Piotr Kropotkin

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Geografia Nos braços do Leviatã Alegações sobre a Crítica ao Estado territorial na obra de Piotr Kropotkin São Paulo 2013

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O fio condutor deste trabalho de graduação é a reflexão da categoria Estado, mais expressamente, da relação das categorias Estado e Território na historia do pensamento geográfico, na obra de Piotr Kropotkin.Trabalho de Graduação Individual apresentada ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Dr. Heinz Dieter Heidemann, para obtenção do título de Bacharel em Geografia.

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Geografia

Nos braços do Leviatã Alegações sobre a Crítica ao Estado territorial na obra de Piotr Kropotkin

São Paulo

2013

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Geografia

Nos braços do Leviatã Alegações a Crítica ao Estado territorial na obra de Piotr Kropotkin

Rafael Florêncio da Silva

Trabalho de Graduação Individual apresentada ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Dr. Heinz Dieter Heidemann, para obtenção do título de Bacharel em Geografia.

São Paulo

2013

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“Poderás tu fisgar Leviatã com um anzol, e amarrar-lhe a língua com uma

corda?

Serás capaz de passar um junco em suas ventas, ou de furar-lhe a

mandíbula com um gancho?

Ele te fará muitos rogos, e te dirigirá palavras ternas? Concluirá ele um

pacto contigo, a fim de que faças dele sempre teu escravo?

Brincarás com ele como com um pássaro, ou atá-lo-ás para divertir teus

filhos? Será ele vendido por uma sociedade de pescadores, e dividido entre os

negociantes?

Crivar-lhe-ás a pele de dardos, fincar-lhe-ás um arpão na cabeça?

Tenta pôr a mão nele, sempre te lembrarás disso, e não recomeçarás. Tua

esperança será lograda, bastaria seu aspecto para te arrasar.”

Livro de Jó, cap.40, 20-28

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“Se você vai chutar alguma autoridade nos dentes, é melhor você

usar os dois pés.”

Keith Richards

Agradecimentos especiais á

John, Joey, Paul, Johnny, George, Dee Dee, Ringo e Tommy.

Sem vocês rapazes, essa graduação teria sido impossível.

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Sumário

Agradecimentos e ________________________________________ 5

Apresentação ee _________________________________________ 8

Introdução em __________________________________________ 10

Capítulo 1. Êmulo Negro ________________________________ 12

1.1 Heresia e destruição _______________________________ 12

1.2 Herdeiros do apocalipse ____________________________ 23

1.3 Пётр Алексе́евич Кропо́тки _________________________ 33

1.4 A concepção de história em Kropotkin ________________ 49

1.5 O anarco-comunismo ______________________________ 54

1.6 O método científico ________________________________ 59

Capítulo 2. No bordel do historicismo ______________________ 69

2.1 No balcão do iluminismo ___________________________ 69

2.2 Uma ciência ______________________________________ 73

2.3 No bordel do historicismo ___________________________ 82

2.4 O Black Bloc bate a porta ___________________________ 89

2.5 A Ajuda Mútua e a crítica ao darwinismo social _________ 93

Capítulo 3. Nos braços do Leviatã ________________________ 100

3.1 A teoria do contrato social _________________________ 100

3.2 Estatismo e monetarismo. A reprodução do capital como

economia política de guerra desde seus primórdios _________ 107

3.3 O Leviatã vive. A relação Estado e território em Ratzel __ 112

3.4 Kropotkin: O Estado e seu Papel Histórico ____________ 121

Considerações Finais ____________________________________ 134

Referências Bibliográficas ________________________________ 137

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Agradecimentos e

Não é novidade entre os contemporâneos dedicar as primeiras linhas a um desabafo

sobre a sujeição e a determinação que o trabalho de graduação individual exerce na

aquisição do título de bacharel em geografia na vida acadêmica e seu papel na reprodução

da sociedade do trabalho em crise, e a subjetivação do processo social e da realidade na qual

nos inserimos, ao mal estar que todos sentem maior uma hora, menor em outra. Os espaços

de agradecimentos e sua relação com espetacularização das relações pessoais, e da própria

pesquisa positivando-a a ponto de transforma-la em uma instância máxima da vida são

abordados por Bezerra (BEZERRA, 2011), pontuando que em um mundo de relações

fetichistas, há a proposição de formas de sociabilidade menos abstratas.1 (BEZERRA, 2011)

O processo de emancipação do bacharelado ao qual o sujeito perpassa após a defesa

do trabalho de graduação individual e a expropriação a qual é submetido, quando a única

coisa que lhe resta é a venda de sua força de trabalho necessária a sua reprodução diária

com o término da graduação é um dos aspectos apontados por Sturlini, bem como a

contradição inserida nessa relação como um momento o qual o sujeito se livre, mas em uma

liberdade negativa.2 (STURLINI, 2013)

O fetiche que envolve a relação graduando e trabalho de graduação individual,

fazendo este aparecer como natural da própria graduação e seu valor de uso, e não como

resultado de um trabalho abstrato determinado valorizar o valor é colocado por Mazzamati,

mas que justifica a si mesmo quando colocado no tempo da mercadoria. A positividade vem

da possibilidade de relações menos abstratas que se colocam no convívio desse mesmo

período3, tal qual Bezerra. (MAZZAMATI, 2013)

A “obrigação de terminar a graduação em geografia pelo templo do positivismo

bandeirante.” (CAMARERO, 2013, pg.6), é apontada aqui como imposição fantasmagórica,

1 BEZERRA, Roberta Lopo. Processo de Modernização e formação de fronteira: desdobramentos. Tese de

graduação apresentada ao Departamento de Geografia FFLCH USP, sob a orientação do Prof. Dr. Heinz Dieter Heidemann, 2011.

2 STURLINI, Manuela Otero. Conservação e Manejo de Florestas Tropicais. Enfoque nas Agroflorestas

conduzidas por sucessão natural no Vale do Ribeira – SP, Tese de graduação apresentada ao Departamento de Geografia FFLCH USP, sob a orientação Prof. Dr. Sueli Angelo Furlan, 2013.

3 MAZZAMATI, Gabriella Mattos. DAS RELAÇÕES ENTRE O SISTEMA AGRÍCOLA DE PRODUÇÃO E A

ALIMENTAÇÃO: a Agrofloresta na mesa, Barra do Turvo SP. Tese de graduação apresentada ao Departamento de Geografia FFLCH USP, sob a orientação Prof. Dr. Sueli Angelo Furlan, 2013.

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em um recorte meritocrático, o qual um ponto de fuga é apresentado pelo aprofundamento

das relações em seu convívio cotidiano, no valor de uso do tempo da mercadoria4.

(CAMARERO, 2013)

Há algo que subjaz em tudo o que escrevi para além disso, em todas as

minhas reflexões, que sobrepassam em muito ao que ele se destina de fato,

o cumprimento de um regimento acadêmico de entrega do trabalho final

da graduação. Porém na forma como ele se apresenta não se desprende

dele as experiências que tive ao longo desses sete, ou melhor, seis anos e

meio dentro do curso de Geografia. Do título ao ponto final, do sumário à

bibliografia, não se vê, ouve, e muito menos se tateia, as feições e as

palavras de todas as pessoas que estiveram presentes na sua construção.

(LOPES, 2012, pg.4)

Para Lopes, mesmo diante da máquina do mundo, a positivação do processo da

graduação perpassa em linhas, do título ao ponto final, passando pelos diversos

compartimentos dissertativos, se encontrando muito além do cumprimento do regime

acadêmico. Aqui, vemos uma positivação do sujeito em uma série de objetividades da forma

social que estão sempre escondidas por esta. O processo histórico, este, sempre está a

passar pelas costas do sujeito.

Diante desse processo dialético que é graduação, cabe a mim nesse momento na

condição de sujeito, e, colocadas às devidas críticas balizadas acima pelos devidos autores,

colocar em palavras que não traduzem a experiência do narrador de todos esses anos na

geografia. Anos esses, que tiveram sua fase dentro dos ônibus desbravando os sertões em

ENG’s, ENEG’s e EREGEO’S, que se revelaram experiências traumáticas quando você oferece

um lugar na sua barraca a quem você acaba de conhecer. Espero que dessa experiência,

algum dia possamos ingressar no mundo dos royalties literários (ou quem sabe,

audiovisuais) com a saga de Aloysio Rouber.

Aos meus companheiros de sertão em um momento tão delicado, naquela Kombi

amarela que insistia em se camuflar aos nossos olhos de micro-ônibus com o logo da USP.

Alinha, Robs, Francisco, Artur, Lia, Ewa, Marina e o brilhante Marcha. O peso das estrelas

4 CAMARERO, Artur Attarian Cardoso. Armênios em São Paulo: mobilização e genocídio. Tese de graduação

apresentada ao Departamento de Geografia FFLCH USP, sob a orientação Prof. Dr. Heinz Dieter Heidemann, 2011.

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sobre nas cabeças eu nunca esquecerei. A Gabi, que além de compartilhar as mesmas

estrelas do sertão, é tão fã de Beatles quanto eu. A Marizinha, por ser tão Fogarelli.

Carol, Fernandão Mello, Jean, Martinha (sempre inspiradora), Daniel, Raquel,

Sandrinho, Júlio Várzea, Ana Maria, Cubano, Boni, Guto, Marte, Catatau, Gustavão, Fábião

Alkmin, Fê (Corguinho), Luni, Marcela, Ritinha, Ana Gomes, Don Don, Brunão (o melhor

imediato que um capitão poderia ter), Tom, Ramon, Cláudinho, Luni, Rafa Zen, Olívia, Rafa

Hippie, Fabião Pitta e seu gosto musical duvidoso.

Ao Cristiano, por anos tão abomináveis que só nós sabemos. A Tatá, companheira de

Lou Reed e a Clarinha de Ramones, até morrermos, e a Ag. Ao Gromps, grande amigo, mais

um sobrevivente.

Ao meu grande companheiro de estudos anarquistas solitários, Adriano. Sem você,

metade da bibliografia contida nesse TGI não seria possível.Ao meu xará Aragi, pelas nossas

conversas e desabafos, e que leu esse texto com sua sinceridade característica, autor da

melhor definição de TGI que eu ouvi até hoje5.

A Manu, a minha prima mais querida.

E a todos com quem ri em algum desses muitos momentos.

Ao Carlão, esse mestre do improviso e da paciência, que tanto me ajudou na reflexão

não só desse texto, mas ao longo das reflexões desses últimos anos.

Ao meu pai, que do seu jeito bem particular, me apoia nesse périplo que é a vida.

Ao Dieter, pela travessia, e por mostrar que outra relação dentro dos corredores

acadêmicos da vida é possível. E pelo caráter destrutivo, que praticamente me obrigou a

esse tema de TGI após ter desistido dele umas sete vezes, acho.

Ao Elvis, que naquele 18 de julho de 1953, atravessou a rua e entrou no estúdio de

Sam Philips, dando início a lenda, seguido por Johnny Cash. Ao Muddy que abraçou a

guitarra elétrica, e ao Dylan que seguiu seu exemplo. Ao Velvet Underground e sua música

marginal. Ao Kinks que tentou até se tornar uma das bandas mais fantásticas da Inglaterra,

justiça seja feita. Aquele motor elétrico chamado The Who. Ao The Clash pelo melhor álbum

de todos os tempos, o London Calling. Deixo aqui, a trilha sonora dessas páginas finais. Get

Off Of My Cloud!

5 “Uma espécie de circuncisão com data marcada espetacularmente”

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Apresentação ee

O fio condutor deste trabalho de graduação é a reflexão da categoria Estado, mais

expressamente, da relação das categorias Estado e Território na historia do pensamento

geográfico, na obra de Piotr Kropotkin. O tema do anarquismo sempre me fascinou, e no

início da graduação, brilhou mais intensamente. Por inúmeras razões. A primeira é que era

muito tentador um movimento rejeitado tanto pela direita e ainda mais pela esquerda. Os

caídos exercem uma atração maior. A segunda era; qual o sentido de ouvir um bom punk

rock e não flertar com isso?

Antes de escolher o tema da pesquisa, em uma conversa o Dieter me disse; “Você

deve odiar o seu objeto de estudo”. Deveria ter ouvido ali. Foram diversas as dificuldades no

decorrer do processo de construção do TGI, motivo o qual, culpa confessa, me arrependi em

diversas oportunidades de não ter escolhido um objeto com ampla produção acadêmica

dentro da geografia, creio que teria sido muito mais cômodo. Inicialmente, a dificuldade foi

em relação à bibliografia, tanto do autor, quanto um estudo sobre Kropotkin com produção

própria da geografia, que se revelou com uma bibliografia muito rarefeita sobre o assunto.

No primeiro momento, busquei o revolucionário no geógrafo, e um dos resultados

foram as extensas partes biográficas presentes no texto. Conhecer a história de Kropotkin,

um nobre russo geógrafo que se torna anarquista, e a história de um movimento que não

teve tempo de se perder de seus objetivos, marginalizado pelo sucesso da via partidária de

modernização, e sua recusa proclamada a toda autoridade, me fez debruçar em muitas

leituras históricas. Poderia ter me concentrado nos conceitos principais da pesquisa, mas

não consegui.

Nesse processo, fiquei com um receio particular de cair em um estruturalismo

conceitual que nivela todos os fenômenos sociais em seu arcabouço teórico devidamente

segmentado e positivamente crítico. Outra é que fiquei curioso mesmo. Nesse segundo

momento busquei o geógrafo no revolucionário. O resultado é que além de ter me

demorado em ambos os processos, foram essas páginas recheadas de críticas ou elogios ao

sujeito tão contraditórios que em diversos momentos eles podem soar ambíguos, o que

preferi, ao invés de percorrer a rua de mão única. Se consegui, não sei. Mas um dos motivos

do TGI ser dividido em capítulos é também para isso. Dessa forma, aconselho bruscamente

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9

aqueles que querem ir direto ao assunto a leitura do capítulo III. Acho que o centro do

debate está lá.

Em muitas horas, fui escravo da escrita, de variadas maneiras. Uma foi o erro de não

ter iniciado o processo da escrita junto ao da leitura. Experiência ás vezes requer paciência.

Após iniciado o percurso, não consegui me desvencilhar do viés histórico do processo, nem

sempre necessário. Este trabalho poderia ter sido elaborado com maior poder de síntese,

mas guardo isso como experiência. Até o fim, e até agora, não sinto que essa escrita é a

minha, e que ela ainda está presa dentro de mim. Senti-me refém do discurso acadêmico o

qual não consegui me livrar, não tanto pelo fato de ser enfadonho ou pelo tédio que o

acompanha em vários momentos, mas pelas suas limitações. Benjamin é um ponto de

reflexão ao descrever essa tensão, a extinção da arte de narrar, “É como se estivéssemos

privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar

experiências” (BENJAMIN, 1996, pg.198)

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Introdução em

Este trabalho se propõe um estudo da relação entre as categorias Estado e território

em diversos textos do geógrafo anarquista Piotr Kropotkin. Como um estudo de história do

pensamento geográfico, há tanto uma discussão conceitual sobre as categorias que compõe

o tema da pesquisa quanto um aprofundamento na história do movimento anarquista. Uma

das perguntas que permeiam o texto é; qual a diferença que o pensamento anarquista pode

oferecer em uma análise de uma categoria clássica da Geografia Política como o Estado e

território?

O primeiro capítulo se dedica a uma tentativa da compreensão da trajetória histórica

do movimento anarquista, suas correntes e propostas teóricas sob o processo de

modernização. Há uma imersão em parte da obra de Kropotkin, como se dava seu conceito

de história, sua teoria do anarco-comunismo e a proposta do anarquismo como método

científico em suas análises. O segundo capítulo se debruça sobre o discurso disciplinar

geográfico e o método historicista, a “descoberta” e uma reflexão sobre os geógrafos

anarquistas e uma possível proposta crítica diferenciada em seus estudos. Ambos os

percursos são realizados procurando um diálogo através da Teoria Crítica, evidenciando os

traços trans – históricos do pensamento iluminista, a ontologização das categorias modernas

do capital e seus desdobramentos na história do pensamento geográfico.

O terceiro capítulo trata respectivamente da relação entre as categorias Estado e

território. Há uma reflexão sobre a Teoria do contrato social nos pensadores do iluminismo e

a forma mercadoria, uma reflexão da origem do Estado e sua relação com mercado como

um duplo do mesmo campo histórico, e não como duas categorias cindidas. A Reflexão

sobre a categoria Estado e território em Ratzel se dá por alguns motivos. Entre eles porque é

dado que Ratzel é o introdutor dos estudos sobre Estado e território em geografia, além do

método positivista, oferecendo uma contraposição pelos mesmos parâmetros utilizados por

Kropotkin quanto aos estudos das mesmas categorias.

E como introdutor da Geografia Política, inicialmente havia a proposta da reflexão do

discurso geopolítico em Ratzel e outros pensadores como Richtofen, Kjellén, Graf, Haushofer

e Mackinder e o materialismo geográfico como método, bem como a reflexão de Wittfogel e

Kropotkin sobre os meandros de uma geografia política como “consciência do Estado” e um

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discurso que legitima a expansão imperialista. Outra questão, que foi o pano de fundo inicial

da pesquisa, era uma pretensa crítica a geografia crítica, analisando seu discurso como

escola crítica e como se dá a discussão das categorias analisadas por este estudo por essa

linha de pensamento, que durante a graduação, se mostrou uma análise sociológica

positivada pela construção de um conceito democrático de Nação, sendo colocado diversas

vezes a negação do Estado como um “mero” niilismo. Mas, talvez, fique para uma outra

oportunidade.

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Capítulo 1. Êmulo Negro

1.1 Heresia e destruição

Enforquemos os poderosos do mundo e todos os nobres

e estrangulemo-los com as tripas dos padres,

os grandes e os nobres que esmagam os pobres,

os atormentam e os reduzem a miséria

Thomas Muntzer, 1525

O anarquismo, como movimento ou doutrina, junto a outras teorias revolucionárias, é

um fenômeno oriundo do século XIX. Mas, se levando em conta a dominação como a

questão central do anarquismo, são os ecos do mundo feudal em ruínas que reverberam nas

revoluções que se sucedem.

Tanto o anarquismo quanto o marxismo tradicional beberam da mesma fonte, as

ideias dos socialistas utópicos como Fourier, Saint Simon e Robert Owen. Reivindicaram uma

sociedade futura onde todos teriam suas necessidades satisfeitas e os homens seriam iguais,

se diferenciando radicalmente quanto ao método para alcançar seu objetivo. Porém, a

urgência na transformação da sociedade de maneira imediata, a ânsia pela destruição, e o

espírito da revolta com que isso se daria, incendiou os corações e mentes dos anarquistas6.

O marxismo tradicional é herdeiro da formulação iniciada pelos Jovens Hegelianos7, a

qual se fundamentava na dialética de Hegel, onde há uma razão que se realiza na história.

Ao invertê-la como uma filosofia radical de mudança (Hegel objetivava a dialética no Estado

Prussiano), esta posteriormente deságua na doutrina da luta de classes esboçada por Marx,

6 Como teria dito Buenaventura Durruti, líder espanhol durante a Guerra Civil Espanhola a Pierre van Paassen

“Não temos medo de ruínas – nós herdaremos a terra. Não há menor dúvida quanto a isso. A burguesia pode fazer explodir e arruinar o seu próprio mundo antes de abandonar o palco da história. Nós trazemos o novo mundo em nossos corações. Esse mundo está surgindo nesse momento.” (WOODCOCK, 2002, pg.12)

7 Foram os hegelianos que cimentaram na nova geração de revolucionários a convicção de que a História

estava ao seu lado, fornecendo-lhes uma filosofia radical de mudança. Os sucessores do Hegel -os Jovens Hegelianos – tomaram a doutrina do mestre e transformaram-na num fim revolucionário. Enquanto o próprio Hegel usara a sua filosofia como um meio de justificar o estado prussiano existente, os seus sucessores, como Marx o afirmou, colocaram a dialética de cabeça para cima e transformaram-na numa filosofia de revolução. (JOOL, 1977, pg.62)

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onde os conflitos contribuem para uma nova síntese, onde através de sucessivas revoluções,

chega-se a sociedade comunista.

Os ideais anarquistas conspiram pela heresia e o fim do mundo, uma transformação

radical que possuí uma necessidade imediata. Os grilhões não podem esperar uma revolução

burguesa para serem rompidos, e acordos com classes abastadas não fazem seu gosto; o

Leviatã perde a sua coroa no cadafalso anarquista. Suas bases filosóficas se assentam nos

filósofos do Iluminismo; a Revolução Francesa, o fato histórico empírico de que uma

revolução pode ser bem sucedida, frente a destruição que a revolução conduzirá a

sociedade na sua evolução.

A ânsia da destruição é herdada das violentas reformas protestantes que varreram a

Europa e culminaram na Revolta dos Camponeses liderada por Thomas Muntzer no século

XVI, bem como a revolta dos anabatistas. A violência legitima que caracterizou esses

movimentos e a necessidade de rompimento radical com o mundo, pela instalação imediata

do Reino de Deus em sua plenitude, expõe os limites categoriais impostos de forma

espetacular pela forma mercadoria aos movimentos sociais que se seguiram na

modernidade, a renúncia à violência, a busca por paliativos legislativos e a legitimação tanto

por parte da social democracia presente na Internacional dos Trabalhadores no séc. XIX e

sua tomada do poder via Estado quanto aos movimentos sindicais do final do séc. XX e início

do XXI. A negação da negação da propriedade que se converte tanto na manutenção e

integridade física quanto a reprodução da mesma sob a égide da ordem, do progresso, dos

nacionalismos.

Naqueles últimos dias de um mundo medieval que viria a conhecer brevemente a

sutileza de uma violência totalmente nova, a imediata destruição da ordem medieval, da

Igreja e da Nobreza ao som das vozes do apocalipse8, carrega uma negatividade que

desconhece a afirmação positiva; ela não se pauta pela reforma ou reivindicação ela quer a

destruição do existente, porém por outro mundo, a Jerusalém Celeste, apocalíptica, que

reduziria a cinzas a Babilônia medieval.

8 Exortava Thomas Munzer seus companheiros em tom apocalíptico “A eles, a eles enquanto o fogo está aceso.

Não deixem arrefecer a vossa espada! Nada de hesitações! Que o martelo não deixe de bater na bigorna de Nimrod! Derrubemos as suas torres! Enquanto eles viverem nunca sacudireis o medo dos homens...” Exortava Thomas Munzer seus companheiros (JOLL, 1977, pg.25)

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Se esses movimentos medievais não possuem o caráter anarquista, a sua prática fora

inspiradora. No cerco da cidade de Munster em 1535, os anabatistas destruíram todos os

registros de contratos e dívidas, prática que os anarquistas seguiriam, e organizaram

armazéns de comidas, roupas e alojamentos comunais. Uma marca que esses movimentos

deixam no pensamento anarquista, a reação violenta à ordem existente, tomará mais força

ainda pelo Terror da Revolução Francesa.

O anarquismo bebe nas convicções filosóficas do Iluminismo. Será Jean-Jacques

Rousseau (apesar dos anarquistas rejeitarem a ideia do contrato social), ao fundir o

racionalismo com o ardor dos românticos, a fundamentação do pensamento clássico do

anarquismo.

A crença na perfectibilidade do homem e das instituições humanas,

Rousseau acrescentou a noção do Bom Selvagem, uma figura querida a

todos os corações anarquistas. “O Homem nasceu livre e por toda a parte

vive agrilhoado” tornou-se de fato o primeiro princípio do pensamento

anarquista. A ideia de um mundo de felicidade primitivo, de um estado de

natureza no qual, bem longe de estarem envolvidos em uma luta de todos

contra todos, os homens viviam num estado de cooperação mútua, veio a

ser um apelo irresistível aos anarquistas de todos os gêneros. E, mesmo que

o próprio Rousseau viesse contribuir para o desenvolvimento de teorias

políticas baseadas num poder de Estado forte, as ideias de simplicidade e

de bondade que ele propagou, as teorias da educação racional que

advogou, são bastante semelhantes às de Kropotkin ou de Francisco Ferrer.

(JOLL, 1977, pg.33)

Além dos apontamentos históricos colocados por Joll, a força dessa contestação

negativa se dá no contraste entre indivíduo e mundo, que tem uma das suas primeiras

expressões no romantismo moderno. Aí, a rebelião existencial do individuo não é mais a luta

pelo Kairós9, como os rebelados da Idade Média, mas contra o aspecto genérico entre

“mundo e vida”, individuo e sociedade, pária da natureza, contra o tempo da mercadoria.

9 De acordo a teologia cristã, o Kairós é o ”Tempo de Deus”, que não pode ser medido e nem mesurado, que

não encontra início, fim ou meio, em contrapartida ao Chronos, o “Tempo dos Homens”, histórica e linear cronologicamente.

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A Revolução Francesa, apesar de não trazer a descentralização e o fim da propriedade

privada, a violência dos métodos revolucionários que haviam derrubado uma ordem secular

em suas dimensões políticas, econômicas e espirituais levam a certeza de que uma

Revolução violenta pode ser bem sucedida, e que a próxima Revolução seria muito mais

radical. Em A Grande Revolução Francesa, escreve Kropotkin:

O que hoje aprendemos do estudo da Grande Revolução é que ela foi a

fonte e a origem de todas as concepções comunistas, anarquistas e

socialistas atuais [...] A única coisa certa é que qualquer que seja a nação

que, nos nossos dias, entre no caminho da revolução será herdeira de tudo

o que nossos avós fizeram em França. O sangue que verteram derramaram-

no pela humanidade – os sofrimentos por que passaram padeceram-nos

por toda a raça humana; as lutas, as ideias que deram ao mundo, o choque

dessas ideias, fazem hoje parte da herança da humanidade. Todas

produziram frutos e produzirão mais, e ainda melhores, a medida que

avançamos em direção a esses horizontes rasgados diante de nós, onde,

como grandes faróis a apontarem-nos o caminho, flamejam as palavras

LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE. (KROPOTKIN apud JOOL, 1977,

pg. 45-46)

O mercantilismo como base econômica do Estado Absolutista francês enfrentava uma

crise tanto nos seus limites de reprodução baseado em manufaturas e a necessidade de

industrialização para um sistema produtor de mercadorias quanto ao custo de um Estado

que se centralizava cada vez mais e que não conseguia mais arcar com seu edifício, enquanto

economia doméstica (Oikos) do príncipe (KURZ, 2010). O Antigo Regime não conseguia mais

reproduzir-se de modo a arcar com a ociosidade do Primeiro e Segundo Estado, nobreza e

clero, respectivamente, além do exército militar permanente do monarca financiado a base

dos domínios rurais que se constituíam com fonte de renda principal juntamente ao Terceiro

Estado, composto por burgueses, artesãos, aprendizes, camponeses e proletários.

Para aumentar as receitas principescas, tinha que ser criado um sistema

tributário geral. Essa medida não apenas fez nascer os traços fundamentais

de uma economia financeira moderna, mas também exigia o fomento e o

controle conscientes da produção de mercadorias, como fonte principal da

tributabilidade monetária, a estimulação das exportações e a intensificação

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planejada do processo de produção de mercadorias, para além dos limites

estamentais das forças produtivas. A manufatura, a divisão forçada do

trabalho e o recrutamento coativo de mão de obra assalariada barata, entre

os produtos da decomposição da sociedade feudal, conduziram a um novo

modo de produção que logo rompeu os objetivos limitados do absolutismo.

(KURZ, 1993, p. 32-33)

A Revolução Francesa promoveu cada vez mais um centralismo de Estado e a extensão

de seu poder a todos os setores da sociedade. Na constituição de 1791 foi abolido o

feudalismo, promovendo a expropriação e nacionalização dos bens eclesiásticos e a

separação entre o Estado e a Igreja, reconhecendo a igualdade civil e jurídica e excluindo a

igualdade econômica na qualidade dos cidadãos.

Em primeiro lugar, os proprietários, na qualidade de cidadãos, não deviam

ser abandonados a qualquer arbítrio do Leviatã, mas deviam ter também

direitos face a essa instância agregadora, e os seus representantes deviam

poder mesmo apresentar queixas perante tribunais independentes. Em

segundo lugar, como pagadores de impostos, os cidadãos também deviam

adquirir uma função de controle sobre a utilização dos seus tributos, sob a

forma política de uma representação própria (parlamento). Nesse sentido,

a relação contratual determinada em termos jusnaturalistas passa a ser

compreendida, na filosofia mesma do iluminismo, como uma relação não

fechada, mas ainda atuante. (KURZ, 2010)

Foi a Comuna Insurrecional de Paris formada em 1789, de cunho popular, que

modernizou o exercito e sua força bélica juntamente com a criação da Guarda Nacional,

milícia popular burguesa responsável tanto por combater um possível contra golpe da

monarquia quanto reprimir a população civil que se levantasse contra a ordem, além da

defesa dos limites territoriais da Nação. A modernização do aparato estatal que a Revolução

trouxe, suplantou aqueles componentes dispersos em pequenos poderes como as

congregações religiosas e suas propriedades com produções próprias, relações familiares,

hierarquias nas manufaturas urbanas de resquícios feudais, utilização da gleba na produção

agrícola, e do aparato de funcionalismo estatal substituindo os nobres por funcionários

públicos realizando a função domesticadora do Leviatã no interior da Nação pela garantia da

força da propriedade declarada na constituição. Os brados de “liberdade, igualdade e

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fraternidade” aparecem como a liberdade negativa do sujeito, que conserva apenas sua

força de trabalho para sua reprodução. “Rousseau diz sem rodeios que todos os cidadãos

têm de ser coagidos a essa “liberdade” da vontade abstrata da razão geral. Liberdade é

necessidade – eis a primeiríssima versão do princípio orwelliano.” (KURZ, 2010)

O golpe do 18 de brumário de Napoleão I encerra o período da Revolução e a Primeira

República com a instauração do Império. Após a queda de Napoleão I e a restauração da

dinastia Bourbon, será em 1848 o ano em que as barricadas serão reerguidas em diversos

países da Europa convulsionando os últimos regimes absolutistas e rompendo os últimos

resquícios feudais, com exceção da Rússia. Nesse contexto, com a aliança da burguesia junto

ao Estado, emerge um recente movimento dos trabalhadores iniciando sua organização,

com Proudhon líder dos operários e artesãos em França e candidato a Assembleia

Constituinte, e Marx publicando o Manifesto Comunista.

O movimento agora operário compõe uma divisão técnica do trabalho mais

aprofundada, bem como um exército de mão de obra reserva formado e numeroso. Os

trabalhadores não se limitam a organização nacional, mas buscam o apoio da própria classe

internacionalmente. Sob o governo de Napoleão III, com uma política de aproximação dos

trabalhadores após o golpe que findou a Segunda República, incentiva artesãos franceses a

visitarem a Mostra Internacional de Londres onde diversos mutualistas influenciados pelas

ideias de Proudhon se aproximam dos sindicalistas ingleses e trabalhadores alemães, e

iniciam as conversações sobre a possibilidade de uma associação internacional. Em 1864 a

delegação francesa apresenta a resolução propondo a fundação da Associação Internacional

dos Trabalhadores. A Internacional dos Trabalhadores congregará um esforço internacional

do movimento operário e um espaço de debate das ideias de emancipação do operariado e

mote de sua divisão; entre os socialistas libertários que viam na tática da ação direta e a

supressão imediata do Estado para a instalação de uma sociedade comunista e os socialistas

autoritários, que buscam na tomada do Estado uma etapa necessária a se atingir a sociedade

burguesa e posteriormente a sociedade comunista. A primeira Internacional tem fim

juntamente com a Comuna de Paris de 1871 e a perseguição dos governos europeus que

fizeram com que os congressos caíssem na clandestinidade até sua dissolução oficial em

1876.

Page 19: Piotr Kropotkin

18

Em 1872, após o cisma do Congresso de Haia onde diversos grupos libertários se

retiraram da organização em solidariedade a expulsão de Bakunin da Internacional, tiveram

início vários esforços que se estenderam ao longo das décadas seguintes para a constituição

de uma Internacional Anarquista. O Congresso de Saint Imier se deu no mesmo ano com a

presença de vários lideres do movimento como Bakunin, Cafiero, Malatesta, Costa, Fanelli,

Guillaume além de sobreviventes da Comuna de Paris. Diversos congressos se seguiram,

bem como a tentativa dos anarquistas de participarem da Segunda Internacional onde foram

constantemente rechaçados pelos sociais democratas marcaram os passos do movimento no

ultimo quarto de século, sendo que os anarquistas como um movimento organizado e

significante emergiria no início do séc.XX através do anarco - sindicalismo, doutrina que

propunha a greve geral como instrumento revolucionário e pela organização dos operários

em sindicatos, não sem antes passar por um período de atentados individuais niilistas tal

como o emblemático caso de Ravachol na França e Nechayev na Rússia, que utilizavam a

estratégia da propaganda pela ação na ultima década do séc.XIX.

A Guerra Civil Espanhola talvez seja o momento mais dramático onde uma revolução

anarquista toma forma. A Espanha dentre os países europeus foi onde o anarquismo mais

fora difundido entre os proletários. E diversas foram as particularidades desse processo.

Com as guerras napoleônicas pós Revolução Francesa, as colônias espanholas na América

entraram em um processo onde diversos territórios coloniais declaram sua independência.

As colônias formavam a espinha dorsal da economia mercantilista espanhola, alicerçada no

monopólio da metrópole sobre a produção de manufaturados e o mercado de consumo

colonial, com o comércio entre colônias proibido além da acumulação de metais oriundos

das minas do Novo Mundo.

Com a independência das colônias americanas e o fim do Antigo Regime, se seguiu

durante o séc.XIX um período de instabilidade política na Espanha rivalizado inicialmente

entre liberais e absolutistas, posteriormente assinalado por republicanos e monarquistas. Na

metade do séc.XIX, as ideias de Proudhon foram introduzidas pelo bancário Pi y Margall que

adaptou a ideia da organização federalista de Proudhon. Em muitas regiões da Espanha era

apreciada a ideia de Patria Chica, contrapondo o conceito de nação. A adaptação do

federalismo de Proudhon atraiu a classe média inferior fora de Castella, simpatizantes da

ideia de autonomia regional. Posteriormente, o coletivismo de Bakunin influenciou os

artesãos e o operariado de Barcelona e Madrid, cabendo o anarco - comunismo de Kropotkin

Page 20: Piotr Kropotkin

19

a influência nas áreas rurais, sempre em convulsão em meio a revoltas populares, no final do

século.

Em 1874, Pi y Margall torna-se presidente da breve Primeira República, trabalhando

pela instalação de uma república federativa de administração descentralizada, promovendo

a separação entre Estado e Igreja e laicizando o ensino. Com uma frágil organização, cidades

como Sevilha, Granada, Valência, Cádiz, Málaga e Cartagena declararam-se autônomas,

criando comitês de segurança pública fechando igrejas e realizando um processo de

expropriação daqueles mais ricos. O governo republicano decidiu enviar tropas federalistas a

fim de acabar com esse processo, abrindo caminho para um golpe dos militar no mesmo ano

e a restauração da dinastia dos Bourbons. A monarquia propõe um pacto de povos com

princípio federativo para o novo governo frente a tendência autônoma regional. Para os

anarquistas espanhóis, as propostas de Pi y Magall eram vistas como reformas liberais.

O período que se seguiu foi marcado por intensa violência, com revoltas em áreas

rurais, sublevações em municípios, surgimento de grupos de propaganda pela ação como La

Mano Negra por parte dos trabalhadores e a criação da Brigada Social, uma força policial

especial antianarquista por parte do governo. No final do século, o movimento anarquista

cresce no meio intelectual e para além do proletariado de Barcelona, Madrid e as áreas

rurais da Andaluzia.

É no início do séc.XX que influenciada pela Confederação Geral do Trabalho (CGT),

francesa de caráter anarco – sindicalista, e após o evento conhecido como Semana Trágica10

é fundada a maior organização anarquista da Espanha e que assumiria a resistência durante

a Guerra Civil Espanhola, a Confederação Nacional do Trabalho (CNT). A Espanha passava

por um processo de industrialização durante a Primeira Guerra Mundial e conseguiu manter

seu parque industrial em funcionamento durante o conflito aumentando as suas

exportações para ambos os lados da guerra.

10

A Solidariedad Obrera, federação de diversos sindicatos libertários da Catalunha, convocou uma greve geral em 1909 após o exército ter decidido convocar os reservistas da região. “Os anarquistas, socialistas e sindicalistas concordaram quanto a uma ação conjunta, e o Solidariedad Obrera convocou uma greve geral. Durante a "Semana Trágica" que se seguiu, travaram-se violentas lutas nas ruas de Barcelona; a polícia e as tropas levaram cinco dias para estabelecer o controle. Aproximadamente 200 trabalhadores foram mortos nas ruas e - na explosão da paixão anticlerical que habitualmente acompanha os levantes populares na Espanha - mais de cinquenta igrejas e conventos foram incendiados e muitos monges assassinados. O governo conservador reagiu da forma costumeira com prisões em massa, torturas em Montjuich e execuções sumárias incluindo a de Francisco Ferrer.” (WOODCOCK, 2002, pg.119)

Page 21: Piotr Kropotkin

20

Durante a ditadura de Primo de Rivera, na década de vinte, a CNT é considerada ilegal

e dissolvida colocando seus líderes e ativistas na clandestinidade. Muitos se refugiaram na

França onde se reorganizaram decidindo fundar uma organização clandestina dedicada a

atividade revolucionária, a Federação Anarquista Ibérica (FAI). Junto a CNT, que voltaria a

agir na legalidade no início da década de trinta, organizarão o movimento operário durante a

Guerra Civil. Esse modelo de organização do movimento operário se aproxima da proposta

revolucionária de Bakunin onde um conjunto de organizações agiria tanto na

clandestinidade quanto na legalidade promovendo a atividade revolucionária.

Na década de trinta, a CNT fez uma campanha massiva entre seus associados pela

abstenção do voto e mobilização através da greve. Um governo de extrema direita assume a

República então. Devido aos milhares de militantes presos durante esse período, a CNT

decide se unir com a Frente Popular, uma coalizão de partidos de esquerda que propunha a

anistia dos presos. Com a vitória da Frente Popular se formulou a proposta de um governo

revolucionário, com a coletivização das fábricas e sua direção pela ação direta dos

trabalhadores e a gestão coletiva da terra.

O exército sob a liderança do general Franco desencadeou o golpe contra a república

revolucionária em 1936. A mobilização para a guerra faz com que os sindicatos se organizem

em milícias de populares com a ajuda do proletariado internacional. As brigadas

internacionais possuíam uma ampla gama de diversos aspectos da ideologia socialista,

reunindo anarquistas, comunistas e socialistas.

