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ANETTE COELI NEVES MAYNART PESCA, ARTESANATO E CULTURA: RESGATE HISTÓRICO DOS RIBEIRINHOS DE SÃO FRANCISCO, MG São Paulo 2008

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ANETTE COELI NEVES MAYNART

PESCA, ARTESANATO E CULTURA: RESGATE HISTÓRICO DOS RIBEIRINHOS DE SÃO FRANCISCO,

MG

São Paulo 2008

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ANETTE COELI NEVES MAYNART

PESCA, ARTESANATO E CULTURA: RESGATE HISTÓRICO DOS RIBEIRINHOS DE SÃO FRANCISCO,

MG Dissertação apresentada ao programa Multidisciplinar em Educação, Administração e Comunicação (Mestrado Acadêmico) da Universidade São Marcos, sob orientação da Profª. Drª. Sandra Farto Botelho Trufem, com vistas à obtenção do título de Mestre.

São Paulo 2008

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus pela força, coragem e oportunidade de fazer este

trabalho. Obrigada, Senhor!

À minha orientadora, professora Sandra, agradeço a direção que me deu com sua leitura

atenta e sugestões pertinentes. Muitíssimo obrigada!

Ao meu amado João Cezar, meu maior e melhor companheiro sempre. Agradeço o

incentivo, a inspiração e o amor. Obrigada por existir. Você é muito especial em minha

vida. Te amo muito!

Aos meus amados Joãozinho e Matheus, que renunciaram comigo a momentos e coisas

em função deste trabalho. De vocês recebo a motivação que impulsiona minha vida.

“Mainha” ama vocês!

Aos meus pais e irmãos, amo todos vocês... Agradeço especialmente ao meu pai e a

minha irmã Ana pelas sugestões recebidas. Obrigada pela parceria.

Aos pescadores, artesãos, foliões e turistas que atenderam às minhas curiosidades com

paciência e dedicação. Vocês foram fundamentais. Obrigada!

Ao Sr. João Naves pelas vezes que o procurei e foi sempre solícito no atendimento.

A Alair, que pacientemente me atendeu na revisão final.

À Terezinha e Esperidião pela indicação no convento. Foi um verdadeiro “achado”.

Às irmãs Fabiana e Maria das Graças, obrigada pela acolhida.

À Cleide, companheira de viagem. Apesar dos transtornos, valeu!

Enfim, aos amigos pelo apoio, especialmente a Narcízia (companheira das pesquisas de

campo), Valquíria Taschetti ( professora da EEBB) e demais pessoas em seus mais

variados ofícios que me apoiaram durante a realização deste. Muito obrigada!

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RESUMO

A presente dissertação mostra algumas atividades artesanais dos ribeirinhos

de São Francisco, MG. O rio São Francisco tem uma extensão de 2700 km, desde as

suas nascentes na Serra da Canastra (Minas Gerais) até a foz no oceano Atlântico, entre

os estados de Alagoas e Sergipe. A cidade de São Francisco (MG) foi a localidade

escolhida para revelar os tesouros preciosamente guardados na memória de seus

habitantes. São Francisco não é apenas um município a mais que se estende pelas duas

margens do Velho Chico. Suas terras abrigam patrimônios e surpresas. Os ribeirinhos

do São Francisco são pessoas simples, de uma cultura própria, singular. Na região do

Vale do São Francisco, um povo reinventa a vida, movido pela necessidade e pela

criatividade. Nas margens ribeirinhas, crestadas pelo sol, florescem expressões culturais

seculares e atividades artesanais como a pesca, os bordados, a arte de esculpir em

madeiras, barqueiros e violeiros, além de diversas manifestações culturais como a folia

de reis. Este trabalho sinaliza alguns pontos que possibilitam uma maior reflexão sobre

como resgatar o artesanato, a cultura, a pesca e o turismo como atividades econômicas

para a região, capaz de acelerar o crescimento econômico e social. Pensar a diversidade

cultural dos ribeirinhos do São Francisco como fonte de riqueza e desenvolvimento

sustentável é fortalecer o sentimento de identidade e cidadania e, este estudo, fruto de

observação empírica e de vasta pesquisa bibliográfica, abre caminhos para que os

saberes e os fazeres tradicionais se transformem em propulsores de sustentabilidade das

novas gerações.

Palavras-Chave: artesanato; diversidade; pescadores; rio; turismo; sustentabilidade; geração de renda; São Francisco.

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ABSTRACT The present dissertation shows some artisan activities of the riverside of San Francisco,

MG. The river San Francisco has an extension of 2700km, since its springs in the

Mountain range of the Hamper (Minas Gerais) until the estuary in the Atlantic Ocean,

enters the states of Alagoas and Sergipe. The city of San Francisco (MG) was the

chosen locality to disclose the preciously kept treasures in the memory of its

inhabitants. San Francisco is not only one city more than if it extends for the two edges

of the Old Chico. Its lands shelter patrimonies and surprises. The riverside of the San

Francisco are simple people, of a proper, singular culture. In the region of the Valley of

the San Francisco, a invent people the life, moved for the necessity and the creativity. In

the marginal edges, parched for the sun secular cultural expressions and artisan

activities blossom as it fishes it, the embroiderings, the art to sculpture in wood,

boatmen and guitar man, beyond diverse cultural manifestations as the folia of kings.

This work signals some points that make possible a bigger reflection on as to rescue the

craft, the culture, fishes it and the tourism as economic activities for the region, capable

to speed up the economic and social growth. To think the cultural diversity of the

riverside of the San Francisco as source of wealth and sustainable development is to

fortify the feeling of identity and citizenship and, this work presented here, fruit of an

empirical comment and a vast bibliographical research, opens ways so that to know

them and to make them traditional if they transform into propellants of sustain of the

new generations.

Key Words: craft; diversity; fishing; river; tourism; sustain; income generation; San Francisco.

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SUMÁRIO

RESUMO.........................................................................................................................III

ABSTRACT....................................................................................................................IV

LISTA DE FIGURAS....................................................................................................VII

LISTA DE TABELAS..................................................................................................VIII

LISTA DE GRÁFICOS .................................................................................................IX

INTRODUÇÃO...............................................................................................................01

CAPÍTULO I– O “Velho Chico”....................................................................................06

1.1. Contexto Histórico....................................................................................................06

1.2. Aspectos Geográficos...............................................................................................13

1.3. Degradação, Revitalização e Transposição do rio São Francisco:

questões urgentes ................................................................................................... 19

CAPÍTULO II – O rio São Francisco como geração de renda........................................28

2.1. Contexto Sócio-econômico e Cultural .................................................................... 28

2.2. As barcas ..................................................................................................................37

2.3. A pesca profissional/artesanal................................................................................. 46

2.4. A família e o modo de vida dos pescadores São Francisco ....................................52

CAPÍTULO III – As principais atividades dos ribeirinhos do São Francisco................64

3.1. História do artesanato ..............................................................................................64

3.2. Artesanato : Uma das maiores riquezas dos ribeirinhos do São Francisco............ 79

3.3. Carrancas: cultura e economia para os ribeirinhos do São Francisco..................... 90

CAPÍTULO IV – Turismo e Cultura do ribeirinho da cidade de São Francisco............ 95

4.1. O Turismo no Alto-Médio São Francisco .............................................................. 95

4.2. Cultura e folia na cidade de São Francisco ............................................................ 98

4.2.1. A Folia de Reis ..................................................................................................100

4.2.2. A Folia em São Francisco .................................................................................. 104

CAPÍTULO V – Análise do modo de vida dos ribeirinhos e suas atividades

artesanais em São Francisco – MG ..............................................................................121

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CONCLUSÃO ..............................................................................................................128

BIBLIOGRAFIA ..........................................................................................................131

FONTES........................................................................................................................136

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: O “Velho Chico”............................................................................................. 09

Figura 2: Bacia do São Francisco....................................................................................14

Figura 3: Degradação do leito e das margens do rio São Francisco .............................. 20

Figura 4: Projeto de Transposição do rio São Francisco ............................................... 24

Figura 5: Localização da cidade São Francisco ............................................................ 28

Figura 6: A cidade de São Francisco às margens do rio São Francisco ........................ 31

Figura 7: O pescador do São Francisco ..........................................................................36

Figura 8: Barco a vapor que comercializava mercadorias ..............................................38

Figura 9: Espécies nativas do rio ....................................................................................44

Figura 10: O pescador do São Francisco ...................................................................... 46

Figura 11: O barqueiro em outra atividade .................................................................... 50

Figura 12: Morador das margens ribeirinhas ........ .........................................................52

Figura 13: Tecendo tarrafas e rede ................................................................................ 78

Figura 14: Rendeiras tecendo .........................................................................................79

Figura 15: Zé Pincel em seu ofício ................................................................................ 84

Figura 16: Quadro da Santa Ceia....................................................................................86

Figura 17: Rendeiras de São Francisco ......................................................................... 87

Figura 18: Seu Minervino .............................................................................................. 89

Figura 19: Carranca ........................................................................................................91

Figura 20: Carranca de proa de barco ............................................................................91

Figura 21: Praia em São Francisco ................................................................................96

Figura 22: Foliões em São Francisco ...........................................................................105

Figura 23: Foliões e suas violas ....................................................................................107

Figura 24: Pôr do Sol em São Francisco ......................................................................125

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Razões do exercício da profissão....................................................................54

Tabela 2. Estado civil ................................................................................................. 121

Tabela 3. Atividade econômica compensatória ...........................................................122

Tabela 4. Medida para a preservação do meio ambiente ............................................122

Tabela 5. Se há investimento do governo................................................................... 123

Tabela 6. Considera o trabalho um lazer .....................................................................123

Tabela 7. Um projeto governamental seria benéfico ...................................................124

Tabela 8. Representação do rio São Francisco ............................................................124

Tabela 9. Razões de ausência de jovens na profissão de artesão .................................126

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: Faixa Etária................................................................................................. 122

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INTRODUÇÃO

O rio São Francisco nasce na Serra da Canastra (MG), mais precisamente na

Chapada da Zagaia, no município de São Roque de Minas, na região Sudeste do Estado,

a cerca de mil metros de altura. Da Canastra, ele despenca 200 metros na cachoeira de

Casca d'Antas, percorrendo 2,7 mil quilômetros, pelos estados da Bahia, Sergipe,

Alagoas e Pernambuco, recebendo 36 afluentes. Seu vale compreende a calha principal

e tributária, numa extensão de 645 mil quilômetros quadrados de áreas equivalentes a

8% do território nacional - a bacia do São Francisco é maior que o estado de Minas

Gerais inteiro.

A região do vale reúne cerca de 3 milhões de hectares possível de serem

irrigados, sendo 800 mil hectares em Minas Gerais. Em toda a região da bacia vive

cerca de 13 milhões de habitantes, o que corresponde a 10% da população brasileira.

O rio São Francisco beneficia 503 municípios com seus recursos, sendo que

240 destes localizados em Minas Gerais, bem com 70% das suas nascentes. Este estado

ainda concentra aproximadamente 38% da bacia total do São Francisco.

Aproximadamente 40% do estado de Minas Gerais estão dentro do vale.

O São Francisco tem mais de 15 mil quilômetros de águas navegáveis nos

trechos entre Juazeiro, Petrolina e de Piranhas até a foz. No entanto, boa parte desse

potencial não é aproveitada por causa do alto índice de assoreamento do rio.

O “Velho Chico” tem como principais afluentes os rios Paraopeba, Abaeté,

Velhas, Jequitaí, Paracatu, Urucuia, Verde Grande, Carinhanha, Corrente e Rio Grande.

O Rio São Francisco é um dos rios mais importantes do Brasil, não apenas

pelo que proporciona aos que habitam as suas margens, pelo peixe que alimenta; pela

energia que fornece; pela água que se bebe e pela irrigação de milhares de terras de

ribeirinhos que vivem ao seu lado, mas também por sua importância histórica, pois,

quando descoberto, serviu de elo entre o norte e o sul, com a entrada dos bandeirantes

pelo sudeste, na conquista do ouro das pedras preciosas, propiciando o avanço das

expedições para o interior do Brasil e a criação de cidades e lugarejos por toda a

extensão do rio.

Do ponto de vista social, a pobreza predomina nas comunidades ribeirinhas e

sua economia gira em torno da utilização das águas do “Velho Chico” e a pesca

profissional, que é praticada de forma artesanal, como uma das atividades mais

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tradicionais de trabalho no rio São Francisco. Milhares de famílias ribeirinhas dedicam-

se a essa ocupação, por vezes, há mais de uma geração.

Além das belezas naturais, a região banhada pelo Rio São Francisco se

destaca pela produção cultural concebida pela sua gente. O artesanato retrata os

costumes de um povo rico, cheio de histórias e emoções para registrar.

Com produtos fabricados por meio de técnicas transmitidas de pai para filho,

o artesanato das barrancas do Velho Chico é a forma de expressão mais usual de uma

população que lida diariamente com matérias-primas simples e as transforma em

verdadeiras obras de arte.

A cidade de São Francisco (MG), localidade escolhida para este estudo sobre

a atividade artesanal, apresenta excepcionais condições climáticas, hidrobiológicas e de

infra-estrutura para exploração dos recursos naturais existentes. Conta com mestres de

ofício de renome nacional, como os fabricantes de viola caipira Mestre Minervino e

Nego de Venança, além de com artesãos desconhecidos, porém não menos talentosos do

que os primeiros.

Aqui estão registrados alguns ofícios e seus mestres: rendeiras, barqueiros,

músicos e cantadores, gente simples e sábia a um só tempo. Gente que conserva e

procura manter suas tradições. Pessoas simples que no Norte de Minas faz, cria, inventa

e reinventa a vida.

Neste estudo propõe-se a investigação do artesanato, da pesca profissional,

praticada de forma artesanal, do turismo e da cultura na cidade de São Francisco,

ressaltando o seu resgate e questionando se é possível utilizar essas atividades como

atividade econômica e como uma alternativa de investimento na região, capaz de

acelerar o crescimento econômico e social.

A riqueza dos recursos naturais e hídricos disponíveis na região do alto-

médio São Francisco tem despertado, tanto nos investidores privados quanto nos

investidores públicos, crescente interesse em firmar o turismo e o lazer como as grandes

vocações econômicas da região. Essa tendência chama a atenção para o fato de que vêm

sendo colocados em contato segmentos que vivem realidades sociais bastante diversas.

No caso deste estudo, as duas realidades são a do pescador profissional – que tem no

espaço do rio seu local permanente de moradia e trabalho – e a do turista – que utiliza o

mesmo espaço apenas temporariamente e com fins de entretenimento. Além de seus

aspectos econômicos e empresariais, o setor de turismo e lazer se apresenta, também,

como responsável pela construção de novas relações sociais. Desse ponto de vista,

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escolheu-se descrever as relações estabelecidas entre esses dois segmentos e identificar

as interações ou conflitos originados por elas. É importante conhecer a maneira pela

qual o estímulo à presença de grupos fluidos (turistas) interfere no modo tradicional de

vida e de trabalho dos grupos permanentes (pescadores profissionais). Nesse contexto, a

pesquisa foi norteada pela seguinte hipótese: a transformação do lazer em mercadoria,

que tem especificidades territoriais, suscita o acirramento do processo de apartação e

submissão social da população mais carente ali fixada. A apartação e submissão são

caracterizadas pela inviabilidade de tal população tanto de participar das novas

atividades atualmente disponíveis ao turista quanto exercitar as suas próprias tradições

no uso do território.

A metodologia empregada para a obtenção das informações presentes neste

estudo foi a seguinte: pesquisa bibliográfica e de coleta de dados por meio de

entrevistas, abrangendo como espaço empírico a cidade de São Francisco. Utilizou-se a

técnica do depoimento pessoal com entrevistas direcionadas por um questionário semi-

estruturado, aplicado numa amostra seletiva de 40 pessoas, entre elas: artesãos,

pescadores, foliões da região, turistas e pessoas que lidam com tais visitantes.

Ênfase foi dada à abordagem qualitativa, principalmente na coleta e

sistematização de dados, o que permitiu o levantamento das aspirações, expectativas e

impressões que os indivíduos inseridos nos dois segmentos sociais focados possuíam

em relação ao uso do espaço em questão.

Outro instrumento utilizado foi à foto-documentação, essencial para a

caracterização das condições de vida dos artesãos, pescadores, foliões e turistas. Esse

instrumento permitiu os registros da expansão urbana vinculada ao desenvolvimento do

setor turístico e de lazer e da persistência da pobreza do pescador profissional.

Subsidiaram a pesquisa dados quantitativos sobre a qualidade de vida dos

pescadores. Mais especificamente, dados sobre o tipo de moradia e o nível de acesso a

serviços públicos como água e esgoto.

Os relatos e as histórias de vida coletados durante o trabalho são relevantes,

uma vez que estes depoimentos são depositários da sabedoria popular que, através do

tempo e das palavras, ganham forma e se verbalizam como queixas, advertências,

desejos, esperança e a busca de novas alternativas para um futuro mais próspero.

As culturas de tradição oral apresentam, em suas formas de transmitir

saberes, caminhos que se delineiam por rumos inter-relacionados com o que cada

universo concebe e estabelece como essencial. O conteúdo que vai ser transmitido e

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como ele o vai e deve passar por uma seleção natural em que o grupo e/ou a sociedade

que o pratica arranja formas, momentos e situações de concretizar o seu

desenvolvimento e sua assimilação por parte dos membros que compõem a cultura em

questão.

Assim, este estudo apresenta, no capítulo I, o “Velho Chico”, e a sua

caracterização, em seus aspectos históricos, geográficos e sociais. No capítulo II, O rio

São Francisco como geração de renda, é apresentada a pesca como principal fonte de

renda do homem ribeirinho que vive na cidade de São Francisco. O capítulo III, As

principais atividades dos ribeirinhos de São Francisco, retrata o artesanato das

comunidades ribeirinhas nos contextos social, econômico e cultural, pois a cidade de

São Francisco é berço de artesãos de mãos mágicas. No capítulo IV, Turismo e cultura

do ribeirinho de São Francisco, são apresentados o turismo e a cultura da cidade de São

Francisco, bem como alguns artesãos da região, as danças como: a catira, a suça e o

quatro, a religiosidade, além da folia de reis e seus foliões. O capítulo V, Análise do

modo de vida, dos ribeirinhos e suas atividades artesanais em São Francisco – MG, traz

os resultados e a discussão do trabalho de campo, com características específicas da

população ribeirinha selecionada para aplicação dos questionários, tabulação e análise

do modo de vida a partir dos dados coletados

O trabalho encerra-se com a apresentação das referências bibliográficas e

fontes de consulta.

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Riacho do navio corre pro Pajeú O rio Pajeú vai despejar no São Francisco O rio São Francisco vai bater no meio do mar. (Luiz Gonzaga, in Riacho do navio)

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CAPÍTULO I – O “VELHO CHICO”

1.1 Contexto Histórico

A história do rio São Francisco é peculiar. Descoberto pelos navegadores

Américo Vespúcio e Gaspar Lemos, que navegaram em sua foz em 4 de outubro de

1501, recebeu o nome de São Francisco em homenagem a São Francisco de Assis,

nascido na Itália 319 anos antes do descobrimento do rio. O São Francisco era visitado

apenas nas cercanias da foz, pois a mata, a caatinga desconhecida e as tribos selvagens

impediam a penetração nas terras. Os índios que habitavam a região chamavam-no de

Opara, que significa rio-mar. Também é chamado “Velho Chico”.

Segundo fontes históricas1, sabe-se que Duarte Coelho Pereira, o primeiro

donatário da capitania de Pernambuco, em 1522, fundou a cidade de Penedo - AL e foi

o primeiro núcleo povoador das margens. A localização estratégica do povoado, à porta

do sertão, mereceu também atenção dos holandeses, tanto que, mais tarde, em 1637,

ergueram um forte neste local. Além dos holandeses, os franceses também

freqüentavam a costa, e por volta de 1526 chegaram à foz do São Francisco, tanto que

uma pequena baia, próxima à foz, recebeu o nome de Porto dos Franceses.

Já a colonização do vale do médio São Francisco se efetuou em duas épocas

diferentes, a segunda delas quase um século depois da primeira. Os primeiros

estabelecimentos no médio São Francisco iniciaram-se no extremo à jusante.

Exploradores das cidades de Olinda, fundada em 1534, e de Salvador, em 1549, se

aventuraram pelo vale do rio enfrentando muitas dificuldades, dadas à agressividade da

natureza e à presença de selvagens. Um dos primeiros núcleos de colonização foi

estabelecido em Bom Jesus da Lapa - BA2. Na metade do século, um grupo de 200

homens fundou ali um estabelecimento e numerosas fazendas de gado. A criação de

gado começou em 1943, atividade que marca a história do vale. A exploração se

limitava ao litoral, principalmente por causa dos indígenas. Mas lendas sobre riquezas

inacreditáveis atraíam aventureiros que movidos pela cobiça, arriscavam-se continente

1 Expedições, entradas bandeiras. Disponível em: www.achetudoeregiao.com.br/ANIMAIS/rio_sao_francisco. acessado em 12/02/2008. 2 idem

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adentro para encontrar ouro e pedras preciosas. Porém, circulava em Porto Seguro,

boatos delirantes sobre tribos que se enfeitavam com ouro, pedras verdes, cristalinos

diamantes. Em 1553, o Governador-Geral Tomé de Sousa determinou a exploração do

rio, por ordem do rei D. João III, a Francisco Bruza de Espinosa, que formou a primeira

entrada de penetração, levando um jesuíta basco, João de Azpicuelta Navarro3.

De acordo com Godinho & Godinho4, a expedição comandada por Spinosa

dirigiu-se ao Jequitinhonha, tomando o rumo nordeste até a Serra de Grão-Mogol,

seguindo em linha reta até a barra do Mangaí e a do Pandeiros.

Sobre a expedição de Spinosa Barreto relata:

Assim foi que , em fins de 1553 ou princípio de 1554, logo depois que Tomé de Souza passou o geverno de sua Capitania para Duarte da Costa, ao passo que era estabelecida a povoação de São Paulo (25 de janeiro), o castelhano Fransciso Bruza Spinosa, por ordem de Duarte da Costa, atirava-se aos descobrimentos com a primiera expedição que partiu da Bahia e penetrou os sertões mineiros, em busca das famosas esmeraldas que tanto falavam os índios Tupinaki, por compreenderem a importância que os portugueses davam a tais pedras. Essa expedição, segundo a narrativa feita pelo padre Aspilcueta Navarro, que dela fez parte, “depois de muito andar, chegou a um rio grande (o Jequitinhonha), alongou-se por uma delatada serra onde nasce o rio das Ourinas (rio Pardo). Daí seguiu até descobrir um rio caudalosíssimo (o São Francisco), do qual retorcedeu exausta e dizimada, depois de cruentas lutas contra os selvagens e contra toda e multifária agressão da natureza bravia.5

A ocupação do baixo São Francisco, desencadeada por Garcia d’Avila,

membro da comitiva de Tomé de Souza, estava relacionada à atividade pecuária,

açucareira e mineradora, sendo o vale do São Francisco o condutor do desbravamento e

aproveitamnto econômico da maior parte do território nacional.6

Guiados pela cobiça, os colonizadores foram dizimando os índios, que

fugiam para o planalto central. Assim, ergueram-se os primeiros e pequenos arraiais,

iniciando o domínio da região.

3 Expedições, entradas bandeiras. Disponível em: www.achetudoeregiao.com.br/ANIMAIS/rio_sao_francisco. acessado em 12/12/2007. 4 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. 5 BARRETO, A. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1995. 6 ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco - Fator Precípuo Da Existência Do Brasil. 3ª edição. Companhia Editora Nacional, 1993.

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No final do século XVII a história registra a existência de uma fazenda de

gado, próxima à atual cidade da Barra (BA), o principal posto de abastecimento do

médio São Francisco.

Melo procurou transmitir em sua poesia intitulada “solidão”, o sentimento

dos colonizadores em busca dos portos.

Estou só no meio do mundo.../ Ou serei o mundo? / Quero ter um porto / Ou apenas uma passagem? / No porto que deitar meu sonho, / Ficarei tempos tantos / Para sentir na veia, a terra; / Do mundo passado, as alegrias. / Estou só no meio do mundo, / E sem resposta às indagações; / Seguir viagem é um chamado, / Mais só do que quando cheguei.7

O Ciclo do Ouro começou realmente com a bandeira de Fernão Dias Paes,

nas últimas décadas do século XVII.

Pelo sul, mais de cem anos depois da expedição de Spinosa, os sertões do São Francisco são desbravados pelos bandeirantes paulistas, sobretudo pela assomborosa arrancada da bandeira comandada por Fernão Dias Paes (1672 – 1681), que alcança o São Francisco através dos seus afluentes Paraopeba e das Velhas.8

O caminho natural para o litoral e para o Reino era constituído pelos rios São

Francisco e das Velhas – que nasce no município de Ouro Preto (MG) e deságua no rio

São Francisco na localidade de Barra do Guaicuí, município de Várzea da Palma (MG).

São Francisco acima subiam as mercadorias necessárias às minerações e fazendas; os

barcos que regressavam traziam ouro.

Em 1553, Francisco Bruza Espinosa, colonizador pioneiro, pisa o território

que veio a ser Minas Gerais. Era o Ciclo do ouro, com bandeira de Fernão Dias Paes,

nas últimas décadas do século XVII. Eram então o Rio das Velhas e o Rio São

Francisco o caminho natural para o litoral e para o Reino. Através do rio, chegavam

vaqueiros baianos semeando currais e fazendas na vastidão sertaneja. Com eles vinham

também, mineradores em busca das lendárias riquezas em ouro, diamante e pedras

preciosas, de que os índios e desbravadores iam dando notícias.

Surgiram quadrilhas de assaltantes nas estradas e, principalmente, no Velho

Chico. As autoridades designaram bandeirantes como Matias e Januário Cardoso,

7 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003. 8 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.

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Domingos do Prado Oliveira e outros para combatê-las. Muitas quadrilhas se

refugiavam nas aldeias indígenas. Isto serviu de pretexto para expedições genocidas

contra os índios, como a que Januário Cardoso e a do português Manoel Pires Maciel

Parente comandaram na destruição da maior aldeia indígena daquela região, a de

Itapiraçaba - dos caiapós. Foi o caso também de Domingos do Prado Oliveira, que

destroçou com sua gente a grande aldeia dos guaíbas, na ilha fronteira a São Romão,

num pavoroso genocídio ainda na primeira metade do século XVIII. Esse bandeirante

tinha como base o povoado de Pedras de Cima; depois, denominado Pedra dos Angicos9

que se desenvolveu tão rapidamente, passando a sediar a comarca, transferida de São

Romão desde 1873. A 05 de novembro de 1877, Pedras dos Angicos transforma-se em

São Francisco - MG.

O título de Rio da Integração Nacional se deve às entradas e bandeiras que

nos séculos XVII e XVIII usaram-no como rota para penetrar no interior. Conhecido

ainda como Rio dos Currais, servia de trilha para fazer descer o gado do Nordeste até a

região das Minas, sobretudo, no início do século XVIII, quando se encontrava ali o ouro

que atraiu milhões de pessoas à terra e fazendo, integrando a região Nordeste às regiões

Leste, Centro-Oeste e Sudeste. Observa-se na figura 1 o traçado rio São Francisco.

Figura 1: O “Velho Chico” Fonte: Revista Velho Chico

9 Expedições, entradas bandeiras. Disponível em: www.achetudoeregiao.com.br/ANIMAIS/rio_sao_francisco. acessado em 12/12/2007.

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Também foram importantes para a ocupação das áreas ribeirinhas as

missões, registradas na região a partir de 1641, quando os padres Franciscanos

instalaram os primeiros aldeamentos.

Em 1675, o bandeirante Lourenço Castanho encontrou jazidas de ouro em

afluentes do São Francisco e massacrou os índios cataguazes da região. Entre as várias

expedições dos bandeirantes que passaram pelo São Francisco contam-se Matias

Cardoso, Domingos Jorge Velho, Domingos Sertão, Borba Gato e Domingos Mafrense

- este último subiu alguns afluentes, chegando às nascentes do Parnaíba.

Em 1678 os bandeirantes Salmeron e Soeiros chegaram à região de São

Francisco. Porém, encontraram resistência dos índios que procuravam impedir que

estranhos dominassem seu território. Entretanto, nos anos seguintes os brancos

venceram as tribos indígenas, que cederam lugar à colonização do local.

O folclorista João Naves de Melo também faz referência a estes

acontecimentos:

Rota das rotas de quem busca seu destino, / E tromba nos sonhos sem entender o que teve; / Águas chegadas e águas roladas, sem fim, / Colhendo história para escrever epopéias. / Do sol que nasce, brilhando e rebrilhando, / Um espelho de vida que mostra todo o céu; / Se é noite, de lua ou escura, sem diferença: / Dorme embalando tantos segredos e lendas. / É sangue, é corpo, é alma que escorre; / É um povo que se dilui em saudades, / Porque, mesmo indo nas águas majestosas, /Deixa parte plantada nas barrancas seculares.10

A colonização do Alto São Francisco iniciou-se a partir da descoberta do

ouro, ao término do século XVII e início do século XVIII. A região antes percorrida por

exploradores, sem qualquer povoamento, onde se localiza atualmente a cidade de Ouro

Preto (MG), desenvolveu-se em conseqüência da prosperidade mineira, que se

expandia. Muitos paulistas fixaram-se no alto São Francisco, fundando cidades que hoje

têm seus nomes, como Matias Cardoso. A descoberta de ouro em Goiás, por volta de

1720, intensificou o povoamento.

No século XVII, os paulistas já haviam chegado à região das minas à

procura de ouro e pedras preciosas. É bastante conhecida a saga dos chamados

bandeirantes, que, antes da descoberta das minas, dedicavam-se sobretudo a prear índios

para servirem como escravos. A história de alguns paulistas que chegaram à sub-região

10 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.

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do Rio das Velhas está relacionada à colonização do Vale do São Francisco. Fernão

Dias Paes lá esteve à procura de esmeraldas. Borba Gato descobriu minas na sub-região

do Alto Rio das Velhas. No princípio do século XVIII, alguns conflitos entre paulistas e

emboabas ocorreram naquele afluente. Mathias e Januário Cardoso, Manuel Francisco

Toledo e Manoel Pires Maciel combateram e escravizaram índios e se estabeleceram no

Médio São Francisco. Mas os paulistas atuaram também na área da construção naval. 11

Desde o início do século XVIII o desbravamento do São Francisco era

completado por gente de Salvador e Recife. Para a fixação, concorreu a descoberta de

ouro em Jacobina, no médio vale, junto da cabeceira de seu o afluente, o rio Salitre, e

pelo povoamento do Piauí, Maranhão e Ceará. Desenvolveram-se as fazendas de criação

de gado.

Do ponto de vista histórico, o vale do rio pode ser dividido em três grande

regiões, considerando-se o processo de ocupação humana no período colonial. A esse

respeito, Euclides da Cunha ensaiou uma divisão:

...o São Francisco foi nas altas cabeceiras, a sede essencial da agitação mineira; no curso inferior, o teatro das missões; e, na região média, a terra clássica do regímem pastoril, único compatível com a situação econômica e social da colônia. Bateram-lhe por igual às margens o bandeirante, o jesuíta e o vaqueiro12.

De acordo com Godinho & Godinho13, muito tem se modificado ao longo

do São Francisco desde 1867, quando Burton viajou de canoa de Sabará até o mar, mas

não a importância do rio para os brasileiros. Ele é ainda o Velho Chico, o rio da unidade

nacional, e este livro que Hugo e Alexandre Godinho organizaram é o relato de um

outro tipo de viagem – o da investigação científica e o do ouvir paciente as histórias do

povo que vive ao longo do rio e luta para retirar dele sua sobrevivência. O São

Francisco dos tempos de Burton tem sido barrado, vastos lagos artificiais quase

suprimiram a catarata de Paulo Afonso que ele descreveu como a Niágara brasileira, a

água tem sido extraída para agricultura e poluída pela indústria, e planos nacionais de

revitalização ainda contemplam desvio maciço do rio.

Durante o século XVIII, as contínuas descobertas de minerais e pedras

provocaram novas colonizações nas áreas montanhosas, causando no vale do rio poucas

11 NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004. 12 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984. 13 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas. 2003.

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alterações. A cidade de São Francisco, situada ao norte de Minas, teve início neste

século, sendo fundada em 1877.

Podemos afirmar que nos séculos XVII e XVIII foram os da conquista e colonização da Bacia do São Francisco. Já o século XIX, cujo marco inicial é a instalação da família real no Rio de Janeiro, consolida a importância do Rio São Francisco para a integração nacional. Não por acaso, D. João VI encarrega os engenheiros Lias e Halfeld de estudar a viabilidade de ampliar sua navegação. Data igualmente dessa época, a descoberta, do São Francisco pelos naturalistas europeus que realizam os primeiros trabalhos de cunho analítico, não só enfatizando o potencial da região, mas também incluindo a caracterização dos problemas e mazelas já então observados. 14

Na segunda metade do século XVIII, a mineração entrou em decadência com

a paralisação das descobertas. Por serem de aluvião o ouro e diamantes descobertos

eram facilmente extraídos, o que levou à exploração constante, fazendo com que as

jazidas se esgotassem rapidamente. Esse esgotamento deveu-se fundamentalmente ao

desconhecimento técnico dos mineradores, uma vez que enquanto a extração foi feita

apenas nos veios (leitos dos rios), nos tabuleiros (margens) e nas grupiaras (encostas

mais profundas) a técnica, apesar de rudimentar, foi suficiente para o sucesso do

empreendimento. Numa quarta etapa, porém, quando a extração atingiu as rochas

matrizes, formadas por minério extremamente duro (quartzo itabirito), as escavações

não conseguiram prosseguir, iniciando o declínio da economia mineradora. Como as

outras atividades eram subsidiárias ao ouro e ao diamante, toda economia colonial

entrou em declínio. Muitas cidades e povoados diminuíram em tamanho e importância.

