Perrusi, Artur. A construção social dos sentidos: subjetividade e individualidade em Durkheim
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Transcript of Perrusi, Artur. A construção social dos sentidos: subjetividade e individualidade em Durkheim
Diniz, Ariosvaldo da. Silva; Brasileiro, Maria Dilma Simões Brasileiro; Latiesa, Margarita (org). 2005. Cartografias das novas investigações em sociologia. João Pessoa: Editora Universitária UFPB.
A construção social dos sentidos: subjetividade e individualidade em Durkheim
1. Introdução
O objetivo deste artigo é discutir, dentro evidentemente das limitações de um texto curto, a
problemática do indivíduo em Durkheim. Como já induz o título do trabalho, inferimos que discutir o
indivíduo seja debater também algumas questões correlatas, tais como a subjetividade e a
individualidade. Ora, discutir "indivíduo" numa obra sociológica, a nosso ver, implica examinar qual o
papel conferido à individualidade — se a posição teórica examinada pressupõe ou não um indivíduo
visto como um sujeito — e qual aquele conferido à subjetividade — se o status de sujeito supõe ou não
a razão como leitmotiv da ação social, o que não envolve necessariamente a postulação de uma
individualidade. Discutir indivíduo é, assim, analisar a problemática do sujeito e se sua ação, caso
exista, solicita ou não a construção social do sentido, pois a ação de um sujeito, de qualquer sujeito,
supõe algum tipo de sentido. E presumir que uma ação tenha sentido significa, igualmente, investigar
qual é o papel da razão na ação do sujeito.
Se considerarmos Durkheim um holista que substanciou completamente a sociedade em detrimento do
indivíduo, nossa tarefa será um tanto ingrata, pois simplesmente não encontraremos "indivíduo" algum
na sua obra ou, pelo menos, descobriremos apenas um "indivíduo" mitigado e subsumido diante das
coerções sociais. Porém, iremos defender no texto que o holismo durkheimiano não é tão radical assim
e que seus pressupostos epistemológicos, principalmente aqueles sustentados em As Regras do Método
Sociológico (1978), não foram aplicados de uma forma literal. Percebemos, assim, a posição de
Durkheim muito mais nuançada e mais contraditória do que inspiraria o rígido controle metodológico
que implicou As Regras... . Apesar dos desejos de Durkheim em manter uma coerência, principalmente
guiada pelos seus pressupostos epistemológicos, acreditamos que a relação entre suas argumentações
substantivas e suas formulações abstratas do método sociológico seja muito mais complexa e bem
menos harmônica do que imaginam muitos dos seus críticos.
Nesse sentido, o percurso teórico desse texto será o seguinte: discutiremos sobre o "positivismo",
incluindo o holismo, de Durkheim e suas conseqüências na sua visão de indivíduo, bem como,
gradativamente, introduziremos uma discussão a respeito de algumas de suas posições substantivas,
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principalmente aquelas relacionadas ao surgimento do individualismo realizada na obra Da divisão do
trabalho social (1998), e às discussões sobre as representações coletivas, encontradas
fundamentalmente na As formas elementares da vida religiosa (1994). Tentaremos mostrar que o
holismo de Durkheim é marcado por uma tensão entre um holismo propriamente dito e uma posição
"interacionista", e que tal tensão, talvez, seja produto da transformação da dualidade entre o indivíduo e
a sociedade (postulada e defendida várias vezes por Durkheim como fundadora da sociologia enquanto
ciência do social) em um dualismo que separa a individualidade da subjetividade.
2. Acerca do positivismo de Durkheim
Seria senso comum sociológico considerar Durkheim um positivista. Uma afirmação que deve ser
relativizada, já que positivismo seria uma noção não tão consensual nas ciências sociais e um tanto
quanto polissêmica. Pelo que entendemos, o termo pode referir-se, embora não esgote os sentidos da
noção, a dois tipos de situações na ciência social:
a) a defesa de uma continuidade entre a ciência natural e a ciência social;
b) a defesa de uma separação entre a ciência social e o senso comum ou, numa outra variante,
entre a ciência social e a ideologia;
Acreditamos que as duas situações estejam imbricadas, implicando inclusive uma discussão sobre o
status epistemológico da ciência social e sua relação com a objetividade — mais ainda: a discussão a
respeito da objetividade leva, geralmente, a uma defesa da neutralidade científica. A primeira situação
é mais impregnante a ponto de, caso defenda-se a continuidade entre a ciência natural e a social,
dificilmente defender-se-á uma continuidade, por exemplo, entre o senso comum e a ciência social; já
uma separação entre o senso comum e a ciência social não implica necessariamente uma defesa da
continuidade entre esta e a ciência natural.