Essa guerra que se estende por três anos é marcada pelo embate das doutrinas

revolucionárias e fascistas pré Segunda Guerra Mundial. A Alemanha, que passara por

radical processo de modernização pós Primeira Guerra Mundial, fornece a logística e

material bélico para as tropas franquistas e diversas táticas como a Blitzkrieg que contava

com avanços terrestres combinados a intensos bombardeios são testados na Espanha. Os

anarquistas acuados não tiveram outra opção se não fazer uma aliança com a URSS de Stalin

para fornecimento de armas e logística para vencer a guerra. Sob a política de Moscou, as

milícias anarquistas foram sabotadas internamente. Cobrando altos valores dos

revolucionários espanhóis e fornecendo um armamento ultrapassado e em péssimas

condições, foram enviadas armas utilizadas na Primeira Guerra Mundial para o fronte contra

o fascismo. A isso soma a pressão de Moscou pela adoção de um exército republicano

Page 22: Piotr Kropotkin

21

centralizado no governo sob o comando dos comunistas. Isso minou a base da estratégia de

guerrilha que se mostrara a mais eficiente frente o belicismo das tropas fascistas, e teve seu

golpe final quando o próprio exército republicano desarmou os revolucionários e não

ofereceram resistência as tropas franquistas no restante da guerra. O socialismo autoritário

da URSS minou a ultima revolução de caráter anarquista da história. Durante um breve

período, as ideias de organização econômica propostas por Kropotkin foram postas em

prática tanto nas fábricas quanto nos campos, baseadas no modelo do comunismo libertário.

No livro Homenagem a Catalunha; lutando na Espanha, George Orwell como um ex-

combatente do front faz uma reflexão sobre a derrota das forças revolucionárias. Orwell,

que pertencia ao POUM11 e que lutara em uma milícia anarco-comunista, reflete em suas

memórias a derrocada da revolução espanhola:

Quanto aos russos, sua motivação na guerra civil espanhola mostra-se

completamente inescrutável. Teriam eles, como acreditam os simpatizantes

do comunismo, intervindo na Espanha a fim de defenderem a Democracia e

ir contra os nazistas? Nesse caso, por que intervieram em escala tão

insignificante, e acabaram deixando a Espanha no buraco, entregue a si

própria? Ou teriam, como sustentam os católicos, intervindo a fim de

fomentar a revolução na Espanha? Nesse caso, por que fizeram tudo

quanto puderam para esmagar os movimentos revolucionários espanhóis,

defender a propriedade privada e entregar o poder à classe média, contra a

classe trabalhadora? Ou teriam, como sugeriram os trotskistas, intervindo

apenas para impedir uma revolução espanhola? Nesse caso, por que

deixaram de dar seu apoio a Franco? Na verdade, seus atos tornam-se mais

fáceis de explicar quando supomos que estivessem agindo impulsionados

por diversos motivos contraditórios. Acredito que, no futuro, passaremos a

perceber que a política externa de Stalin, ao invés de tão diabolicamente

hábil quanto dizem, foi apenas oportunista e estúpida. Seja lá como for a

guerra civil espanhola demonstrou que os nazistas sabiam o que estavam

fazendo, e seus oponentes não. A guerra foi empreendida em baixo nível

técnico, e sua estratégia principal era bastante simples. O lado que tivesse

armas seria o vencedor. Os nazistas e italianos deram armas a seus amigos

11

Partido Operário de Unificação Marxista

Page 23: Piotr Kropotkin

22

fascistas espanhóis, e as democracias ocidentais e os russos não as deram

aos que deveriam ter sido seus amigos. Assim foi que a República

espanhola caiu, tendo “recebido o que não fazia falta a república alguma”.

(ORWELL, 2002, pg.155)

Page 24: Piotr Kropotkin

23

1.2 Herdeiros do apocalipse

O igual direito de todos aos bens e prazeres deste mundo,

a destruição de toda autoridade, a negação de todo o freio moral,

eis aí, se descermos ao fundo das coisas, a razão de ser da insurreição

de 18 de março e o programa da terrível associação

que lhe rendeu um exército.

(Inquérito parlamentar sobre a insurreição de 18 de março de 1871, início da Comuna de Paris)

Stirner, Proudhon, Bakunin e Kropotkin. Se estes nomes estão vinculados com as

correntes teóricas anarquistas e a sistematização desse pensamento, as ideias anarquistas

ganham expressão durante a Revolução Francesa. Em paralelo ao movimento pela

centralização do poder pelos Jacobinos, onde surgem as “seções” organizadas

municipalmente independentes de um comando central. Essas seções tentaram estabelecer

uma correspondência direta com as 36 mil comunas da França por intermédio de um

conselho especial, a margem da Assembleia Nacional, além de se fazer o uso pela primeira

vez da palavra anarquista:

O nome anarquistas fora abundantemente aplicado pelos girondinos

durante a Revolução Francesa em relação aos revolucionários que não

consideravam que a tarefa da revolução devesse limitar-se a derrubar Luís

XIV, e insistiam em que se tomasse uma série de medidas econômicas

(abolição de direitos feudais sem indenização, devolução as comunidades

dos povos das terras comunais cercadas desde 1669, limitação da

propriedade da terra para 120 acres, imposto progressivo sobre a renda,

organização nacional das trocas com base num valor justo, que então

começava a se elevar na prática, etc.). (KROPOTKIN, 1987, pg.24)

Mas o primeiro formular a teoria anarquista, segundo Kropotkin, foi o britânico

William Godwin (1756-1836), em sua obra Investigação a cerca da Justiça Política e da

influência sobre a Virtude Geral e a Felicidade:

Sem empregar na sua exposição esta palavra (anarquia) definiu-lhe,

entretanto, claramente os princípios, atacando rijamente as leis, provando

a inutilidade do Estado e finalmente, sustentando que, só com a abolição

Page 25: Piotr Kropotkin

24

dos tribunais, seria exequível a verdadeira Justiça – único fundamento real

de toda a sociedade. Relativamente a parte econômica a propriedade,

preconizava abertamente o comunismo libertário. (KROPOTKIN, 1964,

pg.95)

Foi a partir dessa abordagem de Kropotkin que Godwin passou a ser reconhecido

como um libertário dentro do pensamento anarquista. Kropotkin leu a obra de Godwin após

já ter formulado sua teoria, de forma a reconhecer nos escritos de Godwin as ideias que

tanto o identificam com o anarquismo. A influência de Godwin no desenvolvimento do

pensamento anarquista beira mais a uma necessidade de formalização histórica por parte de

Kropotkin que pela elaboração das ideias dos autores que influenciaram tanto a doutrina

quanto a construção do movimento dentro da Internacional. É presente em sua obra a

recusa tanto da ideia do direito divino como base de legitimação do governo ou esta pela

força; do contrato social de Locke e Rousseau como base para a organização social, além da

expressa recusa da propriedade privada, origem da desigualdade, e o caráter comum tanto

dessa como do trabalho. Godwin definia o sistema econômico como de “propriedades

acumuladas”, cunhando uma “expressão pré-marxista” do capitalismo, para Woodcock12.

Diversos historiadores anarquistas atribuem a Max Stirner (1806-1856), pseudônimo

de Johann Kaspar Schmidt, com o seu livro O Único e a Propriedade, a escola Individualista

dentro do anarquismo. Stirner, que fez parte do grupo dos Jovens Hegelianos junto com

Marx e Engels, era mais próximo a Bruno e Edgar Bauer. Porém Kropotkin rejeita em sua

obra a ideia da Associação dos Egoístas proposta por Stirner, apesar de conter uma crítica ao

Estado13, seja pelo método de exposição de Stirner que deriva da dialética de Hegel, ou pela

12

A propriedade acumulada - a expressão pré-marxista de Godwin para designar o que chamamos de capitalismo - é contrária ao enriquecimento qualitativo da vida. Ao perpetuar a desigualdade econômica, ela "esmaga a força do pensamento, transformando-a em pó; extingue as fagulhas da genialidade e reduz a grande massa da humanidade a viver mergulhada em preocupações sórdidas." (WOODCOCK, 2002, pg. 79)

13 A divulgação da obra de Stirner, que a muitos então preocupou produziu, nos meios anarquistas da época,

certa sensação; foi considerada como uma espécie de manifesto dos anarquistas individualistas. Ela é uma manifesta revolta contra o Estado e contra a nova tirania, já delineada, que seria, indubitavelmente, imposta se o comunismo autoritário vingasse na sua realização prática. (KROPOTKIN, 1964, pg. 98)

Page 26: Piotr Kropotkin

25

aversão de uma ideia que conferia o pleno desenvolvimento do individuo e não deste em

conjunto com a sociedade14.

Já deixamos dito em um capitulo anterior quanto é ultra-metafisica, e

completamente afastada dos fatos da vida real, a afirmação unilateral do

individuo; quanto ela fere os sentimentos de igualdade, base de toda a

libertação, por que não há onde alguém pretende dominar; quanto esse

conceito de individuo aproxima os que se declaram categoricamente

individualistas das minorias de nobres, padres, burgueses, funcionários, etc.

que se julgam seres superiores as massas e aos quais devemos a

organização do Estado, da Igreja, da Magistratura, da Polícia, do

Militarismo, do Imperialismo e de toda a secular opressão que sofremos. O

segundo grupo de individualistas anarquistas compreende os mutualistas

de Proudhon 15[...] (KROPOTKIN, 1964, pg.138)

É Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), tipógrafo de profissão, o inspirador do

socialismo francês, o primeiro a se declarar anarquista, defendendo uma sociedade sem

governo e usando esse nome para resigna-la. Renegou as formas do comunismo baseado na

organização de monastérios ou barracões comunistas, bem como as Oficinas Nacionais e os

planos de um socialismo de Estado proposto por Louis Blanc. Marx, depois de romper com

os Jovens Hegelianos, entrou em contato com as ideias socialistas junto a Proudhon, quando

esteve exilado na França durante o período anterior a 1848, rompendo com ele após

publicar A Miséria da Filosofia, como resposta a Filosofia da Miséria de Proudhon.

14

Afirmar que alguém possa ter o direito de oprimir toda a humanidade, se para tal tiver forçam, que os direitos do individuo são apenas limitados pelos direitos que igualmente aos outros são reconhecidos, é indubitavelmente, cair em cheio no campo da dialética. [...] impossível para nós imaginar uma sociedade na qual o contato contínuo entre os seus membros não estabeleça, como resultado, a comunidade de interesses e não torne materialmente impossível a sua atuação sem o reflexo das consequências dos atos de cada um sobre a sociedade de que fazem parte. (KROPOTKIN, 1964, pg.141)

15 O segundo grupo de individualistas anarquistas compreende os mutualistas da escola de Proudhon a quem

também já nos referimos.Pensam estes ter achado a solução do problema social em uma organização livre, voluntária, que introduzisse o sistema de permuta dos produtos avaliados estes em bônus de trabalho. Estes bônus representam o número de horas despendidas por tal individuo em funções reconhecidas de utilidade pública. Ora, na realidade este sistema deixa de ser individualista no sentido que ao termo, em rigor, cabe. Representa um compromisso entre o comunismo e o individualismo, na posse coletiva do que serve para produzir: terras, máquinas, fábricas, etc... (KROPOTKIN, 1964, pg.139)

Page 27: Piotr Kropotkin

26

Primeiro dos teóricos do movimento, seu livro O que é a propriedade? A propriedade é

um roubo inaugura o anarquismo no movimento socialista, e o primeiro dos revolucionários

a realizar uma análise filosófica da Revolução. O princípio do Federalismo que desenvolve

em seu livro Do Principio Federativo será um dos pilares sobre o qual Kropotkin desenvolverá

sua proposta de uma rede de comunas territoriais, como opção ao Estado territorial, bem

como as concepções econômicas que marcam o anarco-comunismo. É em cima das teorias

econômicas de Proudhon que Kropotkin irá desenvolver suas ideias sobre o trabalho.

Proudhon criticava acerbamente todos os planos de revolução contidos

nesses espécimes de socialismo e, tomando de Robert Owen o sistema de

bônus trabalho desenvolveu a sua concepção de Mutualismo que tornaria

inútil, a seu ver, toda a forma de governo político. (KROPOTKIN, 1964,

pg.96)

Influenciado por Robert Owen pela ideia de bônus trabalho, pode desenvolver sua

ideia de Mutualismo. O valor mutatório de todos os produtos deve ser avaliado e expresso

pela quantidade de trabalho necessária a ser empregada no processo de produção. Todas as

trocas poderiam ser efetuadas através de um Banco Nacional, que estaria habilitado a

facilitar empréstimos a associações de trabalhadores, com juros de um por cento anual para

despesas administrativas a fim de incrementar a produção, também em bônus trabalho.

Acreditava que assim conseguiria criar uma rede de artesãos, camponeses e associações de

operários em um circuito independente, em uma retirada do sistema capitalista e uma

transformação pacífica da sociedade, um “capitalismo sem lucro”, pois não haveria uma

apropriação da mais-valia pela classe burguesa, e interpretava a propriedade no sentido

limitado de posse contra as interferências do Estado. “As principais relações entre planos os

cidadãos se baseariam no livre acordo e se regulariam por uma simples contabilidade. As

disputas se resolveriam pela arbitragem.” (KROPOTKIN, 1987, pg. 25)

Chegou a criar em 31 de janeiro de 1849 o Banco do Povo, que chegou a ter 27.000

membros, porém nunca chegou a funcionar, pois logo foi acusado oficialmente por

insurreição aos poderes instituídos, e condenado a três anos de prisão. Nessa época, suas

ideia já encontravam lugar entre os russos, como Tolstoi, que pegou emprestado o nome de

uma de suas obras, “La guerre et La paix”, cujo tema central era que “a missão do século XIX

é obter o fim do militarismo”. (WOODCOCK, 2002)

Page 28: Piotr Kropotkin

27

Se suas ideias não foram colocadas totalmente em prática durante o período de sua

vida, pode-se reivindicar a Proudhon o lugar de primeiro socialista. Ao reconhecer o

proletariado como sujeito histórico da revolução, juntou-se ao movimento ajudando a

levantar as primeiras barricadas em junho de 1848, ano que se dedicou a atividades

revolucionárias. Serão os seguidores de Proudhon que estabelecem as primeiras seções da

Internacional na França, apesar de Proudhon não ter sido o organizador do movimento

anarquista. São suas ideias que lançam as bases que o pensamento anarquista usou como

pedra angular.

Será o russo Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (1814-1876), descrito como

monumentalmente excêntrico16 e rebelde em todos os seus atos, talvez o que expressou

com mais vigor as paixões do anarquismo, bem como suas contradições. Filho da aristocracia

russa foi oficial júnior na Guarda Imperial Russa. Seu pai era um adepto das ideias

Iluministas, e descrevia sua mãe como uma despótica, de onde desenvolvera sua aversão à

autoridade. Se desligou do exército, e mergulhou na literatura e o estudo da filosofia,

primeiro Fichte e depois Hegel. Perdeu todos os seus bens confiscados pelo governo do Tzar

enquanto participava de movimentos revolucionários pela Europa.

Nunca possuiu uma profissão. Quando não estava preso, era empregado ou mesmo

mantido por parentes e amigos. Conheceu Marx17, quando este se encontrava exilado em

Paris e Proudhon, com o qual estabeleceu fortes laços de amizade. Dedicado totalmente a

revolução, foi condenado a morte duas vezes por governos diferentes, sendo sua sentença

atenuada para prisão perpétua. Quando preso pelo governo russo e exilado na Sibéria,

conspirou para que essa área recém-anexada ao território russo fosse declarada Estados

Unidos da Sibéria, federada com os Estados Unidos da América.

Era um pária como escritor. Enquanto outros anarquistas se esforçavam pela

propaganda e o desenvolvimento de uma crítica intelectual e científica, Bakunin realizava

16

Conforme seu amigo Vissarion Belinsky, “Um homem maravilhoso, uma natureza profunda, primitiva, leonina – isto não podemos negar dele. Mas suas exigências, a sua infantilidade, a sua fanfarronice, a sua falta de escrúpulos e a sua insinceridade – tudo isto torna a amizade com ele impossível. Amam as ideias, e não aos homens. Quer dominar com a sua personalidade, e não amar” (JOLL, 1977, pg.96)

17 Anos mais tarde escreveria Bakunin sobre Marx; “chamou-me um idealista sentimental, e tinha razão. Eu

chamei-lhe sombrio, convencido e desleal, e eu tinha razão também” (JOLL, 1977, pg.97)

Page 29: Piotr Kropotkin

28

um esforço homérico para finalizar suas cartas, e suas teorias econômicas quase sempre

derivavam de Hegel, Proudhon, Herzen e até mesmo Marx.

Homem de ação que concebeu revoltas dramáticas, estranhamente inúteis em seu

tempo. Conspirava como poucos, e laconicamente chegou atrasado as barricadas em 1848,

ano da revolução esperada. Sua personalidade, porém, era daquelas raras que inspiram pela

simples presença. Em seu instinto primal, a questão social era puramente a destruição da

sociedade, e pregou essa necessidade mais que nenhum outro anarquista de seu tempo,

apaixonadamente. A destruição leva a criação.

É na Associação Internacional dos Trabalhadores que Bakunin deixará sua marca, não

como teórico, mas como um catalisador do movimento operário anarquista. A dissolução da

Internacional dos Trabalhadores pelo governo com o fim da guerra Franco-Prussiana e a

insurreição da Comuna de Paris em 1871, com a obtenção do direito ao voto junto a

parlamento imperial pelo proletariado alemão, este passou a se organizar sob a divisa de um

partido social-democrata diferindo das táticas adotadas pelo movimento até então. Isso

provocou uma divisão dentro do movimento por parte das federações latinas. Espanha,

Itália, Bélgica formaram uma união federal independente do conselho geral da organização

de ideologia marxista. Foi dentro dessas federações que o anarquismo como movimento

ganhou corpo, além do início da histórica cisão entre os socialistas libertários e os

autoritários.

Bakunin então se tornou o opositor histórico de Marx durante a II Associação

Internacional dos Trabalhadores18, com uma posição solidamente definida contra o

autoritarismo de estado e a ditadura do proletariado se tornaria a falsa expressão da

vontade do povo, simples ditadura. Sua teoria anarquista que abrangia o campesinato como

sujeito histórico revolucionário em contrapartida ao conceito de lumpemproletariado de

Marx, onde as minorias não organizadas dentro das categorias clássicas do capital não

estariam aptas a realizar a revolução, que só poderia ser realizada sociedades industriais

com um proletariado que possuísse a consciência de classe. Isso contribuiu para que as

18

Que essa Associação não foi fundada por Karl Marx, ou qualquer outra personalidade de destaque, como nos querem fazer crer os marxistas e os cultivadores de heróis, é um fato mais que provado. Ela foi obra do encontro fortuito que ocorreria em 1862 em Londres, entre operários franceses, vindos para visitar a Segunda Exposição Universal, com os representantes das corporações inglesas de ofícios (Trade Unions), aos quais se agregaram alguns radicais ingleses para receberem aquela delegação. (KROPOTKIN, 1964, pg.100)

Page 30: Piotr Kropotkin

29

ideias anarquistas penetrassem nos países de língua latina, como Itália e Espanha, países

onde a população se relacionava com a produção agrária em seu contingente populacional,

ainda mais se confrontados aos níveis de desenvolvimento das forças produtivas na

Alemanha.

A Guerra Civil Espanhola em 1936 leva esse acerto de contas conceitual do movimento

socialista em um encontro atemporal através da práxis mais perigosa. Sua mais alta

formulação teórica e sua maior força de ruptura estão em simplesmente ter existido, com

suas milícias e brigadas internacionais, formados por campesinos, socialistas, e anarquistas,

na ultima revolução que levou o proletariado internacional as barricadas.

Contraditório, Bakunin manifestava em sua obra um antissemitismo em suas análises

econômicas sobre a formação e acumulação de capital e sua tributação na forma de juros,

responsabilizando os judeus que se utilizariam do organismo estatal para orquestração de

tal empreendimento. Ele se perde nas particularidades da forma mercadoria quando se

utiliza da psicologia étnica, a qual o espírito pangermânico e sua orientação estatal eram

atribuídos ao sangue e ao instinto alemão, e não a uma crítica as particularidades do

desenvolvimento histórico da Alemanha e sua posterior crença no Estado Absolutista.

Essa consanguinidade leva Bakunin a procurar o contra - polo anti - estatista nas

regiões de seu país natal. Os eslavos levados por paixões contrárias a dos alemães não

propiciavam a criação de um Estado entre si, e procurando sua reprodução sempre fora

deste, criando uma polarização eslava-pangermânica entre anti-estatismo e estatismo.

“Como coroação deste constructo não conceitual, em Bakunin estatalidade, pangermanismo

e “dominação judaica” fundem-se num complexo global; alemães e judeus são designados

de uma assentada como imagem do inimigo.” (KURZ, 2011)

Época em que vigorava a política dos pogrom na Rússia, Bakunin reproduz o discurso

do nacionalismo absolutista, prega a barbárie da raça corrompida pela consanguinidade, se

aproximando ideologicamente daquele darwinismo evolucionista que os geógrafos

anarquistas posteriormente tanto combateram, a naturalização do elemento geográfico

como identitário e suas classificações biológicas determinantes no caráter da humanidade.

Os comentários de Kropotkin sobre Bakunin em suas obras se dirigem ao desempenho

e a luta de Bakunin na Internacional contra o socialismo autoritário e sua recusa radical do

Estado, de importância crítica no tencionamento junto a imobilidade do elemento

Page 31: Piotr Kropotkin

30

modernizador no pensamento marxista em relação ao Estado. Sua influência sobre

Kropotkin se manifestará pela recusa determinante total do Estado e o combate contra o

socialismo-autoritário no seio da Internacional, mais que pelas suas ideias de organização

política e econômica.

O Coletivismo19 que Bakunin propunha estava alicerçado nas associações de

trabalhadores independentes de Proudhon, porém o trabalho a ser gerenciado se dava a

“cada um de acordo ao seu trabalho”. Se a Bakunin a critica da mercadoria se faz ausente

mais que a todos os outros anarquistas, essa proposta se firma pelo mais burguês dos

conceitos; o equivalente da mercadoria força-trabalho, como nexo de sociabilização.

Tanto a ideia de uma associação de trabalhadores livres de Proudhon, quando a

coletivização dos meios de produção por grupos de trabalhadores proposta por Bakunin, e a

socialização e livre distribuição dos produtos de trabalho do anarco –comunismo de

Kropotkin (o qual é dedicado um capítulo a seguir) reduzem a alternativa ao capitalismo a

relações de vontade imediatamente empíricas e simples, com cooperativas e comunidades

de democracia de base onde seus limites estariam livres da dominação de acordo com

decisões comuns. Vale refletir a relação entre as cooperativas e as comunidades de base,

conforme Robert Kurz:

Marx expressa-se sobre isso em A guerra civil em França apenas de modo

breve e significativamente vago no que respeita à determinação do

conceito: “Ora aqueles membros das classes dominantes que são

suficientemente inteligentes para perceber a impossibilidade de continuar

o sistema presente – e são muitos – tornaram-se os apóstolos, importunos

e de voz cheia, da produção cooperativa. Mas se a produção cooperativa

não permanecer uma fraude e uma armadilha, se substituir o sistema

capitalista, se a totalidade das cooperativas regular a produção nacional

segundo um plano comum, tomando-a assim sob o seu próprio controle e

19

Quanto as suas ideias econômicas, Bakunin se dizia, junto com os seus camaradas federalistas das Internacional, “anarquista coletivista”; não como foram Vidal e Becqueur nos anos 40, os seus modernos seguidores social-democratas, mas como defesa de um estado de coisas em que todos os meios de produção fossem propriedade comum de grupos de trabalho e das comunas livres, e em que o sistema de retribuição de trabalho, comunista ou de outro gênero, fosse estabelecido por cada grupo. A revolução social, cuja proximidade prediziam então todos os socialistas, seria o meio de dar vida as novas condições. (KROPOTKIN, 1987, pg.28)

Page 32: Piotr Kropotkin

31

pondo termo à anarquia constante e às convulsões periódicas que são a

fatalidade da produção capitalista – que seria isto, senhores, senão

comunismo, o comunismo ‘possível’?” (KURZ, 2011)

Na produção baseada em cooperativas, tanto Marx quanto os autores anarquistas,

reduzem a questão da produção de mercadorias e das organizações operárias em seu

enfoque sociológico baseado em uma vontade empírica dos sujeitos. As cooperativas

continuam se relacionando através do mercado mediante a produção de mercadorias

juntamente ao seu duplo valor de uso e valor de troca. E mesmo sem um Estado em sua

totalidade e como regulador e organizador da divisão do trabalho territorial, as cooperativas

não podem permanecer isoladas no seu processo de produção, sendo que o fetiche da

mercadoria como mediação continua presente nessa relação.

O planejamento ou planificação da produção pressupõe uma centralização da

organização das cooperativas, um atributo pertencente ao próprio Estado (que apoiou o

sistema de cooperativas no século XX no ocidente tanto no campo quanto na cidade, bem o

socialismo real soviético). Na perspectiva liberal clássica, se essas cooperativas se auto

regulassem, ainda estaria presente a “mão invisível do mercado” como mecanismo de

regulação, que exigiria um correspondente de forma política e jurídica para além das

expressões empíricas de vontade. Dessa forma:

Assim como os dois polos de um campo magnético ou de uma bateria

elétrica não se excluem apenas, mas também se condicionam

reciprocamente e são, por conseguinte, complementares, assim também

ocorre com as posições antípodas da modernização. O mercado e o Estado,

o dinheiro e o poder, a economia e a política, o capitalismo e o socialismo

não são, na verdade, alternativas, mas constituem os dois polos de um

mesmo "campo" histórico da modernidade. O mesmo vale para o capital e

o trabalho. Não importa quão inimigos sejam os dois polos, eles não

poderão, por sua natureza, existir exclusivamente para si enquanto existir o

"campo" histórico, que os constitui na sua oposição. Esse "campo",

considerado na sua totalidade, é o moderno sistema produtor de

mercadorias, a forma da mercadoria totalizada, a transformação incessante

do trabalho abstrato em dinheiro e, com isso, na forma de um processo, a

"valorização" ou a economicização abstrata do mundo. (KURZ, 1994)

Page 33: Piotr Kropotkin

32

Se na Revolução Francesa o reconhecimento da mercadoria força de trabalho como

sujeito jurídico burguês é herança para o Ocidente, no socialismo real da União Soviética a

estatalidade moderna aparece naturalmente como forma geral do “socialismo”. A

positivação do sujeito reduzido à esfera política em uma crítica sociológica esvaziada da

crítica categorial, não oferece uma reflexão sobre a relação dialética das categorias da

modernidade.

A organização social fundamentada na produção de mercadorias para sua reprodução

ainda está sujeita ao duplo valor de troca e valor de uso da mercadoria. Se há mercado,

deverá haver um organizador dessas relações em algum nível jurídico tanto para a produção

como para circulação e consumo das mercadorias. O mercado necessita de sua esfera

jurídica Não há mercado sem Estado, o mesmo vale para o contrário. Ao Bakunin propor a

constituição de uma federação que congregasse a Rússia e o já federado Estados Unidos da

América, “Marx anota certeiramente: ‘Este local é muito característico de Bakunin, o Estado

capitalista autêntico para ele é antigovernamental. ’” (KURZ, 2011).

A proposta de comunas territoriais federadas com sua produção organizada em

cooperativas, ainda estaria sujeita ao espectro do Leviatã?

Page 34: Piotr Kropotkin

33

1.3 Пётр Алексе́евич Кропо́тки

(Piotr Alexeyevich Kropotkin)

Sonhar o sonho impossível, sofrer a angústia implacável,

pisar onde os bravos não ousam, reparar o mal irreparável,

Amar um amor casto à distância, enfrentar o inimigo invencível,

tentar quando as forças se esvaem, alcançar a estrela inatingível:

essa é a minha busca.

Dom Quixote, Miguel de Cervantes

Kropotkin. Ao lado de Humboldt, talvez seja o geógrafo mais citado por não geógrafos.

Junto a Stirner, Proudhon e Bakunin foi um dos principais pensadores do movimento

anarquista. A ele é creditada, dentro da teoria anarquista, a corrente conhecida como

anarco-comunismo. Amigo de Willian Morris e Oscar Wilde, citado por autores dos mais

diversos, como Emile Zola, Leon Tolstoi, George Woodcock, Noam Chomsky, Hebert Read,

Paul Fayerabend, entre tantos outros (VISENTINI, 2009, pg.172). A influência de suas ideias

ecoa em diversas correntes do pensamento contemporâneo, como na ecologia urbana de

Lewis Mumford e Paul Goodman, na visão bioregional de Kirkpatrick Sale, na ecologia social

de Murray Bookchin, e os pós-estruturalistas como Michel Foucault e Gilles Deleuze,

atraídos particularmente pela crítica de Kropotkin ao estado, a representação e a vanguarda

partidária. (MORRIS, 2010, pg.5) A banda de Punk Delta Blues de Maurenn Tucker, baterista

da imortal banda de Lou Reed, The Velvet Underground, o homenageia levando seu nome

“The Kropotkins”, realizando uma fusão de sons como rock, folk, country e pop com o blues

do Delta do Mississipi de fundo. Este capítulo se propõe a apresentar a figura de Piotr

Kropotkin, um nobre russo militar da antiga casa de Rurik, que se tornou um dos mais

conhecidos revolucionários e um teórico do movimento anarquista de seu tempo. Uma

pequena imersão na biografia de sua vida, seu envolvimento com o anarquismo essa

doutrina revolucionária oferecia de combustível às suas ideias científicas.

Se antes anarquistas como Godwin, Déjacque, Stirner e Proudhon oscilavam entre uma

forma de filosofia política e econômica, na segunda metade do sec. XIX, com a expansão do

Imperialismo pelo globo e a disputa de recursos para a indústria, bem como o

aprofundamento de uma divisão territorial do trabalho mundial, diversos anarquistas

Page 35: Piotr Kropotkin

34

optaram pela geografia, como Léon Metchnikoff, Mikhail Dragomanov, Gustave Lefrançais

ou Charles Perron.

Críticos do Darwinismo social, sua proposta teórica é diametralmente oposta a

produção contemporânea de geógrafos universitários como Ratzel, Richtofen, Kjellén e

Haushofer, adeptos da eterna luta de todos contra todos. Como uma rede, sua produção

científica se realiza coletivamente. A teoria da Ajuda Mútua que ficou famosa através de

Kropotkin foi inicialmente abordada em um artigo por Metchnikoff e compartilhada por

Reclus, antes da sistematização da teoria ser feita por parte de Piotr.

A sujeição ao trabalho é uma constante na biografia de Kropotkin. Depois de partir da

Rússia como fugitivo da Fortaleza de Pedro e Paulo, e sob a condição de imigrante ilegal na

Inglaterra, inicia suas publicações de caráter científico sob o nome falso de “Sr. Levachov”. A

Nature fora uma das primeiras revistas em que conseguira publicar, e onde se tornou amigo

do geógrafo John Scott Keltie. Kropotkin só revelou sua identidade a Keltie quando este deu

a Kropotkin obras sobre o período glacial e a orografia da Ásia em russo de autoria do

próprio Kropotkin, que frente ao dilema de criticar as próprias obras, revela sua identidade.

Foram publicados seus estudos sobre Geologia e Glaciologia tanto pela Sociedade

Geográfica Russa como a Britânica, e durante os quarenta anos em que viveu no exílio

contribuiu para publicações como The Nineteenth Century, Les Temps Nouveaux, The Times,

Nature, Geographical Journal, entre outros, bem como sua colaboração com a Sociedade

Geográfica Real de Londres, onde travara diversos debates com Mackinder.

Infância e juventude

Piotr Ayexeyevich Kropotkin. Esse homem a quem Oscar Wilde se referia como “... um

homem com a alma daquele Cristo branco que parece que virá da Rússia” (JOOL, 1977, pg.

188) nasceu em 1842, no antigo Bairro dos Escudeiros – a Staraïa Koniuchumaia – o qual

passou seus primeiros quinze anos. Esse bairro fora ocupado pela velha nobreza moscovita,

após Pedro Grande, considerado por Kropotkin o fundador do Estado Russo (KROPOTKIN,

1946, pg.20) chamar “homens de todas as condições” para ocuparem os cargos a serviço do

Estado. Dessa maneira, a nobreza perde cada vez mais espaço no que tange ao serviço

público, se dedicando então em sua maioria ao serviço militar, tal como o pai de Kropotkin,

Page 36: Piotr Kropotkin

35

Alexei Petrovich Kropotkin. Este descendia da antiga família aristocrata dos Rurik, dinastia

que governara a Rússia antes dos Romanov. Seus antepassados haviam sido príncipes do

principado de Smolensk, o que lhes garantiam cargos importantes no estado e no exército, já

que a carreira militar era praticamente uma imposição aos filhos da nobreza, garantia de

manutenção do status social.

Kropotkin descreve seu pai como um típico oficial dos tempos de Nicolau I. Nunca

participara de uma batalha e não tinha nenhum gosto pela vida no campo. Era um amante

do uniforme, desdenhava qualquer outra maneira de se vestir e era o oficial que exibia na

parada homens tão perfeitamente enfileirados e imóveis que pareciam soldados de chumbo.

Sua mãe, Ekaterina Nikolaevna Sulima, filha de um general russo, marcou a personalidade de

Kropotkin profundamente.

Ao contrário de seu pai, sua mãe nutria gosto pelas artes. Anos depois de sua morte,

Kropotkin encontrou seu diário, onde ela escrevia sobre seus desgostos e sua sede de

felicidade e copiava poesias proibidas pela censura como do poeta Ryleiev, possuindo

cadernos contendo músicas, dramas franceses. Era leitora de Lamartine e de Byron, muito

amada pelos criados. Após sua morte, são estes que cercam de cuidados as crianças órfãs.

Esse episódio marcaria a vida de Kropotkin com uma grande dedicação com a condição dos

servos e camponeses russos, apesar de sua origem nobre: “Não sei o que teria sido de nós,

senão tivéssemos encontrado em casa, entre os criados a atmosfera de amor de que as

crianças tanto necessitam” (KROPOTKIN, 1946, pg.28). Após o falecimento da mãe, as

crianças ficaram aos cuidados da governanta alemã madame Burman. O carinho com que os

servos trataram Kropotkin e seu irmão será um dos fatores decisivos que influenciará

Kropotkin nos caminhos da revolução.

Dois anos após a morte de sua mãe, seu pai se casa novamente. Sua madrasta

procurava apagar a presença da mãe de Kropotkin na família, assim, eles passariam a morar

em diversas casas no mesmo bairro antes de se fixarem em um novo lar. Seu pai contratou

para sua educação e de seu irmão um preceptor francês, chamado Mr. Poulain, bem como

um jovem estudante de Direito chamado Nicolau Pavlovich Smirnov como professor de

russo.

Aos oito anos seu destino é decidido por um mero acaso. Em um baile organizado em

Moscou para a comemoração do 25º aniversário da coroação do Tzar Nicolau I, onde as

Page 37: Piotr Kropotkin

36

famílias nobres estariam presentes, Kropotkin substituíra o filho de uma amiga de sua

falecida mãe que se adoentara ás vésperas de um baile à fantasia. Assim, o pequeno infante

vestido de príncipe persa, se perde em meio aos movimentos e danças, se encontrando com

o Tzar Nicolau I, conquistando sua simpatia. Com o final do baile, Nicolau I ordena que o

menino seja enviando para o Corpo de Pajens, a mais exclusiva escola militar da Rússia

Tzarista onde os assistentes pessoais da família imperial eram escolhidos. (WOODCOCK,

1978, pg.165)

O Corpo de Pajens era uma escola de duplo caráter de escola militar com prerrogativas

especiais e de instituição da Corte, ligada a Casa Imperial. Após a permanência de quatro ou

cinco anos, após os exames finais os alunos eram recebidos como oficiais de um Regimento

da Guarda ou de qualquer outro do Exército, de acordo com sua escolha, houvesse vaga ou

não, além dos dezesseis melhores alunos serem nomeados “Pajens da Câmera”, a serviço

especial de diversos membros da família imperial como o Imperador e a Imperatriz, os Grão

Duques e as Grã Duquesas, sendo considerado um serviço de grande honra. Os rapazes

nessa posição eram posteriormente nomeados “Ajudantes de Campo” com todas as

facilidades para uma brilhante carreira no Estado (KROPOTKIN, 1946, pg.79).

Ao ingressar na escola 1857, Kropotkin fora influenciado pelo espírito de reforma

presente então no início do reinado de Alexandre II, pelo crescente questionamento da

cerrada disciplina pelos alunos, e pelas reformas pedagógicas ocorridas com a entrada de

novos professores na instituição. Possuindo um verdadeiro prazer nos estudos, nessa fase

ele começa a desenvolver um crescente interesse em Geografia, inicialmente despertado

pela leitura dos livros de seu preceptor, Mr. Poulain.

