PINTURA MEDIEVAL: REPRESENTAÇÕES POLÍTICAS DA … · nave central da construção está dividida...
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PINTURA MEDIEVAL: REPRESENTAÇÕES POLÍTICAS DA
COLONIZAÇÃO
BONNICI, Thomas (UEM)
INTRODUÇÃO
A maioria das igrejas da alta Idade Média no sul da Itália, na Sicília e em Malta exibia
conjuntos de pinturas murais de santos para a contemplação da congregação, muitos deles
podem ser vistos até hoje. Neste ensaio analisaremos um ciclo de pinturas murais do século
15, na igreja da Anunciação da Virgem na aldeia Hal-Millieri, Malta, despovoada no século
17. Recentemente restauradas, as pinturas revelam possíveis ligações políticas e ideológicas
que antecedem o século 15 e remete ao período subislâmico na ilha entre o século 11 e o
início do século 14 e à preferência do cristianismo bizantino ao latino. Após o período
islâmico (870-1091), as ‘conquistas’ dos normandos Rogério I em 1091 e de Rogério II em
1127 colocaram Malta sob o domínio da Sicília normanda, embora a população continuasse
culturalmente islâmica até o início do século 13 (DALLI, 2006). De fato, antes de 1200 a
penetração cristã era mínima, destacando-se provavelmente o cristianismo bizantino entre o
século 11 e o início do século 14 (BUHAGIAR, 2007). Todavia, parece que gradualmente e
somente no decorrer do século 13 o cristianismo latino conseguiu converter algumas pessoas,
construir igrejas e estabelecer uma organização eclesiástica. Pode-se dizer que em 1436 a
organização eclesiástica latina já estava consolidada com ‘igrejas paroquiais’ e seus ministros.
DESCRIÇÃO
A atual igreja da Anunciação da Virgem foi construída c. 1450, embora haja vários
indícios arqueológicos que mostram uma igreja anterior construída no mesmo lugar. As
pinturas murais da igreja da Anunciação da Virgem, portanto, não podiam ter sido pintadas
anterior à primeira metade do século 15. A igreja mede 7,50 m de comprimento e 4,50m de
largura, com um acréscimo da abside medindo 1,57m de profundidade e 2,95 de largura. A
nave central da construção está dividida em cinco repartições, ou entradas, em cada lado, onde
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se encontram as pinturas. Como uma porta foi aberta no lado direito, a pintura deste lugar está
faltando. Por outro lado, na parede onde fica a porta principal, duas pinturas podem ser vistas
uma à direita e a outra à esquerda. Portanto, há onze paredes pintadas compreendendo 13
figuras de santos (LUTTRELL, 1976).
As figuras dos santos nas paredes, da esquerda à direita, representam Nicolau, André,
Tiago o Grande, João e Lourenço, Vicente Mártir, Jorge, Jorge, Paulo (?), Agostinho, Brás e
Ágata (?), e Leonardo. A sua identidade está determinada pelas inscrições em fontes góticas
angulares como se usava nas inscrições sicilianas até meados do século 15. Outros símbolos,
alguns ambíguos, reforçam esta identificação. (1) Nicolau [S NICOLA US], vestido como
bispo, segura um livro na mão esquerda e sua mão direito está erguida para benzer; (2) André
[S ÃDRIA] segura uma cruz latina na mão direita e um livro na esquerda; (3) Tiago o Grande
[S JAC (OB) (O)R], a mão direita pronta para benzer e a esquerda segura um livro no alto;
(4) João o Evangelista [IO NA ES] segura uma pena na mão direita e um livro na esquerda;
(5) Lourenço [S LOR ET (US)], diácono vestido de dalmática, segura um livro na mão
esquerda; (6) Vicente o Mártir [UICETU S], diácono vestido de dalmática, segura em alto um
livro na mão esquerda; (7) Jorge [S GEORGI], montado num cavalo, matando o dragão, e a
Princesa de Trebizond, olhando e agradecendo; (8) Jorge [S GEORGI] montado num cavalo,
matando o dragão, e a princesa de Trebizond, olhando e agradecendo; (9) Paulo (?) [...] segura
um livro na mão direito e um bastão ou espada na esquerda; (10) Agostinho [(S) AGOS
NUS], bispo, com a mão direita benzendo e um livro e o báculo na esquerda; a porta aberta
em c. 1634 onde provavelmente havia outra pintura no lugar; (11) Brás [S (BL) A SI], bispo,
com a mão direita benzendo e um livro e um báculo na esquerda; (12) Ágata [A (GAT) IA]
segura um livro na mão esquerda; (13) Leonardo [LIO AR S (D) US] segura um livro na mão
esquerda. Estranhamente todos os santos carregam um livro numa mão; a outra mão é erguida
como para dar a bênção ou está encostada ao peito. As pinturas não exibem nenhuma cena
com atividades, semelhante a muitas existentes nas igrejas italianas ou sicilianas. O que mais
intriga é a ausência de emblemas para identificar as representações. Paulo tem uma espada ou
cajado; João uma pena e André uma cruz. Porém, os outros santos têm apenas um livro
fechado e poderiam ser identificados apenas pelas inscrições acima. Normalmente a
identificação de Nicolau se faz pela presença de três bolas/maçãs/crianças ao lado; Lourenço
por uma grelha; Brás por um pente de ferro, Ágata por um prato com os seios.