A primeira situação envolveu um debate que, parece-nos, teria uma relação mais próxima com o
contexto filosófico alemão, principalmente a partir do momento em que Kant passou a ser, em
detrimento de Hegel, a referência principal para a sociologia clássica alemã. A escola neokantiana
postulou explicitamente, se não a separação radical, pelo menos a distinção clara entre a ciência da
natureza e a do espírito (geisteswissenschaften). A segunda situação pode ser considerada uma
discussão francesa, embora o contexto francês implique as duas situações, tomando como referência
Comte e a defesa de uma sociologia baseada nos métodos das ciências naturais e que vai de encontro ao
senso comum.
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Assim, para o bem ou para o mal, Durkheim enquadra-se, inclusive como dileto discípulo de Comte,
nas duas situações, ou seja, é um positivista: tanto defendeu uma continuidade entre a ciência natural e
a ciência social, produzindo analogias e utilizando raciocínios e conceitos vindos principalmente da
biologia, quanto afirmou uma separação entre a ciência social e o senso comum ou, mutatis mutandis,
entre a sociologia e a ideologia.
No entanto, a posição de Durkheim possui uma série de nuances que confunde a sua rotulação de
positivista. Ele, por exemplo, vai defender uma continuidade entre a ciência social e a natural,
justamente para afirmar a sociologia como uma ciência específica e com um campo objetal próprio.
Certo, várias vezes utilizou conceitos da biologia no estudo da sociologia, mas sempre argumentou que
a sociologia é uma ciência legítima, com seu aparato conceitual próprio e seu objeto específico,
irredutível aos demais: o fato social. Não apenas isso: argumentou que a natureza do fato social era
diferente, donde a necessidade de uma ciência singular para estudá- lo. E, novamente, para especificar a
natureza do fato social, precisou primeiro colocá-lo como uma coisa, isto é, como algo comum a todos
os objetos científicos, para depois afirmá-lo como específico e irredutível a uma ciência especial: a
sociologia.
Assim, numa afirmação famosa, Durkheim define coisa
"como todo objeto do conhecimento que a inteligência não penetra de maneira natural, tudo aquilo de que não podemos formular uma noção adequada por simples processo de análise mental, tudo o que o espírito não pode chegar a compreender senão sob condição de sair de si mesmo, por meio da observação e da experimentação, passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente acessíveis para os menos visíveis e profundos. Tratar fatos de uma certa ordem como coisas não é, pois, classificá-lo nesta ou naquela categoria do real; é obs ervar, com relação a eles, certa atitude mental. Seu estudo deve ser abordado a partir do princípio de que se ignora completamente o que são, e de que suas propriedades características, assim como as causas desconhecidas de estas dependem, não podem ser de scobertas nem mesmo pela mais atenta das introspecções" (Durkheim, 1977: 23).
O que se nota nesse famoso parágrafo é o alargamento da noção de coisa de modo a identificá- la com
todo e qualquer objeto. Durkheim não reificou o objeto e sim objetificou a coisa. Porém, o objeto da
sociologia tem uma particularidade: como todo objeto de ciência, o fato social é coisa, mas enquanto
uma representação. Durkheim coloca explicitamente isso numa nota de rodapé:
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"não é necessário afirmar que a vida social seja feita de algo mais do que representações; basta formular que as representações individuais ou coletivas não podem ser estudadas cientificamente senão sob a condição de serem estudadas objetivamente " (1977: 24).
Como não encontramos, nos seus escritos, afirmação alguma de que a vida na natureza precisa ser
analisada também enquanto representação, deduzimos que é da natureza do fato social sua natureza
representacional. Ora, embora afirme uma continuidade, a demonstração de que o fato social só pode
ser estudado como uma representação coletiva revela uma descontinuidade entre a sociologia e a
ciência natural. Enquanto Berkeley vai reduzir o ser, todo ser, à maneira pela qual a representação
apresenta-se no espírito, Durkheim vai implementar essa redução na ciência sociológica.