A agricultura substituiu a mineração. Cidades nascidas da mineração subsistiram da

agricultura.

No século XVIII parte da comunidade indígena de Santana do Cariri, no

Ceará migrou para as nascentes do rio São Francisco na tentativa de se livrarem da

dominação portuguesa e caminharam grandes distâncias até a primeira cachoeira

formada pelo leito do rio, decidindo aí se estabelecer.

Segundo Machado15 a povoação dessa região foi facilitada pelo rio São

Francisco, que permitia acesso a várias regiões.

Machado16 acrescenta que por volta de 1887, São Francisco era formada

basicamente de pescadores e suas famílias que sobreviviam da pesca e do comércio

deste produto que era revendido por tropeiros às cidades, vilas e arraiais. As pequenas 14 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. 15 MACHADO, Fernando da Matta. Navegação no Rio São Francisco. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002. 16 MACHADO, Fernando da Matta. Navegação no Rio São Francisco. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.

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casas que existiam seguiam o estilo da cultura indígena; construídas de barro e com

telhados de capim e palhas.

Alguns dados estatísticos ajudam a compreender a realidade social da

população que vive às margens do São Francisco. Os 103 municípios ribeirinhos do São

Francisco abrigam pouco mais de 2,4 milhões de pessoas, distribuídos pelos cinco

estados banhados pelo rio. Aproximadamente dois terços dessa população encontram-se

nos Estados da Bahia e de Minas Gerais, distribuindo-se o outro terço pelos Estados de

Pernambuco, Alagoas e Sergipe.17

1.2 Aspectos Geográficos

Pesquisando a história e características do rio São Francisco, descobre-se

que sua extensão é de aproximadamente 2.700 km, entre sua nascente, localizada na

Serra da Canastra, no município mineiro de São Roque de Minas, e a foz, situada entre

os estados de Alagoas e Sergipe, nas proximidades da cidade de Piaçabuçu - AL. Ao

longo do seu curso, o rio banha municípios de vários estados: Minas Gerais, Bahia,

Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Sua bacia hidrográfica é totalmente brasileira, além

dos estados citados, inclui ainda o estado de Goiás e o Distrito Federal18.

A bacia do rio São Francisco é dividida em: Alto São Francisco: estende-se

da nascente até a cidade mineira de São Francisco; Médio São Francisco: compreende o

trecho entre São Francisco até a cidade baiana de Remanso; Sub-médio São Francisco:

estende-se de Remanso até a cidade baiana de Paulo Afonso e Baixo São Francisco:

situa-se em áreas dos estados da Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, estendendo-se

de Paulo Afonso até a foz.

Na figura 2 vê-se o mapa da Bacia do São Francisco.

17 IBGE, 2000. 18 Fonte : Rio São Francisco: Patrimônio Cultural e Natural – Belo Horizonte : Assembléia Legislativa de Minas Gerais – 2003.

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Figura 2: Bacia do São Francisco Fonte: IBGE, 1999

A morfologia do rio São Francisco apresenta perfil diversificado que,

segundo critérios geomorfológicos de sua calha e da várzea (com diques marginais,

bancos de areias, anais de enchentes com lagoas temporárias e perenes etc.) pode ser

dividida em sete segmentos: 1º de suas nascentes, na cota aproximada dos 1.400 m, até

a cota dos 650 m, na confluência do rio Ajudas numa extensão de 100 km; 2º daí até o

reservatório de Três Marias; 3º.19 da barragem de Três Marias até Pirapora; 4º de

Pirapora até a confluência do rio Carinhanha; 5º daí até o reservatório de Sobradinho; 6º

da barragem de Sobradinho até Paulo Afonso; 7º daí até a foz.

Ao longo do seu curso, o rio possui 36 afluentes de porte significativo, dos

quais 19 são perenes. Em geral, os afluentes da margem direita, que nascem em terrenos

19 IBGE, 1999.

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cristalinos, nos maciços das Serras das Vertentes e do Espinhaço, possuem águas mais

claras, enquanto os da margem esquerda, vindos de terrenos sedimentares, nos altos

chapadões do oeste mineiro, leste goiano e tocantinense, são mais barrentos. Seus

principais afluentes são: Rio Paraopeba; Rio Abaeté; Rio das Velhas; Rio Jequitaí; Rio

Paracatu; Rio Urucuia; Rio Verde Grande; Rio Carinhanha; Rio Corrente; Rio Grande.

De acordo com o IBGE20 a cobertura pedológica da Bacia apresenta os

principais tipos e ordens de solos já mapeados no Brasil. A bacia possui ainda os

seguintes climas: tropical úmido, clima seco com chuvas de verão, clima temperado

chuvoso e clima subtropical de altitude. O rio São Francisco atravessa regiões com

condições naturais das mais diversas. As partes extrema superior e inferior da bacia

apresentam bons índices pluviométricos, enquanto os seus cursos médio e sub-médio

atravessam áreas de clima bastante seco. O alto São Francisco é uma região de muitas

chuvas (de 1.500 a 1.000 mm anuais), que caem de novembro a abril, respondendo por

3/4 do escoamento total do rio. Assim, a maior parte do deflúvio do São Francisco é

gerado em Minas Gerais, cuja área da bacia é de apenas 37% da área total. A vegetação

é definida também pelo IBGE21 em Cerrado, Caatinga e Florestas Tropicais.

Na zona sertaneja semi-árida, apesar da intensa evaporação, da baixa

pluviosidade e dos afluentes temporários da margem direita, o rio tem seu volume

d'água diminuído, mas mantém-se perene, graças ao mecanismo de retroalimentação

proveniente do seu alto curso e dos afluentes no centro de Minas Gerais e oeste da

Bahia. Nesse trecho o período das cheias ocorre de outubro a abril, com altura máxima

em março, no fim da estação chuvosa. As vazantes são observadas de maio a setembro,

condicionadas à estação seca.

Em grande parte do vale do São Francisco as áreas mais propícias ao

aproveitamento agrícola situam-se às margens do mesmo. Por esse motivo a maior

parcela da população do vale se encontra nas proximidades do rio. Nas áreas ribeirinhas

onde há maior crescimento e progresso, como Petrolina (PE) e Juazeiro (BA)

predominam a atividade de agricultura irrigada. Esta região apresenta-se atualmente

como a maior produtora de frutas tropicais do país, recebendo atenção especial,

também, a produção de vinho, em uma das poucas regiões do mundo que obtêm duas

safras anuais de uvas.

20 IBGE, 1995. 21 IBGE, 1999.

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Desde o seu descobrimento, o rio São Francisco é o principal recurso natural

que impulsiona o desenvolvimento regional. Hoje gera energia elétrica para abastecer

todo o Nordeste e parte do estado de Minas Gerais, com as hidroelétricas de Paulo

Afonso (AL/BA), Moxotó (AL/BA), Xingó (AL/SE), Itaparica (PE/BA), Sobradinho

(PE/BA) e Três Marias (MG).

A respeito das barragens, Godinho & Godinho afirmam:

As barragens hidrelétricas produzem forte impacto negativo na pesca e estão entre as principais causas do declínio da pesca em rios de muitos países. A regularização do regime hidrológico de um rio por meio de barragens é geralmente reconhecida como uma das formas mais devastadoras de degradação do habitat de águas interiores. O barramento pode modificar o regime hidrológico natural e a qualidade da água, de modo a afetar negativamente as condições de jusante. Mudanças ocorrem nos habitats de desova, em áreas de abrigo e nos gatilhos do ciclo de vida, como aquele que desencadeia a desova. O segmento jusante torna-se regulável de acordo com as necessidades de geração de energia hidrelétrica, atenuando as grandes cheias. Várzeas, antes alagáveis, deixam de receber água, comprometendo o seu papel de berçários de jovens de peixes migradores. A instalação de um regime hidrológico favorável é, portanto, importante forma de restauração do habitat. Além disso, as barragens constituem uma barreira intransponível na rota migratória dos peixes de piracema, que são os mais valiosos do ponto de vista pesqueiro, reduzindo seu sucesso reprodutivo. A nova situação no segmento de montante da barragem também é dramática para a pesca. Todavia, seus efeitos dependem da posição geográfica da barragem na bacia hidrográfica. 22

A pesca predatória pode produzir forte impacto negativo nos estoques

pesqueiros. Equipamentos e métodos inadequados ou ilegais são tradicionalmente

utilizados por parte dos pescadores. As limitações legais impostas à época, ao tamanho

e à quantidade do pescado capturado não são respeitadas por todos. Por outro lado, a

carência de informações essenciais sobre a pesca e sobre os peixes impede o

estabelecimento de normas de pesca mais adequadas. Dentre as técnicas disponíveis

para normalização da pesca estão: época de defeso, tamanho mínimo de captura,

santuários, limite de captura, restrições do esforço e de petrechos de pesca. Por último,

mas não menos importante, o avanço das fronteiras agroindustriais e dos aglomerados

urbano-industriais produz impactos que se somam aos anteriormente discutidos.

O repovoamento é uma das estratégias mais usadas para a reabilitação

pesqueira, embora envolva riscos relativos à eficiência do programa quanto aos seus

resultados, à preservação do pool genético e à possibilidade de introdução de doenças,

além de outros aspectos ecológicos e econômicos. Quando empregado isoladamente,

22 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003, p.20.

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atua como medida mitigadora de curto prazo e não atinge as causas da debilitação da

pesca. As três principais recomendações para o uso de repovoamento são: manter a

produção face à exploração intensiva, mitigar ou compensar impactos negativos e

aumentar a produção de um dos componentes do sistema aquático. Segundo esse autor,

não existem dúvidas de que o repovoamento tornar-se-á cada vez mais importante como

ferramenta para o manejo de rios, para a manutenção de estoques altamente explorados

ou de espécies que, de outra forma, se extinguiriam.

No rio São Francisco, a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos

Vales do São Francisco e Parnaíba) vem, periodicamente, realizando repovoamentos na

região de Três Marias com espécies nativas, desde os meados da década de 1980.

Avaliações quantitativas sistemáticas sobre o desempenho dessa medida ainda não estão

disponíveis. Todavia, relatórios mostram que o matrinchã, por exemplo, considerado

extinto localmente, tem sido capturado em números crescentes, desde quando se iniciou

seu repovoamento.23

A normalização é uma ferramenta usada em conjunto com outras práticas de

reabilitação, tais como manipulação da população (repovoamento) ou do habitat

(manejo hidrológico). Seu propósito é proteger ou incrementar a pesca para benefício

dos usuários. Ela protege as populações de peixes da sobrepesca, distribui a captura

entre os pescadores e provê o pescador de uma expectativa de pescaria bem-sucedida.

É preciso, no entanto, atentar para a degradação e os impactos ambientais

que o São Francisco vem sofrendo.

No seu trecho navegável, a gaiolas e barcos a vapor dizimam a mata ciliar, ocasionando alargamento de seu leito e conseqüente abaixamento de suas águas. Atualmente, o homem moderno vem construindo grandes barragens, cujos extensos lagos não são adequadamente monitorados; a agricultura ribeirinha rouba suas águas que, quando voltam ao seu leito, vêm impregnadas de agrotóxicos que poluem seu curso, matando a biodiversidade nele existente. A pesca predatória, utilizando redes e armadilhas, dizimou seus cardumes. Estudos de recarga aqüífera são inexistentes. A região é pobre, sem força política.24

Ao longo do rio existem 103 municípios ribeirinhos distribuídos pelos cinco

estados banhados pelo rio. O Estado de Minas Gerais abriga o maior número de

23 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. 24 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.

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municípios ribeirinhos. Segundo Ministério da Integração Nacional25, abaixo, alguns

municípios que compõem a bacia do rio São Francisco em Minas Gerais:

Araçaí, Augusto de Lima, Belo Horizonte, Belo Vale, Bom Despacho,

Brasília de Minas, Brumadinho, Buenópolis, Cachoeira da Prata, Caetanópolis, Caeté,

Capitão Enéas, Carmo da Mata, Conceição do Mato Dentro, Cordisburgo, Corinto,

Córrego do Fundo, Curvelo, Diamantina, Esmeraldas, Espinosa, Felixlândia, Formiga,

Fortuna de Minas, Francisco Sá, Gameleiras, Guaraciama, Ibiaí, Ibiracatu, Icaraí de

Minas, Igarapé, Itacarambi, Itaguara, Itapecerica, Itatiaiuçu, Itaúna, Itaverava,

Jaboticatubas, Jaíba, Janaúba, Januária, Jequitaí, Jequitibá, Joaquim Felício, Juatuba,

Juramento, Lagoa da Prata, Lagoa dos Patos, Lagoa Dourada, Lagoa Santa, Mamonas,

Maravilhas, Martinho Campos, Mateus Leme, Matias Cardoso, Ouro Branco, Pará de

Minas, Paraopeba, Passatempo, Patins, Pedras de Maria da Cruz, Pedro Leopoldo,

Pirapora, Pitangui, Ribeirão das Neves, Sabará, Santa Luzia, Santo Hipólito, São

Francisco, São Gonçalo do Pará, São Joaquim de Bicas, São Romão, Serro, Sete

Lagoas, Santa Fé de Minas, Santo Antônio do Monte, Taquaraçu de Minas, Três

Marias, Vargem Bonita, Várzea da Palma e outros mais.

A pobreza das comunidades ribeirinhas, observável por quem viaja pelo rio,

é confirmada pelos dados estatísticos governamentais. A média do índice de

desenvolvimento humano (IDH) dos municípios ribeirinhos situa-se significativamente

abaixo da média nacional. Segundo o IBGE (2006) 26, dentre os municípios ribeirinhos,

os 15 que apresentam melhor índice de desenvolvimento humano são os mineiros.

A fonte de vida e de riqueza das águas do Rio São Francisco possibilita o

múltiplo uso do seu potencial hídrico, para abastecimento humano, agricultura irrigada,

geração de energia, navegação, piscicultura, lazer e turismo. Há alguns anos, vários

problemas de natureza social e econômica vêm afetando o percurso natural do rio.

A bacia do rio São Francisco, com área maior que a soma das áreas de

Portugal e Espanha, situada numa faixa intertropical de sul para norte, apresenta

diversidades biótica e abiótica únicas, verdadeiro desafio para qualquer estudioso da

região. Se considerarmos a ausência de estudos específicos, a bacia torna-se vasto

laboratório de pesquisa sem-par. Desde épocas históricas, o rio São Francisco vem

sofrendo impactos ambientais introduzidos pelo homem. No seu trecho navegável, as

gaiolas e barcos a vapor dizimam a mata ciliar, ocasionando alargamento de seu leito e

25 http://www.integracao.gov.br/saofrancisco/noticias/noticia.asp?id=3056 acessado em 12/12/2007 26 IBGE, 2006

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conseqüente abaixamento de suas águas. A pesca predatória, utilizando redes e

armadilhas, dizimou seus cardumes. Estudos de recarga de seu aqüífero são inexistentes.

A região é pobre, sem força política.

O sertão norte-mineiro que está inserido no bioma cerrado, com suas

peculiaridades climáticas, vegetais e geográficas se destaca no território brasileiro, visto

que é atravessado pelo rio São Francisco, o qual representa séculos, de importância,

indispensável para a formação demográfica de Minas considerada canal de integração

entre o litoral e o interior brasileiro.

Neste contexto geográfico, encontra-se o município de São Francisco, às

margens do referido rio de mesmo nome. O município de São Francisco está situado na

região Norte de Minas Gerais, a 580 km da capital Belo Horizonte. A partir de 1702,

aproximadamente, data em que se estabeleceu o bandeirante paulista, Domingos do

Prado de Oliveira, fundador do povoamento original, conforme Brasiliano Braz27,

terminologias como “Pedras de Cima”, “Pedras dos Angicos”, São José dos Angicos”,

“Cidade Evangelina”, “São Francisco das Pedras”, e finalmente, “São Francisco”, todas

essas denominações faziam referência ao atual Município de São Francisco, hoje com

uma configuração territorial e demográfica bastante diversa.

1.3 Degradação, Revitalização e Transposição do rio São Francisco: questões urgentes

Um exemplo de como o país vem administrando seus recursos naturais é

muito bem retratado através do estado de degradação em que se encontra o rio São

Francisco. Dentre os principais agentes poluidores do São Francisco destacam-se as

ações desordenadas de mineradoras, a erosão do solo, o uso indiscriminado de

agrotóxicos. Mas o grande vilão é a região metropolitana de Belo Horizonte, capital de

Minas Gerais, que polui seu maior afluente, o Rio das Velhas.

O rio São Francisco é vítima do desmatamento e queimadas desde a sua

nascente, na Serra da Canastra, em Minas Gerais, da poluição na forma de agrotóxicos,

esgotos domésticos e industriais, além do desvio de água cada vez maior para projetos

27 BRAZ, Brasiliano. São Francisco Nos Caminhos da História. São Francisco: Lemes, 1977

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de irrigação mal elaborados, o rio São Francisco a cada ano tem diminuído

perigosamente o seu volume de água e a navegação já não se faz em determinados

trechos e em determinadas épocas. Observe na figura 3 a degradação do leito e das

margens do rio São Francisco. 28

Figura 3: degradação do leito e das margens do rio São Francisco

Fonte: http://www.brasiloeste.com.br/noticia/rio-sao-francisco-meio-ambiente

O rio também é vítima do desprezo e da irresponsabilidade de sucessivos

governantes, seja a nível federal ou estadual, insensíveis e incapazes da adoção de

medidas para impedir a sua “morte lenta”. As derrubadas e queimadas de árvores, seja

na nascente ou ao longo do seu percurso, estão cada vez maiores. As cidades ribeirinhas

não têm sistema de tratamento de esgoto e as indústrias continuam despejando toda

sujeira no seu leito. Agricultores, alguns sem escrúpulos, outros por falta de orientação,

usam e abusam de agrotóxicos em plantações nas margens do rio e esse veneno também

é conduzido para o rio São Francisco.

Além de contribuir para secas constantes nas nascentes do São Francisco e

de seus afluentes, o desmatamento provoca a queda de barrancas e, conseqüentemente,

28 www.ambientebrasil.com.br/composer. agua/doce/artigos/velhochico.html acessado em 12/12/2007

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o assoreamento do rio (acúmulo de terra no leito). O resultado disso é o perigo e a

dificuldade de navegação, pois muitas ilhas já estão formadas em seu percurso. 29

A degradação é o que mais tem atingido o São Francisco nos últimos anos. A

maioria dos 503 municípios existentes ao longo da bacia do rio joga esgoto em suas

águas. Além disso, as matas ciliares da região alta do rio São Francisco, entre Minas

Gerais e Bahia, foram quase totalmente destruídas. Muitas entidades questionam que, se

o governo tinha consciência do estado de degradação do rio, como vinha até agora

defendendo a transposição?

A revitalização é ponto essencial para o rio São Francisco e condição para

que muitos estados do Norte e Nordeste aceitem a transposição. O rio vive em estado de

degradação profunda, perdendo volume de água a cada ano e, com isso, ameaçando a

geração de energia. Na Bahia, o Lago do Sobradinho, que abastece as usinas do

complexo hidrelétrico de Paulo Afonso, operado pela Chesf (Companhia Hidrelétrica do

São Francisco), e que responde pela geração de energia para todo o Nordeste, é um

exemplo da fadiga do São Francisco.

Para o coordenador técnico do Projeto São Francisco, João Urbano Cagnin30:

A revitalização do São Francisco é uma ação fundamental para garantir a continuidade do abastecimento de água aos estados Nordestinos e para suprir as necessidades dos nove milhões de brasileiros que habitam a região do semi-árido, pois é a maior fonte de água doce da região.

As prioridades estabelecidas para a região do alto São Francisco são a

proteção das nascentes, a recomposição das matas ciliares e o saneamento básico das

cidades e vilas que se localizam às margens do rio. No médio São Francisco, os pontos

mais relevantes do programa estão centrados na complementação dos projetos de

irrigação já iniciados e na melhoria da Hidrovia do São Francisco para garantir boas

condições de navegação até Juazeiro.

A polêmica ‘revitalização x transposição’ do Velho Chico se arrasta por

alguns anos e ainda é motivo para acaloradas discussões. Mesmo que a primeira posição

prevaleça, a segunda continua viva e com ferrenhos defensores, tanto nas possíveis

cidades afetadas quanto no Congresso e órgãos do governo.

29 idem. 30 http://www.integracao.gov.br/saofrancisco/noticias/noticia.asp. acessado em 03/01/2008

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Independente disso, grandes obras com o intuito de levar água ao semi-árido

brasileiro já se encontram em funcionamento ou em construção, a maioria sob a

responsabilidade da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e

Parnaíba (Codevasf). Estes projetos, principalmente os de irrigação, ajudam a

reestruturar parte da economia, do cotidiano e da natureza da região.

O Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco

(PRSF) é coordenado pela Secretaria- Executiva do Ministério do Meio Ambiente, em

parceria com o Ministério da Integração Nacional. Com prazo de execução de 20 anos,

suas ações estão inseridas no Programa de revitalização de bacias hidrográficas com

vulnerabilidade ambiental do Plano Plurianual (PPA 2004/2007) e será complementado

por outras ações previstas em vários programas federais do PPA. As ações de

revitalização são executadas de acordo com a Política Nacional de Meio Ambiente – Lei

nº. 6.938/81, Política Nacional de Recursos Hídricos – Lei nº. 9.433/97 e a Política

Nacional de Saneamento – Lei nº. 11.445/0731. Divide-se em 5 linhas de ações, em

conformidade como Plano de Atividades e Metas 2004-2007 – PAM: Gestão e

Monitoramento; Agenda Socioambiental; Proteção e uso sustentável de recursos

naturais; Qualidade de saneamento ambiental e Economias Sustentáveis.

O Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco

terá sua continuidade assegurados com recursos do Programa de Aceleração do

Crescimento – PAC (2007-2010) na ordem de R$ 1.274.700.000,00. As ações previstas

consistem em obras de saneamento básico (resíduos sólidos, esgoto), contenção de

barrancos e de controle de processos erosivos, melhoria da navegabilidade e

recuperação de matas ciliares. As ações de esgotamento sanitário, inicialmente,

envolverão os 102 municípios da calha do rio São Francisco. Este programa representa

um esforço comum de articulação e integração entre os vários órgãos de governos em

todas as esferas e da sociedade civil, todos imbuídos do propósito único que é promover

a revitalização da bacia e o desenvolvimento em base sustentável e alcançar a

governabilidade desejada, reconhecida como chave para a gestão mais eqüitativa,

eficiente e sustentável dos recursos naturais.

31 Fonte: Agência Nacional das Águas, em: http://www.ana.gov.br/gefsf/conteudo acessado em 03/01/2008

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A irrigação no Vale do São Francisco, especialmente no semi-árido, é uma

atividade social e econômica dinâmica, geradora de emprego e renda na região e de

divisas para o País – suas frutas são exportadas para os EUA e Europa.

O Programa de Revitalização do São Francisco, cujas ações já se iniciaram,

contempla, no curto prazo, a melhoria da navegação no rio, providência que permitirá a

otimização do transporte de grãos (soja, algodão e milho, essencialmente) do Oeste da

Bahia para o porto de Juazeiro (BA) e daí, por ferrovia, para os principais portos

nordestinos.

O projeto de usar as águas do Rio São Francisco para combater o problema

da seca no Nordeste Setentrional (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte)

remonta ao século XIX. Foi em 1886 que o engenheiro Tristão Franklin Alencar de

Lima cogitou pela primeira vez nessa idéia. Desde então, muitas outras propostas

surgiram, mas em nenhuma foi comprovada eficácia suficiente que justificasse a

execução.

A proposta atual32 prevê em duas tomadas d'água levar 127 m3/s de água a

partir da cidade de Cabrobó (PE), eixo norte, (de onde serão levados 99m3/s) e do lago

de ltaparica (BA), eixo leste (serão levados 28m3/s).No Ceará, o Rio Jaguaribe e bacias

metropolitana de Fortaleza seriam interligadas pelo Canal do Trabalhador. No Rio

Grande do Norte, os rios beneficiados seriam o Apodi e o Piranhas-Açu. Na Paraíba, as

águas do Velho Chico alimentariam a vazão dos rios Piranhas e Paraíba. Em

Penambuco, os rios Brígida e Moxotó seriam contemplados. Para a água alcançar as

vertentes dos estados, terá que ser elevada a 164 metros de altura, passar por túneis e

aquedutos e percorrer dois mil quilômetros de rios e canais a céu aberto, evaporando e

infiltrando. Porém, o bombeamento não será contínuo, pois o objetivo é somente suprir

alguns açudes para compensar a água evaporada, abastecendo seis milhões de pessoas e

irrigando 180 mil hectares de terras.

Um dos grandes argumentos de quem é contra o Projeto é de que os canais

irão passar por grandes fazendas e beneficiar latifúndios e não a população mais pobre.

Porém, analisando a outorga que foi concedida pela Agência Nacional de Águas (ANA),

que é responsável pela liberação de licenças para uso e exploração de água, percebe-se

que lá está escrito de forma inquestionável que a prioridade é para consumo humano e

dessedentação animal.

32 Fonte: Agência Nacional das Águas, em: http://www.ana.gov.br/gefsf/conteudo.

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As pessoas não vivem sem água, mas também não vivem só de água.

Precisam do emprego, precisam de renda, precisam de comida. Exatamente por isso, a

sobra de água deve sim ser utilizada para beneficiar a produção, além do consumo

humano e a dessedentação animal, que são absolutamente prioritários.

Observa-se na figura 4 o mapa do Projeto de Transposição do Rio São

Francisco.

Figura 4: Projeto de Transposição do rio São Francisco Fonte: Ministério da Integração Nacional, em:

www.integracao.gov.br/saofrancisco/noticias/noticia

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Segundo o Ministério da Integração Nacional33, um engano muito freqüente

em relação a esse projeto é o de que o curso do rio irá ser desviado. O que se vai fazer

na realidade é bombear 26 m³/s para atender e matar a sede de nossos irmãos do

Nordeste Setentrional. O que significa dizer que a cada 100 litros, a proposta é tirar 1,4

litros para esse projeto que se assemelha a tantos projetos de irrigação que utilizam água

do Rio São Francisco. Como, por exemplo, ao sistema de abastecimento da cidade de

Aracaju, que nada mais é do que uma transposição de águas. As águas do Rio São

Francisco se integram à Bacia do Rio Sergipe, para abastecer, 100 km depois, a cidade

de Aracaju, que é uma cidade fora da Bacia do São Francisco. Essa ligação foi feita por

soluções de obra de engenharia (canais, túneis, aquedutos). São soluções de engenharia,

pois hoje temos tecnologias extremamente modernas e testadas para esse tipo de obra.

A garantia de que o projeto não terá um impacto ambiental negativo na

Bacia do São Francisco é que um órgão do rigor do Ibama, que tem respeitabilidade em

todo país e até fora do país demorou tanto tempo para conceder as licenças, estabeleceu

36 Planos Básicos Ambientais, que visam proteger o ambiente e que o Ministério da

Integração Nacional está levando adiante com muita seriedade. Inclusive, foi sugerido e

criado uma comissão interministerial para acompanhar a implementação de todos esses

planos, que vão mitigar e amenizar qualquer problema ambiental que eventualmente

possa surgir. 34

Considerado inviável, o projeto de Transposição do rio São Francisco, agora

“maquiadamente” denominado “Projeto de Integração da Bacia do São Francisco às

Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional” tem sido assunto de discussão no país

inteiro. Dos 44 impactos listados no Relatório de Impacto Ambiental, somente 11 são

considerados positivos, mas muitas incertezas ainda estão são sem explicações. Além

dos potenciais impactos sobre os peixes, o projeto de transposição apresenta outros

problemas. Primeiramente, regiões áridas não são próprias para incentivo de

adensamento humano. O atual projeto, além de teoricamente melhorar a condição de

vida dos que lá já se encontram pode, por outro lado, incentivar o aumento de sua

população. Isso acarretaria novos problemas e necessidade de mais água no futuro.

Também muito se ouve de especialistas, inclusive nordestinos, que é

possível aumentar a oferta de água para a população da região através da interligação 33 Fonte: www.integracao.gov.br/saofrancisco/noticias/noticia.asp acessado em 03/01/2008. 34 Ministro da Integração Nacional Geddel Vieira Lima, em www.integração.gov.br acessado em 03/01/2008

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mais eficiente dos açudes existentes, coleta de água de chuva e armazenamento, e

perfuração de poços artesianos. Diz-se que a água armazenada atualmente é bastante

para manter a população e que não é utilizada para reservar para épocas de seca mais

severa.

A água que atualmente flui pelo rio São Francisco, abaixo do ponto de

captação previsto, passa por 5 grandes usinas hidrelétricas. Além de restringir a

produção energética numa região ainda carente desse insumo, a elevação da água por

meio de potentes bombas (160 m no eixo norte e de cerca de 300m no eixo leste)

consumirá, por outro lado, porção relevante da energia produzida na região.

Surgem também suspeitas de que o equipamento a ser comprado para o

bombeamento teria sido adquirido por outro país e não foi utilizado. Será que essas

bombas são dimensionadas para o volume projetado para a nossa transposição ou para o

projeto do outro país? O Governo garante que a transposição visa exclusivamente o

abastecimento humano. Mas sabe-se que outros grandes grupos têm seus interesses: as

fazendas de camarões e de criação de peixes da espécie tilápia em larga escala, os

grupos produtores de frutas irrigadas, as empreiteiras que conduzirão a obra e os

fornecedores de grandes volumes de cimento e ferro, entre outros.

Mesmo desconsiderando tudo o que foi dito acima, quem garante que os 720

km de canais a céu aberto, revestido de concreto, não serão ocupados pela população

carente? Existe o risco de uma verdadeira favelização desses canais, trazendo junto o

lixo e esgotos produzidos. A possibilidade de perda da qualidade da água é iminente.

Sem se considerar a presença de animais, também muito provável.

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Lá na serra da Canastra lá de Minas Gerais O Senhor olhou seu povo e uma lágrima derramou Esse choro virou rio e São Francisco se chamou. (Frei Luiz Capio, bispo da Igreja Católica)

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CAPÍTULO II – O RIO SÃO FRANCISCO COMO GERAÇÃO DE RENDA

2.1 Contexto Sócio-econômico e Cultural

A cidade de São Francisco, localizada na região Norte do Estado de Minas

Gerais, é cortada na direção sudoeste nordeste pelo Rio São Francisco, ficando à sua

margem direita. Tem 3.300 km² e sua população é de aproximadamente 52.985

habitantes (IBGE, 2007).

A figura 5 mostra a localização do município de São Francisco, no Estado de

Minas Gerais.

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Figura 5: Localização da cidade São Francisco Fonte: IBGE

O cerrado, a mata seca e a caatinga compõem a flora local de onde são

extraídos frutos e plantas que são utilizadas como alimento e remédio pelos sertanejos.

A população de baixa renda vive basicamente da pesca artesanal (de

subsistência). A pesca artesanal é realizada com tecnologias de baixo poder de

depredação, levada a cabo por produtores autônomos, empregando força de trabalho

familiar ou do grupo de vizinhança e cuja produção, além do consumo, destinar-se

também ao mercado. Sua vida está condicionada ao ciclo da natureza, pois o fenômeno

da enchente e da vazante do rio regula em grande parte o cotidiano dessa gente. Como

forma de organização social e econômica, a atividade pesqueira permeou toda a

trajetória das comunidades ribeirinhas até os dias atuais.

Mas São Francisco não é apenas um município a mais que se estende pelas

duas margens do Velho Chico. Suas terras abrigam patrimônios e surpresas. Violas e

rabecas, Reis e São Gonçalo, rendas, louça de barro e barcos.

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São Francisco é cheia de lendas e estórias. As narrativas orais do velho

Chico constituem uma determinada identidade para os grupos étnicos da região, fixando

valores culturais, que viajam no tempo e no espaço; estão inseridos em culturas vivas

constituindo documentos vivos do passado e do presente.

O mito é uma fala. É um sistema de comunicação, é uma mensagem; é um modo de significação, uma forma, pois o universo é infinitamente sugestivo. E aqui, tomaremos o mito enquanto mensagem permeada de significações. Mensagem que retrata a falta de obediência para com a natureza aquática do velho Chico, o desmatamento, a pesca predatória, o nadar em águas profundas e desconhecidas, sem permissão dos pais. Daí surgem os mitos articulados, constituindo, assim, um arcabouço da cultura, que ajuda a construir um mundo comum e habitável.35

A arte de contar histórias é praticada pela população humilde em São

Francisco. A produção dessas narrativas é influenciada pelo ambiente em que são

contadas, assim como as modificações no enredo dos casos são feitas conforme o

momento, a experiência, os conhecimentos e as habilidades daquele que narra. Prática

de memória, de resistência, esses contos revelam o objetivo de informar, ensinar. O

sobrenatural fascina o barranqueiro. E a presença do diabo, perdendo as almas,

enganando os homens, ou sendo afinal por eles enganados, é constante. É infinito o

número de causos de amor, de aventuras, de assombração, trágicos e humorísticos.

Entre lendas e mitos, que ganham vida nas palavras dos contadores de

causos São Franciscanos, verdadeiros artesãos do imaginário popular, destacam-se o

Caboclo D’água, Mãe D’água, Surubim Gigante, Palácio Encantado e Romãozinho.

