Peters,Edward - História Da Tortura

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História da Tortura Edward Peters Tradução de PEDRO SILVA RAMOS Círculo de Leitores Esta obra foi digitalizada e corrigida pelo Serviço de Leitura Especial da Biblioteca Minicipal de Viana do Castelo. Destina-se unicamente a pessoas com necessidades especiais e não tem fins comerciais. Contactos do Serviço de Leitura Especial: Tel: 258 840 010 E-mail: leituraespecial@cm-viana- castelo.pt © Edward Peters, 1985

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Peters,Edward - História Da Tortura

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Histria da Tortura

Edward PetersTraduo de

PEDRO SILVA RAMOS

Crculo de Leitores

Esta obra foi digitalizada e corrigida pelo Servio de Leitura Especial da Biblioteca Minicipal de Viana do Castelo. Destina-se unicamente a pessoas com necessidades especiais e no tem fins comerciais.

Contactos do Servio de Leitura Especial:

Tel: 258 840 010

E-mail: [email protected] Edward Peters, 1985

Licena editorial por cortesia de Editorial Teorema, Lda.

Ttulo original: Torture

Capa: Fragmento de A Cmara de Tortura, de Alessandro Magnasco, Museu de Belas-Artes de Budapeste

Impresso e encadernado para Crculo de Leitores por SIG - Sociedade Industrial Grfica, Lda. no ms de Setembro de 1996

Nmero de edio: 4326

Depsito legal nmero 102222/96

ISBN 972-42-1412-5

AGRADECIMENTOS

Os meus colegas de vrios departamentos acadmicos da Universidade da Pensilvnia e da Biblioteca Van Pelt prestaram-me um enorme auxlio na investigao e na redaco deste livro, assim como o professor James Muldoon da Universidade de Rutgers, em Camden, e o Dr. John T. Conroy, de West Hartford, no Connecticut. Exprimo a minha particular gratido a Alan Kors, Martin Wolfe, Jack Reece, Thomas Childers e David Ludden. Elliot Mossman deu-me uma considervel ajuda relativamente teoria jurdica sovitica, e Elaine Scarry fez-me distinguir entre definies morais e sentimentais de tortura durante um longo debate sobre o seu livro prestes a publicar, The Making and Unmaking of the World: The Body and Pain. A Seco de Intercmbio Bibliotecrio da Biblioteca Van Pelt facultou-me rpida e habilmente livros que, de outro modo, me teriam sido muito difceis de obter. Ms Joan Polanski transformou rapidamente um confuso original dactilografado, cheio de correes manuscritas, num texto claro e cuidado. Sem os seus servios, o livro teria demorado muito mais tempo a escrever. Se nas partes finais deste livro me aventurei a ultrapassar os meus habituais campos de investigao, fi-lo com a ajuda destes colegas e com o encorajamento de R. I. Moore e de Patrick Wormland, e agradeo ao primeiro por me ter convidado a escrev-lo numa altura em que nenhum de ns fazia a mais vaga ideia daquilo que este viria a ser depois de terminado.

Este livro dedicado queles seres humanos que trabalham no - ou passaram pelo - CRT, em Copenhaga, na Dinamarca, e memria de F. S. Cocks.

As indicaes completas das fontes referidas entre parntesis no texto encontram-se no ensaio bibliogrfico.

E. P.

INTRODUO:

A Tortura - Passado e Presente - e o Historiador

o que a tortura? Desde os juristas romanos dos sculos II e III at aos historiadores e advogados da actualidade, aqueles que mais se debruaram sobre esta questo obtiveram respostas extraordinariamente semelhantes. Assim, Ulpiano, jurista do sculo I1I, declarou:

Por quaestio [tortura] devemos entender o suplcio e o sofrimento do corpo com o objectivo de se descobrir a verdade.

Nem o simples interrogatrio nem a intimidao fcil se incluem correctamente neste edicto. Dado que quaestio se deve entender, portanto, como violncia e suplcio, so estas as circunstncias que determinam o seu significado.

No sculo XIII, o advogado romano Azo apresentou esta definio: A tortura a averiguao da verdade por meio do suplcio.

E, no sculo XVII, Bocer, advogado de direito civil, disse que: A tortura um interrogatrio feito por meio do suplcio do corpo, a respeito de um crime que se sabe que ocorreu, legitimamente ordenado por um juiz com a finalidade de se descobrir a verdade sobre o referido crime.

J no nosso sculo, o historiador jurdico John Langbein escreveu: Quando falamos de tortura judiciria, estamos a referir-nos ao emprego de coaco fsica por parte de funcionrios do estado tendo em vista a obteno de provas para aces judiciais ... Em assuntos de estado, a tortura tambm foi utilizada para a obteno de informaes em circunstncias no directamente relacionadas com aces judiciais.

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O artigo 1 da Declarao contra a Tortura adoptada pela Assembleia Geral das Naes Unidas em 9 de Dezembro de 1975 diz: Para aplicao desta Declarao, tortura significa todo o acto pelo qual dor ou sofrimento intensos, tanto fsicos como mentais, sejam intencionalmente infligidos a uma pessoa por um funcionrio pblico ou perante a instigao deste com a inteno de obter dela ou de uma terceira pessoa informaes ou uma confisso, de a punir por um acto que tenha cometido, ou de a intimidar a ela ou a outras pessoas. No inclui a dor ou o sofrimento exclusivamente resultantes de, inerentes a ou relacionados com sanes legais desde que respeitem as Normas Mnimas Legais para o Tratamento de Prisioneiros.

Finalmente, existe uma definio um pouco mais elaborada da autoria de outro historiador jurdico do sculo XX, John Heath:

Com o termo tortura refiro-me inflico de sofrimento fsico ou ameaa de o infligir imediatamente, desde que tal inflico ou ameaa tenham por fim obter, ou que tal inflico esteja relacionada com meios adoptados para obter, informaes ou provas legais e cujo motivo seja de interesse militar, civil ou eclesistico.

As trs primeiras definies aplicavam-se tortura como incidente judicial, primeiro no sistema civil romano e depois nos sistemas europeus at ao sculo XIX. A quarta, de um historiador jurdico contemporneo, uma definio da tortura durante esse longo perodo.

A quinta a definio diplomtica mais recente. A ltima pretende aplicar-se s circunstncias histricas, mas tendo em mente o recente reaparecimento da tortura e a preocupao que tal fenmeno gerou desde o fim da Segunda Guerra Mundial, criando uma definio aplicvel tanto ao presente como ao passado.

, contudo, provvel que as pessoas que utilizam o termo na segunda metade do sculo XX considerem estas definies demasiado limitadas. No ser a tortura simplesmente o sofrimento fsico ou mental deliberadamente infligido a um ser humano por outro ser humanos qualquer? Em muitos aspectos, o significado do termo no emprego vulgar da maior parte das lnguas ocidentais podia perfeitamente justificar tal pergunta. A partir do sculo XVII, a definio puramente jurdica de tortura foi sendo lentamente substituda por uma definio moral; a partir do sculo XIX, a definio moral de tortura

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foi largamente suplantada por uma definio sentimental, at que tortura passou finalmente a significar aquilo que cada um pretender, um termo moral e sentimental que designa a inflico de sofrimento, seja qual for a sua definio, a algum, com um determinado objectivo - ou sem objectivo algum.

A capacidade por parte dos seres humanos de infligirem sofrimento a outros seres humanos, em nome da lei, do estado, ou simplesmente para satisfao pessoal, algo to generalizado e persistente que escolher um dos seus aspectos para discusso (e, ainda por cima, discusso histrica) pode parecer injusto ou pretensioso. Contudo, apesar da afronta moral e sentimental que a palavra provoca nos finais do sculo XX, a sua definio mais completa e exacta uma definio jurdica ou, pelo menos, pblica. Todos os advogados e historiadores acima mencionados encontraram na tortura um elemento comum: o tormento infligido por uma autoridade pblica com fins ostensivamente pblicos. A histria semntica do termo tortura possui invariavelmente uma dimenso pblica, de um modo muito semelhante aos termos execuo e assassnio. Por analogia, poderia dizer-se que a tortura est para ofensas pessoais tais como a violao de propriedade, a agresso ou o assalto agravado na mesma relao em que uma execuo judiciria est para o assassnio. A tortura , portanto, algo que uma autoridade pblica leva a cabo ou perdoa. Desde Ulpiano a Heath, a sua dimenso pblica que distingue a tortura de outros tipos de coaco ou brutalidade. Parte do tema deste livro consistir numa descrio dos vrios tipos de significado que o termo tortura possui e procurar-se- relacionar estes significados com a realidade da tortura nos finais do sculo XX. Uma das funes menos conhecidas da injustia e pretensiosismo aparentes poder ser a sua insistncia em definies mais claras. Como meio de objectivar e tornar mais compreensveis alguns dos nossos termos e ideias mais importantes mas menos considerados, talvez meream um pouco de investimento cognitivo algumas anlises que, de outro modo, seriam injustas e pretensiosas.

Esta abordagem da tortura um pouco contrria ao esprito de diversas consideraes actuais. Uma recente compilao de ensaios publicados na srie Concilium: Religion in the Seventies intitulava-se The Death Penalty and Torture. Ambas as instituies eram discutidas pelos colaboradores luz das polticas de recentes prticas estatais e luz das preocupaes sobre o poder do estado moderno que a tortura tem sido geralmente discutida. Embora esta seja uma abordagem vlida, no a abordagem deste livro. Tentei individualizar o problema da tortura apenas para tratamento analtico, perfeitamente

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consciente de que iro ser negligenciadas algumas ideias e prticas muito intimamente relacionadas com ela. Tal como este livro no trata da pena de morte nem de outras formas de coaco estatal, no ir tratar de outras manifestaes de terror pblico; no h aqui qualquer palavra acerca das guerras religiosas ou do holocausto e muito poucas acerca das vrias inquisies. Ao isolar o fenmeno da tortura, tentei descrever a histria de uma nica prtica; o facto de no mencionar outras propositado, mas no reflecte indiferena perante elas. Escrevi a histria de um assunto que exige uma histria pormenorizada. Limitar o foco pode igualmente intensific-lo; e a tortura necessita de uma ateno o mais intensa possvel.

Tal como este livro no ir considerar a tortura em relao pena de morte, no ir tambm consider-la, excepto esporadicamente, em relao a formas agravadas de punio, quer se trate ou no da pena capital. A parte introdutria do ltimo captulo ocupar-se- da recente preocupao internacional com a tortura e com os tratamentos ou punies cruis, desumanos ou degradantes, incluindo a mutilao punitiva, mas a prtica dos legisladores modernos preocupados com os direitos humanos estabelece uma distino entre as duas coisas e este livro ir respeitar essa distino. verdade que se pode tomar uma posio moral relativamente tortura, pena de morte e a vrias outras formas de punio legal consideradas em conjunto e que se pode tomar igualmente uma posio sentimental. Contudo, a nossa preocupao apenas com a tortura. Embora este livro v considerar as relaes histricas entre procedimento judicial e juzo moral, f-lo em relao tortura e no queles aspectos de coaco pblica que lhe esto frequentemente associados.