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A cada lado da porta principal há dois ícones quase idênticos, os quais representam
São Jorge montado num cavalo branco no ato de matar o dragão com uma lança. A ponta da
lança está enfeitada com uma bandeira vermelha e à direita há a princesa coroada de
Trebizonda agradecendo seu libertador (Fig. 3). Embora as duas representações de São Jorge
presumivelmente fossem ali colocadas para balançar uma à outra, o equilíbrio não se verifica
devido ao fato que as duas pinturas olham na mesma direção. A repetição de pinturas cultuais
não é algo inusitado. Na igreja subterrânea de Santa Ágata, em Malta, há 9 pinturas de Santa
Ágata, 3 de São Leonardo e 4 de bispos representando ou São Nicolau ou São Brás. Poderiam
ter sido imagens ex voto encomendadas por pessoas diferentes.
Os ícones representam santos hieráticos, de tamanho normal, que parecem olhar
obliquamente (e não diretamente ao espectador) das paredes, numa austeridade inconfundível,
com gestos estereotipados, sem narrativa (Fig. 1). Os santos são pintados com fundo simples
dividido por uma linha delgada branca. Enquanto a parte inferior está decorada por
entrelaçamentos sobre um fundo ocre, a parte superior está pintada em azul escuro. Com a
exceção das duas pinturas de São Jorge, todas as pinturas foram executadas num só dia pelo
mesmo pintor cujo nome, provavelmente, se encontra sob o duplo quadro de Ágata e Brás. O
nome Garinu ou Agacinu, descoberto em 1974 durante o trabalho de restauração, está escrito
em letra cursiva típica da primeira metade do século 15 (Fig. 7). Ambos denotam sobrenomes
medievais sicilianos, mas, a rigor, não se sabe o que a palavra significa. Pintores de ícones
itinerantes eram comuns na Alta Idade Média embora muito pouco se saiba sobre sua
influência e atividade artística.
O problema mais interessante é que estilística e iconograficamente, as pinturas, em
afresco, referem-se a um período medieval anterior e não a meados do século 15. Bautier-
Bresc (1976) levantou a hipótese de que a escolha destes santos reflete um padrão arcaico de
devoção, talvez do século 11 ou 12. Por exemplo, nenhum dos novos santos associados às
ordens mendicantes é representado. Ela sugere que o pintor se apropriou de um programa
pictórico anacrônico para seu modelo. De fato, quando das escavações em 1977, encontraram-
se fragmentos de afrescos oriundos da igreja anterior, embora os fragmentos sejam tão
minúsculos e tão frágeis que é impossível constatar o estilo ou iconografia deles. Pode ter
acontecido que os santos representados ainda estivessem cultuados pela população local e, na
construção da nova igreja, o pintor foi comissionado a executar cópias dos mesmos na nova
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igreja. Não apenas a escolha dos santos, mas também o estilo artístico é anacrônico contendo
uma mistura de elementos bizantinos e romanescos (BUHAGIAR, 1988).