No passado, do tempo sumido, / O homem plantou parte de sua vida; / Viajou noites e trouxe seus temores / Perpetuando o seu modo de ser/viver. / Idas e vindas, tantas voltas, / Percorreu diversos caminhos; / Mais esconsos que claras trilhas,/ Mais escuridão que brilho da luz. / O fantástico tomou conta de sua alma; / O mundo dois se fez tanto/tanto real / Quanto o que ele mostra ser homem, / Por isso ele continua viajando no tempo.36

As festas, festejos, alegrias de viver, um pontinho preto no norte das Minas

Gerais. A cidade que o rio mais gosta porque leva o seu nome37. A música apresenta-se

de forma marcante na cidade. Na expedição que fizeram ao Brasil, de 1817 a 1820, para

35 SOUTO, Maria Generosa Ferreira. Eu nunca vi não... só vejo falar: Mitos e ritos da narrativa oral das barrancas do São Francisco. 1ª ed. Rio de Janeiro: Eclesiarte, 2004. 36 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003. 37 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

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coletar amostras para o Jardim Botânico de Munique, os botânicos Karl Von Martius e

John Von Spix espantaram-se com a musicalidade do Vale do São Francisco.38

O modo de vida dos ribeirinhos está intimamente condicionado ao ciclo da

natureza. Às margens do São Francisco as pessoas se relacionam com a natureza e com

o espaço onde vivem de forma particular, considerando-os como uma extensão do

próprio corpo. O rio é um parceiro presente na lida diária, no sustento, e nunca um

adversário que deva ser domado para o aproveitamento máximo.

Observa-se na figura 6 a cidade de São Francisco, às margens do rio São

Francisco.

Figura 6: Cidade de São Francisco às margens do rio São Francisco. Fonte: João Naves de Melo O rio São Francisco ainda é uma das principais fontes brasileiras de

pescado. Os pescadores ainda fornecem peixes em quantidade suficiente para alimentar

a população ribeirinha e para atender ao mercado de outras regiões do Nordeste e do

Sudeste do Brasil. A pesca foi também uma das principais fontes geradoras de recursos

para sua população ribeirinha. Provavelmente milhares de pescadores desportivos,

dirigiam-se anualmente às margens do rio. Centenas de estabelecimentos comerciais,

como hotéis, restaurantes, clubes de pesca, peixarias e lojas obtinham na pesca sua fonte

38 Fonte: Revista Globo Rural, ano 16, n.º 180.

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principal ou secundária de recursos. A receita gerada pela pesca pode ter atingido

dezenas de milhões de reais por ano. Além disso, o rio provia proteína animal farta para

milhares de ribeirinhos.39

Godinho & Godinho40 trazem que embora de reconhecida importância, a

pesca no São Francisco nunca foi regularmente quantificada. Menezes compilou

diversas publicações sobre a pesca que aí era realizada até a primeira metade do século

20. Várias dessas publicações mostram como era magnífica a pesca, tanto que Menezes

e Moojen (1940)41 consideraram que a piscosidade do São Francisco tinha feição de

milagre. Certamente, a abundância de peixes no passado rendeu fama ao rio. Mesmo

assim, o cuidado com a pesca foi negligenciado e, conseqüentemente, inexistem séries

históricas de estatísticas pesqueiras para a bacia.

Segundo a Sudepe/Codevasf (1980), cerca de 6.500 pescadores

profissionais, com baixo nível de escolaridade e não contando com assistência técnica,

atuavam no rio São Francisco em 1977-1978, auferindo baixos rendimentos, vivendo

sob o domínio de intermediários. Apenas cerca de 2.000 deles estavam devidamente

registrados em colônias de pescadores existentes ao longo do rio. Estimou-se em 26.500

t/ano a produção de pescado para aquele período, sendo que mais da metade era oriunda

da represa de Sobradinho. A produção média, estimada no período de safra, foi de 126,9

kg/pescador/semana/ e no período de entressafra, de 31,3 kg/pescador/semana

(Sudepe/Codevasf, 1980). Vinte e seis mil pescadores atuavam no vale do São

Francisco em 1985, segundo estimativas da Planvasf (1989), sendo que 62% desse total

eram registrados em colônias de pescadores e 7,7% deles atuavam na represa de

Sobradinho. A produção de pescado do vale para aquele ano foi estimada em 26.100 t.

Menezes e Moojen (1956) estimaram a produção de pescado em 2.543,4 t, para 1951, e

em 1.790,7 t, para 1954, em 29 municípios ao longo do rio.42

Na segunda metade da década de 1980, cerca de 2.400 pescadores

profissionais encontravam-se associados às colônias de pescadores no trecho mineiro do

São Francisco, quando apenas 1/3 deles exercia exclusivamente a atividade. A maioria

dos pescadores era analfabeta. Os petrechos de pesca mais empregados eram a rede de

39 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. 40 idem. 41 Menezes e Moojen citados por Godinho 2003. 42 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.

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espera, anzol, tarrafa e rede de caceia. Eles utilizavam principalmente barcos de madeira

a remo.

O pescado era mantido fresco ou conservado em gelo.

Godinho & Godinho43 relatam que dentre os diversos peixes de importância

para a pesca no São Francisco, o surubim é um dos destaques. Na colônia de pesca de

Pirapora, ele representou 86% do pescado desembarcado no segundo semestre de 1986.

O surubim, além da grande estima popular, é também o mais valioso e um dos mais

apreciados pelos pescadores desportivos e para a culinária local.

O “País” do São Francisco44 é um lugar cheio de contradições. Em alguns

pontos tomados isoladamente há quadro de pleno desenvolvimento, mas o vale ainda é

uma região de baixo poder aquisitivo. Ao contrário do que apregoa o bordão em torno

do rio, na maioria das cidades as populações do São Francisco, de tão abandonadas,

parecem esquecidas da comunhão nacional. Nos municípios ribeirinhos, não são raras as

populações que vivem praticamente alheias às leis econômicas, produzindo apenas o

suficiente para viver. O aspecto de pobreza e de atraso é extremo. A maioria das pessoas

não tem trabalho permanente. A impressão mais forte que se tem é de que todos estão

perdidos em um local onde não chegaram os avanços do progresso.

O homem do São Francisco é produto da entrosagem do índio e do luso, com

laivos de sangue negro, o sertanejo são-franciscano é a perfeita encarnação do tipo

bandeirante rijo, que lutou com a Natureza, devassou os sertões ínvios, dominou os

selvagens, repeliu o elemento estranho.45 Os pioneiros que se aventuraram pelo sertão,

na conquista de novas terras e em busca de riquezas, firmaram-se às margens do São

Francisco através da formação de currais de gado, economicamente rentáveis, e da

agricultura de subsistência.

Devido às origens da formação étnica do ribeirinho, seu linguajar apresenta

influência de vocábulos indígenas, e muitas localidades tiveram início em aldeias de

nativos. Mas, a maior parte da população ribeirinha teve sua origem nas antigas

fazendas situadas às margens do Rio São Francisco. Grande parte dessas famílias

trabalhou como diaristas ou eram filhos de diaristas daquelas fazendas, que com o

passar dos anos, foram expulsos pelos proprietários, o que obrigou estas famílias a 43 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. 44 Expressão utilizada pelo jornalista Jamildo Melo na série de reportagens S.O.S São Francisco, publicadas no Jornal do Comercio (PE). 45ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco - Fator Precípuo da Existência Do Brasil. 3ª edição. Companhia Editora Nacional, 1993.

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fixarem residência em ilhas e às margens do rio. O folclorista Melo retrata em sua

poesia “Tipos”, os tipos ribeirinhos:

Pois é o que se vê: cada alma tem seu universo; / Pois é o que se sabe: cada cabeça tem sua história; / Pois é o que se conta: cada coração tem seu amor; / Pois é, o homem não navega na alma do homem. / Cada um leva seu sonho no seu mundo diverso; / Cada um tem seu rumo para buscar um porto, / E, no seu viajar, aos outros pode parecer diferente, / Mas, para ele, os outros é que não viajam. / Um busca um amor; outro apenas espera; / Um conta uma história; o outro a recolhe; /Um quer uma canção; outro apenas cantar; / São tolos? São apenas parte de nossa história.46

Essas populações, por viverem praticamente isoladas dos centros urbanos

mais avançados ou pelo menos enfrentando dificuldades para manter com estes um

relacionamento freqüente, desenvolveram hábitos próprios de consumo: elas

centralizaram suas atividades no extrativismo vegetal, agricultura, pesca e caça,

procurando o quanto possível a auto-suficiência, sem objetivos de comercialização. Em

geral, todos os membros das famílias estão envolvidos no processo de trabalhos que são

executados, observando-se inclusive o trabalho de crianças, que muitas vezes deixam de

freqüentar a escola para ajudar os pais na lida. Esta cultura comunitária é ampliada cada

vez mais, na medida em que os filhos crescem e se casam, formando outros núcleos

familiares, e alguns casos, até mesmo novas comunidades.47

Na maioria das vezes os ribeirinhos acostumaram-se em uma vida de

dificuldades e não reclamam. Mesmo nas áreas onde as chuvas são abundantes, como

no Baixo São Francisco, em plena zona da mata, observa-se pobreza e pouco

desenvolvimento.

A figura do pescador artesanal é constante da paisagem do São Francisco,

realizando suas atividades em íntima relação com seu meio natural. O saber desses

atores da vida no rio revela-se grande conhecimento a respeito do comportamento dos

peixes, do próprio rio e de seus ciclos naturais. O folclorista Melo retrata o pescador em

sua poesia intitulada “Pescador” :

Partícula dos assombros milenares que mergulha / Nos tempos das luzes que não mostram caminhos; / Que sai todo dia no ir, seguro de ter que voltar, / Porque uma âncora prende seu corpo ao ninho. / A extensão do peito é corda fria que estica,/ Levando parte da barriga de quem espera; / Os braços retesados têm o símbolo da alegria / Do coração que disparado bate o sino

46 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003. 47 FRAXE, 1998.

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do porto. / Vai e vem, noites e dias, como as águas do rio; / Leva sonhos e recolhe desesperanças, quase sempre; / E de jornadas feitas escreve a longa história / De um povo que sabe o peixe para poder viver48.

Thé, sobre o conhecimento do pescador, afirma:

O estudo deste conhecimento e das práticas locais realizadas pelas comunidades ribeirinhas do rio São Francisco é fundamental para a avaliação da participação das mesmas nos processos de discussão e negociação do manejo dos recursos naturais entre a comunidade, os outros usuários dos recursos pesqueiros e o Estado.49

O pescador profissional, apesar de praticar uma pesca artesanal, é aqui

entendido como a pessoas que tem no ato de capturar ou extrair organismos aquáticos o

seu principal meio de sustento. A pesca profissional de água doce, praticada de maneira

artesanal, pode ser uma atividade econômica sustentável em termos ambientais.

O uso de equipamentos rudimentares, a ausência de relações de trabalho

assalariadas e mesmo a falta de ambição do pescador contribuem para que a pesca seja

praticada de maneira a permitir a adequada reposição dos estoques. Tais circunstâncias

têm levado os pescadores profissionais/artesanais do Alto-Médio São Francisco a

viverem precariamente. Não existem condições materiais que permitam organizar

satisfatoriamente a sua vida.

Do ponto de vista social, a pobreza é predominante em meio aos pescadores

profissionais, agravada pela apreensão de valores culturais oriundos das grandes

cidades.

No geral, a atividade mais citada como prejudicial ao rio foi o desmatamento das matas ciliares, que provoca o deslizamento de terras para dentro do rio, o que gera, uma maior largura da calha do rio e o acúmulo de terra / areia no leito do rio. Outro fator polêmico foi a poluição do rio devido ao uso de agrotóxicos. Os pescadores acreditam que com a chuva e o alagamento das lavouras durante a época de cheias, o agrotóxico aplicado nas plantações passa para o rio, podendo provocar até mesmo morte de peixes.50

É neste cenário de complexidade e beleza ambiental, de carência de

informação, de exclusão social, de necessidade de ações e políticas públicas que se

48 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003. 49 THÉ, A.P.G. Conhecimento Ecológico, Regras de Uso e Manejo Local dos Recursos Naturais na Pesca do Alto-Médio São Francisco, MG”. Tese de doutorado, PPG- ERN/UFSCar, São Carlos, SP.2003. 50 TIBÉRIO, SILVA, MANCUSO, THÉ.

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encontra o pescador artesanal do São Francisco, em destaque na figura 7, na página

seguinte.

Figura 7: O pescador do São Francisco Fonte: arquivo pessoal

A pesca de subsistência praticada pelas populações ribeirinhas, relevante do

ponto de vista social, tem sido também atingida. Face à situação generalizada de

desemprego que ocorre ao longo do São Francisco, a pesca de subsistência adquire

importância ainda maior, pois é a exclusiva fonte protéica para muitos dos ribeirinhos.

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2.2. As barcas

As barcas estavam presentes no dia-a-dia dos ribeirinhos, pois, aportavam

em cidades, vilas, povoados e sítios para fazer o comércio ambulante não apenas no Rio

São Francisco, mas também em alguns afluentes. Os barqueiros, seus proprietários,

vendiam a varejo as mercadorias que transportavam, mas compravam também produtos

regionais das mãos de sitiantes e agregados, ou seja, o campesinato ribeirinho. Faziam

operações mais vultosas de compra e venda em suas relações com os comerciantes das

cidades ou com fazendeiros.

Uma característica fundamental do comércio realizado nas barcas era o

atendimento aos ribeirinhos em suas necessidades básicas de consumo.

Existe uma informação que é muito relevante para compreender as duas

citações: o barqueiro ou seu preposto (o encarregado) operava os negócios de compra e

venda, ao passo que as pequenas operações (a venda de meia-rapadura, por exemplo)

podiam ficar a cargo de alguns trabalhadores.

Em algumas cidades onde o comércio estivesse mais propício, as barcas

podiam demorar alguns dias - tempo suficiente para o barqueiro fazer a praça, isto é, as

transações de compra e venda. Na zona rural, às vezes era necessário esperar que uma

engenhoca (pequeno engenho) ultimasse a produção de rapaduras, que o barqueiro

comprava do sitiante ou fazendeiro para revender durante a viagem. No Rio Grande,

afluente do São Francisco, havia uma localidade denominada Buracão onde essa prática

era usual: se necessário, as barcas aguardavam o término da fabricação de rapaduras.

Mantinha-se a tripulação ociosa por dois ou três dias na expectativa de futuros lucros no

comércio ambulante51.

A figura 8, na página seguinte, apresenta uma embarcação familiar aos

ribeirinhos da cidade de São Francisco, o vapor Benjamim Guimarães.

51 NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.

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Figura 8: Barco a vapor (Benjamim Guimarães) que comercializava mercadorias Fonte: www.jacaremoto.com.br

Indiretamente, as barcas eram importantes também na vida econômica dos

habitantes das cidades e vilas. Os donos de vendas, ou seja, os pequenos comerciantes

de secos e molhados, eram clientes das barcas, onde compravam a rapadura, o sal, a

farinha, o feijão, o arroz, a carne-seca, o açúcar, a cachaça, o querosene etc. Os

consumidores abasteciam de víveres suas residências nesses estabelecimentos

comerciais quando não compravam diretamente dos barqueiros. Havia também o

comércio de peixe seco, que os negociantes ribeirinhos compravam nas barcas para

revender aos tropeiros. Quando viajava em sua canoa até a cidade para vender os

produtos da roça por ocasião das feiras, o camponês ribeirinho adquiria nas vendas as

mercadorias que não produzia no campo, como o querosene, o café, o sal etc., mas era

comum também comprar esses produtos nas barcas.

Em reconhecimento pelo seu trabalho de catequese, o Padre Anastácio

d'Audierne, missionário capuchinho, recebeu do Estado colonial, em doação, uma canoa

novíssima, que podia levar até vinte pessoas, conforme descreve o Frei Martinho de

Nantes, outro missionário capuchinho. Padre Anastácio viajava até 120 km para assistir

índios e portugueses residentes na ribeira, o que evidencia o alcance da ação missionária

no último quartel do século XVII. Certamente, a habilidade dos índios como navegantes

era empregada nessa canoa doada à missão religiosa. Assim, o trabalho de catequese

aproveitou as condições de navegabilidade do rio para alcançar áreas ribeirinhas mais

distantes. Frei Martinho refere-se a outros padres que percorriam maiores distâncias ao

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longo do rio. Produtos da lavoura e da pecuária eram certamente transportados nas

embarcações para o abastecimento dos aldeamentos.

A capacidade de transporte das barcas não era medida em toneladas, mas

pelo número de rapaduras que carregavam, o que denota a importância desse produto na

alimentação dos barranqueiros. No século XIX, havia embarcações que transportavam

12 mil rapaduras grandes, cada uma pesando de 2 a 2,5 kg, sem contar algumas

mercadorias em pequena quantidade e víveres para a tripulação. Uma barca com

capacidade para 12 mil rapaduras, por exemplo, poderia transportar de 24 a 30

toneladas. Supõe-se que tais embarcações se classificassem entre as maiores do Médio

São Francisco no século XIX.

No entanto, a média de capacidade de transporte das barcas variava, pois o

cálculo de uma média geral era difícil devido ao intenso tráfego de pequenas barcas que

adentravam os afluentes, fazendo também a navegação do Rio de Baixo, bem como pela

falta de dados históricos e pelo grande número de embarcações. Em 1867, as barcas

comportavam 6 toneladas em média; já nos anos 1870, essa média era de 15 toneladas,

talvez considerando apenas as barcas maiores. À medida que o tempo passa, a

tonelagem dessas embarcações aumenta. Assim, no século XX, a capacidade média das

grandes barcas passa para cerca de 30 toneladas, embora houvesse embarcações com

estrutura para transportar de 40 a 50 toneladas, como era o caso da Barcelona, Minas

Gerais e Humaitá. No entanto, a maior barca do Médio São Francisco, batizada de

Mississipi, transportava até 60 toneladas.52

É possível conhecer o número de barcas apenas em termos aproximados.

Ainda assim, esses dados poderão servir para se avaliar a importância das barcas para a

rede de relações econômicas regionais e inter-regionais. O número de barcas começou a

decrescer somente nos anos 30 (século XX), quando foram introduzidas as leis tra-

balhistas no Brasil, e aumentou significativamente o número de vapores com a criação

da Navegação Mineira do Rio São Francisco, em 1925, além da fundação de outras

empresas menores. Os barqueiros passaram a ter dificuldades na contratação de

remeiros, pois os direitos trabalhistas haviam se estendido a todas as categorias

profissionais. Nos 1940 e 1950, foram introduzidas as canoas sergipanas, que

necessitavam de número menor de trabalhadores, bem como as barcas motorizadas, que

viajavam com apenas três tripulantes. Assim, desapareceram as velhas barcas.

52 NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.

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A navegação iniciada no século XVIII intensificou-se no século XIX. Era

ainda intensa na primeira metade do século XX.

Em 1819, na sub-região de Paracatu, chegavam comerciantes ribeirinhos do

São Francisco que levavam o sal de Pilão Arcado para o gado. Paracatu não era – como

não é – uma localidade ribeirinha, mas tinha o seu porto, situado a 72 km da sede da

vila: o Porto de Bezerra, à margem do Rio Paracatu. Ali, as barcas descarregavam o sal

e levavam na viagem de volta açúcar, toucinho, aguardente, café, milho, feijão, queijos

e vários outros produtos. Mas também havia o porto de Buriti, localizado a

aproximadamente 48 km da referida vila. No século XX, as barcas continuaram

visitando o Rio Paracatu.

O Rio Verde Grande era freqüentado por pequenas barcas e canoas até 180

km acima da sua foz. Já o Rio Grande permitia a navegação para barcas e canoas até

288 km acima da sua foz.

Com referência ao Urucuia, cuja embocadura localiza-se a pequena distância

de São Romão, pequenas barcas e canoas também navegavam 150 km rio acima até a

localidade de Campo Grande. A capacidade de transporte dessas embarcações não devia

ultrapassar 5 toneladas, pois as condições de navegabilidade do Rio Urucuia não

permitem embarcações de maior tonelagem. Em suas margens, já havia fazendas com

áreas cultivadas, bem como campos para pastos e densas matas.

No início do século XVIII, os currais do Rio Corrente já eram fornecedores

de boiadas para a cidade e o Recôncavo da Bahia, ou seja, para Salvador e adjacências.

É bastante provável que a navegação no Rio Corrente tenha se iniciado nos primeiros

anos do século XIX; possivelmente, até antes. Santa Maria da Vitória e Porto Novo

(BA) eram as principais localidades à margem daquele afluente beneficiadas pela

navegação de barcas. Na segunda metade do século XIX, as embarcações que

singravam as águas do Corrente eram dos mais variados tamanhos, pois o Rio Corrente

oferece boas condições de navegabilidade. De Santa Maria, partiam nas barcas o açúcar

de excelente qualidade e a famosa rapadura do Corrente para outras localidades da

região são- franciscana. Sua produção de aguardente era também comercializada pelas

barcas no Médio São Francisco. Esses produtos faziam concorrência com os de Januária

e Barreiras. 53

53 NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.

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Diversas mercadorias eram objetos do comércio nas barcas, mas não se pode

esquecer a teia de relações econômicas que esse meio de transporte constituiu no Médio

São Francisco e em seus afluentes.

Da segunda metade do século XVIII até o século XIX – um período de

aproximadamente 100 anos –, o sal foi o principal produto comercializado pelas barcas,

pois era utilizado para consumo doméstico, para a alimentação do gado e para salgar o

peixe secado ao sol. No entanto, já no início do século XIX, algumas sub-regiões forne-

ciam seus próprios produtos ao sistema econômico regional. As barcas que levavam o

sal a Paracatu, por exemplo, lá compravam açúcar, toucinho, aguardente, café, queijos e

outros gêneros. A freguesia de Barra do Rio das Velhas, por sua vez, recebia tanto o sal

da terra quanto outros produtos também por via fluvial. Nessa época, a rapadura

produzida em Januária começou a ganhar o mercado regional, sendo amplamente

comercializada no século XIX. Ainda nesse século, entraram na concorrência os Vales

dos Rios Grande e Corrente, de onde partiam muitas barcas carregadas de rapadura.

Além dela, outro produto dos engenhos, destilado nos alambiques da região e

comercializado nas barcas, era a cachaça, sendo as aguardentes de Januária e de Santa

Maria da Vitória as mais valorizadas. Assim, o comércio de produtos derivados da cana-

de-açúcar continuou ocorrendo no século XX. Mas não eram só eles os produtos de

destaque no comércio; os barqueiros também valorizavam bastante a farinha de mandio-

ca, cujas sacas viajavam pelo Rio São Francisco e seus afluentes acompanhadas de

outros produtos, como açúcar, feijão e arroz.54

Algumas mercadorias que interessavam a industriais, artesãos e exportadores

– tais como couros e peles, penas de ema e borracha de maniçoba e mangabeira –

também circulavam nas barcas, sendo transportadas até Juazeiro, de onde seguiam para

a capital baiana.

Rapadura – Com ela, adoçava-se o café e fazia-se a jacuba, isto é, uma

mistura de farinha de mandioca, rapadura raspada e água, utilizada como merenda. A

rapadura era também a sobremesa tanto no almoço quanto no jantar, bem como

guloseima para as crianças. Era também um ingrediente importante para diversos tipos

de doces: o pé-de-moleque, a cocada morena, o doce de laranja da terra, o doce de

banana, o doce de caju etc. Na poesia “Rapadura” o folclorista Melo descreve a

indústria caseira da rapadura:

54 NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.

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A estrela- d’alva precede ao sol- brilha! / A cana tem gelo do sereno da madrugada; / Muge a junta de bois -grita o candeeiro; / O moedor canta despertando os galos. / Acorda o engenho, imensas moendas gemem, / Esmagam braçadas de cana: desce a garapa; / O menino, com a cuia, goza do néctar do campo; / Os tachos esquentam os fundos. Ferve a calda. / A batida, primeiro, no canto da masseira se faz; / A rapadura, depois, dividida em formas tais.../ Repete-se o milagre da interação: homem-terra, / E é propício, assim, de adoçar a sua vida.55

Mas podia se transformar no melado consumido com farinha, queijo,

mamão, banana, etc.

Farinha – Em duas ou três refeições, servia-se a farinha de mandioca

diariamente nos lares ribeirinhos. Pela manhã, o “churrasco” (farofa de carne-seca) com

café. No almoço, arroz com feijão (era muito utilizado o feijão-de-corda), carne ou

peixe, farinha, abóbora etc. Às 14 ou 15 horas, era a vez da merenda, que podia ser a

jacuba. No jantar, arroz, ovos, picadinho de carne-seca, mandioca cozida e,

eventualmente, a boa farinha de mandioca barranqueira. Para acompanhar o peixe,

fazia-se o pirão de farinha. Novamente, a indústria caseira da farinha é retratada na

poesia de Melo:

De ser tão rústica para suportar o agreste, / Não haveria a macaxeira de ser nobre,/ Mas sem ela, é preciso dizer, de verdade, / O sertão não seria de tanta riqueza. / É mais do que comida para o corpo, / Antes ela é alimento para a alma, / Pois no seu itinerário até ser levada ao prato, / O homem conta e reconta a sua história. / No mutirão, atirando manivas nas covas; / Na oficina, no raspar ou contando na rodinha; / Na borda do forno contando causos: / O sertão criou o universo das famílias.56

As atividades comerciais na primeira metade do século XX foram bastante

diversificadas devido a, vários fatores. Como a produção do sal havia diminuído e, em

1896, inaugurou-se a ferrovia Juazeiro-Salvador, houve espaço para o incremento da

comercialização do sal marinho. Além de gêneros diversos, os tecidos continuavam

incluídos nas transações. Havia barcas que eram um verdadeiro bazar, tamanha a

diversidade de produtos que comercializavam. As donas de casa e as costureiras que

viviam nas cidades, vilas e povoados ribeirinhos podiam comprar tecidos, novelos e

carretéis naquelas embarcações, mas não se pode esquecer que havia casas comerciais

em algumas localidades ribeirinhas.

55 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003. 56 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.

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Dentre os produtos de outras regiões que chegavam ao Médio São Francisco,

sendo comercializados nas barcas, destacavam-se o café e o querosene este indis-

pensável à iluminação de residências no campo, nos pequenos povoados, nas vilas e até

mesmo em algumas cidades.

Nas viagens rio abaixo, os remeiros utilizavam como instrumentos de

trabalho os remos, cujo número variava em cada barca de acordo com o seu tamanho. O

manejo dos remos era bastante simples. Sentados frente a frente, dois trabalhadores

movimentavam um remo: enquanto um remeiro o empurrava, o outro simultaneamente

o puxava, imprimindo-lhe maior força no contato com as águas do São Francisco. Não

era incomum serem três remeiros: dois para puxar o remo e um para empurrá-lo. Nas

grandes barcas, podiam ser até mesmo quatro homens para cada remo, sentados face a

face, em virtude do tamanho e peso dos remos. A comparação é inevitável: há

semelhança com o trabalho nas galés européias do século XIX.

Em suma, era significativa a rede de relações econômicas na região ao longo

dos séculos XIX e XX. Os remeiros, levando as barcas a todos os trechos navegáveis do

grande rio e de seus afluentes, contribuíam para a integração tanto regional quanto inter-

regional.

O sistema econômico regional também se relacionava com outras regiões da

sociedade brasileira e até mesmo com outros países, tendo em vista a circulação de

mercadorias de diversas procedências, as quais eram transportadas nas barcas ao longo

do grande rio e de seus afluentes.

No princípio do século XIX, os mercadores do sal subiam o São Francisco

nas barcas, comercializavam o seu produto em vilas, povoados e fazendas ribeirinhas e

recebiam em troca outros produtos regionais. Assim, chegavam até a confluência do Rio

das Velhas, percorrendo aproximadamente 1 240 km, embora houvesse outras rotas do

sal. Juazeiro e os povoados ribeirinhos do Rio de Baixo, além de Jacobina (BA) e do

Piauí, por exemplo, recebiam parte da produção do sal da terra. O escambo era uma

modalidade bastante usual que o comércio ambulante assumiu nas primeiras décadas do

século XIX, mesmo havendo circulação monetária.

Se o dono da barca tinha um comércio estabelecido numa cidade ou vila, sua

embarcação podia ser uma extensão ou filial do estabelecimento comercial. O

proprietário, neste caso, nomeava uma pessoa de sua confiança, que o substituía nas

viagens comerciais. Podia ser um filho ou um parente próximo. Este preposto chamava-

se encarregado. Os remeiros ironicamente o chamavam de carregado.

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Ainda hoje, a navegação no Rio São Francisco requer prática e muita

habilidade, pois não são poucos os acidentes e intempéries ao longo do rio: pedras,

corredeiras, troncos, bancos de areia, pontas d' água, queda de barreiras, tempestades,

pés-de-vento. No tempo das velhas barcas, esse conjunto de obstáculos dificultava o

trabalho de pilotos e remeiros e colocava em risco as embarcações. Mas não era só o

mestre (piloto) que dirigia a embarcação; os dois proeiros, isto é, os remeiros que

ocupavam a proa da barca nas viagens rio acima, o auxiliavam nessa tarefa, sobretudo

por se encontrarem mais próximos dos acidentes fluviais: trabalhando na proa, tinham

visão melhor dos obstáculos. Observe na figura 9, as espécies nativas no rio São

Francisco.

Figura 9: Espécies nativas no rio Fonte: arquivo pessoal

A terminologia utilizada pelos remeiros para designar seus instrumentos de

trabalho guarda, obviamente, estreita relação com a atividade econômica predominante

na região durante muitas décadas: a pecuária. Até mesmo o gancho das barcas tem

alguma semelhança com o objeto metálico usado nos açougues e fazendas para

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dependurar a carne bovina. A explicação para tal analogia talvez seja a extração social

dos remeiros: o meio rural.57

O número de instrumentos de trabalho dependia da quantidade de remeiros e

do tamanho da embarcação. Na barca Misissipi, por exemplo, a maior do Rio São

Francisco, havia vinte e quatro ferrões, três bois e um ou dois ganchos. Já a tripulação

perfazia um total de vinte e cinco homens, sendo vinte e quatro remeiros, que

trabalhavam com as varas, mais o mestre, que manobrava o leme. Ao se referir a uma

barca cuja tripulação fosse constituída de quatro remeiros, o barqueiro dizia “barca de

quatro varas”. Ficava implícita a existência do mestre, que não trabalhava com as varas,

mas, sim, com o leme. Assim, o total de tripulantes da barca, excluído o patrão, era de

cinco pessoas. Nessas embarcações de pequeno porte, era comum o proprietário ocupar

o leme, evitando, assim, a contratação de um mestre.

Outro recurso a que recorriam os trabalhadores para superar os trechos de

água dura, ou seja, a forte correnteza, era a corda. Utilizando-se de embarcação auxiliar,

em geral um paquete ou urna canoa, um remeiro levava a corda (sirga) até o barranco.

Depois de feitas as amarras num pé-de-pau (árvore), os trabalhadores no interior da

barca empunhavam a outra extremidade da corda e puxavam-na, fazendo a embarcação

avançar contra a correnteza. Havia urna outra forma de vencer as águas duras usando a

corda: a fileira de homens que trabalhavam do lado do barranco continuava em seu

posto manejando as varas, ao passo que os do lado de fora puxavam a corda pelo seco,

ou seja, fora d' água.

Nos anos 1940, a jornada diária dos remeiros era, em média, de quatorze

horas, estando incluídas as horas noturnas de ampliação dessa jornada.

Quanto à natureza das relações sociais do trabalho, não predominava

lealdade cega do trabalhador em relação ao patrão. Os remeiros exigiam a contrapartida.

E mais: o conflito e a resistência estavam igualmente presentes no discurso e nas

atitudes dos trabalhadores.

Frente às condições de trabalho acima descritas, os moços resistiam. A sátira

em prosa e verso, as fugas individual e coletiva eram as formas encontradas pelos

trabalhadores para manifestar sua resistência. Era comum a tensão no local de trabalho,

isto é, em cada barca, mas a classe dos remeiros como um todo não se organizou para

resistir às más condições de trabalho: não era conhecida a greve nem existiam

57 NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.

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associações e sindicatos que congregassem os trabalhadores das diversas unidades de

produção.

2.3. A pesca profissional/artesanal

A pesca profissional, que está em estudo neste trabalho, é praticada de forma

artesanal, é também uma das atividades mais tradicionais de trabalho no rio São

Francisco, havendo milhares de famílias ribeirinhas que se dedicam a esta ocupação, por

vezes, há mais de uma geração58. Tal atividade é bastante abordada por muitos autores

que se dedicam às ciências sociais, porém a conceituação do termo ainda encontra

divergências entre as abordagens. O fato das atividades desses trabalhadores ocorreram

em áreas próximas as atividades dos produtores rurais, contribui para que esta categoria

fosse trabalhada como um subsistema da sociedade camponesa, como se observa na

figura 10.

Costa (1983) apud Diegues (1989) analisa a produção dos lavradores e dos

pescadores artesanais de forma distinta. A primeira pode ser considerada como

camponesa por ser a agricultura a sua atividade principal, enquanto os pescadores

artesanais possuem a pesca como atividade exclusiva. A identidade da categoria dos

pescadores seria construída pelo fato destes serem detentores das habilidades e saberes

específicos, o que permite o domínio do oficio da pesca. 59

58 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. 59 DIEGUES.A.C; Tradição e Mudança nas comunidades de pescadores do Brasil: por uma sócio-antopologia do mar. Programa de Pesquisa e Conservação de áreas Úmidas no Brasil, São Paulo, 1989.

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Figura 10: O pescador do São Francisco

Fonte: arquivo pessoal Este argumento baseia-se no fato das atividades destes trabalhadores não

ocorrerem em períodos fixos e sem volumes constantes.