Estas restries no foram adoptadas para servir unicamente a convenincia do autor. A tortura comeou como uma prtica jurdica e teve sempre na sua essncia o seu carcter pblico, quer como um incidente no procedimento judicial quer como uma prtica de funcionrios do estado margem do poder judicirio. Nos mundos judaico-cristo e islmico, o termo possui intermitentemetne uma dimenso moral e, a partir do sculo XVIII, passou a ter tambm uma dimenso sentimental. Assim, no sculo XX, os seus significados podem variar desde o emprego tcnico e jurdico (caso de diversos documentos de direito internacional) at ao sentimental (caso de muita linguagem popular, incluindo a jornalstica). Este livro ir fazer referncia histria destes diferentes significados, mas a tortura significar sempre um incidente pblico, por muito geral que possa ser a interpretao da palavra pblico.

Outros tipos de pessoas que utilizam o termo poderiam levantar

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outra objeco. Dever o moderno ressurgimento da tortura no sculo XX ser encarado como o ressurgimento de uma antiga tradio interrompida ou como o fruto de um tipo especial de estado moderno?

A abolio oficial da tortura no direito criminal acabou por se estender praticamente a toda a Europa durante o sculo XVIII e princpios do sculo XIX, at ao ponto de Vtor Hugo poder anunciar em 1874 que a tortura cessou de existir. No ser ento a tortura do sculo XX algo de novo, sem qualquer relao com a antiga histria judicial da tortura? Todos os historiadores e leitores de histria tm de fazer constantes distines entre aquilo que particular e descontnua e aquilo que geral e contnuo; cada tcnica adequada a fins diversos. Consideremos primeiro a histria num mbito mais lato.

Embora muitas sociedades antigas experimentassem a transio de sistemas jurdicos primitivos e domsticos para sistemas sofisticados e pblicos, nem todas chegaram a utilizar a tortura de um modo to distinto como o fizeram os Egpcios, os Persas, os Gregos e os Romanos. Algumas sociedades, especialmente a babilnica, a hindu e a hebraica, parecem ter desenvolvido um sistema de ordlios que nunca deu ocasio a que a tortura fosse introduzida. Estes consistiam em provas fsicas a que se sujeitava uma das partes litigantes, partindo-se do princpio de que o xito ou o insucesso dependiam da interveno divina. No Norte da Europa, antes do sculo XII, o primitivo direito germnico permitia tambm uma larga variedade de ordlios, mas no desenvolveu autonomamente uma doutrina de tortura; nem, ao que parece, as leis celtas o haviam feito anteriormente. Mais tarde, apesar da introduo da tortura nas prticas judiciais da Europa Ocidental aps o sculo XII, a Europa Oriental manteve-se fiel ao ordlio at ao incio da poca moderna.

Desta forma, a histria da tortura na Europa Ocidental pode ser reconstituda desde os Gregos, passando pelos Romanos e pela Idade Mdia, at s reformas jurdicas do sculo XVIII e abolio da tortura no processo penal judicial praticamente por toda a Europa Ocidental no primeiro quartel do sculo XIX. Retirada do direito penal ordinrio, a tortura foi, no entanto, restabelecida em muitas regies da Europa e nos seus imprios coloniais a partir dos finais do sculo XIX, e o seu curso foi grandemente acelerado por conceitos variveis de crime poltico durante o sculo XX. O testemunho mais recente indica que a tortura utilizada, formal ou informalmente, num em cada trs pases.

Uma tal histria pode parecer confusa a princpio, mas uma histria. A partir do sculo XIX, o crime poltico passou a ser concebido de um modo muito anlogo quele como o simples direito penal o

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fora anteriormente, e os funcionrios e os juristas dos estados do sculo XX que empregam ou permitem a tortura so atormentados por uma necessidade de confisses semelhante que perturbava os juristas da Idade Mdia ou do Antigo Regime quando confrontados com a necessidade processual ou tctica de uma confisso do ru.

Numerosas descries superficiais da histria da tortura aceitam simplesmente a ideia de que a tortura ocorre em ciclos de legalizao e de abolio; na verdade, uma tal opinio pressupe facilmente a existncia da tortura como algo com uma histria natural, tornando assim a histria da tortura num relato destes ciclos. Mas a noo de entidades abstractas que ocorrem ciclicamente no nos faz chegar a grandes concluses. Alm disso, sugere uma certa inevitabilidade de todo o processo que conduz implicitamente resignao perante algo comparvel a uma fora da natureza.

A histria da tortura pode ser de facto muito especfica. No , por exemplo, claro at que ponto que os Gregos ficaram a dever os seus mtodos de tortura aos Egpcios e aos Persas, pelo que possvel e plausvel comear por aquilo que conhecemos dos Gregos porque parte do seu direito parece ter realmente influenciado o de Roma, e o direito de Roma influenciado o da Europa medieval e do incio da poca moderna. A exploso de movimentos abolicionistas bem sucedidos durante o sculo XVIII e princpios do sculo XIX aboliu a tortura sobretudo como uma parte do processo penal, e esses movimentos abrangeram no s governantes e legislaturas, mas tambm a prpria classe jurdica, que continuou a agir de um modo liberal, ainda que se mantivesse frequentemente conservadora sob o ponto de vista social. Todavia, nos finais do sculo XIX, os juzes e advogados deixaram de ser os nicos a deter todo o poder jurdico do estado. Nessa altura, especialmente onde o poder dos agentes do estado escapava ao controlo e inspeco judiciais de rotina, e em reas que eram relativamente novas, tais como as informaes militares, a espionagem, o trabalho policial e a vigilncia poltica, desenvolveramse novos poderes de estado, particularmente naquelas reas em que os estados europeus foram sempre especialmente sensveis - as que tinham que ver com a proteco e segurana do prprio estado.

A partir do sculo XIII, os advogados europeus desenvolveram uma categoria do crime excepcional - o crimen exceptum - to perigoso para a sociedade e ofensivo a Deus que era concedida uma enorme liberdade sua aco judicial. Uma vez que a tortura fora abolida do direito penal ordinrio, a possibilidade de uma nova espcie de crimen exceptum permitiu a reintroduo da tortura para tratar de situaes extraordinrias. Grande parte da histria poltica 12 moderna consiste na diversidade de situaes extraordinrias que os governos do sculo XX imaginaram enfrentar e nas medidas extraordinrias que tomaram para se proteger. Paradoxalmente, numa poca de enorme poder estatal, de capacidade de mobilizar recursos e de posse de meios de coaco praticamente infinitos, grande parte da poltica estatal tem-se baseado no conceito de extrema vulnerabilidade do estado perante os inimigos, tanto externos como internos. Esta inquietante combinao de poder imenso e infinita vulnerabilidade tornou muitos estados do sculo XX, se no neurticos, ento pelo menos extremamente ambguos na sua abordagem de assuntos tais como os direitos do homem e na sua prontido (os estados costumam chamarlhe necessidade) em utilizar processos com os quais, de outro modo, nunca sonhariam. neste sentido que a tortura pode considerar-se como tendo uma histria, e a sua histria faz parte do processo jurdico e tambm das mais recentes prticas governamentais do poder, quer oficial quer oficiosamente. O objectivo de uma histria alargada da tortura realar a sua dimenso pblica e permitir que o leitor veja no s o sculo XX num contexto mais vasto, mas tambm a histria mais antiga da Europa de um ponto de vista pouco usual.

Concentrando-nos no carcter pblico da tortura - quer no estrito processo jurdico quer nas mos de agentes subjurdicos ou parajurdicas - talvez possamos considerar a tortura do sculo XX j no de uma forma simplista, como uma perturbao da personalidade, uma brutalidade tnica ou racial, um primitivismo residual ou a secularizao de teorias eclesisticas de coaco, mas como um incidente prprio de algumas formas da vida pblica do sculo XX, j no como no passado, restringido ao processo judicial penal convencional, mas ocorrendo noutras reas subordinadas autoridade estatal menos controladas do que o processo judicial, menos vigiadas, mas igualmente essenciais para a noo que o estado tem de ordem.

Este livro tratar da dimenso histrica daquilo a que Ulpiano, Bocer, Langbein e Heath, implcita ou explicitamente, chamam tortura judiciria, mas no utilizar esse adjectivo. Demonstrar, pelo contrrio, que a tortura judiciria a nica espcie de tortura, seja ela aplicada por um agente judicirio oficial ou por outros agentes do estado. Demonstrar tambm que outros actos sentimentalmente considerados tortura deviam ser designados de outro modo. A justaposio de termos familiares de uma rea de significado para outra com o fim de um efeito dramtico um artifcio de retrica e no de anlise histrica ou social. E a entropia semntica no clarifica a sua interpretao. Embora eu no tenha iluses quanto capacidade de um livro poder efectuar uma revoluo semntica, espero sinceramente

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que a tese dos captulos que se seguem defenda o mais possvel a exactido verbal, especialmente em questes to prementes como a que est a ser considerada. A ofensa moral e a compaixo no necessitam interpretao histrica, mas a interpretao histrica pode ajudar a defini-las. E ambas necessitam ser definidas.

E comeamos, desta forma, pela histria. O primeiro captulo descreve o aparecimento da tortura na cultura ocidental na Grcia e em Roma; o segundo trata da longa poca da tortura no primitivo processo jurdico europeu at ao fim do sculo XVIII. O captulo 3 analisa a abolio oficial da tortura e o aparecimento de uma dimenso moral do termo nas polmicas dos reformadores do Iluminismo; o captulo 4 investiga as circunstncias em que a tortura reapareceu nos sculos XIX e XX, tal como dizia William Blackstone, jurista ingls do sculo XVIII, como um instrumento do estado e no da lei (Commentaries on the Laws of England, 4 vols, Oxford, 1765-9, IV :321). O captulo final considera o passado recente e a actualidade, desde a Declarao dos Direitos do Homem das Naes Unidas, em 1948, at publicao do relatrio da Amnistia Internacional, Torture in the Eighties, em Maro de 1984.

Para efeitos de exactido e referncia, mantive na lngua original muitas palavras e frases, mas apresentei sistematicamente equivalentes ingleses. Dado que um dos objectivos deste livro indicar as diferenas entre um vocabulrio tcnico-profissional, como o caso do vocabulrio jurdico, e vocabulrios morais e sentimentais mais alargados, a exactido verbal mantm-se importante ao longo de todo o trabalho, e isto inclui a exactido na descrio dos frequentes eufemismos deliberadamente enganadores tantas vezes utilizados para designar a tortura no sculo XX.

Alguns estudos recentes sobre a tortura no sculo XX referem aspectos acidentais da sua histria na Europa primitiva, mas porque estes so vagos e parecem ocorrer em circunstncias diferentes das da tortura no sculo XX, tais consideraes histricas so muitas vezes demasiado breves, demasiado superficiais, ou mesmo erradas. As consideraes mais fidedignas, as de John Langbein, Torture and the Law of Proof (Chicago, 1977), e de Piero Fiorelli, La Tortura Giudiziaria nel Diritto Comune (Milo, 1953-4), conseguem muita da sua eficcia devido ao seu pormenor especfico e tcnico. No seu excelente estudo, Langbein refere este aspecto do seu trabalho. E, em seguida, observa que deixei a outros a tarefa de deduzir as implicaes na histria poltica, administrativa e intelectual europeia. O presente livro uma tentativa de retomar a histria da tortura nesse momento. Se acaso for bem sucedido, isso ficar-se- a dever em grande parte14

ao trabalho de estudiosos como Langbein e Fiorelli, assim como aos colegas referidos nos agradecimentos.