Matemática, física e astronomia - posteriormente economia – são suas principais áreas

de interesse. Correspondia-se por carta com seu irmão Alexandre, pelo qual nutria um

grande amor, onde os dois discutiam e compartilhavam a experiência das mais variadas

leituras. Autores como Kant, Turguniev, Volteire, Michelet, e Goethe estavam em voga na

conversa dos irmãos. Por influência de Alexandre, propusera-se a aprender a língua alemã, e

começou a travar contato com diversas obras que teriam um impacto crucial em sua

formação:

“No fim do inverno pedi a Herr Becker que me emprestasse um exemplar

do “Fausto” de Goethe, que eu já havia lido numa tradução russa. Lera

Page 38: Piotr Kropotkin

37

também o belo romance de Turguenev, “Fausto” e desejava muito ler a

obra prima de Goethe no original. “Não vai compreender nada, é muito

filosófico”, disse-me Becker, sorrindo com bondade; mas apesar disso

trouxe-me um livro pequeno, quadrado, de páginas amarelecidas pelo

tempo e que continha o drama imortal. Não soube que alegria aquele

livrinho me proporcionou. Absorvi o sentido e a música de cada linha,

desde os primeiros versos da dedicatória de uma beleza ideal e não tardei

em aprender de cor páginas inteiras. O monólogo de Fausto na floresta e

especialmente os versos em que fala da sua concepção da natureza; “Tu me

ofereceste a Natureza e a puseste sob a minha mão fazendo-me sentir o

quanto era bela. Tu me disseste: “não fiques diante dela apenas friamente

exaltado, mas contempla o seu âmago como se fosse o coração de um

amigo,” encheram-me de entusiasmo e esse trecho conserva ainda hoje

todo o seu poder sobre mim.” (KROPOTKIN, 1946. p. 92-93)

Seu fascínio pela natureza o leva a desenvolver um grande interesse pelas ciências

naturais, bem como as diversas descobertas científicas divulgadas em sua época de

estudante, então, recentemente traduzidas para o idioma russo:

“Como se sabe, os anos de 1859 a 1861 assinalaram-se por um

desenvolvimento especial do gosto pelas ciências exatas: Grove, Clausius,

Joule e Seguin acabavam de demonstrar o calor e todas as forças físicas são

apenas formas diferentes do movimento: Helmholtz começava já nessa

época as suas célebres pesquisas sobre o som; e Tyndall, nas suas

conferências populares, tornava palpáveis, por assim dizer, os átomos e as

moléculas. Gerhardt e Avogrado apresentavam a Teoria das Substituições e

Mendeleiev, Lothar Meyer e Newlands descobriram as leis periódicas dos

elementos; Darwin, com sua Origem das Espécies, revolucionava todas as

ciências biológicas ao passo que Karl Vogt e Moleschott, seguindo as

pegadas de Claude Bernard, fixavam os fundamentos da psicofísica. Foi uma

grande época de renascimento científico e a corrente que dirigia os

espíritos para as ciências naturais tornou-se irresistível. Nessa época foram

traduzidos para o russo inúmeros livros excelentes e em breve compreendi

que quaisquer que sejam os estudos ulteriores, um homem precisa, antes

de tudo, conhecer a fundo as ciências naturais e familiarizar-se com seu

método” (KROPOTKIN, 1946, pg.119)

Page 39: Piotr Kropotkin

38

Essa paixão pelas ciências norteia seu olhar durante sua vida, refletindo até mesmo em

seus escritos anarquistas. Posteriormente adota o positivismo, método por excelência das

ciências naturais, como o método do anarquismo. Futuramente elabora a teoria da Ajuda

Mútua,baseada na teoria do Apoio Mútuo, onde para a evolução das espécies a cooperação

entre seus membros seria o fator decisivo para sobrevivência, em contrapartida a teoria da

competição de Darwin.

Em meados de 1862, a conclusão de seus estudos no Corpo de Pajens estava próxima

do fim, e cada aluno deveria indicar para qual regimento da guarda desejariam ingressar. Em

suas reflexões, sua predileção por ciências da natureza o leva a se decidir pela Sibéria,

momento decisivo para sua futura incursão na Geografia. Inicialmente, Kropotkin enfrenta a

resistência não só de seu pai, que telegrafa ao diretor do instituto se opondo a decisão do

filho, mas de professores e colegas. É então que, mais uma vez, outro acaso decisivo se faz

presente em sua vida.

Um terrível incêndio irrompe em uma praça da cidade, Apraxine Dvor, local de uma

imensa feira formada por barracas que vendiam toda sorte de objetos, e se espalha pela

cidade. Diante da incapacidade das autoridades de se organizarem para o combate das

chamas, o povo se organiza para combatê-las e dessa forma, os próprios cadetes passam a

defender o Corpo de Pajens e os arredores das chamas. Kropotkin lidera uma brigada de

soldados que lhe é confiada pelo Conde Suvorov em meio ao caos, e estes conseguem

controlar o incêndio nessa área. No dia seguinte, o Grão Duque Miguel, ao felicitar Kropotkin

pela sua atuação durante a crise, se oferece para escrever uma carta de recomendação ao

governador da província de Amur para que ele seja aceito. Dessa forma, fica decidida sua ida

para a Sibéria. Essas expedições que Kropotkin realizaria e que seriam decisivas na sua

decisão em se tornar um geógrafo se compõe na inserção do sujeito no processo de

modernização do Império Russo.

Explorador, geógrafo... Anarquista

Kropotkin chega à província do Amur no verão de 1863 - um ano após ter chego a

Sibéria Oriental, onde se tornou ajudante de campo particular do Chefe de Estado Maior B.

K. Kukel, - indo para uma viagem a região do Amur, na Sibéria.

Page 40: Piotr Kropotkin

39

É lá que Kropotkin realizaria diversas expedições, sendo que a sua primeira expedição

não possuiu um caráter científico, mas uma expedição que possuía o caráter de organização

e ocupação territorial de uma porção desse território recém-anexado pela Rússia graças ao

Conde Nicolau Muraviev20, então Governador Geral da Sibéria Oriental. A Rússia passava na

época por uma política imperialista de anexação de diversos territórios a fim de expandir

suas fronteiras políticas, já que seu processo civilizatório não se qualifica pela conquista de

territórios ultra-mar, mas na conquista da plataforma continental da Eurásia dentro da

particularidade de seu processo de modernização.

É verdade que o Império dos czares fazia parte das potências europeias

tradicionais e tinha ele próprio roubado um império colonial para si,

embora não no Ultramar, mas como expansão para a massa continental da

Eurásia. Mas, ao mesmo tempo, a Rússia era ela mesma também periferia,

sem uma base industrial própria e, em muitos aspectos, estava em larga

medida estruturalmente aparentada com as regiões coloniais e

dependentes. (KURZ, 2003)

Concebendo um plano de ocupação territorial contemplando a região banhada pelo

Rio Amur e de seu afluente Usuri, compreendendo uma área de mais de 4.000 quilômetros,

compondo uma cadeia de cidades russas, com o objetivo de assegurar um canal de

comunicação entre a Sibéria e a costa do Pacifico bem como a posse territorial do Império

Russo, o Conde Muraviev liberta tanto os presos forçados quanto os escravos das minas

imperiais. Mais de mil homens condenados por roubo e assassinato, bem como mulheres

nas mesmas condições, são levados a colonizar a área devido à população insuficiente da

Sibéria Oriental. Todos se estabelecem como homens livres na parte inferior do Amur.

Para abastecer essa população, é necessário o envio de diversos viveres como grandes

quantidades de sal, farinha e carne em conserva, contando apenas com os rios como meio

de transporte. Dessa forma Kropotkin é designado adjunto chefe da flotilha de cento e

cinquenta barcos enviados para abastecer a região de difícil acesso.

20

Um homem de ideias avançadas descreve Kropotkin, que comenta: “No seu próprio gabinete, os jovens Oficiais e o exilado Bakunin (que fugiu da Sibéria no outono de 1861) discutiam as probabilidades que se tinha de poder criar os Estados Unidos da Sibéria, federados através do Pacífico, com os Estados Unidos da América.” (KROPOTKIN, 1946, pg. 168)

Page 41: Piotr Kropotkin

40

Somente aqueles que já viram o Amur ou os que conhecem o Mississipi

podem imaginar que rio gigantesco se torna o primeiro depois de ter

recebido o Sungari, e as vagas imensas que sobem o seu curso, nos dias de

tempestade. Em julho, quando caem as chuvas devidas às monções, o

Sungari, o Usuri e Amur recebem quantidades inimagináveis de água.

Milhares de ilhas baixas geralmente cobertas de salgueiros, são inundadas

ou varridas pela correnteza. A largura do rio atinge em certos pontos oito

quilômetros. As águas formam centenas de braços e de lagos que se

enfileiram nas depressões ao longo do leito principal e quando o vento

sopra de leste ao encontro da corrente, erguem-se vagas imensas, mais

altas do que as que agitam o estuário de São Lourenço, e sobem a corrente

principal, bem como os canais laterais. É pior ainda quando um tufão, vindo

da China, se abate sobre a região do Amur. Fomos testemunhas de um

desses tufões. (KROPOTKIN, 1946, p.187)

Durante uma dessas tempestades, cerca de quarenta e cinco embarcações de

cinquenta toneladas são inutilizadas, sendo salva apenas uma pequena quantidade da carga.

Inicia-se uma difícil viagem para que Kropotkin conseguisse informar as autoridades a tempo

de enviar mais viveres antes que a navegação do Amur fosse interrompida durante o

inverno.

Após viajar uma distancia de oitocentas léguas em vinte dias, contando com barcos

tanto a vapor como á remo, se tratando de uma região caudalosa, bem como a cavalo,

chegou a Tchita, onde o governador da Transbaicália tratou de enviar os viveres necessários

a tempo, enviando Kropotkin a São Petersburgo a fim de informar o ocorrido. Chegando a

São Petersburgo, contou com a ajuda do Ministro da Guerra, Dmitri Milutine, que o conhecia

de sua estada no Corpo de Pajens do Imperador, para atribuir o juízo da veracidade da

informação, já que ninguém acreditava na história de tão jovem oficial. Após o ocorrido, fora

nomeado adido do Governador Geral da Sibéria Oriental para negócios dos Cossacos.

Aceitou uma proposta de empreender uma exploração geográfica com fins de estabelecer

uma rota comercial na região da Manchúria, onde sua missão era realizar o levantamento

cartográfico da antiga estrada que ligaria a região de Transbaicália com a do Amur.

A Transbaicália é muito rica em gado, e os Cossacos da região sudeste, que

são grandes criadores, queriam estabelecer comunicações diretas com a

Page 42: Piotr Kropotkin

41

região central do Amur, que seria um ótimo mercado para seus rebanhos.

Faziam comércio com os mongóis, e tinham ouvido dizer que não seria

difícil atingir o Amur, dirigindo-se a leste, através do Grande Khingan.

Tinham-lhes dito que andando sempre em linhas retas na direção do leste

sairiam numa velha estrada chinesa, que atravessava o Khingan e conduz a

cidade mandchuriana de Merghen, sobre o Nonni, tributário do Sungari, de

onde uma excelente estrada leva ao médio Amur. (KROPOTKIN, 1946,

pg.194)

Devido ao tratado sino-russo, não era permitido a presença de um oficial militar nessa

região, sendo preparada uma expedição geográfica transvestida de comercial, aonde

Kropotkin iria disfarçado de comerciante. Sua caravana era composta por onze Cossacos e

um Tunguse, levando quarenta cavalos e duas carruagens com tecidos, veludos de algodão,

galão dourado e outros artigos para serem comercializados.

Soldados chineses lhes fizeram companhia logo no início da viagem, o que lhe

dificultou os primeiros levantamentos de dados. “Tive portanto de contentar-me muitas

vezes com um rápido olhar à bússola, anotando as altitudes e distância no meu bolso”.

(KROPOTKIN, 1946. p. 198). Após quatro dias do início da viagem, chegaram a velha estrada

chinesa que os conduziria a Merghen, através do Khingan. Foram acompanhados por um

velho funcionário chinês que realizava a mesma travessia, que para surpresa da expedição se

revelou das mais fáceis.

Com grande espanto nosso, verificamos que essa travessia da cadeia de

montanhas, que parecia tão sombria e horrível, era na realidade das mais

fáceis. Encontramos na estrada um velho funcionário chinês com uma cara

de fazer pena. Viajava na mesma direção que nós, numa carruagem de duas

rodas. Durante os dois últimos dias, a estrada subia muito, e a própria

região atestava a sua grande altitude. O terreno era pantanoso, a estrada

lamacenta, o pasto miserável e as árvores escassas, secas e cobertas de

líquens. Montanhas, sem vegetação, elevavam-se de ambos os lados; e já

imaginávamos as dificuldades que teríamos ao atravessar a cordilheira,

quando vimos o velho funcionário chinês descer da carruagem, diante de

um “obo”, isto é, um monte de pedras e de ramos de árvores às quais se

prendiam mechas de crina de cavalo e pedaços de estopa. O velho arrancou

alguns pelos da crina do seu cavalo e amarrou-os aos ramos.

Page 43: Piotr Kropotkin

42

- Que é isso? Perguntamos.

- O “obo”. As águas, a partir daqui correm para o Amur.

- Estamos então no fim do Khingan?

- Sim. Daqui ao Amur não há mais montanhas a atravessar; apenas colinas!

(KROPOTKIN, 1946, pg.199)

A segunda parte da viagem transcorreu de forma tranquila. Abandonaram o velho

funcionário chinês que estava suspeitando da veracidade dos documentos bem como do

caráter comercial da expedição, e que queria enviar um relatório para o governo chinês.

Seguiram para a Manchúria. Poucos dias depois chegaram a Merghen, e venderam suas

mercadorias. No final da jornada, haviam descoberto a configuração da cadeia marginal do

Khinghan, a facilidade de sua travessia e os vulcões terciários da região de Uiun Kholdontsi,

entre outras coisas. (KROPOTKIN, 1946, pg. 202)

Após alguns meses, Kropotkin inicia outra expedição com objetivo de explorar o rio

Sungari, maior afluente do Amur, localizado em território chinês. A expedição fora

organizada sob o pretexto de levar uma mensagem para o Governador Geral da província de

Ghirine, envolvendo o mapeamento do rio Sugari e assegurar se o trajeto do mesmo era

navegável, para futuras trocas comerciais. O pequeno vapor de nome “Usuri” levava um

médico, um astrônomo, dois topógrafos bem como Kropotkin sob o comando do Coronel

Tchernyaiev. O vapor rebocava um barco carregado de carvão o qual transportava vinte e

cinco rifles dissimulados em sua carga.

Enfrentando poucos problemas, e apesar do pouco contato com os chineses, chegaram

com sucesso a Ghirine, onde entregaram a mensagem. Constataram a navegabilidade do rio,

bem como erigiram sua cartografia. Ao fim da expedição, Kropotkin e o astrônomo Usoltzev

publicaram um relatório nas “Memórias” da Sociedade Geográfica Russa, que infelizmente

se perdeu em meio a um grande incêndio em Irkutsk junto ao mapa original do Sungari.

Somente trinta e cinco anos depois, com a construção da estrada de ferro da Mandchúria

que os geógrafos russos reencontraram esse material. (KROPOTKIN, 1946)

Durante sua estadia na região do Amur, ele participaria de mais duas expedições. A

expedição do Sayan Ocidental realizada em 1865 permitiu a uma melhor compreensão da

estrutura das altas terras siberianas, além de descobrir uma região vulcânica na fronteira

com a China. No ano seguinte, empreendeu uma longa viagem a procura de uma

Page 44: Piotr Kropotkin

43

comunicação direta com as minas de ouro da província de Yakutsk e a Transbaicália. Munido

de um mapa que um turguesa traçara sobre um pedaço de cortiça, Kropotkin, um topografo

e um naturalista chamado Palakov iniciaram suas buscas. Após incluírem na equipe um velho

caçador akute, atravessaram a região montanhosa e após três meses, encontraram a

passagem que levava a Tchita.

Com a insurreição dos deportados poloneses, durante a Revolta de Janeiro na Polônia,

bem como a violência empregada contra estes pelo Estado durante e após o término do

conflito, em 1866 Kropotkin e seu irmão Alexandre decidem abandonar o exército.

Em 1867 Kropotkin retorna a São Petersburgo, ingressando no curso de matemática da

Faculdade de Ciências Físicas e Matemáticas, onde se dedicaria durante os próximos cinco

anos. Possuindo uma sólida base em matemática, dispensa uma parte de seu tempo para o

estudo da geografia. Kropotkin passa então a trabalhar na seção de geografia física, na

Sociedade Geográfica Russa, na qualidade de secretário da seção, onde idealiza vários

projetos.

Um de seus planos era publicar um estudo sobre a Ásia setentrional, expondo as ideias

que tivera durante suas explorações em como se davam as cadeias de montanhas dessa

parte do globo, questionando as teorias de Humboldt. Porém, devido sua prisão em 1873

não consegue terminar esse projeto, que acaba se resumindo a um mapa e um sumário

publicados pela Sociedade Geográfica Russa.

Intenta também publicar uma obra onde descreveria a estrutura física da Rússia, bem

como as características econômicas das diversas regiões segundo o método de Ritter,

quando se encontrava em uma exploração na Finlândia e Suíça para o estudo dos depósitos

glaciais, quando no outono de 1871, recebe um telegrama pedindo que assumisse o cargo

de secretário da Sociedade Geográfica Russa. “Meus sonhos estavam realizados”, escreveria

ele em sua biografia.

Assim, passados os anos na Sibéria, já ativo membro da Sociedade Geográfica, na

solidão da Finlândia, Kropotkin passava por muitas reflexões. Seria esse o momento da

ruptura entre o cientista e o revolucionário? Difícil dizer. Mas os primeiros passos de uma

vida dedicada a causa revolucionária é dada. Apesar do sucesso da expedição, que constituiu

Page 45: Piotr Kropotkin

44

um grande material publicado com o título “Pesquisas sobre o Período Glacial”21 pelas

“Memórias” da Sociedade Geográfica, além de compor junto ao seu companheiro de

expedição, o geólogo Friedrich Schmidt, um conceito de dinâmica do manto do gelo, onde a

erosão e as marcas nas rochas de granito só poderiam ter sido causadas pela ação de uma

enorme massa de gelo que se entendia sobre a terra movimentando-se lentamente e

exercendo uma grande pressão, deixando ranhuras nas rochas de gelo por onde a massa

glacial passava (IVANOVA, 2008 p. 127), porém, outras inquietações tomavam de assalto seu

espírito:

Vendo quanto esforço dispende o camponês da Finlândia para lavrar a terra

e quebrar os duros torrões de barro, pensava: “Provavelmente acabarei

descrevendo a geografia física desta parte da Rússia, e indicarei ao

camponês a melhor maneira de cultivar o solo. Aqui, um extirpador

americano seria inestimável; ali certos processos de adubação seriam

indicados pela ciência.” Mas de que vale falar a esse camponês em

máquinas americanas, quando ele tem apenas o pão indispensável para

vegetar de uma colheita a outra, quando a renda que tem de pagar por essa

terra argilosa se torna mais elevada à medida que ele melhora o solo? Rói a

sua broa de farinha de centeio, dura como pedra, que é feita duas vezes por

ano. Com esse pão come um pedaço de bacalhau horrivelmente salgado e

bebe leite desnatado. Como me atreveria eu a lhe falar em máquinas

americanas, quando tudo o que ele pode produzir tem de vender para

pagar o aluguel da terra e os impostos? O que é preciso é que eu viva com

ele, para ajudá-lo a tornar-se o proprietário ou o possuidor livre desta terra.

Só então poderá ler os livros com proveito; mas agora é inútil. (KROPOTKIN,

1946, p. 227-229)

E recusa o cargo de secretário da Sociedade Geográfica Russa, bem como a

oportunidade de se tornar “oficialmente” um geógrafo. Como um jovem nobre russo de

educação ilustrada que crescera cercado pelos servos de seu pai, ansiava por reformas

liberais as quais o Império Russo sempre se negou a fazer. E tal como Bakunin se lançaria em

uma jornada rumo ao movimento revolucionário.

21

“Researches on the Glacial Period.” tradução livre do autor.

Page 46: Piotr Kropotkin

45

Ainda no ano de 1871, retorna a São Petersburgo, e como muitos jovens russos dessa

época procura se engajar em um plano para a constituição de escolas para os servos recém

libertos. Devido a repressão das autoridades russas que consideravam suspeitas tais escolas,

decide realizar sua primeira viagem a Europa Ocidental.(WOODCOCK, 2002) Esse ano data a

morte de seu pai. Foi primeiro para a Suíça, onde se encontrava um grande número de

radicais russos, homens e mulheres, que se dedicavam a vida universitária bem como a

política expatriada ao lado de Bakunin e Peter Lavrov. Através de um discípulo de Bakunin,

Michael Sazhin, que lhe reunira um grande material composto por livros, panfletos e jornais

que estavam sendo publicados por várias seções da Internacional dos Trabalhadores

espalhada pela Europa, se convence da consciência que existia entre os trabalhadores da

Europa Ocidental.

Viaja para Genebra, um centro onde a Internacional era mais ativa, e conhece

Zhukovsky, um bakuninista, que lhe sugere a viagem ao Jura, onde entraria em contato com

os relojoeiros montanheses. Conhece James Guillaume, dono de uma tipografia na cidade de

Neuchâtel onde Kropotkin trabalha e conhece diversos ex-communards que se refugiaram

na Suíça após a Comuna de Paris. Entra em contato com as teorias anarquistas, bem como o

federalismo adotado naquela região após a passagem de Bakunin:

A exposição teórica da Anarquia, tal como era apresentada então pela

Federação Jurassiana, e sobretudo por Bakunin, a critica do socialismo de

Estado, o receio de um despotismo econômico, muito mais perigoso que o

simples despotismo político, – que ouvi formular ali, e o caráter

revolucionário do movimento, atraíram fortemente a minha atenção. Mas

os princípios igualitários que eu encontrava nas montanhas do Jura, a

independência de pensamento e de linguagem que eu via em

desenvolvimento entre os operários e a sua absoluta dedicação à causa do

partido, tudo isso exercia sobre os meus sentimentos uma influência cada

vez mais forte; quando deixei aquelas montanhas, depois de alguns dias de

permanência entre os relojoeiros, minhas opiniões sobre o socialismo se

haviam firmado. Eu era anarquista. (KROPOTKIN, 1946. p. 273)

Retorna a São Petersburgo, desempenhando o papel de propagandista das ideias

socialistas e ativo membro do Círculo de Tchaikovsky,usando seu trabalho como geógrafo

para encobrir suas atividades subversivas. Em 1874, fora preso no dia em que proferira uma

Page 47: Piotr Kropotkin

46

fala na Sociedade Geográfica Russa por sua expedição de dois anos atrás, com nome de Sr.

Borodin, nome que usava para propaganda subversiva nos bairros operários de São

Petersburgo.

Encarcerado na fortaleza de Pedro e Paulo lhe é permitido trabalhar com os relatórios

sobre suas expedições para a Sociedade Geográfica, o que lhe garante acesso a biblioteca da

Academia de Ciências. Após dois anos de estadia na prisão, Kropotkin adoece devido as

péssimas condições da fortaleza. Fora transferido para o hospital militar a fim de recuperar a

saúde.

Quando sua saúde melhorou, os planos de evasão da prisão passaram a ser elaborados

pelos seus companheiros do Círculo de Tchaikovsky. A fuga ocorreu no Hospital Militar, em

uma coordenada ação que envolveu mais de vinte indivíduos (KROPOTKIN, 1946). Após a

fuga, seguiu para a Suíça, já que não poderia mais retornar a Rússia, e de lá, seu destino era

a Inglaterra.

Em seu exílio na Inglaterra, Kropotkin contou com o auxílio do geógrafo John Scott

Keltie, membro da Sociedade Geográfica Real e editor da revista Nature. Kropotkin passa a

colaborar com a publicação, escrevendo pequenas notas sobre artigos científicos russos. Em

1878, Kropotkin volta à Suíça, a fim de retomar suas atividades revolucionárias junto a

Federação Jurassiana.

De volta a Suíça, Kropotkin mergulha no movimento anarquista, onde diversos

companheiros foram amigos pessoais de Bakunin, como o jornalista James Guillaume,

Ademar Schwitzguebel Spichiger, relojoeiros do Jura, e refugiados da Comuna de Paris, como

Lefrançais, o professor, Pindy, o carpinteiro, Paul Brousse, médico e Elisée Reclus, que viria a

se tornar seu grande amigo, devido a tantas afinidades que ambos possuíam. Kropotkin se

refere a Reclus com admiração:

Alguns refugiados da Comuna de Paris haviam adentrado a Federação.

Elisée Reclus, o grande geógrafo, era desse número – o tipo verdadeiro de

puritano, na sua maneira de viver, e do ponto de vista intelectual, o tipo de

filósofo enciclopedista francês do século dezoito: o homem que inspira os

outros, porém, jamais governou ou governará alguém, o anarquista cujo

anarquismo não e mais do que um resumo do seu vasto e profundo

conhecimento das manifestações da vida humana, sob todos os climas e

Page 48: Piotr Kropotkin

47

todas as eras da civilização, cujos livros estão entre os melhores do século,

cujo estilo, de uma beleza impressionante, comove a alma e a consciência;

é o homem que entrando na redação de um jornal anarquista pergunta a

um redator – mesmo ao que junto dele não passa de uma criança: “Diga-me

o que devo fazer”, e que se senta como um simples cronista, para

preencher uma lacuna de tantas linhas no número do jornal que vai

aparecer. Durante a Comuna de Paris armou-se simplesmente de um fuzil e

entrou nas fileiras; se convida um colaborador para trabalhar num volume

da sua Geografia, célebre no mundo inteiro e se este colaborador lhe

pergunta o que deve fazer, responde: “Aqui estão os livros, eis uma mesa.

Faça como lhe agradar.” (KROPOTKIN, 1946, pg.369)

Conheceu também Carlo Cafiero e Errico Malatesta, anarquistas italianos, amigos de

Bakunin que se encontravam na Suíça, onde se reuniram tantos revolucionários. “Começou

então para mim uma vida cheia de atividade, - a vida que me agradava” (KROPOTKIN, 1946).

Trabalhando para a Federação Jurassiana, Kropotkin colaborava com o “L’ Avant Guarde”,

jornal de James Guiullaume, que fora fechado pelo governo suíço devido a pressão dos

outros países da Europa. Com a evasão dos principais colaboradores do jornal para outros

países, coube a Kropotkin fundar um outro boletim para a Federação. Surge o “Le

Revolté”, com tiragem de duas mil cópias, redigido por Kropotkin junto a seus amigos,

Dumartheray e Herzig, um jovem caxeiro de Genebra, Jean Grave e posteriormente Elisée

Reclus, que publicaria diversos artigos escritos para o jornal em uma compilação chamada

“Palavras de um Revoltado”.

Com o assassinato do Tzar Alexandre II, sendo que a Suíça vinha sofrendo cada vez

mais pressão internacional dos países monárquicos por dar abrigo a refugiados, Kropotkin é

expulso do país, tendo de retornar Inglaterra onde devido a falta de atividade do movimento

operário permaneceria por um ano. Assim, decide juntamente com a sua esposa ir para a

França onde se estabelecem na cidade de Thonon. Por ocasião de um atentado a um café

em Lion, Kropotkin é preso pelo governo francês acusado de participar da conspiração, junto

com outros revolucionários. Em um julgamento arbitrário, Kropotkin é condenado sem

provas a cinco anos de prisão, bem como os outros acusados, e são presos. Junto aos outros

anarquistas, publicam o Manifesto dos Cem. Durante sua estada na prisão, sua esposa Sofia,

Page 49: Piotr Kropotkin

48

permanece hospedada na casa de Elíe Reclus, irmão de Elisée, seu grande amigo. Após dois

anos na prisão de Lion, é transferido para Clairvaux22.

É libertado em 1886, juntamente com outros condenados, publicando logo diversos

artigos a respeito das prisões. Após sua libertação, permaneceu em Paris. Porém, temendo

ser preso novamente, retorna a Inglaterra, onde juntamente com sua esposa residiriam

pelos próximos trinta anos. Retorna as publicações científicas em diversos periódicos, como

The Nineteenth Century, Les Temps Nouveaux, The Times, Nature, o Geographical Journal,

entre outros, além de publicar diversos livros como A Conquista do Pão, onde ensaia ao

passos do anarco comunismo, O Estado e seu Papel Histórico, propondo uma outra leitura

sobre a relação sociedade estado, contrária a naturalização desta por Hobbes e A Ajuda

Mútua, onde realiza uma análise da lei natural da ajuda mútua, segundo a qual a evolução

das espécies se define por um processo de cooperação e não competição, conforme

estabeleciam os darwinistas sociais como Malthus.

Com a revolução de dezessete de outubro retorna a Rússia, a qual não toma parte

devido sua idade avançada, o que não impede de debater com os líderes do movimento

sobre o caráter da revolução. Escreve a Lênin, advertindo-o do perigo que oferecia a

revolução uma ditadura de um partido único, sua centralização bem como um capitalismo

de estado. Lênin se oferece para publicar suas obras em russo, como História da Revolução

Francesa, oferta que Kropotkin recusa por se originar de um patrocínio do Estado Soviético.

(TRAGTENBERG, 1987) Morre ao dia 8 de fevereiro de 1921. Foi a ultima vez na Rússia

revolucionária que se permitiu uma expressão pública por parte dos anarquistas e a

bandeira negra com os dizeres “Onde há autoridade, não há liberdade”.23

22

Não faltaram manifestações contrárias ao governo francês pela prisão de Kropotkin. Victor Hugo submeteu ao governo francês uma petição de intelectuais e literatos ingleses, como Swinburne, William Morris, Watts-Dunton, Burne-Jones, Leslie Stephens, Frederic Harrison, Sidney Colvin, Patrick Geddes, John Morley, James Runciman, Alfred Russel Wallace, bem como professores universitários e funcionários do museu britânico. (WOODCOCK, 2002)

23 Mais de cem mil pessoas acompanham a marcha fúnebre pelas ruas de Moscou do velho revolucionário, na

ultima manifestação pública permitida aos anarquistas pelo governo socialista soviético.

Page 50: Piotr Kropotkin

49

1.4 A concepção de história em Kropotkin

Nesse ultimo movimento que acreditou dominar a história

atual por um conhecimento científico, o ponto de vista revolucionário permaneceu burguês.

Guy Deboard

Como marca, todo movimento de pensamento crítico, na literatura científica ou não,

há a busca de uma reflexão crítica da história, essa, sempre acompanhada de um sujeito

histórico. Se tratando de uma teoria do século XIX, em um contexto revolucionário, ela

realiza o movimento de buscar na história as qualidades do sujeito, esse êmulo moderno. O

pensamento iluminista realiza o movimento de buscar categorias inerentes a seu nexo de

sociabilização de forma trans-histórica24 fomentando uma linearidade do processo histórico

que só pode ser inerente a ele enquanto campo histórico. A teoria crítica do valor pode

oferecer um ponto de partida para essa reflexão25, pela localização histórica desses

processos.

Em diversas de suas obras, na necessidade de validar sua ideia de anarquismo como

um fenômeno que transcende uma construção histórica26 no tempo, são as diversas revoltas

ao longo da história que Kropotkin se baseia com a finalidade de enxergar traços do

movimento anarquista presentes nesses acontecimentos históricos. Baseado no

pensamento Iluminista, e por referência nos Enciclopedistas, desenvolve uma concepção

ontológica do anarquismo e do sujeito revolucionário, mas, mais pela certeza de um método

neutro a priori, quê pela construção de um conhecimento trans – histórico cultural. O

24

“Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômicas é preciso ter presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de ser, determinações de existência, com frequência somente aspectos singulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por isso, a sociedade, também do ponto de vista científico, de modo algum só começa ali onde o discurso é sobre ela enquanto tal.” (MARX, 2011, pg.59)

25 “Um elemento essencial da teoria crítica do valor e da dissociação consiste na sua fundamentação e auto-

localização históricas. À dinâmica capitalista corresponde uma história interna ascendente dessa “socialização negativa” e da sua reflexão teórica. Todas as teorias possuem um “núcleo temporal” (Adorno), o qual não as pode deixar permanecer inalteradas em si mesmas. As contradições teóricas, a reelaborar continuamente, correspondem às contradições internas reais do processo social.” (KURZ, 2010)

26 Tais como em O Estado e seu papel histórico, A questão social, o anarquismo em face a ciência, o verbete

Anarquismo na Enciclopédia Britânica e diversos artigos como A Lei e a Autoridade, o Espírito da Revolta, etc...

Page 51: Piotr Kropotkin

50

anarquismo não se dá como um conhecimento que se realiza, mas como instinto moral e

inerente a espécie, que se desenvolve socialmente. Sua base, o positivismo metodológico

emergente do Iluminismo.

Utilizando-se de registros historiográficos27 como base e o método indutivo – dedutivo

para análise, é através da observação que verifica as diversas formações sociais ao longo da

história e formula uma concepção ontológica do anarquismo, a qual “*...+ não procede de

uma determinada descoberta científica nem assenta em um sistema definido de filosofia.”

(KROPOTKIN, 1964, pg. 11). Kropotkin parte de uma concepção ontológica da luta de classes

não como produto das relações sociais de produção, entre os que detêm os meios de

produção e os que possuem apenas a força de trabalho, mas como um sentimento talhado

durante milhares de anos de evolução da espécie hominídea na história que resulta nessa

luta. “Através de todos os tempos, verifica-se que, no seio das sociedades humanas, duas

correntes de pensamento se têm encontrado constantemente em luta antagônica”

(KROPOTKIN, 1964, pg.12).

Uma corrente é a força criadora28 das massas, que deixada a sua natureza cria

instituições de auxílio mútuo. Em paralelo a essa força criadora, existem três classes. A dos

sacerdotes que detinham os conhecimentos religiosos e científicos da época, conhecimentos

que serviam como laços para manter a unidade federativa das tribos, os pregoeiros das leis

que agiam como juízes no caso de contendas, e os chefes dos bandos de combate, que

detinham o conhecimento das estratégias militares29. Essas três classes se mantém unidas

27

E pelo método historiográfico atribui o fato de não encontrar os registros historiográficos das ideias libertárias nos escritos de pensadores clássicos ao longo de diversas épocas, pelo fato do anarquismo ser uma força inerente ao domínio popular, o qual estava distante do interesse dos sábios da época. “Todavia, porque em sua essência o espírito anarquista mergulhava raízes nas massas e não nos cenáculos de sábios, os quais, na verdade, escassas simpatias nutriam pelos movimentos populares, os pensadores da época, em geral, não procuravam extrair a ideia profunda e fundamental em que se inspiravam tais movimentos.” (KROPOTKIN, 1964, pg.94)

28 Como o socialismo, e em geral todos os movimentos de caráter social o anarquismo originou-se do povo e só

conservara a vitalidade e força criadora que lhe são inerentes enquanto se mantiver com sua peculiaridade de movimento popular (KROPOTKIN, 1964, pg.11)

29 “[...] os magos, os xâmanes, os feiticeiros, os raptadores de chuva, os oráculos e os sacerdotes, que foram,

pela ordem natural das coisas, os primeiros monopolizadores de um rudimentar conhecimento da natureza e os fundadores dos diferentes cultos – do sol, da lua, das forças naturais, dos ancestrais – que serviam perfeitamente de elo mantenedor da unidade federativa das tribos. [...] Todas as artes e ofício tiveram esta origem de estudos e de superstições e, aquelas como estas, tinham suas fórmulas místicas, só conhecidas dos iniciados e mantidas cuidadosamente ocultas das massas para evitar o acesso ao seu conhecimento” Ao lado

Page 52: Piotr Kropotkin

51

ao longo dos tempos a fim de dominar as massas, mantendo-as na obediência e na

subserviência. Disso, deriva a luta entre as duas categorias opositoras na história, a força

criadora das massas e o centralismo governamental das minorias, uma libertária e a outra

autoritária.

Das duas citadas categorias, é evidente que o anarquismo representa a

primeira delas, isto é, a força criadora e construtiva das massas, que no

passado, elaboraram as instituições de direito comum para melhor se

defenderem de uma minoria agressiva e dos instintos dominadores. E

também por essa mesma força criadora e construtiva, apanágio do povo,

com o poderoso auxílio que lhe prestam a ciência e a técnica modernas que

o anarquismo procura, nos tempos atuais, estabelecer as instituições

necessárias que garantam o livre desenvolvimento da sociedade, em

oposição aqueles que depositam todas as suas esperanças em uma

legislação feita por minorias governantes e por rígida disciplina imposta as

massas. Podemos, portanto, afirmar que nesse sentido, houve sempre

anarquistas e estatistas. (KROPOTKIN, 1964. pg.13)

E da mesma forma, os revolucionários sempre agiram dentro da história em torno de

ambas as tendências. “Assim, pode-se dizer sem receio de contestação, que jacobinos e

anarquistas tem sempre existido de permeio nas hostes de reformadores e revolucionários.”

(KROPOTKIN, 1964, pg.15). O que explicaria a decadência de diversas instituições movidas

pela força criadora das massas ao longo do tempo, que inicialmente pertenciam a uma

tradição libertária, como o cristianismo.

O movimento cristão que se produziu na Judeia sob o império de Augusto

contra a lei romana, contra o Estado romano e a moral da época, ou

melhor, a imoralidade desenfreada que então campeava – teve,

inquestionavelmente, fortes laivos de anarquismo. Mas, paulatinamente,

esse movimento degenerou em um movimento sectário que operou a

dos sacerdotes, que detinham o conhecimento da religião e da ciência, estavam os indivíduos que “*...+ como os bardos entre os celtas e os gálios, os brehons da Irlanda, os pregoeiros da lei de usos e costumes antigos a quem se recorria em casos de discórdia ou de conflito” e os “*...] chefes temporários dos bandos de combate, a quem se atribuía a posse dos segredos mágicos do êxito das batalhas, do envenenamento das armas e dos vários segredos militares.” (KROPOTKIN, 1964, pg.12)

Page 53: Piotr Kropotkin

52

formação da Igreja, traçada nos moldes da Igreja hebraica e até da própria

Roma Imperial, o que naturalmente, matou tudo o que o cristianismo no

seu início tinha de anarquismo, deu-lhe formas romanas e, rapidamente,

veio a constituir o esteio principal da autoridade, do Estado, da escravidão e

da opressão. (KROPOTKIN, 1964, pg. 15-16)

Dessa mesma forma encara o movimento da Reforma Protestante, onde “possuíam

um fundo eminentemente anarquista”. Lutero inicialmente rompendo com a autoridade de

Roma realiza uma aliança com a realeza, reprime os camponeses em sua revolta, e em seu

compromisso com o Estado funda o Protestantismo enquanto os anabatistas eram

massacrados tanto em Frankenhausen, quanto em Münster posteriormente. Para Kropotkin,

o anarquismo como uma doutrina racional naturalista, é uma consequência natural no

decorrer do continuum histórico que se apoia na força criadora das massas e no espírito da

revolta ao longo dos tempos30. Essa concepção ontológica do anarquismo como fenômeno

natural apenas flerta com uma construção histórica aparente, a medida que rejeita a história

e fica preso ao modo de exposição da verdade científica. Além de, ao atribuir ao anarquismo

a qualidade de força inerente à espécie, perde-se o horizonte de que grupos sociais possuem

interesses diferentes ou não dependente ou independente de situações, bem como uma

consciência reificada no tocante ao momento histórico partilhado.

Em sua exposição, Kropotkin atribui a alguns pensadores traços do pensamento

anarquista, como no pensador chinês Lao-Tse, e mesmo nos filósofos gregos, como

Aristipo31 (430 A.C.) e hedonistas como Zenão (342 – 267 A.C.) e os filósofos estoicos.