É possível constatar a que os pescadores artesanais de São Francisco (MG)

possuem características que os possibilitam serem inseridos em todas essas abordagens.

Desta forma não há unanimidade em se aderirem a uma abordagem específica

apresentada.

Conforme registro da colônia de pesca do município de São Francisco, a

população pesqueira da cidade de São Francisco compreende cerca de 300 pescadores

artesanais, incluindo algumas mulheres que geralmente são esposas de também

pescadores.

A pesca é realizada em grande parte em embarcações pequenas, no máximo

de dois metros. Em reduzidos casos, a pesca ocorre em embarcações maiores e estas se

destinam a passeios turísticos. A pesca compreende até duas pessoas, uma responsável

pelo controle do motor e direção do barco e a segunda que se encarrega do equipamento

realizado na pescaria.

Os aparelhos mais usados pelos pescadores do local são redes, tarrafas e

anzóis. A rede de amarrar, ou seja, de espera é colocada fixa no rio.

A rede de caceio é colocada descendo o rio e ela contém pouca quantidade

de chumbo. Já a tarrafa é usada em todos os tamanhos, conforme a qualidade de peixe

que estiver aparecendo na época.

O anzol é usado em vários tamanhos, já o espinhel se utiliza 08 a l0 anzóis e

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a grosseira de 30 a 40 anzóis, sendo estes pequenos.

Existe também o caçado que se utiliza apenas de um anzol, com a linha de

mão, e a rede de amarrar usada na maioria das vezes para a pesca do Surubim, e do

Dourado, sempre quando a água do rio está limpa, ou seja, de maio a setembro.

Rede de caceio é usada para a pesca da Curimatá, Pirá e Surubim. A tarrafa é

usada para todos os períodos que são permitidos a pesca, pegando todas as espécies de

peixe. Espinhel é usado quase sempre na pesca do Dourado.

A rede grosseira é usada para a pesca do Mandi e do Pirá. A rede caçador é

usada para a pesca do Surubim.

Qualidade dos peixes e os meses em que aparecem com maior freqüência:

Piau, Mandi, Piranha, Matrincham: nos meses de fevereiro a abril. Dourado e Piau: nos

meses de maio a setembro. Surubim e Pocoman: nos meses de setembro a outubro,

sendo que todas as qualidades de peixes citadas aparecem no mês de outubro.

Grande parte dos pescadores artesanais do rio São Francisco se desloca para

outros lugares do rio em busca de melhores locais de pesca. Geralmente se deslocam em

regiões denominadas pelos pescadores como: rio acima e rio abaixo. A primeira se

refere ao trecho do rio antes de chegar à cidade de São Francisco, que se localiza no

meio do rio, no pátio de São Francisco (direita para esquerda). A segunda refere-se ao

trecho do rio após a cidade.

O pescador artesanal não dispõe de jornada de trabalho fixa, pois seu horário

está condicionado ao horário dos cardumes, dependendo muito da percepção e

conhecimentos dos seus hábitos. Mas, a maior parte dos pescadores realiza seus

descansos aos domingos.

A venda do peixe é realizada no mercado ou feira local, nas ruas para

atravessadores, onde se destacam os restaurantes, quiosques e barzinhos da cidade e

também na colônia de pescadores.

São várias as estratégias de pesca são praticadas, mas uma se destaca pelas

suas peculiaridades. Ela é realizada numa área de cerca de 2 hectares, durante 24 horas,

todos os dias do ano. Ela é realizada por cerca de 50 pescadores. Por ser uma pequena

área, adotou-se um sistema que possibilita a todos estes pescadores trabalharem. A

prática adotada foi o sistema de pesca em turnos. A cada turno trabalham até quatro

pescadores simultaneamente, mas com maior freqüência um ou dois.

O direito de pescar neste local é herdado de pai para filho ou adquirido,

comprando-se a hora. Os intrusos são afastados, às vezes, de maneira violenta, embora

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a estes, dá-se o direito de pescar em determinados trechos da área.

Antes de descer o rio, o pescador toma conta da hora para que seu turno não

seja tomado por outro, caso o dono da hora não queira pescar, ele pode passar a hora

para outro, sendo que o produto da pesca, nesse caso será dividido entre os dois. O

pescador que não tem hora ou que não marcou horário pode pescar abaixo do pesqueiro

a qualquer momento.

A pesca ocorre, normalmente, desembarcada e o pescador percorre o

pesqueiro nadando ou andando de uma lage (pedra) para outra. Quando realizada em

dupla, utiliza-se barco de madeira para explorar a área.

Uma das características principais da pesca no rio é a captura freqüente de

peixe abaixo do tamanho permitido por lei. O IBAMA60 tem conhecimento desta

prática, mas é comum fazer vistas grossas, uma vez que esta atividade tomou-se um

costume que não é possível definir quando ocorreu o seu início.

A maior parte dos pescadores artesanais de São Francisco, herdou a

profissão, que encara como predestinação. “Pesca, como diz o caso, herdei dos meus

pais. A minha família era da pesca, aí não tinha outra sina. Naquela época era quase só

pesca o que tinha”.61

Os pescadores artesanais reconhecem que a quantidade de peixe extraída tem

diminuído consideravelmente; e aqueles que estão há muitos anos nesta atividade

analisam que em anos anteriores (por volta dos anos 1960-1970) o peixe era pouco

valorizado na economia local, entretanto era possível capturar peixes em grande

quantidade. Atualmente o preço do peixe é considerado bom para os pescadores, existe

valorização do produto que tem sempre boa receptividade.

São poucos pescadores que sobrevivem estritamente da pesca, sendo

necessário participarem da economia informal e realizarem bicos. O período da

piracema (época em que a pesca é proibida por lei) contribui para essas atitudes.

Consideram que a sociedade encara o pescador artesanal, sendo como um

marginal, não sendo inserido na mesma. “A gente não é incluído nos planos dos

políticos e nem dos órgãos de fiscalização. Acham que a gente não faz parte da

60 IBAMA, Instituto Brasileiro de Meio Ambiente. 61 José Pedro de Melo, 43 anos, pescador artesanal.

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sociedade, não procuram beneficiar a gente em nada”.62

Criticam os órgãos que atribuem a eles ações que degradam o rio. Acreditam

que nenhum fiscal é tão eficiente quanto eles.

Consideram que o pior período para a pesca compreende os meses de

fevereiro a agosto. Outro período crítico é o período da piracema. A efetiva fiscalização

dos órgãos responsáveis, priva o pescador de suas atividades normais, como se observa

na figura 11. Neste período recebem um benefício correspondente a um salário mínimo

considerado insuficiente para estes trabalhadores que em grande parte possui grande

número de filhos.

Possuem receio do envelhecimento, pois tem consciência de que a vida

dedicada à pesca desgasta a saúde física do pescador. Chamam atenção às nascentes dos

rios, que consideram o início da vida dos mesmos. A bacia é tida como um abrigo que

guarda todo o volume de água que é enviado.

Figura 11: Barqueiro em outra atividade à beira rio

62 idem.

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Fonte: arquivo pessoal

“As veredas e as nascentes não tão secas, tão assoreadas, têm mais areia que

água. Fiscalizam a gente e esquecem de reclamar os projetos de carvão vegetal e

reflorestamento”.63

Os pescadores artesanais atribuem a degradação do rio como

responsabilidade dos projetos que foram originados pelo modelo de desenvolvimento

brasileiro.

No município de São Francisco, o Instituto Estadual de Florestas – IEF e o

Ministério do Meio Ambiente são responsáveis por um projeto de revitalização da bacia

do São Francisco64. Este projeto, na cidade, encontra-se em fase de implantação.

Na região deste município, o projeto abrangerá a reposição da mata ciliar, ou

seja, a mata que cobre a margem do rio. Estas matas são as árvores e as plantas de

menores portes que seguram a terra com as suas raízes mantendo a umidade e

estabilizando as margens do rio. As melhores espécies a serem plantadas nas barrancas

do rio São Francisco, segundo o IEF são: ingazeiro, aroeirinha-vermelha, angico,

cagaita, jenipapo, cedro do campo, entre outras. 65

O plantio deve seguir a curva do terreno, na horizontal. As plantações feitas

dessa forma evitam que a água das chuvas escorra diretamente para o rio levando terra e

areia. Outra vantagem é o menor esforço para trabalhar a terra, já que o produtor não

precisa subir terrenos muito inclinados.

Outro recurso consiste em manter os restos vegetais (mato capinado, capim

seco) nos intervalos entre as linhas das plantas cultivadas. Dessa forma é possível

proteger o solo contra o impacto da chuva ou da irrigação por erosão. Ajuda manter a

umidade, controla a temperatura do solo, preserva a fauna, a micro-fauna e a micro-flora

do solo.

Os coordenadores do projeto na região expõem que, para atender às

necessidades da população, o projeto segue um modelo desenvolvimento sustentável,

que para ser eficiente deve contar não somente com os setores públicos, mas também,

com articulações entre todos os níveis. Serão oferecidos estímulos ao desenvolvimento

de novas atividades econômicas, que proporcionem as mais diversas formas de

63 Sebastião Alves Pereira, 65 anos pescador artesanal. 64 Lei 8.666/93 e Decreto Nº 93.872/86 - Processo Nº 0200.003074/2005-46 – Fornecimento de mudas de espécies do cerrado mineiro para utilização nas ações de Revitalização da bacia do rio São Francisco. 65 IEF-MG: Instituto Estadual de Florestas. Januária, MG.

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exploração sustentável dos patrimônios ambiental e cultural.

Para incentivar a adesão da população ribeirinha ao projeto, serão fornecidas

também, mudas de plantas frutíferas para aumentar o incentivo. A população será

instruída sobre as formas de extrair a polpa para comercialização, seja ainda com o

objetivo de destinar para a fabricação de sucos ou doces.

O projeto, no entanto não é visto com credibilidade pela população.

Admitem que ele é viável e muito bem formulado, mas argumentam que não sentem

estímulos a abraçarem-no como causa pessoal. Acreditam que este da mesma forma que

não é o primeiro, não será o último e temem que também não seja concluído.

Os pescadores artesanais reclamam da postura adotada pelos

implementadores do projeto que, segundo eles, não os deixam informados sobre as

fases, objetivos e metas. Interrogados sobre o conhecimento de algum projeto destinado

à preservação do rio São Francisco, os pescadores artesanais são unânimes em negarem,

confessam que são excluídos das decisões mais sérias, o que deixa estes profissionais

em desvantagens porque não consideram sua realidade.

2.4. A família e o modo de vida do pescador de São Francisco

A família do pescador profissional do alto-médio São Francisco, onde se

localiza o município de mesmo nome, é do tipo nuclear (pai, mãe e filhos) e é, também,

numerosa. De maneira geral, possui características socioeconômicas que evidenciam

inserção vulnerável, com severos riscos de exclusão social.. A família é, geralmente,

autóctone, mas o chefe, muitas vezes, guarda uma história de migração do seu tempo de

criança, no eixo Nordeste/Centro-Sul: veio acompanhado dos pais, fugitivos da seca ou

do progresso técnico na agricultura.66

A figura 12 mostra um morador da beira do rio São Francisco, em atividade

doméstica.

66 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003

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Figura 12: Morador das margens ribeirinhas Fonte: arquivo pessoal

Possui estrutura patriarcal, em que a chefia da casa compete exclusivamente

ao homem. A mulher que exerce alguma atividade econômica somente o faz na

companhia e como suporte da atividade do marido. O número de dependentes é alto e,

como elemento complicador, as oportunidades de emprego são escassas. Sobra a pesca

como alternativa, mas essa também vai seguindo escassa na capacidade do provimento

dos mínimos vitais do grupo. Alguns dos pescadores admitem que trabalhar na pesca

não foi fruto apenas das adversidades sofridas, mas tornou-se opção gratificante de

trabalho. Outros admitem que a pesca é apenas uma forma alternativa e não realizadora

de garantia da sobrevivência familiar.

Os pescadores profissionais da área urbana do município tendem a se

concentrar em um único bairro, invariavelmente um dos mais carentes do município,

que também abriga a sede da Colônia.

Nas residências dos pescadores, a maioria deles apresenta o rádio como

opção preferencial de entretenimento e informação. A televisão também aparece em

grande parte. Há quase que total destituição de automóveis e motocicletas. A bicicleta é

o meio de locomoção usual em terra. Em água, locomovem-se por canoas de madeira,

muitas das quais produzidas pelo próprio pescador com a ajuda dos colegas.

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Diante das condições precárias de sobrevivência as famílias empobrecidas,

freqüentemente ficam expostas a enfermidades e os membros adoecem com freqüência.

A infra-estrutura dos domicílios interfere diretamente no aparecimento de

algumas das enfermidades ali presentes: a ausência de esgoto sanitário, de tratamento

domiciliar da água (filtragem, fervura, entre outros), o contato cotidiano com o lixo nas

vizinhanças do domicílio e a presença de vetores dentro das casas facilitam a expansão

do número de casos.

As doenças mais comuns em adultos e crianças são: sucessivas gripes,

verminoses, desidratação, micoses e diarréia.

Geralmente as doenças são tratadas com ervas medicinais encontradas na

flora nativa, o que caracteriza outro aspecto das interações da família do pescador com o

meio ambiente.

Em relação ao nível de instrução formal do pescador, predomina o

analfabetismo. Em relação aos filhos, a educação escolarizada é vista como uma

contraposição sadia ao saber tradicional. A escola torna-se um meio de ascensão social

que projeta para seus filhos um destino diferente.

Sobre as perspectivas e aspirações dos pescadores não há interesse em se

deslocar definitivamente do território no qual estão estabelecidos. Mas pensam nessa

possibilidade para os filhos jovens em virtude da escassez de emprego.

A principal fonte de renda é a comercialização a varejo do pescado. A

negociação é realizada por intermediários, conhecidos como peixeiros. Poucos

pescadores vendem o peixe na sua própria residência. Existem ainda, aqueles que

vendem o peixe de casa em casa.

A atividade pesqueira praticada pelas populações ribeirinhas do São

Francisco, relevante do ponto de vista social, tem sofrido queda significativa por vários

motivos, tais como poluição, uso inadequado do solo, normas pesqueiras impróprias,

pesca predatória, destruição de habitat e barramento.

No rio São Francisco, confirma-se a mesma situação identificada por

Diegues (1998)67 para pescadores do mar: a de que a produção e a reprodução social e

simbólica vai se tornando cada vez menos dependente do rio, razão pela qual os saberes

técnicos particulares sobre o funcionamento do ecossistema vão se perdendo.

67 DIEGUES.A.C; Tradição e Mudança nas comunidades de pescadores do Brasil: por uma sócio-antopologia do mar. Programa de Pesquisa e Conservação de áreas Úmidas no Brasil, São Paulo, 1989.

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Além da tradição do domínio masculino no exercício da captura, os

pescadores profissionais do alto-médio São Francisco orgulham-se de sua longevidade

no serviço. Nesse trecho, os pescadores atuam de 10 a 53 anos na atividade. Os adultos

que entraram na pesca em época mais recente são, na maioria dos casos, desempregados

urbanos. O contingente trazido para a pesca pelo desemprego ou falta de opção é

significativo (Tab. 1).

Tabela 1. Razões do exercício da profissão

RAZÃO

FREQÜÊNCIA % % ACUMULADA

Desemprego 22 35,5 35,5 Falta opção 11 17,7 53,2 Tradição familiar 11 17,7 70,9 Complemento da renda 7 11,3 82,2 Abundancia de peixe no passado

4 6,5 88,7

Serviço que não é pesado 2 3,2 91,9 Vocação 2 3,2 95,1 Tenta vida melhor 2 3,2 98,3 Boa renda 1 1,6 100,0 Total 62 100,0 Fonte: Godinho & Godinho, 2003

Ao conviverem nos mesmos bairros pobres e na maioria das vezes passando

por privações, muitos desempregados deparam-se, muitas vezes, com a solidariedade

dos pescadores mais velhos no ensino das técnicas para o exercício da atividade. Mas

nem sempre isso acontece e há os que, todavia, não encontram essa acolhida por duas

razões fundamentais: os pescadores mais velhos consideram que o contingente de

trabalhadores da pesca, em exercício no trecho do rio em que atuam, já estaria

excessivo; outros avaliam que a ausência de vocação do desempregado que vai para a

pesca, compelido pelas circunstâncias, o levaria a fazer mau uso das técnicas de captura,

o que repercutiria negativamente na imagem social de todo o grupo: “Não cabe mais

pescador no rio, não cabe mais gente nova. Tá vindo muito desempregado, jogando

tarrafa e outro, cuidando do barco e dos peixes, mas não sabe horário e local certo,

costuma fazer errado”.68

Os motivos da resistência do pescador em agregar esse novo membro, cuja

origem da opção pela pesca é apenas a falta de quaisquer outras opções, precisam ser

68 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.

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considerados. De fato, ao questionar o desempregado, transformado em pescador, sobre

suas aspirações econômicas, esse é taxativo em dizer que gostaria de encontrar um

trabalho urbano a continuar na labuta no rio. Para ele, o rio seria o local dos deserdados,

dos que já estão definitivamente excluídos, apartados da sociedade; daí a razão pela

forma quase hostil como é tratado pelo grupo ocupacional a que passa a pertencer. O

pescador que, por vocação ou tradição, escolhe a profissão desde muito cedo não vê em

sua ocupação motivo de vergonha perante a sociedade (a vergonha está na ausência de

um retorno financeiro compatível com o esforço empreendido e com as necessidades da

família) e sente-se ferido quando, no seio da categoria, surge um sentimento como esse.

“Pescador não é bandido”, eis o que recorrentemente se houve entre os pescadores, seja

para contrapor-se aos olhos da fiscalização ou aos recém-ingressos na ocupação:

Na época em que se pegava muito peixe, todos nos conheciam e respeitavam. Hoje, não podemos comprar nada no comércio, porque não temos crédito. Meu fogão quebrou e não pude comprar outro, pois o comércio não nos considera trabalhador. (...) hoje aumentou o número de pescadores por falta de emprego na cidade. Antigamente, havia fartura de peixe, havia mercado, o pescador vivia melhor. Hoje ele pega um pouco, ou nada, e vive em grande dificuldade.69

A construção da identidade social do pescador do São Francisco dá-se da

seguinte maneira: primeiro, ocorre pela alteridade, pelas formas como reconhece o

outro; segundo, pelos rituais de reafirmação dos significados e sentidos partilhados por

seu coletivo; terceiro, pela afirmação do sentido de pertencimento ao lugar.

No primeiro caso, o outro tem sido reconhecido pelo conflito no uso da água

e nos interesses sobre os estoques. São os fazendeiros, as concessionárias de energia, os

pescadores amadores:

Tem havido agressões por desmatamentos, as lagoas marginais, que são o berçário do rio, não recebem água porque as barragens impedem. As lagoas acabam criando peixe adulto que deixam de sair pro rio e repovoar o rio. Por isso, o peixe vem diminuindo no rio. Os fazendeiros drenam as lagoas para plantar e acabam também com elas. As cidades ribeirinhas estão crescendo, os esgotos domésticos descem para o rio. As indústrias também estão jogando a poluição pra dentro da água. (...) A pesca amadora atrapalha bastante porque faz a pressão para fechar a pesca de malha, profissional. Ela tem boas iscas, tem dinheiro. O pescador amador vem para gastar com os equipamentos de captura, é esporte. Para nós, é sobrevivência. Mas eles se colocam contra nós. Hoje, o peixe mal paga a feira da semana.70

69 Sr. Luís Mendes Vieira, 43 anos, pescador profissional.

70 Sr. Luís Mendes Vieira, 43 anos, pescador profissional.

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Outro pescador ensaia o seguinte dizer sobre a escassez do peixe:

Não é o peixe que está acabando. É a natureza que está se modificando, por exemplo, pelos fazendeiros, que prendem as lagoas por um ano e só eles usufruem do peixe que foi pra dentro na enchente.71

O estudo de Félix72 descreve como a expansão recente dos investimentos

turísticos no alto-médio São Francisco, focando a fruição dos recursos hídricos, estão

alterando a organização tradicional do trabalho e do lazer do pescador profissional e de

sua família, gerando constrangimentos, tanto no uso do território das águas como em

terra firme, no espaço ribeirinho. Ou, como relata o pescador profissional:

Eu admiro demais o pescador amador que vem fugir da cidade grande. Antes a pessoa não queria sair da cidade, dizendo que aqui, no mato, havia febre amarela, havia mosquito, havia onça. Hoje a cidade virou um verdadeiro inferno. Quando chega aqui, o turista não consegue pegar o peixe, vê o profissional, que é um coitado, conseguindo, e quer comprar nele. Então, ele fica contra a pesca profissional. Mas tem que ver que é para a sobrevivência dele. Ele não pode impor que o profissional tem que parar, pois o profissional não tem outra forma de viver.73

No segundo caso, a identidade do pescador manifesta-se ao apresentar ao

outro seu trabalho, em sintonia com os movimentos e necessidades da natureza:

Hoje não está havendo mais peixe. O negócio é o seguinte: o peixe é igual a nós. O senhor amanhece o dia, vai para o serviço, vai para casa almoçar, volta para o serviço e, à noite, volta para casa. Do mesmo jeito é o peixe. Ele mora na pausada. Então, os pescadores, cresceram os olhos, limparam a pausada e o peixe desapareceu do lugar da pausada, porque está tudo limpo, não encontram mais a casa deles. Mas, existe peixe ainda. Sabe onde? Nas pedreiras e nos córregos fundos.74

O senhor Norberto acrescenta:

Eu queria que deixassem de ver o pescador como vilão. A pesca bem feita não faz o rio sofrer. A pesca profissional sempre existiu. Algumas modalidades precisam fazer a correção, das modalidades ou das leis. Nós precisamos sentar juntos para discutir. Não queremos ser extintos porque nós não temos do que sobreviver. Faz o quê com a proibição das redes?

71 Sr. Milton Ferreira da Costa, pescador. 72 FELIX, S. A. O impacto do uso para lazer e turismo do rio São Francisco sobre as condições de reprodução social dos pescadores profissionais. São Carlos: Centro de Educação e Ciências Humanas, UFSCar, 2001. 102p. (Dissertação, Mestrado em Ciências Sociais). 73 Sr. Norberto Damião Vieira, 51 anos, pescador profissional. 74 Sr. Benedito dos Reis Silva, 97 anos, pescador profissional.

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Estou olhando para aquele que é marginalizado pela fiscalização, que mora com a família num rancho de capim.75

Em último lugar, vem a afirmação da sua territorialidade, do seu direito de

estar no lugar e dele retirar seu provimento, de entender que sua sobrevivência reside na

fruição daquele lugar. O pescador não se afirma como munícipe, nem se afirma apenas

como trabalhador com direito ao livre acesso ao local de trabalho. Afirma-se, sim, como

“gente do São Francisco”, gente das águas doces onde realiza sua atividade, por onde

constrói certa coesão social, dentro e fora da família: “O sangue de todos os beiradeiros

é o mesmo. São cinco povos no São Francisco – mineiros, baianos, sergipanos,

alagoanos e pernambucanos, mas as mesmas características na luta e no sofrimento.”76

A renda da pesca é, no alto-médio São Francisco, a principal renda da

família.

A lavração de terra nas áreas de vazante, próximas aos acampamentos de

pesca, com plantio de feijão ou milho, também ocorre para proveito único da família.

Quando abordados pela fiscalização, esses pescadores têm apenas seus

equipamentos e peixes apreendidos e, muitas vezes, fornecem nomes e endereços falsos

a fim de não permitir sua devida identificação, abandonando temporariamente o uso dos

pontos onde foram flagrados.

O cadastramento do pescador na colônia de sua região não é visto apenas

como uma formalidade burocrática. Há razões socioeconômicas que pressionam sua

adesão, como o fato de que, ao regularizar sua situação, o pescador sente mais

segurança. Esse cadastramento assegura, após três anos de exercício contínuo da

profissão, o direito de receber o salário-desemprego (no valor correspondente ao de um

salário-mínimo) concedido pelo INSS, na época de piracema, de acordo com a

legislação vigente.77

É importante recuperar a história de como a institucionalização da pesca

profissional colocou-se na esfera política, amparando o desenvolvimento desse

trabalhador, culminando, contudo, em tempos mais recentes, na estigmatização do

pescador e em restrições ao uso das águas do rio para fins de captura.

Para o exercício dessa atividade tem-se construído significativo arsenal de

regulações socioambientais. Estas se materializam como força política exógena e 75 Sr. Norberto Damião Vieira, 51 anos, pescador profissional. 76 Sr. Norberto Damião Vieira, 51 anos, pescador profissional. 77 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003

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relativamente indiferente à penúria por que passa o pescador e, talvez, por essas mesmas

razões, venha a constituir um arcabouço, em parte estéril, em parte conflituoso consigo

mesmo.

A pesca no Brasil foi regulamentada, em âmbito federal, pelo Decreto-lei

221/67, atribuindo-se a então Sudepe (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca),

dentre outras funções, a de regular e fiscalizar as atividades do setor. A criação do

Ibama, em 1989, veio, contudo, absorver aquele órgão (dentre outros) e tomar para si a

função de executar o controle e a fiscalização ambiental nos âmbitos regional e

nacional, zelando pela preservação de espécies e pela sustentabilidade dos recursos

naturais, por meio da normatização das condições de uso. No que tange à pesca, caberia

ao Ibama ordenar o uso dos recursos pesqueiros em águas sob domínio da União.

Destaque-se que, em 1992, o Ibama (vinculando-se, então, ao recém-criado Ministério

do Meio Ambiente) tornou-se responsável, além das funções citadas, pela criação de

modelos de gerenciamento voltados para a gestão integrada das interfaces atuantes

sobre o ecossistema aquático. Todavia, poucos são os exemplos de que esta tarefa foi,

de fato, assumida pelo órgão. Há escassas referências de que houve a implementação e o

êxito de experiências e, no trecho do alto-médio São Francisco, os pescadores não dão

notícias de que algo ali tenha havido, senão a continuidade da mesma prática

fiscalizatória de sempre.

Há cerca de três anos, o trecho mineiro do rio São Francisco sofreu

tentativa, por parte do governo do Estado de Minas Gerais, de ser controlado por

normas estaduais de ordenamento pesqueiro. O Decreto Estadual n. 38.744/97, que

dispõe sobre a política de proteção à fauna e de desenvolvimento da pesca e da

aqüicultura no Estado, procurou determinar, dentre outros: a emissão de licenças de

pesca com limite territorial de validade sobre o rio São Francisco; o aumento dos

tamanhos mínimos de captura de várias espécies em relação à Portaria 2.230/1990 do

Ibama; a extensão do período de defeso (de três, conforme determina o Ibama, para

quatro meses) e a proibição da pesca profissional no rio, após um ano da edição do

decreto. Além disso, o governo estadual ainda atribuiu ao Instituto Estadual de Florestas

(IEF) a função de fiscalizar as atividades pesqueiras no curso mineiro do rio São

Francisco. Os problemas para a pesca profissional, decorrentes da sistemática tentativa

de ampliar o controle do IEF sobre o trecho mineiro do rio são inúmeros.

Também no município de São Francisco a abordagem fiscalizatória junto

aos pescadores profissionais tem sido aviltante:

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O maior problema que temos é com a fiscalização. Existe muito pescador que é profissional, mas é mal tratado, principalmente quando pesca na piracema. Mas não se vê que a gente sobrevive daquilo. Os que se arriscam pescar é porque não ganham o salário-desemprego. A fiscalização é boa quando corrige, mas não quando nos trata como bandido: os policiais chegam com revólver ao trabalhador, quebram a porta e invadem o rancho do pescador. Precisa de certa educação para conversar conosco. Isso revolta o pescador. (...) A maioria dos fiscais desdenha de nós. Não possuímos crédito na cidade porque não temos renda. É preciso dar valor ao pescador. Ele é trabalhador profissional. Profissional hoje também trabalha sem carteira assinada, sem salário fixo.78

Situações como essas têm causado grande inquietação à Federação das

Colônias de Pescadores de Minas Gerais, manifestando-se, quando possível, na busca

de fundamentos sólidos para o debate sobre o uso dos recursos pesqueiros, bem como

na necessidade de criação, revisão e aplicabilidade da legislação estadual e federal, sem

grandes conflitos e prejuízos para o pescador profissional.

Ao Ministério do Meio Ambiente e ao IBAMA, restaram a função de

fiscalização do uso de espécies sobre exploradas ou ameaçadas de extinção.

Embora essas alterações configurem distinções claras entre competências de

agências no nível federal, isso está longe de induzir o manejo sustentável da pesca, pois

falta integração entre as políticas dos dois órgãos.

Enquanto isso, as comunidades de pescadores carecem de formas concretas

de apoio ao seu desenvolvimento econômico. A pesca, no alto-médio São Francisco, é

realizada com equipamentos produzidos artesanalmente pela família e colegas. As redes

são tecidas e consertadas em frente às casas e às colônias de pesca. Grande parte das

embarcações é de madeira (isto é, são apenas canoas) e o remo ou pequenos motores são

a forma de impulsão mais utilizadas. A maioria dos pescadores (83,6%) tem pequenas

embarcações para realizar seu trabalho. Aqueles que não as possuem realizam seu

trabalho de pé, sobre as pedras, de onde jogam as suas tarrafas, o que é a prática

específica – e ilegal – dos pescadores do município de São Francisco. A captura, nas

corredeiras, é permanentemente proibida pelo , por envolver sérios riscos de vida a

quem a pratica e devido à vulnerabilidade das espécies migradoras que passam no meio

das pedras e lutam contra a correnteza ao subir o rio.79

78 Sr. José Francisco de Almeida, 53 anos, pescador. 79 GODINHO, Hugo Pereira, GODINHO, Alexandre Lima (Org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003

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A pequena presença de política efetiva de desenvolvimento do setor é

também atestada pelos pescadores:

Antes, a Sudepe, quando existia, comprava material para a Colônia. Mas, desde então, nunca houve nada para o pescador, mas deveria existir (...). É preciso ter melhor material. Muitos pescam no remo. Precisava ter uma tralha boa para poder ir mais longe. O governo poderia ajudar da mesma forma que faz para os lavradores: financiar a compra de material nas condições que é possível a nós o pagamento depois. Nós deveríamos, também, ter uma cooperativa, um armazém, onde pudéssemos comprar comida e pagar com peixe.80

Dos instrumentos monoespecíficos, a tarrafa é bastante utilizada pelos

pescadores de São Francisco. Dos multiespecíficos, a rede de espera é a mais utilizada

em São Francisco, onde as redes de batida aparecem como as tralhas mais utilizadas e

onde a necessidade de realização do trabalho, no uso de ajudantes de pesca fica mais

evidente.

Pirapora, São Francisco e Januária são os municípios onde se encontram

pescadores que, freqüentemente, realizam seu trabalho em trechos do rio que distam

consideravelmente de suas casas e dos trechos urbanos, razão pela qual, quando para lá

se deslocam, ficam em acampamentos por vários dias.

O ritmo do trabalho é ditado pela natureza: a hora de sair, de colocar a rede

e recolhê-la, ou jogar tarrafa, não são desígnios diretos das relações sociais, mas do

comportamento dos peixes. A jornada de trabalho é descontínua e, portanto, absorve

grande parte do dia, impedindo que o pescador se dedique com eficiência às outras

atividades que se vê obrigado a desempenhar para o provimento da família. A diferença

de ritmos entre a atividade da pesca e as atividades secundárias ou entre as atividades

urbanas de modo geral, faz com que a primeira pareça indolente e livre, embora

constitua trabalho árduo.

São poucos os pescadores que vendem o peixe na sua própria residência ou

possuem geladeira e/ou freezer para fazê-lo nos dias que se seguem à captura. Um

quarto dos pescadores afirmou que não possui nenhum tipo de compromisso prévio de

venda, realizando-a, no atacado ou varejo, a quem chegar primeiro.

O atendimento direto ao consumidor é feito em local sem estrutura

apropriada. A ausência de condições adequadas de higiene no processo de limpeza e de

armazenamento do peixe, desde a captura até o local de comercialização, aumenta o

80 Sr. José Francisco de Almeida, 53 anos, pescador.

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risco de perecibilidade dessa mercadoria e, portanto, o risco desse trabalhador ver sua

profissão ser identificada como responsável por significativa perda predatória de um

recurso natural. Assim, a questão que está por detrás do dano ambiental – somente este

considerado pela opinião pública – é a da ausência de um aparato tecnológico e

organizacional eficiente para manter as condições de comercialização, ou seja, há uma

dimensão econômica de acesso a meios de produção adequados que precisa ser colocada

em discussão.

Se a perecibilidade é um dos grandes problemas dessa atividade extrativista,

há fatores culturais que impedem a adoção de soluções econômicas alternativas. A salga

do peixe, por exemplo, não é procedimento usual no alto-médio São Francisco, pois não

existe mercado para tal produto na região.

Antigamente, havia as balsas que atravessavam os carros. Havia um depósito de compra e vendas de mercadorias que vinham de um lado da Bahia e de outro de Montes Claros. Vinha caminhão, também de São Paulo. Então aqui era muito movimentado, trabalhava muita gente. Os fazendeiros vinham para cá comprar as coisas, querosene, pinga, também traziam suas coisas para vender. Todo esse povo que vinha comprava nosso peixe e os filhos vendiam para gente, além do peixe, banana e milho, coisa que a gente plantava aqui mesmo, a gente mesmo. Para tudo tinha comprador (...) Mas, o pessoal que foi enriquecendo foi mudando para a cidade (São Francisco), colocando os filhos na cidade. 81

Conhecedor das coisas do rio, a adaptação às mudanças do meio circundante

é penosa e, por vezes, os interesses são irreconciliáveis com os novos fluxos que vão se

construindo, no que o pescador vê recrudescer sua pobreza.