Os estudiosos que tm de escrever sem notas de rodap so como operrios que tm de trabalhar sem o material necessrio. O ensaio bibliogrfico no final deste livro rene indicaes do mais til saber e um conjunto essencial de referncias a passos citados no texto. Embora haja poucas referncias individuais, todos os passos citados nos captulos que se seguem podero ser encontrados numa obra indicada no prprio texto ou na bibliografia. Inclu um considervel nmero de referncias, muitas delas traduzidas para o ingls, porque constituem uma importante prova documental e crtica que no deveria ser totalmente parafraseada.

Dois dos principais temas deste livro so o carcter pblico da tortura tanto nas suas formas primitivas como nas mais recentes e as diferenas entre as suas concepes jurdicas, morais e sentimentais em diferentes perodos da sua histria. Existe um terceiro: o lugar da prpria histria jurdica num tal relato. extraordinrio que, salvo algumas excepes surpreendentes, a histria jurdica seja o gnero de histria menos integrado noutros gneros e, por conseguinte, geralmente o menos conhecido. No entanto, na histria da tortura, crucial entender certos aspectos tcnicos processuais relativos antiga histria da tortura como um incidente no direito penal europeu, e igualmente importante compreender o lugar do direito nos estados modernos que deliberada e filosoficamente subordinam o direito a outros interesses e instituies pblicas. Os dois ltimos captulos deste livro retomam as implicaes deste tema, mas, logo partida, conveniente no se considerar o direito nem como uma instituio independente de beneficncia nem, de um modo estruturalista-reducionista, simplesmente como mais um instrumento de uma classe dirigente. E. P. Thompson, num destes surpreendentes estudos, Whigs and Hunters (Nova Iorque, 1979, p. 266), faz uma observao que subscrevo totalmente: Existe uma diferena entre o poder arbitrrio e a norma jurdica. Devamos revelar as hipocrisias e as injustias que podem estar dissimuladas atrs desta norma. Mas a prpria norma jurdica, a imposio de restries efectivas ao poder e a proteco de cidados contra todas as exigncias abusivas do poder, parece-me um incondicional benefcio humano. Negar ou minimizar este benefcio , neste perigoso sculo em que os meios e as ambies do poder continuam a aumentar, um terrvel erro de abstraco intelectual. Mais do que isso, um

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erro que nos encoraja a abandonar a luta contra leis perversas e medidas tomadas contra uma classe e a depor as armas perante o poder. deitar fora toda uma herana de luta pela justia, e dentro das normas da justia, cuja continuidade nunca pode ser quebrada sem colocar os homens e as mulheres num perigo imediato.

Neste sculo extremamente perigoso, qualquer nova perspectiva sobre os seus principais instrumentos, at mesmo uma perspectiva histrica, pode no ser totalmente desprovida de interesse - ou utilidade.

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UM ASSUNTO DELICADO E PERIGOSO

o aparecimento da tortura no direito grego

As pessoas do sculo XX, ainda que possam reconhecer facilmente a existncia de diferenas de privilgios ou de situaes em instituies que afirmam agir democrtica e imparcialmente, sabem muitas vezes pouco a respeito das sociedades - ou das pocas mais antigas da nossa histria - em que o privilgio e o estatuto eram os nicos elementos que determinavam a identidade social, ou a respeito dos processos que transformaram as primitivas sociedades europeias de comunidades baseadas nas diferenas de estatuto em comunidades baseadas nos direitos comuns. Todavia, unicamente quanto histria jurdica, estes processos foram fundamentais para o aparecimento da prpria ideia de direito e para o papel do direito e suas repercusses na histria social, cultural e poltica desde ento.

Assim, tendo os Gregos logrado inventar a ideia de um direito abstracto (nomos) e os Romanos inventado posteriormente a primeira cincia jurdica, foi introduzido um elemento inteiramente novo na histria das relaes sociais humanas. Tanto os cidados como os historiadores tm discutido desde ento a sua importncia e caractersticas. As circunstncias individuais do processo jurdico - no s a tortura, mas tambm o conceito de prova, o carcter das testemunhas e as funes dos advogados e magistrados - surgiram desta forma dos primeiros costumes desarticulados, em ntima harmonia com as necessidades das novas culturas, mas orientando tambm essas culturas em direces distintas. neste contexto que devemos procurar a origem da tortura como um fenmeno distinto.

No incio da histria da tortura entre os primitivos Gregos, encontramos, pela primeira vez na histria ocidental, a transio de um sistema jurdico arcaico e essencialmente comunal para um sistema 17 complexo no qual os problemas da prova e da distino entre homem livre e escravo so particularmente impressionantes. O problema da prova surgira do costume grego arcaico, em que o direito consistia na luta entre dois litigantes que empregavam o seu esforo pessoal numa competio, um agon, rodeados pela famlia, amigos e criados, guiados apenas por themis, costume, e epikeia, comportamento adequado. Themis e epikeia, as regras das lutas jurdicas particulares, comearam por ser pronunciadas por rbitros voluntrios, cujas decises a favor de uma ou de outra parte se chamavam dakai, declaraes. Com o decorrer do tempo, estas foram-se reunindo num conjunto aceite de pareceres at que a percepo popular da sua qualidade moral abstracta fez com que o termo dike passasse a significar a prpria Justia. Estas primitivas lutas jurdicas faziam provavelmente pouco uso da prova, do mesmo modo que reflectiam pouca ou nenhuma noo de crime como algo distinto da ofensa pessoal.

O seu resultado dependia mais da posio social dos litigantes e da opinio dos membros mais importantes da comunidade. A principal ofensa pessoal era o dano (delito de natureza civil contra uma pessoa, propriedade ou reputao) e no o crime, e a ambio da parte ofendida era que essa ofensa fosse confirmada e reparada.

A transformao da sociedade grega entre os sculos VIII e V a. C. inclui a substituio da contenda, ou agon, pelo julgamento. O poeta Hesodo, ele prprio um litigante melindrado, argumentava que, para bem da justia, as leis deviam ser escritas, os critrios de deciso claramente definidos e as causas mais frequentes de desacordo rodeadas de testemunhas que mais tarde atestassem a verdade. A importncia da associao numa polis, uma cidade-estado, era que colocava cada cidado num contexto jurdico muito mais vasto em que a lei era abstrada da primitiva teia de acontecimentos, relaes e experincias particulares e tornada autnoma. A lei no era j a consequncia de uma srie de rixas familiares. A lei da cidade principiou a substituir as leis da famlia ao mesmo tempo que a tica privada era conceptualmente separada do comportamento pblico. A lei escrita surgiu quase simultaneamente com as primeiras cidades-estado reconhecveis e definiu a conduta e caracterizou aqueles que tinham diferentes acessos a ela.

Por volta do sculo VI a. C., os cidados livres das cidades-estado gregas sujeitavam-se de bom grado a muitas restries dos seus actos pessoais que teriam ofendido os guerreiros aristocrticos de Homero.

Mas sujeitavam-se de bom grado porque conheciam as leis, respeitavam aqueles que as aplicavam e aceitavam que at o processo judicial era de um modo geral mais benfico do que coercivo para aqueles que eram livres - e cidados. Aqueles que no possuam uma

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reputao averiguvel nem condies de cidadania - estrangeiros, escravos, aqueles que tinham ocupaes indignas ou aqueles cuja desonra (atimia) era publicamente reconhecida - no possuam direitos, nem o direito de no serem coagidos nem o direito de pleitear.

Conceitos de reputao e de categoria estratificam assim a sociedade urbana grega. No sculo IV a. C., Aristteles resumiu o desenvolvimento que observou ao longo dos dois sculos anteriores em matria de proteco jurdica. Observou que, nas reformas de Slon no incio do sculo VI a. C., nenhum cidado podia ser feito escravo por dvidas pessoais; certos actos podiam ser devidamente denunciados pelo pblico; os cidados podiam recorrer das decises de magistrados junto dos tribunais populares. Estas proteces reforaram grandemente a condio de cidadania. Realavam o excepcional acesso do cidado justia, a importncia do seu conhecimento dela e das suas normas, a sua obrigao de advogar pessoalmente a sua causa e a necessria experincia de ele prprio se sentar na assembleia como jurado. Um tal cidado possua evidentemente reputao (time) e havia limites para o grau de coaco a que podia ser sujeito, assim como para a natureza da prova que podia ser utilizada contra ele, ou por ele contra outro cidado livre.

A reputao do cidado conferia grande importncia ao seu juramento. Pode dizer-se que a prpria doutrina da prova foi definida pela importncia do testemunho de um cidado. Por conseguinte, quem no possusse tal condio de cidadania no podia apresentar qualquer prova do modo como os Gregos entendiam esse termo.

A proteco dada pelo processo jurdico ao cidado livre e a acentuada diferenciao deste relativamente a outras classes de pessoas muito menos privilegiadas levou os Gregos concluso de que aqueles que no possuam privilgios jurdicos tinham de ser compelidos a uma situao especial em que o seu testemunho se tornasse aceitvel.

O testemunho deste passou a ser igual ao dos cidados por meio da coaco fsica. As origens desta noo so obscuras, embora possam encontrar-se na autoridade de um chefe de famlia sobre escravos e criados. A princpio, portanto, a importncia da reputao de um cidado criou uma classificao de prova que fazia a distino entre uma espcie natural de prova que podia ser facilmente obtida por meio da palavra de um cidado e uma espcie forada de prova que tinha de ser extrada de todos os outros pela violncia.

Esta tese da reputao do cidado pode ser exemplificada com um caso que teve lugar em 415 a. C. Nesse ano foram profanadas diversas esttuas do deus Hermes, ofendendo a opinio popular ateniense e lanando um grande nmero de acusaes contra cidados. Um dos

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cidados acusados, Andocides, acusou os seus prprios acusadores de quererem revogar o decreto votado durante o arcontado de Skamandrios e torturar aqueles que Diclides acusou [de profanar Herrnes].

Embora nada mais se saiba do decreto de Skamandrios, este parece ter servido de alvar de iseno do cidado relativamente a incapacidades jurdicas gerais, em particular a tortura, suficientemente respeitado para ser mencionado num caso em que existia uma grande presso para se descobrirem os culpados e, evidentemente, uma sugesto explcita de que devia ser revogada a iseno de alguns cidados relativamente tortura.