Desses poucos, o estoico grego Zenão foi um. Pregava a comunidade livre,

sem autoridade de espécie alguma, em oposição a utopia estatista de

Platão, na sua celebre República. Zenão, já nesse tempo, punha em

evidência o instinto de sociabilidade que a natureza, segundo o seu parecer,

30

Sumariando o que ficou dito: o anarquismo originou-se da atividade criadora e construtiva das massas, que, em épocas remotas, souberam elaborar todas as instituições sociais da Humanidade, e não só nisso assenta, mas nas revoltas individuais e coletivas contra os representantes da força extrínseca a essas instituições, nas quais, quando lhes bolem, é tão somente para as utilizar em seu único proveito. (KROPOTKIN, 1964, pg.16)

31 Como destacou o professor Adler em seu Geschichte des Sozialismus und Kommunismus, Aristipo, um dos

fundadores da escola cirenaica, já ensinava que o sábio não deve ceder a sua liberdade ao Estado e, em resposta a uma pergunta de Sócrates, disse que não desejava pertencer nem a classe governante nem a governada. Mas esta atitude era ditada, ao que parece, por uma simples visão epicurista da vida do povo. (KROPOTKIN, 1987, pg.22)

Page 54: Piotr Kropotkin

53

desenvolve em oposição ao instinto egoísta da preservação do individuo.

Previa um tempo em que os homens se uniriam por sobre as fronteiras e

constituiriam o Cosmos, o Universo, sem necessidade de leis, de câmeras

legislativas, de tribunais, de templos, nem sequer de moeda para

intercambio de seus serviços. As suas próprias expressões parecem-se, ao

que é dado verificar, de modo notável as que modernamente empregam os

anarquistas. (KROPOTKIN, 1964, pg. 94)

Kropotkin cita o bispo de Alba, Marco Girolamo Vita, que em 1553 expunha ideias

contra o Estado, tanto em seu primeiro diálogo De Dignitate Reipublicae quanto em sua obra

Suprema Justiça. Em meio a comunidades cristãs primitivas como a dos hussitas, e

sobretudo Chelcick, na Armênia do séc. IX. e nos anabatistas do séc. XV, em especial o

teólogo Hans Denk. Rabelais e Fénelon, na primeira metade do séc.XVI, bem como Diderot

no séc.XVIII, se encontram entre os precursores do anarquismo.

Através da observação dos fatos históricos, a soma das revoltas e reviravoltas da

história, diferente de uma análise processual são mais o resultado de uma quantificação

cronológica do tempo pelo poder da demonstração científica, manifestado através de um

sistema racional geral de causa e consequência. A história não pode ser provada. Sua

insistência em provar isso como exposição de uma verdade científica e em ultima instância

antropológica, a própria existência de uma força vetorial natural que move a espécie

bastaria para isso. Quanto aos cálculos socialistas históricos concebendo a história como um

conhecimento científico, a forma permaneceu burguesa.

Page 55: Piotr Kropotkin

54

1.5 O anarco-comunismo

ANARQUISMO (do grego an – e arke, contrário a autoridade) é o

nome que se dá a um principio ou teoria da vida e do comportamento que concebe uma sociedade sem governo, em que se obtém a harmonia, não

pela submissão a lei, nem obediência a autoridade, mas por acordos livres estabelecidos entre os diversos grupos, territoriais e profissionais, livremente

construídos para a produção e consumo, e para a satisfação da infinita variedade de necessidades e aspirações de um ser civilizado.

Kropotkin, Anarquismo32

O anarquismo surge com verdadeira força, tanto entre os trabalhadores que não

vislumbravam qualquer possibilidade de reforma ou de mudanças pacíficas na estrutura

socioeconômica do país, como Espanha e Itália como entre os grupos de artesãos livres

como os que se encontravam nos Alpes suíços, abrigo da Federação do Jura, onde Kropotkin

entrou em contato com as ideias anarquistas que posteriormente adotou. O fato de exigir

uma mudança imediata nas relações sociais e econômicas e a proposta de ação direta como

estratégia para o movimento socialista atraiu tanto os trabalhadores do campo que sofriam

as ruminantes mazelas feudais eclesiásticas como os intelectuais das grandes cidades

preocupados com o crescimento da opressão do Estado sobre o individuo e a sociedade,

formando uma corrente teórica de revolta social. Porém, é pela crescente práxis por parte

do movimento operário, que definitivamente o ideal anarquista passará de um caráter

individual que o qualificava para um ideal social, reivindicado coletivamente por uma

sociedade composta de indivíduos sem a mediação estatal33.

Se as propostas antes se apresentavam pelo mutualismo de Proudhon e o coletivismo

de Bakunin, o anarco-comunismo se desenvolve em meio a práxis do movimento operário.

São as discussões desses dois modelos teóricos e a atuação dentro da Internacional que

levam ao desenvolvimento dessa corrente, a qual Kropotkin se tornará seu principal

formulador.

32

KROPOTKIN, 1987, pg.19

33 Na ideia de seus fundadores operários, a A.I.T. deveria ser, como já vimos, uma vasta federação de

agrupamentos de trabalhadores que representaria, em germe, o que poderia ser uma sociedade regenerada pela revolução social, uma sociedade na qual o aparelhamento atual de governo e de exploração capitalista teria por completo desaparecido, substituindo-o os acordos livres derivados das relações diretas entre os grupos autônomos de produtores e consumidores. Em tais circunstancias, o ideal anarquista passou de um caráter individual a ser um ideal eminentemente social. (KROPOTKIN, 1964,pg. 127)

Page 56: Piotr Kropotkin

55

Exilado, Kropotkin, será uma referência teórica do movimento, sem a participação em

revoltas e insurreições que tanto crédito deram a figura de Bakunin. Não possuíra influência

na organização e ação do movimento revolucionário, mesmo quando o anarquismo se

espalhou no território russo. Sua contribuição será teórica e internacionalista, junto aos

congressos socialistas, e de extrema importância. Suas ideias de organização comunal no

campo serão à base do processo de expropriação levado a cabo durante a Guerra Civil Russa

por Nestor Makhno na Ucrânia e seu exército negro, na região que ficou conhecida como

Território Livre, antes da traição de Trotsky34 e a guerra contra o exército vermelho, que

levou a destruição do Exército Insurrecional Revolucionário de Makhno em 1921 e seu exílio

na França, sendo que os restantes dos anarquistas na Rússia sucumbiram a perseguição

implacável da Theka35.

O anarco-comunismo está em diálogo direto com o mutualismo de Proudhon, corrente

teórica anarquista debatida na Internacional, e como base o coletivismo de Bakunin, que

predominava sobre as seções anarquistas da Internacional. Sua base de discussão se

desenvolve principalmente no tocante a como se daria a organização federativa, conforme

os princípios estabelecidos por Proudhon. Porém, diversos anarquistas discordavam em

relação problematização da questão do trabalho pelos moldes do coletivismo, já que para

Bakunin o consumo se daria em relação à capacidade de produção individual medida em

horas trabalho, o “a cada um de acordo o seu trabalho”. Conforme Kropotkin escreve em A

Conquista do Pão:

34

Após formar uma aliança com Moscou e derrotar o exército branco na Ucrânia, mais um coup traiçoeiro da história soviética que se tornaria característico na relação entre os anarquistas e os comunistas, como na Guerra Civil Espanhola, se dá sobre os anarquistas na Ucrânia: “Em 26 de novembro de 1920, numa série de ações coordenadas, a Theka aprisionou todos os anarquistas conhecidos na região da Ucrânia sob seu controle; convidaram os comandantes makhnovistas da Criméia para uma conferência, durante a qual foram todos capturados e imediatamente fuzilados, e desarmaram todos os seus homens, com exceção de um único regimento de cavalaria, que conseguiu escapar, em meio a muita luta, dirigindo-se para Gulyai-Polye.” (WOODCOCK, 2002, pg. 207). Trotsky enviou um efetivo de mais de cinquenta mil homens a fim de exterminar o exército de Makhno.

35 Criada através de um decreto por Lênin em 1917 foi a primeira das organizações de polícia secreta da União

Soviética. Sucessora da Okhrana czarista, a polícia política do Tzar, possuía um poder praticamente ilimitado, perseguindo os adversários do regime bolchevique. Motins no exercito vermelho, revoltas camponesas pela falta de alimento, tumultos por parte dos trabalhadores, críticos do regime, e até o gerenciamento dos campos de trabalho, os Gulags, eram feitos pela Theka, que possuía uma tropa de 200.000 homens em 1921. Seus métodos de tortura extremamente cruéis, bem como a eficiência com que realizavam suas missões tornaram famosa essa divisão da polícia soviética.

Page 57: Piotr Kropotkin

56

Colocando-nos neste ponto de vista geral, sintético, da produção, não

podemos admitir com os coletivistas que uma remuneração proporcional às

horas de trabalho fornecidas por cada um à produção das riquezas possa

ser um ideal ou mesmo um passo à frente para esse ideal. Sem discutir aqui

se realmente o valor de troca das mercadorias se mede na sociedade atual

pela quantidade de trabalho necessário para as produzir, basta dizer, salvo

voltar mais tarde ao objeto, que o ideal coletivista nos parece irrealizável

numa sociedade que considerasse os instrumentos de produção como um

patrimônio comum. Baseada neste princípio, ela ver-se-ia forçada a

abandonar desde logo toda a forma de salariado. (KROPOTKIN, 1953, pg.14)

Após a morte de Bakunin, a tendência que se fortaleceu tanto na Internacional quanto

entre os teóricos do movimento anarquista foi o anarco-comunismo. Se Kropotkin mais uma

vez aparece como o formulador de uma corrente de pensamento, a origem dela parece

partir de Dumartheray ou Reclus.

“A mais antiga publicação ligando anarquismo e comunismo é um pequeno

panfleto escrito por François Dumartheray, um artesão de Genebra que

mais tarde ajudaria Kropotkin a editar o jornal Le Révolté. Chamava-se Aux

travailleurs manuels partisans de l’action politique e foi publicado em

Genebra durante o ano de 1876. Por essa época Kropotkin acabava de

deixar a Rússia e não chegaria a Genebra antes de fevereiro de 1877 e

assim, Dumartheray dificilmente poderia ter sido influenciado por ele.

Elisée Reclus, por outro lado, estava em Genebra e pode muito bem ter

convertido Dumartheray, que não parece ter sido um homem de muitas

ideias originais. Seja como for, quer tenha tido origem de Reclus ou no

próprio Dumartheray, uma vez criada, a ideia se espalhou rapidamente.”

(WOODCOCK, 2002, pg.179)

Cherkesov, um príncipe georgiano que participava ativamente do movimento

anarquista na Suíça afirmava que em 1877, um ano após a morte de Bakunin, que os círculos

libertários suíços haviam aderido a ideia do anarquismo comunista. E segundo Woodcock,

Kropotkin teria contado a Guillaume que ele, Cafiero e Reclus persuadiram a Federação do

Jura a aceitar o comunismo livre como sua doutrina econômica. A adesão de diversos

Page 58: Piotr Kropotkin

57

membros do movimento anarquista em 1880 é citada por Kropotkin, em um artigo escrito

originalmente como verbete para a Enciclopédia Britânica, de 1905:

“A maioria dos operários anarquistas prefere as ideias anarco-comunistas,

que gradualmente evoluíram a partir do coletivismo anarquista da

Associação Internacional dos Trabalhadores. A esta direção pertencem (e

nomeio só os nomes mais conhecidos do anarquismo) Elisée Reclus, Jean

Grave, Sebastian Fauré e Emilio Pouget, na França; Enrico Malatesta e

Covelli na Itália; R. Mella, A. Lorenzo e os autores, a maioria desconhecidos,

de muitos manifestos excelentes, da Espanha; John Most, entre os alemães;

Spies, Parsons e seus seguidores nos Estados Unidos, etc.; também Domela

Nieuwenhuis ocupa uma posição intermediária na Holanda. Os principais

jornais anarquistas publicados a partir de 1880 pertencem também a essa

tendência; e grande quantidade de anarquistas que também pertencem a

ela se uniram ao chamado movimento sindicalista, nome francês do

movimento operário não político consagrado a luta direta contra o

capitalismo, que tanta proeminência adquiriu ultimamente na Europa.”

(TRAGTENBERG, 1987, PG.30-31)

O anarquismo comunista seria publicamente discutido por Kropotkin através de seu

relatório intitulado A ideia anarquista do ponto de vista de sua realização prática no

Congresso do Jura em 1880, publicada mais tarde no Le Revolte. Seu conteúdo apregoava

que quando a revolução viesse, sua base seria nas comunas locais, responsáveis pelas

expropriações necessárias bem como a coletivização de todos os meios de produção. O

sentido de comunismo aí vem da distribuição livre e da extinção de qualquer forma de

sistema de salário, consequência direta da coletivização dos meios de produção, tal como

cita em A Conquista do Pão:

Colocando-nos neste ponto de vista geral, sintético, da produção, não

podemos admitir com os coletivistas que uma remuneração proporcional às

horas de trabalho fornecidas por cada um à produção das riquezas possa

ser um ideal ou mesmo um passo à frente para esse ideal. Sem discutir aqui

se realmente o valor de troca das mercadorias se mede na sociedade atual

pela quantidade de trabalho necessário para as produzir, basta dizer, salvo

voltar mais tarde ao objeto, que o ideal coletivista nos parece irrealizável

numa sociedade que considerasse os instrumentos de produção como um

Page 59: Piotr Kropotkin

58

patrimônio comum. Baseada neste princípio, ela ver-se-ia forçada a

abandonar desde logo toda a forma de salariado. Estamos persuadidos que

o individualismo mitigado pelo sistema coletivista não poderia existir ao

lado do comunismo parcial da posse por todos do solo e dos instrumentos

de trabalho. Uma nova forma de posse requer uma nova forma de

retribuição. Uma nova forma de produção não poderia manter a antiga

forma de consumo, como não poderia acomodar-se às antigas formas de

organização política. O salariado nasceu da apropriação pessoal do solo e

dos instrumentos de produção por alguns. Era a condição necessária para o

desenvolvimento da produção capitalista: morrerá com ela, mesmo que se

quisesse disfarçá-la sob a forma de “bondes de trabalho”. A posse comum

dos instrumentos de trabalho trará necessariamente o gozo em comum dos

frutos do labor comum. (KROPOTKIN, 1953, pg. 14)

E no mesmo verbete da Enciclopédia Britânica, Kropotkin sintetiza sua concepção do

anarco-comunismo:

“Como anarco-comunista, este que escreve trabalhou muitos anos para

desenvolver as seguintes ideias: mostrar a conexão lógica e intima que

existe entre a filosofia moderna das ciências naturais e o anarquismo; dar

ao anarquismo uma base científica para o estudo das tendências que são

patentes hoje na sociedade e que pode indicar sua evolução posterior; e

estabelecer as bases da moral anarquista. Quanto a essência do próprio

anarquismo, meu objetivo foi demonstrar que o comunismo (ao menos

parcial) tem mais possibilidades de êxito que o coletivismo, sobretudo se as

comunas tomam a direção, e que a forma livre, ou anarco-comunista, é a

única forma de comunismo que oferece possibilidades estáveis as

sociedades civilizadas, comunismo e anarquia são, em consequência, dois

fatores de evolução que se complementam mutuamente, e que se fazem

mutuamente possíveis e aceitáveis.” (KROPOTKIN, 1987, pg.31)

Page 60: Piotr Kropotkin

59

1.6 O método científico

Legislar para toda a ciência é o projeto positivista

Michel Focault

O livro A questão Social, o humanismo libertário em face da ciência talvez seja onde

Kropotkin realiza seu maior esforço para conceber o anarquismo como uma filosofia de base

científica imbuída de um método de análise, abrangendo os fenômenos sociais e lhes dando

uma significação, em uma visão extremamente particular, em detrimento ao movimento

anarquista.

Buscando a relação entre o anarquismo e a filosofia das ciências naturais, ela se insere

em uma concepção do modelo científico natural para a sociedade derivado da mecânica de

Newton36. E dentro desse modelo, evolução e revolução37 fazem parte das mesmas leis

naturais que regem tanto os fenômenos naturais quanto os fenômenos sociais.

Já podemos ler o livro da natureza, no qual se compreende, não só o

desenvolvimento da vida orgânica e inorgânica, como a evolução da

humanidade, sem necessidade de recorrer a um hipotético criador, a uma

mística força vital ou a uma alma imortal, e muito menos sem precisar de

consultar a trilogia de Hegel para, com ela e com os símbolos metafísicos

que possuem, ocultar a nossa ignorância. Os fenômenos mecânicos, que

36

É indubitável que uma concepção mecânica integral do universo, abrangendo a natureza física e as sociedades humanas, na parte sociológica dedicada ao estudo da vida e evolução das sociedades, está apenas esboçada. O pouco, entretanto, que, nesse sentido se tem feito até agora, ás vezes, valha a verdade, inconscientemente, reveste-se do caráter que temos enunciado. Na filosofia do direito, na teoria da moral, da economia política e no estudo da história dos povos e das instituições sociais, o anarquismo, por seus adeptos, manifestou peremptoriamente que não se satisfaria com as conclusões metafísicas dos pensadores de antanho, mas, ao contrário, que procuraria dar as suas conclusões uma base eminentemente naturalista. (KROPOTKIN, 1964,pg.80)

37 Em comparação com este fato primordial da evolução e da vida universal, o que são todos estes pequenos

acontecimentos denominados revoluções: astronômicas, geológicas ou políticas? Vibrações quase insensíveis, aparências, poder-se ia dizer. É por miríades e miríades que as revoluções se sucedem na evolução universal; mas, por mínimas que sejam, elas fazem parte deste movimento infinito” (RECLUS, 2002, pg.21).

Podemos complementar com outra citação de Kropotkin: A ideia de evolução impunha-se em todas as províncias do saber humano. Era, pois, uma necessidade lógica aplica-la a interpretação não só de todo o sistema natural de mundo, como ao estudo das instituições humanas, das religiões e das várias doutrinas éticas. Cumpria, posto que mantendo a ideia mater da filosofia positiva de Augusto Comte, alarga-la de modo a enquadra-la no conjunto de tudo que vive e se desenvolve na Terra. (KROPOTKIN, 1964, pg.54)

Page 61: Piotr Kropotkin

60

progressivamente se complicam a medida que passamos do estudo dos

fatos físicos para os fatos da vida, bastam amplamente para explicar a

natureza e toda a existência orgânica, intelectual e social em nosso planeta.

(KROPOTKIN, 1964,pg.29-30)

Essa concepção metodológica prevalece a Teoria da Evolução de Darwin, e a Filosofia

Positiva elaborada por Augusto Comte e Herbert Spancer. Mas podemos atribuir a raiz desse

pensamento, ou até mesmo a forma com que os anarquistas davam a esse método, nos

Enciclopedistas e pensadores utópicos do Iluminismo como Saint Simon, o primeiro a colocar

que a ciência do homem deve se apresentar como positiva. Na virada do século XVIII para o

XIX, o positivismo vem à tona como uma utopia crítico revolucionária da burguesia

antiabsolutista. O ideal de ciência neutra, a existência de leis naturais que regem a vida

social, uma ciência da sociedade segundo o modelo das ciências naturais permeia o conflito

entre o Terceiro Estado e ordem feudal absolutista. Uma ciência natural contra a doutrina do

direito natural.

O cienticismo positivista é aqui um instrumento de luta de classes contra o

obscurantismo clerical, as doutrinas teológicas, os argumentos de

autoridade, os axiomas a priori da Igreja os dogmas imutáveis da doutrina

social e política feudal. *...+ O combate da ciência social livre de “paixões” é,

portanto, inseparável da luta revolucionária dos Enciclopedistas e de toda a

filosofia do Iluminismo contra os preconceitos, isto é, contra a ideologia

tradicionalista (principalmente clerical) do Antigo Regime.” (LOWI, 1994,

pg.19-20)

A ciência do homem é apresentada como um ramo tanto da física quanto da fisiologia,

e a consequente concepção da sociedade como um todo orgânico, funcional, se coloca como

uma nova forma de conceber o mundo desencantado dos laços feudais do direito natural.

Claro que com o desenvolvimento do capitalismo essa concepção irá perdurar quando a

burguesia deixar de ser uma classe revolucionária e advogar cada vez mais pela ordem

industrial e burguesa, e disso, o axioma de uma ciência natural, neutra e rigorosamente

objetiva dos fatos sociais. E aqui Kropotkin surpreende pelo cientificismo extremo em trata

as diversas questões sociais. Sua fé no método indutivo e dedutivo é tanta, que sua crítica a

Comte não se dá pela naturalização da ordem secular que legitima a desigualdade social

como uma lei universal, mas pelo fato de este não haver detectado que um sentimento

Page 62: Piotr Kropotkin

61

moral é inerente à espécie humana e que orienta naturalmente a humanidade no continuum

do tempo.

Augusto Comte, ao terminar o seu Cours de Philosofie Positive teria, sem

dúvida, notado que, nessa obra, não havia tocado sequer na questão mais

essencial de todas, a saber: a origem do sentimento moral no homem e a

influência desse sentimento sobre a vida do mesmo homem e das

sociedades humanas. [...] Comte explicava a vida em geral; deveria mostrar-

nos porque é que o homem, sem a intervenção de qualquer força

sobrenatural, se sente obrigado a influência desse sentimento ou, pelo

menos, levado a computa-lo devidamente. [...] E que Augusto Comte, não

pudera compreender que o senso moral do homem depende tanto da

intrínseca natureza como da sua organização física, as quais são derivadas

de um longo processo evolutivo. [...] Consequentemente, Comte não vira o

que Darwin tão bem compreendera: que o sendo moral do homem nada

mais é do que uma evolução sucessiva dos instintos, dos hábitos de auxilio

mútuo existentes em todas as sociedades animais muito anteriores ao

aparecimento, na Terra, dos primeiros espécimes com aparência humana.

(KROPOTKIN, 1964, pg.33)

E continua:

Pelas mesmas razões, Comte não pode verificar, como agora estamos

habituados a fazê-lo, que, não obstante os atos imorais dos indivíduos

isolados, o sendo moral na espécie humana perdurará, todavia,

instintivamente enquanto a humanidade não entrar em uma fase de

declínio; que os atos contrários a moral derivada desta origem natural

deverão provocar necessariamente reações da parte dos outros indivíduos,

tal qual uma ação mecânica que produzirá a sua consequente reação no

mundo físico. Que nessa capacidade de reação contra os atos antissociais

reside uma força natural capaz de preservar o senso moral e os hábitos

sociáveis das sociedades humanas, como os mantém nas sociedades

animais, sem qualquer interferência exterior; que, finalmente, essa força é

infinitamente mais poderosa do que os mandamentos de qualquer religião

ou os éditos dos legisladores. (KROPOTKIN, 1964, pg.34-35)

Page 63: Piotr Kropotkin

62

Essa será a base qual Kropotkin construíra todo seu edifício teórico do anarquismo. Um

sentimento moral, fenômeno a priori que se insere no tempo e no espaço não como parte

de uma história social, construída historicamente, mas como um sentimento pertencente às

espécies, ora moral, ora fisiológico. Assim, ele também constrói sua noção de evolução e

revolução38 como categorias já dadas no tempo, onde o anarquismo se desenvolve.

Que lugar, ocupa então, o anarquismo no grande movimento intelectual do

século 19? [...] O anarquismo, fundamentalmente é uma concepção do

universo baseada na interpretação mecânica dos fenômenos da natureza,

compreendendo nesta igualmente os fatos da vida social e seus múltiplos

problemas de ordem econômica, moral e política. Seu método de análise e

de investigação é o das ciências naturais, quaisquer que sejam as

conclusões a que, em um estudo se chegue, a pretenderem de científicas,

terão de ser verificadas pela adoção desse método, sem o qual não há

verdadeira ciência. Sua tendência é fundar uma filosofia sintética que

abranja todos os fatos naturais, incluindo os que se relacionam com a vida

das sociedades humanas, sem, contudo, incorrer nos erros já atrás referidos

pelas razões dadas em que incorreram os grandes espíritos de Augusto

Comte e Herbert Spancer. (KROPOTKIN, 1964, pg.80)

Seu objetivo é que o anarquismo como método científico se desenvolva nos moldes da

Filosofia Sintética de Comte e Spancer. A confiança dada a método indutivo e dedutivo é

tamanha que em sua obra este nunca é posto em dúvida ou questionado, sendo suas críticas

a outros métodos moralista. Podemos encontrar afirmações como “O anarquismo por sua

própria natureza não se deixa colher nas malhas artificiosas das metafísicas de Hegel, de

38

A ideia de evolução impunha-se em todas as províncias do saber humano. Era, pois, uma necessidade lógica aplica-la a interpretação não só de todo o sistema natural de mundo, como ao estudo das instituições humanas, das religiões e das várias doutrinas éticas. Cumpria, posto que mantendo a ideia mater da filosofia positiva de Augusto Comte, alarga-la de modo a enquadra-la no conjunto de tudo que vive e se desenvolve na Terra (KROPOTKIN, 1964, pg.54). Podemos complementar com uma citação de Reclus: “Em comparação com este fato primordial da evolução e da vida universal, o que são todos estes pequenos acontecimentos denominados revoluções: astronômicas, geológicas ou políticas? Vibrações quase insensíveis, aparências, poder-se ia dizer. É por miríades e miríades que as revoluções se sucedem na evolução universal; mas, por mínimas que sejam, elas fazem parte deste movimento infinito” (RECLUS, 2002, pg.21)

Page 64: Piotr Kropotkin

63

Schelling ou de Kant.” 39 O método dialético, apenas um resquício feudal da escolástica

medieval.

Ultimamente tem-se gabado muito o uso do método dialético preconizado

pelos social - democratas na elaboração do seu ideal socialista. Por anti -

científico, repudiamos absolutamente esse método que não se compara

com o das ciências naturais pois em tudo sobreleva aquele. O método

dialético evoca na mente dos naturalistas qualquer coisa de anacrônico que

fez sua época e desde há muito foi entregue ao olvido para a honra da

ciência. De todas as descobertas do século XIX, em mecânica, em

astronomia, em física, em química, em biologia, em psicologia, em

antropologia, nenhuma se fez pelo método dialético. Toda imensa série de

aquisições do século as devemos ao uso do método indutivo – dedutivo,

único científico conhecido. Ora, o homem sendo parte integrante da

natureza, como a sua vida pessoal e social igualmente um fenômeno

natural, do mesmo modo que o crescimento de uma flor ou a evolução da

vida em coletividades como as das formigas e as das abelhas, não vemos

razão bastante para que, passando da flor ao homem, de uma comunidade

de castores as populosas cidades humanas, tenhamos de abandonar um

método que tão esplêndidos resultados até agora deu e busquemos outro

arsenal na metafísica. A eficácia do método indutivo dedutivo que

empregamos nas ciências naturais está exuberantemente provada pelo

impulso que, no século XIX, deu as ciências, de tal maneira que, em cem

anos, fez mais do que, antes do seu emprego, se fizera em dois mil. E

quando os cientistas, na segunda metade desse século, deram de aplica-lo

ao estudo das sociedades humanas, não toparam com qualquer obstáculo,

por mínimo que fosse, que os abrigasse a retroceder a escolástica medieval

ressuscitada por Hegel. (KROPOTKIN, 1964, pg.82-83)

Diante de tal alarde, bem como as beneficies que o método indutivo e dedutivo

oferece no discurso de Kropotkin, há algumas ressalvas a se fazer. A primeira se encontra

muito mais na revolução do modo de pensar do sujeito automático do capital que a eficácia

39

KROPOTKIN, 1964,pg.80

Page 65: Piotr Kropotkin

64

da prova que o método matemático oferece como validade desde Galileu, e fomentada

posteriormente pelo positivismo.

As evidências da supremacia do método indutivo dedutivo colocada por Kropotkin se

mantém muito mais pela interpretação dada pelo autor de suas observações, que pela prova

empírica deste método. O pensamento ilustrado proclama a universalidade das ciências da

natureza como estágio ultimo da evolução humana, sendo que a ‘prova’ é uma mensuração,

o impulso dado a ciência em ‘cem anos em detrimento de dois mil’, como Kropotkin coloca

em seu texto. A essa mensuração como prova empírica que Kropotkin coloca, segue a

reflexão de Claus Peter:

Toda medição é uma relação recíproca, mediada pelo método matemático-

científico, entre o sujeito que conhece e a natureza da qual faz seu objeto;

portanto, não pode referir-se nunca à "natureza em si", mas unicamente a

este forma específica de interação. A relação sujeito-objeto produzida pelo

experimento e expressa em forma de lei não pode reduzir-se simplesmente

a um de seus dois polos: tampouco ao sujeito, como acaso possa sugerir um

culturalismo estrito. As leis da natureza não são nem produtos do discurso

que se possam fabricar infinitamente, prescindindo do lado objetivo, nem

tampouco meras propriedades da natureza, que nada tivessem a ver com

os sujeitos cognoscentes. (ORTLIEB, 1998)

Essa concepção é indissociável da ideia de um desenvolvimento linear, o progresso

científico, cujas origens se projetam na pré-história humana, ou ainda mais longe. Talvez,

nas primeiras espécies hominídeas que passaram a se apropriar de objetos a fim de se

relacionar com o meio40. Mais uma vez, o conceito trans - histórico do trabalho justifica os

avanços técnicos e a apropriação da natureza e sua transformação em meio de produção

como produto da criatividade do individuo ontologicamente. As inovações técnicas que

transformaram a paisagem no séc.XIX para Kropotkin são frutos do método e do sujeito

40

A humanidade andou bastante desde o tempo em que a pedra lascada lhe servia para fabricar a suas armas, para lutar desesperadamente pela existência. Esse período durou milhares e milhares de anos durante os quais o gênero humano acumulou tesouros incomensuráveis. Desbravou o solo, aterrou pântanos, desbastou florestas, abriu estradas, edificou, construiu e raciocinou; arranjou utensílios complicados, arrancou à Natureza os seus arcanos, aprisionou o vapor. Hoje o homem civilizado já ao nascer encontra um capital imenso, acumulado pelos seus antepassados, com o qual, só com o trabalho, combinado com o alheio, obtém riquezas que deixam a perder de vista os sonhos orientais das Mil e uma Noites. (KROPOTKIN, 1953, pg. 4)

Page 66: Piotr Kropotkin

65

histórico consciente “que não é consciente da própria forma” (ORTLIEB, 1998), e não das

determinações impostas pelo avanço das relações capitalistas de produção. A apropriação

de uma divisão do trabalho pela vontade empírica simples dos indivíduos levaria a

distribuição da riqueza e a evolução da sociedade.

Sobretudo a descrição precisa de seu procedimento que Galileu nos oferece

torna possível determinar sistematicamente o método que se formou,

durante o período de tempo que separa Copérnico de Newton, e que segue

sendo fundamental para as ciências matemáticas da natureza. Um exame

crítico revela que tal método se funda sobre uma série de pressuposições

fundamentais que se apoiam mutuamente, mas que por sua vez não são

suscetíveis de nenhuma fundamentação empírica, mas, ao contrário,

precedem a todo conhecimento científico. (ORTLIEB, 1998)

Transposto para o âmbito das ciências sociais em contraposição ao método dialético,

não há nada de científico nas afirmações de Kropotkin. Não há uma prova de que o método

indutivo dedutivo corrobore no estudo das sociedades humanas, onde essas afirmações se

dão muito mais por categorias que precedem o conhecimento científico. As conclusões que

Kropotkin coloca são fruto de sua própria observação como sujeito. Por mais que ele cite o

método indutivo dedutivo, em seu texto essas afirmações acontecem apenas para dar uma

base “científica” as suas opiniões. Não há um movimento que indique como o método

inferiu nos resultados afirmados no estudo das sociedades humanas. Apenas a velha

afirmação da “lei natural”, do “livro da natureza”. Parece mais marketing do método.

A ilusão que faz aparecer a regularidade produzida pelo experimento como

se fosse uma propriedade da natureza é a mesma ilusão pela qual o cego

processo social da sociedade mercantil se apresenta aos homens como um

processo regido por leis, exterior a eles próprios, quando de fato são eles

que o constituem através de sua ação como sujeitos burgueses. (ORTLIEB,

1998)

A regularidade que o modelo matemático oferece nas ciências naturais possui também

a função de servir como um modelo de previsibilidade de resultados, que o lança no futuro.

Isso é ensaiado a exaustão através de experimentos em laboratórios, a fim de quê as

Page 67: Piotr Kropotkin

66

medições realizadas reproduzam sempre os mesmos resultados, mesmo que em condições

ideais.

O anarquismo representa um ensaio de aplicação das generalizações

científicas que o método indutivo dedutivo das ciências naturais fornece

para as instituições humanas. Não só isso; o anarquismo baseado nessas

apreciações é ainda um prognóstico certo dos aspectos da marcha futura

da humanidade para a liberdade, a igualdade e a fraternidade no sentido de

obter a maior soma de felicidade para cada uma das unidades que compõe

as sociedades humanas. (KROPOTKIN, 1964, pg.170)

O conceito de anarquismo elaborado por Kropotkin aparece como um momento do

desenrolar do pensamento iluminista. Ela rompe com a ideia do direito natural do Antigo

Regime em detrimento a uma concepção de mundo regido por leis naturais que regem tanto

a natureza quanto a sociedade onde além de caber ao sujeito a descoberta dessas leis pelo

método, têm o caráter de mensurar através de ensaios e experiências fornecendo um

‘prognóstico’ através da previsibilidade de resultados lançados em direção ao futuro, em um

padrão de tentativa e erro41. O anarquismo nessa apreciação seria um caminho seguro para

a humanidade atingir a promessa burguesa de felicidade.

A identidade ideológica entre autocracia dos proprietários privados e auto-

submissão à “vontade geral” tinha de permanecer politicamente limitada,

enquanto a “mão-de-obra” gozasse da honra de tomar parte na repressiva

“promessa de felicidade burguesa” apenas pelo lado econômico da auto-

submissão à máquina concorrencial da “mão invisível”. A “felicidade” da

auto-objectivação em “sujeito” ficou reservada politicamente aos

proprietários dos meios de produção, de modo que a cidadania ainda

formalmente universal foi partida em duas, tal como a legitimação pelo

“trabalho”. A representação parlamentar, fosse perante um Leviatã

monárquico ou perante um Leviatã burguês considerado mais

41

No pensamento original do iluminismo, tratava-se inicialmente do suposto progresso do "erro" para a "verdade", classicamente formulado por Condorcet. A Humanidade até então, assim opina ainda Kant em todas as suas obras principais, teria caído em erros sistemáticos e inconsequências, no pensamento e na ação; ter-se-ia entregue à irracionalidade e a inclinações errôneas, ao passo que só agora, com a modernidade burguesa, se teria iniciado a era da "razão". (KURZ, 2002)

Page 68: Piotr Kropotkin

67

desenvolvido, foi ela própria rigidamente limitada por um direito eleitoral

censitário de cidadãos proprietários conforme as classes fiscais, através de

concessões de uma cidadania nacional sobrejacente. (KURZ, 2010)

A busca pela promessa de felicidade do iluminismo aparece em uma sociedade

concorrencial entre sujeitos e seu objetivo em vencer essa concorrência, tanto que

inicialmente essa era a promessa do sujeito burguês emancipado do Antigo Regime e

proprietário dos meios de produção, ideia que permeou toda reivindicação do movimento

operário do século XIX e XX com a premissa do cumprimento da promessa de liberdade,

igualdade e fraternidade. Essa promessa é perseguida independente do caráter do Leviatã,

tal como se deram tanto nos Estados keynesianos do ocidente quanto os Estados do

socialismo real.

Talvez a potência da crítica do anarquismo se afirme muito mais em um

tencionamento crítico em relação à práxis, que pela suficiência de uma teoria anarquista,

revelando uma contradição onde a crítica radical não depende unicamente do método e da

determinação deste sobre o sujeito, mas de que maneira se dá sua práxis. A contradição

entre a teoria e a prática pode ser vista no tencionamento após a Revolução de Outubro e a

constituição do Estado Soviético pelos bolcheviques e a burocratização intensa que se

formava. Em uma carta de Kropotkin dirigida a Lênin em 4 de março 1920, Kropotkin realiza

uma crítica a práxis da ditadura do partido soviético em basear a revolução através da

estrutura estatal, da hierarquia e centralismo partidário. A busca pela revolução através do

Estado, mesmo como etapa revolucionária, perpetuaria a dominação do povo não mais por

uma classe burguesa, mas pela dominação que o centralismo do partido ofereceria

conservando essa estrutura de dominação.

Em vez disso fica uma verdade: ainda que a ditadura de um partido

constituísse um meio útil para combater o regime capitalista – o que duvido

muito - , esta mesma ditadura seria totalmente nociva para a criação de

uma ordem socialista. O trabalho, necessariamente, tem de constituir-se na

base das forças locais, mas até agora, isto não ocorre nem é estimulado por

nenhum lado. Em seu lugar se encontram, a todo instante, individualidades

que desconhecem a vida real e cometem os maiores erros, ocasionando a

morte de milhares de pessoas e arruinando regiões inteiras.

Page 69: Piotr Kropotkin

68

Sem a participação das forças locais, sem o trabalho construtivo de baixo

para cima, executado pelos trabalhadores e todos os cidadãos, a edificação

de uma nova vida é impossível.

Uma obra semelhante poderia ser empreendida pelos sovietes, pelos

conselhos locais. Mas a Rússia, devo enfatizar, é uma república soviética

apenas no nome. A influência e o poder dos homens do partido, que são

frequentemente estranhos ao comunismo – os devotos da ideia estão

sobretudo instalados aí no centro – têm aniquilado a influência verdadeira

e a força daquelas instituições que muito prometiam: os sovietes. Repito:

não há mais sovietes na Rússia, mas somente comitês do partido que fazem

e desfazem. E as suas organizações padecem de todos os males do

funcionalismo.

Para sair da desordem atual a Rússia deve retomar o espírito criador das

forças locais que, asseguro, são as únicas capazes de multiplicar os fatores

de uma nova vida. Quando antes se compreender isto, melhor! As pessoas

se disporão a aceitar mais facilmente as novas formas de organização

social. Entretanto, se a situação atual se prolongar, a mesma palavra

socialismo se converterá numa maldição, como ocorreu na França com a

ideia igualitária durante os quarenta anos que seguiram ao governo dos

jacobinos.” (KROPOTKIN, 1987, pg.178-179)

Page 70: Piotr Kropotkin

69

Capítulo 2. No bordel do historicismo

2.1 No balcão do iluminismo

O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado,

o materialista histórico faz desse passado uma experiência única.

Ela deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo,

com a meretriz “era uma vez”.

Walter Benjamin

Muito já se discutiu, dentro do discurso geográfico disciplinar, sobre as diversas formas

de manifestações ao longo da história que se encontram sob o signo Geografia, suas origens

e referenciais. Durante séculos são “conhecimentos esparsos” que diversos autores da

história da disciplina denominam possuírem uma identidade geográfica. Relatos de viagem,

curiosidades sobre lugares exóticos, relatórios estatísticos de órgãos administrativos, obras

com estudos sobre fenômenos naturais, bem como mapas com contornos continentais, são

atribuídos com o rótulo Geografia.