Mas a afirmação do fato social enquanto representação já implica a postulação de um sujeito da
representação e uma problemática que, segundo a démarche de Durkheim, vai contrapor as
representações individuais, típicas da individualidade, às representações coletivas, características da
sociedade. As representações coletivas são reais, segundo Durkheim, tão reais como qualquer objeto
natural, e são exteriores à consciência individual, sendo eficazes na reprodução da ordem social. As
representações coletivas são objetivas e produzidas pela sociedade, conceituada como sujeito sui
generis:
"mas se não podemos estar ligados pelo dever senão a sujeitos conscientes, agora que eliminamos todo sujeito individual, não resta outro objetivo à atividade mora l além do sujeito sui generis formado por uma pluralidade de sujeitos associados de maneira a formar um grupo; não resta mais que o sujeito coletivo" (1970: 67 — sublinhado nosso).
Sujeito sui generis que é uma pessoa:
"se existe uma moral, um sistema de obrigações, é preciso que a sociedade seja uma pessoa moral qualitativamente distinta das pessoas individuais que a compõem e da síntese da qual ela resulta" (68 — sublinhado nosso).
Se "eliminamos todo sujeito individual", não eliminaríamos toda subjetividade da individualidade?
Durkheim parece implementar um deslocamento da subjetividade, agora vista como típica das
representações coletivas, isto é, da sociedade. A subjetividade é projetada para o campo social,
abandonando e deixando oco o sujeito individual. Ocorre, aqui, uma separação entre a individualidade
e a subjetividade. As representações coletivas seriam, assim, produções subjetivas de um sujeito sui
generis: a sociedade. Como são produções subjetivas da sociedade, vista como um sujeito, a
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objetividade das representações coletivas, enquanto tal, seria apenas relativa à consciência individual,
em particular da do cientista social, já que lhe são exteriores e percebidas enquanto objetos, isto é,
como coisas. Estamos diante de um idealismo que se transforma num realismo que desemboca,
novamente, num idealismo. Aparentemente, a sociedade tomaria consciência de si mesma através do
estudo de suas representações realizadas pelas consciências individuais. Estaríamos diante menos de
um positivismo do que de um "ideo-realismo gnoseológico" — tomamos tal fórmula de Cuvillier (s/d:
12).
Durkheim seria idealista como Descarte, já que aposta na representação? Para Descarte, a
representação é um fundamento do ser, pois seria através da representação que o ser aparece no
espírito. A essência do ser é determinada a partir do pensamento. E, quando pensamos o ser, nós o
pensamos através das representações. Assim, as coisas aparecem no espírito como reais e inscritas no
ser por causa das representações. Durkheim concorda com isso? Sim e não. Sim, porque a
representação é um critério do ser; não, porque a representação (vista como coletiva) e o ser (visto
como social), aos quais se refere Durkheim, são "qualitativamente distintos" do ser e da representação
individuais. As representações coletivas não estão inscritas no pensamento individual — justamente
pelo contrário, pois lhe são exteriores. Durkheim opera um deslocamento da representação,
inscrevendo-a no ser social e a tornando, do ponto de vista da consciência individual, uma
determinação objetiva e exterior. O subjetivismo de Durkheim é, digamos assim, social e não
propriamente ontológico, como o cartesiano. A essência do ser social é determinada pelas
representações coletivas que estão, por sua vez, fora do pensamento (pelo menos, do pensamento do
sociólogo). Novamente, voltamos ao círculo entre o idealismo e o realismo; voltamos à separação entre
a individualidade e a subjetividade.
Como, a partir da discussão acima, recolocar o positivismo de Durkheim? Num primeiro momento, a
démarche durkheimiana afirma a continuidade entre a ciência natural e a ciência social para, num
segundo momento, atestar uma descontinuidade, já que as coisas na natureza, ao contrário do que
acontece na sociedade, não são vistas como representações. Desse modo, pôde manter o diálogo com a
tradição comtiana e com a ciência natural, em particular a biologia, e afirmar, ao mesmo tempo, a
sociologia como um novo campo científico. Acreditamos que, aqui, Durkheim rompe com a visão
iluminista de que o indivíduo é a raiz do homem. Não, agora a raiz é a sociedade. Pensar a sociedade
como um sujeito sui generis é pensá-la a partir de uma descontinuidade entre a natureza e a cultura, e
seria nessa descontinuidade que se poderia encontrar um espaço epistemológico para a sociologia. Por
isso, inferimos que a diferença entre o indivíduo e a sociedade tenha, para Durkheim, também uma
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função disciplinar: "a oposição entre indivíduo e sociedade (...) deita raízes numa tática que
pretende delimitar de maneira ine quívoca o domínio da sociologia" (Ortiz, 1989: 11).