GENEALOGIA DOS ÍCONES
Luttrell (1976) afirma que os ícones da igreja da Anunciação da Virgem remetem aos
afrescos bizantinísticos da região sudeste da Sicília, especialmente as imagem cultuais das
catacumbas de Santa Lucia em Siracusa cujos murais foram pintados no início do período
normando (Fig. 5). Todavia, o estilo destas representações são exclusivamente sículo-
bizantinístico, com exclusão de traços romanescos (AGNELLO, 1962). O quadro interior nos
ícones é um leitmotiv nas pinturas sicilianas dos séculos 14 e 15, como o afresco de São
Tomás de Aquino (1225-1274) na igreja quatrocentista de São Domingos em Trapani, Sicília,
o qual é o mais próximo ao estilo das pinturas sob análise (Fig. 4). Santo Tomás, vestido de
frade dominicano, é representado majestosamente de frente, a cabeça levemente inclinada,
uma mão perto do peito e a outra segurando um livro fechado. Todavia, o estilo geral é
romanesco e não bizantinístico.
Segue-se que as influências artísticas nas pinturas da igreja da Anunciação da Virgem
são de natureza variada e conflitante, embora indiquem a Sicília ou ao sul da Itália como fonte
imediata de referência. É difícil precisar os traços existentes do estilo romanesco. É um fato
significativo que seu estilo levemente ocidentalizado não é esperado numa cultura árabe-
bizantinística de uma comunidade rural de ex-muçulmanos convertidos ao cristianismo grego
mais do que ao cristianismo latino, especialmente quando se aceita a hipótese que os afrescos
são cópias de pinturas de um ciclo anterior, ou seja, da igreja anterior. Neste caso, elas estão
bem próximas ao período de transição do Islamismo ao Cristianismo grego.
Poderia haver influência da região da Lombardia nas pinturas da igreja da Anunciação
quando se repara a pintura de dois santos (Fig. 6) na basílica de San Vicenzo a Galliano,
Milão, do século 13, até certo ponto, semelhante às pinturas de Lourenço e João (Fig. 2) e de
Ágata e Brás (Fig. 7). Os dois santos lombardos, um ao lado do outro, altos e aristocratas,
também têm olhar oblíquo: um é um bispo com mitra, uma mão erguida para benzer e a outra
segurando o báculo; o outro é um frade com tonsura, com um livro fechado na mão. Embora a
roupa seja diferente, o estilo é romanesco com traços bizantinos. Nos ducados lombardos do
sul da Itália pode ter havido um hibridismo de estilos lombardos, romanescos e bizantinos. As
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conquistas normandas do século 11 podem ter levado este estilo híbrido à Sicília e Malta.
Reforça-se esta hipótese diante da influência de monges do rito bizantino do sul da Itália na
reevangelização das duas ilhas. A introdução do culto e, provavelmente de estilos artísticos
também, através dos normandos aconteceu com o culto de São Cataldo, um santo lombardo,
venerado no sul da Itália (especialmente em Taranto), e introduzido em Malta no período
imediatamente subislâmico (CARDUCCI, 1980). São Nicolau de Bari e Leonardo de Siponto
também foram santos muito populares entre os normandos na Apúlia, sul da Itália, e o culto
deles poderia ter chegada em Malta através dos normandos. Ë significante que eles ocupam o
lugar de honra no esquema icônico na igreja da Anunciação.
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
As representações dos 13 ícones pintadas em afresco na igreja da Anunciação da
Virgem na aldeia de Hal-Millieri mostram o ambiente artístico do sul da Itália (talvez mais do
que da Sicília), ligado à tradição bizantino-normanda, como a sua provável origem. Esta
tradição mostra a justaposição de figuras hieráticas de santos, em pé, estereotipicamente
rígidos, sem nenhuma narrativa. Embora haja referências remotas ao romanesco em seu estilo
artístico, os ícones mostram a influência bizantina, mais do que a latina, no período
subislâmico do século 12 quando a população de Malta ainda estava sendo reevangelizada.
Os ícones não fazem nenhuma referência a Cristo, à Virgem, aos Mistérios da
Salvação, ou ao Antigo Testamento, como se encontram nos vitrais das igrejas medievais
inglesas e francesas. Com a exceção de André e Vicente, os ícones retratam os santos
cultuados em Malta no início do século 15. Segundo Abela (1647), os santos cultuados nas
igrejas e capelas maltesas anterior ao século 16 foram: Ágata, Agostinho, Bartolomeu, Brás,
Catarina, Domingos, Jorge, Tiago, João, Lourenço, Leonardo, Maria Madalena, Margarida,
Martin, Mateus, Nicolau, Paulo, Pedro, Felipe, Zacarias (os nomes dos santos representados
nos ícones estão em itálicos). A grande coincidência entre esta lista e os santos dos ícones da
igreja da Anunciação da Virgem mostra uma tradição refratária a mudanças, como pode se
esperar de uma população rural. Esta tradição é corroborada pela absoluta ausência dos santos
mais modernos das ordens mendicantes (dominicanos, franciscanos menores, carmelitas e
agostinianos), confirmadas pelo II Concílio de Lyon em 1274, cujas atividades iniciaram-se
na Itália em 1207, com grande desenvolvimento dos séculos 13 e 14.