No afã histórico, Tales de Mileto, Anaximandro, Heródoto e Estrabão, de Grécia á

Roma. Claudio Ptolomeu em Alexandria e Bernardo Varenuius em Hannover com sua

Geografia Generalis compõe os referenciais que o discurso geográfico irá basear a

continuidade desse conhecimento até a sua sistematização.

Para Morais, “Desta forma, pode-se dizer que o conhecimento geográfico encontrava-

se disperso.” (MORAIS, 198442). A Geografia possui então um percurso historiográfico que se

realiza como um conhecimento sistematizado, junto a pressupostos históricos objetivados

no avanço das relações capitalistas de produção. Moreira assinala que “A Geografia

Moderna nasce como um projeto da revolução burguesa” (MOREIRA, 2008, pg.13). Aqui, a

sistematização do conhecimento científico aparece como um projeto, um fenômeno

consciente próprio da revolução burguesa e de seu sujeito histórico, frente às vicissitudes de

seu tempo. E com ela, para Benjamin, o início do “era uma vez”.

42

Desta forma, pode-se dizer que o conhecimento geográfico se encontrava disperso. Por um lado, as matérias apresentadas com essa designação eram bastante diversificadas, sem um conteúdo unitário. Por outro lado, muito do quê se entende hoje por Geografia não era apresentado com esse rótulo. (MORAIS, 1984, pg.49-50)

Page 71: Piotr Kropotkin

70

Dessa maneira, quando legitimada, a Geografia como conhecimento só o consegue ser

na forma histórica, um percurso pressuposto da razão no tempo cronológico, como um

conhecimento em construção que se realiza na sociedade burguesa. Max Weber, na

introdução de “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, coloca que “No estudo de

qualquer problema da história universal, um filho da moderna civilização europeia sempre

estará sujeito a indagação de qual a combinação de fatores a que se pode atribuir o fato de

na Civilização Ocidental, e somente na Civilização Ocidental, haverem aparecido fenômenos

culturais dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento universal em seu valor e

significado” (WEBER, 1967, pg.01)

A Civilização Ocidental a qual Weber se refere é a sociedade burguesa. Como Weber

trata o tema através da história da cultura, e de forma bem periférica as relações sociais de

produção determinantes na sociabilidade, a sociedade burguesa aparece pelo seu

referencial geográfico, ocidental, e não como aquilo que a difere de todas as demais, o seu

nexo social de relacionamento determinado pela forma mercadoria. Por consequência, ela

aparece como Civilização Europeia, crivada pelo seu referencial espacial, e não pela sua

forma de sociabilização.

Outras formas de sociabilização então se classificam como Civilizações, legitimadas

pelos seus referenciais geográficos, e não pela cosmogonia que as qualifica. E assim, seus

conhecimentos se tornam passíveis de apropriação. “A Geometria da Índia faltava a prova

racional, (...) As ciências naturais indianas (...) careciam do método experimental, (...) a

historiografia chinesa faltava o método de Tucídides. (...) e de todas as coletâneas de leis

indianas e de outras, faltava o que é essencial a uma jurisprudência racional: o rígido

esquema jurídico de pensamento dos romanos e do Direito ocidental por ele influenciado.

Uma estrutura como a do cânone jurídico só é conhecida no Ocidente.” (WEBER, 1967, pg. 1-

2) Há de se refletir que o cânone jurídico, com uma estrutura institucional rígida e

burocratizada, é oriunda dos Estados Absolutistas da Europa. Essa concepção, esvaziada de

um processo histórico, aparece na forma de uma ideologia geográfica43 (MORAES, 2005).

43

Antonio Carlos Robert Moraes, na introdução de seu livro “Território e História no Brasil”, propõe a distinção de “pensamento geográfico” e “geografia” (stricto sensu), visando alargar o campo de investigação a ser analisado além da mera história da disciplina, de forma a abranger as diversas “ideologias geográficas”, uma classe mais restrita de discursos, que pode ser contida na representação de um direcionamento político explícito, seja orientado na produção do espaço material, seja referido na própria construção de juízos e

Page 72: Piotr Kropotkin

71

Esta que está objetivada no modo de produção capitalista, e não uma invenção do

“Ocidente” geográfico, como construção cultural dos povos.

É bem possível que nas antigas civilizações agrárias se detectem formas

correspondentes de relações humanas face à natureza e à sociedade (o que

teria de ser deixado a cargo de investigações mais detalhadas), visto que

sem dúvida qualquer sociedade humana, contrariamente aos

agrupamentos correspondentes entre animais, produz uma relação de

consciência ativa para com os objetos que integram o seu mundo. No

entanto esta, tão pouco como outras definições formais societárias, não

pode ser projetada retroativamente a partir da realidade e do sistema

conceptual correspondente do moderno sistema produtor de mercadorias

para a totalidade da História humana. Afinal é precisamente nisso que

consiste a ontologização por parte da teoria iluminista das definições

fundamentais apenas produzidas pela moderna relação do valor e da

dissociação. Antes do século XVI não existia nem trabalho, nem economia,

nem estado, nem política, e muito menos um sujeito (estruturalmente

"masculino"): estes termos foram em parte inventados de raiz e, em parte,

totalmente revolucionados quanto ao seu significado; e talvez tal tenha

sucedido da forma mais evidente com o conceito da subjetividade.” (KURZ,

2003) 44

Weber destaca o fato de “somente na Civilização Ocidental, haverem aparecido

fenômenos culturais dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento universal em

seu valor e significado”. Ao iluminar o percurso da história, esse olhar busca para além da

forma civilizatória da sociedade burguesa, traços intrínsecos à moderna sociedade produtora

de mercadorias em diferentes formas de sociabilização, e em outros tempos históricos,

projetando no continuum do tempo os fundamentos da subjetividade do homem moderno

em face da objetividade. Esses fenômenos dotados de universalidade, valor e significado,

valores que conformam as próprias formas de consciência sobre o tema. O discurso aqui referido tem o enfoque epistemológico na análise dos textos “(...) em sua coerência, em suas estruturas argumentativas, na elucidação dos conceitos empregados, enfim, tomando diretamente o discurso como objeto de investigação.” (MORAES, 2005, pg. 12-13)

44 Kurz, Robert. Ontologia Negativa Os obscurantistas do Iluminismo e a metafísica histórica da Modernidade.

in: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz115.htm, 2003.

Page 73: Piotr Kropotkin

72

longe de aparecem nas mais diversas civilizações como construções culturais como Weber

coloca, são determinados pela relação entre forma mercadoria e forma pensamento,

objetivando um conhecimento através dessa matriz a priori, que longe de serem universais,

são construções históricas determinadas. Pensar em um cânone jurídico universal é fazer

crer que as instituições jurídicas são tão naturais quanto a venda de força de trabalho e o

assalariamento na construção das pirâmides egípcias. O que desperta a dúvida, nesse caso, é

se realmente foram homens que construíram as pirâmides.

Por essa relação fetichista, pode-se afirmar que o conhecimento universal se manifesta

não só através de diferentes lugares, mas em épocas diferentes. “Na verdade, trata-se de

todo um período de dispersão do conhecimento geográfico, onde é impossível falar dessa

disciplina como um todo sistematizado e particularizado. Nélson Wernek Sodré denomina-o

de ‘pré-história da Geografia’” (MORAES, 1984, pg. 50). Pensar em “pré-história” da

geografia como um período onde um conhecimento que se encontrava disperso,

fragmentado no fluxo cronológico onde os diversos pedaços do conhecimento científico se

encontravam em outras sociedades e ao longo da história, é atribuir não só ao

conhecimento uma qualidade natural a espécie, mas uma vocação a ser realizada ao longo

da história, a montagem final de um quebra-cabeças por um ensaísta de xadrez ciente de

todos os lances. Essa vocação do conhecimento se torna o vir-a-ser da ciência geográfica, e

esta encontra sua legitimação como um conhecimento de valor universal, ontológico. “A

história universal não têm qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza

a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio” (BENJAMIN, 1996,

p.231). Pré- história da geografia, projeto da revolução burguesa, para essa perspectiva

historicista, desde que o homem saiu da caverna de Platão subiu a montanha e olhou ao seu

redor, cortou-se a fita inaugural da ciência geográfica.

Page 74: Piotr Kropotkin

73

2.2 Uma ciência

Que faz o senhor aqui?

- Sou geógrafo, respondeu o velho.

- Que é um geógrafo? perguntou o principezinho.

- É um sábio que sabe onde se encontram os mares,

os rios, as cidades, as montanhas, os desertos.

É bem interessante, disse o principezinho. Eis, afinal, uma verdadeira profissão!

O pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry

Uma lona tratada com giz e cola, para fechar os poros da tela. A superfície enrijecida

por uma mistura de chumbo com óleo de linhaça. Os tons de pó de azul ultramarino, feitos

de lápis-lazúli, uma rocha metamórfica, mesclada com óleo vegetal, dão o tom da

pictografia. Um globo terrestre de e Jodocus Hondius e uma carta náutica de Willem Blaeu

pendurada na parede, são reproduzidas. Na imagem, a luz banha a face daquele que

empunha um compasso acima da carta aberta sobre a mesa, contemplando um mundo que

se encontra além da janela. O quadro de Vermeer de nos coloca diante de uma paisagem

burguesa do séc.XVII. Ali, a geografia em exercício de profissão.

A Geografia como um conhecimento imbuído do método empírico de análise e

observação, indutivo ou dedutivo, nomotético ou idiográfico, se constitui enquanto parte do

processo histórico qual surge o modo de produção capitalista, objetivando-se na moderna

sociedade produtora de mercadorias (KURZ, 1993). Assim, a gênese da ciência geográfica, é

intrínseca a modernidade e a razão transcendental iluminista.

Na constituição histórica desse processo, se tomarmos a abstração como elemento

identitário do Moderno, e sua expressão em diferentes quadros temporais, se não há um

momento histórico preciso de sua origem, é na Revolução Industrial o momento em que

modernização e o Moderno se tornam uma realidade empírica, tanto pelo domínio da

técnica que transforma a paisagem, em um ritmo vertiginoso nunca visto, quanto a

sociabilidade determinada pelo trabalho abstrato se universalizando, organizando tanto a

Page 75: Piotr Kropotkin

74

divisão territorial do trabalho com a formação de sujeitos expropriados de seus meios de

produção45. E dentro dessa lógica, toma forma os diversos discursos sobre a disciplina.

Dentro do ideário da história do pensamento geográfico, a Geografia aparece na

Modernidade através de Immanuel Kant (1724 - 1804), e nele reconhece seu fundador.

Para Kant, é necessário encontrar o ponto comum de pensar a Natureza e

pensar o Homem, seja no plano empírico trilhado pela ciência, seja no

abstrato que é característico da Filosofia. E vão buscar os pontos de apoio

na Geografia e na História. Na Geografia vai buscar os conhecimentos

empíricos concernentes a natureza. E na História (que Kant chama de

Antropologia e que mais se aproxima da nossa Psicologia Social), os

concernentes ao homem. (MOREIRA, 2008, pg.14)

A Geografia que Kant concebeu nos quarenta anos em que lecionou na Universidade

de Königsberg, é designada Geografia Física pelo conjunto de conhecimentos bem como

grupos de classificação taxonômica do mundo físico, no sentido aristotélico do termo

(MOREIRA, 2008). São grandes recortes de paisagens da superfície terrestre, fazendo uma

ampla corografia. O que se opera no período de Kant é uma mudança fundamental. A

percepção geográfica de Kant, um plano de extensão geométrica preexistente ao olhar

humano, faz com que o fenômeno apreendido pela percepção humana seja ordenado nos

parâmetros de uma ordem espacial, ocupando um lugar e distância pré-determinados,

dispostos e distribuídos em um espaço a priori, pré-existente. Retratado no pensamento

ilustrado essa relação se dá de forma de cisão, dual e complementar; a dualidade homem–

natureza, sujeito-objeto.

A influência de Kant na geografia não se restringe a sua contribuição ao léxico

geográfico ou as categorias do movimento do conhecimento. Refletindo sobre a ética, Kant

elabora o “Imperativo Categórico” 46, que deve representar todo o fundamento de todo o

direito e toda a estatalidade. "Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo

tempo querer que ela se torne lei universal", é a máxima kantiana. Esse princípio da lei

45

Tal como descreve Marx no capítulo XXIV do Capital ‘A assim chamada acumulação primitiva’. “A assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção.” (Marx, Karl, pg. 340, 1996.)

46 Em sua obra A Fundamentação da Metafísica dos Costumes de 1785

Page 76: Piotr Kropotkin

75

universal se localiza na razão transcendental do pensamento iluminista, válida para todos

como um a priori vazio de conteúdo, na forma abstrata de uma lei geral.

O conteúdo verdadeiro só pode ser a abstração social transcendental do

valor do capitalismo em desenvolvimento, que exclui como critério

qualquer conteúdo das necessidades e, pelo contrário, submete estas à

produção de “riqueza abstrata”. Esta submissão é executada pela forma

geral e abstrata do direito, em cuja fundamentação se ergue a estatalidade,

como garante da “obrigação”. (KURZ, 2010)

A submissão dos sujeitos à forma universal de pensamento constitui a forma abstrata

do direito e sua fundamentação na estatalidade, como reprodução da riqueza abstrata do

capital. “Age de modo que consideres a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na de

qualquer outro, sempre como objetivo, nunca como simples meio", outra máxima de Kant. A

forma jusnaturalista do contrato social pode ser vista na submissão do sujeito a priori ao

princípio racional capitalista da valorização. A humanidade como objetivo só pode ser

atingida por sujeitos emancipados, de quem age com fim nas categorias de reprodução a

priori. O Leviatã como organizador do arbítrio da vontade geral é uma categoria a priori do

sujeito emancipado do iluminismo. “A razão iluminista não consegue expressar de outro

modo senão deste modo paradoxal a contradição entre “liberdade e necessidade” nos seus

fundamentos porque já pressupõe estes cegamente.” (KURZ, 2010)

Kropotkin dirige uma crítica ao imperativo categórico kantiano:

É por demais sabido que Kant, por exemplo, pretendia explicar a origem do

sentimento moral humano como um imperativo categórico, e afirmava, ao

mesmo tempo, o caráter obrigatório de tal ou qual máxima particular de

conduta se a pudermos conceber como uma lei suscetível de aplicação

universal. Mas cada termo deste rosário de palavras contém algo de

nebuloso e incompreensível – imperativo categórico, lei universal – em vez

do fato palpável, conhecido de toda a gente, que se pretende explicar, e de

que o filosofo alemão tão arredio andou. (KROPOTKIN, 1964, pg.19-20)

Positivista, Kropotkin atribui à organização da sociedade baseada em sentimentos

morais inerentes a biologia da espécie, coloca o termo de lei universal como “nebuloso e

incompreensível” pela análise abstrata de relações entre as categorias de conhecimento em

Page 77: Piotr Kropotkin

76

detrimento a fenômenos que possam ser comprovados em sua forma física, laboratorial ou

historiográfica pelo método indutivo47.

Partindo desse gênero de observações e de fatos análogos, geralmente

conhecidos, os enciclopedistas, por esse modo, chegaram a formular as

mais largas generalizações e assim, pelo exame dos fatos mais simples,

explicaram de verdade a origem do sentimento moral como fato complexo

que é. O que, porém, eles nunca fizeram foi por, em vez de fatos

conhecidos e compreensíveis, palavras incompreensíveis e obscuras que

não explicam absolutamente nada, tais como as de imperativo categórico

ou de lei universal. (KROPOTKIN, 1964, pg.20)

Serão Ritter e Humboldt as influências do jovem Kropotkin quando este decide ir para

a Sibéria após o término de seus estudos no Corpo de Pajens, se lançando como um

explorador, como é descrito em sua biografia:

Meus pensamentos voltavam-se então cada vez mais para a Sibéria. A

região do Amur acabava de ser anexada pela Rússia. Eu havia lido tudo o

que se publicava sobre esse Mississipi do Oriente: as montanhas que

atravessava, a vegetação subtropical do seu afluente, o Usuri, e o meu

pensamento ia mais longe – para as regiões tropicais descritas por

Humboldt e para as belas generalizações geográficas de Ritter, cuja leitura

me causava tanto prazer. (KROPOTKIN, 1946, p. 155)

Carl Ritter (1779 – 1859), alemão, historiador, filósofo e pedagogo, é que se encontra

na esteira da sucessão de Kant. Inicia seus estudos universitários financiados por um

banqueiro de Frankfurt, J. J. Bethmann Hollweg, a fim de se tornar o preceptor de seus

filhos. Dessa maneira, Ritter se interessa pela pedagogia antes mesmo da geografia, sendo

Pestalozzi sua referência nesse campo. Ritter sempre reconheceu a influência de Pestalozzi

quando iniciou seus estudos em Geografia; e Horácio Capel aponta a discussão de diversos

47

Para descobrir o porquê dessa concepção, foram levados, naturalmente, a estudar o próprio homem em quem a ideia se manifestava e como já haviam feito Hutcheson em 1725 e depois Adam Smith na sua melhor obra, The Origin of Moral Feelings (Origem do Sentimento Moral), acharam que o sentimento moral do homem tem sua origem no sentimento de piedade e no da simpatia que experimentamos por todos os que sofrem. (KROPOTIKIN, 1964, pg.20)

Page 78: Piotr Kropotkin

77

autores se a geografia de Ritter não era uma aplicação dos métodos de ensino Pestalozzi na

geografia. Mesmo assim, assinala que a influência deste na obra de Ritter é marcante,

“Influência que atinge aspectos muito diversos de sua obra, desde a utilização do conceito

de "tipo" a sua produção cartográfica, que foi interpretado em relação com a importância

que dá Pestalozzi ao desenho, e como forma de visualização intuitiva das unidades

geográficas.” (CAPEL, 2008, pg.41). Ritter, como um cristão evangélico, admirava o

cristianismo autêntico de Pestalozzi. O que influenciou sua carreira em diversos círculos

influentes de Berlin, que rejeitavam o racionalismo e procuravam um cristianismo mais

profundo, unido a posições políticas conservadoras e ao Estado Prussiano.

Após se estabelecer em Berlim em 1820, assume a recém - fundada cátedra de

Geografia na Universidade de Berlin, fundada por Wilhelm Von Humboldt, irmão de

Alexander Von Humboldt, e se torna um dos membros fundadores da Sociedade Geográfica

de Berlin.

Para desenvolver seu método, o método comparativo, Ritter48 se apoia na corografia

de Kant. Em um recorte da paisagem, este não só implica em uma arrumação da superfície

terrestre em uma ordem de classificação taxonômica, como propicia ao geógrafo organizar

essa descrição. Ao comparar as paisagens, se extrai os traços comuns e singulares de cada

um, inferindo uma ordem geral de classificação, especificando as individualidades. A

corografia se converte em uma corologia. A Geografia Comparada de Ritter se apoia na

explicação metódica.

Ritter não deixou discípulos diretos na universidade após sua morte, a exemplo de

alguns alunos notáveis como Karl Marx e P. P. Semenov, e o que mais sofreu sua influência,

Elisée Reclus, que frequentara seu curso durante sua estadia em Berlim, influenciando a

obra desse geógrafo anarquista. Kropotkin, apesar de não ter sido seu aluno, ao tencionar

escrever uma obra que descrevesse a geografia física da Rússia, após ter sido enviado em

uma expedição pela Sociedade Geográfica Russa para a Finlândia e Suíça para exploração

48

Seus escritos, permeados pelo Idealismo Alemão, possuem a ideia do Todo expressa em sua obra, concepção esta que advém de Schelling; “para Ritter o Todo é ao mesmo tempo uma imagem divina e a visão global da natureza, e é para compreensão deste todo que ele como geógrafo tenta contribuir” (CAPEL, 2008, pg.46). As relações entre o homem e a natureza terrestre, assim como outras totalidades são subordinadas ao grande “Todo absoluto”, o cosmos, o globo terrestre, a superfície terrestre, o conjunto de suas relações.

Page 79: Piotr Kropotkin

78

dos depósitos glaciais, a fim de pesquisar os “esker”, acompanhado pelos geólogos General

Hemersen e Friedrich Schmidt, descreve em sua biografia:

Eu tencionava fazer uma descrição geográfica completa do país, baseada

nas características principais da estrutura corográfica que começava a

deslindar para a Rússia Europeia, e delinear as diversas formas de vida

econômica que deveriam prevalecer nas diferentes regiões físicas.

Considere-se, por exemplo, os vastos campos da Rússia meridional, tantas

vezes submetidos às secas e às más colheitas. Ambas não deviam ser

consideradas calamidades acidentais – porque constituem uma

característica natural dessa região, do mesmo modo que a sua posição na

vertente meridional do planalto central da Rússia, o seu solo, a sua

fertilidade, etc. E a vida econômica das estepes meridionais deveria ser

organizada na previsão da inevitável volta periódica das secas. Todas as

regiões do Império russo deveriam ser estudadas da mesma maneira,

seguindo-se o método científico que Karl Ritter empregara nas suas

admiráveis monografias de diferentes partes da Ásia. (KROPOTKIN, 1946,

pg.227)

Alexander Von Humboldt (1769-1859) nasceu em uma família aristocrática prussiana.

Seu pai, que era maçom e racionalista, preocupara-se com a formação de seus filhos desde

muito cedo, cercando-os de preceptores. Como naturalista, não contribuiu somente com a

Geografia, mas com diversas outras ciências.

Enquanto Ritter possuía formação em história e filosofia, tendo posteriormente

realizado cursos de botânica, mineralogia e geognosia, Humboldt tinha formação em

matemática, ciências naturais, botânica e física, mineralogia, geognosia, e desde muito cedo

aulas de economia política com o fisiocrata Wilhelm Dohm, bem como formação na

disciplina “Comércio”, destinada a formar altos funcionários das finanças, o que faz de

Humboldt um naturalista com a formação de um estatista, tendo sempre trabalhado para

diversos governos na condição de pesquisador e explorador em expedições científicas

financiadas pelo Estado, bem diferente de Ritter que se dedicou ao ensino sua vida inteira.

Através da sua variada formação, Humboldt pode oferecer contribuições decisivas a diversos

ramos da ciência, sobretudo à geologia, à mineralogia, à meteorologia e climatologia (nome

que parece haver criado), à geografia botânica, assim como à oceanografia (estudo da

Page 80: Piotr Kropotkin

79

corrente marítima com seu nome), à hidrologia e ao estudo do problema do

geomagnetismo.

Na viagem que Humboldt realiza para a América espanhola, esboça a ideia de uma

Geografia Física “uma observação sobre as relações geográficas dos vegetais, sobre a

migração das plantas sociais, sobre o limite de altitude a que se elevam seus diferentes

grupos rumo ao cume das montanhas.” (HUMBOLDT apud CAPEL, 2008, pg.14) Nos Andes

realizou os estudos da diferenciação das espécies de plantas com o aumento da altitude. Já

no oriente, realiza estudos de geomagnéticos, geológicos e astronômicos, estudando os

recursos minerais. Nessa viagem desenvolve teorias sobre montanhas e mesetas, sua

influência na altura média das massas continentais, sua configuração topográfica, e a

articulação das massas marinhas e terrestres, bem como estudos de hidrografia. Rigoroso

com os métodos de estudo, se baseava em uma análise nomotética, onde são características

seus estudos comparativos, levando em consideração a história do lugar, no mundo

inorgânico pela decomposição dos materiais rochosos e sua forma; a análise e distribuição

dos diferentes fenômenos, utilizando-se da linguagem cartográfica, e a evolução do planeta

em plantas e animais fossilizados.

No ano de 1829, aos 60 anos, inicia uma expedição a Rússia, a convite do governo que

pretendia emitir moedas de platina. Consultado pelo governo russo, Humboldt se mostrara

desfavorável a ideia já que o preço da platina era instável. Assim, se lança em uma

exploração as minas dos montes Urais, junto com Gustave Rose, professor de química e de

mineralogia, C.G Ehrenberg, naturalista e zoólogo.

Nas minas, onde passa o período de um mês, estuda a presença de filões de platina e

areias auríferas, sugerindo a presença de diamantes, descobertos logo depois pelo conde

Polier, proprietário das jazidas. Sua expedição segue da Sibéria até a cordilheira de Altai,

realizando medições barométricas e instalando estações de magnéticas e meteorológicas

fazendo análises ao longo do percurso. Após seis meses e 17.000 quilômetros percorridos,

encerra a expedição. Seus estudos sobre essa região são publicados por seus companheiros

de viagem sob o nome de Ásia Central, contendo o estudo das cadeias de montanhas da

Ásia.

Com base nesses estudos de Humboldt, após seu retorno da Sibéria e de suas

explorações, bem como sua entrada na seção de geografia física da Sociedade Geográfica

Page 81: Piotr Kropotkin

80

Russa, Kropotkin intenta lançar um livro sobre a exposição de suas novas ideias sobre as

montanhas e planícies da Ásia setentrional:

Durante muito tempo os mapas antigos e até mesmo as teorias de

Alexandre de Humboldt – o qual, após um estudo detalhado das nascentes

chinesas vira a Ásia coberta por uma rede de montanhas seguindo os

meridianos e paralelos, – dificultaram-me as investigações até que, por fim,

reconheci que as próprias teorias de Humboldt, embora tivessem sido para

os geógrafos um estimulo formidável, estavam em completo desacordo

com os fatos.

Começando então pelo princípio recorri ao método puramente indutivo:

recolhi todas as observações barométricas dos viajantes que me haviam

precedido, e, com o auxílio desses dados, fiz o cálculo de centenas de

altitudes. Num mapa em grande escala, marcava eu todas as observações

geológicas e físicas que haviam sido feitas por diferentes viajantes – fatos e

não hipóteses – e tentava descobrir as linhas de estrutura que melhor

correspondessem aos fatos observados. Esse trabalho preparatório exigiu

mais de dois anos. Seguiram-se meses de intensa reflexão, a fim de

orientar-me nesse caos de observações isoladas. Afinal, repentinamente,

tudo me apareceu claro e compreensível, como se tivesse sido iluminado

por um jato de luz.

As linhas principais da estrutura da Ásia não se dirigiam para o norte, nem

para o sul nem para o oeste, mas sim do sudoeste para o nordeste – da

mesma forma que nas Montanhas Rochosas e planaltos da América,

dirigem-se elas do nordeste para o sudeste; apenas as cadeias secundárias

se dirigem para o nordeste. Além disso, as montanhas da Ásia não são

cadeias de montanhas independentes, como os Alpes: elas se ligam a um

plano imenso, antigo continente cuja ponta era voltada para o estreito de

Behring. Altas cordilheiras formaram-se no rebordo desse continente e com

o decorrer dos tempos, emergiram do oceano terraplenos formados por

sedimentos mais recentes, aumentando assim a largura dessa aresta

primitiva da Ásia. (KROPOTKIN, 1946, pg. 218-219)

Page 82: Piotr Kropotkin

81

Devido sua prisão no ano de 1873 não pode publicar esse estudo, confeccionando um

mapa e um sumário que foram publicados por seu irmão Alexandre pela Sociedade

Geográfica Russa.

Diferente de Ritter, Humboldt não teve uma atuação acadêmica, realizando

expedições científicas, bases para sua obra49. Tanto Humboldt quanto Ritter faleceram

próximos ao surgimento do novo paradigma que se apresentaria durante a mudança da

segunda metade do séc. XIX, e que seria um dos principais temas discutidos por Kropotkin,

permeando toda sua obra, tanto suas publicações científicas quanto políticas; o

evolucionismo.

Esse é um período de ruptura metodológica onde os estudos de geografia,

influenciados pelo Idealismo e Romantismo Alemão, em uma perspectiva naturalista, se

voltarão a elaboração de uma Geografia voltada ao pensamento político, levando em conta

os interesses do organismo Estatal como o conhecimento, segurança e expansão do

Território pelo viés positivista. Interesses que são presentes nos trabalhos de Humboldt,

como no Ensaio Político sobre a Nova Espanha50, que também se dedica ao estudo do

potencial dos recursos naturais e defesa do território de uma nação.

49

Sua formação e sua atividade científica se basearam sempre no rigor das observações e na realização de numerosos de experimentos. Quer se tratasse de suas observações botânicas, zoológicas, mineralógicas ou geomagnéticas ou de suas experiências a respeito do galvanismo e o eletromagnetismo, Humboldt procedeu, a todo o momento, com um impecável método científico. Por isso valorizou sempre o método empírico e indutivo, a respeito dos quais podemos encontrar numerosas declarações em seus textos. Para ele, o espírito científico procede: 1) ―pela aplicação do pensamento às observações isoladas‖; 2) ―pela visão do espírito que compara e combina‖; 3) ―pela indução‖, que ―nos revela as leis numéricas‖. Dessa forma, afirma no Cosmos, é possível dar ―um caráter mais elevado à descrição física do globo. (CAPEL, 2008, pg.34)

50 ―a fisionomia de um país, o modo com que estão agrupadas as montanhas, a extensão das planícies, a

elevação que determina sua temperatura, enfim, tudo o que constitui a estrutura do globo, tem as relações mais essenciais com os progressos da população e o bem estar dos habitantes. Essa estrutura influi no estado da agricultura, que varia segundo as diferenças dos climas, na facilidade do comércio interno, nas comunicações mais ou menos favorecidas pela natureza do terreno e, por fim, na defesa militar da qual depende a segurança externa da colônia. Somente sob estes aspectos as grandes indagações geológicas podem interessar ao homem de Estado, quando calcula as forças e a riqueza territorial das nações. (HUMBOLDT apud, CAPEL, 2008, pg.21)

Page 83: Piotr Kropotkin

82

2.3 No bordel do historicismo

A história universal não tem qualquer armação teórica.

Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos

para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio.

Walter Benjamin

No processo de sistematização da disciplina há o surgimento do que se convencionou

(e se reproduziu) chamar “Escolas Nacionais” de pensamento. Alemanha e França,

respectivamente, protagonizam esse momento na história da disciplina. Não que foram as

únicas escolas de pensamento nacional a propor uma teoria de cunho nacionalista, já que

uma das características do discurso é o apelo á modernização via Estado Nação. E de certo

modo, a Geografia Crítica se coloca como uma.

A Alemanha realiza seu processo de unificação territorial em um momento em que os

Estados Modernos europeus que já haviam realizado sua Revolução Industrial realizavam a

partilha entre si da África, Oriente Médio e Ásia, em um processo já praticamente

consolidado. O Sacro Império Germânico era composto por diversos Reinos e Ducados e

Principados, não possuíam uma unidade política e territorial, sendo o traço cultural comum

entre estes o determinante para sua unificação. A Confederação Germânica criada em 1815

aumentou o comércio entre as regiões, agrupando os reinos da Áustria e da Prússia, bem

como outros principados. A unificação territorial germânica segue liderada pelo Estado da

Prússia, por uma via de modernização militarizada, aristocrática e conservadora, liderada

pelo general prussiano Otto Von Bismarck, realizando as guerras de unificação que terminam

com a Guerra Franco - Prussiana em 1870. A França derrotada perdia as regiões de Alsácia e

Lorena, ricas em minerais de ferro e carvão, essenciais para o desenvolvimento industrial

dos respectivos países.

Na história do pensamento da disciplina, esta seria a gênese das “Escolas Nacionais”

de pensamento. Ruy Moreira classifica esta fase como a da Geografia Clássica. Seus

representantes seriam Friedrich Ratzel e Vidal de La Blache, um com a “Escola Alemã”

determinista, outro com a “Escola Francesa” possibilista, no período que se estende à guerra

franco-prussiana, permeada pelo projeto de unificação alemã, na forma da “Confederação

Germânica, que congregou todos os principados alemães e os reinos da Áustria e da Prússia.

Page 84: Piotr Kropotkin

83

(...) É dentro desta situação que se pode compreender a eclosão da Geografia.” (MORAES,

1984, pg.46)

Com os Estados Modernos já consolidados ou em vias de, há a disputa mundial por

territórios onde as economias nacionais buscam por matérias primas para a sua indústria.

Esta passava por uma transformação técnica dramática, nos moldes da segunda Revolução

Industrial, baseada em novas matrizes energéticas e tecnológicas, para além da energia a

vapor, como a indústria química. O que também diferencia a Geografia desse período em

relação ao anterior. O Idealismo e o Romantismo Alemão, presente na obra de ambos os

autores, Ritter e Humboldt, não atende as novas demandas oriundas do processo produtivo

do capital, dando lugar ao positivismo e ao naturalismo, baseados na observação e no

método experimental, objetivados no processo de expansão das mercadorias pelo globo.

Frente a esse avanço, as nuances do pensamento científico se voltam para um

conhecimento cada vez mais compartimentado e fragmentado, já que deve atender a

crescente demanda de mão de obra necessária no processo produtivo especializada em

diversos graus do conhecimento técnico-científico. Frente ao positivismo, um pensamento

que se propõe a edificar diversas áreas do conhecimento em uma síntese que as relacione

como diversas partes fragmentadas de um todo, desprovida de uma base matemática

abstrata e lógica em seus fundamentos, e que admite até mesmo a existência de um ser ou

algo superior, como o faz Ritter, encontra cada vez menos adeptos.

Há a influência do Iluminismo e do positivismo que emerge deste na sistematização da

disciplina, o homem como centro do universo, o desencantamento do mundo, bem como o

pensamento ilustrado dos ideólogos das revoluções burguesas. As reflexões de Rousseau

passavam pelas formas de representação e extensão do território de uma sociedade, como o

regime democrático em nações com pouca extensão e um regime autoritário para estados

de grandes extensões territoriais. Montesquieu discute a ação do meio no caráter dos povos,

influindo na índole de acordo a forma do relevo, povos pacíficos em regiões montanhosas e

povos guerreiros nas planícies.

A economia política clássica, pelas suas análises materialistas sobre produção e

comércio, produtividade do solo e sua valorização, dinâmica populacional, oferta dos

recursos minerais, a indústria e as distâncias entre os mercados na emergência do modo

Page 85: Piotr Kropotkin

84

capitalista de produção tem seu lugar. Adam Smith e Thomas Malthus representam uma das

corrente que influenciou ás análises geográficas que se formam nesse período.

O advento das ideias de Darwin, influenciadas por Malthus, irá emergir no meio

científico com uma força que só as mudanças de paradigmas movem. O evolucionismo, a

competição das espécies e a luta pela sobrevivência transposta para o campo sociológico,

adquire o tom que definirá a valsa que o imperialismo do séc. XIX ira debutar e a ciência irá

conduzir. A missão civilizatória, a partilha continental da África e do Oriente.

Frente a esse novo paradigma, o processo de institucionalização cada vez maior da

ciência geográfica colabora para sua consolidação como disciplina universitária. Na

Alemanha na segunda metade do séc. XIX há um aumento significativo na demanda de

professores, uma ampliação da produção editorial por materiais de geografia e

cartográficos, bem como a criação de diversas vagas em universidades. É quando diversos

pesquisadores com formações diferenciadas entre si são atraídos por essas vagas na

geografia, como Ratzel, farmacêutico e zoólogo qual possuía seus estudos em etnologia. De

acordo com Jean Brunhes;

O próprio professor Ratzel me contava nos termos a seguir em janeiro de

1904, alguns meses antes de sua morte a evolução característica de sua

carreira: ‘Realizei viagens, desenhei, escrevi. Isso me conduziu a

Naturschilderung. Enquanto isso, voltei da América e me disseram que

necessitavam de geógrafos. Então, reuni e analisei todos os fatos que eu

próprio havia observado e colhido sobre a imigração chinesa à Califórnia, ao

México e à Cuba, e redigi minha obra sobre a imigração chinesa que foi

minha tese de habilitação’ (BRUNHES apud CAPEL, 2008, pg.80)

O peso da formação original de cada autor contribuiu na formação do arcabouço

teórico disciplinar desse período, a revelia das categorizações que estes produziram como

conhecimento serem encaradas como produções de cunho estritamente geográfico ou não.

A força com que a profissionalização da Geografia no séc. XIX atuou na sua sistematização

parece mais determinante que os conhecimentos esparsos ao longo da história e do

desenvolvimento de uma epistemologia da disciplina em sua historiografia.

Tomando como base a discussão das escolas nacionais, alemã e francesa, para o

geógrafo alemão Friedrich Ratzel, a sociedade é um organismo que mantém relações

Page 86: Piotr Kropotkin

85

duráveis com o solo, manifesta em necessidades como moradia e alimentação. A natureza

então é apropriada para fornecer os meios de reprodução da sociedade, e quanto maior o

solo, maior a necessidade de manter a sua posse, bem como a garantia da reprodução de

sua população. Dessa forma, quando a sociedade se organiza para defender o território,

surge o Estado (MORAES, 1984). Esta problematização desembocará no conceito de “espaço

vital”, o espaço necessário de uma sociedade para se reproduzir. Territorialmente, o

progresso se apresenta como necessidade de modernização e ampliação do território a fim

de englobar maiores recursos, como matérias primas para a indústria alemã, bem como a

ampliação do mercado e alcance de suas mercadorias.

Já para La Blache, representante da escola francesa, o conceito de “gênero de vida”

marca a relação entre sociedade e território, e seu conjunto de técnicas e habilidades

desenvolvidas ao longo da história por uma determinada população ao se relacionar com o

meio. O progresso se dava conforme o contato com outras populações que trariam uma

troca de técnicas num processo de enriquecimento mútuo, englobando várias comunidades

em um gênero de vida comum, o qual La Blache denomina “domínios de civilização”51. Dessa

forma, a expansão territorial se transveste como missão civilizatória.

Os historiadores da disciplina buscam por conhecimentos geográficos ao longo da

história, transpondo o conhecimento de formas de sociabilização distintas da capitalista, de

forma a legitimar a Geografia enquanto ciência, mesmo em uma análise materialista

histórica. Se a Geografia emerge como ciência no séc. XIX, pois demandava uma série de

pressupostos que se realizam com o avanço das relações capitalistas de produção, suas

categorias já estavam lá antes dela. Aqui, mais uma vez precede o conceito da trans –

historicidade do pensamento iluminista e sua ontologia, justificado pela abstração do fim em

si mesmo da riqueza abstrata determinada na missão de civilização.

51

Possibilismo que seria muito útil ao governo francês, não só por melhor conhecer e orientar a política de utilização dos recursos naturais do espaço francês, como também por tornar desnecessário o desenvolvimento de uma teoria radical como a da superioridade da raça branca sobre os nativos da Ásia e da África, de vez que o domínio colonial francês estava, nestes continentes, em fase de consolidação. A França deglutia, no início do séc. XX, o segundo império colonial da superfície da Terra, necessitando, naturalmente, de confundir a política colonial com os interesses humanitários de levar a civilização a povos incultos e capazes de ser educados e absorvidos pela civilização ocidental, em vez de pregar uma política de extermínio ou de conquista de povos inferiores. (...) Na realidade, nunca houve uma escola livre-arbitrista em Geografia, e o possibilismo, longe de se contrapor ao determinismo, foi mais o resultado da desradicalização do mesmo, uma forma atenuada do determinismo. (ANDRADE, 1977, pg.7)

Page 87: Piotr Kropotkin

86

A respeito desse movimento na História do Pensamento Geográfico, o debate sobre

esse período é profícuo. Se na primeira metade do séc.XX, na tradição do pensamento

geográfico, ambas as escolas eram postas como o contraponto da outra, tanto pela posição

nacional como pelo conteúdo qualitativo do discurso geográfico que apresentavam, nas

ultimas décadas diversos autores criticaram essa forma de classificação do pensamento, que

aparece pela primeira vez na obra de Lucien Febvre, A Terra e a Evolução Humana.