Ao mesmo tempo, seria na afirmação de uma especificidade do campo sociológico que Durkheim vai
afirmar a separação entre a sociologia e o senso comum. Se estamos certos em colocar, como uma
forma de positivismo, a defesa da separação entre a ciência e o senso comum (ideologia), Durkheim
prolonga uma tradição antiga que tem, inclusive, como ilustre membro Karl Marx. Prolonga uma
tradição que vai desembocar, na sociologia francesa contemporânea, em Bourdieu, por exemplo.
Durkheim seria, na visão corrente, taxativo: o senso comum é pré-noção, ilusão, e o trabalho do
sociólogo é, através da construção científica do objeto, produzir uma ruptura nítida entre o social
(senso comum = saber social) e o sociológico (o social construído cientificamente = ciência do social).
A sociologia perpetuaria a ruptura entre a ciência e o senso comum.
Contudo, encontramos uma defesa vigorosa da veracidade das produções ideativas do senso comum em
Durkheim. Na sua obra, há diversas alusões que confirmariam essa asserção. Tal questão é de monta,
pois tem várias implicações. Podemos resumi- las desse modo:
- a ciência não monopoliza a produção de conhecimento, nem a verdade;
- a ciência segue os mesmos princípios cognitivos do senso comum;
- resgatar o senso comum é resgatar a existência da razão prática;
- o cotidiano do indivíduo não é necessariamente uma fonte de ilusão e de alienação;
- defesa de um relativismo epistemológico.
Ora, as representações coletivas ou, no caso aqui examinado, o senso comum, não são ilusões. As
representações coletivas religiosas, por exemplo, não seriam apenas a primeira manifestação de
socialidade, mas também o começo de todo conhecimento e auto-conhecimento do ser social. As
representações coletivas são formas de conhecimento, portanto possuem um núcleo de veracidade.
Durkheim chega a afirmar que há verdades mitológicas, e que a diferença entre estas e as verdades
científicas é apenas de... controle. Assim, a verdade mitológica
"es un cuerpo de proposiciones aceptadas sin control (contrariamente a nuestras verdades científicas, siempre sometidas a verificación o a demostración)... Son las representaciones quienes crean ese carácter de objetividad de las mitologías y lo que les confiere este poder
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creador, es su carácter colectivo: es también este carácter lo que hace que ellas se impongan al espíritu" (s/d: 135).
São as representações coletivas que fazem "funcionar" a sociedade; logo, não podem ser baseadas em
ilusões, dado que assim a sociedade não se manteria coesa nem se perpetuaria. A coesão social precisa
estar fincada no real, senão explode. A realidade da coesão social e das representações coletivas possui
um vínculo necessário com o real, donde sua "correspondência" com o mundo, donde sua veracidade.
Levando adiante o raciocínio, podemos afirmar que o conhecimento científico é um produto social,
sucessor moderno da religião, e produtor de verdades, porque é também produtor de representações
coletivas, isto é, as representações científicas, enquanto representações coletivas, possuem um vínculo
necessário com o real. A verdade é, assim, impessoal. No entanto, a impessoalidade da verdade não é
incompatível com a diversidade individual. Durkheim respeita o que chama de individualismo
intelectual, característico da ciência moderna, mas afirma que a junção de pensadores individuais só
será benéfica ao conhecimento científico se as verdades parciais produzidas individualmente "vienen a
concentrarse en la conciencia común y allá encuentran a la vez sus limites y sus complementos
necesarios " (142). A ênfase na consciência comum é fundamental e... epopéica:
"la conciencia colectiva, sin pasar obligatoriamente por la filosofía, puede apoderarse de la verdades científicas y coordinarlas en un todo. Así se constituye una filosofía popular que es la obra de todos y que está hecha para todos; y no son solo las cosas físicas lo que esta filosofía popular alcanza y expresa: es también, y sobre todo, el hombre, la sociedad" (139).