No dcimo quinto captulo da sua Retrica, Aristteles apresenta uma lista de cinco provas extrnsecas que podem ser utilizadas num processo jurdico, alm das figuras de retrica que tambm se podem utilizar: as leis, as testemunhas, os costumes, a tortura e os juramentos. O termo que Aristteles utiliza para tortura, que tambm o termo corrente grego, basanos, que est filologicamente associado ideia de passar qualquer coisa metlica por uma pedra-de-toque de modo a determinar-se o seu teor. Tucdides utiliza uma palavra muito semelhante para descrever o trabalho do historiador: o historiador deve trabalhar com um esprito crtico e no acumular simplesmente todas as espcies de registos sem um princpio crtico, devendo, pelo contrrio, analis-los com uma pedra-de-toque para se certificar da sua veracidade; deve informar-se criticamente a seu respeito. Julgando a partir da prova em que posso confiar aps a mais cuidadosa investigao ... (A Guerra do Peloponeso, I.1) a descrio formulista de Tucdides da tarefa do historiador. Basanos, tortura, implicava evidentemente uma espcie de investigao crtica necessria, mas no era o gnero de investigao que pudesse utilizar-se com um homem livre. Posto em termos ligeiramente diferentes, o basanos de Aristteles um gnero de investigao cujos resultados podem servir de prova num subprocesso dentro de um processo jurdico mais amplo que essencialmente contraditrio, mas cujos cidados-litigantes podem no ser sujeitos ao subprocesso de basanos.

As nossas fontes acerca da histria da prova e do processo na Grcia so unnimes quanto questo de quem que pode ser sujeito a basanos: o escravo e, em determinadas circunstncias, o estrangeiro. Os Gregos, contudo, no deixaram quaisquer obras sobre o processo civil ou penal, e as nossas principais fontes acerca da tortura de escravos so os oradores jurdicos e os dramaturgos cmicos. Os primeiros, numa srie de discursos escritos para serem proferidos pelos seus clientes ou para servirem de modelos de retrica legal, e os segundos, em dramas que focam a vida quotidiana, no so as fontes20

ideais nem do advogado nem do historiador e tem havido muita controvrsia entre estudiosos quanto s atitudes atenienses relativamente prova obtida atravs da tortura de escravos e frequncia com que a utilizavam. Uma clebre compilao de discursos de Antfono, orador do sculo V a. C., ilustra concisamente a opinio geral; um corego (que era responsvel pelo dever cvico de pagar ao coro nos festivais religiosos e, mais tarde, tambm nos festivais de teatro), acusado de assassinar um dos rapazes que estava a fazer uma audio para um lugar no coro, descreve os termos da investigao:

[O meu acusador] pode apresentar quantas testemunhas quiser, interrog-las, interrogar testemunhas que sejam homens livres, como acontece com as investigaes, de homens livres, e que, por uma questo de dignidade e de justia, estejam naturalmente dispostos a dizer a verdade a respeito dos factos.

No que se refere aos escravos, pode interrog-los se as declaraes deles lhe parecerem de confiana. Se as declaraes deles no bastarem, estou disposto a entregar-lhe todos os meus escravos para que possa mand-los torturar. Se exigir o testemunho de escravos que no me pertenam, comprometo-me, aps obter a autorizao do dono deles, a entregar-lhos tambm para que possa igualmente tortur-los do modo que lhe aprouver.

Existem diversos problemas jurdicos relativamente a este excerto, sendo um deles que o corego parece estar a referir-se a uma investigao informal destinada a evitar um julgamento. Seja como for, o direito de um cidado exigir, num processo penal (ou at civil), a tortura de escravos parece ter sido aceite de um modo geral, quer numa troca informal de investigaes quer num julgamento propriamente dito. Noutro discurso, Antfono apresenta uma razo para o costume de se torturarem escravos: um escravo perjurado no pode sofrer as sanes de um homem livre perjurado, isto no pode ser declarado juridicamente infame (atimos), com as concomitantes incapacidades dessa condio, nem pode ser multado. Que os escravos podiam ser torturados tambm evidente atravs do testemunho de alguns papiros do Egipto grego, que referem que, se os juzes no conseguirem formar uma opinio depois de todas as provas terem sido apresentadas, podem aplicar tortura corporal aos escravos aps estes terem prestado o seu testemunho na presena de ambas as partes em questo. Que esta era uma prtica grega corrente demonstrado pelo facto de o imperador romano Adriano a mencionar num rescrito (Digesto 48.8.1.1) claramente baseado noutro costume grego.

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Os mtodos de tortura so desenvoltamente descritos numa cena de As Rs, de Aristfanes. Dionsio, tendo trocado de lugar e de vesturio com o seu escravo Xanthias, esqueceu-se do direito que um patro tem de provar a sua inocncia oferecendo os seus escravos para que sejam torturados. Pouco depois de terem trocado de lugar, Xanthias acusado de roubo e arranja um estratagema; diz ao acusador:

Vou fazer-te uma proposta honesta;

Prende o meu escravo e tortura-o e, se obtiveres a tua prova, mata-me.

A iacos. Que espcie de tortura?

Xanthias. Aquela que te apetecer.

Amarra-o a um escadote, pendura-o ou chicoteia-o.

Pe-lhe pedras em cima, deita-lhe vinagre no nariz.

Aoita-o com cerdas: mas no com alhos-porros ou cebolas.

Mas tambm possvel que este discurso reflicta um considervel grau de exagero e que os prprios pormenores do panta tropon de Xanthias sugiram que uma tal diversidade de torturas tenha sido talvez mais enciclopdica no sentido cmico do que uma descrio da prtica real.

tambm necessrio salientar que o poder que os patres tinham para castigar corporalmente os escravos era de um modo geral aceite pelos Gregos, sendo os escravos por vezes designados por andrapoda - gado com ps humanos - por oposio a tetrapoda - gado quadrpede. Ainda que as atitudes dos Gregos em relao ao tratamento dos escravos se modificassem entre os sculos VI e III a. C., um tal poder por parte dos seus donos sugere que a tortura judiciria de escravos no estaria longe de ser permitida, visto que estes eram habitualmente sujeitos mais cruel coaco fsica mesmo fora da esfera da lei.

Embora pelo menos um intelectual tenha afirmado que a tortura dos escravos era a sobrevivncia de um tipo de ordlio que s mais tarde seria introduzido nas regras atenienses da prova, as nossas fontes mais antigas, os oradores gregos do sculo V a. C., referem-se ao interrogatrio dos escravos acompanhado de tortura como se este fosse um lugar-comum. Um exemplo clebre desta literatura o seguinte passo do orador Isaios:

Quer pessoal quer oficialmente, vs considerais a tortura como a prova mais segura. Sempre que aparecem homens livres e escravos como testemunhas e necessrio que se descubra a

22 verdade do caso, no utilizais o testemunho dos homens livres, mas procurais apurar a verdade dos factos por intermdio da tortura dos escravos. E isto natural, homens do jri, pois sabeis que algumas das testemunhas apareceram para prestar declaraes falsas, mas nunca se provou que algum dos escravos prestasse declaraes falsas em consequncia da tortura.

Tal afirmao implica uma opinio ateniense sobre a eficcia da tortura que contrasta profundamente com outros aspectos da cultura de Atenas. Na verdade, esta e afirmaes semelhantes de outros oradores tm sido rejeitadas como se tratando de fico, principalmente porque tambm no existe nenhuma prova no direito ateniense quanto generalizao ou mesmo ao hbito de se torturarem escravos. Os mesmos oradores em cujo testemunho a respeito da tortura de escravos somos forados a confiar sugerem ainda que as ameaas de torturar escravos faziam parte da exibio retrica do tribunal e que alguns oradores podiam tambm apresentar argumentos perfeitamente plausveis contra a credibilidade do testemunho de escravos. Em resumo, os sculos V e IV a. C. fornecem algumas provas ambguas de que a tortura judiciria de escravos era teoricamente aceite. Mas muito poucas provas quer de que fossem torturados grandes nmeros de escravos quer de que os Atenienses valorizassem muito tal testemunho.Contudo, o direito grego tinha duas facetas: por um lado, foi-se desenvolvendo lentamente um cdigo civil possuindo as suas prprias normas e procedimentos; por outro, a lei corria muitas vezes o risco de ser explorada por razes polticas e existem muito mais provas de que a tortura devia ser muito mais frequente nos processos polticos do que nas habituais aces civis ou criminais.

Aps a derrota de Atenas em Siracusa em 413 a. C., os Siracusanos condenaram morte o chefe ateniense Ncias porque, segundo diz Tucdides, certos siracusanos ... tiveram medo ... que, havendo alguma desconfiana da culpa deles, este pudesse ser mandado torturar e causar-lhes problemas naquele momento de prosperidade (A Guerra do Peloponeso, VII.86). A possibilidade de Ncias ter sido torturado pelos Lacedemnios parece uma esperana justificada dos Siracusanos, talvez porque o interrogatrio acompanhado de tortura em circunstncias atenuantes de batalha ou de captura por uma fora inimiga no fazia parte do direito habitual dos Gregos e proporcionava maiores oportunidades de tortura e de sanes mais severas.

O carcter excepcional da vida poltica, quer nas mos do inimigo23

quer nas dos adversrios polticos dentro do pas, sugere que, quaisquer que fossem as circunstncias da tortura de escravos, a tortura de homens livres revelava-se invulgarmente difcil, mesmo num perodo de agitao social como aquele em que ocorrera a profanao de Hermes. Mas o receio dos Siracusanos quanto ao possvel testemunho incriminatrio de Ncias no era infundado na atmosfera poltica do sculo V a. C. Em 411 foi assassinado Frinicus, um dos membros mais importantes da oligarquia do Conselho dos Quatrocentos de Atenas, e, embora o assassino, um soldado, tivesse fugido, foi capturado um cmplice e, como diz Tucdides (A Guerra do Peloponeso, VIII.92), foi torturado por ordem do Conselho dos Quatrocentos, ainda que revelasse muito poucas informaes com a tortura. Tal tortura irregular de homens livres (embora a vtima do Conselho dos Quatrocentos no fosse um ateniense, mas sim um argivo) parece ter sido rara na Grcia, tendo talvez o caso mais conhecido ocorrido um sculo antes com a tortura de Aristogton, em 514, por ter tomado parte no assassnio de Pisstrato Hiparco.

A tortura no direito romano

Dado que o direito romano, modelado por algumas influncias gregas, constituiu o mais importante cdigo de jurisprudncia erudita conhecida pela tradio ocidental, a sua doutrina da tortura influenciou profundamente os dois ressurgimentos da tortura experimentados pelo mundo ocidental - os dos sculos XIII e XX.

Em resumo, no primitivo direito romano, tal como no direito grego, s os escravos podiam ser torturados e apenas quando eram acusados de um crime. Mais tarde passaram a poder ser torturados como testemunhas, embora com severas restries. A princpio, apenas uma acusao criminal contra um escravo podia exigir o testemunho de escravos, mas, por volta do sculo II a. C., os escravos podiam ser igualmente torturados em casos pecunirios. Os homens livres, inicialmente salvaguardados da tortura (e das formas de pena capital reservadas aos escravos), passaram a ficar sujeitos a ela em caso de traio durante o Imprio e, mais tarde, num espectro cada vez mais largo de casos determinados por ordem imperial. A diviso da sociedade romana nas classes de honestiores e humiliores a partir do sculo II a. C. fez com que a classe dos humiliores ficasse sujeita aos processos de interrogatrio e de sano outrora aplicveis apenas aos

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escravos. E at os honestiores podiam ser torturados em casos de traio e de outros crimes especificados na qualidade de arguidos e de testemunhas.