Introdução geográfica a História52. Aqui, mais do que uma diferença teórica de cunho

nacionalista, refletimos a respeito de como o discurso geográfico de ambos oferece o

amparo a fim de legitimar a expansão do Estado Nacional.

É o historicismo que se realiza enquanto historia universal a qual Weber se dirige

quando declara que “fenômenos culturais dotados (como queremos crer) de um

desenvolvimento universal em seu valor e significado”. A historiografia universal encontra

fragmentos do conhecimento e fatos históricos “perdidos” no continuum do tempo de

forma aditiva, somando-os, culminando em uma construção universal que valida a sociedade

moderna capitalista e todas as suas contradições como construções culturais de valor

universal e unidade histórica, tal como a própria Geografia e o Estado, e com elas, a meretriz

“era uma vez”.

Mesmo a Geografia Crítica, que cada vez mais se projeta como uma Escola de

pensamento dentro da Geografia, por um discurso próprio com um variado recorte

epistemológico, ao incorporar o materialismo histórico dialético do pensamento marxista,

tendo em vista como um dos seus objetivos, o “resgate crítico” da História do Pensamento

Geográfico, mantém uma perspectiva sociológica esvaziada da crítica categorial53, que

52

E vêm, provavelmente de Lucien Febvre, através do seu livro A Terra e a Evolução Humana. Introdução Geográfica a História (Febvre, 1954), esta ideia de tradição de escolas que se iniciara com as escolas alemã e francesa enquanto encarnações de suas necessidades nacionais respectivas, a primeira materializando-se no pensamento de Ratzel e a segunda, no de Vidal de La Blache. Confundindo alhos com bugalhos, Febvre, neste que é, diga-se com ênfase, um excelente livro, e como tal nessa perspectiva crítica de ser lido, designa a geografia vidaliana de possibilista e a ratzeliana de determinista, a vidaliana justamente pelo seu vínculo com o historicismo francês e a ratzeliana por seu vínculo com o naturalismo alemão.

Daí que Febvre opte por um contraponto de escolas e escolha Ratzel e Vidal de La Blache para referências de um fictício movimento nacional e um ainda mais fictício embate de pontos de vista (a derrota de 1870 da França diante de uma Alemanha militarista é o fantasma que está atrás do ideologismo de Febvre). (MOREIRA, 2008, pg.42)

53 A montanha da razão capitalista auto-reflexiva acumulada tornou-se assim um lugar santo justamente da

teoria marxista dos epígonos, na medida em que esta já pretendia declarar a mera discussão do contexto

Page 88: Piotr Kropotkin

87

reafirma os pressupostos trans – históricos do pensamento iluminista e com ela sua busca

pelo desenvolvimento e progresso da nação.

A teoria e, mais ainda, a prática da social democracia foram determinadas

por um conceito dogmático se progresso sem qualquer vínculo com a

realidade. Segundo os social – democratas, o progresso era, em primeiro

lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e

conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites,

correspondente a perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro

lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo,

irresistível, uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada um desses

atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas para ser rigorosa, a

crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A ideia

de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua

marcha no interior do tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia de

progresso tem como pressuposto a crítica dessa marcha. (BENJAMIN, 1996,

pg.229)

Para Benjamin, o materialista histórico trata o conceito de presente não como uma

transição de acontecimentos, mas como um “agora”, que para no tempo e se imobiliza,

fazendo dele uma experiência única. Ainda aqui, há uma tentativa de nossa parte com um

momento reminiscente da constituição da historiografia geográfica em olhar um desses

acontecimentos, ciente que isso pode se dar em uma tanto uma conotação positiva como e

a inserção e reconhecimento por parte desse reminiscente na história da disciplina. Mas

aqui é um momento de desenvolvimento do pensamento da pesquisa.

Afinal, contemporâneos a Ratzel e La Blache, estão Elisée Reclus, Piotr Kropotkin, Leon

Metchnikoff, Mikhail Dragomanov e Gustave Lefrançais, geógrafos anarquistas e

revolucionários. Apresentaremos um breve histórico da relação entre eles e como sua

produção científica se diferenciava dos geógrafos fundadores da geografia universitária. Esse

categorial como “herança” positiva e já quase fazê-la passar por crítica radical, embora apresentasse este sistema de pensamento como rígida afirmação. O conceito de crítica deslocou-se, pois, do plano das categorias para o plano dos atributos, e assim para a “realização” dos ideais iluministas, em vez de para a abolição dos seus reais pressupostos, o que também vinha precisamente ao encontro da consciência histórica do movimento operário. (KURZ, 2011)

Page 89: Piotr Kropotkin

88

movimento tem como objetivo a desnaturalização com que o discurso disciplinar trata esse

momento histórico tanto ao colocar os pontos da teoria dos fundadores da disciplina como o

“espaço vital” de Ratzel, e o “gênero de vida” de La Blache, como resultado de uma mera

construção histórica cultural da constituição da disciplina e vitimas da cientifização do

próprio método positivista.

Page 90: Piotr Kropotkin

89

2.4 O Black Bloc bate a porta

Oh, I get by with a little help from my friends.

Lennon / Mccartney

A sistematização da geografia se dá na esteira do processo de expansão dessa

disciplina pelas universidades, com a abertura de várias cátedras dedicadas a disciplina de

geografia, aumentando a produção desse ramo do conhecimento (CAPEL). Mas naquele

momento, em outro lugar, esse conhecimento percorria outros caminhos. Se no início do

surgimento do movimento socialista, anarquistas como Godwin, Déjacque, Stirner e

Proudhon oscilavam entre uma forma de filosofia política, economia e sociologia, no ultimo

quarto do séc.XIX diversos militantes se associaram na produção de conhecimento cientifico,

e especialmente um grupo deles no conhecimento geográfico.

Com a expansão do Imperialismo pelo globo e a disputa de recursos para a indústria, a

divisão territorial do trabalho em escala mundial, diversos anarquistas, como Léon

Metchnikoff (1838-1888), Mikhail Dragomanov (1841-1895), Gustave Lefrançais (1826-1901)

ou Charles Perron (1837-1909) viram na geografia um lugar de debate de suas ideias

libertárias, no conceito de paisagem geográfica de Humboldt, a possibilidade para os

libertários de lugares sem Estado.

Esses anarquistas possuíam uma vasta troca de correspondências entre si, se

relacionando em rede, mantendo sua produção científica em paralelo a sua militância

política. Exemplo disso é a revista internacionalista Le Travailleur, impressa em Genebra na

gráfica dos exilados russos Rabotnik54 e que tem o mesmo coletivo editorial da Nouvelle

Géographie Universelle, uma enciclopédia geográfica de 19 volumes, a qual Elisée Reclus era

o editor.

Essa revista, que era dirigida por Reclus e Perron, cartógrafo da enciclopédia, possuía

como colaboradores fixos Metchnikoff (informante científico e coautor do volume VII),

Dragomanov (consultor científico e coautor do volume V), e Lefrançais (secretário editorial

da obra). Kropotkin, Metchnikoff e Dragomanov eram inimigos do Tzar, sendo Reclus e

Lefrançais combatentes da Comuna de Paris, todos na condição de exilados, reunidos na

54

Trabalhador em russo.

Page 91: Piotr Kropotkin

90

Editora Hachete. Entre os assuntos que essa revista abordava, estão artigos de geografia

política como os estudos de Metchnikoff sobre o Japão, onde suas análises sugeriam um

redimensionamento na influência da Europa nas relações dinâmicas mundiais e a

emergência do Pacifico55 no quadro mundial.

Desses homens, o historicismo não faz questão. Léon Metchnikoff, russo, desertor,

havia lutado lado a lado de Garibaldi na guerra de unificação da Itália. Morou na Espanha e

no Japão. Woodcock comenta de quando Bakunin exilado se encontrava na Itália:

Frequentemente os russos que passavam pela Itália iam visita-lo, mas o

único que chegou a aproximar-se realmente dele foi um jovem cientista,

provavelmente membro da Irmandade Florentina, chamado L. Metchnikoff,

que havia lutado sob as ordens de Garibaldi e, tal como o próprio Bakunin,

era também uma espécie de revolucionário internacional. (WOODCOCK,

2002, pg. 189)

É Metchnikoff que trará primeiramente a crítica positivista dos anarquistas ao

darwinismo social, destacando como principal fator da evolução a cooperação “A ciência

natural nos ensina que a associação é a lei de cada existência. O que normalmente

chamamos sociedade é somente um caso particular desta lei”56 (METCHNIKOFF apud

FERRETI e PELLETIER, 2013, pg.7). Ele tratará inicialmente essas ideias em um artigo, o qual

Reclus enviará para Kropotkin quando este se encontrava detido na França, entre Lyon e

Clairvaux (1882-86). Apesar das ideias serem debatidas em coletivo entre eles, os artigos

científicos eram assinados pessoalmente. Será Kropotkin o sistematizador da crítica ao

darwinismo social em seu livro A Ajuda Mútua.

55

Elisée Reclus comenta o processo de integração da Ásia Oriental no mercado mundial e divisão territorial do trabalho que se dava nas manufaturas inglesas que se instalavam na Ásia, no auge do Imperialismo europeu: “O período histórico em que a humanidade vivencia a junção definitiva da Ásia Oriental ao mundo europeu, é rica de eventos. Como a superfície da água, por efeito do peso, tenta nivelar-se, assim as condições do mercado do trabalho tendem a se igualar. Considerado como simples proprietário, dono de seus braços, o homem mesmo é uma mercadoria, não menos não mais do que os produtos de seu trabalho. As indústrias de todos os países, cada vez mais empenhadas na luta da concorrência vital, querem produzir barato comprando ao preço mais baixo a matéria prima e os braços que a transformam. Mas onde as poderosas manufaturas, como as da Nova Inglaterra, encontram trabalhadores mais hábeis e sóbrios, e ainda menos dispendiosos, que os do Extremo Oriente?” (Nouvelle Géographie Universelle, t. VII, p. 15. RECLUS apud FERRETI e PELLETIER, 2013, pg. 10)

56 (METCHNIKOFF L., “Révolution et évolution”. The Contemporary Review, 1886, 50, p. 415. METCHNIKOFF

apud: FERRETI, e PELLETIER, 2013, pg.10)

Page 92: Piotr Kropotkin

91

A crítica ao darwinismo social caracteriza a produção desses autores. Os parâmetros

biológicos como divisores de classes, e a ideia de uma raça superior com uma missão de

civilização dos povos bárbaros e incultos, era veemente criticada por eles. Em um artigo de

Kropotkin, que tencionava com Mackinder sobre o papel social da geografia em um debate

na Sociedade Britânica Real:

“É tarefa da geografia mostrar que a humanidade é uma só, que as

diferenças nacionais ou locais não devem servir para ocultar a imensa

semelhança que existe especialmente entre as classes trabalhadoras de

todo o mundo, que as fronteiras políticas são relíquias de um passado

bárbaro e que os nacionalismos exarcebados, as guerras e os preconceitos

entre nações ou em relação às ‘raças inferiores’ só servem para manter ou

reforçar os interesses de grupos ou classes dominantes”57. (KROPOTKIN

apud VESENTINI, 1987, pg a ver.)

Metodologicamente, recusavam o termo ecologia, cunhado por Ernst Haeckel (1834-

1919), um dos maiores divulgadores da luta pela sobrevivência como principal fator de

evolução humana, já que ele admite a influência do meio no comportamento das criaturas

via seu metabolismo, base das ideias materialista geográficas sobre a relação da

determinação do ambiente sobre o caráter do homem. Reclus utilizava o termo meio

posteriormente adotado em sua “Geografia Social” em detrimento a ecologia, baseado na

concepção de Pascal e Diderot, de “espaço material através do qual passa um corpo no seu

movimento”. Auguste Comte (1798-1857) modifica o termo para Mesologia, como um

“estudo teórico do meio”, lançado primeiramente por Charles-Philippe Robin (1821-1885),

biólogo.

Será o conceito cunhado por Louis-Adolphe Bertillon (1821-1883), socialista

proudhoniano, médico, antropólogo e demógrafo, da mesologia como “adaptação da

espécie humana ao meio”. Reclus expõe essa ideia em o L’Homme et La Terre (1905), e tenta

ampliar esse conceito para abranger suas ideias sobre civilização, em escalas temporais

(tempo curto, tempo longo).

57

KROPOTKIN, P. What geography ought to be. In: Antipode: a Radical Journal of Geography, vol.10-11, n.1-3, 1976, p.6-15. (Ensaio foi publicado originalmente in The Nineteenth Century, Londres, dezembro de 1885).

Page 93: Piotr Kropotkin

92

O meio geral compõe-se de inúmeros elementos, entre os quais Reclus

distingue o “meio-espaço”, o “meio por excelência”, “pertencendo à

natureza exterior” (conceito veiculado por Bakunin), ou ainda “ambiente”

ou “meio estático primitivo”. Adiciona-se o “meio dinâmico”, combinação

complexa de “fenômenos ativos” em que a “marcha das sociedades” é

composta por “impulsos progressivos e regressivos” (noção utilizada por

Proudhon consoante Vico e Michelet). Ao final, trata-se de “forças

primárias ou secundárias, puramente geográficas ou já históricas, que

variam segundo os povos e os séculos.” A dinâmica reclusiana revela-se

muito próxima do que Proudhon chama “o movimento”, uma noção central

em sua obra. (FERRETTI e PELLETIER, 2013, pg. 8)

A relação entre o meio-espaço e o meio-tempo é o responsável pela dinâmica da

civilização. Muitas relações se davam dentro desse processo. As necessidades de existência

relacionadas com a maneira de achar e sentir resultam na civilização, sempre em processo

com novas aquisições, e necessidades de sobrevivência mais ou menos duradouras. Junto ao

gênero de vida, criavam uma “semi-civilização”, já que para Reclus, “civilização” é a que

oferece oportunidades iguais a todos (FERRETTI e PELLETIER).

Page 94: Piotr Kropotkin

93

2.5 A Ajuda Mútua e a crítica ao darwinismo social

O termo, que se originou da estreita concepção malthusiana –

de competição de indivíduo contra todos os outros –,

perdeu assim sua estreiteza

na visão de alguém que conhecia a Natureza.

Piotr Kropotkin, A Ajuda Mútua

A Ajuda Mútua58 é o livro publicado por Kropotkin quando se encontrava exilado em

Londres, lançado em 1902, e a sistematização da crítica ao darwinismo social que esses

geógrafos esboçavam coletivamente. Podemos dizer que essa crítica é uma metacrítica da

obra de Darwin, já que sua crítica não era direta ao método, mas os resultados quais os

discípulos de Darwin, como Thomas Henry Huxley (1825 – 1895), conhecido como “O

Buldogue de Darwin”, e Herbert Spencer (1820 – 1903) em sua sociologia, afirmavam com

“sobrevivência do mais apto”59.

Por isso julguei que um livro sobre Ajuda mútua como lei da Natureza e

fator de evolução preencheria uma lacuna importante. Em 1888, quando

Huxley publicou seu manifesto da “Luta pela vida” (Struggle for Existence

and its Bearing upon Man) que, a meu ver, foi uma representação muito

incorreta dos fatos da Natureza como são vistos nas matas e florestas,

comuniquei-me com o editor da Nineteenth Century, perguntando-lhe se

me daria a honra de uma leitura crítica e uma resposta minuciosa às

opiniões de um dos mais ilustres darwinistas da época. James Knowles

acolheu a proposta com a maior boa vontade. Também falei a respeito com

W. Bates. “Sim, claro; isso é darwinismo autêntico”, foi sua resposta. “É

58

Os diferentes capítulos deste livro foram publicados na Nineteenth Century. (“ Ajuda mútua entre os animais” saiu em setembro e novembro de 1890; “Ajuda mútua entre os selvagens”, em abril de 1891; “Ajuda mútua entre os bárbaros”, em janeiro de 1892; “Ajuda mútua na cidade medieval”, em agosto e setembro de 1894; e “Ajuda mútua nas sociedades contemporâneas”, em janeiro e junho de 1896). (KROPOTKIN, 2009, pg. 18)

59 Sobre a filosofia sintética de Spencer: “Ainda que reconhecendo o notável serviço que ele prestou ao

pensamento moderno, seria um funesto erro determo-nos na admiração por essa obra a ponto de julgar que ela contenha realmente ao homem, individual e socialmente considerado. A ideia fundamental da filosofia de Spencer é mais do que justa. Por diversas causas, algumas das quais expusemos, essa filosofia, na suas variadas aplicações, foi truncada múltiplas vezes. Outras causas, como a aplicação do método vicioso das analogias, e, sobretudo, a exageração do conceito de luta pela existência entre indivíduos da mesma espécie e a pouca atenção dada a um outro fator ativo da natureza, a ajuda mútua, foram enumeradas, ainda que sucintamente, nesta nossa critica” (KROPOTKIN, 1964, pg.73)

Page 95: Piotr Kropotkin

94

horrível o que ‘eles’ fizeram com Darwin. Redija esses artigos e, quando

estiverem impressos, vou lhe escrever uma carta que poderá publicar.”

Infelizmente, levei quase sete anos para escrever esses artigos e, quando o

último foi publicado, Bates não vivia mais. (KROPOTKIN, 2009, pg.15)

Como já foi dito, para Kropotkin, é o método indutivo nomotético o método o qual

todos os ramos do conhecimento, como a filosofia, a biologia e sociologia, deveriam aplicar

a sua análise. Sua critica se dá em relação a interpretação feita da obra de Darwin, e não ao

método. Inicia assim a defesa da obra desse autor, destacando o uso metafórico da

expressão “luta pela sobrevivência” em detrimento ao uso estrito dessa metáfora60 para

ilustrar o “estado de natureza” dos indivíduos.

Embora estivesse usando o termo em seu sentido estrito, principalmente

tendo em vista seus objetivos específicos, ele alertou seus seguidores para

que não cometessem o erro (que ele próprio parece ter cometido um dia)

de superestimar esse sentido. Em A origem do homem, Darwin escreveu

algumas páginas memoráveis para ilustrar seu sentido próprio, o sentido

amplo. Observou que, em inúmeras sociedades animais, a luta entre

indivíduos pelos meios de subsistência desaparece, que essa luta é

substituída pela cooperação e que essa substituição resulta no

desenvolvimento de faculdades intelectuais e morais que assegura à

espécie as melhores condições de sobrevivência. Ele sugeriu que, nesses

casos, os mais aptos não são os mais fortes fisicamente, nem os mais

astuciosos, e sim aqueles que aprendem a se associar de modo a se

apoiarem mutuamente, fossem fortes ou fracos, pelo bem-estar da

comunidade. “Aquelas comunidades”, escreveu ele, “que possuíam o maior

número de membros mais cooperativos seriam as que melhor floresceriam

e deixariam a prole mais numerosa.” (2.a ed. inglesa, p. 163). (KROPOTKIN,

2009, pg. 20)

Kropotkin reflete sobre a terminologia utilizada por Darwin em sua teoria, com

exemplos cheios de embates gladiatórios, e que aparece como suporte a aqueles que

60

E, logo no início dessa obra memorável, ele insistiu para que o termo fosse compreendido em seu “sentido amplo e metafórico, que incluía a interdependência entre os seres e (o que é mais importante ainda) não apenas a vida do indivíduo, mas também sua capacidade de deixar descendentes”. (KROPOTKIN, 2009, pg. 19)

Page 96: Piotr Kropotkin

95

seguem a filosofia de Hobbes, constituindo um argumento científico em relação ao homem

primitivo e seu estado natural da “guerra de todos contra todos”. “Aconteceu com a teoria

de Darwin o que sempre acontece com teorias que exercem qualquer influência sobre as

relações humanas” (KROPOTKIN), e nesse contexto, Huxley é o representante dessa escola.

Como se sabe, Huxley foi o fundador dessa escola. Num artigo escrito em

1888, ele representou os homens primitivos como se fossem tigres ou

leões, destituídos de quaisquer concepções éticas, levando a luta pela

sobrevivência a seu mais amargo fim e vivendo uma “contínua luta livre”.

Segundo ele, “além das relações limitadas e temporárias da família, a

guerra hobbesiana de cada um contra todos era a condição normal da

vida”. (KROPOTKIN, 2009, pg. 73)

Darwin sempre admitiu a inspiração que a teoria de Malthus havia lhe proporcionado

em sua obra. A critica que Kropotkin esboça, é o uso dessa ideia que para Darwin se colocava

como metáfora, e de quando ela perdeu seu sentido filosófico para ser aplicado

qualitativamente as sociedades humanas. Tolstoi taxou Malthus pela sua “mediocridade

maliciosa”, e não foi o único. A obra de Darwin foi plenamente aceita pela comunidade

científica russa, mas não sem ressalvas.

O primeiro a abordar o argumento da Ajuda Mútua como principal fator de evolução

foi o zoólogo russo Karl Fiódorovich Kessler (1815 – 1881)61, reitor da universidade de São

Petersburgo, em uma palestra proferida em 1880 para naturalistas russos poucos meses

antes de sua morte. Kessler afirmava a existência da luta pela sobrevivência, mas a negava

61

Entretanto, se faço menção especial ao discurso de Kessler, é porque ele alçou a ajuda mútua à altura de uma lei, muito mais importante na evolução do que a lei da luta de todos contra todos. As mesmas ideias foram apresentadas no ano seguinte (em abril de 1881) por J. de Lanessan, em uma conferência publicada em 1882 sob o título La lutte pour l’existence et l’évolution des sociétés *Paris, Félix Alcan, 1903+. Animal Intelligence, obra importante de G. Romanes, foi publicada em 1882, acompanhada, no ano seguinte, de Mental Evolution in Animals [Nova York, Penguin, 1883]. Mais ou menos na mesma época (1883), Büchner publicou outro trabalho, Liebe und Liebes-Leben in der Thierwelt, cuja segunda edição, ampliada, apareceu em 1885. Como se vê, a ideia estava no ar. Outros autores citados por Kropotkin que antecederam Darwin; “Menciono as de Houzeau, Les facultés mentales des animaux, 2 vols., Bruxelas, 1872; L. Büchner, Aus dem Geistesleben der Thiere, editado em 1877, e Maximilian Perty, Über das Seelenleben der Thiere, Leipzig, 1876” (KROPOTKIN, 2009, pg. 37)

Page 97: Piotr Kropotkin

96

como o motor da evolução das espécies62, a qual ilustrou com diversos exemplos do reino

animal.

Em um país de proporções continentais como a Rússia as dificuldades de ocupação do

território eram imensas, essas exposições foram aceitas com naturalidade pela comunidade

científica russa, que realizava seus estudos em áreas como o norte da Ásia e leste da Rússia.

(GOULD, 1992)

Eu mesmo me lembro da impressão que o mundo animal da Sibéria

produziu em mim, quando explorei as regiões do Vitim em companhia de

um zoólogo talentoso,o meu amigo Poliakov. Ambos estávamos sob o

impacto recente do livro A origem das espécies, mas procuramos em vão

pela feroz competição entre animais da mesma espécie que a obra de

Darwin nos fez esperar, levando em conta até as observações do terceiro

capítulo (p.54). Vimos diversas adaptações para a luta – muito

frequentemente em comum – contra as adversidades do clima ou vários

inimigos, e Poliakov escreveu belas páginas sobre a dependência mútua de

carnívoros, ruminantes e roedores nas regiões por onde se distribuíam;

testemunhamos numerosos casos de ajuda mútua, principalmente durante

as migrações de pássaros e de ruminantes; no entanto, mesmo nas regiões

do Amur e do Usuri, onde a vida animal parece fervilhar, tal a sua

abundância, muito raramente observei casos reais de competição e de luta

entre animais superiores da mesma espécie, embora eu tivesse procurado

ansiosamente por elas. Os trabalhos da maioria dos zoólogos russos dão a

mesma impressão, e isso provavelmente explica por que as ideias de

Kessler foram tão bem aceitas pelos darwinistas russos, ao passo que ideias

semelhantes não estão em voga entre os seguidores de Darwin na Europa

Ocidental. (KROPOTKIN, 2009, pg.24)

62

“É óbvio que não nego a luta pela sobrevivência, mas sustento que o desenvolvimento progressivo do reino animal, e principalmente da humanidade, é muito mais favorecido pela ajuda mútua do que pela luta de todos contra todos. [...] Todos os seres vivos têm duas necessidades essenciais: a nutrição e a propagação da espécie. A primeira leva-os à guerra e ao extermínio mútuo, ao passo que a segunda faz com que se aproximem e se apoiem mutuamente. Mas estou inclinado a pensar que, na evolução do mundo orgânico – na modificação progressiva dos seres orgânicos –, a ajuda mútua desempenha um papel muito mais importante do que a luta entre indivíduos.” Fala proferida pelo Prof. Kessler, in Memórias (Trudy) da Sociedade de Naturalistas de São Petersburgo, vol. XI, 1880. Apud (KESSLER apud KROPOTKIN, 2009, pg. 38)

Page 98: Piotr Kropotkin

97

Como destaca Kropotkin, essa ideia era aceita por diversos cientistas russos, e suas

discussões com Metchnikoff e Reclus faziam parte de uma discussão levada pela

comunidade científica russa. Além de o próprio Kropotkin inicialmente ter ido a campo

disposto a encontrar as relações de competição como fator decisivo da sobrevivência da

espécie, e que foram implodidas pelo seu empirismo naturalista. Vale lembrar também que

as regiões visitadas por Darwin eram tropicais e subtropicais, abundantes em espécies em

sua conformidade latitudinal, enquanto na Rússia prevalecem condições climáticas muito

diferentes e pouco amistosas de climas temperados e semi glaciais.

As expedições a Manchúria que Kropotkin participou em sua juventude, ele menciona

o esforço pela ocupação territorial das margens do Rio Amur, recém - anexado pela Rússia,

realizado pelo governo russo. Como a região era praticamente inabitada, a tática utilizada

pelo Governador Geral da Sibéria Oriental foi a de libertar diversos presos a fim de se quê

fixassem nesse lugar, conforme já mencionado no capítulo 1, devido a escassez populacional

dessa região a ser mobilizada, situação adversa a qual passou a Inglaterra, que inspirou

Malthus a estabelecer a relação entre o crescimento populacional e a disputa por recursos

do meio.

A concepção de Malthus seguia o mesmo pensamento de autores como Hobbes e

Smith, partidários da guerra perpétua de todos contra todos. A disputa crescente de uma

população pelos recursos do lugar não deixava passar despercebido sua relação junto à ética

protestante então identificada como uma qualidade britânica pelos russos, e o local usado

como inspiração para sua teoria. Um território delimitado, literalmente uma ilha, onde o

exército de mão de obra reserva já estava formado, disputando recursos escassos.

Estes acabaram por conceber o mundo animal como um mundo de

perpétua luta entre indivíduos semifamintos e sedentos do sangue uns dos

outros. Fizeram a literatura moderna ressoar com o grito de guerra de “ai

dos vencidos”, como se esta fosse a última palavra da biologia moderna.

Elevaram a luta impiedosa por vantagens pessoais à condição de um

princípio biológico ao qual também o homem deve se submeter, sob a

ameaça de, caso contrário, sucumbir em um mundo baseado no extermínio

mútuo. Deixando de lado os economistas, cujo conhecimento da ciência

natural se resume a umas poucas palavras de segunda mão, devemos

reconhecer que mesmo os mais respeitados defensores do ponto de vista

Page 99: Piotr Kropotkin

98

de Darwin se empenharam ao máximo para preservar aquelas falsas ideias.

(KROPOTKIN, 2009, pg. 21)

A luta pela sobrevivência para Kropotkin possui implicações opostas; a primeira,

organismo contra organismo de uma mesma espécie disputando recursos limitados levando

a rivalidade e competição, segundo, organismo contra meio ambiente, levando a

cooperação. E é essa a característica determinante da evolução. Entre os mais variados

exemplos que Kropotkin oferece da cooperação no reino animal, podemos citar o das

formigas:

Nessa imensa divisão do reino animal, que engloba mais de mil espécies e é

tão numerosa que os brasileiros dizem que o Brasil pertence às formigas, e

não aos homens, não existe competição entre os membros do mesmo

formigueiro ou da mesma colônia. Por mais terríveis que sejam as guerras

entre espécies diferentes, e quaisquer que sejam as atrocidades cometidas

nessas circunstâncias, a ajuda mútua dentro da comunidade, a abnegação

mútua tornada hábito e, muito frequentemente, o autossacrifício pelo bem

comum são a regra. As formigas e as térmites renunciaram à “guerra

hobbesiana” e passam muito bem, obrigado. Seus ninhos maravilhosos,

suas construções – superiores em tamanho relativo às do homem –, suas

estradas pavimentadas e galerias subterrâneas de superfícies abobadadas,

seus espaçosos salões e celeiros, seus campos de cereais, suas colheitas e

sua “maltagem” de grãos, seus métodos racionais de cuidar dos ovos e

larvas e de construir ninhos especiais para se protegerem dos pulgões – que

Lineu descreveu tão pitorescamente como “as vacas das formigas”– e,

finalmente, sua coragem, garra e inteligência superior, tudo isso é o

resultado natural da ajuda mútua que esses insetos praticam em todas as

fases de suas vidas laboriosas e diligentes. (KROPOTKIN, 2009, pg.27)

E não priva as formigas de sua face guerreira, ao afirmar que a força do formigueiro

reside na coletividade. A formiga não possui uma carapaça protetora como um animal

individual, sua cor não se camufla na floresta. Seus ovos são iguarias para diversos animais, e

sua picada quando única, não oferece perigo a outros animais. Ao citar o exemplo de Forel,

que ao esvaziar um saco de formigas em um arbusto com diversas outras espécies de insetos

Page 100: Piotr Kropotkin

99

e animais, observa grilos, gafanhotos, besouros, aranhas e até ninhos de vespas serem

abandonados diante o ataque coletivo, comenta:

E se as formigas – sem contar o desenvolvimento ainda superior das

térmites – está no topo de toda a classe dos insetos por suas capacidades

intelectuais, se sua coragem só é igualada pela dos vertebrados mais

corajosos e se seu cérebro – usando palavras de Darwin – “é um dos

átomos de matéria mais maravilhosos do mundo, talvez mais ainda do que

o cérebro humano”, isso não se deveria ao fato de a ajuda mútua ter

tomado inteiramente o lugar da luta de todos contra todos em suas

comunidades? (KROPOTKIN, 2009, pg.28)

Seu argumento começa a ser construído baseado nas observações das relações de

ajuda mútua entre os animais63, não sem deixar de atribuir qualidades humanas ao reino

animal e vice-versa. Da construção do conceito de associação entre as mais diversas espécies

presentes no reino animal, esse conceito deriva para um estado natural. Esse estado natural

se edifica junto à história humana, seguindo uma linha evolutiva, nos moldes naturalistas,

entre os primórdios da sociedade, dos selvagens aos bárbaros a cidade medieval e assim, na

sociedade moderna contemporânea, a fim de criticar a concepção da “guerra de todos

contra todos”.

63

A primeira coisa que nos impressiona quando começamos a estudar a luta pela sobrevivência em ambos os seus aspectos – o literal e o metafórico – é a abundância de casos de ajuda mútua, não apenas para criar a prole, como reconhece a maioria dos evolucionistas, mas também para a segurança do indivíduo e para sua provisão do alimento necessário. A ajuda mútua é a regra em muitas das grandes divisões do reino animal. Existe realmente entre os animais inferiores, e devemos estar preparados para um dia descobrir, com os estudiosos da microbiologia, casos de ajuda mútua inconsciente até mesmo na vida de microrganismos. (KROPOTKIN, 2009, pg. 24)

Page 101: Piotr Kropotkin

100

Capítulo 3. Nos braços do Leviatã

3.1 A teoria do contrato social

Que trevas e obscuridade se apoderem dele, que nuvens o envolvam, que eclipses o apavorem, que a sombra o domine; esse dia, que não seja

contado entre os dias do ano, nem seja computado entre os meses! Que seja estéril essa noite, que nenhum grito de alegria se faça ouvir nela.

Amaldiçoem-na aqueles que amaldiçoaram os dias, aqueles que são hábeis para evocar Leviatã!

Livro de Jó

Nos primórdios do modo capitalista de produção e o advento de uma nova

sociabilidade baseada na concorrência, a teoria do Estado implica em um novo paradigma

frente ao direito divino dos reis do antigo regime na alvorada no pensamento iluminista.

Igualdade é necessidade.

A constituição do Estado frente a doutrina do direito natural implica na concepção de

um “estado da natureza” das relações sociais. Formulado por Thomas Hobbes, essa relação

se dá nos termos de uma teoria do contrato. Todos os homens são iguais, portanto,

investidos dos mesmos direitos. Porém estão submetidos a imposição da vontade, e a

causalidade da lei natural. Frente a essa causalidade, a vontade se impõe como impulso de

auto - conservação e necessidade de sobrevivência, levando os homens a “guerra de todos

contra todos”. A fim de acabar com esse estado de guerra perpétua e autodestruição, cada

individuo cederia uma parcela de sua liberdade para agrega-la a uma instituição que

possuiria por si só o monopólio da violência a fim de garantir a liberdade dos indivíduos.

Hobbes ilustra essa figura na forma do monstro bíblico Leviatã, instituição de soberania

estatal.

Nesta lenda se ilustram obviamente as relações estruturais fundamentais

do capitalismo nascente, de imediato afirmativamente ontologizadas.

Aquilo que mais tarde Marx dirá ironicamente a respeito de Darwin

também se aplica de certo modo a Hobbes: ele reencontra as relações

sociais da concorrência universal projetivamente na natureza e na luta pela

sobrevivência do mundo animal. A razão de direito natural do contrato

firmado de livre vontade deve ter o seu fundamento na servidão da

Page 102: Piotr Kropotkin

101

vontade perante a lei natural, na luta pela autopreservação. Daí a relação

contratual ser desde logo uma relação de submissão a um poder central, a

uma relação de poder. Não por acaso, Hobbes ilustrou o resultado do

suposto contrato com o nome do monstro bíblico “Leviatã”. O Estado não

está para além da concorrência universal, pelo contrário, ele cria o monstro

da sua instância agregadora e internamente domesticadora, enquanto

simultaneamente prossegue a concorrência nas relações externas com

outros meios assassinos. (KURZ, 2011)

A teoria do contrato social de Hobbes realiza o movimento trans - histórico do

iluminismo. Parte das categorias modernas do surgimento do capitalismo como economia de

guerra aplicando-as as diversas formas de sociabilidade anteriores que permeiam a história.

Dessa forma a ação contratual sempre se submete a uma relação de poder, representada

então pelo Leviatã. Dentre as funções do Leviatã, sua função domesticadora interna aparece

primeiramente como garantia pela força da propriedade, categoria central na doutrina

burguesa de direito natural. Nessa relação idealizada onde todos os homens são iguais, a

propriedade aparece alicerçada na contribuição pessoal de trabalho. Não mais na concepção

de trabalho como originariamente o cristianismo concebia como abandono metafísico ao

sofrimento, na formação histórica religiosa, mas a positivação do trabalho que o

protestantismo legitimou como acumulação em si mesma, em um contexto real em

formação. Essa legitimação ideológica da acumulação, inicialmente religiosa, coloca as

formas de representação sociais como o trabalho abstrato, dinheiro e valor autonomizadas

se sintetizam politicamente na instância estatal, sendo o Estado uma instância consciente.

Na instância agregadora do Estado, vale colocar o caráter androcêntrico do Leviatã e

sua figura de “Pai Estado”, na obra de Hobbes como monstro patriarcal. Alicerçado na figura

do proprietário masculino legitimado pelo trabalho, originalmente as mulheres não

possuíam o direito a propriedade e nem o reconhecimento de cidadãs pelo Estado, mesmo

essa relação sendo relativizada quanto o direito da família e sua sucessão. Apesar da

integração da mão de obra feminina durante um longo processo histórico no processo

produtivo e o reconhecimento da “igualdade” de gêneros, a canalização de profissões

“tipicamente femininas”, remunerações abaixo do mercado, cargos de chefia em postos

chave e jornadas duplas de trabalho marcam a dissociação de gêneros. O direito ao próprio

corpo por parte da mulher, não só negado como passível de punição jurídica pela instância

Page 103: Piotr Kropotkin

102

estatal como o aborto e a relativização a violação do corpo da mulher como o estupro, são

alguns aspectos que apontam o caráter androcêntrico do Leviatã e seu caráter patriarcal.

Em um segundo momento, a própria teoria jusnaturalista tem de se colocar contra o

Leviatã. O que teórico mercantilista Antoine des Montchretien (1615) definiu como conceito

de economia política o lado estatal da economia. Tratava-se de um problema de economia

interna do Estado, “no âmbito da revolução militar protomoderna das armas de fogo, a

saber, como produção proto-industrial de canhões, já não representável sob as antigas

formas da economia natural, com a expansão da mineração e da siderurgia” (KURZ, 2011).

Com a revolução protomoderna das armas de fogo e a cada vez maior especialização do

trabalho na produção das mesmas, resulta em uma necessidade cada vez maior de

arrecadação dos príncipes e reis como a monetarização dos impostos, a fundação de

manufaturas estatais e de agro – latifúndios, etc.

A economia doméstica (Oikos) do príncipe, até então apenas a mais proeminente de

todas as economias domésticas independentes, transforma-se na pretensão abrangente de

transformar toda a reprodução em multiplicação de dinheiro, a níveis cada vez mais

elevados; o que foi ideologicamente flanqueado pelo protestantismo ou pela sua adaptação

católica no momento econômico do desenvolvimento da contra - reforma. (KURZ, 2011)

Para Robert Kurz, a estatalidade tem início quando o Oikos, a economia doméstica do

príncipe e da família, se converte em economia política, onde a finalidade inicial da

acumulação da economia se desloca de seus objetivos iniciais como a revolução militar e a

ética protestante e as forma dinheiro torna-se independente. É quando Estado e capital

crescem co - originariamente “de uma só raiz”, condicionando-se mutuamente, os dois lados

de uma mesma relação.

