniagua e Chauca Malsquez aponta ainda que os coletores de abacate trabalham sob condies de grande desvantagem, porque no contam com contratos de trabalho formais e tampouco dispem de benefcios sociais, tais como dias de descanso semanal e ateno mdica, benefcios que um trabalhador sob condies formais recebe. Tambm no recebem um salrio como tal; o pagamento de diaristas calculado com base no nmero de caixas de aproximadamente 20 quilos que conseguem encher ao longo de um dia, e recebem-no semanalmente.33

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O fato de a produo de abacate caracterizada, como j se apontou, por ser um setor produtivo de alta rentabilidade e vinculado ao mercado norte-americano ocorrer sobre a base de condies de trabalho precrias leva a se supor que h uma transferncia de recursos desse setor social para os proprietrios dos pomares e, destes, por intermdio dos brokers, para o mercado agropecurio global. Na regio de Michoacn, uma proporo importante da populao rural encontra-se em situao de pobreza, j que, segundo os dados proporcionados pelos autores, alcana 28,1% dos habitantes, porcentagem que supera a estadual, de 25,4%. O nvel de infra-estrutura comunitria de hospitais e escolas baixssimo, h carncias significativas de moradia e de servios associados a ela e dficit na alimentao, especialmente da populao infantil, entre outras deficincias (Lpez Paniagua; Chauca Malsquez, 2005). Como se sugeriu mais acima, os autores apresentam uma correlao entre pobreza e produo agrcola de exportao. Ao tomarem quatro municpios com grande produo de abacate (Uruapan, Tanctaro, Peribn e Tacmbaro), observam que, em trs casos, a percentagem de pobreza respectiva (31,3%, 15,5%, 34,4% e 44,8%) supera consideravelmente a mdia de 28,1% calculada para os 21 municpios, assim como a estadual (25,4%). Quanto forma de interveno governamental, argumentam que os traos que a caracterizam seriam os de ausncia e/ou cumplicidade. Os trs nveis governamentais do Mxico (federal, estadual [ou provincial] e municipal) tm mbitos de presena diferenciados na regio. O governo federal participa, essencialmente, por meio de programas de ateno pobreza (bolsas para educao bsica, apoios a produtores agrcolas, proviso de alimentos) que tm pouco impacto na superao do problema, mas que so rentveis politicamente ao reforarem as relaes clientelistas. O governo estadual impulsiona seus programas mediante delegaes regionais, cujo pessoal atende simultaneamente a problemas operacionais na regio e tarefas de escritrio na capital do estado, de modo que, freqentemente, se v ultrapassado e no realiza um acompanhamento pontual das aes, alcanando, por isso, um nvel de eficcia muito reduzido. No que se refere ao governo municipal, os autores percebem haver falta de planejamento de atividades. Por um lado, os planos de desenvolvimento municipal trianuais, que cada governo deve apresentar ao assumir seu mandato, no incorporam uma viso de mdio prazo nem tampouco a participao articulada dos diversos atores sociais presentes no territrio. Por outro lado, o envolvimento social pratica34

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mente nulo, j que no existem espaos efetivos de participao e, no melhor dos casos, os moradores so utilizados para legitimar decises previamente tomadas pela autoridade. A presena de organizaes sociais muito incipiente na regio, devido a limitaes de recursos e falta de articulao com as aes governamentais municipais e estaduais (Lpez Paniagua; Chauca Malsquez, 2005). Enfim, o estudo de caso descreve uma realidade em que as desigualdades econmicas, sociais e territoriais dilatam-se, e os benefcios de uma atividade econmica prspera como a exportao de abacate concentram-se nas grandes empresas acondicionadoras internas e nos brokers internacionais. Estes so os agentes do mercado que se beneficiam com as condies dominantes as quais implicam, alm disso, um baixo nvel de interveno das agncias governamentais sem se julgar aqui sua eficcia que, unido perda de legitimidade e credibilidade, compromete a governabilidade, particularmente no mbito local. Dessa maneira, o que parece ficar claro na pesquisa que um modelo de sucesso de exportao de abacate no contribui para a gerao de um desenvolvimento integral da regio, mas para a produo ou reproduo da pobreza.