Tal como na Grcia, os romanos donos de escravos tinham, durante a Repblica, todo o direito de castigar e torturar os seus escravos quando suspeitavam que estes os tinham ofendido dentro da sua prpria propriedade. Esta prerrogativa no foi abolida do direito romano seno em 240 d. C., por um rescrito do imperador Gordiano (Code 9.41.6). No seu discurso Pro Cluentio, Ccero relata um caso em que Sassia, sogra de Cluentius Avitus, mandou torturar um dos seus escravos na sua prpria casa. O escravo confessou, foi torturado uma segunda vez e, em seguida, foi morto, argumenta Ccero, porque Sassia receava que ele pudesse retractar-se do seu testemunho obtido por intermdio da tortura. Este tratamento de escravos parece ter sido comum em Roma e levou o grande historiador Theodor Mommsen a afirmar que a disciplina domstica romana foi a base do posterior processo penal romano no direito civil e penal, opinio esta muito aceitvel.

Dado que o direito romano fez parte do padro da tortura no posterior direito europeu at ao sculo XIX, devem ser tecidas aqui algumas consideraes a respeito do seu carcter e pormenores. No existe melhor ponto de partida do que a tese da domesticidade de Mommsen.

Em qualquer cultura, a passagem do direito de uma luta entre indivduos e famlias para um julgamento pblico sempre uma questo complexa. Grande parte do processo judicial da Repblica Romana apenas se pode interpretar do ponto de vista da justia privada. Da rixa, incluindo a rixa com derramamento de sangue, e da vingana pessoal, o passo seguinte conduziu facilmente arbitragem voluntria por um terceiro, a arbitragem voluntria ou comunal conduziu arbitragem imposta habitualmente pelo estado nas legis actiones (modelos de aco judicial), depois a um processo formal mais alargado e, por fim, ao processo cognitio extra ordinem, em que o estado controlava totalmente as aces judiciais. Como afirmou Alan Watson (The Law of the Ancient Romans, Dallas, 1970, p. 10), algumas destas modificaes ocorreram muito cedo entre os Romanos. Na cognitio extra ordinem, as partes em litgio deixam de controlar o processo e o simples cidado que desempenha as funes de rbitro substitudo por um funcionrio pblico nomeado pelo imperador ou por um funcionrio com um alto cargo na administrao imperial. Durante esta transio, o poder do estado aumentou relativamente ao seu papel inicial de represso da vingana e de organizao da arbitragem 25

nas legis actiones. Alm disso, certas aces passaram a ser consideradas crimina, actos que punham em perigo a segurana da sociedade e que ameaavam a perda da pax deorum, a benevolncia pacfica dos deuses, e estes conflitos distinguiam-se de disputas puramente privadas conhecidas por iudicia privata.

Este breve resumo mostra as divises geralmente reconhecidas da histria jurdica romana: o perodo do direito antigo (at ao sculo III a. C.); o perodo clssico (do sculo II a. C. at ao incio do sculo III d. C.); e o direito dos finais do Imprio (do sculo III d. C. at ao sculo VI d. C.). Os historiadores do direito romano, ao contrrio dos do direito grego, chegam a considerar o primitivo processo jurdico romano mais como um processo colectivo do que exclusivamente de iniciativa pessoal; a opinio da comunidade era sempre ouvida antecipada e insistentemente ao longo de um litgio, quer na pessoa de um rbitro quer na de um magistrado pblico.

Afirmou-se que uma das grandes foras que fizeram passar o direito romano do seu estado primitivo e ritualista para um estado racionalista e secular foi a influncia do pensamento grego a partir do sculo V a. C. Durante este longo e moroso processo, o juramento e o depoimento das testemunhas adquiriu uma maior aceitao, o mesmo acontecendo ao carcter formal das acusaes e ao seu mtodo de arbitragem. O processo formal representava uma maior sofisticao na classificao e anlise das provas, especialmente das provas documentais. O posterior aperfeioamento da primitiva cognitio extra ordinem fez dela a forma normal do julgamento romano, totalmente conduzido por um nico magistrado que, no pertencendo geralmente classe mais elevada da sociedade romana, tinha um conhecimento profissional de assuntos jurdicos. No sistema do antigo direito clssico, era rigorosamente respeitado o princpio da inviolabilidade do cidado nascido livre. Theodor Mommsen salientou que nunca na histria da Repblica existiu qualquer indcio de que esse princpio tivesse sido violado. At os escravos romanos que no pertenciam a uma casa parecem ter sido vulnerveis tortura apenas em processos de causa-crime e no, como os seus congneres da Grcia, indiscriminadamente em processos civis. No seu De partitione oratoria (34.117-8), escrito por volta de 45 a. C., Ccero debateu a abordagem feita pelo advogado s provas obtidas por meio da tortura:

Se o interrogatrio de testemunhas acompanhado de tortura ou a necessidade de fazer tal interrogatrio for susceptvel de ajudar o processo, deve primeiro defender-se essa instituio e falar da eficcia da dor e da opinio dos nossos

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antepassados, que a teriam indubitavelmente rejeitado se no tivessem concordado com ela; e das instituies dos Atenienses e dos Rdios, povos muito cultos, entre os quais at os homens livres e os cidados - por muito chocante que isto parea so mandados torturar; e tambm das instituies dos nossos compatriotas, pessoas de extrema sabedoria, que embora no permitissem que os escravos fossem torturados para deporem contra os seus donos, aprovaram todavia o emprego da tortura em casos de incesto e no caso de conspirao que ocorreu durante o meu consulado. Tambm a disputa vulgarmente utilizada para invalidar as provas obtidas por intermdio da tortura dever ser considerada ridcula e declarada visionria e pueril. Deve, pois, confiar-se na profundidade e imparcialidade da investigao e analisar as declaraes feitas sob tortura por meio do raciocnio e da deduo. So, portanto, mais ou menos estas as partes constituintes de uma causa para a acusao.

Ccero parece no ter razo, pelo menos quanto ao direito tradicional ateniense, e estranha a sua afirmao quanto ao caso dos Rdios. A sua referncia tortura no caso de conspirao de Catilina a nica prova de que a tortura poder ter sido utilizada ou tida em considerao em 64 a. C., mas a proibio da tortura de escravos para deporem contra o seu prprio dono de modo geral reconhecida como um princpio jurdico romano, embora talvez mais em consequncia de um decreto senatorial do que do costume imemorial. Ccero est aqui obviamente a defender o uso judicial da tortura e apresenta apenas argumentos a seu favor - ou melhor, descreve os tipos de argumentos que um advogado deveria empregar para a tornar digna de crdito se necessitasse solicitar a sua aplicao. Os seus argumentos no so diferentes daqueles que Aristteles apresentou como fazendo parte do repertrio de um orador. Aristteles explicitamente referido na Institutio oratoria (5.4.1) de Quintiliano, no sculo II d. C.:

Uma situao semelhante surge no caso dos testemunhos obtidos por meio da tortura: uns consideram a tortura um mtodo infalvel para se descobrir a verdade, enquanto que outros alegam que muitas vezes tem tambm como consequncia confisses falsas, porque a capacidade de resistncia de alguns f-los mentir com facilidade, enquanto que a fraqueza de outros o torna uma necessidade. Quase no me vale 27

a pena falar mais a este respeito, pois os discursos dos oradores antigos e modernos esto repletos de referncias a este tema. Certos casos particulares podem contudo implicar consideraes especiais a este respeito. Pois se o ponto em questo se a tortura dever ser aplicada, a diferena reside precisamente em quem que a exige ou prope, quem que as provas que assim se procuram obter iro denunciar e qual o motivo dessa exigncia. Se, por outro lado, a tortura foi j aplicada, a diferena reside precisamente em quem que se encarregou do processo, quem que foi a vtima e qual a natureza da tortura, se a confisso foi credvel ou consistente, se a testemunha manteve o seu depoimento inicial ou se o alterou sob a influncia da dor e se o fez no incio da tortura ou apenas depois de esta se ter prolongado durante algum tempo.

A diversidade de tais questes to infinita como a diversidade de casos reais.

o testemunho dos oradores romanos, tal como o dos gregos, limitado e esclarece apenas parte do problema. As fontes jurdicas propriamente ditas apresentam outros dois tipos de informao importante: a transformao da sociedade romana e o reflexo dessa transformao no direito penal. A distino republicana entre cidado livre e escravo tornou-se menos importante sob dois aspectos aps a fundao do Imprio: o aparecimento de constituies e de prticas imperiais nos sculos I e II d. C. e o seu reflexo no direito, em particular na lei da traio; e as crescentes divises sociais do Imprio que deram origem s duas classes gerais conhecidas por honestiores e bumiliores. A primeira exerceu grande influncia no prprio direito e a segunda criou novas categorias de relativa sujeio lei.

Henry C. Lea, no seu ensaio sobre a tortura (Superstition and Force, 1866, reeditado separadamente com o Torture em 1973), cita um excerto de Suetnio (Augusto. XXii) que insinua o carcter ominoso do privilgio imperial. Durante o segundo Triunvirato, sucedeu que um pretor chamado Z. Gallius saudou Octvio quando levava uma tabuinha debaixo da toga. Octvio, julgando que a tabuinha fosse uma espada e Gallius o agente de uma conspirao, mandou prender e torturar Gallius antes de o condenar morte. A noo de majestade que outrora residia colectivamente no povo romano passara ento a residir na pessoa do imperador. O imperador podia no s ditar a lei, mas tambm fazer excepes lei que no reconheciam necessariamente os antigos privilgios republicanos do homem livre, especialmente quando a segurana imperial estava (ou se imaginava que estivesse) em perigo.

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As fontes da histria jurdica da Repblica - as Doze Tbuas, os oradores, os decretos senatoriais e os comentrios ocasionais de juristas, como os que se encontram nos Institutes de Gaius - desaparecem durante o Imprio e so substitudos pelo edictos e constituies de alguns imperadores, comentrios a estes feitos por juristas mais recentes, tais como Paulus e Ulpiano, e outro material literrio. O culminar deste processo no Corpus Iuris Civilis de justiniano, compilado no sculo VI, apresenta um cdigo extraordinrio, racionalmente exposto e explicado, que desde ento tem influenciado os juristas.

Mas a partir do sculo XVI e at actualidade, o problema da relao entre a compilao de justiniano e a histria jurdica do perodo compreendido entre o sculo I e o princpio do sculo VI d.C. tem ocupado tanto estudiosos como juristas. No se pode desenrolar simplesmente o Corpus de Justiniano e esperar-se que ele revele a evoluo jurdica que o originou. Todavia, esto contidos no Corpus tantos textos fundamentais da histria jurdica romana, que essencial e conveniente fazer-se-lhe referncia.