É preciso que as novas formas de regulação forneçam não apenas a

necessária rede de proteção ao pescador e à sua família, mas que estabeleçam uma

situação negociável com os demais usuários para que os usos ecológicos de que

depende a pesca sejam melhor atendidos, conforme apresentam os relatos:

Que o Ibama, o IEF, fornecessem para a Cemig o momento exato em que a água deveria ser liberada para as lagoas marginais para o peixe desovar lá. Que o Ibama e o IEF fiscalizassem, também, a mata ciliar, que serve de alimento pros peixes. Tem que tirar o gado da mata ciliar (...). Para repovoar o rio no prazo mais curto? A única coisa que repovoa o rio é a água. É preciso voltar a ter enchente para repovoar o rio.82

81 Sr. João Batista Oliveira, 60 anos, pescador há 48 anos. 82 Sr. Norberto Damião Vieira, 51anos, pescador profissional.

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Outra sugestão é dada por um outro pescador:

É preciso ter melhor material. Muitos pescam no remo. Precisava ter uma tralha boa para poder ir mais longe. O governo poderia ajudar, da mesma forma que fazem para os lavradores: financiar a compra de material nas condições que dá para gente pagar. A gente podia, também, ter uma cooperativa, um armazém, que pudesse comprar comida e pagar com peixe.83

E finalizando o presidente da Colônia de Pescadores de São Francisco,

sugere:

A Colônia deveria servir como uma cooperativa para todos os pescadores, em que eles chegavam do rio, a Colônia pagava para eles e a Colônia venderia.84

83 Sr. José, 53 anos, pescador profissional. 84 Sr. João, pescador profissional e presidente da Colônia Z-3. São Francisco, MG.

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Só é popular o que o povo aceita e torna seu. As mãos são do artista, mas a arte é do povo. ( Franz Boas)

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CAPÍTULO III – AS PRINCIPAIS ATIVIDADES DOS RIBEIRINHOS

DO SÃO FRANCISCO

3.1 História do artesanato

A atividade artesanal é tão antiga quanto o homem que fabricava suas

próprias ferramentas nas cavernas. Segundo Martins, o homem de Pequim conhecia já o

uso do fogo e sabia fabricar instrumentos de quartzo e grés, e a tecelagem da lã

comprovadamente já existia nos tempos pré-históricos.85

Com certeza, o homem das cavernas era um artífice. Todos os instrumentos

e utensílios de que dispunha eram por ele mesmo fabricados, utilizando a matéria-prima

que mais facilmente encontrava e a partir de sua própria concepção e necessidade.

Com o passar do tempo, tais objetos foram tomando a conotação cultural do

ambiente em que o homem estava cercado, fato que possibilita hoje identificar, em

objetos e conquistas arqueológicas, os costumes e características do povo que viveu em

determinado local.

Há indícios do artesanato em todos os momentos da história.

Na antiga Grécia, o artesanato, juntamente com a agricultura e o comércio

compunham a base da economia de Atenas, embora o artesão permanecesse como o

elemento menos valorizado dessa estrutura econômica.86

Os egípcios produziam cerâmicas, usando o tomo do oleiro, há 4 mil anos,

embora a técnica venha a ser realmente utilizada, noutros lugares, somente muito tempo

depois.

Conforme a Bíblia, José era carpinteiro, e ensinava seu ofício a seu filho

Jesus, enquanto Maria fiava e tecia.

Para Weber, no entanto, “a indústria, no sentido de transformação de

matérias-primas, surgiu, economicamente, como trabalho para cobrir as necessidades

próprias de uma comunidade doméstica”. Weber considera o artesanato como um tipo

de indústria, conquanto modifica ou transforma a matéria-prima em outro produto.

85 MARTINS, Saul. Contribuição ao Estudo Científico do Artesanato. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1973,. 86 PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social. Desvendando o Artesanato; uma contribuição do Programa de Artesanato Paranaense. Curitiba: SEEC, 1994.

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Acrescenta ainda que, “o tipo de transformação de matérias-primas, desenvolvido para

satisfazer outras necessidades diferentes daquelas que dizem respeito à própria

economia consutiva, é a produção de caráter lucrativo, que se inicia com o artesanato”.87

Seria prudente acrescentar, para melhor compreensão, que Weber faz

referência ao artesanato medieval que, nos dizeres de Rima, é o passo intermediário

para a industrialização.88

Realmente, somente na Idade Média, com o desenvolvimento dos mercados,

de novas rotas de comércio, das cidades e com o aumento da população, enfim, com

uma nova situação econômica e social é que o artesanato vive sua época de maior

crescimento e relevância na economia.89

A explicação proposta por Rima, para o processo de surgimento do

artesanato na época Medieval é a seguinte:

O intenso crescimento da população da, Europa e a excelência de seus recursos naturais combinados com técnicas de produção mais evoluídas aceleraram a expansão da produção e ampliaram os mercados. Os mercados crescentes possibilitavam a especialização dos trabalhadores em determinados produtos, adquirindo eles perícias ocupacionais que os transformavam em artesãos. Esta especialização e a divisão do trabalho que tende a acompanhá-la resultaram na produção para o mercado, substituindo a forma mais primitiva de produção que era para o autoconsumo, típica das unidades familiais do sistema feudal. 90

A autora cita como causa principal do desenvolvimento do artesanato, a

preocupação com a produção para o mercado. Tal fato é relevante, vez que o artesanato,

como atividade de produção, embora sem interesses comerciais, já existia há muito,

conforme citado anteriormente.

Martins, analisando o desenvolvimento histórico do artesanato, propõe o

desenvolvimento da indústria manual caseira na Europa, nos séculos X, XI e XII,

principalmente em torno dos castelos, porque ali os mestres-artesãos exerciam suas

atividades e trocavam seus produtos pelos do campo.91

De fato, nenhuma burguesia podia prescindir dos objetos fabricados que a

satisfação de suas necessidades exigia,92 contribuindo, conforme o autor, para a fixação

dos artesãos junto aos burgos, próximos aos castelos, e para o surgimento de diversos 87 WEBER, Max. História Geral da Economia. São Paulo: Mestre Jou, 1968. 88 RIMA, Ingrid Hahne. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Atlas, 1977. 89 CARREIRO, C.H. Porto. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Rio, 1975. 90 RIMA, Ingrid Hahne. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Atlas, 1977. 91 MARTINS, Saul. Contribuição ao Estudo Científico do Artesanato. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1973. 92 PIRENE, Henri. História Econômica e Social da Idade Média. Rio de Janeiro: Mestre Jou, 1963.

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artífices, especializados em determinados produtos, conforme as necessidades da

população local.

Observa-se a atividade artesanal surgir, economicamente, como forma de

atender a um mercado crescente, originário do desenvolvimento das cidades do

crescimento do comércio, de forma geral.

Sua exploração econômica incrementou-se na idade média principalmente

devido ao crescimento do mercado e, conseqüentemente, da demanda.

Assim, é possível, a partir destes elementos, identificar características da

atividade artesanal, na idade média, que permaneceram presentes até a atualidade,

conforme analisar-se-á.

Antes, porém, é necessário melhor definir o que seja a atividade artesanal, na

abrangência deste trabalho, para que não se incorra em interpretações outras que não

aquela sugerida pelo mesmo.

Conceituar a atividade artesanal, em qualquer momento histórico, ou para

qualquer objetivo, será sempre uma tarefa difícil e ingrata. Assim o é, por não se

conseguir, com um só conceito, abarcar todas as variantes que esta expressão permite,

oferecendo, sempre, uma conceituação, em uma análise mais profunda, pobre.

Por ser assim, o conceito jamais atenderá às diversas concepções que se

possa ter da atividade, acarretando exclusões e inclusões, sob cada ótica, indevidas.

Não obstante, far-se-á uma apresentação de conceitos de alguns autores que

se dispuseram a estudar tal assunto e, com o intuito de melhor representar a concepção

deste trabalho, arriscar-se-á uma definição, embora elástica, da atividade artesanal.

Weber conceitua o artesanato como sendo “o exercício de um trabalho

industrial aprendido, com uma extensão variável, executando-se à base de preparação

profissional ou de especialização técnica, de maneira independente, para um senhor,

para uma comunidade ou por conta própria.”93

Em seu conceito, Weber ao identificar o artesanato com o trabalho industrial

aprendido, considera a atividade como a transformação da matéria-prima característica

da indústria - e como uma escola, onde são repassadas as técnicas de produção e o

oficio aos aprendizes, sob os cuidados do mestre. Para o autor, há uma certa

especialização no artesanato. Não a especialização nos moldes da “divisão do trabalho”,

característica própria da organização industrial moderna, mas uma especialização

93 WEBER, Max. História Geral da Economia.São Paulo: Mestre Jou, 1968.

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técnica, uma separação profissional, a partir da elaboração de um determinado

produto.94

Carreiro, embora não conceitue propriamente a atividade artesanal, comenta

que “a técnica de produção do artesanato baseia-se na indústria sobretudo manual (é a

verdadeira manufatura)”.95

Novamente há a identificação do artesanato com a indústria. Percebe-se que

há uma tendência dos autores, ao menos enquanto análise econômica em aproximar tais

atividades, devido à proximidade de seus objetivos, de transformação da matéria-prima

em outro produto.

Para outro autor, Canclini, “o artesanato segue designando um modo de

utilizar os instrumentos de trabalho, mas o seu sentido também é construído na

recepção, por intermédio de uma série de traços que são atribuídos aos objetos apesar de

terem sido fabricados com o emprego de tecnologia industrial”.96

Este autor, com uma concepção diferente, introduz outros elementos na

construção do seu conceito. Para ele, não só o modo de produção define se uma

atividade é artesanal ou não, mas também o sentido dado ao produto, tanto pelo próprio

produtor, quanto pelo consumidor final, pelo usuário do produto.

Acrescenta o autor que a concepção errônea da atividade artesanal, pode

redundar em um purismo atávico que de nada contribui para a melhoria das condições

do trabalhador artesão. Por outro lado, pode-se também, abranger em uma mesma

classe, produtos de processo, mercados e significados diferentes que acabariam por

descaracterizar por completo a atividade e o produto artesanal.97

Martins, ao delinear o seu conceito, segue o caminho de descrever o que não

é artesanato e, por exclusão, caracterizar o que é, em sua concepção. Para ele, a

atividade artesanal se situa no grupo de atividades de transformação de matéria-prima,

dentro do qual se diferencia da indústria, das artes puras ou desinteressadas, das artes

industriais ou ofícios e das “indústrias populares ou indústrias caseiras ou pequenas

indústrias.

Menciona ainda que “só o processo de trabalho, a maneira de produzir

distingue o artesão do artífice. E isto se conhece diante da oficina (...). A feição

94 Tal especialização também é comentada por RIMA, quando da análise da origem do artesanato. 95 CARREIRO, C. H. Porto. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Rio, 1975. 96 CANCLINI, N.G. apud PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social do. Op.cit.p.25. 97 CANCLINI, N.G. apud PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social do. Op.cit.p.25.

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artesanal de uma atividade econômica resulta das características do objeto e,

principalmente, da maneira pela qual foi produzido”.98

O autor também faz referência à dimensão do núcleo populacional e as

exigências do mercado consumidor na caracterização e definição de uma atividade em

artesanal ou não. Conforme cita, “o serralheiro nos grandes centros teria que ser ferreiro

nas cidadezinhas do interior” vez que “o serralheiro não poderia viver do oficio numa

aldeia, onde não haveria procura que encorajasse o estabelecimento de tal

especialização”.99

Martins, encerrando o seu capítulo sobre a conceituação do artesanato,

ressalta que “a definição constitui sempre uma projeção da idéia que a gente faz da

realidade, razão por que pode vir a ser modificada”100, e conclui: Desse modo, hoje

dizemos que artesanato é o regime de trabalho doméstico que reúne os diferentes

processos manuais de criação de objetos usuais e artísticos ou suscetíveis de sê-lo, com

emprego de material disponível.

A partir do estudo de Martins, observa-se que há uma grande diversidade de

fatores que influenciam na concepção e definição da atividade artesanal. Estes fatores

relativizam os conceitos e toma-se extremamente complexo afirmar categoricamente o

que é e o que não é artesanato.

A diferenciação que o autor propõe para a atividade, nem sempre pode ser

observada a contento. O universo que compõe o dia-a-dia do artesão e da prática de sua

profissão, interage, conforme o próprio autor menciona, com variáveis distantes deste e

fora do seu controle. Estas variáveis comprometem a pureza do processo produtivo e do

produto resultante. Ou seja, as técnicas de produção, definidas pelo autor como não

sendo artesanato, estão presente em atividades artesanais propriamente ditas, a partir da

sua concepção.

Na luta pela sustentação da atividade na atualidade, o artesão tem buscado

formas alternativas de produção que possam dar agilidade ao processo produtivo

tomando o seu produto capaz de competir no mercado.

98 THÉ, A.P.G. Conhecimento Ecológico, Regras de Uso e Manejo Local dos Recursos Naturais na Pesca do Alto-Médio São Francisco, MG”. Tese de doutorado, PPG- ERN/UFSCar, São Carlos, SP.2003. 99 THÉ, A.P.G. Conhecimento Ecológico, Regras de Uso e Manejo Local dos Recursos Naturais na Pesca do Alto-Médio São Francisco, MG”. Tese de doutorado, PPG- ERN/UFSCar, São Carlos, SP.2003. 100 THÉ, A.P.G. Conhecimento Ecológico, Regras de Uso e Manejo Local dos Recursos Naturais na Pesca do Alto-Médio São Francisco, MG”. Tese de doutorado, PPG- ERN/UFSCar, São Carlos, SP.2003.

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No esforço de se definir a atividade artesanal buscar-se-á fazê-lo de forma o

mais abrangente possível, considerando o mencionado pelos autores acima e

ressaltando, sobremaneira, a característica econômica desta atividade, entrelaçada com

sua importância sócio-cultural.

Recuperando Weber, considerar-se-á a atividade artesanal como um trabalho

não feito pelas mãos aprendido.

A característica de trabalho industrial também é permanente no artesanato,

se considerar-se o industrial, como sendo a transformação da matéria-prima em outro

produto. A atividade artesanal sempre será um processo de elaboração de um produto

diferente a partir de outros produtos ou matéria-prima.

Sob o ponto de vista de Canclini, utilizar-se-á a relevante observação sobre o

sentido dado ao artesanal pelo consumidor, que considera produtos fabricados a partir

da tecnologia industrial, como objetos artesanais.

Sob este ponto de vista, a atividade artesanal está relacionada com o modo

de viver de uma determinada região, seus valores e sua cultura, que são traduzidos nos

objetos produzidos. A presença de traços culturais próprios, de um determinado povo

e/ou região, nos produtos, é uma característica sempre presente no artesanato, e bastante

valorizada pelo mercado atualmente.

Embora não sendo uma definição ideal, acredita-se que seja suficientemente

ampla para abarcar diversidade de atividades consideradas artesanais, sem contudo,

expropriar as características fundamentais do artesanato.

Esta definição, ao mesmo tempo em que se baseia em Martins, o

desconsidera vez que não releva a distinção a partir do processo produtivo que o autor

acredita existir. Não obstante, considera-se que tal distinção é pertinente, apenas não

sendo relevante para os objetivos deste trabalho.

Com a passagem do sistema de produção doméstico para o fabril, fomentado

principalmente pela grande procura de produtos, os trabalhadores perderam sua

independência e a habilidade tomou-se menos importante devido à incorporação cada

vez mais intensiva de máquinas, sendo muito grande a dependência da produção ao

capital.

Desta forma, a atividade artesanal, que na Idade Média ocupou posição de

destaque no ambiente econômico da época, na sociedade industrial corresponde a um

modo de produção que, principalmente nas grandes cidades, foi substituído pela

atividade fabril e, concorrendo com esta de maneira desvantajosa, “relegou os artesãos à

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realização de conceitos ou outros trabalhos marginais onde a criatividade manual

permanece útil”.101

O artesão, como na época medieval, antes do período áureo do artesanato,

permanece como um trabalhador de classe econômica baixa. Conforme Lopes, a

atividade ocupa, na maioria dos ramos, mulheres e crianças da zona rural e mesmo

suburbanas do interior, além de desempregados destas mesmas áreas.

A renda auferida pela atividade em muito se distancia de um mínimo

razoável para a manutenção familiar. Por isso, a atividade é desenvolvida como forma

de complementar o orçamento, composto pela receita de várias outras atividades,

geralmente de caráter informal.

Além do rendimento oferecido pela atividade artesanal ser baixo, ocorre

ainda que o acesso ao mercado dá-se por via de comerciantes que, intermediando a

transação, absorvem parte da renda dos artesãos.

Esta dinâmica retira do artesão o contato com o consumidor, tomando-o

dependente do comerciante. O resultado é o desaparecimento do trabalhador

independente, que trabalha em sua casa, com a sua família e seus recursos, para a

incorporação deste como assalariado, trabalhando para um empregador que organiza a

produção em formas empresariais.102

Conforme Lopes, o controle da produção por firmas comerciais amplia o

mercado, vez que o mesmo transcende a região onde se localiza a atividade e o artesão

não consegue atingi-lo com sua fraca produção e parcos recursos. Porém estas firmas

comerciais concentram em suas mãos grande parte do lucro auferido, sendo a diferença

entre o valor pago ao artesão e o valor do produto para o consumidor, a receita do

intermediário.103

As atividades que se encontram em locais de maior acesso de turistas ou

próximas aos grandes centros produzem o que satisfaz o mercado, ainda que

descaracterizando em um ou outro aspecto a tradição local. A necessidade do artesão em

comercializar a sua produção é que acaba definindo o tipo de produto que desenvolverá.

Já nas atividades que se desenvolvem em locais distantes dos centros

comerciais ou pouco explorados por turistas, o que se percebe é que os produtos e a

101 PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social. Op.cit., p.26. 102 LOPES, Juarez Rubens Brandão. Desenvolvimento e Mudança Social; formação da sociedade urbano industrial no Brasil. 5ª. Ed. São Paulo: Nacional, 1980. 103 LOPES, Juarez Rubens Brandão. Desenvolvimento e Mudança Social; formação da sociedade urbano industrial no Brasil. 5ª. Ed. São Paulo: Nacional, 1980.

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dinâmica da produção ainda possuem muitas das características tradicionalmente

mantidas através dos tempos.

Nestas localidades pode-se observar a técnica ser transmitida de geração para

geração através do aprender fazendo, próprio deste tipo de atividade e grande parte da

produção artesanal ainda é utilizada para suprir à comunidade das suas necessidades

básicas de utensílios e outros artigos ali desenvolvidos.

Percebe-se que, ainda atualmente, cada região se identifica com um tipo de

atividade, seja pela influência cultural, seja pela abundância de um ou outro tipo de

matéria-prima, pela tradição da região ou, ainda, pela pressão do mercado sobre a

atividade.

O artesanato é, atualmente, uma forma de se sobreviver no mercado, onde o

modelo econômico vigente se toma cada vez mais excludente. É necessário identificar

formas de se recuperar o poder de produção e comercialização dos artesãos, para que

esta atividade possa absorver a habilidade das pessoas de determinada região e

transformá-la em recursos econômicos.

Desta forma, o investimento feito na atividade artesanal é, inicialmente, o

próprio trabalho do artesão, que confecciona suas próprias ferramentas ou utiliza as

mãos como instrumento essencial de trabalho. Quando há a necessidade de algum

recurso financeiro, este é proveniente de outra atividade geralmente desenvolvida pelo

artesão, como complemento da renda familiar.

A manutenção constante do investimento, ou melhor dizendo, o capital de

giro necessário à atividade artesanal é conseguido a partir do próprio artesão, que vende

suas peças e adquire nova matéria-prima, em um processo constante, impulsionado pela

necessidade de recursos do artesão. Quando este necessita de dinheiro, vende alguma

peça, compra matéria-prima, produz e comercializa novamente sua peça para adquirir o

recurso necessário.

Quanto ao capital necessário para o início das atividades de um artesão, que

possua um planejamento prévio das atividades a serem desenvolvidas, que necessite de

uma estrutura mínima para sua atividade.

O artesanato é desenvolvido como uma das possíveis ocupações rentáveis

para a família congregando, regra geral, todos os membros desta. Assim, há uma certa

divisão de tarefas nesta atividade, que envolve a produção das peças. Há que se ressaltar

no entanto, que é o artesão quem concebe, produz com suas mãos e/ou instrumentos

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simples e vende o resultado do seu trabalho. Desta maneira, ele executa senão todas,

quase todas as etapas produtivas.

Ocorre, porém, que a atividade nem sempre é desenvolvida constantemente

durante o ano, estando sujeita a períodos sazonais devido não só à disponibilidade da

matéria-prima que utiliza, mas, também, à demanda do mercado. Outro fator que

contribui para esta sazonalidade da produção é o fato de que o artesão sempre tem outra

ocupação que possa lhe garantir algum acréscimo na sua renda, desta forma o artesanato

é desenvolvido em períodos de entres safra ou decréscimo da atividade que o ocupa

normalmente.

Embora o processo produtivo na atividade artesanal seja consideravelmente

simples, a sazonalidade da produção, a demanda do mercado e outras componentes do

cenário econômico no qual a atividade se insere, conduzem à necessidade de um

mínimo de controle e gerenciamento deste processo.104

As características do artesanato, já citadas anteriormente, limitam o produto,

de alguma forma, à habilidade do artesão e suas condições econômicas. Tais limitações

dentro de uma economia de mercado, fazem com que este produto artesanal não reúna

condições de competir, satisfatoriamente, com os produtos industrializados que atendem

às mesmas necessidades dos consumidores que aquele. As características próprias do

produto artesanal e a capacidade limitada da produção, definem o espaço restrito do

artesanato no mercado.105

Segundo Martins,106 o mercado da atividade artesanal está intimamente

relacionado com a atividade turística, quando não possui um caráter de autoconsumo.

Ressalta o autor que este mercado tem sido ampliado com o

desenvolvimento de feiras e exposições em grandes cidades ou, ainda, mostras

permanentes de artesanato, seja em museus regionais, saguões ou galerias de edifícios

públicos e locais de grande afluxo de turistas como aeroportos, terminais rodoviários e

ferroviários e pontos estratégicos nas estradas.

Porém, ainda segundo o autor, o artesão produz, mas não dirige e nem sabe

negociar, sendo necessário o apoio de órgãos de fomento, geralmente públicos para

possibilitar o acesso do artesão ao mercado.

104 MAIA, Isa. Cooperativa e Prática Democrática. São Paulo: Cortez, 1985. 105 SINDEAUX, Roney Versiani. Aspectos Econômicos da Atividade Artesanal. 1º. Seminário sobre a Atividade Artesanal no Norte de Minas. Relatório. Montes Claros, 1994. 106 MARTINS, Saul. Panorama Folclórico. Belo Horizonte: SESC-MG, 2004.

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Analisando os aspectos históricos, sociais e econômicos da atividade

artesanal, pode-se observar que, embora ela represente uma atividade importante para o

país em alguns aspectos como cultura, história, combate ao desemprego e outros, esta

atividade possui alguns estrangulamentos, principalmente, em se tratando dos seus

aspectos econômicos, embora possa se definir alguns elementos que se traduzem em

potencialidades desta atividade.

Enquanto potencialidades que devem ser ressaltadas na atividade artesanal,

salientam-se alguns aspectos como a possibilidade desta atividade despertar no homem

simples, principalmente do interior, aptidões que podem lhe proporcionar aumento em

sua renda e a capacidade de o artesanato absorver a atividade feminina na família,

criando uma ocupação doméstica paralela às atividades normais de um lar.107

Outro aspecto relevante é o fato de que, assim como o turismo favorece a

atividade artesanal, esta também contribui com aquele, ou seja, há regiões e localidades

em que uma das principais atrações turísticas é o artesanato regional, extremamente

característico.108

Outro fator que garante a importância do artesanato é percebê-lo como

elemento de manutenção da história e da cultura de uma determinada região, traduzindo

nas peças desenvolvidas muitas das tradições, crenças, símbolos e história de uma

comunidade.

Conforme Martins, o artesanato pode possibilitar ao artesão, melhores

condições de vida e, atuando contra o desemprego, pode ser considerado elemento de

equilíbrio no país. Para ele, a atividade artesanal garantiu ao largo da história, e ainda

garante, a sobrevivência de comunidades inteiras. Geradora de ocupação e renda,

tomou-se necessariamente alvo das ações governamentais neste sentido.109

Porém, além de toda a importância intrinsecamente relacionada à atividade

artesanal, ela não pode se suportar sem que seja economicamente viável. Neste ponto,

sob a ótica do mercado e da sobrevivência econômica, concentram-se as principais

dificuldades em se fazer desenvolver o artesanato.

A aquisição de matéria-prima tem se constituído em um dos principais

problemas do artesão. A devastação de regiões onde a matéria-prima era disponível na

natureza obrigou-o a adquiri-la de outras regiões ou substituí-la por insumos

107 MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. 2ª. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1991. 108 Poderia-se citar, como exemplo, as carrancas do Velho Chico. 109 MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. 2ª. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1991.

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industrializados. Isso trouxe problemas de abastecimento em conseqüência da restrita

capacidade financeira dos artesãos, do aumento constante dos preços, da

impossibilidade de armazenamento ou ainda da impossibilidade de redução destes

preços por aquisição em grande escala.

A democratização do acesso às fontes de crédito é uma das maiores

reivindicações dos artesãos. Esta demanda é bastante complexa, pois à inexistência de

linhas creditícias voltadas para o fomento do artesanato, somam-se outros obstáculos

como a complexidade dos trâmites para a obtenção do crédito, vez que é grande o

número de artesãos que não possui documentos de identidade, cadastro de contribuinte

ou título de eleitor. Outra dificuldade a se considerar neste aspecto é o problema dos

prazos de pagamento e dos juros.

A comercialização do produto artesanal enfrenta a forte concorrência do

mercado por parte dos produtos industrializados vendidos a preços relativamente

baixos. Assim, muitas vezes, o artesão se vê obrigado a vender seus produtos a preços

irrisórios para iniciar o processo produtivo ou mesmo para atender a alguma

necessidade familiar no momento.

A dispersão geográfica e o caráter individual da atividade artesanal

constituem graves obstáculos para a sua organização. Nas últimas décadas, os artesãos

adotaram diversas formas de organização como associações, sindicatos e federações.

Entretanto, estas entidades ainda aglutinam pequena parcela de artesãos e não alcançam

suficientemente aqueles que vivem na zona rural ou em pequenas comunidades, ou seja,

os que mais carecem de organização eficiente. Sendo assim, continuam utilizando

instrumentos e técnicas rudimentares na produção de seus artefatos, desconhecendo

tecnologias alternativas que podem propiciar maior qualidade e rapidez na confecção

das peças.

Finalmente, do ponto de vista do apoio institucional, os esforços

governamentais para promover o desenvolvimento do setor artesanal têm se revelado

insuficientes, ocorrendo de maneira isolada e com dotações orçamentárias limitadas que

não permitem apoio satisfatório.110

Esta análise sobre a atividade artesanal, embora não muito profunda, fornece

elementos suficientes para demonstrar que o artesanato é uma atividade desenvolvida

essencialmente por uma classe econômica baixa, que o utiliza, não raro, como fonte de

110 MINAS GERAIS, Secretaria de Estado do Trabalho e de Ação Social de. Programa de Apoio ao Artesanato. Belo Horizonte, 1993.

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renda complementar ao orçamento doméstico, composto, também, de parcos recursos

provenientes de outras atividades econômicas, geralmente de subsistência.

Observando os aspectos econômicos que perpassam a atividade artesanal,

principalmente as suas dificuldades, percebe-se que em um mundo onde a maioria dos

produtos que a população consome é industrializada, pouca chance possui um artesão de

se organizar economicamente de forma eficaz e competir com estes produtos, seja por

falta de capacidade de produção suficiente para atender ao mercado em suas exigências,

principalmente de preços, seja por não possuir, como já citado, recursos suficientes para

afrontar a capacidade produtiva da indústria.

Porém, paradoxalmente, enquanto cresce o consumo de produtos

industrializados, cresce também o consumo de produtos artesanais. Tal fato, segundo

Canclini,111 é devido à capacidade da atividade artesanal em criar alternativas que

agradem a um consumidor específico, geralmente composto por pessoas de classe

econômica mais elevada, que vêm no objeto artesanal mais que um simples produto e

sim a expressão de uma determinada cultura e história.

Cita o autor que o artesanato é importante para a indústria, pois, oferece a

esta estampas e desenhos vários e criativos que são apropriados para os produtos

industrializados.

111 CANCLINI, N.G. Apud. PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e de Ação Social do. Op.cit.p.24-25.

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Neste cenário, onde o artesão se toma cada dia menor economicamente e

onde o fruto do seu trabalho começa a se tomar reconhecido pelo que realmente

representa, há a dificuldade de fazer com que a atividade artesanal possa ser organizada

para atender ao mercado.

O Vale do São Francisco é uma das regiões mais ricas deste país, no que se

refere ao artesanato. Pessoas comuns, que utilizam as mãos e algum instrumento como

extensão dos dedos para confeccionar peças de uso decorativo e utilitário se fazem

presentes às margens do rio. Oficinas caseiras exibem mestres, oficiais e aprendizes nas

mais diversas atividades: produção de mobiliário doméstico, instrumentos musicais, de

trabalho e de transporte, objetos de lazer, etc.

O artesanato está correlacionado com os recursos naturais existentes e

decorre, necessariamente, da relação entre o homem e o meio, reflete o sistema de vida

adotado pelos moradores do lugar ou região.

Na maestria de confeccionar objetos, utilizando recursos naturais da terra da

região a criatividade dos artesãos sempre foi ímpar e diversificada, diante das

possibilidades que lhes são apresentadas. Ao longo do rio, as comunidades desenvolvem

diferentes modalidades de artesanato.

O artesanato em couro tem origem regional. O couro beneficiado ou curtido

é utilizado na elaboração de diversos ornamentos e utensílios. O artesanato em couro

teve uma época áurea durante o florescimento da pecuária. A existência de muitos

curtumes garantia a fartura da matéria-prima. Até o início do século era largamente

utilizado na produção de roupas de vaqueiros, parecendo antigas couraças medievais,

arreios para suas montarias, malas, assentos de bancos, cadeiras e até portas. O

artesanato em couro sobrevive ainda na Região Nordeste, especialmente no Sertão,

mesmo enfrentando a concorrência das grandes fábricas de plástico. Nas feiras

populares são encontrados alpercatas, chapéus, cintos, selas, arreios, alforjes, baús

tacheados, gibões, perneiras, bolsas, sacolas, tapetes de peles de animais etc.

A madeira também compõe matéria-prima para o artesanato dos ribeirinhos,

a arte em Madeira de origem européia, sendo usada para a criação de vários objetos. Na

Região dos Lagos do Rio São Francisco são utilizados diversos tipos de madeira e até

galhos e raízes de árvores e palitos de fósforos, que se transformam em móveis, santos

em estilo barroco, animais, talhas, figuras populares, ex-votos, carrancas, barcos etc.,

dependendo da imaginação dos artesãos, preocupados em retratar as tradições e

costumes da sua vida sócio-cultural.

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Destacam-se os seguintes municípios que apresentam artesanato em

madeira: Poço Redondo (SE) – esculturas de santos em estilo barroco, personalidades e

animais confeccionados em umburana; Canindé do São Francisco (SE) – santos, figuras

do Ciclo do Cangaço e figuras populares como Lampião e Maria Bonita e Antonio

Conselheiro; Porto da Folha (SE) – reprodução de modelos de antigas embarcações do

Rio São Francisco. Piranhas (AL) - esculturas com troncos de árvores como mulungu,

umburana e cedro, além de galhos e raízes, com figuras de animais a exemplo de

macacos e cobras, dentre outras; Pão de Açúcar (AL) - bancos e mesas de troncos de

árvores como o pereiro, a jurema e a catingueira, e esculturas de vários espécies de

animais. Chorrochó (BA) - santos, ex-votos, talhas e móveis; Nossa Senhora da Glória

(BA) – figuras populares em umburana e cedro, mini-esculturas em madeira, que

formam uma peça única, e esculturas em palito de fósforo. O artesanato em Palha

também tem origem nordestina. A palha é utilizada na confecção de chapéus, tapetes,

bolsas e abanos; os artesãos usam a palha do olho do coqueiro (a palha central, fica no

meio do coqueiro), por ser mais macia e maleável.

O bordado, típico da região, de origem européia, é um ornamento executado

sobre qualquer tipo de tecido, por meio de agulha e linhas coloridas, podendo ser

trabalhado com as mãos ou feitos em máquinas apropriadas. As linhas são compradas já

beneficiadas. Os bordados dão acabamento em peças de vestuário, cama, mesa e banho,

trabalhando-se os fios do próprio tecido ou fazendo-se apliques. Na região do São

Francisco são mais comuns o ponto cheio, vagonite, boa-noite, labirinto, redendê,

ponto-de-cruz. Os desenhos representam ornamentos florais, paisagens, espécies da

fauna da região, figuras geométricas, monogramas, etc. São destaques destaque os

bordados de Abaré, Rodelas, Macururé e Chorrochó, na Bahia; ltacuruba e Floresta, em

Pernambuco; Pão de Açúcar, Belmiro Gouveia e Piranhas, em Alagoas e Poço

Redondo, Porto da Folha, Canindé do São Francisco em Sergipe.