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Como o estilo artístico dos ícones não segue a arte decorativa siciliana da ultima
metade do século 14 e início do século 15 (época em que a igreja da Anunciação foi
construída), parece que os ícones seguem algum protótipo do sul da Itália do final do século
11 e início do século 12 ou um protótipo maltês da segunda metade do século 12 ou início do
século 13. É este o período em que a evangelização do continente começou a ficar eficiente e
dar resultados. Os traços romanescos, vistos nos ícones, revelam a gradual incursão da
colonização latina que no século 14 iria suplantar a bizantina. A homogeneização imposta
pela igreja latina, portanto, já estava surtindo efeito.
Exceto a representação de Ágata, a absoluta presença de santos masculinos e o
destaque ao livro nas mãos de todos, inclusive nas mãos de Ágata, revelam que o poder e o
saber (FOUCAULT, 2007) se impõem num contexto de colonização. O ambiente social e
religioso em Malta nos séculos 12 e 13, no período subislâmico, era de uma população
muçulmana analfabeta, conquistada militarmente pelos normandos, oriunda da Sicília, que
estava tentando ganhar a vida num ambiente de escassos recursos agrícolas. Embora os ícones
não tenham nenhuma narrativa, o falogocentrismo e o logocentrismo exibidos pelos ícones
são a metonímia do poder do conquistador que impõe a sua religião e o seu saber a uma
comunidade pobre e sem instrução. As bênçãos são conferidas àqueles que se submetem ao
novo regime político e aderem à religião europeia. Se a hipótese pela qual os ícones atuais são
uma reprodução de ícones anteriores da igreja do século 13 é verdadeira, a perpetuação do
poder e do saber revela condições constantes de dominação pelo colonizador europeu.
Todavia, devido à continuação de um estilo artístico predominantemente bizantino, a
comunidade rural mostrou-se resistente às incursões culturais (inclusive religiosas) latinas
diante da tentativa (com sucesso no século 14) de homogeneizar as manifestações religiosas
ao regime latino.
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Figura 1. Igreja da Anunciação, Hal-
Millieri, Malta: São Nicolau.
Figure 2. Igreja da Anunciação, Hal-
Millieri, Malta: São Lourenço e São João
Evangelista
Figura 3. Igreja da Anunciação, Hal-
Millieri, Malta: Os dois ícones de São
Jorge.
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Figure 4. Santo Tomás de Aquino,
Trapani, Sicília.
Figura 5. Três ícones de santos,
Castelbuono, Sicília.
Figura 6. Dois santos lombardos, Basílica
de San Vincenzo a Galliano, Milão, Itália.
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Figura 7. Igreja da Anunciação, Hal-
Millieri, Malta: Ágata (?) e Brás.
Embaixo detalhe: Garinu ou Agacinu, o
nome do pintor (?).
Referências
ABELA, G-F. Della descrizzione di Malta. Malta 1647.
AGNELLO, G. Le Arti Figurative nella Sicilia Bizantina. Palermo: Istituto Siciliano di Studi Bizantini e Neoclassici Bruno Lavagnini, 1962. 375p.
BAUTIER-BRESC, G. The Paintings at Hal Millieri. In Hal Millieri: A Maltese Casale, its Churches and Paintings. Valletta: Midsea, 1976, p. 97-104.
BUHAGIAR, M. The Christianisation of Malta: Catacombs, Cult Centres and Churches in Malta to 1530. London: British Archeological Reports, 2007. 321p.
BUHAGIAR, M. The Iconography of the Maltese Islands 1400-1900. Valletta: Progress, 1988. 203p.
CARDUCCI, A. Sull’origine longobarda del nome Cataldo. Annali di Storia della Facoltà di Lettere e Filosofia. Lecce: Università degli Studi, 1980, p. 7-15.
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DALLI, C. Malta: The Medieval Millennium. Santa Venera: Midsea, 2006. 319p.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2007. 295p.
LUTTRELL, A. Hal Millieri: A Maltese Casale, its Churches and Paintings. Valletta: Midsea, 1976. 143p.