Tal posição parece prefigurar Gramsci: substitua-se a ciência pela "filosofia da práxis" e teremos essa
filosofia popular, esse bom senso revolucionário...
Nesse sentido, Durkheim separaria menos a sociologia do senso comum do que deslocaria o tema da
ruptura, do ponto de vista da discussão sobre a ve rdade e a ilusão, para a separação entre as
representações coletivas e as individuais. Pelo que entendemos, para Durkheim, as fontes do erro e da
ilusão estão na consciência individual. A representação individual flutuaria ao sabor das idiossincrasias
pessoais. Não teria a capacidade de se conectar ao real, isto é, por ser individual, não conseguiria ter
uma relação necessária com a realidade social. Seria completamente subjetiva, pois interior à
consciência individual. Não teria fixidez e exterioridade, não conseguindo cristalizar-se no tempo e no
espaço sociais. A partir do momento em que uma representação individual transforma-se numa coletiva
(se é que isso é possível em Durkheim), torna -se verdadeira. A verdade, assim, é social; a sociedade é
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que seria, no fundo, a produtora de verdades. Estaríamos diante de uma versão sociológica do velho
mote filosófico: a verdade está no todo.
Tais posições, embora separem a individualidade da subjetividade, transformando a dualidade entre o
indivíduo e a sociedade num dualismo, são passos essenciais para a postulação de uma fenomenologia
do cotidiano. Contrapondo-se às teorizações que identificam cotidiano com alienação, o ponto de
partida fenomenológico envolve a recuperação cognitiva do senso comum, levando a diversas
conseqüências, inclusive a re-valorização dos resultados da atuação cognoscitiva de uma razão prática.
Não causa surpresa que a discussão moderna, sobre as produções ideativas do cotidiano ou do senso
comum, resgate Durkheim via representações coletivas, agora entendidas como "representações
sociais" (Moscovici, 1978). O que significa isso do ponto de vista de uma sociologia do conhecimento?
O fato da verdade e da veracidade não serem monopólio da ciência revela outros tipos de racionalidade
e outras formas de produção de conhecimento. Uma epistemologia apenas calcada na ciência não dará
conta de uma crítica de uma razão prática, desmerecendo a importância de uma epistemologia do senso
comum. Por isso que, geralmente, na sua revalorização cognoscitiva, o pano de fundo é a afirmação de
um relativismo epistemológico, cuja utilidade pode, dependendo dos objetivos almejados, ser a quebra
do monopólio cognoscitivo de uma epistemologia centrada na ciência.
Consequentemente, uma teoria das representações coletivas teria uma afinidade com um relativismo
epistemológico. Porém, caso tal hipótese tenha alguma pertinência, seria inevitável aparecer uma
questão correlata: Durkheim defendeu uma posição relativista da verdade?
3. O relativismo de Durkheim
Um dos momentos, em que as posições epistemológicas de Durkheim sobre a verdade são mais
nuançadas, seria quando da sua discussão sobre o pragmatismo. Por exemplo: diante do fato de o
pragmatismo considerar que "el pensamiento tiene por objeto no reproducir um dato sino construir
una realidade futura " (Durkheim, s/d:108), ele aproveita e critica o racionalismo clássico, no qual a
verdade
"ha sido concebida como una cosa simple, casi divina, que extraería de ella sola todo su valor. Esta verdad, concebida como bastándose a si misma, está por lo tanto situada por encima de la vida humana" (108).
Assim, concorda com o pragmatismo quando este enfraquece o conceito de verdade do racionalismo
clássico, retirando seu caráter absoluto e sagrado (109). Defende, assim, um conceito relativo de
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verdade em que sua relatividade é dada pelo próprio fato de ser estudada pela ciência: a verdade pode e
deve ser analisada pela ciência, mas para isso, isto é, para ser transformada em objeto científico, é
necessário que seja "desconstruída" como qualquer outro objeto científico; em suma, "aflojar la
verdad es hacer de ella algo analizable y explicable" (109).