CONCLUSESAo longo deste trabalho, argumentou-se que uma teoria que envolva os nveis de anlise internacional, nacional e subnacional indispensvel para se encontrarem explicaes e interpretaes integrais para a produo e reproduo da pobreza ao longo da histria da humanidade que sejam vlidas, generalizveis e empiricamente comprovveis em distintos contextos geogrficos e histricos. Alm disso, se sugeriu que esse exerccio requer concentrar-se na interao de agentes e estruturas que geram, desde a economia poltica, as condies que produzem e/ou reproduzem a pobreza em diferentes escalas e nveis, algo que tambm pode se realizar de maneira complementar e integral com a pesquisa que enfoque a reduo do fenmeno. Essas duas questes cognitivas foram tratadas ao longo desta apresentao como condies necessrias para que avance a realizao de um vnculo efetivo entre cincia e poltica, com vistas a se reduzir a pobreza e erradicarem-se suas formas extremas. O passo prvio proposto para se alcanar esse objetivo foi esboado a partir de um modelo multinveis que, em seu atual estgio de desenvolvimento, demanda mais elaborao e articulao. Esse exerccio teri35

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co de projeto realizou-se vinculado a algumas das pesquisas realizadas no marco do Programa CLACSO-CROP, com a inteno de resgatar a riqueza das contribuies de estudos de caso que iluminam situaes especficas de produo de pobreza na Bolvia, Paraguai e Mxico. As principais concluses que surgiriam numa avaliao provisria deste exerccio esto vinculadas s evidncias que emergem em relao s limitaes dessas significativas contribuies empricas para alcanarem um conhecimento mais generalizvel. Algumas das razes principais desse dficit esto, precisamente, relacionadas com: (i) a ausncia de um marco terico que permita uma melhor definio das variveis envolvidas nos diferentes nveis de anlise considerados e dos principais conceitos utilizados, tais como os de agente e estrutura; (ii) a dificuldade para se derivarem hipteses sobre as possveis relaes causais entre tais variveis que possam ser verificadas em diversos contextos; e, de maneira relacionada com os pontos anteriores, (iii) a dificuldade de se realizarem exerccios metodologicamente slidos que permitam alcanarem-se graus crescentes de generalizaes emprica e teoricamente substanciais. Para alm dessas questes, possvel observar que grande parte da produo de pobreza descrita por meio desses casos est vinculada inoperncia do Estado (e seus agentes) como contra-estrutura com capacidade para limitar a inevitvel gerao de pobreza e iniqidade que fomentam os mercados sem regulao. Apesar da evidncia emprica proporcionada por esses trs estudos de caso (que, como afirmamos mais acima, sempre pode ser refutada por evidncia emprica em sentido contrrio), da linha argumental que pode se derivar desse incipiente exerccio terico, o Estado pode ser tanto a causa eficiente, como a soluo para a problemtica da produo de pobreza em distinta escala. Se um ou outro, isso depende de cada caso concreto. No entanto, de uma perspectiva terica que inclua os nveis de anlises nacional e internacional, essa a nica estrutura com capacidade para enfrentar os efeitos produtores de pobreza de agentes operando sob os estmulos de mercados nacionais e internacionais, carentes de regulaes baseadas em critrios distributivos e de eqidade. A construo do modelo terico aqui esboado est em sua etapa inicial. Falta muito por fazer. No entanto, possvel visualizar sua provvel unidade a partir da verificao do potencial no-realizado que tm as importantes contribuies empricas aqui apresentadas. A integrao entre teoria e pesquisa emprica por meio do mtodo de estudo de casos36

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ou comparativo que permita extrarem-se generalizaes sobre a poltica (ou melhor, a economia poltica) da produo e reproduo da pobreza parece ser a forma mais efetiva para se fazer avanar conhecimento generalizvel que possa oferecer uma base slida para os processos de tomada de decises. Existe pesquisa emprica de qualidade. Parece ento indispensvel contar-se com teorias ou suas simplificaes como so os modelos para se ordenar e dar sentido ao conhecimento emprico em matria de produo e reproduo de pobreza.