A arte em cerâmica, de origem indígena-africana, pode ser figurativa ou

utilitária e tem como matéria-prima a argila. A cerâmica figurativa caracteriza-se por

expressar os modos de vida da população. As peças retratam os costumes, rituais

religiosos e lúdicos, fantasias e cenas do cotidiano, representações de um rico

imaginário. A cerâmica utilitária caracteriza-se pela produção de objetos. O barro

moldado com as mãos, trabalhado em tornos rústicos e depois cozido no fogo de lenha

transforma-se em potes, vasos, panelas, travessas, pratos, moringas. Estudiosos indicam

que a cerâmica é a mais antiga de todas as indústrias e o seu progresso foi determinado

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pelo intercâmbio entre os homens. Atualmente a cerâmica utilitária tem sido sufocada

em diversos lugares pelos utensílios de alumínio.

A cestaria, também de origem indígena, é a arte milenar de trançar cipós,

caniços e palhas, produzindo com estes materiais os mais diferentes utensílios para os

mais diferentes fins. Em trançados dos mais delicados aos mais grossos e firmes

produz-se toda sorte de objetos. Com mãos hábeis os artesãos vão transformando a

palha, aos poucos, em cestos, caçuás, bolsas, balaios, esteiras, sacolas, chapéus, abanos,

tapetes, móveis etc. Utilizam os materiais na tonalidade original ou tingidos com

pigmentos naturais e a palha do ouricuri, além do coqueiro, tapera, sisal, piaçava,

bambu, cipó, dentre outras.

O crochê, de origem européia, é a arte de entrelaçar fios de linhas com o

auxílio de uma agulha. É um trabalho que exige muita habilidade dos artesãos. É

utilizado nos acabamentos para peças íntimas, enxovais de bebês, lenços, toalhas de

banho, lençóis, fronhas etc, são feitos com fios de linhas finos; a linha mais grossa, de

algodão, lã, nylon, ráfia etc é utilizada para confecção de coberturas para almofadas,

bolsas, sacolas, colchas, toalhas de mesa. Merecem destaque na confecção do crochê os

seguintes municípios: Floresta e Itacuruba, em Pernambuco; Gararu, Canindé do São

Francisco, Porto da Folha e Monte Alegre, em Sergipe; Rodelas, Macururé, Chorrochó

e Abaré, na Bahia.

O filtro de coco é um artesanato confeccionado com o próprio coco para

curtir cachaça. Para isso, o coco é descascado e sua água é retirada. São feitas duas

perfurações, uma em cima e outra na lateral do coco. A da parte de cima é utilizada para

introduzir a cachaça, e a da lateral é usada para se adaptar uma pequena torneira. Deixa-

se então a cachaça maturar até ficar bem curtida.

O oficio de tecer redes de pesca, é com certeza, uma arte e uma fonte de

renda para os artesãos que a ele se dedicam, como se observa na figura 13. De origem

indígena as redes de pesca são tecidas com fios de nylon ou de seda. O material

utilizado é o nylon seco ou a seda, pesos de chumbo de vários tamanhos, agulhas

especiais, feitas em PVC e bolas de isopor. O tempo usado para confeccionar uma rede

de tamanho grande é de aproximadamente três meses. Depois de tecida, coloca-se em

volta da rede uma corda de nylon, onde são presos pequenos chumbos - o espaço entre

eles é determinado pelo uso a ser feito da rede: a rede de nylon seco é usada em épocas

de águas limpas; no período de enxurradas deve-se usar a rede de seda.

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Figura 13: Tecendo tarrafas e redes Fonte: arquivo pessoal

As rendas de bilro, de origem européia, têm como matéria-prima linha e

como instrumento para a execução deste tipo de renda os bilros, peças de madeira que

não excedem a 15cm, compostas de uma haste com a extremidade em forma de bola ou

fuso, que recebe o nome de cabeça de bilro, Em almofadas redondas, recheadas com

palha de bananeira, a rendeira aplica o molde, riscado e marcado por alfinetes ou

espinhos, e vai elaborando o seu trabalho com um emaranhado de linhas, habilmente

conduzidas pelos bilros. Tilintando os bilros em movimentos rápidos e precisos com as

mãos, as rendeiras vão pacientemente transformando as linhas em delicadas peças de

rendas, conforme figura 14.

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Figura 14: rendeiras tecendo Fonte: João Naves de Melo

A tapeçaria em sacos de algodão tem origem regional. Para fabricação da

tapeçaria artesanal são usados sacos de algodão, onde são riscados, no avesso do tecido,

com carbono, os motivos a serem bordados. São pesquisados desenhos, cores pontos e

formas de acabamento. O bordado é realizado com lã, e os pontos mais usados são o

simples, o de escovação e o de corte.112

Diante da diversidade artesanal encontrada nas regiões que o São Francisco

atravessa, mesmo com a evolução técnica, industrial e científica, e com a propaganda

acirrada da cultura de massa para o consumo desregrado de objetos industrializados, os

quais geram alto índice de poluição ambiental, encontram-se, nesta terra, em pleno

século XXI, artesãos que ainda mantêm sua genialidade, produzindo objetos que

retratam a história e a cultura de seu povo e deles tiram seu sustento.

3.2. Artesanato: uma das maiores riquezas dos ribeirinhos do São Francisco

A cidade de São Francisco é berço de artesãos de mãos mágicas. Há vários

artesãos, comunidades que trabalham o barro com primor; o trabalho em madeira, o

bordado, e as rendas, o crochê que fazem parte da diversidade do artesanato produzido

na região. A perfeição de alguns trabalhos ultrapassaram as fronteiras do município, a

viola produzida em São Francisco, por exemplo, é comercializada no Brasil e no

exterior.

Uma arte que era repassada de geração em geração, que atravessaram tempo

e que devem, pelo bem do patrimônio cultural da humanidade, prosseguir atravessando.

O folclorista Melo retrata em “Barro” um pouco do artesanato da região:

A forma vem pelos dedos, / Fluindo sentimentos guardados; / Um pote é mais que um objeto, / É uma vida renascida. / As mãos se aprofundam nas locas / E na umidade sentem a veia da terra, / E dela o pulsar do sentido / Que leva o homem às suas origens. / E tudo que nasce da massa preparada / É a mistura dos tempos juntados; / A fusão do ontem ao hoje / Para que se tenha o amanhã.113

112 Disponível em www.sfrancisco.bio.br. Acesso em 14/07/2007. 113 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.

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A relação do homem ribeirinho com o rio São Francisco, compreendida a

partir da cultura, leva em consideração que esta relação se constrói nos hábitos do dia-a-

dia, nas formas de percorrer e viver o espaço. No cotidiano se processa a esfera da

proximidade, da vizinhança, do conhecimento e do reconhecimento, da horizontalidade

das relações afetivas.

É na materialidade do cotidiano que existe a possibilidade concreta de

apreensão do espaço pelas pessoas. É através das ações e das possibilidades de ações

que os lugares se constroem, investidos de valor simbólico, relacionando materialidade

e subjetividade.

Este processo de estabelecimento de valor cria o sentido do espaço, cria

identidade. Os laços culturais se formam no compartilhamento de experiências diversas.

Ao longo da história, as condições precárias de vida dos ribeirinhos do São

Francisco, o analfabetismo e o espírito ingênuo característicos desta população

possibilitaram o surgimento e a perpetuação das mais variadas crendices e superstições.

Esses homens, não contando com maiores recursos para abandonarem as duras

condições de vida e tendo de trabalhar arduamente pela própria sobrevivência, projetam

seus temores na personificação de seres mitológicos.

Buscam, assim, no sobrenatural a explicação mágica dos fenômenos naturais

cuja causa desconhecem e criam, ao mesmo tempo, uma defesa inconsciente contra

esses temores. Como conseqüência das crendices existentes deriva naturalmente a

criação de práticas supersticiosas protetoras, que lhes venham confortar o espírito.

Como fenômeno social, a crendice e a superstição nas regiões do São Francisco não apresentam fundamental novidade em relação a outras épocas ou lugares; a diferença reside apenas em sua forma de manifestação, caracterizada pelo fato de alguns mitos existentes serem próprios do rio São Francisco e se relacionarem com os perigos nele encontrados pelos ribeirinhos. Muitos são os personagens mitológicos, alguns de origem indígena, que lhes povoam a imaginação: Goiajara, Anhangá, Angaí, Galo Preto, Capetinha, Cavalo d'Água, Cachorro d'Água e tantos outros. Dos mitos que habitam as águas do rio os mais conhecidos são o Bicho d´Água, a Mãe d'Água e o Minhocão. Tais crendices têm perdurado na imaginação dos ribeirinhos até os dias de hoje.114

Uma peculiaridade das cidades ribeirinhas é a religiosidade do seu povo. As

manifestações religiosas nas águas do Velho Chico podem ser entendidas como uma 114 BERGAMINI, José. Rio São Francisco, sua história e estórias. 1976.

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forma de atenuar os momentos de angústia e desolação causados pelas cheias. As

crenças funcionam como uma espécie de guardiã do rio e dos que vivem dele.

Algumas cidades, como Bom Jesus da Lapa, na Bahia, são exemplos de uma

devoção que se confunde com capricho de sertanejo. Para rezar aos pés do Bom Jesus, o

romeiro não pode chegar lá no bem-bom, de carro, ônibus ou besta. Só vale se for a pé

ou em pau-de-arara. Quanto mais longe, melhor.

O Rio São Francisco é para as famílias que lá residem às suas margens um fator que determina o espaço, a territoriedade de ribeirinho. As águas do São Francisco são responsáveis por marcar as histórias de vida destes ribeirinhos, pois, para esta população as memórias e as lembranças se constituem como referencial. Os valores, o seu modo de vida e a forma de entendimento do mundo são fundamentais para construção da identidade destas famílias, contrapondo-se, na maioria das vezes, às imposições do Estado.115

Ser ribeirinho, barranqueiro do rio São Francisco é sinônimo de estabilidade

para aqueles que ali vivem. Seus valores, o modo de vida e de trabalho o modo de

perceber o mundo são passados de geração para geração.

O Vale do rio São Francisco apresenta relevante produção da cultura popular

que perpassa por diferentes manifestações. Os mitos, os causos, as danças, as carrancas,

as manifestações religiosas, o artesanato compõem o universo cultural dos ribeirinhos.

As narrativas orais das barrancas do Velho Chico constituem uma determinada identidade para os grupos étnicos da região fixando valores culturais, que viajam no tempo e no espaço; estão inseridos em culturas vivas, constituindo documentos vivos (do passado) e do presente.

Apesar das riquezas culturais observadas, as mudanças no modo de vida dos

ribeirinhos do rio São Francisco, nascidos e habitantes na cidade de mesmo nome, se

fazem perceptíveis em seu cotidiano, os fazeres diários são cada vez mais impregnados

pelo conflito entre a tradição existente e a modernidade.

A construção de grandes barragens e a implantação de projetos de

agricultura irrigada de grande porte, além da construção de estradas margeando o rio a

partir da década de 1960, sobretudo na década de 1970, alteraram sobremaneira o viver

local, introduzindo novas técnicas de trabalho e relações de produção típicas da

modernidade.

115 SODRÉ, Maria Lúcia. Doutoranda em Sociologia na Universidade Federal de Pernambuco.

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O tempo passa a ser ditado pelo relógio mundial, fruto do progresso técnico (Santos, 1993), o domínio dos fenômenos pelo homem assume um papel importante. A água do rio passa a ser considerada como um recurso a ser explorado em prol dos grupos capitalistas, ao invés de um parceiro na sobrevivência dos ribeirinhos.

Pode-se dizer que um processo de mudança profunda em diversos aspectos

da vida da população ribeirinha – alimentação, consumo, educação, aspirações – está

em curso, e se traduz nos seus fazeres. Este processo é vivo e presente. Não houve um

extermínio da vida tradicional pela modernidade, ainda que esta seja hegemônica,

controle as necessidades. Também não se pode dizer que a modernidade não tenha

trazido o imperativo da mudança de concepções de existência. O ritmo da mudança é

detectado na vida diária - é onde se percebe de que forma e até que ponto o novo se

impõe e o velho se destrói, ou permanece.

A entrada da televisão na vida da população é relativamente recente e tem

proporcionado série de mudanças, tanto nos hábitos, como no imaginário das pessoas.

As reuniões noturnas à luz da lua ou das fogueiras, para contar “causos”, histórias de

seres sobrenaturais, conhecidos como bichos, e contemplar a noite, são cada vez mais

substituídas pela reunião silenciosa e passiva das famílias na frente da televisão. Isto foi

acontecendo à medida em que a luz elétrica foi chegando às localidades ribeirinhas.

Ainda hoje alguns povoados – como o próprio Mato da Onça – não dispõem de

eletricidade, ainda que se localizem muito próximo à barragem que ajudou a secar o rio.

Dados do levantamento socioeconômico do São Francisco constataram há

menos de 30 anos a quase inexistência de aparelhos de televisão nas casas. Hoje, os

programas televisivos dominam conversas e atenções nos lares baixo-sanfranciscanos e

brasileiros.

É importante ressaltar que este processo de mudança, com a implantação de

parâmetros urbanos e técnicos, modernos, em detrimento de um modo de vida

tradicional, adequando-se às novas exigências da vida em sociedade, não é um fato

isolado no Vale do São Francisco. O fenômeno ocorre em muitos lugares no Brasil,

podendo ser considerado uma tendência das formas de pensar e agir, de

homogeneização dos modos de viver.

Nas palavras de MELO:

Na peleja entre a matéria e o espírito, fica no seu porto; / É o modo de cada um ter de fazer seu mistério/mister; / E as noites cobrem as noites, perdendo-se nos tempos, / Enquanto recolhe fatos/vida/dor/alegria, faz história. / Ali, de raiz plantada nas pedras para não ter de sair, / Cumpre sina

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de passageiro do rio na eterna missão; / Ali, plantado para não ganhar os gerais mais além, / E perder a água do seu batismo de barranqueiro. / O destino tem de ser o de ficar, onde foi nascido; /Ficar ali, plantado, mesmo de querer ir descendo, / Pois que, como um angico, parece buscar o céu; / Os pés ficam/fincam no rio, o porto de sua vida.116

Deve-se também lembrar que a resistência à ação coercitiva do capital é

também uma realidade mundial, no processo conhecido como fragmentação, pois afinal

os seres humanos têm desejos, vontades e referências existenciais íntimos e profundos

que nem sempre podem ser negligenciados.

Nesta perspectiva, os fazeres e olhares ribeirinhos, como formas de viver e

entender o mundo, estão impregnados por tradições que os ligam de forma profunda e

concreta ao lugar e à natureza, criando um sentido referenciado no passado, comum a

todos os moradores da beira do rio. Ao mesmo tempo, começam a se interessar pelo

progresso tecnológico, pelo universo urbano, em que as referências são mundiais.

Considerado um ofício à deriva, pelas mãos de Zé Pincel, figura 15, a

confecção artesanal de barcos sobrevive na cidade de São Francisco.

116 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003, p.13.

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Figura 15: Zé Pincel em seu oficio Fonte: João Naves de Melo

José Rodrigues de Queiroz nasceu no município de Brasília de Minas em

1943, tornou-se Zé Pincel por razão que não pode precisar. Nunca soube o motivo do

apelido, pois nunca foi pintor. Diante da dificuldade de sustentar a família com a pesca

por causa do progressivo desaparecimento do pescado no Rio São Francisco assumiu a

atividade de confeccionar embarcações, sem contar com o auxílio de mestre algum.

Como ele mesmo narra a origem do seu ofício:

A gente morava na beira do rio. Há sempre uma pessoa necessitando de embarcação e, naquele tempo, havia aqui três barqueiros: Seu Balbino, Seu Paulo e Zé Clemente e uns outros mais. Eu fui ter com eles para que me

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ajudassem a fazer um barco. Eles estavam sempre ocupados e nunca podiam. Então, eu resolvi aprender por mim mesmo. 117

Para construir sua primeira embarcação, Zé vendeu sua televisão e com o

dinheiro comprou cedro e tamboril, madeiras que utiliza até hoje. Na beira do rio

encontrou um barco cujas dimensões rabiscou no papel. Um velho facão, um martelo e

um serrote emprestado foram ferramentas suficientes para fazer seu primeiro barco.

Desde então, Zé Pincel constrói barcos “no estilo sergipano”, barcos de seis

a oito metros de comprimento, de fundo curvo. Hoje, dispondo de mais instrumentos de

trabalho, acelerou o ritmo da produção e é capaz de finalizar um barco em quatro ou

cinco dias.

Harilson Ferreira de Souza é outro artesão que a cidade se orgulha. Natural

de São Francisco, Harilson ou Maguila, como também é conhecido, desenvolve a arte

de esculpir em madeiras há aproximadamente 20 anos. Começou sua carreira esculpindo

letreiros e com o passar do tempo foi aprimorando seu trabalho. Hoje, ele é formado em

História, professor da rede estadual e universitária. Além da paixão pela arte, o

artesanato também complementa a renda da família. Suas obras ganharam espaço em

todo Brasil e também no exterior. Já esculpiu cerca de 300 quadros com grande

variedade de motivos, sendo o regionalismo, o mais presente. “O mundo tem muito a

aprender com modo de viver do barraqueiro e do sertanejo. Solidários, cordiais e

serenos, faz da dureza da vida uma oportunidade para dividir os problemas e vivê-la

com satisfação.”

Este universo foi a fonte inspiradora de quadros de pescadores, lenhadores,

bois, cavalos, santos, carrancas, barrancas e outras mais. Observe a figura 16.

As principais madeiras utilizadas são: o cedro e a cerejeira. Como

ferramentas ele utiliza serrote, martelo, estilete, faca e alicate.

117 José Rodrigues de Queiroz, vulgo Zé Pincel.

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Figura 16 : Quadro da Santa Ceia Fonte : Harilson Ferreira de Sousa

Na margem oposta à cidade de São Francisco fica Bom Jardim da Prata. A

localidade, quando descoberta, também revela tesouros preciosamente guardados na

memória de seus habitantes.

Trazida da Europa por colonizadores portugueses, a renda de bilro se

desenvolveu em comunidades ligadas a rios e mares, especialmente onde é intensa a

prática da pesca. “Onde há renda há rede”, diz o ditado popular, e assim ela está

presente em Bom Jardim da Prata.

A canção que fala da renda e do amor, conhecida em todo País, também se

faz presente na voz das rendeiras desse pequeno povoado, cujas casas, dispersas pela

área rural fronteira ao rio, o tornam quase imperceptível, não fossem a escola municipal

e a igreja de São Sebastião, locais em que pulsa a vida social. Os últimos versos

enriquecem a canção revelam a especificidade que abriga. Trata-se da renda de bilro,

birro como registra o falar regional. Observe a cantiga popular conhecida no universo

das rendeiras:

Olê muié rendeira / Olé muié rendá / Cê me ensina a fazer renda / Que eu te ensino

namorá / Fazê renda é trocá birro / Namorá é só piscá. (Cantiga Popular)

Trocar bilro. Assim se expressam as rendeiras ao se referirem ao ato de

entrelaçar fios de linha para criar rendas. A expressão advém do instrumento que

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utilizam, o bilro, pequena peça de madeira em forma de fuso, composto de duas partes:

o cabo em que se enrola o fio, e a cabeça, que no local é formada pelo coco (semente)

do buriti. Completam o instrumental de trabalho a almofada (daí a renda de bilro ser

também conhecida como renda de almofada, feita de um saco recheado por palha de

milho, bananeira ou capim); o papelão, tira de papel grosso que é “pinicada”, isto é,

perfurada com o desenho a executar; e alfinetes para guiar as linhas que formam o

desenho – no passando, no “tempo velho”, como é dito, utilizam-se espinhos de palma

ou mandacaru.

Flaviana, Olímpia e Zulmira são as guardiãs da memória local e preservam o

conhecimento acerca da arte de rendar, aprendida por volta dos 13 anos de idade, com

mães e avós, no seio da família, conforme figura 17. A atividade era parte do processo

de socialização da mulher para os misteres da vida e assim, por ali, toda menina

aprendia a trocar bilro. Era também uma maneira de passar o tempo, “não ficar

pensando em namoro”.

Uma vez adulta, cabia à mulher conduzir o ofício feito nas horas livres do

dia, geralmente à tarde, após cumprir com as demais obrigações com a família e a casa.

À noite, não se fazia renda, pois à luz de candeeiro era grande o risco de trocar s bilros e

errar o ponto.

Figura 17: rendeiras Fonte: João Naves de Melo

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A prática tornava hábil a mulher no lidar com os bilros, que poderiam somar

até 12 pares. Manusear tantas peças a um só tempo a tornava uma mestra, competente,

capaz. Da quantidade de bilros dependia a largura da renda a ser executada. Quanto

maior o número empregado, mais larga a peça a ser feita e mais complexo o desenho

realizado. E dessa maneira se desenvolvia a arte que ela levaria por toda a vida, até a

morte.

Prescrito mesmo só o período de gravidez, devido à crença de que trançar

fios e dar-lhes nós poderia estender-se ao cordão umbilical e às tripas da criança,

causando sua morte.

Assim se passava o tempo. No costume de trocar bilros para enfeitar as

anáguas e camisas, que se sobrepunham por debaixo do vestido para impedir as

transparências, nos lençóis, nas fronhas, nas toalhas de mesa, nos panos de igreja.

Com o passar do tempo foram-se várias tradições e surgiram novas maneiras

de viver. Chegaram a escola, a luz elétrica, o rádio e a televisão. Novos hábitos, novos

modos de preencher o dia a dia, novas modas. A indústria trouxe outras rendas, feitas

aos metros por segundo, mais fáceis de conseguir, mais baratas de comprar. Ampliou-se

o mercado de trabalho par a mulher com atividades consideradas mais compensadoras.

Às jovens já não mais interessava trocar bilros. E a renda desapareceu da localidade.

Mas, a oficina de resgate de ofício, realizada em 2005, numa pareceria entre

SEBRAE e a Secretaria de Estado de Cultura, reaviou o cantar dos bilros na localidade.

As antigas rendeiras repassaram seus conhecimentos às jovens aprendizes, trazendo a

certeza da continuidade de sua arte e da cultura popular da região.

A construção de violas, violões e rebecas, também é ponto forte no

artesanato da cidade de São Francisco.

Minervino Gonçalves Rodrigues Guimarães, figura 18, nasceu em Angical,

município de São Francisco. Tem 78 anos e constrói instrumentos desde os dezoito anos

de idade. Toca viola e rebeca. Começou a tocar por influência do avô e seguiu seu

aprendizado sozinho. Aprendeu a construir instrumentos pela dificuldade de se comprar

um pelas redondezas.

Isso é porque a gente comprava num homem lá fora, retirado daqui a cinco léguas. Então eu fui lá comprar a viola na mão dele. Chegando lá, ficava dois, três dias esperando ele acabar de fazer para eu trazer. 118

118 Sr. Minervino Gonçalves Rodrigues Guimarães, in TOCADORES. Curitiba : Jangada Brasil, 2002.

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Figura 18: Seu Minervino Fonte: Arquivo pessoal

Augusto Ribeiro, conhecido por Nego de Venança, nasceu em 1936 em

Vargem de Casa, Município de São Francisco. É tocador de violão, sanfona, viola e

rabeca, e também constróis e conserta instrumentos em sua oficina.

Cansado de batalhar de sol a sola na lavoura, seu Nego fez seu primeiro

instrumento por volta de dezoito a vinte anos de idade. a arte de construir instrumentos

foi herdada do pai e de um dos irmãos mais velhos, também não teve mestre. “E

começando, aprendi, sem mestre nenhum. É sangue da família”.119

Artesãos como Seu Minervino, Nego de Venança, Zé Pincel, Harilson e as

rendeiras são mestres neste ofício e comercializam sua arte por toda região, e alguns no

âmbito nacional e até mesmo internacional. A genialidade dessa gente produz objetos

que retratam a história e a cultura de um povo, e ainda, traz a oportunidade de exercer

uma profissão, promovendo a melhoria da qualidade de vida pelas próprias mãos.

O resgate do artesanato e sua utilização como atividade econômica pode ser

uma forma de desenvolvimento social e econômico da população São Franciscana. A

119 Sr. Augusto Ribeiro, vulgo Nego de Venança, in TOCADORES. Curitiba : Jangada Brasil, 2002.

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exemplo dos artesãos citados anteriormente, outras pessoas podem através de oficinas,

aprender um ofício e gerando mais renda e mais qualidade de vida.

Contudo é preciso orientar os novos artesãos estejam atentos à necessidade

de se organizarem em associações ou cooperativas, para que, juntos, possam produzir e

vender, obtendo renda digna para sua manutenção; é importante que não se deixem ser

explorados por atravessadores e exijam do poder público os seus direitos de produção e

escoamento dos produtos.

A criação de oficinas para passar às novas gerações o modo do fazer é

fundamental para que o artesanato de São Francisco continue rico e forte. Pois, manter a

sobrevivência cultural do seu povo, com a corajosa dignidade do residir, do resgatar

valores para um mundo novo é iniciativa importante não somente como ação cultural

mas também como gesto relevante significação social, pois além de garantir a

preservação de ofícios e expressões em risco de desaparecimento, fixa as comunidades

o valor dos mestres e seus saberes.

3.3. Carrancas: cultura e economia para os ribeirinhos do São Francisco

O termo “carranca”, cujo uso difundiu-se mais recentemente, refere-se

também às antigas figuras de proa, mas diz respeito, sobretudo, ao artesanato, que,

seguindo a tradição das esculturas em forma de monstro, serve na atualidade para

decorar residências e escritórios. Foi utilizado pela primeira vez pelo viajante Durval

Vieira de Aguiar nos anos 1880, para designar as figuras de barca do Rio São

Francisco.120

As carrancas – uma das mais genuínas e enigmáticas manifestações da arte

popular brasileira – mesclando detalhes humanos com os de animais, destes sobretudo a

generosa cabeleira à semelhança de uma juba de leão, apresentam em geral uma

expressão de ferocidade. São feitas de um único tronco de madeira e retratam apenas a

cabeça e o pescoço de alguma figura mitológica indeterminada.

As carrancas podem ser observadas nas figuras 19 e 20, na página seguinte.

120 NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.

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Figura 19: Carranca Figura 20: Carranca de proa de

barco Fonte: www.embramic.com.br Fonte:

www.40graus.com/turismo Ligada diretamente aos barqueiros do rio São Francisco, desenvolveu-se na

região uma arte própria e os artistas populares denominados carranqueiros, apoiados na

idéia de esculpir um enfeite de proa, criaram soluções plásticas próprias, de elevado

conteúdo artístico e emocional, provocando verdadeiro impacto.

As carrancas são esculturas de madeira que eram colocadas quase que

obrigatoriamente nas antigas 'barcas do São Francisco, que se traduzem como poderosos

monstros que espantam os maus espíritos das águas, principalmente o lendário Caboclo

D' Água, conhecido pelos ribeirinhos como o nêgo traquino, virador de canoas.

Dentre os artistas carranqueiros, destacou-se Francisco Biquiba Dy Lafuente

Guarany121. Nascido na Bahia, em 1884, esculpiu, em mais de 50 anos de trabalho, uma

enorme quantidade de peças revelando refinada sensibilidade e criação de soluções

originais para as figuras antropomórficas. Sua primeira carranca foi esculpida em 1901 121 RIBEIRO, Nurimar. O direito à memória; o vale do São Francisco e sua história. Brasília, Codevasf, 1999.

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e Guarany atribuia a cada peça um nome original e próprio, ora baseado em animais

pré-históricos, ora na mitologia indígena ou apenas em sua imaginação. Guarany é, sem

dúvida, o único profissional no gênero, pois a produção de carrancas permaneceu

atividade constante ao longo de sua vida - outros artistas, com peças de valor artístico,

não viveram exclusivamente deste trabalho como Guarany.

Utilizadas como elementos de decoração ou figuras de proa por um período

de menos de um século, as carrancas popularizaram-se, constituindo-se manifestação

artística excepcional. Hoje, já não se encontram mais nas proas das embarcações do São

Francisco, mas sem dúvida, transformaram-se em disputados objetos de decoração,

fazendo parte do acervo de museus brasileiros e do exterior e como peças de

comercialização para turistas, o que tem o mérito de mantê-las vivas na cultura

brasileira.

Acredita-se que as carrancas tenham sua origem em ornamentos usados nas

embarcações da Assíria, Fenícia e Egito em eras remotas, de muitos séculos, que de

forma majestosa eram colocadas na proa dos navios e galeras, conhecidos como figuras

de proa.

Para Paulo Pardal, autor da mais completa monografia sobre essa arte

popular do São Francisco, as carrancas tiveram origem por motivos de prestígio e

indicação de propriedade, por imitação de carrancas antropomorfas, vistas por algum

fazendeiro do São Francisco, em navios aportados no Rio de Janeiro ou em Salvador.

Para que, ao longe, os ribeirinhos identificassem a barca pelo busto de seu poderoso

proprietário à proa. De ornamento das barcas passou-se também a atribuir a essas

curiosas figuras de proa a função mágica de afugentar maus espíritos – atribuição

devida não só a uma pequena minoria de ribeirinhos, pois a maioria dos barqueiros

prefere desconhecer semelhante opinião, mas também a narradores fantasiosos, que

encontraram na função totêmica uma fácil explicação para a obscura origem de tal

manifestação espontânea da arte popular.

As carrancas do São Francisco constituem, como bem observa Paulo Pardal,

uma manifestação artística coletiva, com caracteres comuns, respeitadas a

individualidade de cada artista, como não se encontra em nenhum outro local ou época.

Fruto da criação de uma cultura e de uma região isoladas do resto do País e do mundo,

cujos artistas populares, a partir da idéia de esculpir uma figura de proa, criaram

soluções plásticas próprias, de elevado conteúdo artístico e emocional, que provocam

um verdadeiro impacto.

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A carranca é parte do mitológico / Que viaja o rio em busca de um porto; / É a segurança do marinheiro e viajor / Nas longas e perigosas travessias. / A canoa leve, forrada de curimas e pintados; / O barco fornido, quase fazendo água,/ Abarrotado de abóbora, melancia, milho e feijão. / A viola, rabeca, violão ou caixa do folião; / Neste porto a vida passa pela madeira: / Imburana, cedro, pau d’arco, jatobá, e... / O formão e o malho escrevem histórias.122

122 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003.

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A gente tem que sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro. (Guimarães Rosa)

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CAPÍTULO IV – TURISMO E CULTURA DO RIBEIRINHO

DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO

4.1 O Turismo no Alto-Médio São Francisco

A atração dos moradores das grandes cidades pelas paisagens litorâneas é

um fenômeno bastante comum. Especialmente porque a barragem dos rios e os lagos

artificiais criam atrações recreacionais e uma série de outras atividades náuticas

impossíveis de ser encontradas em áreas urbanas. Sendo uma das regiões onde esse tipo

de fenômeno ocorre, o desenvolvimento do turismo nos municípios da região de estudo

apresenta certa homogeneidade.

Em São Francisco, a principal atração dos turistas é o rio. Além da pesca e

dos passeios em barcos, especialmente adaptados para transportá-los, os turistas têm à

disposição restaurantes e lojas de artesanato.

A maior diferença encontrada entre o município de São Francisco e os

demais é a existência de uma estrutura temporária, especificamente montada para a

recepção de turistas que, tradicionalmente, visitam a cidade nessa época. Compreendido

entre os meses de julho a outubro, esse período de alta temporada ocorre devido à

estiagem, que faz baixar o nível das águas do rio São Francisco e abre um espaço

conhecido como prainha. Nesse local, são montadas barracas e equipamentos de lazer

em que sobressai o oferecimento de refeições à base de pescado, como mostra a figura

21 na página seguinte.

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Figura 21: Praia em São Francisco Fonte : João Naves de Melo

Para os turistas, a maior reclamação é quanto à simplicidade do local que,

segundo os depoimentos colhidos, deveria receber atenção maior por parte dos órgãos

públicos para se tornar mais atrativo, como se percebe pela fala de um deles:

Ainda tem que melhorar muita coisa, porque é tudo simples demais. Eu sei de muita gente que não vem por causa disso. Eu estou falando de hotel, transportes, para passear pelo rio, pois, os barcos que servem para isso são muito rústicos. Pelo menos para locação. Existem pessoas que gostariam de uma coisa melhor, mais bem preparada. Isso traria desenvolvimento para a cidade.123

À disposição desses turistas encontra-se rede hoteleira ainda em

desenvolvimento e comércio simples, concentrado no centro da cidade.

O setor mais explorado é o de alimentação com restaurantes e quiosques

que, como os da maioria na região, também têm na culinária do pescado sua principal

atração. Por isso, para os pescadores profissionais, a forma de aproveitar a presença dos

turistas é comercializando o peixe para os restaurantes, hotéis e para os próprios turistas.

A água do rio atrai turistas diversos, tanto de uma faixa etária mais jovem como de

pessoas com a idade mais avançada, com preferência pela pesca amadora, mas também

pelo uso de lanchas mais potentes, ou seja, o espaço da água atrai pela oportunidade de

praticar esportes.

123 Júlio B. Piovezan, professor em Brasília-DF.

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Para quem vive da pesca, as formas hegemônicas de lazer, até pouco tempo,

não faziam muito sentido, isto é, o lazer moldado pelo mercado. Para eles, assim como

ocorre com outras comunidades que têm seu meio de subsistência vinculado ao tempo

da natureza, o lazer se apresenta, muitas vezes, como ações de revalorização do trabalho

e, por isso, é uma atividade social em que podem se reunir para cantar, realizar festas

religiosas ou comemorar o sucesso da colheita ou, nesse caso específico, da boa

pescaria. O uso dos ambientes naturais para formas exclusivas de lazer, como pesca

amadora e esportiva, natação, mergulho e outras atividades é uma ação exclusiva dos

turistas.