Se no primeiro momento a relação jusnaturalista se realiza na economia doméstica,

com a universalização do processo civilizatório e a formação de um mercado mundial há a

concorrência igualmente universal dos proprietários masculinos. A teoria do contrato

alicerçada na soberania do absolutismo tem de desfazer-se frente a liberdade de mercado.

Os cidadãos como proprietários deveriam possuir direitos frente ao Leviatã, como um

controle sobre a captação dos impostos e a utilização desses tributos, a participação em

tribunais e até mesmo a forma política de representação própria como o parlamento. O livre

mercado como espaço para a valorização não deveria ficar circunscrito aos objetivos

Page 104: Piotr Kropotkin

103

estatais. O Leviatã deveria tomar forma como arbitro perante aos cidadãos e seu poder

repartido em diversas instâncias independentes entre si, conforme formulado então por

John Locke (1632-1704) e por Charles-Louis de Secondat (1689-1755), barão de

Montesquieu no livro O Espírito das Leis (1748).

Em Locke64 o individuo aparece a determinação onde o homem teria uma propriedade

sobre sua pessoa. Há uma equiparação nessa de determinação da propriedade monetária

dos proprietários burgueses e da mercadoria força de trabalho dos assalariados, ainda que

em Locke os indivíduos aparecem como proprietários de si de forma autônoma em relação

uns aos outros, sendo Deus o verdadeiro proprietário destes. Se Locke é um dos precursores

do liberalismo, a formulação em conceitos religiosos deixa transparecer o sujeito automático

da maquina de valorização em movimento.

Jean Jacques Rousseau (1712-1778) reformula o postulado da teoria do contrato de

Hobbes. Em o Contrato Social, para Rousseau o homem é bom e livre por natureza, se

submetendo a uma autoridade comum por livre associação e arbítrio, não mais por uma

necessidade de autopreservação como em Hobbes. A instituição garante a liberdade dos

indivíduos, e se realiza através da Vontade Geral (Volonté Générale). A Vontade Geral não

parte da vontade autônoma dos participantes, mas como pressuposto por todos os

membros da sociedade, inclusive os representantes do Leviatã. A Vontade Geral para

Rousseau não é formada por vários indivíduos, mas uma Vontade cindida destes,

autonomizada e transcendental.

A “soberania popular” de Rousseau só na aparência constitui a superação

da delegação por Hobbes de um poder de decisão ilimitado à instância

estatal, para além das vontades individuais, constituindo sim a sua

fundamentação agora transcendental, portanto muito mais profunda. A

liberdade de decisão dos diversos portadores individuais e empíricos de

vontade já não é delegada num único portador individual e empírico de

vontade, mas sim num princípio racional abstrato, que se encontra para

além de todas as expressões empíricas da vida. Por isso tal princípio não

deve proceder da soma das relações de vontade empíricas, ou de uma

64

Dois Tratados sobre o Governo, de 1689.

Page 105: Piotr Kropotkin

104

decisão da maioria, mas tem de ser “instituído” independentemente de tais

relações. (KURZ, 2011)

A Vontade Geral se difere então da Vontade de Todos (volonté de tous), que seria o

interesse particular dos indivíduos. Liberdade e soberania então se dão somente quando

submetidas a Vontade Geral, sendo este princípio a priori dos indivíduos, e estes são livres

quando tomam suas decisões nesse princípio. O principio transcendental da valorização não

está mais no Leviatã, funcionando como um a priori para todos os indivíduos na sociedade,

não mais arbitrária e envolvendo todos os cidadãos.

De Immanuel Kant, o imperativo categórico65 aponta reflexão semelhante a Rousseau.

Já realizamos uma reflexão do imperativo categórico kantiano no capítulo 266. Aqui, se

coloca a mesma questão da objetividade por Rousseau, a forma vazia de um princípio a

priori como lei geral;

Diz o imperativo categórico de Kant: "Age apenas segundo uma máxima tal

que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal". Uma tal

determinação é estritamente “sem conteúdo”, ou seja, o conteúdo é a

forma abstrata de uma “lei em geral”. Nesta famosa “forma vazia” o que se

exprime não é senão a “vontade geral” de Rousseau. A “máxima” nesta

“forma vazia” universal naturalmente que não pode ser uma máxima

subjetiva, sendo, pelo contrário, como em Rousseau, dada a priori como

princípio da razão transcendental e, portanto, inegociável e objetivo,

princípio que, segundo Kant, tem de ser válido não apenas para a

humanidade, mas para todos os seres inteligíveis de todos os mundos

imagináveis. (KURZ, 2011)

Esvaziado de um critério que contenha algum conteúdo qualitativo em relação às

necessidades dos sujeitos, a submissão ao principio de uma lei geral universal e válida a

todos os indivíduos se realiza como abstração social transcendental do valor no capitalismo

em desenvolvimento, executada na forma geral a abstrata do Direito, fundamentado pela

estatalidade e obrigação a todos os cidadãos.

65

A Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785.

66 Capítulo 2, pg.6.

Page 106: Piotr Kropotkin

105

Se estes autores tratavam do princípio da valorização a partir da estatalidade e da

forma jurídica e da objetividade da razão capitalista até então encarada na forma da teoria

do contrato social e livre arbítrio dos sujeitos, e imposição de um princípio transcendental e

universal para todos, Adam Smith colocará essa objetividade nas categorias econômicas

subjacentes da mão invisível do mercado e na livre concorrência.

A essa nova sociabilidade que o modo de capitalista de produção traz, as categorias

basilares dessa nova constituição como trabalho, mercadoria e dinheiro colocadas no

cotidiano como a - históricas e já pressupostas, Smith faz valer a relativa liberdade de ação

dos burgueses proprietários na concorrência de mercado frente ao Leviatã no agir

econômico dos indivíduos orientado por motivações pessoais.

A liberdade de mercado dos sujeitos da concorrência burgueses

proprietários, pensa ele poder provar, não consistiria em qualquer questão

de vontade subjetiva, ou porventura de arbitrariedade, mas constituiria um

maravilhoso mecanismo automático das relações sociais, por ele aclamado

como “máquina” grandiosa, ou como a célebre “mão invisível do mercado”,

que criaria um próspero efeito de bem-estar geral. Pois, precisamente

através da livre concorrência dos burgueses proprietários seguindo os seus

impulsos egoístas, não só se promoveria a repartição geral do trabalho, mas

também se evitaria qualquer desperdício de recursos e se construiria uma

equiparação geral das grandezas de fluxo desproporcionadas na

reprodução material e do valor. (KURZ, 2011)

Smith apresenta a máquina de valorização como mecanismo social cego e sem sujeito,

apresentando o principio da razão transcendental presente em Rousseau e Kant na forma da

vontade geral como mão invisível do mercado, pressuposto para a decisão livre dos sujeitos

na economia como a estatalidade e a forma jurídica é pressuposta para os cidadãos

políticos. O mecanismo de concorrência da mão invisível à sua maneira garante a submissão

dos conteúdos da necessidade e de todos os recursos materiais, e que apenas externamente

tem de ser garantida pelo poder do Leviatã67. Aqui aparece a polaridade imanente entre

67

Com a sua teoria econômica da “vontade geral” ele deu às pretensões dos sujeitos da concorrência proprietários burgueses contra a ilimitada liberdade de decisão “soberana” do Leviatã, no que respeita à lógica própria do mercado, a mesma fundamentação transcendental objetiva que Rousseau e Kant no que respeita à estatalidade e à forma jurídica. Também aqui não se trata de uma efetiva autonomia dos indivíduos sociais,

Page 107: Piotr Kropotkin

106

estatalidade e economia, entre o burguês e o cidadão. Ambos os momentos da vontade

geral apontam um para o outro e procedem um do outro. As mercadorias ao serem lançadas

em um mercado cada vez maior pela concorrência mundial necessita de quem lhe abra as

portas e lhe proteja o caminho. O Leviatã se levanta em sua máquina de guerra a fim de

fazer valer a vontade geral e livre concorrência de mercado para todos igualmente. A

integração de territórios cada vez maior pelo além-mar, a conquista de territórios coloniais e

as guerras para introdução da mercadoria nas sociedades do oriente e a mobilização de

recursos tanto naturais como populacionais integram a livre concorrência e o mecanismo do

principio da mão invisível do mercado.

mas sim da objetivação do princípio da autoridade, agora representado pela “mão invisível”. A “liberdade” econômica consiste precisamente na auto - submissão às leis do mercado; economicamente “emancipado” é quem internaliza estas leis pseudo - naturais e, por si mesmo e sem “direção de outrem”, obedece à “coação tácita” (Marx) da concorrência e respeita os “sinais” da “mão invisível”. Esta é a fórmula orwelliana do liberalismo. (KURZ, 2011)

Page 108: Piotr Kropotkin

107

3.2 Estatismo e monetarismo. A reprodução do capital como economia

política de guerra desde seus primórdios

Provenientes de uma longa sucessão de Alexandres, Júlio Césares, Gengis Khans, Carlos Magnos e Napoleões, trincharam o mundo como um

jantar saboroso. Fosse com o cabelo repartido ao meio ou usando um elmo viking, não seriam contestados, e seria impossível fazer um acerto de contas

com eles. Bárbaros rudes precipitando-se pelo mundo e martelando suas novas ideias de geografia.

Bob Dylan, Crônicas

A origem do Estado e sua afirmação na modernidade implicam desde sua constituição

como instância de caráter diverso. Controladora entre os sujeitos e seus impulsos de auto

preservação como em Hobbes, agregadora e tripartidária em Locke e em Montesquieu,

mediadora da associação livre de Rousseau, jurídica em Kant, invisível para Smith. Junto ao

movimento operário, uma instância a ser eliminada de imediato pelos socialistas libertários,

a ser conquistada na concepção dos socialistas autoritários durante Primeira Internacional.

Estado e monetarismo surgem como polos que se determinam mutuamente. A origem

da modernidade remonta para além da concepção etapista do materialismo histórico

marxista do séc. XX como uma consequência do desenvolvimento das forças produtivas das

sociedades agrárias pré-modernas e o domínio do homem sobre as forças da natureza. Nem

tampouco o predomínio do capital pelo globo se deve a uma expansão pacifica dos

mercados, mas remonta a uma economia de guerra desde seus primórdios. Karl Georg Zinn,

economista, refere-se a esse período da história como “economia política das armas fogo”.

Essa abordagem não coloca a expansão da economia agrária de troca direta e a

sobreposição do desenvolvimento das forças produtivas alicerçada na evolução técnica, mas

na realização de uma razão abstrata concomitante ao processo de militarização crescente

presente no fim da Idade Média, com o surgimento das armas de fogo, conforme reflete

Robert Kurz.

A pólvora já era utilizada pelos chineses para a fabricação de fogos de artifício, mas

também possuíam sua utilização para fins militares. Porém, a construção de armas de

projéteis de longo alcance baseado na utilização desse elemento deve seu mérito aos

cristãos da Europa. Como consequência uma revolução militar que permitiu a ascensão

Page 109: Piotr Kropotkin

108

histórica do Ocidente, e colocando fim a unidade blindada dos cavaleiros medievais da Idade

Média.

Esse episódio não se restringiu somente a uma alteração da tecnologia militar, mas no

âmbito de organização e logística da guerra. Até então, cada homem que possuía sua

atividade desde as guildas manufatureiras as atividades agrárias, constituíam milícias que

eram convocadas para a defesa do burgo ou convocadas pela autoridade real a qual

mantinham relações para a guerra. Os reinos não possuíam um exército operacional

permanente para tal função, de custo extremamente oneroso. Além disso, qualquer forja em

uma aldeia conseguiria produzir as armas para o combate, como o escudo, a espada e o

elmo.

A introdução das armas de fogo como o mosquete e o canhão altera essas relações.

Eles não podiam simplesmente ser armazenados em qualquer casa e muito menos

transportados de forma habitual. A produção dessas armas exigia uma logística centralizada

e a mobilização de um parque para a construção bélica de canhões e projéteis. O ferreiro da

aldeia já não atendia essa demanda, sendo necessária uma mão de obra especializada para a

realização do intento, longe da escala doméstica da economia feudal, além de uma divisão

do trabalho mais aprofundada.

Com uma nova tecnologia se espalhando pela Europa, há o advento de uma mudança

na estrutura urbana dos burgos. Com o desenvolvimento tecnológico e a produção de

canhões com um alcance e potência cada vez maiores, a fortificação das cidades

corresponde a esse movimento com a construção de muralhas cada vez maiores e mais

espessas e o desenvolvimento da técnica de construção de fortalezas. Um primeiro ímpeto

de modernização da corrida armamentista.

Para a operacionalização dos armamentos, a mão de obra necessária é completamente

desvinculada da reprodução natural agrária perdendo seus vínculos sociais. Os Condottieri,

líderes mercenários, e seus subordinados como os mosqueteiros e os canhoneiros,

constituíam ”o protótipo da própria forma do sujeito que só na Modernidade deveria tornar-

se o princípio geral da sociedade sob a forma da abstração da atividade com relação às

necessidades.” (KURZ, 2002). Os mercenários já não possuíam uma atividade agrícola ou

manufatureira em tempos em que não estavam em guerras. O trabalho abstrato, a atividade

exercida a troco de dinheiro abstraindo-se o conteúdo e este se tornando indiferente se faz

Page 110: Piotr Kropotkin

109

presente na conservação da vida ou o encontro da morte na guerra pelo ganho do soldo. A

essa crise soma-se que o período entre guerras. Desvinculados de qualquer atividade de

produção, estes mercenários permaneciam sem soldo, temidos como vagabundos

mendicantes, bandidos e assassinos ocasionais. Ao protótipo do sujeito sujeitado, esses

mercenários já se encontravam desempregados, vagando por aldeias, burgos e reinos, como

fenômeno em massa até.

Com a nascente economia política de guerra, o exército se destaca da sociedade civil

como uma categoria profissional especializada. A produção armamentista e a formação de

um exército operacional exclusivo por parte dos soberanos começa a desviar os recursos da

sociedade para um fim militar de forma nunca vista na história. Os despojos de guerra e os

empréstimos junto aos banqueiros não são suficientes para arcar com os custos militares.

Até então os tributos eram pagos em gênero natural vinculado ao rendimento agrário real. A

forma de arrecadação de tributos, sujeitando a reprodução social simultaneamente a forma

dinheiro, é monetarizada. Os impostos pagos em dinheiros já abstraem as condições

naturais estendendo a lógica do aparelho militar ao restante da sociedade.

A esse processo de militarização e arrecadação, os Estados nascentes passam a fundar

suas empresas de produção. Manufaturas e plantações do Estado que produziam para um

mercado anônimo em grandes extensões geográficas com o fim único arrecadar dinheiro

tornam-se o pressuposto para o mercado de livre concorrência. Recorre-se aos mais diversos

métodos para mobilizar a mão de obra; condenados, doentes mentais aprisionados,

formação legislativa de novos delitos a fim de cooptar uma multidão de trabalhadores

forçados.

A anexação da América fora um processo emblemático. Com um punhado de homens

e munido de canhões e mosquetes, os conquistadores cristãos europeus chacinaram nações

indígenas inteiras, anexando o território ao mercado internacional nascente, introduzindo a

mão de obra escrava. A economia armamentista europeia e o colonialismo potencializaram-

se mutuamente, com a construção de enormes frotas navais para o tráfego (e o tráfico) de

ambos os lados do Atlântico sendo realizado com os recursos da economia abstrata. A

guerra de constituição dos Estados Modernos é delineada em contornos intercontinentais.

Os Estados Absolutistas constituídos sob a base da inovação das armas de fogo colocam seus

Page 111: Piotr Kropotkin

110

imperativos pela violência, fomentando a acumulação primitiva de capital que permitiria a

Revolução Industrial.

A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a

escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo

da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em

um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era

de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos

fundamentais da acumulação primitiva. De imediato seque a guerra

comercial das nações européias, tendo o mundo por palco. Ela é aberta

pela sublevação dos Países Baixos contra a Espanha, assume proporção

gigantesca na Guerra Antijacobina da Inglaterra e prossegue ainda nas

Guerras do Ópio contra a China etc. (MARX, ---, pg.370)

Na forma absolutista68 e mercantilista gesta os traços fundamentais de uma economia

moderna. Criação de um sistema tributário geral, fomento e controle de mercadorias como

fonte principal da tributariedade monetária pelo Estado, intensificação planejada do

processo de produção de mercadorias além dos limites estamentais das forças produtivas

conduzem a outro modelo de produção. A Revolução Industrial, o livre mercado o

Imperialismo e a Nação com suas zonas de influência espaço mundial.

Na época do antigo imperialismo policêntrico das potências industriais

europeias (aproximadamente entre 1870 e 1945) tratava-se sobretudo da

repartição territorial do mundo em colônias nacionais e "zonas de

influência". Este nacional-imperialismo europeu clássico estava enraizado

no princípio territorial do Estado nacional burguês, tal como ele se tinha

constituído em oposição ao princípio dinástico ou pessoal da sociedade

agrária feudal. A expansão territorial dos Estados nacionais capitalistas, já

iniciada no começo da Idade Moderna, prossegue em larga escala com base

68

O Estado, o outro volante da máquina de alienação ao lado do dinheiro, recebe assim, por sua vez, uma natureza dupla. Do ponto de vista histórico ele assume, já em sua primitiva forma moderna, absolutista, burguês-revolucionária e ditatorial, por um lado, o papel de parteira do sistema produtor de mercadorias e, por outro, torna-se componente imanente deste último; do ponto de vista institucional ele serve, por um lado, para assegurar as condições que apoiam o capitalismo, e por outro lado é promovido a instância reguladora que interfere ativamente no processo de reprodução do trabalho morto, tão logo os sectores "improdutivos" da infraestrutura (...)” (KURZ, 1991)

Page 112: Piotr Kropotkin

111

na industrialização; o seu objetivo era o alargamento do controlo territorial.

Não era ainda um mercado mundial sem fronteiras que estava na base

desta evolução, nem uma globalização transnacional do capital, mas,

precisamente ao contrário, a formação do processo de acumulação,

crescentemente baseada na economia estatal e nacionalmente centrada. A

expansão do movimento econômico assumiu por isso a forma de um

esforço pela simples constituição de parciais e relativas "economias

mundiais" (na pluralidade das nações), controladas pelos "grandes

impérios" nacionais. (KURZ, 2003)

Page 113: Piotr Kropotkin

112

3.3 O Leviatã vive. A relação Estado e território em Ratzel

O patriotismo é o último refúgio de um canalha

Samuel Johnson

Na história do pensamento geográfico, Friedrich Ratzel emerge como um dos patronos

da disciplina acadêmica. A ele é atribuído a introdução do método positivista na

sistematização das análises geográficas, com sua aplicação na discussão da relação entre a

sociedade e meio. Sua teorização passa pelos campos da antropologia e da política, como

em suas obras Antropogeografia e Geografia Política. Suas considerações estarão na base do

desenvolvimento do pensamento geopolítico de autores tais como Mackinder, Kjellen e

Haushofer. A categoria Estado no pensamento ratzeliano ecoará nos estudos de geografia

durante todo o século XX, e será umas das matrizes de pensamento que formulará um

determinado discurso geográfico dentro da disciplina.

Sua proposta de um estudo geográfico como meta teórica onde a geografia

contribuiria para a formulação de uma teoria da história, através das influências dos diversos

quadros ambientais da Terra e sua influência na localidade e evolução dos povos, sugere

uma integração da relação entre a história geológica do planeta e a história da espécie

humana, conforme o pensamento positivista, que abarca em um único domínio os

fenômenos naturais e sociais.

Bem, a nossa ciência deve estudar a Terra ligada como está ao homem e,

portanto, não pode separar esse estudo da vida humana, tampouco do da

vida vegetal e animal. As mútuas relações existentes entre e Terra e a vida,

que sobre aquela se produz e se desenvolve, constituem precisamente o

nexo entre uma e outra e, portanto, devem ser particularmente

examinadas. Hoje a parte geográfica desse estudo tem uma importância

indubitável e é, ao mesmo tempo, a de mais fácil realização. É de se

assinalar, em primeiro lugar, que tudo que se refere a natureza, ao

ambiente, é imutável em comparação aquilo que se refere ao homem. (...)

Recordemos, na expressão de escultural de Karl Ritter, “ser o Estado cingido

a natureza de seu território”. Quanto mais elevado é o ponto de vista a

partir do qual se considera a história, tanto mais se torna manifesta a

existência deste canal bem determinado e pouquíssimo mutável, através do

Page 114: Piotr Kropotkin

113

qual deriva a corrente da humanidade, e tanto melhor se reconhece a

importância que tem na história o elemento geográfico do qual falamos. É

precisamente sobre esta importância que se apoia o direito da geografia de

investigar as condições naturais em meio as quais os acontecimentos

históricos se desenvolveram. (RATZEL, 1990, pg.32)

No pensamento de Ratzel, há um movimento trans - histórico quanto às concepções

da relação entre natureza e história, mesmo com a limitação do conhecimento empírico de

espaços geográficos, além de registros etnográficos e históricos da Antiguidade. Para Ratzel,

os conceitos antropogeógraficos já se encontravam na Grécia pelas observações sobre a

influência do clima na vida dos povos em Hipocrates e Estrabão, e este último expõe a

necessidade de considerar uma conformação na diversidade dos territórios como

preordenada com base em um princípio racional que, para Ratzel, é o conceito fundamental

obra de Karl Ritter. O rompimento dessa percepção geográfica é retomado com a renovação

da ciência pós Idade Média, mais precisamente centrada na utilização do método científico.

“Somente a ciência natural progride como ciência investigadora de leis, enquanto a história

não avança nenhum passo a diante.” (RATZEL, 1990, pg.34) Para Ratzel, o que se encontrava

em dissonância com as afirmações sobre a influência da natureza junto aos povos é um

problema de ordem metodológica, como em Bodin em seu Methodus ad facilem historiarum

cognitionem de 1566 que, além da influência exercida pelos terrenos e cursos de água

também atribui ao destino dos povos a influência dos planetas.

A crítica que dirige a Thomas Hobbes e sua descrição do estado de natureza é a

idealização por este sem uma base taxonômica dos conhecimentos dos povos desde as

grandes navegações, bem como a falta de uma descrição etnográfica que pudesse

apresentar como prova. Em Hobbes, o estado de natureza não ultrapassou o estágio de

hipótese, como em Bacon que considerou os povos como produto da natureza e da história,

e não apresentou um estudo coerente sobre a influência que as condições naturais exercem

sobre a história69, negligenciando o elemento geográfico representado pela união de

69

Permanece, portanto, infrutífera como uma flor dissecada e encerrada entre as páginas de in fólios filosóficos; porque, mesmo naqueles casos em que teria sido fácil descobrir e provar a influência exercida pelas condições naturais, preferiu-se passar por cima do fatos a pôr decididamente as mãos na intrincada teia(RATZEL, 1990, pg. 34)

Page 115: Piotr Kropotkin

114

indivíduos para adquirirem maior força, segurança e conquista territorial na passagem do

estado de natureza para o social.

Montesquieu quer representar o Estado como um organismo nascido não

arbitrariamente, mas formado pela natureza, e que, por isso, não pode ser

arbitrariamente modificado, com o que ele afirma a influência das

condições naturais sobre a história. Assim, considera-se o elemento

geográfico, mas com critérios e entendimentos nada geográficos. (RATZEL,

1990, pg.35)

A crítica aos pensadores iluministas vem da não sistematização desse pensamento,

bem como a falta de demonstração para a elucidação do tema. É presente nas elaborações

de Montesquieu um pensamento sobre a influência que o clima exerce no caráter dos povos

tanto como ação depressora ou fortalecedora, entre climas frios e quentes, sobre as

legislações pouco desenvolvidas nas sociedades orientais e a brandura do temperamento

das populações produzidas pela influência climática, bem como a ideia de que em países

quentes reina o despotismo e nos países frios a liberdade. Tais ideias para Ratzel estão

formuladas precisamente em Ritter e Herder. Os traços do materialismo geográfico que

marcam sua obra já se fazem presentes no pensamento iluminista de forma elaborada, mas

carecendo do método científico70.

Isso colabora para a sua recusa de um determinismo simplista, o qual acusa

Montesquieu e sua afirmação onde o clima interfere diretamente na índole e caráter dos

povos, não levando em consideração os diversos fatores que o ambiente exerce sobre o

homem. Primeiramente a influência deste sobre o biótipo humano, as modificações sobre o

corpo e psique dos povos é de natureza fisiológica e, portanto do campo da fisiologia e do

individuo. Para a geografia, é valido somente quando essas modificações se estendem para

os povos influenciando em sua história. Em segundo, o meio passa a ter uma influência

determinante quando direciona, acelera ou se coloca como obstáculo natural a expansão

das massas étnicas, determinando a direção, amplitude, posição geográfica e limites

70

Montesquieu e Herder não se propuseram absolutamente a resolver problemas sociológicos ou geográficos quando tomaram em consideração as relações existentes entre os povos ou os Estados e os seus territórios, mas pretenderam apenas compreender a missão e o futuro do homem estudado no seu ambiente físico, que, segundo a concepção de Herder e Ritter, foi preparado deliberadamente por ele para que pudesse realizar aqui seu desenvolvimento segundo o projeto do Criador. (RATZEL, 1990, pg.80) Ratzel não nega o Criador.

Page 116: Piotr Kropotkin

115

territoriais aos povos. Ratzel considera também a influência das condições geográficas sobre

a essência intima de cada povo, favorecendo seu isolamento, conservação a afirmação de

determinadas características ou sua miscigenação com outros povos e perda das

características originais. Por último, a possibilidade de cada povo de se apropriar das

riquezas naturais que lhe fornecem primeiramente os meios necessários a reprodução da

vida, em seguida ao exercício da indústria e do comércio e a obtenção de riquezas por meio

da troca. Esse conjunto ofereceria um panorama da influência da natureza no destino da

humanidade. Ao determinismo geográfico, a fisiologia do individuo deve ser analisado em

primeiro lugar, e somente depois a influência geográfica sobre o organismo, determinada

pelos conceitos de migração e isolamento dos povos71.

É a relação entre o homem e o território o ponto central na teoria de Ratzel. E este se

dá na relação da sociedade com o solo, com a necessidade da busca por moradia e

alimentação, esta determinando a fixação do local das moradias. Independente se a forma

de reprodução dos povos é o nomadismo ou o sedentarismo, a oferta dos recursos

disponíveis em uma porção territorial determina o tempo da fixação de um povo em

determinado lugar, desde a oferta de caça disponível, pastos para a criação de animais bem

como as terras agricultáveis. Quanto maior o vinculo através da alimentação e da moradia,

maior a necessidade de proteção do território. “A sociedade que consideramos, seja grande

ou pequena, desejará sempre manter sobretudo a posse do território sobre o qual ela vive.

Quando esta sociedade se organiza com esse objetivo, ela se transforma no Estado.”

(RATZEL, 1990, pg.76)

A organização da sociedade inicia-se com a fixação da família monogâmica em uma

porção territorial. Com o crescimento da família proporcionalmente é o do território. A

família permanecendo unida durante o processo de crescimento do território em junto a

disponibilidade de recursos naturais, se complexifica constituindo - se a si própria em

Estado. Se há a separação da prole da família, esta ocupa novos territórios, e sem vínculos

econômicos mútuos para reprodução, constituem-se outros vínculos de afinidade,

71

Podemos portanto estabelecer como regra que nas pesquisas relativas a influência que a natureza exerce sobre características materiais ou espirituais dos povos, o argumento da sua difusão geográfica deve ser sempre deixado a parte ou por ultimo, porque ele induz ao erro com extraordinária facilidade. Dada a imensa mobilidade do homem aquelas características não permanecem exclusivas dos territórios de cuja influência foram produto, pois elas migram com o homem que as adquiriu; e nesse caso sua duração depende das condições internas do organismo que as possui. (RATZEL, 1990, pg.63)

Page 117: Piotr Kropotkin

116

mantendo unidas as habitações, vilas e clãs formando-se um Estado. É quando ocorre a

distinção entre a unidade política e econômica, onde a gen e o Estado se coincidem.

Conforme a aliança entre as diversas gens com finalidades de ataque e defesa, o Estado

conduz o incremento territorial, e seu crescimento gradativo leva a unidade a alcançar a

amplitude dos impérios mundiais e suas extensões continentais.

Ratzel coloca que se o Estado quer manter seu território com as mesmas proporções e

não sair do isolamento em relação a outros Estados, ele entra em luta contra a sociedade,

buscando através de meios não naturais como abandono de recém-nascidos, canibalismo,

vingança familiar e a guerra a diminuição da população, fenômeno que se realiza

pronunciadamente em oásis e ilhas, extremos territoriais, conforme observado por Malthus.

O estágio de desenvolvimento político entre sociedade e território exerce a influência sobre

a natureza do Estado. Uma população nômade para manter o controle de seu território dá

lugar a formação de um Estado nômade, o qual para prover a proteção do próprio território

deve ter organização e governo militar. Se a relação com o solo se dá através da agricultura,

as características do Estado variam de acordo com a repartição do terreno entre as famílias.

Uma repartição uniforme produz uma sociedade inclinada a democracia, enquanto uma

repartição desigual leva a uma oligarquia, com expressão mais pronunciada em sociedades

escravistas, com uma população escrava privada de qualquer propriedade e direitos. “O

território, sendo um fator constante em meio a variação dos acontecimentos humanos,

representa em si e por si um elemento universal. (Ratzel, 1990, pg.80)

O território como categoria universal se manifesta como lugar a ser apropriado pelo

homem, na totalidade de seus recursos naturais em uma luta contra a natureza. “A luta

contra a natureza, no sentido mais amplo da expressão, produzia os impulsos mais fortes a

formação dessas agregações sociais.” (RATZEL, 1990, pg.143) Em detrimento ao estado de

natureza de Hobbes, da guerra de todos contra todos, Ratzel em seu materialismo

geográfico primeiramente postula a sujeição deste ao ambiente, onde o estado de guerra se

dá primeiramente junto ao meio. Da sujeição do homem ao solo72, sua apropriação de um

72

Na verdade o solo nos aparece como a causa mais profunda da sujeição humana, na medida em que permanece rígido, imóvel e imutável, abaixo das mutáveis disposições humanas, e se ergue dominador acima do homem toda a vez que este ignora sua presença para adverti-lo severamente de que a raiz da vida está unicamente no solo. É ele que, duramente e sem nenhum critério de escolha determina a cada povo o seu destino. (RATZEL, 1990, pg.81)

Page 118: Piotr Kropotkin

117

território através do nomadismo ou pela agricultura o Estado se torna a mediação dessa

relação como organizador para defesa e ataque de outros territórios como fator geográfico

em uma teoria da história. Em um segundo momento, em contrapartida a neutralidade que

o método positivista, oferece na análise de um objeto onde como ciência, reside no discurso

científico para além de uma proposta de um estudo onde os métodos das ciências naturais

são aplicados ao estudo dos fenômenos humanos, a instituição estatal é um organismo com

funções fisiológicas, um organismo vivo. Aqui, todas as qualidades da sociedade são

atribuídas a ela, esvaziadas do processo social em sua totalidade.

Os inventários de Estados que descrevem o território estatal como um

objeto estável e inteiramente fixo chegam a essa concepção dogmática e

estéril basicamente por desconsiderarem tais rupturas. A sua apreciação só

pode fortalecer a única conclusão correta: com o Estado, estamos tratando

de uma natureza orgânica. E nada contradiz mais a natureza do ser

orgânico que esta rígida circunscrição. Isso vale também para a geografia

política que, certamente, trata principalmente das bases estáveis dos

movimentos populacionais, mas nunca pode perder de vista que o fato que

os Estados dependem, em forma e tamanho, de seus habitantes, isto é, eles

se conformam a mobilidade de suas populações, tal como se expressa

especialmente nos fenômenos de seu crescimento e declínio. Um certo

número de pessoas está ligado a área do Estado. Elas vivem de seu solo,

dele retiram seu sustento e, além disso, estão ligadas a ele por razões

espirituais. Juntamente com essa porção de terra, elas formam o Estado.

Para a geografia política, cada povo, localizado na sua área essencialmente

delimitada, representa um corpo vivo que se estendeu sobre uma parte da

Terra e se diferenciou de outros corpos, que igualmente se expandiram por

fronteiras ou espaços vazios. (RATZEL, 1990, pg.176)

É na proposta de uma geografia política que reside o coup de Ratzel. Como um corpo

orgânico imbuído de um comportamento próprio, os atributos do Estado como localização,

espaço, fronteira, e soberania que possuem uma determinação histórica no modo capitalista

de produção, aparecem naturalizadas. O método positivista que utiliza permite afirmar que

cada povo ligado a sua área represente um corpo vivo que tem sua expansão por fronteiras

ou espaços vazios, se diferenciando de outros corpos através da diferenciação de áreas. Ao

conceber as relações políticas ligadas diretamente ao solo, O Estado aparece como

Page 119: Piotr Kropotkin

118

totalidade, por um materialismo geográfico que aponta os aspectos naturais como

protagonistas dessa relação.

Depois que Ratzel eliminou, dessa maneira, a problemática da esfera social

e consequentemente a urgência de um questionamento social em geral,

agora ele precisa somente deixar desaparecer a esfera econômica e desta

feita conseguir uma manobra artística: o Estado e o solo estão sendo

colocados em relação direta. “O Estado deve viver do solo”, proclama

Ratzel. Muito bem, mas o “Estado” ainda que em algum momento

apresentado, em oposição a toda a realidade, como uma sociedade estatal

ratzeliana preenchida com interesses comuns; mesmo um “Estado” dessa

forma, embora tão curioso, não se constituí em nenhuma minhoca. Os

homens que formam a sua “totalidade” digna de louvor não vivem

diretamente da terra, mas das plantas e animais que existem na terra e que

em geral só são produzidos e feito consumíveis pelo trabalho. Onde fica

então o reino do trabalho, através do Estado de Ratzel “vive-se do solo”?

Ratzel não fala aqui do processo de trabalho; mas, de uma forma

completamente diferente, solo e Estado se juntam. (WITTFOGEL, 1992,

pg.33)

Na teoria do organismo de Ratzel, o Estado se alimenta diretamente do solo, excluindo

qualquer processo econômico e político que determina o comportamento deste. O processo

do trabalho, a expansão do modo capitalista de produção impondo uma nova sociabilidade

da mercadoria a todo espaço mundial e a organização da sociedade em diversos Estados

necessários a expansão do mercado mundial é apagado. A expansão do território é

justificada pelas “Leis do crescimento espacial dos Estados”.

Primeiramente, pela cultura. Como o Estado ganha as características da população que

habita seu espaço, elas se inserem em um processo de civilizatório. As menores agremiações

de tribos já apresentam pequenos Estados, e qualquer relação já representa uma relação

política construída culturalmente73. Cada Estado tem sua origem cultural em uma teocracia.

73

Dominar politicamente essas áreas, amalgama-las e mantê-las unidas requer energia ainda maior. Tal energia só pode se desenvolver lentamente pela e através da cultura. A cultura cria progressivamente as bases e os meios para a coesão dos membros de uma população, e amplia continuamente o circulo daqueles que se reúnem apelo reconhecimento de sua homogeneidade. (RATZEL, 1990, pg.177)

Page 120: Piotr Kropotkin

119

Pelas relações religiosas e comerciais os povos são aproximados pelos caminhos onde

percorre tais atividades, criando similaridades entre eles preparando o solo para o avanço

político e a unificação. Em épocas de desenvolvimento intelectual avançado a comunalidade

desses povos “surge a consciência como um sentimento patriótico, e assim trabalha para sua

integração e unificação” (RATZEL, 1990, pg.181). A esse movimento segue a anexação de

membros territoriais menores e com aprofundamento da relação do povo com sua terra. “A

nação é uma entidade orgânica que, no curso da história, torna-se cada vez mais apegada a

terra em que ela vive.” (RATZEL, 1990, pg.183)

As fronteiras são extensões do corpo orgânico, por isso mutáveis, indeterminadas,

sempre em movimento de expansão, buscando posições politicamente valiosas. Essa busca

por posições politicamente vantajosas justifica a busca pelo Estado de áreas localizadas ao

longo do mar, rios, lagos e planícies férteis. O Estado busca a conquista dessas áreas como

nas terras mais jovens, as colônias, que mesmo ocupadas por povos antigos, sucumbem a lei

de expansão dos Estados, que busca a anexação de tais áreas. A tendência expansionista do

estado é estimulada por outros Estados próximos, e essa tendência é reproduzida logo que

cada Estado possui essa tendência em si retransmitindo-a a outros corpos políticos.

Pelo menos para um único Estado deve ter existido uma lei de crescimento

diferente; este primeiro Estado com noções maiores de espaço e de Estado,

não poderia ser influenciado por estrangeiros de um outro Estado, a partir

dessas noções, pois isso contraria a noção do primeiro Estado. Como

então? Uma resposta a esta pergunta Ratzel não oferece. Tais Estados, que

romperam com a lei dos espaços estatais “transparentes”, existem

simplesmente. (...) Para variar, Ratzel que até agora explicou o seu Estado

como uma comunidade primitiva, introduz nesse momento um Estado com

tendências á expansão imperialistas. (WITTFOGEL, 1992, pg.37)

A isso, está justificada a expansão militar do Estado, uma tendência inerente ao

organismo estatal, que tem em sua reprodução a necessidade de anexação de novos

territórios. O conceito de “espaço vital”74 de Ratzel, a despolitização das ações do Estado na

74

Este conceito geopolítico de grande território, frequentemente transformado vitalisticamente em "espaço vital", pertencia também, como é sabido, ao vocabulário preferido de Hitler: Povo sem espaço era o título do oportuno romance best-seller do popular escritor colonialista Hans Grimm (1926). Depois de o comércio mundial entre as grandes potências no período entre as duas guerras ter caído profundamente, surgiram

Page 121: Piotr Kropotkin

120

sua reprodução econômica em busca de matérias primas, mão de obra e mercado, na

concepção de um corpo vivente, nos remete a imagem das próprias mandíbulas do Leviatã,

ontologicamente, estabelecendo limites, fronteiras e guerras entre os povos, dos mais

primitivos aos mais desenvolvidos;

As zonas de fronteira permanecem livres, mas servem também para toda a

espécie de forças adversas do Estado, são o refúgio dos refratários e dos

desesperados de toda a espécie; não raramente ocorre que elas sejam o

berço de novas formações políticas. Uma fronteira bem distinta se formou

antes ali que em qualquer outro lugar onde se encontram em contato as

duas formas mais opostas da vida e da civilização humana, isto é, a

agricultura e o nomadismo. Ali a necessidade obriga os agricultores a

estabelecer para os povos da estepe uma fronteira precisa, e a arte vem ao

encontro da natureza, erigindo trincheiras ou também baluartes. As

estepes são as regiões onde surgem a muralha da China e os vales cossacos

e dos turcos. pg. 148.