Dado que a figura do imperador - embora normalmente aconselhado por juristas - se encontra cabea do direito romano, temos de considerar no s o desenvolvimento da poltica imperial relativamente aos crimes de estado, mas tambm as alteraes sociais que criaram duas classes de cidadania na sociedade romana e duas classes de sujeio no direito romano.

A tortura de Gallius por Octvio foi o primeiro, mas no o pior, exemplo de aces imperiais excepcionais em relao a presumveis traidores. Suetnio (Tib. 61-2) pormenoriza com grande malcia os passos por meio dos quais Tibrio investigava conspiraes verdadeiras e imaginrias, de modo que todos os crimes eram tratados como sendo capitais, a ponto de um amigo do imperador, convidado a vir de Rodes, ter sido mandado torturar por engano porque o imperador sups que ele no passava de um novo informador. Enquanto Calgula almoava ou se divertia, eram frequentemente levados a cabo na sua presena interrogatrios capitais acompanhados de tortura (Cali. 32), Cludio exigia sempre interrogatrios acompanhados de tortura (Claud. 34) e Domiciano, para descobrir conspiradores que andavam escondidos, torturava muitos da faco contrria por meio de uma nova forma de inquirio, introduzindo-lhes fogo nas partes privadas e decepando as mos a alguns deles (Dom. 10).

At aqui, temo-nos concentrado nas actividades dos imperadores apenas no campo da tortura durante os interrogatrios, mas devemos reparar que as pginas de Suetnio e de Tcito esto cheias de extravagncias de crueldade, desconfiana e fria assassina e psicoptica

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que caracterizam a dinastia Jlio-Claudiana. Por vezes difcil encontrar um fio condutor por entre o sangue que mancha a primitiva histria imperial romana. Por vezes a ira imperial redundava numa pardia deliberada do processo judicial: Tcito descreve uma cena em que Tibrio investiga a descoberta de uns sinais misteriosos junto dos nomes da famlia imperial nos papis de um tal Libo:

Como o acusado negasse a alegao, decidiu-se interrogar os escravos que, sob tortura, identificaram a caligrafia; e, dado que um antigo decreto proibia que estes fossem interrogados numa acusao que afectasse a vida do seu dono, Tibrio, aplicando os seus talentos na descoberta de uma nova jurisprudncia, ordenou que todos eles fossem vendidos separadamente ao agente do tesouro: tudo isto para conseguir dos escravos testemunhos contra Libo sem ultrapassar um decreto senatorial! (Ann. II.30).

O comentrio de Tcito a respeito de Tibrio aplicar os seus talentos na descoberta de uma nova jurisprudncia mais do que amarga ironia, visto que a posio e a autoridade dos imperadores lhes permitiam tomar medidas extraordinrias relativamente ao antigo crime romano de maiestas, ou perduellio, a ofensa do povo romano.

Tcito narra tambm a histria de Epcaris, uma escrava libertada:

Entretanto, Nero lembrou-se que Epcaris se encontrava presa por denncia de Volusius Proculus; e, partindo do princpio de que a carne e o sangue das mulheres no conseguiam suportar a dor, ordenou que a torturassem no potro. Mas nem o chicote nem o fogo, nem mesmo a clera dos carrascos, que redobraram os seus esforos ao verem-se desafiados por uma mulher, a fizeram deixar de negar as alegaes.

O primeiro dia de suplcio fora frustrado. No dia seguinte, quando estavam a arrast-la numa liteira para uma repetio da agonia - os seus membros deslocados no conseguiam sust-la - prendeu a faixa que lhe envolvera o peito a uma perna da liteira, formando uma espcie de lao, enfiou nele o pescoo e, fazendo um terrvel esforo, cortou a dbil respirao que lhe restava. Escrava emancipada e mulher, ao proteger, sob esta terrvel coaco, homens que no tinham com ela qualquer parentesco e que quase desconhecia, dera um exemplo que pareceu ainda mais extraordinrio numa poca em que homens nascidos livres, cavaleiros e senadores romanos, que

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no podiam ser torturados, traam aqueles que lhes eram queridos. Porque nem mesmo Lucano, Senecio e Quinciano deixaram de revelar todos os seus cmplices; entretanto, o pavor de Nero ia aumentando cada vez mais, embora tivesse multiplicado o nmero de guardas que rodeavam a sua pessoa. (Ann. xv. 57)

luz de medidas como estas que se deveria, por exemplo, considerar a perseguio dos cristos. Inicialmente, os cristos estavam protegidos pela sua condio de judeus, visto que o judasmo era reconhecido no Imprio como uma religio legal, ainda que no satisfizesse os requisitos normais romanos para religies autorizadas. No ltimo quartel do sculo I d. C., os magistrados romanos conseguiram distinguir do judasmo a identidade individual crist e os cristos passaram assim a pertencer categoria de seguidores de religies ilegais e ficaram sujeitos s consequncias legais que tal condio implicava. Embora exista grande discordncia quanto s razes tcnicas que levaram perseguio dos cristos, os estudiosos concordam geralmente que a tortura e as sentenas agravadas em caso de pena de morte no tempo de Nero, a partir de 64 d. C., constituram um precedente para que os cristos fossem considerados mpios e subversivos e, por conseguinte, sujeitos a interrogatrio acompanhado de tortura e subsequentes castigos vergonhosos e degradantes. Lea apreende com perspiccia a combinao entre uma circunstncia psicolgica nica e o poder jurdico dos imperadores na sua observao de que sob o estmulo de apetites to hediondos, a crueldade caprichosa e irresponsvel conseguiu dar uma grande amplitude lei da traio (Torture, p. 10), pois a lei da traio, o crimen laesae maiestatis, constitua a base racional para que os imperadores se arrogassem tais poderes jurdicos extraordinrios. As consequncias do desenvolvimento da lei da traio influenciaram mais tarde o processo penal em geral.

Fazendo eco de Mommsen, Floyd Lear (Treason in Roman and Germanic Law, 1965) sugeriu que a doutrina romana da traio, o crimen laesae maiestatis, a injria ou o rebaixamento da majestade, resultou das primitivas sanes religiosas romanas contra o assassino de um pai, parricidum, e das aces de um romano que se torna inimigo da sua prpria comunidade e ajuda os inimigos dela, perduellio.

Includas em perduellio esto a desero do exrcito, a rendio ao inimigo de qualquer territrio romano, a prestao de auxlio e de conforto ao inimigo, o incitamento a uma guerra contra Roma ou uma revolta dentro dela e a fuga do exlio com o regresso ilegal Pennsula Itlica. Perduellio inclua tambm as ofensas corporais a 31

magistrados e a violao das obrigaes do cliente para com o patrono.

Fazendo novamente eco de Mommsen, Lear investiga a histria do termo maiestas e associa-o dignidade dos representantes (ou tribunos) dos plebeus, que no estavam protegidos pela noo patrcia de perduellio. Nos finais da Repblica, o simples termo maiestas, majestade, passara a significar a dignidade do povo e do estado romanos, tendo absorvido anteriores termos e alargando-se ao insulto e tambm injria. Um ditador transitrio podia por vezes arrogar-se o direito de considerar as ofensas contra si prprio como sendo tecnicamente um crime contra a maiestas do povo romano, tal como fez Octvio no caso de Q. Gallius, antes de se tornar imperador. Tendose o chefe de estado transformado em Augusto, pde rodear-se das antigas sanes contra o parricdio, contra a violao dos direitos de um patrcio, contra a injria ou insulto ao tribuno do povo e contra a violao de sanes religiosas, de modo que o crimen laesae maiestatis passou a ser um crime de heresia e tambm de insulto e injria e, portanto, no apenas contra um indivduo particular, mas contra algum que encarnava a dignidade, o carcter sagrado e a majestade do estado romano na sua prpria pessoa.

Um tal espectro de autoridade explica a liberdade que os imperadores jlio-claudianos possuam de se proteger contra ameaas reais ou imaginrias que se encontra to sinistramente registada em Suetnio e Tcito. Este desenvolvimento precoce da lei romana da traio sobreviveu casa jlio-claudiana e levou no s incidncia da tortura no Imprio Romano, mas tambm a uma noo extraordinariamente elevada de estado.

Alm da transformao da doutrina de maiestas, devemos igualmente considerar algumas das consequncias jurdicas da mudana social verificada no Imprio entre os sculos I e IV. As antigas distines republicanas romanas entre patrcios e plebeus terminaram efectivamente com as guerras sociais e com a queda da Repblica. As novas distines, que surgem no direito por volta do sculo III d. C., referem-se a duas espcies de cidado: honestiores e humiliores. Os primeiros eram privilegiados e constituam a verdadeira classe dirigente do Imprio; os segundos eram o resto do povo, os que tinham profisses inferiores, os pobres e os desenraizados. O modo como estas distines se traduziram no direito podem ver-se no passo seguinte de Digesto de Justiniano:

A credibilidade das testemunhas devia ser cuidadosamente verificada. Por conseguinte, ao se examinarem as suas pessoas, deveria, em primeiro lugar, ter-se em ateno a classe de cada 32

uma, se se trata de um decurio [um funcionrio civil com a categoria de honestioris] ou de um plebeu [humilioris] ou se a sua vida honrada e irrepreensvel ou se, pelo contrrio, um homem estigmatizado pela desonra pblica [infamia: ver adiante] e censurvel... (22.5)

A directiva de Justiniano no se limitava a aconselhar os magistrados quanto ao modo de avaliar o carcter das testemunhas. Na verdade, por volta do sculo VI, a diferenciao jurdica entre honestiores e humiliores e a recente crueldade do direito penal durante a poca dos imperadores fizeram dos humiliores as primeiras vtimas livres romanas da tortura judiciria, para alm daqueles que tinham sido torturados segundo os termos do crimen laesae maiestatis. A tortura tambm no era o nico fardo que a condio de humiliores implicava. Certos tipos de punio, como os castigos corporais pelo lanamento s feras ou pela crucificao, eram o destino do humilioris condenado. A classe mais baixa dos cidados livres do Imprio, sujeita a um interrogatrio e a punies outrora aplicveis apenas aos escravos e aos cidados livres em casos de traio, descera agora juridicamente a esse nvel. A cidadania j no oferecia a todos os cidados a proteco antenor.

No perodo inicial do Imprio, diversas caractersticas da histria jurdica romana contriburam para tornar a lei da traio essencial para a questo da tortura. Por um lado, certas categorias de pessoas eram consideradas to baixas e, por outro, certos tipos de crime eram considerados to perversos, que justificavam o levantamento das restries de outro modo presentes no sistema. O estabelecimento da posio do imperador como personificao da majestade do povo romano e o aparecimento da traio como um crime particularmente perverso e pessoal ajudaram a definir o contexto em que a tortura de homens livres se desenvolveu no direito penal romano. Mas um caso clssico dar-nos- a perceber a enorme proteco que a lei concedia normalmente aos cidados romanos por volta dos meados do sculo I d. C.