E da relatividade da verdade, Durkheim passa surpreendentemente (para aqueles que sempre julgaram
Durkheim incompatível com noções históricas) para sua historicidade. Numa passagem rara, afirma:
"El hombre es un producto de la historia, por consiguiente de un devenir; no hay nada en él dado ni definido de antemano. La historia no empieza en ninguna parte; no termina en ninguna parte. Todo lo que está en el hombre ha sido hecho por la humanidad en el curso de los tiempos. Por consiguiente, si la verdad es humana, también ella es un producto humano. La sociología aplica la misma concepción a la razón. Todo lo que constituye la razón, sus principios, sus categorías, todo eso se ha hecho en el curso de la historia " (109).
A verdade como produto histórico, eis uma visão que temos dificuldade em perceber nas Regras...
Contudo, o relativismo de Durkheim é moderado: a verdade é um produto histórico, mas não se esgota
no contexto histórico em que se formou, simplesmente porque a verdade não pode ser reduzida à
utilidade ou à ação. Fazer isso seria nivelar tudo, como o faz o pragmatismo. Seria tornar iguais todos
os tipos de conhecimento, todos os tipos de verdade, impedindo a proliferação de diferentes olhares
sobre o mundo. O mundo varia, mas as verdades nem tanto, nem tampouco. Como Durkheim
diferencia o conhecimento sociológico do conhecimento mítico e do senso comum, não pode deixar de
criticar essa visão horizontalista do pragmatismo. Ou ainda: como Durkheim afirma que há uma
dualidade entre a experiência individual e a coletiva (110), ao contrário do pragmatismo que reduz tudo
ao individual, e como a verdade é um produto histórico e social, poderá argumentar, embora de uma
maneira um tanto "moralista", que
"lo que es social posee siempre una dignidad más alta que lo que es individual. Se puede presumir que la verdad, como la razón, como la moralidad, guardará siempre ese carácter de valor más elevado, lo que no impide de ningún modo tratar de explicarlo. El punto de vista sociológico presenta esta ventaja que permite aplicar el análisis aun a esta cosa augusta que es la verdad" (110).
Sendo a verdade um produto histórico, Durkheim concorda, nesse sentido, com a palavra-de-ordem do
pragmatismo de submergi- la na vida e na experiência; contudo, enquanto no pragmatismo a submersão
leva a um inquietante relativismo, em Durkheim, a submersão é apenas um contraponto a uma noção
metafísica de verdade absoluta. A verdade, repetimos, é também um produto social; logo, da vida e da
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experiência. Mas isso não impede que, para Durkheim, o fato seja dado na experiência do indivíduo,
por mais complexa que esta seja; ora, pelo que entendemos, o fato é construído no pragmatismo, e
Durkheim não pode tolerar um construtivismo absoluto. A verdade pode ser relativa, mas até certo
ponto. O fato de não existir uma verdade absoluta, não significa que não existiria verdade alguma. Ao
negar de forma absoluta o absoluto, o Pragmatismo trouxe-o a tiracolo, como negação: ou existe
verdade absoluta ou não existe verdade... Ironicamente, tal relativismo funda-se na crença metafísica
do absoluto. Seria preciso preservar um conceito mínimo de verdade para criticá- lo sem cair em
aporias. O pragmatismo nega-o retoricamente, deixando-o como um a priori implícito. O pragmatismo
— principalmente o contemporâneo, do tipo o de Rorty (1990) — parece comportar-se como órfão do
absoluto.
Assim, sendo uma mera utilidade, a verdade perde sua objetividade no mundo plural e variável das
coisas úteis. O Pragmatismo leva o politeísmo de valores, que assombrava Weber, para o campo
epistemológico. Como há uma profusão de abordagens e nenhuma delas diz a última palavra sobre o
assunto, visto que a vida é plurisignificante, logo, não precisamos produzir uma hierarquia, quer dizer,
posicionarmo-nos criticamente em relação à realidade, dizendo qual é o(s) método(s) e a(s)
abordagem(s) mais complexa ou mais completa ou mais interessante. No fundo, "tudo é bom". E, se o
Pragmatismo defende um "politeísmo epistemológico", tudo pode ser colocado no mesmo plano, numa
mesma enjoada linha horizontal. Assim, Durkheim argumenta que um conceito de verdade identificado
ao de utilidade é tudo menos um conceito de... verdade! Por isso, vai chamar o Pragmatismo de
utilitarismo lógico — um utilitarismo que entende a verdade como uma convenção.