O convívio com o turista, entretanto, reforça, no pescador profissional e em

sua família, a necessidade de mudança de seus costumes, o que é intensificado pela

renda cada vez mais escassa que obtêm na comercialização do pescado. É o início do

fim de algumas tradições, dentre elas as relacionadas às formas de lazer tradicional, até

então praticadas.

Perante o forte contraste provocado pela ostentação dos que usufruem do

espaço no seu tempo de não-trabalho e a penúria dos que precisam do espaço como

fonte de trabalho, fica evidente que as finalidades modernas de uso dos rios são

priorizadas nas decisões políticas.

Não é exagero afirmar-se que o pescador profissional poderá apresentar,

dentro em breve, uma combinação de costumes que mudará sua relação com o lazer,

substituindo, progressivamente, a participação nas festas comunitárias e familiares para

uma vida consumista.

Desde que a sedução, especialmente dos mais jovens, pelo estilo de vida

urbano se amplie e se confirme, decretar-se-á o início do fim de possíveis ações,

comportamentos e instituições que valorizem o trabalho de pesca, que reafirmem os

direitos sociais e de cidadania desse trabalhador. A tendência é que se tornem meros

espectadores da ocupação do rio pela indústria do lazer, da morte do rio e de sua cultura,

pois que “confrontam” os costumes locais com juízos de valor que são negativos à sua

forma de viver. Consolidam-se, então, posturas de aceitação passiva das perdas:

Existem certos lugares onde não se pode mais pescar, pois já foram descobertos pelos turistas. Antes o Ibama protegia por causa do nível das

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águas e de outras coisas, como preservar os peixes (...) Agora é preciso deixar de fora do roteiro alguns lugares. 124

O fato de se apresentar como investimento lucrativo e de grande e

diversificada demanda deixa pouca margem para que se façam críticas negativas em

relação à exploração do turismo. Dentre os argumentos favoráveis está a idéia de que é,

por si só, um negócio potencialmente sustentável. A sustentabilidade do turismo

apoiado, dentre outros, na fruição do ecossistema aquático como forma de obtenção de

lucro deverá, para ser seguramente rentável, preservar sua fonte de riqueza. Entretanto,

se o lucro for pautado na fruição da natureza por grande número de pessoas, sabe-se que

a atividade terá fim pelos danos ambientais decorrentes. Ou seja, mesmo considerado

por muitos como um dos mais promissores negócios do fim do século XX e mesmo que,

de fato, apresente grandes possibilidades de retorno financeiro e de empregabilidade,

não há como ignorar o lado negativo. Todo avanço econômico vem acompanhado de

vantagens para o setor de serviços e comércio, assim como para a infra-estrutura em

geral, mas também traz desvantagens sociodemográficas como insegurança social,

poluição, degradação da natureza, dentre outros.

Em última análise, as prováveis riquezas decorrentes de investimentos

turísticos são alternativas que colocam em grande vulnerabilidade as relações sociais e

bióticas que ocorrem tradicionalmente nesses ambientes e, portanto, só deveriam ser

estimulados se, antes de mais nada, correspondessem aos anseios da população

envolvida e passassem por um sério planejamento do uso sustentável do ambiente.

4.2 Cultura e folia na cidade de São Francisco

Beijemos, beijemos, beijemos meus irmãos. / Vou beijar o Menino-Deus, com o joelho no chão. / Beijemos, beijemos todo mundo com alegria. / Vou beijar o Menino-Deus, filho da Virgem Maria. (bis)125

Compreender o que seria cultura tem sido, nos últimos dois séculos, um dos

principais anseios dos antropólogos. Segundo estudiosos, que vêm se dedicando à

análise e compreensão desse assunto, a busca de uma definição do termo cultura vem

124 José Maria Alves Filho, pescador. 125 Folia de Reis de João Raposo – São Francisco; Hora de Beijar no Altar.

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desde Tylor (1832-1917), que a caracterizou como um todo complexo que inclui

conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade e

hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.

O conceito de cultura tem sofrido ao longo do tempo diversas conotações,

adaptadas às distintas correntes antropológicas que foram se constituindo no decorrer da

história.

Se pensarmos numa definição mínima de cultura como conceitos e

comportamentos apreendidos e se a entendermos como um grande código, comum a um

determinado grupo e/ou contexto, podemos afirmar que ela é o fator determinante para a

concretização de todo processo que envolva relações sociais. Nesta perspectiva,

tratamos nesse estudo de um dos aspectos comuns a todo e qualquer contexto cultural

— a música — buscando entender como ela se configura no processo de comunicação

dentro de um determinado grupo social.

Para Emile Durkheim: “Na medida em que participa da sociedade, o

indivíduo naturalmente ultrapassa a si mesmo, seja quando pensa, seja quando age”.126

Pode-se então pensar no folclore brasileiro a partir da sua diversidade e da riqueza de

hábitos, costumes e criatividade original, oriundos das diversas etnias constituintes da

formação da população brasileira a partir das matrizes: européia; africana e indígena.

A cultura mineira compreendida a partir dessa diversidade pode ser

vislumbrada pela sua fácil difusão oral e, no caso do Norte de Minas, pela sua

simplicidade plástica e envolvimento rítmico.

O pescador do São Francisco, homem simples, mas de muita cultura, busca

nas festividades sua forma de lazer.

As festividades (qualquer que seja o seu tipo) são formas primordiais

marcantes da civilização humana. Não é preciso considerá-las nem explicá-las como um

produto das condições e finalidades práticas do trabalho coletivo nem, interpretação

mais vulgar ainda, da necessidade biológica (fisiológica) de descanso periódico. As

festividades tiveram sempre um conteúdo essencial, um sentido profundo, exprimiram

sempre uma concepção do mundo.127

126 DURKHEIM, Emile. 1858-1917. As Formas Elementares da Vida Religiosa: O Sistema Totêmico na Austrália. Tradução, Paulo Neves. - São Paulo: Martins Fontes, 1996. 127 BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 3 ed., Brasília. São Paulo: Editora da UNBHuciet, 1993.

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Analisar com um olhar histórico a população que habita os sertões do Brasil

requer cautela para não cometer equívocos ou preconceitos acerca de suas percepções

frente à realidade na qual está inserida.

Dentre as atividades praticadas pelos moradores de São Francisco,

culturalmente consideradas, será tratada aqui de uma arte herdada dos costumes

ibéricos. Seguramente é a festa com aspectos mais característicos do sertanejo por

exprimir seu espírito, a tradicional “Folia de Reis”.

Essa mentalidade comum, mas repleta de variantes, é percebida no prefácio

da obra “Folia de Reis: Festa Raiz” de Miguel Mahfoud 128, numa passagem que

apresenta o sentido principal deste estudo, ainda que em realidade espacial e descrita

por óticas diversas. A saber:

O sujeito da experiência (...) não é nem o sujeito que se contém em si mesmo, determinado por sua própria estrutura, nem o sujeito assujeitado pelas determinações sociais. Trata-se, sim do sujeito que ativamente constrói; e reconstrói o significado de sua experiência, a partir dos sentimentos e cognições multifacetadas, cuja Análise exige a maestria de um domínio interdisciplinar.129

João Botelho Neto em sua obra Imagens Sertanejas relata: “Assim, os

sertanejos do cerrado tinham um “modus-vivendi” diferente do barranqueiro do rio São

Francisco e do catrumano das caatingas e das matas130. Relações sócio-culturais

diversas, mas que se une a partir de ritos e folguedos tradicionais na região são sintomas

de uma mentalidade homogênea e fruto de festividades agregadoras de todos os povos

presentes.

4.2.1 A Folia de Reis

A cultura é compreendida como todas as atividades sociais fruto da ação

humana, com suas peculiaridades, e com o desenvolvimento de suas várias faces.

José Luís dos Santos131, referi-se a cultura como:

128 Regina Helena de Freitas Campos, In: MAHFOUD, 2003. 129 Regina Helena de Freitas Campos, In: MAHFOUD, 2003. 130 BOTELHO NETO, João. Imagens Sertanejas, 2002. 131 SANTOS, José Luiz dos. O Que é Cultura. 16ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.

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Grau de escolaridade; manifestações artísticas; intensidade de informação; freqüência em cerimônias; festividade tradicional; mito popular; costumes, entre outros. Para o autor a cultura popular, ou antes, o folclore, dispensa qualquer elaboração ou reconhecimento científico para se desenvolver e existir a seu tempo. Sempre que hábitos e costumes se desenvolvem a partir da população, tende-se a permanecer e se estender para além das fronteiras, envolvendo povos de diversos costumes, que acolhem esses hábitos, dado ao penhor sentimental contido em tais manifestações.

A Folia de Reis se destacou como expressão da cultura no Norte de Minas,

desenvolvendo-se desde os primórdios do catolicismo, e se firmando nas mais diversas

regiões, no decorrer dos séculos e com uma plasticidade incrível; afinal a cristandade

ocidental é especialista na arte de ampliar e propagar seus rituais sagrados.

A partir de relatos bíblicos do evangelista São Mateus, acerca dos reis

magos que visitaram o Menino-Deus132, criou-se toda uma encenação mística,

estipulando dados que se adaptaram aos quesitos de um evento; quando o número de

reis magos dado por pinturas e documentos antigos apresentam dois, quatro, seis e até

mesmo doze personagens.

Conforme Antônio Henrique Weltzel:

Fixou-se três, talvez pelos presentes: ouro (porque Jesus era rei), incenso (porque Jesus era Deus) e mirra (porque Jesus era homem), ou então por representar ele as três raças oriundos dos três filhos de Noé (Sem, Caim e Jafé): os Semitas, habitantes do Oriente, que compreendem hebreus, assírios, aramaicos, fenícios e árabes; os camitas, habitantes da África e da Ásia Ocidental; os Jaféticos, povoadores do planalto central asiático e parte da Europa, também chamados de arianos ou indo-europeus.133

Weltzel afirma que, seus nomes foram mencionados pela primeira vez a

partir do século VII na biblioteca de Paris, Melquior (Belchior-Brechó), trouxe ouro;

Gaspar, trouxe mirra; Baltazar, trouxe incenso. Foram descritos pelo sábio são Beda, o

Venerável, como sendo:Brechó, um velho de barbas longas; Gaspar, jovem rúivo,

Baltazar era negro de barba cerrada. Mas cultivou-se a confusão sobre suas reais

aparências, e a folia de reis argumenta que isso era mais uma façanha para enganar

Herodes 134.

132 BÍBLIA SAGRADA (MATEUS Capítulo 2 Versículo 1-12) 133 WEITZEL, Antônio Henrique. “Folia de Reis” In: Comissão Mineira de Fo1clore (CMFL), 2002. 134 RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.

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Embora São Cesário atribua no séc. VI, aos Reis magos, títulos de santos e a

tradição os acolha como verdadeiros monarcas, somente no séc. XII são cultuados como

santos. No século IV seus corpos foram trasladados da Arábia para Constantinopla e de

lá, para Milão e, no ano de 1161, para Colônia na Alemanha, e por isso, a festa da

trasladação de suas relíquias é ali comemorado no dia 23 de julho. No dia 6 de janeiro a

Igreja comemora a festa da Epifania do Senhor que quer dizer aparição, manifestação de

Deus através dos três reis.

Na Europa, esta religiosidade animada ganhou terreno, principalmente na

Península Ibérica a partir do século XIII. Há relatos de versos do poeta português Gil

Vicente em sua tragi-comédia, “Triunfo do Inverno” segundo Tinhorão, 135, enfatizando

a super freqüência da arte no reino:

Em Portugal vi eu já em cada casa pandeiro, e gaita em cada palheiro. E de vinte anos a cá ha ni gaita nem gaiteiro. A cada porta hum terreiro, cada aldeia dez folias. Cada casa atabaqueiro: e agora Jeremias he nosso tamborileiro.

A partir daí, desenvolveu-se e aperfeiçoou instrumentos musicais sob

noções árabes, os quais se aplicam ao evento. Portanto, compreende-se que os

portugueses tenham vivido para o Brasil com uma bagagem repleta de instrumentos e

entusiasmo e que logo imprimiram tal cultura, uma vez que a folia expressa com tanta

precisão, o espírito de boa parte do povo brasileiro.

Na região nordeste do Brasil organizou-se e denominou-se de reisado,

homenageando santos específicos (folia de São Sebastião; São José; Sr. Bom Jesus e

outros) e tais tendências envolvem o Norte de Minas Gerais por tratar de um evento que

ocorre em várias datas do ano e por apresentar diferença entre cada celebração,

considerando-se os cantos de saudação, e indumentárias simbólicas. Mas aqui na região

Sudeste denomina-se ternos de folia e são mais conhecidos pelos nomes de seus

“cabeças”. (folia de João Raposo; folia de Martinho; folia de Adão Barbeiro e outras) 136.

Torna-se necessário enfatizar as diversidades entre as regiões, e até mesmo

entre grupos conterrâneos; onde não há regras estabelecidas acerca do número de

membros (5, 8, 12, 15, 20...), ordem de apresentação, indumentária mais ou menos

135 Gil Vicente, 1529 apud TINHORÃO, 2000. 136 RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.

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colorida, instrumentos utilizados e nem mesmo quanto às datas mais comemorativas da

Igreja. Portanto, durante todo o período Colonial, houve intensa festividade deste

gênero no litoral e interior brasileiro.

Com o processo de independência do Brasil, percebe-se alterações no

padrão de comportamento nas classes brasileiras, e com isso, práticas culturais, ás

vezes, se invertem. Muitas vezes suprimem-se determinadas danças por gerações.

Há variados tipos de danças que reproduzem a musicalidade, algo que

parece próprio do povo na região de São Francisco, são os ternos de dançadores do

lundu, caninha verde, e Dança de Fita. Além do São Gonçalo, As Pastorinhas, o

Carneiro, o Rei dos Cacetes (temerosos), dentre outros do gênero, assuntos que serão

tratados posteriormente.

Os grupos existentes em cada um desses universos apresentam

particularidades significativas, fazendo dessa manifestação um complexo e

diversificado campo de saberes expressados, sentidos e percebidos através da música,

da dança, da religiosidade e de todos os demais fatores que constituem os seus contextos

culturais.

Na região central de Minas Gerais, ocorrem festas como a “Folia do Divino

Espírito Santo”, pouco praticada no Norte de Minas, que é festejada com fogos, mesa

farta, procissões, cantos e danças e os protagonistas ( ... ) rezam nas casas e se coroam.

Todas essas formas de manifestações populares, além de exprimir uma inegável

religiosidade, mostram o que Carlos Rodrigues Brandão 137 bem colocou:

A celebração piedosa de “nós mesmos” através de nossos santos e padroeiros, revividos como folguedos modernos de afirmação de “nós ainda”, através do que produzimos e ostensivamente mostramos a nós e a todos; as mesmas divertidas situações de trocas mansas, solidárias, ou de competição ativa; a mesma farta orgia do comer e beber e as mesmas buscas do outro, onde os desejos do amor e do prazer entre homens e mulheres agora se escondem menos e já não sei sublimam tanto mais. Narciso muda de roupa mas não de cara.

Isso reflete a já referida plasticidade de uma cultura proveniente da Europa

de origens orientais, mas que se adaptou com uma compatibilidade incrível a regiões tão

peculiares como a longínqua cidade de São Francisco, e que, muito embora· não tenha

perdido os traços mais tradicionais desse costume, vem sofrendo transformações no

137 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Cultura Na Rua. Campinas: Papirus, 1989.

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transcurso dos séculos, buscando vivificar o trajeto e os costumes dos primórdios da

cristandade.

A busca racional de adaptação do evento à realidade educacional e

mercadológica atual, através da apropriação pelas instâncias: Estado, Escola e Mídia,

mediante cuidados imprescindíveis, enriquece e reproduz esta tradição. Não se sabe

exatamente quando de sua iniciação como evento festivo, mas sabe-se que já no século

XVI, era de freqüência notável em Portugal.

4.2.2. A Folia em São Francisco

Na aurora do século XX é que se constatam as primeiras manifestações de

folia no perímetro urbano da cidade de São Francisco e concomitantemente aos

primeiros grupos de folias a que se tem registro nesta região, tem-se também a presença

de artesãos como Juca Bicota, produtor de violas, que faria notáveis discípulos como

seu filho Joaquim Bicota e o atual artesão Seu Minervino.138

Acontecimentos no mínimo bizarros são mencionados na obra de

“Brasiliano Braz”139, acerca dos primeiros ternos de folia e sua disseminação na área

urbana. Este autor refere-se aos reisados de São Vicente, que foi o precursor nos

primeiros anos do século, sob proteção do padre local; e a partir de 1910, dado a um

desentendimento entre o padre e seu sacristão, este cria o Reisado de São José, ficando

eles oponentes entre si.

No período entre o natal e ano novo, ocorriam os ensaios para os seis dias

até a Epifania. Nestes dias, saíam sempre à noite e visitavam todas as casas possíveis.

Sempre recebiam doações para a festa do dia seis. Nas seis noites que percorriam a

cidade, tentavam apresentar no máximo de casas possível, com permanência em cada

casa de cerca de uma hora. Diferentemente dos contemporâneos ranchos como o das

138 RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia. 139 BRAZ, Brasiliano. São Francisco Nos Caminhos da História. São Francisco: Lemes, 1977.

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Pastorinhas que escolhiam antecipadamente seis casas (uma para cada dia de 1 a 6 de

janeiro), onde fariam um belo sarau depois de perambularem pelas ruas nas primeiras

horas da noite, observe a figura 22.

Figura 22: Foliões em São Francisco Fonte: João Naves de Melo

Afirmar, ou, atrever-se a registrar todos os grupos de folia em São

Francisco, requer empenho e pode ser um projeto audacioso, pois o município é

composto de mais de 130 comunidades rurais, organizadas em associações

comunitárias. Apesar disso, não é absurdo mencionar que haja próximo de cem ternos

de folia neste município, dada a proporção notificada nas regiões levantadas a fim de

desenvolver este trabalho.140

No norte de Minas, mais precisamente na região de São Francisco, não se

reconhece o festeiro como folião do ano, mas como imperador. São tantos os ternos de

folias que todo o seu conteúdo material e imaterial e a fertilidade do imaginário local

alimentaria vários números de pesquisas, trazendo todas novidades, lendas, crenças,

testemunhos, experiências, relatos, músicas, versões acerca da origem da folia, danças,

140 RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.

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denominações, estruturas e técnicas de produção instrumental ainda desconhecidas.

Sendo todos, elementos da cultura de resistência.

A primeira voz é feita pelo guia ou puxador de reis, seguida pelo ajudante

de guia; estes são respondidos por outra dupla; segmento é a seqüência de versos

cantados e repetidos ou respondidos que costuma chegar a 25 versos; organizados em

manuscritos denominados “tabela de folia”. Existem cantos para muitos santos da Igreja

Católica, pois pode sair folia em qualquer dia do ano e sempre é feita a saudação

referente ao santo.

Quem acolhe a folia em sua casa e é tido dono da promessa é o imperador

ou mordomo, sua mulher é a imperatriz, aqui chamada de imperadeira, geralmente, são

quem elaboram o itinerário da folia, convidam e tratam dos visitantes e dão toda

assistência necessária no transcurso do evento. A presença do palhaço não é comum nas

folias de São Francisco, mas pode haver ternos que atribua esta função ao bandeireiro.

No entanto, a posição de bandeireiro requer a maior seriedade possível, visto que ali,

carrega-se uma imagem de grande devoção.

O processo de produção artesanal e utilização de instrumentos musicais a

partir da matéria-prima local e do conhecimento de seus dependentes que são

verdadeiros mestres artesãos, com grandes talentos e pouca evidência. São estes

músicos e artesãos, artistas na essência da palavra. Vêm ultimamente, sendo descobertos

e tendo seus talentos merecidamente reconhecidos. Às vezes, convertendo seus esforços

e conhecimentos em meios de capitação de renda, melhorando assim, suas condições de

vida, geralmente simples e desprovida de riquezas materiais. Relatos de foliões como o

sanfranciscano João Ferreira de Sousa (João da Viola) em estudos afins, apresentam o

estilo da folia em meados do século XX, onde afirma que nesta região, os instrumentos

de corda como viola; violão; cavaquinho; bandolim. Eram predominantemente usados,

visto que não se empregavam caixa, pandeiro e outros de percussão. Para o livro,

Tocadores141, foi colhido o seguinte comentário do folião e artesão sanfranciscano:

Eu era minino nesse tempo, eu estou com 61 anos, eu era molequinho assim, lembro. Fazê uma festona assim, de folia, fazia só com instrumentos cordiais, viola, violão, cavaquinho, bandolim... Só esses instrumento. Caixa, pandeiro, num tinha, num usava. Não existia nem sanfona. Quando existiu sanfona era sanfoninha oito baixo. Era só instrumentos cordiais, só viola. Ali juntava umas quatro, cinco viola, um violão, pra fazer aquela farra. A turma dançava até inchar o pé.

141 João da Viola, Seco apud. CORRÊA, 2002, p. 253

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A folia de caixa é a mais presente na região, pelo seu caráter permanente e

predominantemente rural, constitui-se, de vários foliões portando: viola; violão; caixa;

pandeiro; rabeca (rebeca); reco-reco (reque); rapa-pau; triângulo; balainho; maromba

(geroma), além da bandeira. (lembrando que não há número determinado de foliões num

terno; havendo grupos com mais de quinze ou apenas cinco).

A viola utilizada pelos foliões de São Francisco segue o modelo da viola de

Queluz, (atual Conselheiro Lafaiete) composta por dez cravelhas (tarrachas), dez cordas

agrupadas duas a duas, algumas industrializadas, mas aqui se encontra também a viola

curraleira, tendo como principais artesãos: Seu Minervino (discípulo de Juca Bicota);

Nego de Venança e Seu Martins. As cordas da viola são aqui conhecidas, de cima para

baixo, por: burdão; baixão, baixinho, toada e prima; e suas afinações são: violada,

enviolada, cebola e cebolão. Os principais toques são: jaca, jacão, caborja, lindovina,

rio-a-baixo, e outros. O violão tem as mesmas cordas, acrescentando-se a corda

superior, chamada “sol”. Usa-se várias violas num terno, quanto mais violas, mais doce

é a melodia dos cantos de saudação e mais quente é o fervor da suça142 . Observe-se a

figura 23.

Figura 23: Foliões e suas violas Fonte : João Naves de Melo

142 RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.

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O músico e especialista em produção artesanal de instrumentos de corda

José Leite, em texto contido na obra “Tocadores”, apresenta uma lista com dezenas de

madeiras de excelente qualidade para produção de instrumentos musicais, mas diz que

prefere aproveitar velhos pedaços de madeira, pois “o tempo lhe aplica atributos

recompensadores”. Para ele: “(...) No interior do Brasil, berço por excelência da viola,

encontra-se não só a madeira para construí-la, mas a sua alma.”

A rebeca parece com o violino e é feita artesanalmente com madeira local;

normalmente com quatro cordas, havendo rebequeiros que as fazem com cinco, seis e

até sete cordas, a exemplo do fabricante artesanal de rebecas Edimilson Tronxado,

folião do temo de Domingos Corrêa e morador do bairro Sagrada Família da cidade: de

São Francisco. Este artesão, além de produzir o instrumento, é um exímio rebequeiro. O

pelo do arco é feito de rabo de cavalo, que, vez por outra deve ser passado em resinas:

vegetais adequadas ou (breus), para preservar sua aspereza indispensável na captação

dos sons. Som este que faz a grande diferença entre os ternos de folias, pois, nem

sempre existem rebequeiros nos ternos, e entre os que existem, são raros os realmente

bons. Mas em São Francisco, encontram-se alguns de reconhecimento regional cujo

desenvolvimento é incontestável.

O principal instrumento de percussão é a caixa, um tubo de tronco de

madeira de forma cilíndrica de uns vinte e cinco cm de diâmetro por vinte e cinco de

altura, tapado por dois tampos de couro de veado ou de bode e ajustável por arriatas,

tocada com dois cambitos (palitos de uns vinte e cinco centímetros). Principal

instrumento do batuque, de origem africana, que assimilou-se à folia brasileira, dando

um toque impecável às diversas danças desse gênero. Em São Francisco o principal

produtor artesanal é Joaquim Goiabeira que, através de projetos do antropólogo e

pesquisador Wagner Chaves do Rio de Janeiro, instalou-se uma oficina e teve aberto

canais de escoamento da produção. Este projeto iniciou-se em 2004, com uma produção

média de 100 (cem) caixas por ano. Não obstante o empreendimento do artesão Joaquim

Goiabeira, a grande maioria dos instrumentos de percussão usados nas folias

sanfranciscana são de fabricação dos próprios membros de cada terno de folia. 143

Outro instrumento de percussão é o pandeiro, pode ser confeccionado com

couro de cobra ou veado, armação de madeira. normalmente industrializada. Na

categoria percussão, ainda são usados pelos pescadores-foliões de São Francisco os

143RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.

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seguintes instrumentos: balainho, giroma, rapa-pau, triângulo e outros de produção

local.

Não se pode pensar em instrumentos de produção tribal; seja indígena, seja

africana, sem se projetar a suas origens étnicas. Neste sentido, faz-se necessário, no

mínimo informar que o “balainho” tem origem nas tribos indígenas do Brasil, produzido

a partir de tabocas ou talescas de bambu e sementes secas ou uma porção de milho; o

rapa-pau, tudo indica que é próprio do vale do São Francisco. Já a caixa, o pandeiro e

outros instrumentos da família dos tambores, foram introduzidos pelos africanos durante

o período colonial e distribuídos por todo o Brasil; os instrumentos de corda e o

triângulo são de origem ibérica. Em síntese, resume-se este conjunto nas palavras de

Generosa Souto144: “A harmonia do instrumental é fantástica flui com naturalidade de

uma orquestra sinfônica, ensaiada e afinada. E a melodia, embora rústica, guarda tantas

recordações, telúricas, recordações, que parece um sopro da alma”.

Ao ritual sagrado da folia, no transcurso dos tempos, assimilou-se diversas

danças de diferentes origens. Em São Francisco, se dança com muita freqüência o

lundu; o guaiano; o quatro; calango; a suça; o xachado; a catira.

O lundu, dança solo, também conhecida por “carijó”, que tem a variante “rio

abaixo”, particularidade do alto-médio São Francisco, (Pirapora / Januária), a qual se

atribui lendas que são cultivadas pelos foliões. Poucos se atrevem a tocar um trecho de

rio-abaixo, dizendo que todos os que o tocam morrem em poucos dias. Diz a lenda que

o diabo (o demo, o manquinho, o tinhoso, o encardido, o coiso, o enfusado, o bicho, o

cão, o pé redondo, o catimbó, o tristonho, o moço, o capeta...)145, vinha descendo o rio

São Francisco numa canoa durante a noite e entoando um belo toque de viola, e que

uma senhora que morava na beira do rio, pediu que ele cantasse para ela. Mas seu filho

percebeu que o homem tinha chifres e os pés redondos. Quando os mostrou a sua mãe,

esta gritou por Nossa Senhora e por Senhor Bom Jesus da Lapa. Nisto o diabo explodiu,

sua viola transformou-se num sabugo de milho e sua canoa, numa cuia. Daí para cá,

quem se atrever a tocar esta moda morre rapidamente.

O catira e o quatro (também conhecido por curraleira), danças mais

complexas; suça; (que se dança em quatro, oito, dez ... ); guaiano (dançado em quatro);

e algumas brincadeiras mais fáceis de se dançar, que recebem o nome de animais:

144 SOUTO, Maria Generosa Ferreira. Eu nunca vi não... só vejo falar: Mitos e ritos da narrativa oral das barrancas do São Francisco. 1ª ed. Rio de Janeiro: Eclesiarte, 2004. 145 GUIMARAES ROSA, 184

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carneiro, tatu, calango, macaco, caranguejo, coruja, gambá e tantas outras modalidades

e denominações de danças como por exemplo o quebra-quebra-gabiroba, mané-

joaquim, colondino, chega-xiar, dança das palmilhas, dança das peneiras, dança do pote,

dança do peão, baratão entre outros, são elementos que compõem a parte dançante da

folia de Reis.

A tradição dessa arte dá-se pelo cultivo de suas crenças. Suas lendas

alimentam o imaginário de seus protagonistas e regem seus comportamentos. E no

município de São Francisco, não é comum a encenação do palhaço, personagem

indefinido. Há quem o tem como um soldado de Herodes; um dos reis magos, ou ainda

sendo a estrela, tradição que se faz presente em outras regiões. Aqui tem o uso da toalha

como símbolo da pureza da virgem; a bandeira ou o quadro de santo são indumentárias

imprescindíveis; costuma-se colocar uma cruzinha de madeira dentro da viola, para

nada interferir na jornada. Acredita-se que quem participa da folia por toda vida tem a

proteção de Santos Reis. Quem desrespeita a folia tem a vida amaldiçoada; quem

participa da folia uma vez, tem de participar por sete anos, ao menos três dias por ano.

São inúmeras as superstições e mitos que, apesar de confessarem ser fruto da

simplicidade dos mais velhos, não deixam de ser cultivados.

A religião católica é permeada de datas cujas comemorações requer uma

mescla do mais sofrido sentimento de culpa, da mais sincera emoção; que se contrai

com sorrisos e luxúria. Para não se dispersar neste assunto, basta lembrar as festas como

o São João, onde se bebe, se come e se brinca sem reservas; no natal, as pessoas se

esforçam em se vestir melhor, em comer melhor; na semana santa, a dieta especial é

indispensável. Estas são algumas datas destacadas pelos foliões de São Francisco

(conhecidos apenas de Foliões de Reis), que durante o ano, cumprem fielmente os

compromissos religiosos propostos pelo dia correspondente, depois se esbaldam em

suas danças e comezainas, sem jamais perder o verniz da moralidade cristã. Após o

cumprimento dos rituais religiosos, acontece a reza do terço, a saudação ao santo do dia,

o recitar do bendito, os muitos e muitos vivas, a ladainha e tantas outras orações e

cantos que concluem a parte religiosa da folia, aí sim, caem na festa. Comem, bebem,

cantam, dançam e riem à vontade. Sem censura, é um espaço de sociabilidade, onde

todos têm voz e vez.

O sagrado e o profano não se separam, mas cada um tem seu momento no

espaço físico e temporal dentro de casa, coexistindo ícones católicos e adereços

mundanos; cantos sacros e quadrinhas hostis; genoflexões e danças sinuosas; altares e

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bebidas; crucifixos e armas brancas; terços e piratas. Aí, a própria dicotomia sagrado-

profano seria inadequada, visto que são elementos constituintes do seu dia-a-dia.

Em São Francisco, as festas e caráter sócio-religioso, ainda preservam muito

de sua essência natural e de folclórico, tanto no meio rural quanto no urbano. Portanto,

não é fácil delimitar fronteiras entre os traços e costumes da cidade e do meio rural,

pois, grande parte da população atual desta cidade, é remanescente do meio rural.

Maior alvoroço acontece nas festas de folias realizadas no meio rural, talvez

pelo maior espaço dos quintais, por todos se conhecerem, pela afinidade nas relações

vicinais e de parentesco, pela despreocupação em incomodar vizinhos, pela apreciação,

geralmente mais honesta, dos presentes na festa, pelas danças e todo o conjunto da festa.

Enfim, pela tranqüilidade que lhes são inerentes, e segundo José Leite 146: “Nós

trabalhamos para comprar o que precisamos para viver depressa e eles vivem

basicamente para fazer o que precisam para viver com calma.”

Nota-se maior liberdade de circulação entre os presentes, gargalhadas são

dadas sem preocuparem-se com escândalos; comida sendo servida à vontade, sem

cerimônias e a fartar; as bebidas, geralmente caseiras e diversificadas, reproduzem a

mesa típica regional (feijoada; farofa; galinha, caipira; bolo de fubá, de trigo ou puba;

biscoito de peta e cambão; pão de queijo; requeijão; queijo; doce de leite, de mamão e

de burití; café; leite; chá; batida; quentão; licores de coquinho do mato, de genipapo e

de pequí. Todos caseiros, além das diversas variedades de vinhos industrializados e

sucos de frutas naturais e artificiais, sem jamais se esquecer da cachaça a vontade e para

os presentes. Todos se arriscam a entrar na roda, principalmente numa roda de suça; o

dono da casa ou o imperador (dono da festa) se preocupa em atender a todos de maneira

simpática e acolhedora. Enfim, o arremato de uma folia na roça, corresponde

verdadeiramente ao conceito de festa, lembrando assim, os costumes medievais que se

estenderam pelas tradições portuguesas e por eles, transplantadas para o Brasil.

Nomeia-se urbano, quando se arremata uma folia que percorreu um dia ou

mais, não importa quantos, o número de casas visitadas é, sem dúvida, bastante

satisfatório, pois, principalmente nos bairros mais periféricos, não falta quem suplique

por uma visita dos foliões em sua casa. Mas o costume de estar presente na casa do

festeiro na noite da festa não é marca notável entre os moradores da cidade. Isso é

justificável devido às opções mais abundantes oferecidas pela cidade: escola, igreja,

146 CORRÊA, Roberto; LEITE, José et aI. TOCADORES. Curitiba: Jangada Brasil, 2002.

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trabalho, televisão e outros eventos. Até as iguarias servidas são diferentes, geralmente

serve-se refrigerante;bolacha; pão de sal ou sovado; caldão; vaca-atolada; licores e

vinhos industrializados; frios, e bolos de padarias; recorrendo assim, a serviços

imediatos, próprios da cidade. Mas nada disso significa menor satisfação do morador

em receber a folia em sua casa, em geral, nos bairros mais periféricos.

Na cidade, os participantes da festa são os vizinhos mais próximos, que

atraídos pela cantoria, aproximam-se e adentram as casas que são geralmente modestas

e acessíveis, também marcam presença os familiares dos foliões envolvidos na folia,

principalmente no seu arremato, durante e depois do jantar.