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Susana Murillo*

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INTRODUODesigualdade e pobreza so significantes que adquiriram centralidade na bibliografia ligada s Cincias Sociais e nos documentos pblicos. Eles tm povoado a linguagem do senso comum, os meios de comunicao de massa e as discusses acadmicas h vrios anos. A importncia que esses significantes ganharam no questo de mera especulao terica, j que seu uso, por parte de comunicadores, tericos sociais e funcionrios de governo, exerce efeitos sobre as polticas sociais e os sujeitos individuais e coletivos. O objetivo deste texto analisar algumas transformaes discursivas que, da teoria social a documentos dos organismos internacionais, h vrios anos naturalizaram esses significantes, apresentando-os como* Doutora em Cincias Sociais, Universidade de Buenos Aires (UBA). Magster em Poltica Cientfica (UBA). Professora de Filosofia (UBA). Licenciada em Psicologia (UBA). Professora titular na Faculdade de Cincias Sociais (UBA). Bolsista Snior do CLACSO 2004-2005. Diretora de pesquisas no Programa UBACyT da UBA. Membro da Comisso do Mestrado de Polticas Sociais da UBA. Algumas publicaes: El discurso de Foucault: Estado, locura y anormalidad en la construccin del individuo moderno, Oficina de Publicaciones del CBC. Universidade de Buenos Aires, Curso de Sociologia, agosto de 1996. La criminologa del siglo XXI en Amrica Latina. Parte Segunda. Em colaborao com Carlos Elbert et al. (Coordenadores). Editorial Rubinzal-Culzoni, Editores, Santa F, janeiro de 2002. Sujetos a la incertidumbre. Transformaciones sociales y construccin de subjetividad en la Buenos Aires actual. Coordenadora, Centro Cultural de la Cooperacin Ediciones del Instituto Movilizador de Fondos Cooperativos, Buenos Aires, 2003. Contratiempos. Espacios, subjetividades y proyectos en Buenos Aires. Coordenadora. Centro Cultural de la Cooperacin Ediciones del Instituto Movilizador de Fondos Cooperativos, Buenos Aires. Argentina, 2005.39

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parte da estrutura ontolgica do ser humano. Concentro-me principalmente nos documentos produzidos por um dos organismos internacionais de mais prestgio, o Banco Mundial (BM), instituio que leva adiante uma estratgia discursiva sobre a pobreza que guarda correlaes com argumentos de ilustres filsofos e tericos sociais, assim como com estratgias polticas aplicadas efetivamente a partir dos Estados e, em alguns casos, exigidas pela sociedade civil. Atribuo especial importncia s estratgias discursivas porque considero que as transformaes operadas nas estratgias discursivas hegemnicas ganham relevo ao se pensar que elas, em sua materialidade, interpelam ideologicamente 1 desde os dispositivos em que os sujeitos individuais e coletivos constituem-se em prticas concretas. Desse modo, no s produzem efeitos nas percepes do social, como tambm nas prticas. Nesse sentido, as formaes discursivas conformam a realidade, pois sua materialidade consiste em que elas interpelam os sujeitos concretos em suas prticas, mesmo sem que eles tenham conscincia disso. Minha primeira hiptese que a dade conceitual pobreza e desigualdade foi ressignificada de modos novos e parte de uma estratgia discursiva que resolve com novas tticas o velho sintoma da desigualdade intrnseca s relaes sociais capitalistas, que costuma ser mencionado como a questo social. A segunda conjectura que sustento que essa estratgia discursiva insere-se na constituio de um novo pacto social.

ALGUMAS PRECISES PRVIAS:A MATERIALIDADE DO DISCURSO

Neste texto, o uso do termo significante no se refere ao aspecto slido e inerte do signo. O signo, segundo Peirce2 (2003), no mera coi1 Neste ponto, necessita-se apelar para os conceitos de ideologia e interpelao ideolgica em sentido distinto ao de falsa conscincia. No me ocuparei aqui, a fim de no desviar o curso desta argumentao, de demonstrar por que esse termo, assim como o de discurso ou estratgia discursiva so compatveis (desenvolvi esse tema em Inseguridad, deslegitimacin de la participacin poltica y construccin de actitudes autoritarias en Argentina, Buenos Aires, CLACSO, informe final da Bolsa Snior, no prelo). 2 Um signo, ou representamen, aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para algum. Dirige-se a algum, isto , cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou, talvez, um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado40