Aqui, Ratzel têm o mérito de antecipar o movimento Futurista de Marinetti, ao

considerar como uma “arte” as trincheiras escavadas na paisagem, atribuindo um sentido

estético as fortificações militares que demarcam esse território. Como nos lembra

Benjamin75, “Eis a estetização da política, como a prática do fascismo.” Talvez, a expressão

máxima do Leviatã que ganha vida e caminha sobre a Terra.

esforços para conseguir uma autarquia nacional no Ultramar, os quais já desde o início tinham conduzido ao imperialismo clássico. O objetivo desta política de autarquia, como declarou no começo dos anos 30 num congresso contra a economia liberal o economista Wilhelm Gerloff, era "a criação de um espaço econômico auto - suficiente do ponto de vista da produção e do consumo, dispondo de tanto espaço e de tantas riquezas que pode suprir todas as necessidades econômicas e culturais dos seus membros...” (Gerloff 1932, 13). (KURZ, 2003)

75 Benjamin, 1996, pg.196.

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121

3.4 Kropotkin: O Estado e seu Papel Histórico

O caráter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cuja afecção fundamental é a de uma desconfiança insuperável na marcha das coisas, e a disposição para, a cada momento, tomar consciência de que as coisas podem correr mal. Por isso, o caráter destrutivo é a imagem viva da

fiabilidade.

Walter Benjamin

O livro de Kropotkin, O Estado e seu Papel Histórico, é herdeiro da cisão presente no

seio da Internacional dos Trabalhadores, a divisão do que se convencionou chamar entre os

socialistas autoritários e os socialistas libertários76, quanto a como deveria se realizar a

revolução. Os primeiros defendiam um programa baseado na organização disciplinar

concentrada em um comitê central, enxergando na tomada do Estado uma fase de transição

necessária a fim de alcançar o socialismo. Já os socialistas libertários defendiam a imediata

supressão deste, visto que as atribuições do corpo institucional racionalizado em si a priori

impediriam a revolução social dentro dessa própria racionalidade:

Uma é composta de indivíduos que procuram fazer a revolução social

dentro do Estado, mantendo a maior parte de suas atribuições, ampliando-

as, inclusive para utiliza-las em benefício daquilo que preconizam. A outra é

composta de criaturas que, como nós, veem no Estado - não apenas em sua

forma atual, mas até na própria essência e sob todas as formulas as quais

possa revestir-se – um obstáculo a revolução social, um tropeço por

excelência, ao desenvolvimento de uma sociedade baseada na igualdade e

na liberdade. E, mais ainda: os anarquistas veem, no Estado, a fórmula

histórica elaborada para impedir o florescimento da sociedade norteada

por esses dois princípios. Consequentemente, os anarquistas trabalham

para abolir o Estado, e não para reformá-lo (KROPOTKIN, 2000, pg.7-8)

76

Kropotkin não participou da Internacional dos Trabalhadores. A tensão no seio desta que resultou na cisão do movimento fora entre Marx e Bakunin, resultando na expulsão deste último, junto com a retirada dos trabalhadores latinos que se identificavam com a proposta de Bakunin. Kropotkin comenta no artigo A Comuna de Paris, “De acordo com os socialista alemães, o Estado devia tomar posse de todas as riquezas acumuladas e da-las as associações operárias, organizar a produção e a troca, zelar pela vida, pelo funcionamento da sociedade. A isto, a maioria dos socialistas de raça latina, fortalecida por sua experiência, respondia que semelhante Estado – admitindo mesmo a impossibilidade de sua existência – teria sido a pior das tiranias, e opunham a este ideal, copiado do passado, um novo ideal, a an – arquia, isto é, a abolição completa dos Estados e a organização do simples ao composto pela federação livre das forças populares, dos produtores e dos consumidores” Kropotkin, Piotr Alekseievitch. Palavras de um Revoltado, 2005, Editora Imaginário.

Page 123: Piotr Kropotkin

122

Ao propor um estudo da instituição Estado pelo seu desenvolvimento histórico,

Kropotkin problematiza a ideia da transição do estado de natureza a vida governada, e

dialoga com a teoria de Estado de Thomas Hobbes (1651). Ele aprofundaria posteriormente

esse tema no seu livro a Ajuda Mútua77. Este parte de um “estado de natureza” onde todos

os homens possuem os mesmos direitos, submetidos á guisa da causalidade da lei natural.

Abandonado ao livre arbítrio e a servidão da vontade, o impulso de autoconservação dirige

então a sociedade a uma “guerra de todos contra todos”.

Há, como sabem, a escola alemã que se vangloria em confundir o Estado

com a Sociedade. Esta mesma confusão se encontra nos escritos dos

melhores pesquisadores franceses, os quais não podem conceber a

sociedade sem a centralização estatal. E é esta a razão porque, contínua e

habilmente, esses pensadores censuram os anarquistas por “quererem

destruir” a sociedade, por “pregarem o retorno da guerra perpétua de

todos contra todos”.

Raciocinar desse modo é ignorar completamente os progressos realizados

no domínio da história durante os últimos oitenta anos; é desconhecer que

o homem, antes de sentir o peso do Estado, viveu em sociedade no decurso

de milhares e milhares de anos; é ouvidar que, na Europa, o Estado é de

origem recente, visto que data, apenas, do século XVI; é esquecer, enfim,

que os períodos gloriosos da humanidade foram aqueles em que as

liberdades não tinham sido ainda esmagadas pelo Estado, naqueles

períodos em que as massas humanas viviam em comunas e em federações

livres. (KROPOTKIN, 2000, pg.9)

A renúncia ao indivíduo, ao direito da liberdade de ação, partindo do comum acordo

de todos expresso na instância agregadora do governo, absoluto e soberano em todas as

decisões, embala o sonho do homem sob o signo contratual acolhedor do Leviatã. Hobbes,

tal qual Darwin, encontra as relações sociais de concorrência universal projetivamente na

natureza e na luta pela sobrevivência animal:

77

Como já tratado no capítulo 2 “No bordel do historicismo”, sub item “A Ajuda Mútua e a crítica ao darwinismo social”.

Page 124: Piotr Kropotkin

123

A maior parte dos filósofos do século XVIII tinha uma ideia muito elementar

sobre a origem das sociedades.

No princípio – diziam eles – os homens viviam em pequenas famílias

isoladas; e a guerra perpétua entre estas famílias representava o estado

normal. Mas um belo dia, apercebendo-se, enfim, dos inconvenientes

destas lutas eternas, os homens resolveram constituir-se em sociedades.

Entre as famílias dispersas estabeleceu-se, então, um contrato social,

submetendo-se todas, voluntariamente, a uma autoridade, a qual – terei

necessidade de vo-lo dizer? – se transformou no ponto inicial, na origem de

todo o progresso! (KROPOTKIN, 2000, pg.12)

Para Kropotkin, o Estado não representa uma união contratual espontânea, com uma

finalidade racional abstrata, que permeia os vãos da história guiando a humanidade através

dos mares obscuros do telúrico, onde ela mesma precisa ser salva de si, por um ente

superior, um Deus ex-machina, de afagos patriarcais78. Ele pressupõe um governo e uma

centralização territorial, uma racionalidade objetivada no território e institucionalizada.

Parece-me, não obstante, que, no Estado e no Governo, temos duas noções

de ordem diferente. A ideia de Estado significa uma coisa muito diversa da

ideia de governo. A ideia de Estado compreende não somente a existência

de um poder colocado muito acima da sociedade, mas também uma

concentração territorial e uma concentração de muitas funções da vida das

sociedades nas mãos de alguns indivíduos. E, em consequência disso

surgem novas relações entre os membros da sociedade que não existiam

antes da formação do Estado.

Esta distinção que, certamente, escapa-nos a primeira vista, aparece-nos,

sobretudo, quando estudamos as origens do Estado. Assim, para

compreender bem o que é essa entidade, há um só meio: é estuda-lo

78

Robert Kurz aponta o caráter androcêntrico do Leviatã em Não Há Leviatã que Vos Salve: “A instância de síntese política, mais tarde trivialmente apostrofada como “pai Estado”, figurando em Hobbes sem rodeios como monstro patriarcal, deveria referir a sua legitimação soberana na base dos proprietários masculinos, por sua vez legitimados pelo “trabalho”. Kurz, Robert, 2011, Não há Leviatã que vos salve. Teses para uma teoria crítica do Estado

Page 125: Piotr Kropotkin

124

segundo o seu desenvolvimento histórico. Eis o que vou fazer. (KROPOTKIN,

2000, pg. 9-10)

Talvez, por isso ao analisar o Estado79 em sua projeção histórica, recorre a

antropologia, onde a humanidade em seus primórdios se organiza em tribos e clãs, e não a

família como núcleo de sociabilidade base da sociedade. A comunidade, e não o patriarcado.

“Nessas tribos não existia a família isolada, como não existe ainda hoje em muitos

mamíferos sociáveis. No seio da tribo, a divisão fazia-se, de preferência, por gerações”

(KROPOTKIN, 2000, pg.13). E segue: “A acumulação da propriedade privada era impossível

no meio das tribos, visto que tudo tivesse pertencido a qualquer membro delas era

destruído ou queimado no mesmo local onde fosse enterrado o cadáver.” (KROPOTKIN,

2000, pg.14)

A violência entre as tribos dava-se no encontro de seus movimentos migratórios. Suas

guerras se davam por origem, cor, e línguas diferentes, atravessadas por tradições de como

conduzi-la, como ás vezes verter o sangue na mesma quantia do agressor.

Os tão decantados versos da Bíblia: sangue por sangue, olho por olho,

dente por dente, ferida por ferida, têm aqui a sua origem, como

exuberantemente o demonstrou o filosofo Koenigswarter. Era o modo de

conceber justiça naquela época... e nós não podemos orgulhar-nos muitos,

porque o princípio da vida pela vida que prevalece nos nossos códigos não é

mais do que uma destas sobrevivências. (KROPOTKIN, 2000, pg.16)

Desse núcleo de costumes sociáveis, não foi necessária uma autoridade constituída

para fazê-lo prevalecer, apesar da divisão incipiente de diretores temporais como o

sacerdote e o chefe militar, na guerra de todos contra todos. “E não se pode supor a

existência de um Estado nessas tribos como não se pode supor a existência de um Estado

numa “sociedade” de abelhas ou de formigas, ou entre os esquimós ou patagonianos, que,

como se sabe, são nossos contemporâneos.” (KROPOTKIN, 2000, pg.17) A dissolução da

79

Para Kropotkin, a existência de um Estado que não fosse o Estados moderno “O Império Romano foi um Estado na verdadeira acepção do termo. Até nossos dias, esse Império ainda subsiste, para o legislador, como um Império ideal. Os órgãos desse Império cobriam, como uma rede imensa, um vasto domínio. Tudo afluía para Roma: a vida econômica, a vida militar, as relações jurídicas, as riquezas, a educação e até a própria religião. De Roma vinham as leis, os magistrados, as legiões para defender o território ameaçado, os governadores, os Deuses.” (KROPOTKIN, 2000, pg.10)

Page 126: Piotr Kropotkin

125

organização social em torno do clã pode ser exemplificada pelos enormes movimentos

migratórios realizados por tribos da Ásia central e boreal, motivada por fenômenos

climáticos, deslocando essas massas em direção ao oriente. A tribo, que se baseava na

comunidade de origem bem como ao culto aos antepassados comuns, no choque desses

movimentos fora quebrada, se relacionando por uma nova sociabilidade que não a dos

deuses dos locais de origem. A posse comunal da terra – do território permitiu novos elos de

sociabilidade, já que;

A posse, em comum, de um certo território - de tal vale, de tais colinas -

converteu-se em um novo entendimento. Os deuses antepassados tinham

perdido todo seu significado; e os deuses locais, deuses de tal vale, de tal

ribeira, de tal bosque, vieram dar a consagração religiosa aos novos

aglomerados humanos, depois de terem substituído os primitivos deuses da

tribo. (KROPOTKIN, 2000, pg.18)

Famílias que não tinham origem em locais, bem como deuses e antepassados comuns,

através da posse comum da terra, fomentaram novos laços de sociabilidade, originando a

comuna rural.

A comuna rural, a posse comum da terra, era dividida entre as famílias. Quanto à

produção, a infraestrutura do lugar como pontes, fortins, de uso coletivo, eram realizados

em comum. Mas o “consumo80” era feito por cada família, cada qual com seu gado, horta,

celeiro, podendo acumula-los e transmiti-los como herança. A comuna rural era soberana,

tendo o direito consuetudinário como mediador em suas necessidades. Como fenômeno de

organização territorial vigora após a queda do Império Romano, na Europa do séc. V ao XII, e

então como comunas livres, estendendo-se ao até o séc. XV. Dessas comunas emanam as

federações, guildas e fraternidades de ofício, que se espalham pela Europa, e em suas

relações externas, essas cidades possuíam todos os atributos do Estado moderno.

Organismos cheios de vida, estas comunas diferenciavam-se,

evidentemente, na sua evolução. A posição geográfica, o caráter do

comércio externo, as resistências que era necessário vencer fora de seus

âmbitos etc., davam a comuna a sua história própria. Mas, para todas elas,

80

“para servir-me dessa expressão moderna” (KROPOTKIN, 2000, pg.20)

Page 127: Piotr Kropotkin

126

o principio era sempre o mesmo. Pskov na Rússia e Bruges na Bélgica; um

burgo escocês de trezentos habitantes e a rica Veneza com as suas ilhas;

um burgozinho no norte da França ou da Polônia e Florença, a Bela,

representavam a mesma amitas, isto é, a mesma amizade de comunas

rurais e de guildas associadas. Nos seus traços gerais, a constituição de cada

uma delas era idêntica, semelhante. (KROPOTKIN, 2000, pg.35)

Ao final da Idade Média, diversos processos que se estenderam durante esse período,

como a união nascente entre um poder real e a Igreja, a falta de apoio das comunas livres

aos servos no campo sob o regime feudal81, as guerras das comunas contra os Lordes

feudais, o fortalecimento das guildas e o surgimento da divisão em classes dentro das

comunas, bem como as guerras contra os turcos otomanos no fim da Idade Média e a

centralização do poder militar e eclesiástico formando os Impérios nascentes na península

Ibérica culminaram com o fim das comunas livres. “E o século XVI, o século das guerras

encarniçadas, resume-se inteiramente nesta luta do Estado nascente contra as cidades livres

e contra sua federação. As cidades foram cercadas, assediadas, tomadas de assalto,

saqueadas; e os seus habitantes foram dizimados ou expulsos.” (KROPOTKIN, 2000, pg.62)

A partir do século XVI, com a consolidação dos Estados modernos e sua forma de

centralização territorial, a comuna, como forma de organização territorial, encontra seu fim.

Com a formação da propriedade privada, as áreas comuns passam a ser expropriadas.

Desde 1659 que o Estado tomou as comunas sob a sua tutela. E basta

consultar o Édito de 1667, assinado por Luís XIV, para vermos o roubo dos

bens comunais que, naquela época, se levou a prática. “Cada um arranjou-

se como pôde, repartindo esses bens... E para que o despojo das comunas

fosse completo, valeram-se de dívidas fantásticas” – como disse o Édito o

Rei Sol. Dois anos depois, o mesmo rei confiscou, em proveito próprio,

todas as rendas das comunas. E é a isto que, em linguagem

pseudocientífica, se chama “morte natural” das comunas! (KROPOTKIN,

2000, pg.66)

81

No artigo “A Comuna”, no livro Palavras de um Revoltado, Kropotkin escreve: “Orgulhosa de suas liberdades, ela não procurava amplia-las para aqueles que gemiam do lado de fora. Foi a este mesmo preço, ao preço da conservação da servidão de seus vizinhos que muitas comunas receberam a sua independência.” (KROPOTKIN, 2005, pg.95)

Page 128: Piotr Kropotkin

127

Em contrapartida a “morte natural das comunas”, ele aproxima-se da análise de Karl

Marx, ao olhar para o processo dos cercamentos de terras feita no capítulo A assim

chamada acumulação primitiva do Capital82 (Capítulo XXI, V Marx, 1986), onde século XVI é

o século de consolidação dos Estados territoriais. E a consolidação territorial, é a formação

da propriedade privada e a expropriação realizada pelos Estados nascentes das terras

comunais.

Pois bem: o que sucedeu na França, sucedeu igualmente na Bélgica, na

Inglaterra, na Alemanha, na Áustria – em toda a parte da Europa, exceto

nos países eslavos. As épocas de recrudescimento do roubo ás comunas

correspondem-se em toda a Europa Ocidental. No que variam é nos

processos. Na Inglaterra, por exemplo, não se atreveram a proceder por

meio de medidas postas geralmente em prática, e preferiram que o

Parlamento votasse alguns milhares de enclosure acts (atas de

encerramento) separados, pelos quais o mesmo Parlamento sancionaria,

em cada caso especial, o confisco de bens – (atualmente ainda procede

dessa mesma forma) – e deram aos senhores o direito de reter nas suas

mãos as terras comunais que previamente tinham roubado. (KROPOTKIN,

2000, pg.69-70)

Em suas análises, o Estado foi criado para promover a estabilidade e o

desenvolvimento do capitalismo e está ligado a sua tendência de expansão territorial a

necessidade de novos mercados e as guerras resultantes desse processo. No artigo As

Guerras e o Capitalismo, Kropotkin faz uma análise do quadro geopolítico da Europa antes

da Primeira Guerra, evidenciando primeiramente como as guerras na Europa no séc. XIX não

levam mais em conta a honra dos Reis, mas o interesse de industriais tais como Rotschild,

Schneider e companhias como a Anzin. “Na verdade, todas as guerras europeias dos últimos

cento e cinquenta anos foram lutas por vantagens industriais e direitos de exploração.”

(KROPOTKIN, 2012, pg.1)

82

A assim chamada acumulação primitiva do Capital (Capítulo XXI,V Marx, 1986) , onde Marx coloca a formação do Estado moderno como necessária e concomitante para a formação de mercado, realizando expropriação das terras comunais e a formação da propriedade privada – por meio da análise dos enclosures ingleses.

Page 129: Piotr Kropotkin

128

Quase no fim do séc. XVIII, o processo de industrialização da França apoiado pelo

comércio marinho e suas colônias na América, como o Canadá e a Ásia começara a se

desenvolver. A Inglaterra possuidora de um Império colonial e marítimo inicia uma série de

guerras contra a França, contratando exércitos prussianos, austríacos e russos. Após um

quarto de século permeado por conflitos a França consegue erguer seu Império colonial na

África, após a perda de suas colônias na América.

Após a Revolução de 1848, com a abolição da servidão e a propriedade comunal, os

diversos estados alemães passam a dispor de um exército de mão obra disponível que migra

para as cidades em busca de emprego nas indústrias. Uma característica particular ao

processo de modernização alemã, que passa a oferecer um ensino técnico a essa população

a fim de superar em um curto espaço de tempo as indústrias inglesas e francesas visando o

comércio exterior.

Desde aquele tempo, em todas as camadas sociais da Alemanha- sejam as

exploradas ou as exploradoras – havia um apaixonado desejo de unificar a

Alemanha a qualquer custo: construir um poderoso império capaz de apoiar

um imenso exército e uma forte marinha, que seria hábil para conquistar

portos no Mar do Norte e no Adriático e em alguns portos da África e no

Oriente – um Império que seria o déspota da lei econômica na Europa.

(KROPOTKIN, 2012, pg.2)

Eclode a guerra com a França de 1870. Com a Prússia vitoriosa e a unificação da

Alemanha em 1871 e com seu poder político reconhecido, a indústria alemã cresce

exponencialmente buscando novos territórios como a Polônia, Hungria, África e a Ásia

Menor pela consolidação das estradas de ferro alemãs. Em detrimento ao sucesso da política

colonial alemã, com o objetivo de manter sua supremacia nos mares, colônias de exploração

e o comércio monopolista a Inglaterra busca por aliados para enfraquecer o poderio alemão,

aumentando sua frota contra os exércitos e blindados germânicos. Em contrapartida, a

Inglaterra tem de manter um exército dentro de seus territórios a fim de evitar uma rebelião

da classe operária. Em função disso, a arte da guerra é ensinada aos jovens burgueses

agrupados em pelotões de escoteiros. “Além disso, não devemos esquecer que a onda

industrial, movimentando-se do Oeste ao Leste, também invadiu a Itália, Áustria e Rússia.

Esses estados estão reivindicando seu “direito” – o direito de seus monopólios pilharem a

África e a Ásia. ”(KROPOTKIN, 2012, pg.4)

Page 130: Piotr Kropotkin

129

O processo de expansão pelo domínio de mercados o qual se lançam os países

favorece a criação de uma enorme indústria bélica financiada por grupos financeiros. “(...) as

rivalidades industriais e o desejo de adquirir novos mercados para exportação de produtos

nacionais são as principais causas das guerras nos tempos atuais.” (KROPOTKIN, , pg.9) As

guerras coloniais oferecem um grande mercado ao comércio de armas europeu na Ásia e na

África, sendo vendido armas para os locais contra colonizadores da mesma nacionalidade do

fornecedor. Ou no caso dos ingleses que forneceram uma grande quantidade de armas para

as tribos da Arábia que guerreando entre si, consequentemente ofereceriam a oportunidade

de uma intervenção britânica em seu território a fim de assegurar a ordem e sua

“anexação”.

Nós sabemos que todos os grandes Estados favoreceram, além de seus

próprios arsenais, o estabelecimento de enormes fábricas, onde armas,

blindagem para encouraçados de menor tamanho, pólvora, cartuchos,

granadas, etc, são fabricados. Enormes somas são gastas por todos os

Estados na construção dessas fábricas auxiliares, onde os mais habilidosos

operários e engenheiros são reunidos para fabricarem máquinas de

destruição em grande escala, em caso de guerra. (KROPOTKIN, 2012, pg.

10)

Com a ampliação do parque industrial bélico, diversas empresas investem seus capitais

em um possível cenário de guerra, como Anzin, Krupp, Armstrong. As guerras são

estimuladas por grandes grupos financeiros também através da imprensa, que manipula os

ímpetos nacionalistas. Kropotkin faz uma diferenciação entre as guerras modernas se

diferenciam de períodos anteriores por suas particularidades. As batalhas agora são lutadas

em frontes de até quarenta milhas com mortos que chegam até cento e cinquenta mil para

cada lado da guerra. São introduzidas as inovações técnicas com uma bateria de artilharia

que lançam granadas até cinco milhas de distância podendo bombardear uma única posição

inimiga até sua destruição completa, com soldados sendo levados a loucura após oito dias

de batalha, onde após o bombardeio, entraram em lutas de baioneta corpo a corpo

dilacerando as carnes uns dos outros com dentes (em Porto Arthur, 1904 na guerra sino-

russa). As características da guerra moderna levam aos aspectos mais bárbaros, massacres

que vão a selvageria.

Page 131: Piotr Kropotkin

130

Elas ocasionam a destruição do trabalho humano em uma escala colossal e

nós sentimos continuamente os efeitos dessa destruição em tempos de

paz, pelo aumento da miséria entre os pobres que ocorre paralelamente ao

enriquecimento dos ricos. Toda guerra destrói um formidável amontoado

de bens, incluindo não somente o propalado material de guerra, mas

também as coisas mais necessárias à vida cotidiana e à sociedade como um

todo: pão, carne, legumes, alimento de todo tipo, animais de carga, couro,

carvão, metal. tecido, etc. Isso representa o trabalho útil de milhões de

homens por várias décadas; e tudo isso é perdido, queimado, derretido em

poucos meses. Mesmo em tempo de paz isso é perdido por causa da

expectativa de uma guerra futura. (KROPOTKIN, 2012,pg.13)

Kropotkin se aproxima de Benjamin na sua descrição da guerra moderna como este

descreveria sua guerra de material, cegamente mecânica após a Primeira Guerra Mundial.

Na guerra, a utilização das forças produtivas é bloqueada pelas relações de propriedade, a

intensificação dos recursos técnicos, ritmos, fontes de energia, tem uma utilização

antinatural onde a técnica não está suficientemente avançada para controlar as forças da

sociedade.

Em seus traços mais cruéis, a guerra imperialista é determinada pela

discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização

insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta

de mercados. Essa guerra é uma revolta da técnica, que cobra em “material

humano” o que lhe foi negado pela sociedade. Em vez de usinas

energéticas, ela mobiliza energias humanas, sob a forma dos exércitos.

(BENJAMIN, 1996, pg. 196).

Para Ratzel, a expansão do território era uma necessidade do organismo estatal. Seu

método esvaziado do conceito sócio – econômico permite apresentar o Estado na

concepção orgânica onde população, solo, fronteira como extensões de um corpo vivo

possuindo cada qual sua função, dados apresentados. A expansão do território é uma

necessidade do organismo vivo e não do desenvolvimento das forças produtivas, das guerras

imperialistas. Ela cobra em energia humana das massas e a destruição de territórios

conservando as mesmas relações de produção.

Page 132: Piotr Kropotkin

131

A análise que Kropotkin empreende do Estado pela sua formação histórica83 e sua

relação com o surgimento e a forma de reprodução do capital foge a determinação proposta

de um método das ciências naturais para a análise dos fenômenos sociais. Mesmo propondo

o método das ciências naturais para os fenômenos sociais em sua teoria o Estado possui

uma origem histórica e moderna. Será que podemos falar de um Duplo Kropotkin?

A negação do Estado passa além da formação da propriedade individual e da produção

apropriada pelo lucro pessoal. A proposta dos partidos políticos socialistas impor restrições

legais aos capitalistas por meio de leis, a incorporação das estradas de ferro, extração do

carvão bem como os bancos nas mãos do Estado no final do séc. XIX era visto por ele como

um reforço ao regime capitalista, que “se constituírem propriedade do Estado que então as

administrará militarmente como é característico seu.” (KROPOTKIN, 1996, pg.134).

A realidade é que cada ano, desde o passado até os nossos dias, todos os

parlamentos do mundo estabelecem novos monopólios em exclusivo

benefício das grandes empresas de transportes, vias férreas terrestres,

fluviais e marítimas, companhias de iluminação a gás e a eletricidade, de

abastecimento de águas e de serviços de esgotos, exclusividade do ensino

público, privilégios para certos institutos públicos, e o mais que ora não nos

ocorre. O impulso dado pelo Estado a todas essas iniciativas só tem servido

para alicerçar as grandes fortunas dos maiores capitalistas do mundo.

Em resumo: em nenhuma parte do mundo, em nenhuma época da história,

teve a mínima aplicação o falado sistema da não intervenção do Estado nas

várias atividades sociais. O contrário sim é que foi verificado. O Estado foi

sempre, em todos os tempos, e atualmente o é o sustentáculo principal e o

criador, direto e indireto, do Capitalismo e do seu formidável poder sobre a

sociedade. (KROPOTKIN, pg.158-159, grifo do autor)

O Duplo Kropotkin, que faz a crítica ao Estado como categoria do capital, como parte

de um mesmo campo histórico que o capitalismo advoga que o principio da não intervenção

83

Acrescentemos apenas para a nossa civilização europeia, civilização dos últimos quinze séculos de que somo originários, o Estado é uma forma de vida social que só começou a incrementar-se depois do século XVI e ainda assim sob a influência de causas cujo o exame o leitor consultará o nosso O Estado e seu Papel Histórico. (KROPOTKIN, 1964, pg.154-155)

Page 133: Piotr Kropotkin

132

do Estado não existe. Como criador direto ou indireto do capitalismo, sua constituição e

expansão através das guerras84 remetem a “economia política das armas de fogo” e o

estatismo como parte do processo de modernização do Oikos ao absolutismo. O socialismo

real da URSS, e o capitalismo estatal colocado em funcionamento na Revolução Russa por

parte dos bolcheviques, é a instrumentalização direta de um modelo do Imperialismo que é

a organização dos correios alemães.

Um espirituoso social - democrata alemão dos anos 70 do século passado

designou os correios como modelo de uma economia socialista. Isto é

absolutamente correto. Atualmente, os correios são uma empresa

organizada segundo o tipo do monopólio estatal capitalista. O imperialismo

está transformando, pouco a pouco, todos os trustes em organizações

semelhantes. Acima dos "simples" trabalhadores, que estão se esfalfando e

vivendo na miséria, encontra-se nelas a mesma burocracia burguesa. Mas o

mecanismo da direção social da economia já está desenvolvido. Só falta

derrubar os capitalistas, romper com o punho de ferro dos trabalhadores

armados a resistência desses exploradores, quebrar a maquinaria

burocrática do Estado moderno – e teremos um mecanismo liberado do

"parasita", tecnicamente bastante desenvolvido, que os trabalhadores

unidos poderão muito bem pôr em movimento sem ajuda. (LENIN apud

KURZ, 1991, pg.46-47)

Em comum, os socialistas possuíam a visão positiva do trabalho, cabendo a revolução

liberta-lo do julgo do capital, este visto como um inimigo do trabalho. E daí a crítica

sociológica das formações sociais históricas que levou a classe trabalhadora aos status de

pessoa coletiva independente dos sujeitos empíricos, em detrimento da crítica da forma

mercadoria, de cunho autobiográfico em sua identidade de classe, livre das determinações

das categorias do capital. Na obra de Kropotkin, mesmo negando o trabalho abstrato como

produção do valor e sua autonomização, o monopólio por parte do Estado que Lênin vê

84

Analisai, depois, as guerras, sem as quais os Estados não podem constituir-se nem aguentar-se, guerras que se tornam fatais, inevitáveis, desde que se admite que tal região – como parte integrante de um Estado – pode ter interesses opostos aos dos seus vizinhos. Pensai nas guerras do passado e naquelas lutas sangrentas que os povos subjugados foram obrigados a declarar aos senhores para conquistar o direito de respirar livremente; nas guerras para a conquista de mercados; nas guerras para a criação de impérios coloniais... (KROPOTKIN, 2000, pg.83)

Page 134: Piotr Kropotkin

133

como um mecanismo livre do parasita e que pode levar a emancipação do proletariado, para

ele continua sendo o julgo do capital. “Uma nova forma de salariato e de exploração - eis o

que daria a ideia, preconizada por tantos socialistas, da entrega daqueles serviços ao

Estado.” (KROPOTKIN, 1963, pg.133)

Para o caráter recuperador do capitalismo estatal da URSS, o Estado deveria intervir de

forma muito mais agressiva a fim de realizar um regime de acumulação para sua

modernização. Ele deveria ser “mais absolutista que o absolutismo85” com uma economia de

guerra mais acentuada que a própria situação de guerra. A militarização extrema, a ditadura

de um partido único, a violência extrema empregada contra os trabalhadores nos moldes de

uma acumulação primitiva como no Ocidente a fim de superar a inércia da produção de

subsistência dos camponeses e a criação de uma classe burocrata que substituiria a

burguesia liberal foram alguns fatos do socialismo real. Mas o papel do Estado nesse

processo como criador e fomentador de um mercado como os Estados absolutistas do inicio

da modernidade como “criador direto ou indireto” e sua violência eram apontados por

Kropotkin e sua interpretação histórica sobre o Leviatã.

O que deixamos exposto explica claramente, pensamos, por que a nossa

interpretação da história e as conclusões que dela tiramos são tão

diferentes das que tiram os partidos políticos burgueses e o próprio

socialista. Adiantamos mais: enquanto os socialistas - estatistas não

abandonarem o seu sonho de socialização dos instrumentos de trabalho

nas mãos de um Estado centralizado, o resultado de todas as suas

tentativas para o estabelecimento do Capitalismo estatista e do Estado

socialista será o malogro completo desses sonhos e, a consequência, uma

ditadura militar. (KROPOTKIN, 1964, pg.165)

85

KURZ, 1991.

Page 135: Piotr Kropotkin

134

Considerações Finais

Um mergulho no objeto de estudo levou ao estudo do quadro histórico do movimento

operário do séc. XIX, em especial o anarquista. A modernidade, longe de ser pautada

cronologicamente pelo empirismo da Revolução Industrial ou a ascensão da República e

queda do Antigo Regime, nos coloca a abstração como elemento indentitário do moderno.

As Revoluções burguesas tal como a Francesa e as Revoluções de 1848, para além da

positivação da conquista dos direitos burgueses se colocam como momento da emancipação

negativa do sujeito e junto aos desdobramentos do processo de modernização que apontam

para a formação da superpopulação relativa, e como consequência do movimento operário.

O fio condutor dessa pesquisa é o argumento desenvolvido por Robert Kurz no Colapso

da Modernização e em textos posteriores, onde Estado e Mercado são categorias oriundas

do mesmo campo histórico, como um duplo, onde uma condiciona a existência da outra.

Assim, o nexo de sociabilidade considerado é a mercadoria. A produção de mercadorias

aparece como uma qualidade natural inerente ao uso da mercadoria escondendo o caráter

social do trabalho e a determinação do valor de uso da relação social entre os produtos do

trabalho. A teoria anarquista do Estado, nesta pesquisa vista nas principais correntes

teóricas do anarquismo, problematiza essa questão. Na teoria anarquista, sua proposta de

uma sociedade baseada em um sistema de cooperativas dentro de uma rede de comunas

territoriais federadas aparece como uma relação entre sujeitos de vontades empíricas

simples, como coloca Robert Kurz em Não Há Leviatã que nos Salve. Nessa relação não há

uma determinação da forma mercadoria no processo que organiza a produção, sendo que o

capital se apropria do trabalho como um inimigo deste. A liberdade na teoria anarquista do

Estado se encontra na liberação do individuo no processo produtivo, livre para assumir o

produto de seu trabalho.

Questões, tal como se organizaria a divisão do trabalho entre as comunas e dentro

delas, o equivalente de troca entre as mercadorias, produção, circulação e o consumo das

mesmas, permanecem. No caso de Kropotkin especificamente, este justifica através do

sentimento da Ajuda Mútua seria suficiente para manter um sistema econômico que

atendesse a todas as necessidades do individuo e da sociedade. A não existência de uma

instituição corruptora como o Estado e da hierarquia das classes deixaria esse sentimento

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135

aflorar na sociedade e esta seguiria seu rumo natural. Aqui, todo esse processo depende da

vontade empírica simples do sujeito.

Kropotkin desenvolve uma teoria da história baseada na luta de classes, formulando

uma concepção ontológica do anarquismo, possível pelo método positivista indutivo

dedutivo. Concebendo uma concepção de mundo baseado em Leis naturais de validade

universal, pela mecânica newtoniana, em uma linha cronológica evolutiva, ele desenvolve o

conceito de força criadora das massas presente em séculos de evolução da espécie

hominídea florescendo como a Ajuda Mútua. Esse sentimento manifesto na história conduz

o homem naturalmente a sociedade anarco-comunista após a evolução de várias etapas

históricas, uma busca pela promessa de felicidade do iluminismo. O método positivista pela

sua aplicação ensaística na história oferece vários prognósticos do futuro a cerca da certeza

oferecida por uma Lei natural que aguarda a futuramente a humanidade uma sociedade

comunista. Aqui, a reflexão de Claus Peter Ortlieb em seu artigo a Objetividade Inconsciente

coloca o problema da ilusão do método experimental é a mesma que o cego processo social

da sociedade produtora de mercadorias se apresenta aos homens como uma processo

regido por Leis naturais exterior a eles próprios quando o constituem como sujeitos

burgueses.

A razão iluminista e sua forma ontológica de colocar categorias inerentes a

modernidade no continuum temporal se faz presente no discurso do pensamento geográfico

legitimando a geografia como uma ciência de valor universal. Esvaziada do seu processo

histórico ela aparece fragmentada no tempo, com seus referenciais geográficos espalhados

em civilizações de tempos e lugares diferentes como um conhecimento que irá se realizar na

modernidade, que reúne em seu tempo histórico todas as condições necessárias para que

esse conhecimento alcance o status de ciência. Aqui o fetiche da mercadoria faz a ciência

aparecer como uma qualidade natural da razão que se realiza, não como uma apropriação

dos sujeitos portadores da razão iluminista.

O acesso a artigos recentemente produzidos como o de Federico Ferretti e Philippe

Pelletier, sobre a rede formada por geógrafos anarquistas na editora Hachette no final do

século XIX foi extremamente interessante, inclusive de uma produção conjunta que

incorpora a crítica social a produção geográfica (uma das qualidades introduzidas pela

geografia crítica em seu discurso acadêmico) foi das mais gratas surpresas, lançando como

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136

possibilidade futura para pesquisa em história do pensamento geográfico a possibilidade de

artigos dos geógrafos anarquistas que se encontram em outras línguas e a disponibilidade de

seu acesso enriqueceria a reflexão sobre as ideias de tais autores. A Ajuda Mútua como

conceito desenvolvido em conjunto por parte de Kropotkin, Reclus e Metchnikoff nos mostra

essa relação. A Ajuda Mútua sistematizada por Kropotkin, colocando-se como uma Lei

natural era um contraponto a teoria dos darwinistas sociais de competitividade e o estado

de natureza da “guerra de todos contra todos” da sociedade humana, embasando

cientificamente o avanço da civilização europeia a base das guerras contra as raças

inferiores.

A teoria do contrato social sua concepção de um “estado de natureza” inerente ao ser

humano, e o Leviatã como o arbitro de suas vontades empíricas e guardião de sua própria

segurança tem uma influência enorme nas concepções de Estado e território na geografia,

como mostra a influência da “guerra de todos contra todos” naturalizada no pensamento

político de Ratzel e o materialismo geográfico presente em Montesquieu sob o caráter dos

povos e do Estado. A origem da moderna sociedade produtora de mercadorias como a

economia política das armas de fogo coloca a ontologização das categorias imanentes ao

capital produzidas pelo movimento trans – histórico do pensamento iluminista em

sociedades com outros nexos de sociabilização, naturalizando a guerra como algo inerente

ao humano se reflete na aurora do iluminismo colocando-se como pilar da civilização, que

avançara através de guerras para imposição de mercados.

Em relação a pergunta colocada na introdução deste trabalho, se o pensamento

anarquista poderia oferecer em uma análise diferenciada de uma categoria clássica da

Geografia Política como o Estado e território, cremos estar respondida.

Aqui se apresenta o Duplo Kropotkin. Mesmo utilizando-se do método positivista de

análise, sua teoria do Estado propõe uma construção histórica deste, pelo avanço do modo

capitalista de produção através das guerras e a formação da propriedade privada, em

contrapartida a Ratzel que se utilizando do mesmo método encara o Estado como um

organismo vivo, de vontades naturais próprias, destituído de processos históricos e

econômicos sendo resultado da relação direta entre o homem e o solo em qualquer época

da história. Além disso, rejeita a ideia da não – intervenção do Estado na economia, como

categoria inerente ao capitalismo.

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