O gosto pelo cigarro de fumo de rolo, pelo café farto, pela cachaça

(indispensável), a sinceridade com que cumprimentam, despedem e iniciam uma

conversa são alguns dos aspectos e costumes mais marcantes dos sanfranciscanos.

É interessante observar, o trajeto entre as casas, as grotas e cercas

perpassadas; o raiar com cachorros em cada casa que se chega e o silêncio da

madrugada; o olhar oblíquo dos meninos ao chegarem a folia; a acolhida alegre dos

donos da casa; o encontro de dois ternos em uma mesma casa; o café, cachaça são

pedidos para forrar o estômago, transformando essa exigência em motivos de risadas e

mais danças para pagar o que ganham .

No tocante à festa em si do arremato de folia, também não se pode deixar de

especificar as principais danças, suas origens e características, bem como as lendas que

as acompanham e as crenças criadas, cultivadas e difundidas, às vezes, defendidas com

veemência por seus conhecedores.

O município de São Francisco, já foi perpassado por pesquisadores

especialistas em folclore e no assunto aqui tratado e que captaram a dimensão em

termos quantitativos e de particularidades no desempenho dessa riqueza cultural que vai

desde a arquitetura de predominância neo-clássica, refletindo influências externas até as

diversas romarias anuais a Bom Jesus da Lapa, exportando a cultura rítmica, através das

freqüentes folias e expressando a religiosidade intensa da região que também é

manifestada nas festas juninas de Santo Antônio, onde já é tradição a trezena, de 1 a 13

de junho, com quermesse diária na igreja local; o dia de São João, com fogueiras

iluminando a cidade e as glebas na noite de 23; o dia de São Pedro, fogueira das viúvas,

além dos diversos dias santos totalmente monitorados pelo clero. Outro aspecto da

cultura sanfranciscana é o caráter hospitaleiro e pouco capitalista expresso no

acolhimento aos “chegantes”.

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Um grande exemplo da diferença entre a folia sanfranciscana e algumas

outras, é o costume do palhaço na folia. Aqui não se pratica esse costume, nem existem

foliões mascarados. As lendas ou mitos acerca destes traços na folia apresentam-se em

várias versões. Há quem diz que o palhaço significa a “Estrela do Oriente”; outros

defendem que é um soldado de Herodes querendo atrair as crianças para matar. Ainda

dizem que seria um dos três reis magos147, disfarçados para que Herodes não o

reconhecesse. O mesmo se dá com o uso da máscara, que seria disfarce dos reis magos

de volta para casa, escondendo assim sua felicidade ou soldados camuflados.

As folias na região urbana ou rural de São Francisco preocupam-se

especificamente, com o roteiro do terno, a parte sagrada das rezas, a afinação dos

instrumentos e com as danças a serem brincadas. A animação é natural e não dependem

de artifícios ou incrementos. O folião e artesão fabricante de caixa, Joaquim Goiabeira,

em conversa sobre a tradição da folia sob sua ótica, diz que: “esse negócio de palhaço é

invenção, a folia tem de ser da principal dos três reis magos, que é a original, a miséria,

dos três reis magos. Nem todos os ternos ou foliões usam indumentárias distintivas.

Primam por aquilo que é mais essencial na folia que são os itens acima

citados. Também quando se trata de instrumentos, existem inumeráveis versões acerca

da primazia ou preferência pelos foliões. Há quem diz que os três instrumentos

principais na folia seriam o balainho, o triângulo e o rapa-rapa-pau, porque seriam os

mesmos, usados pelos reis magos em visita ao Menino-Deus, jamais desafinados.

Outras versões afirmam ser a caixa, a viola e a rebeca os três instrumentos

indispensáveis na folia.

Há um relato interessante colhido no Bairro Sagrada Família, onde Zé

Gafanhoto (folião há setenta anos), pois iniciou aos oito anos de idade e encontra com

setenta e oito anos e ainda sai com seu filho Tone Gafanhoto e seu neto Warley,

conforme observa-se em seu depoimento:

O bispo de Januária, Don Ancelmo me disse um dia, que o principal instrumento da folia era a rebeca pruquê quando a gente toca, ela faz o sinal da cruz. E isso é a coisa mais certa e gesticulando, ele contitnua: Ta veno, o arco faz um sinal da cruz com o braço da rebeca. 148

São valores imensuráveis, que se vivem, neste discreto município, mas que

vêm pouco a pouco sendo desvendados e revelados como uma das grandezas dos 147 Folião e Artesão produtor de caixas do bairro Sobradinho em São Francisco - 2006 148 José Francisco (Zé Gafanhoto) bairro Sagrada Família em São Francisco - 2006

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Geraiseiros. O próprio fato de se encontrar um folião com setenta anos de trajetória

nesta manifestação é uma grandeza a ser ressaltada e reconhecida. Dentre os foliões

existentes na região, boa parte está neste oficio há mais de quarenta anos, e deixam de

fazer o giro somente em caso de saúde insuficiente.

As danças e cantorias desenvolvidas pelos foliões de São Francisco são

inúmeras. De origens diversas e que se desdobram em tantas outras versões e

modalidades, assimiladas ao contexto da realidade e do ânimo dos festeiros.

As festas e costumes mais tradicionais existentes no município e região vêm

sendo apropriadas pelas escolas e pela administração municipal que patrocinam suas

apresentações. Mas, deve-se salientar a diferença entre a festa praticada em âmbito

privado, promovida por um terno, uma família, alguém que cumpre alguma promessa,

das apresentações organizadas pelas instâncias escola, empresa ou Estado destinado a

atender um público mais abrangente; pois neste caso, o evento dá-se mediante

programação que altera seu desenvolvimento natural, tais como o tempo de duração,

requerendo supressão de partes dos cantos, adequação de cada canto ao momento da

festa, uniformização dos artistas, iluminação artificial, sonorização regulada fora da

naturalidade.

Nas palavras de Roberto Corrêa149 : “A festa, a folia, a brincadeira, são

distintas de sua representação. A representação é folclórica, é quase (...) turística”. A

representação não carrega todo o sentimento inerente ao evento como cumprimento de

um compromisso com Deus. A folia é como que uma válvula de escape para o

sertanejo.

Como já se colocou, não cabe a este trabalho, precisar o número de ternos

de folia existente no município de São Francisco, mas, para melhor abordar o assunto,

levantou-se dados que permitem estipular quantidades aproximadas acerca do número

de ternos organizados na área urbana.

A cidade é composta, atualmente, por dezenove bairros, sendo grande parte,

pessoas oriundas do meio rural, que normalmente, trazem toda a sua bagagem de

costumes, objetos e crenças. Os foliões que se dividem geograficamente entre rurais e

urbanos, não se diferem nos costumes ou preferências musicais ou alimentar. Foram

identificados cerca de quinze ternos na área urbana, através dos “cabeças”, mediante

149 CORRÊA, Roberto; LEITE, José et aI. TOCADORES. Curitiba: Jangada Brasil, 2002.

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entrevistas pessoais, sendo boa parte (seis ternos), situados no bairro Sagrada Família,

coincidentemente, um dos bairros mais carentes e o mais populoso da cidade.

Todos os ternos citados e tantos outros não notificados têm como dever

cumprir a jornada, ao menos da noite de 24 de dezembro. Cada um deles possui seus

cantos próprios, munidos de instrumentos e indumentárias correspondentes ao dia-santo,

saem um, três, seis e até mesmo quatorze dias seguidos pelas ruas ou estradas (no

último caso, de 24 de dezembro a 06 de janeiro).

As músicas de saudação das “lapinhas” ou altares nos dias santos são

profundas e transmitem mensagens bíblicas, enquanto que as brincadeiras são

totalmente descontraídas e suas falas são espontâneas e imediatas.

Os foliões são bem humorados, geralmente o bom humor é reforçado por

doses reguladas de cachaça ou licores caseiros, que não se restringe ao momento da

suça. A distribuição da cachaça é indiscriminada, servindo-se a quem aceitar,

independentemente de idade, sexo ou categoria social. O trajeto entre um ponto e outro

do giro é pleno de brincadeiras, causos interessantes e comentários da última parada. A

chegada de uma folia em casa é motivo de comemoração mediante foguetes.

Este sentido festivo, impregnado de alegria, faz-se necessário para que uma

folia permaneça na memória de todos. Conforme Durkheim 150, na festa, a religião

articula-se ao profano e constroem um mundo simbólico que enriquece o imaginário

popular. Para Brandão151: “Séria e necessária, a festa apenas quer brincar com os

sentidos, o sentido e o sentimento. E não existe nada de mais gratuito e urgentemente

humano do que exatamente isto”

As surpresas e os rituais da festa da folia são atenuantes às agruras do

cotidiano. O sertanejo, a grosso modo, é calejado pelas dificuldades sociais, pelo

isolamento geográfico, e pelo desconhecimento de seus direitos. Então a festa cai-lhe

como grande auxiliar e é aquilo que ele reproduz sem muita dificuldade e com imenso

desdém. As festas populares tornam-se assim, instrumento de resistência, fator social de

subsistência do sujeito desfavorecido de certos tipos de lazer e bem-estar. A festa é

apropriada e apreciada por todas as classes, e dentro da festa propriamente dita, não se

inclui ou exclui ninguém, são todos cristãos.

150 DURKHEIM, Emile. 1858-1917. As Formas Elementares da Vida Religiosa: O Sistema Totêmico na Austrália. Tradução, Paulo Neves. - São Paulo: Martins Fontes, 1996. 151 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Folia de Reis de Mossâmedes. Coleção (Cadernos de Folclore). Belo Horizonte: Evoluarte, 1977.

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Geralmente, quando se trata de um cumprimento de promessa, o imperador

organiza de antemão o giro, recruta os foliões, faz o convite aos vizinhos, parentes e

amigos e à comunidade em geral e prepara a recepção, que se destaca pela fartura. Tudo

isso é melhor visível nas comunidades rurais, mais ligadas pelas relações vicinais, de

parentesco, de compadrio e segundo Carlos Rodrigues Brandão152 , estas comunidades

vivem uma dupla oposição na concepção religiosa, o que seria para ele:

Entre a reprodução cultural da rotina da fé versus a ruptura festiva da rotina cotidiana, o que é o sentido da própria sucessão de festas como ciclos que se repetem. E entre o desejo da residência, estabilidade, consagração dos lugares santificados próprios e próximos versus o deslocamento cultural, como folia, cortejo, procissão ou romaria.

Não é comum finalizar uma folia com músicas comerciais ou danças

estranhas àquelas relativas ao ritual da folia, posto que, uma folia costuma cantar até as

quatro horas da manhã na casa do imperador, (às vezes, cortam o dia seguinte até a hora

do almoço, conforme o entusiasmo dos foliões) depois de feito o giro dos dias

trabalhados.

A natureza religiosa -cristianismo- do povo ibérico foi bem difundida no

território brasileiro. Com a chegada e instalação efetiva dos jesuítas na colônia, a

assimilação das práticas festivas em Portugal aos costumes ameríndios e posteriormente

africanos frutificaram e multiplicaram as datas sagradas, e que são cultivadas até a

atualidade, representando intensidades diversas, conforme o predomínio étnico da

população de cada região.

Em se tratando da “Folia de Reis” o fundamento primeiro desta festa é a

certeza de se estar desenvolvendo um trabalho apostólico, a serviço da vinha de Deus. O

antropólogo e pesquisador de folias, Wagner Chaves153 , percebeu que:

A afinação é um momento particularmente importante nas folias, pois ali não se afinam só cordas e couros, mas também sensibilidades musicais de cada um dos participantes. É o momento de um tipo de comunicação baseada no que se ouve, onde olhares exercem uma função mais expressiva do que palavras. É o instante em que instrumentos feitos artesanalmente e que, na maioria das vezes, são construídos sem padrões e moldes comuns buscam um limiar possível de interação harmônica e musical. .

152 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Folia de Reis de Mossâmedes. Coleção (Cadernos de Folclore). Belo Horizonte: Evoluarte, 1977. V.20. 153 CHAVES, Vagner. Sons de Couro e Corda: Instrumentos Musicais Tradicionais de São Francisco-MG. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2005.

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A preponderância deste evento nas áreas rurais do Norte de Minas Gerais, é

tão grande que é estranha à possibilidade de haver um Natal, primeiro, um seis, ou um

vinte de janeiro sem que haja folias se encontrando pelas casas e estradas, ao menos no

município de São Francisco, onde é comum a jornada da visita ao “Menino-Deus” na

noite de Natal (24 de dezembro);de seis dias seguidos (de 1º a 6 de janeiro) ou na folia

de São Sebastião (20 de janeiro). Tendo a Igreja Católica vários santos para preencher

cada dia do ano, pode-se afirmar que cabe apenas às folias adequarem seus cantos de

saudação do dia santo mais próximo ao dia preferido pelo imperador.

Existe aproximadamente quatrocentos santos, beatos e bem-aventurados,

que por motivos diversos, são venerados pelos brasileiros que lhes prestam homenagens

em retribuição por graças recebidas ou por mera simpatia.

A data principal no calendário cristão é sem dúvida, o natal. Para as folias, é

o inicio da jornada rumo ao salvador que acaba de nascer. Alguns temos saem de vinte e

quatro de dezembro a seis de janeiro, ou seja, quatorze dias de giro. Mas isso é raro,

pois o objetivo real é saudar as lapinhas na véspera do nascimento, e no seis de janeiro,

quando os três Reis Magos teriam chegado para adorar o Menino-Deus. Para Brandão154

:

Entre os camponeses do Centro-Sul do Brasil, o Natal é uma viagem de Deus no mundo dos homens; é a interrupção de uma viagem de seres humanos para o momento do nascimento do ser divino; é o estatuto de uma viagem de magos e supostos reis ao lugar do nascimento miraculoso.

Basta uma visita despretensiosa em casa de qualquer católico, não

necessariamente fervoroso, residente no meio rural sanfranciscano, e percebe-se a

procedência da afirmação acima.

Quando a folia retira-se do sentido festivo, pode-se notar a busca da

interiorização por alguns momentos: a exigência na hora do terço; a cerimônia no

cumprimento de cada ritual componente como o beijar da bandeira; o aspergir de água

benta, se for possível; o silêncio durante o canto de saudação; os muitos e muitos vivas

ao santo do dia; a reverência na condução da bandeira pelo caminho, e na acolhida da

mesma, na reza do “bendito” etc. Todos os ritos são compreensíveis e verossímeis à

realidade dos indivíduos protagonistas, sendo a religião, uma necessidade. Para

154 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Folia de Reis de Mossâmedes. Coleção (Cadernos de Folclore). Belo Horizonte: Evoluarte, 1977.

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Durkheim155 : “É inadmissível (...), que sistemas de idéias como as religiões, que

ocuparam na história um lugar tão considerável, nos quais os povos de todas as épocas

vieram buscar a energia necessária para viver, sejam apenas tecidos de ilusões”.

Pode-se dizer que os dias mais freqüentes em que se apresentam Folias de

Reis em São Francisco são:

Inicia no dia 1º de janeiro, dia de Nossa Senhora ao dia 6, dia de Santos Reis, onde se homenageia os três Reis Magos (Anunciação do Senhor ou Epifania); e na seqüência, Mártir São Sebastião (20 de janeiro), sendo estas festas denominadas de janeiras; Nossa Senhora das Candêias (2 de fevereiro), esta data é pouco festejada em São Francisco e representa a “Apresentação do Senhor”, sendo tradicional em outras regiões; São José Operário (19 de março), um dos principais dias em que se encontra folias pelas ruas e estradas de São Francisco; Nossa Senhora de Fátima (13 de maio); Santa Rita de Cácia (22 de maio); Santo Antônio (13 de junho); São João (24 de junho); São Pedro e São Paulo (29 de junho), estas são as festas juninas, de poucas apresentações de folias na região, mas podem ser consideradas, visto que alguns ternos cultivam esta tradição; Santa Isabel; Nossa Senhora do Carmo (16 de julho); Senhor Bom Jesus (6 de agosto), outro dia-santo indispensável para um terno de Folia, pois é a Transfiguração do Senhor; Nossa Senhora das Dores (15 de setembro); São Geraldo (24 de setembro);São Cosme e São Damião (26 de setembro); São Vicente de Paulo (27 de setembro); São Francisco de Assis (4 de outubro); Nossa Senhora do Rosário (7 de outubro); Nossa Senhora Aparecida (12 de outubro); Zacarias e Isabel (5 de novembro); Nossa Senhora das Graças (27 de novembro); Imaculada Conceição de Nossa Senhora (8 de dezembro); Santa Luzia (13 de dezembro); Natal (25 de dezembro, festa da Natividade) que é o nascimento de Jesus Cristo, fechando assim o calendário cristão, Para Saul Martins, em verdade, o calendário da Igreja Católica encerra-se no dia seis de janeiro, com a festa da Epifania. 156

Esses dias são apontados arbitrariamente, dado o fato já esclarecido de não

haver nenhuma uniformidade entre os ternos de folias no tocante aos dias definidos de

se sair folia. Mas dentre eles, alguns, os mais salientados são indispensáveis. Outro

aspecto a ser enfatizado é que alguns dias são escolhidos por ocasião de aniversário, ou

de algum beneficiário de “milagres”, que retribui através da folia, as graças recebidas.

Os tantos e tantos cantos, rezas, ladainhas, benditos, bandeiras, mastros,

vivas e todas as referências dadas aos santos homenageados numa folia, encheriam

milhares e milhares de páginas de trabalhos acadêmicos. E nem assim, não absorveria

toda a imensidão desta cultura imaterial, que nasce, reproduz e morre no anonimato.

Além do vasto acervo material utilizado para simbolizar a presença de forças místicas.

155 DURKHEIM, Emile. 1858-1917. As Formas Elementares da Vida Religiosa: O Sistema Totêmico na Austrália. Tradução, Paulo Neves. - São Paulo: Martins Fontes, 1996. 156 RAPOSO, Renato Francisco de Almeida. Folia de Reis em São Francisco (MG): Uma Expressão Sertaneja. Montes Claros: Unimontes, 2006. Monografia.

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Essas formas diferenciadas de aprendizagem musical que implicam valores,

relações sociais da música e de seus praticantes, definições de conteúdo e de estruturas

musicais, dentre outros diversos fatores da ex-pressão musical enquanto fenômeno de

performance sociocultural, evidenciam a idéia de que a transmissão musical congrega os

aspectos essenciais que caracterizam o fenômeno musical, sendo responsável pela sua

assimilação, consolidação e transformação no âmbito da cultura.

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Lembrar é tecer fios do passado que não foram tecidos, mas que podem ser retecidos no presente, reatualizando a história.

(Walter Benjamin)

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CAPÍTULO V - ANÁLISE DO MODO DE VIDA DOS RIBEIRINHOS E SUAS

ATIVIDADES ARTESANAIS EM SÃO FRANCISCO - MG

Este capítulo tem como objetivo apresentar a análise dos dados coletados na

entrevista realizada pare este trabalho. Por se tratar de pesquisa descritiva e exploratória,

como instrumento de coleta de dados utilizou-se questionário. O mesmo foi formulado

com questões fechadas para maior precisão de análise e facilidade de tabulação das

respostas, porém, não deixou de colher as angústias, lamentações e desabafos dos

entrevistados.

Foram entrevistadas cerca de 40 pessoas, entre elas: artesãos, pescadores,

foliões e pessoas que lidam com o turismo e turistas, residentes na área ribeirinha do

município de São Francisco, previamente selecionadas no período de junho a setembro

de 2007.

Por se tratar de uma cidade relativamente pequena, onde praticamente quase

todas as pessoas se conhecem ou já ouviu dizer, as pessoas entrevistadas foram

selecionadas da seguinte maneira: os artesãos mais conhecidos, ou seja, aqueles que se

tornaram populares devido ao seu ofício; os pescadores mais antigos ou conhecidos, que

residem no bairro onde está localizada a colônia de pescadores; os foliões mais atuantes

nas folias da cidade e, finalmente os turistas, para os quais não houve nenhum critério

na seleção.

Na questão 01, foi perguntado sobre o estado civil, os entrevistados

responderam:

Tabela 02 – Estado Civil

OPÇÕES

%

Solteiro 5% Casado 80%

Mora Junto 15%

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Estes dados demonstram que a maioria absoluta dos entrevistados possui

família.

Na questão 02, ao serem questionados sobre a faixa etária, foram apresentados

os seguintes resultados:

Gráfico 01 – Faixa Etária

Estes dados mostram que é um trabalho exercido por pessoas mais velhas.

Vê-se que o número de jovens é muito pouco, quase insignificante ao comparar com a

faixa etária mais de 50 anos que ocupa a metade dos profissionais ora em estudo.

Na questão 03, perguntou se o trabalho como artesão/pescador é uma

atividade econômica compensatória para o sustento da família, os entrevistados

apontaram:

Tabela 03 – Atividade Econômica Compensatória

OPÇÕES

%

Sim 24% Não. Precisa complementação. 76%

Os dados demonstram que os artesãos vivem num contexto de baixa renda,

os mais idosos, complementam a renda com o artesanato, pois são aposentados, já os

mais jovens, complementam a renda com outras atividades não relacionadas ao

artesanato. Os pescadores conjugam a pesca com a agricultura para atender as

necessidades da família.

40%

50%

10%

entre 30 e 49 anos

mais de 50 anos

entre 20 e 29 anos

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A questão 04 responde à seguinte pergunta: Por se tratar de um trabalho que

utiliza a madeira/rio São Francisco como matéria-prima para o exercício de sua

profissão, você toma alguma medida para a preservação do meio ambiente ?

Tabela 04 – Medida para a Preservação do Meio Ambiente

OPÇÕES

%

Sim 70% Não 30%

Os dados apontam que ainda há a necessidade de um trabalho de

capacitação com os profissionais pesquisados para a conscientização dos problemas

ocasionados pela degradação do rio e desmatamento. Porém, os pescadores têm

consciência quanto à preservação do meio ambiente, pois, eles têm a preocupação com

o “estoque”. A maior parte atribui a degradação do rio aos fazendeiros e aos órgãos do

governo, devido à falta de fiscalização. Os artesãos (violeiros e barqueiros) também

preocupam, pois utilizam como matéria-prima a madeira disponível na natureza.

Ambos, pescadores e artesãos obedecem à lei natural.

Na tabela 05, apresenta-se o resultado da seguinte pergunta: O que o poder

público faz pela classe dos artesãos/pescadores no município de São Francisco ?

Tabela 05 – Se há Investimento do Governo

OPÇÕES

%

Apresenta investimento 5% Não tem conhecimento 20% Nenhum investimento 75%

De acordo com os pescadores, o governo paga o seguro desemprego na

época da piracema, porém, não são todos os pescadores cadastrados, muitos não

recebem o benefício. Já os artesãos e foliões, não têm conhecimento de

investimento/incentivo do governo para a classe.

Na questão 06, perguntou se considera o trabalho uma forma de lazer.

Tabela 06 – Considera o Trabalho um Lazer.

OPÇÕES

%

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Sim 100% Não -

Percebe-se através da tabela 06, que os entrevistados foram unânimes em

encontrar no trabalho uma forma de lazer. Os artesãos e pescadores gostam do que

fazem, trabalham com prazer e encontram no trabalho uma diversão. Já os foliões,

apesar da maioria ser aposentado, encontram na folia uma forma de entretenimento,

crença e qualidade de vida.

“Eu canto e danço todo tipo de folia. Eu não tenho outra diversão , trabaio a semana

toda e fico doido pra chegar o fim de semana pra foliar. Eu tenho muita fé em folia,

pois a gente reza e diverti.”148

Na questão 07, perguntou se houvesse um projeto governamental para o

incentivo do artesanato na região ribeirinha, no município de São Francisco, como

alternativa para acelerar o desenvolvimento econômico seria benéfico para os artesãos?

Tabela 07 – Um Projeto Governamental seria Benéfico

OPÇÕES

%

Sim 100% Não -

Nota-se através da tabela 07 que todos os entrevistados esperam por este

momento. Há um grande descaso neste sentido.

Na questão 08 a pergunta foi sobre o que o rio São Francisco representa

para eles.

Tabela 08 – Representação do Rio São Francisco

OPÇÕES

%

Fonte de Renda 60% Turismo e Lazer 15% Riqueza para o município 35%

Dentre todos os entrevistados, a importância do rio foi bastante relevante.

Considerado como “Pai” dos ribeirinhos, artesãos, pescadores, foliões e turistas não

148Tino do Padre. Folião – 69 anos de idade e 43 anos de folia. Entrevista concedida à autora em

02/08/2007.

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pouparam elogios e agradecimentos a essa dádiva que integra homem, natureza e

cultura, observe a figura 24. E o poema na seqüência, retrata a grande intimidade entre o

rio e a cidade de São Francisco.

Figura 24: Pôr-do-Sol em São Francisco Fonte : Arquivo Pessoal

São Francisco & São Francisco Uma palavra pode definir o encontro do rio São Francisco em São Francisco: Deslumbramento ! Deslumbramento ao deitar os olhos no espelho das águas plácidas Que trazem notícias das chapadas e, depois, delizam buscando seu destino. Deslumbramento, ao volver os olhos aos (in)finitos pontais acompanhando uma trilha. O brilho que se espicha levando o rio, o rio que quer ficar. Deslumbramento ! Quando deixar os olhos na linha do horizonte E lá, eles se deitam no mais belo espetáculo do rio : o pôr-do-sol. Nada igual ! O criador deixou escorregar os pincéis celestes deslizando pelo arco-íris E eles vão descrevendo linhas, quadros, aquarelas, um berço de pedras multicoloridas esfuziantemente belas ! São Francisco abençoou São Francisco ! E o criador deu mais a São Francisco: Um povo hospitaleiro, generoso e feliz, Tem na sua cultura a imensa riqueza – que é a alma barranqueira / cerratense. De peito franco e aberto, o chamado : Sacie-se no belo / Sinta a vida no São Francisco em São Francisco. 149

149 MELO, João Naves de. Jornal “ O Barranqueiro”– abril / 2007

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Na questão 09, foram apresentados itens que justificam a baixa procura do

jovem pela profissão de artesão em nossa região.

Tabela 9 – Razões de ausência de jovens na profissão de artesão

FATORES

%

Dificuldade para sobreviver 38% Falta de incentivo do poder público 36% Descaso dos órgãos governamentais 16% Falta de emprego 10%

Mediante o exposto, podemos inferir que o jovem ribeirinho não se

interessa em dar continuidade ao trabalho dos pais, pela falta de oportunidade como: as

dificuldades enfrentadas pela luta da sobrevivência, pela falta de incentivo do poder

público, descaso e desemprego. Estes fatores fazem com que os jovens busquem outras

opções de vida que tem mais facilidade para sua inserção no mercado de trabalho.

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Somente a história pode dar a um povo a consciência de si mesmo.

(Arthur Schopenhauer)

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CONCLUSÃO

O presente trabalho se propôs a investigar foi atividades artesanais, dentre

elas a pesca, a cultura e o turismo na cidade de São Francisco, ressaltar o resgate da

mesma e questionar se é possível utilizar o artesanato como atividade econômica e

como uma alternativa de investimento na região, capaz de acelerar o crescimento

econômico e social. A partir da análise dos dados apresentados no capítulo V, à luz do

referencial teórico discutidos nos capítulos II, III e IV deste trabalho, podemos afirmar

que são vários os fatores que interferem na economia e como alternativa para o

desenvolvimento desta região tão pobre do sertão norte-mineiro, ora focalizado nesta

pesquisa – o município de São Francisco.

A principal contribuição que se pretendeu dar com este trabalho foi

estabelecer um panorama de resgate através de ações para alavancar o artesanato como

profissão e sua rentabilidade para sobrevivência dos artesãos. Foram analisados os

resultados considerados mais relevantes para permitir uma visão ampla e formular

estratégias a serem utilizadas em programas voltados para o investimento na região.

A criação de oficinas para passar às novas gerações o modo de fazer é

fundamental para que o artesanato de São Francisco continue rico e forte. Pois, manter a

sobrevivência cultural de seu povo, com a corajosa dignidade do residir, do resgatar

valores para um mundo novo é iniciativa importante não somente como ação cultural

mas também como gesto de relevante significação social, pois além de garantir a

preservação dos ofícios e expressões em risco de desaparecimento, fixa as comunidades,

o valor de seus mestres e seus saberes.

A pesquisa mostrou que a maioria dos artesãos entrevistados possui

família, sendo arrimo da mesma e necessita do trabalho desenvolvido para o seu

sustento. Foi mostrado ainda, que o trabalho é exercido por pessoas mais velhas e

possui baixa rentabilidade, sendo necessária a complementação da renda familiar

associada a outra atividade econômica, como: pedreiro, vaqueiro, carvoeiro,

comercialização de peixes, entre outras. Isto comprova a falta de apoio, incentivo e

direcionamento para os produtos produzidos por eles. Esta pode ser uma das causas que

justificam o desinteresse da procura dos jovens para a referida profissão – dificuldade

no escoamento da produção.

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Apesar do baixo nível de escolaridade, percebe-se a preocupação com a

preservação do meio ambiente. E quanto ao rio São Francisco, há um cuidado muito

grande, como ouvimos de um entrevistado: “o rio São Francisco é minha vida, é tudo

para mim.” Entende-se que a matéria prima para a profissão é algo sagrado. Há também

uma preocupação dos pescadores com o meio ambiente, não só por depender dele

diretamente para sua sobrevivência, mas, também, por um certo pertencimento ao

ecossistema de onde deriva sua pesca. Um meio ambiente ecologicamente equilibrado é

de fundamental importância para a vida de um modo geral, mais ainda, para os que

dependem dele enquanto categoria social e culturalmente diferenciada, como é o caso

dos ribeirinhos do São Francisco. Há a necessidade de conscientização e capacitação

dos demais moradores e fazendeiros que desenvolvem outras atividades econômicas nas

cidades ribeirinhas, como distribuição de cartilhas ou cursos destinados a preservação

do meio ambiente promovidos pelos órgãos públicos e a necessidade de uma

fiscalização permanente às margens do rio.

Os dados coletados apontam para o descaso que o poder público tem para

com a classe dos artesãos. Os órgãos governamentais poderiam investir em pequenas

cooperativas para promover o escoamento dos produtos fabricados para outras

localidades, favorecendo a venda e a entrada do dinheiro nas cooperativas. Para os

pescadores cadastrados há o salário-desemprego que recebem na época da piracema. Os

foliões e artesãos não têm nenhum benefício regulamentado. Encontram no trabalho

uma forma de diversão, lazer e resgate da cultura, para que a mesma não desapareça da

região. Os foliões são pessoas fervorosas na fé, rezam e acreditam naquilo que

professam. Muitos deles trabalham na construção dos próprios instrumentos tocados por

eles, como: tambores, rabecas, violas, pandeiros, caixas e outros. Quanto ao turismo na

cidade de São Francisco há a necessidade de investir neste setor. A sugestão principal

deste estudo é que seja realizado desenvolvimento adequado ao setor de turismo e lazer,

considerando os hábitos tradicionais e o modo de vida dos moradores da região.

As paisagens do rio São Francisco atraem a atenção de moradores das

grandes cidades. Na região da cidade de São Francisco é um exemplo de lugar onde esse

tipo de fenômeno ocorre. Em São Francisco, a principal atração dos turistas é o rio.

Além da pesca e dos passeios em barcos, especialmente adaptados para transportá-los,

os turistas têm à disposição restaurantes e lojas de artesanato. A maior diferença

encontrada entre o município de São Francisco e os demais é a existência de uma

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estrutura temporária, especificamente montada para a recepção de turistas que,

tradicionalmente, visitam a cidade nessa época.

Percebe-se que a sustentabilidade do turismo apoiado, dentre outros, na

fruição do ecossistema aquático como forma de obtenção de lucro deverá, para ser

seguramente rentável, preservar sua fonte de riqueza. Entretanto, se o lucro for pautado

na fruição da natureza por grande número de pessoas, sabe-se que a atividade terá fim

pelos danos ambientais decorrentes. Ou seja, mesmo considerado por muitos como um

dos mais promissores negócios do fim do século XX e mesmo que, de fato, apresente

grandes possibilidades de retorno financeiro e de oportunidades de emprego, não há

como ignorar o lado negativo. Todo avanço econômico vem acompanhado de vantagens

para o setor de serviços e comércio, assim como para a infra-estrutura em geral, mas

também traz desvantagens como insegurança social, poluição, degradação da natureza,

dentre outros. Além disso, os ganhos decorrentes de investimentos turísticos são

alternativas que colocam em grande vulnerabilidade as relações sociais e bióticas que

ocorrem tradicionalmente nesses ambientes e, portanto, só deveriam ser estimulados se,

antes de mais nada, correspondessem aos anseios da população envolvida e passassem

por um sério planejamento do uso sustentável do ambiente.

Este trabalho sinaliza alguns pontos que possibilitam uma maior reflexão

sobre como resgatar o artesanato, a cultura, a pesca e o turismo como atividades

econômicas para a região. Torna-se necessária a realização de estudos que tenham como

objetivo propor alternativas para o desenvolvimento dessas atividades na cidade e como

alternativa de investimentos na região, capaz de acelerar o crescimento econômico e

social.

Espera-se que este trabalho, além das contribuições para ampliar as

discussões sobre o tema, possa também servir como oportunidade de investigar um

assunto que tanto incomoda os sanfranciscanos e ribeirinhos, e todos os que participam

das dificuldades e dos anseios desta gente sofrida que vive às margens do rio e da

sociedade. Acredita-se que as informações obtidas e as discussões efetuadas possam ser

úteis para o desenvolvimento de um projeto governamental que incentive, regulamente e

valorize essa gente.

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