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sa, mas uma produtividade. Disso se infere que a significao um processo poitico que se desloca continuamente; o signo sempre para um interpretante, e nessa atividade constitui-se o sentido. O sentido jamais est aderido a um significante isolado, pois ele brota, por um lado, de sua articulao em cadeias a partir do uso (dimenso horizontal da linguagem). Por isso, a reflexo sobre os significantes pobreza e desigualdade deve dar-se em funo em sua articulao em cadeias de significantes. Na idia de cadeia, alude-se a esse processo, a essa produtividade que se constitui enquanto os significantes articulados so interpretados e reinterpretados em sua circulao. A estruturao de cadeias de significantes no capaz de gerar sentidos, a no ser em prticas concretas, as quais jamais so independentes das camadas arqueolgicas das memrias coletivas e singulares que sedimentam significados em cada significante e em sua articulao com outros (dimenso vertical ou histrica da linguagem). Desse modo, pobreza e desigualdade so significantes que tm histrias diversas sedimentadas em camadas arqueolgicas das memrias tanto em nvel social, como subjetivo. Assim, portanto, o sentido brota numa dupla dimenso: por um lado, emerge da articulao horizontal dos significantes na cadeia dos intercmbios discursivos, e, por outro, em cada ponto da cadeia pulsa um sedimento de histrias vividas. Esse modo de ver o significante possibilita uma leitura idealista dos processos de significao, dado que permite pensar na materialidade da linguagem expressada nas prticas. Essa materialidade pulsa no conceito de discurso tal como desenvolvido por Foucault (1990), entendido no como uma mera relao lingstica, mas como uma trama de enunciados que circulam entre os corpos em prticas, que so sempre relaes de poder que constituem sentido. A constituio do sentido, ou dos sentidos, brota no s do que se diz, mas tambm de quem, para quem, onde, como, de que posio de poder e em que contexto histrico. Tudo isso conforma uma cadeia sempre aberta onde cada sujeito individual ou coletivo um interpretante/interpretado a partir dos significantes que o representam. A articulao de significantes nas prticas concretas de sujeitos coletivos e individuais tem dois efeitos complementares. Por um lado, geradenomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto no em todos os aspectos, mas em referncia a uma espcie de idia, qual s vezes chamei fundamento (ground) do representamen (Peirce, 2003).41

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sentidos que deslizam quase sem conscincia nos discursos cotidianos e, desse modo, se estabilizam, ao menos temporariamente, como categorias auto-evidentes que atravessam os processos sociais, as trajetrias subjetivas, as polticas pblicas e as elaboraes intelectuais. Por outro lado, a confluncia dos movimentos horizontais de cadeias de significantes e a ressignificao das camadas arqueolgicas das memrias fazem o equvoco do discurso, que possibilita a criatividade constante e, em contraponto a ela, a tendncia ao que poderamos chamar, se me permite a ironia, a normalizao higinica do pensamento estabilizada em conceitos que aparecem como indubitveis. Essa considerao sobre a materialidade do discurso no pode ser descuidada em tempos em que o estilo lingstico levou diversas posies tericas a sustentar que o social discurso (Laclau; Mouffe, 2004). A partir dessa percepo, costuma se negar toda determinao econmica, ou se costuma inferir que todo correlato entre o dito e os processos objetivos, as palavras e as coisas pura fico. Neste trabalho, sustento a materialidade do discurso, e inclusive o carter performativo que este costuma adquirir. No entanto, tambm parto do pressuposto terico de que h um alm do discurso que insiste nos corpos e que emerge na dor ou no riso, na angstia sem palavras, no buraco da fome que atravessa o corpo, nas grades da cela, no ensurdecedor estampido das armas, no abrao carinhoso de me (sem o qual no h possibilidade de ser humano) ou na arquitetura do tribunal. Assumo, enfim, que, junto s palavras, e atravessadas por elas, em relaes de poder, esto as coisas, ou melhor, ainda os corpos humanos, cuja realidade no se reduz a discurso. Sustento, seguindo Foucault, que h regimes de visibilidade e regimes de enunciabilidade, que, embora apaream como indiscernveis na vida cotidiana, insistem cada um com lgicas diferentes. Agora, nosso tempo deu um valor preponderante s palavras sobre as coisas. O carter s vezes performativo da linguagem passou a ocupar um lugar importante entre muitos tericos sociais. Acho que o tema surge justamente num momento histrico quando o lugar central dos meios de comunicao cria um espao privilegiado para a considerao do discurso. Nesse contexto, as tentativas de normalizar o pensamento, evitar o equvoco e unificar os sentidos transformaram-se numa das tarefas fundamentais dos ncleos mais concentrados de poder. Nessa linha, possvel observar a centralidade e interesse que as estratgias discursivas tm adquirido h vrios anos. Elas atravessam as prticas extradiscursivas42

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e contribuem para formar cdigos do ver e do falar, os regimes de visibilidade e de enunciabilidade presentes no s no senso comum, mas tambm em muitas das afirmaes de cientistas sociais, historiadores, psicanalistas, politlogos, pedagogos e filsofos. Nelas, se constituem evidncias que parecem valer por si mesmas e que tm efeitos nos sujeitos individuais e coletivos, enquanto se instituem como a realidade. Entre os cdigos mais ou menos estabilizados que tentam operar essa espcie de higiene pedaggica do pensamento, destaca-se a estratgia discursiva que sanciona a inevitabilidade da pobreza e da desigualdade. Portanto, alm das intenes de alguns de seus autores, diversas posies tericas parecem legitimar o cego buraco da dor e da morte de corpos lacerados pela fome ou pela desolao, processo que constitui a maior tragdia vivida pela humanidade em sculos. Este texto ten