Um dos julgamentos mais conhecidos da histria do direito romano, embora no por motivos jurdicos, o de So Paulo perante os tribunais de Jerusalm e da Cesareia, narrado nos Actos, 22-26. Paulo, acusado de vrios crimes, foi levado presena de um centurio que props o seu interrogatrio acompanhado de tortura para apurar a verdade das acusaes contra ele. Quando o amarraram para ser chicoteado, Paulo perguntou ao centurio: Tendes autoridade para vergastar um cidado romano, que nem sequer foi julgado? Aps 33

analisar com o seu superior a reivindicao de Paulo, o centurio no s o soltou, mas ficou tambm preocupado por saber que tinha mandado prender e agrilhoar um cidado romano. Ainda que o resto do julgamento ilustre outros aspectos do procedimento romano, a reivindicao de Paulo de que a cidadania o isentava dos habituais mtodos de investigao criminal um exemplo do carcter sagrado da cidadania romana num centro administrativo provincial.

tambm de notar que bastou Paulo proclamar o seu direito de cidadania para a tortura ser suspensa. Tal reivindicao tinha de ser meticulosamente investigada. Quase dois sculos mais tarde, Ulpiano (Digesto, 48.18.12) citou um rescrito imperial afirmando: Quando algum, para evitar ser torturado, alega que livre, o Divino Adriano declarou num rescrito que no deve ser torturado antes de se ter dado o julgamento acerca da sua imunidade. Assim, em casos como o de So Paulo, a reivindicao da liberdade funcionava como uma espcie de interlocutria que tinha de ser analisada antes de o processo inicial poder prosseguir. E, de acordo com os Actos dos Apstolos, parece que o prprio Adriano estava apenas a reiterar um anterior princpio jurdico.

Os Romanos utilizavam diversos termos para descrever aquilo a que ns, um tanto indiscriminadamente, chammos tortura. No procedimento criminal romano, a inquirio chamava-se quaestio, que se referia tambm ao prprio tribunal. Tormentum referia-se inicialmente a uma forma de punio, incluindo a pena de morte agravada, qual, durante a Repblica, apenas estavam sujeitos a ela por certos crimes. Quando se aplicava o tormentum como um mtodo de interrogatrio, o termo tcnico era quaestio per tormenta ou quaestio tormentorum, ou seja, uma inquirio feita por meios que tinham sido a princpio estritamente uma forma de punio e apenas de escravos. Ulpiano foi tambm explcito a respeito da relao entre estes termos:

Por tortura devemos entender o suplcio e o sofrimento e dor fsica empregues para arrancar a verdade. Por isso, um simples interrogatrio de um grau moderado de intimidao no justifica a aplicao deste edicto. No termo suplcio esto includas todas aquelas coisas que se relacionam com a aplicao da tortura. Assim, quando se recorre fora e ao suplcio, isso deve entender-se como tortura. (Digesto 47.10.15.41)

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Ulpiano comentava noutro passo (Digesto 29.5.1.25): Ns, contudo, entendemos que o termo tortura significa no s ser-se torturado para fazer uma confisso, mas tambm todos os interrogatrios que se possam fazer durante a investigao da morte do dono.

E evidente que, na poca de Ulpiano, quaestio e tormentum/tortura se tinham tornado praticamente sinnimos. Esta identificao mantm-se na lngua francesa, em que o termo la question, no procedimento criminal, foi durante muito tempo sinnimo de la torture.

A terminologia da tortura romana explica assim por que que esta se limitou inicialmente aos escravos, visto que teve origem em punies aplicveis apenas a escravos.

Na verdade, o enorme volume de material contido no Digesto sob o ttulo de Da Tortura (48.8) refere-se geralmente tortura de escravos. A nica excepo consiste numa afirmao de Arcdio Carsio (Digesto 48.18.10.1): Mas quando a acusao a traio, que diz respeito s vidas dos imperadores, todos sem excepo devem ser torturados se forem chamados a prestar declaraes e se o caso o exigir.

Carsio, escrevendo por volta de 300 d. C., uma testemunha recente, mas confirma a prtica que era claramente aceite de um modo informal no sculo I e oficialmente durante o sculo II.

Habitualmente, tal como foi salientado, os escravos podiam ser torturados apenas em aces penais. No sculo II, contudo, o imperador Antonino Pio alargou essa possibilidade s questes pecunirias:

O Divino Pio declarou num rescrito que a tortura podia ser infligida a escravos em casos que envolvessem dinheiro se a verdade no pudesse ser averiguada de outro modo, o que est estipulado tambm noutros rescritos. A verdade, todavia, que no se deve recorrer a este expediente numa questo pecuniria, mas apenas onde a verdade no possa ser averiguada, a no ser que pela utilizao da tortura seja legtimo fazer-se uso dele, tal como o Divino Severo declarou num rescrito. (Digesto 48.18.9)

Assim, a rea do direito em que os escravos podiam ser legitimamente torturados alargou-se, no sculo II, a certas reas civis. No princpio do Imprio, Augusto prevenira contra a utilizao da tortura (Digesto 48.18.8): No creio que a tortura deva ser infligida em todos os casos nem a toda a gente; mas quando os crimes capitais e atrozes [capitalia et atrociora maleticia] no podem ser detectados e provados excepto por meio da tortura de escravos, considero que esta muito eficaz para averiguar a verdade e que deve ser empregue.

Falaremos adiante das dvidas dos juristas e dos imperadores 35

relativamente eficcia das provas obtidas por meio da tortura. Por ora basta referir que o raio de aco da tortura se expandiu dramaticamente entre a poca de Augusto e a dos imperadores antoninos, no sculo II. A restrio se a verdade no puder ser averiguada de outro modo caracteriza as reflexes tanto de Augusto como de Antonino Pio, mas parece ter perdido cada vez mais significado durante os sculos II e lII.

medida que os motivos para torturar escravos foram aumentando, estes comearam tambm a alargar-se classe mais baixa de cidados. Calstrato, por volta de 200 d. C., registou uma evoluo semelhante quanto pena de morte (Digesto 48.19.28.11): Os escravos que conspiram contra a vida dos seus donos so geralmente condenados morte pela fogueira; os homens livres tambm sofrem por vezes esta pena, caso sejam plebeus e pessoas de baixa condio. Um rescrito do princpio do sculo IV, dos imperadores Diocleciano e Maximiano (Cdigo 9.41.8), declara:

No permitimos que os soldados sejam sujeitos a tortura ou s penas impostas aos plebeus em aces penais, mesmo que parea que foram demitidos sem os privilgios dos veteranos, excepo daqueles que tenham sido desonrosamente destitudos. Esta norma dever ser observada tambm nos casos de filhos de soldados e de veteranos. Nas aces por crimes pblicos, os juzes no devem iniciar o interrogatrio recorrendo tortura, mas devem primeiro utilizar-se todas as provas disponveis e verosmeis. Se, aps terem obtido informaes sobre o crime, considerarem que deve ser aplicada tortura com o fim de se averiguar a verdade, devem apenas recorrer a ela se o estatuto das pessoas implicadas justificar tal via; porque, nos termos desta lei, todos os habitantes das provncias tm direito a beneficiar da nossa natural benevolncia para com eles.

A desonra pblica e a baixa condio tornaram-se assim duas das circunstncias pelas quais os homens podiam ser sujeitos a tortura. Consideremo-las por ordem.

A primitiva distino entre escravos e homens livres, bem como entre patrcios e plebeus, inclua, para os Romanos, a noo de dignidade pessoal, honra, considerao e venerao. Ao definir dignitas, Ccero (De lnventione 2.166) afirmou: A dignidade prestgio honroso. Merece respeito, honra e venerao. Os Romanos, sempre profundamente sensveis a qualquer sinal de diminuio da sua 36

dignidade ou reputao, reconheceram e indicaram as circunstncias da sua perda - infmia [infamia] e ignomnia [ignominia] - muito antes de as converterem numa doutrina jurdica convencional. Para um romano, quer dentro quer fora do tribunal, por meios formais ou informais, perder o respeito da sociedade era um rude golpe psicolgico e social. Os Romanos eram capazes de fazer tudo, e faziam-no de facto, para evitar que a sua honra se perdesse ou ficasse diminuda.

J. M. Kelly sugeriu recentemente que o receio que os Romanos tinham da vergonha funcionava como um factor inibidor do litgio, mesmo em casos em que uma pessoa tinha a razo e a lei do seu lado.

Como o julgamento romano era um dos poucos locais onde o reprehensio vitae, vituperatio - insulto artstico descarado e muito eloquente - era o argumento dos advogados contrrios, e onde as habituais leis de difamao no se aplicavam, o processo de julgamento era acompanhado de ataques honra e dignidade pessoais. Os Romanos reconheciam tambm vilitas - o exerccio de certas ocupaes ou profisses desonrosas. Ocasionalmente, o edicto do pretor ditava que certas espcies de indivduos no podiam intentar processos no seu tribunal. Entre aqueles que eram excludos do tribunal do pretor contavam-se os homossexuais, os proxenetas, os gladiadores, aqueles que lutavam contra as feras na arena, os actores cmicos e satricos, aqueles que tivessem sofrido um despedimento desonroso (missio ignominiosus) do exrcito e certos indivduos a quem tivessem sido aplicadas medidas legais aviltantes. Durante o sculo II d. C., a condio de infmia foi reconhecida como englobando a maior parte dos casos. A partir desta altura, as fontes jurdicas concentram-se muito mais pormenorizadamente na natureza jurdica da infmia, nas normas que regulamentavam a sua aplicao pelos magistrados e nas consequncias jurdicas que implicava.

Durante os sculos v e VI desenvolveu-se uma verdadeira jurisprudncia da infamia. Este desenvolvimento ocorreu simultaneamente com o aumento do nmero de ocasies em que os escravos podiam ser torturados, em que os homens livres podiam ser interrogados e punidos por mtodos inicialmente reservados aos escravos e em que o baixo estatuto expunha cada vez mais homens livres tortura. Estas mudanas no so desconexas. Comentando, no sculo II, a antiga lei das Doze Tbuas, o jurista Gaio caracteriza a plebe como incluindo todos aqueles que estavam abaixo da classe senatorial. Nos sculos I e II, a classe mais elevada da sociedade romana alargara-se, passando a incluir mais representantes do povo do que senadores, especialmente da ordem equestre ou dos cavaleiros. Esta classe superior adquiriu os antigos privilgios de patrcios e senadores. Aqueles que no

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pertenciam classe mais elevada (ou seja, aqueles que no sculo II se chamavam honestiores) passaram a ser os humiliores, e medida que a distino entre honestiores e humiliores se foi tornando mais clara, especialmente quanto dignidade pessoal e aos privilgios jurdicos, foi-se tornando cada vez mais imprecisa a distino entre os humiliores e os escravos, e o humilioris, que no possua a dignidade da classe mais elevada, adquiriu parte da indignidade da classe mais baixa.

Arcdio Carsio refere o seguinte (Digesto 22.5.21.2): Nas circunstncias em que somos compelidos a aceitar um gladiador ou outra pessoa desse gnero como testemunha, no devemos acreditar no seu depoimento, a no ser que seja sujeito a tortura. A pessoa infame, tal como o escravo de outrora, carece de dignitas para prestar um testemunho voluntrio por meio de um simples interrogatrio; a tortura tem de validar o seu testemunho.

O desenvolvimento da doutrina de dignitas e de infmia constitui um meio de impor, a cidados at agora livres, restries que outrora se aplicavam apenas aos escravos. Que, entre os sculos I e IV, a classe humilioris de cidados livres (tornados igualmente vulnerveis pelo alargamento da cidadania romana universal por Caracala, em 212) estava a adquirir novas responsabilidades inicialmente reservadas aos escravos em matria de procedimento legal amplamente ilustrado por medidas tomadas em rescritos imperiais para proteger os honestiores de sorte semelhante. Num texto j citado, Diocleciano e Maximiano protegiam a condio dos soldados. Os mesmos imperadores repetiram um rescrito de Marco Aurlio, do sculo II, relativo preservao da dignidade dos honestiores:

Ficou decidido pelo Divino Marco que os descendentes de homens que so designados por Eminentssimos e Perfeitssimos, at ao grau de bisnetos, no sero sujeitos nem s penas nem s torturas infligidas aos plebeus, desde que nenhum estigma de honra violada marcar aqueles de um grau mais prximo, por intermdio dos quais este privilgio foi transmitido aos seus descendentes. (Cdigo 9 .41.11)

Existem muitos outros exemplos destes esforos para proteger os honestiores. Ulpiano reivindicara os mesmos privilgios para decuries, membros dos conselhos das cidades, e seus filhos (Cdigo 9.41.11), direito esse que teve de ser renovado no sculo IV pelo imperador Valentiniano (Cdigo 9.41.16), e que exclua do seu mbito defensivo apenas o caso da traio. Em 385, Teodsio, o Grande, insistiu na dispensa dos padres cristos da tortura (Cdigo 1.3.8),

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sugerindo assim a incluso do clero cristo na classe dos honestiores. Que estas incluses eram necessrias indicado por um rescrito do imperador Valentiniano, em 369, que referia (Cdigo 9.8.4) que, embora a tortura pudesse ser habitualmente aplicada em caso de traio e excepcionalmente por ordem pessoal do imperador, esta era, no entanto, larga e indiscriminadamente aplicada a homens livres por delitos muito menores.

Entre os sculos II e IV, o privilgio de no ser sujeito a tortura estava claramente a desaparecer, no s a partir da base da pirmide social, mas, comeando com a traio e passando lentamente a abranger outros crimes, incluindo os casos estabelecidos pela vontade do imperador, tambm a partir das classes mais altas. A tortura ocasional e irregular de homens livres pelosjlio-claudianos criou um precedente prtico que os imperadores e juristas posteriores talvez tenham tentado regulamentar em teoria, mas que aumentaram na prtica. E os magistrados abaixo da posio do imperador foram rpidos, ou indiferentes, a proceder da mesma maneira.

Tambm no foi a traio, nem mesmo uma definio extremamente alargada de traio, o nico motivo a levar os imperadores a legitimar o emprego da tortura contra homens livres. Em 217, Caracala (Cdigo 9.41.7) autorizou-a nos casos em que uma mulher fosse acusada de envenenamento. No sculo IV, Constantino (Cdigo 9.41.7) tornou os feiticeiros, os mgicos, os adivinhos e os ugures sujeitos tanto ao interrogatrio acompanhado de tortura como a formas agravadas de pena capital. Constantino e Justiniano (Cdigo 9.9.31; Novelas 117.15.1) autorizaram a sua utilizao em casos de relaes sexuais perversas e de adultrio, respectivamente. Diocleciano publicou um edicto determinando que todos os cristos fossem privados dos privilgios da sua posio e ficassem sujeitos aplicao da tortura, edicto esse naturalmente no conservado no Corpus do imperador cristo justiniano.

No sculo IV, a antiga separao rgida entre os privilgios de homens livres e de escravos desaparecera h muito e uma diversidade de delitos colocara os homens livres sob a ameaa da tortura. No topo da sociedade romana, primeiro a traio e depois as definies alargadas de traio e a adio de outras ofensas expunham tambm os honestiores tortura. O aparecimento de uma classe de magistrados burocrticos, que no eram j os juristas eruditos dos sculos II e III, tornou provavelmente a aplicao da tortura mais habitual e menos considerada. A srie de edictos imperiais atrs citados, que tentavam recordar aos funcionrios as restries tortura, reflectiam provavelmente um problema real e as preocupaes reais dos imperadores e do honestioris.

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o carcter da tortura romana

As principais fontes jurdicas da lei romana da tortura encontram-se no Cdigo de Justiniano (9.41) e no Digesto (48.18). O primeiro consiste em constituies imperiais e o segundo nas opinies de juristas. No seu conjunto, as fontes at aqui discutidas apresentam uma descrio exaustiva dos motivos para a tortura, mas dizem pouco a respeito de mtodos de tortura. Contm tambm uma jurisprudncia da tortura e um levantamento de opinies sobre a consistncia das provas obtidas por meio de tortura. Os comentrios de Ccero e de Quintiliano atrs citados sugerem que os oradores estavam perfeitamente conscientes de que os resultados do testemunho obtido por meio de tortura tinham de ser manipulados durante o julgamento, conforme o orador defendia ou contestava a prova em questo. Estes pontos de vista puramente prticos que eles advogam no implicam uma aprovao ou desaprovao oratria da tortura, mas tambm no sugerem uma absoluta condenao da consistncia das provas assim obtidas. O Digesto, embora apresente o ponto de vista dos juristas, simultaneamente menos ambivalente e mais cauteloso. Um dos textos mais importantes do Digesto (48.18) consiste em vinte e sete extractos do desaparecido Tratado sobre os Deveres de Um Procnsul, de Ulpiano. O primeiro comentrio de Ulpiano observa que Augusto declarara que no se deve confiar totalmente na tortura e que a tortura no deve principiar durante o interrogatrio. Na realidade, a parte inicial da discusso de Ulpiano trata de informaes admonitrias sobre o lugar da tortura no processo judicial, da necessidade de outras provas, da existncia de fortes suspeitas, das proibies da tortura de escravos para obteno de provas contra os seus prprios donos e dos tipos de perguntas que deviam ser feitas durante a tortura.

O Digesto (48.18.123) contm uma reserva singular relativamente a esta questo:

Foi declarado pelas Constituies Imperiais que, embora no se deva depositar sempre confiana na tortura, esta no deve ser rejeitada como absolutamente indigna de crdito, ainda que as provas obtidas sejam pouco convincentes e perigosas e inimigas da verdade; porquanto muitas pessoas, quer pela sua capacidade de resistncia quer pela severidade do suplcio, desprezam tanto o sofrimento que a verdade no lhes consegue ser arrancada de forma alguma. Outras tm to pouca capacidade de sofrimento que preferem mentir a suportar o

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interrogatrio, acontecendo assim fazerem confisses muito diversas que as implicam no s a elas mesmas, mas tambm a outros.

Por conseguinte, os imperadores, oradores e juristas, todos eles reconheciam o problema das provas extradas por meio da tortura, embora tais preocupaes paream ter sido o nico interesse que tiveram pela sua prtica. Tal como os Gregos, os Romanos reconheciam na traio, no baixo estatuto social e nos escravos motivos suficientes para a continuao de prticas que eles prprios sabiam ser muito discutveis. As salvaguardas jurisprudenciais que os Romanos criaram no se baseavam num humanitarismo anacrnico, mas sim na sua convico de que a prova por ela introduzida era uma res fragilis et periculosa, algo precrio e perigoso, e podia ser facilmente enganadora ou falsa. Valrio Mximo referiu vrios casos em que a tortura produziu provas que se revelaram discutveis. Quinto Crcio Rufo (Histria, vr.xi) narra a histria da tortura de Filotas para prestar declaraes a respeito de uma conspirao contra Alexandre, o Grande.

Aps prolongada tortura, Filotas prometeu confessar se o tormento fosse suspenso. Quando a tortura acabou, Filotas virou-se para o inquiridor e perguntou: Que queres tu que eu diga? Crcio Rufo comenta que ningum soube se devia acreditar em Filotas, pois a dor provoca no s confisses verdadeiras, mas tambm declaraes falsas. Embora tivessem algumas dvidas quanto legitimidade da tortura, os Romanos tinham tambm poucas dvidas sobre o seu efeito nos seres humanos. Entre os sculos II e V, difundiram e desenvolveram um mtodo de investigao a respeito de cuja segurana tinham poucas iluses. Em lugar de contestarem esse mtodo, rodearam-no de uma jurisprudncia que se destinava a conferir-lhe maior segurana, uma jurisprudncia que admirvel pelo seu cepticismo e perturbadora pela sua lgica.

Para apreciar no s o cepticismo, mas tambm a lgica, necessrio considerar os mtodos romanos de tortura, a respeito dos quais tanto o Cdigo como o Digesto primam pelo silncio. Estes mtodos fazem-nos lembrar os mltiplos significados de termos tais como tormentum, visto que os processos do interrogatrio acompanhado de tortura resultavam por vezes de castigos fsicos agravados e outras vezes ofereciam novos modelos para esses castigos, incluindo processos de pena capital.

O processo normal de tortura (ao que parece, adoptado mais tarde como meio de pena capital agravada) era o potro, uma armao de madeira apoiada em cavaletes na qual a vtima era colocada com as mos e os ps presos de modo tal que as articulaes podiam ser

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distendidas pela aco de um complexo sistema de pesos e cordas.

A distenso das articulaes e dos msculos era o objectivo de torturas semelhantes tais como o lignum, duas peas de madeira que afastavam as pernas. Uma tortura que parece ter derivado da pena capital era a das ungulae, ganchos que dilaceravam a carne. A tortura com metal ao rubro, o aoitamento, a quase compresso do corpo na priso (a mala mansio ou casa maldita) - algumas destas tcnicas copiadas dos Gregos - constituam formas adicionais de tortura. Uma fonte jurdica acerca de outros mtodos pode ser encontrada no Digesto (48.19), no captulo Das Punies, dado que diversas formas de castigo corporal se adaptavam tambm utilizao no interrogatrio acompanhado de tortura. O jurista Calstrato (Digesto 48.19.7) enumera, entre estas, o castigo com varas, o chicoteamento e o aoitamento com correntes. Os mtodos gregos de pena capital incluam a decapitao, o envenamento, a crucificao, a morte paulada, o estrangulamento, o apedrejamento, o lanamento de um precipcio e o enterramento em vida. Os Romanos proibiam o envenenamento e o estrangulamento e reservavam a crucificao para escravos e para criminosos particularmente desprezveis. Ulpiano refere outra proibio romana (Digesto 48.19.8.3): Ningum pode ser condenado morte por espancamento ou a morrer com [golpes de] bastes ou durante a tortura, ainda que a maior parte das pessoas, ao serem torturadas, percam a vida. Ou seja, embora a tortura com bastes resulte frequentemente em morte, a morte da pessoa que est a ser interrogada no pode ser o objectivo de tal tortura. Os Romanos parecem no ter usado a tortura na roda, um mtodo que fora empregue pelos Gregos.

Alm dos documentos includos no Digesto, os historiadores e defensores cristos fornecem os mais pormenorizados relatos