A verdade não pode ser, desse modo, reduzida a um instrumento da ação. Fazer isso seria perder de
vista o caráter especulativo da razão. Kantianamente, Durkheim sabe que a razão não pode ser reduzida
ao sensível e à experiência. A verdade não tem funções apenas práticas. Mas sua resposta não se esgota
numa solução metafísica, buscando-a no próprio mundo humano:
"la humanidad ha vivido de verdades no prácticas, de creencias que eran cosa muy diferente a 'instrumentos de acción' (...). Durante mucho tiempo la mitología ha expresado la vida intelectual de las sociedades humanas. Si los hombres han encontrado allí un interés especulativo, es porque es necesidad correspondía a una realidad" (122).
E suprir uma necessidade não implica necessariamente, para Durkheim, uma solução utilitária. As
necessidades humanas estariam bem além do mero jogo nivelador da utilidade.
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A identificação, produzida pelo Pragmatismo, entre o conceito de verdade e o de utilidade, elimina a
utilidade da noção de representação. Sem esta, para Durkheim, não existe a noção de verdade. A
epistemologia defendida pelo sociólogo francês exige um distanciamento entre o sujeito e o objeto,
mediado pelo espelho da representação, que torna impossível sua imbricação. Com a representação,
obtém-se uma mínima transcendência especulativa do pensamento. "Mínima", pois, ao concordar que a
verdade não é uma mera cópia do real, Durkheim defenderá um "racionalismo com face humana".
Contudo, como bom positivista, isso não o impede de excluir o inobservável da ciência social, já que
considera o estudo científico uma análise das relações entre fenômenos observáveis. Tal posição
valoriza necessariamente a empiria. A "mínima transcendência" leva-o, porém, a discordar do hiper-
empirismo do pragmatismo, pois não concorda com "a unidade absoluta dos planos de existência "
(p.65). No Pragmatismo, a experiência não se distingue da realidade; não há dualidade entre o espírito e
as coisas; em suma, não há pensamento especulativo, mesmo naquele que respeita a existência empírica
do mundo. A transcendência é trocada totalmente por um construtivismo. Durkheim, mais cauteloso,
modera o construtivismo de sua sociologia, discordando da total subsunção do pensamento na ação.
Concorda até com a afirmação de que o pensamento constrói o real — na verdade, ele diria que são as
representações coletivas as construtoras da realidade —, mas nega que o valor lógico da construção
seja identificado ao próprio processo social de construção. Estaria mais simpático a uma "construção da
realidade social" do que a uma "construção social da realidade"? Acreditamos que não, pois seria
preciso, para isso, uma reformulação (do idealismo) de sua teoria das representações coletivas.
O Pragmatismo, desse modo, é um construtivismo sem representação e, por isso, vai negar ou,
simplesmente, prescindir do fenômeno da consciência — sem representação, elide-se a consciência e se
afirma um beha viorismo. Criticando essa posição, Durkheim vai resgatar o papel da consciência, ao
afirmar que "su papel es constituir un ser que no existiría sin ella" (131) — seu papel é produzir
seres. Claro, podemos compreender tal resgate da consciência num pensador que tem a representação
como um fundamento para sua teoria social. A consciência constitui o ser — e ela, tudo indica, só pode
ser coletiva, e ele, social —, já que se supõe a existência real de representações coletivas, cujos "efeitos
de realidade" estariam subjacentes à ação social e cristalizados nas simbolizações da sociedade. Sendo
uma forma de conhecimento, sua existência real implica, consequentemente, a projeção de uma
racionalidade no mundo social.. Ora, aqui, Durkheim esboça uma teoria do sujeito. Pois, diante da
postulação de uma consciência e de representações coletivas que fundam uma ontologia do ser (social),
como escapar dessa lógica? Se não escapa, há algum espaço, na sua teoria, para uma teoria do sujeito
individual — para uma diminuição da distância entre a individualidade e a subjetividade? Como, se
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estamos falando de consciência e de representação coletivas? Intuímos que tais questionamentos podem
ter alguma clareza, analisando-se a obra tardia de Durkheim: As formas elementares da vida religiosa
(FEVR).
4. O problema das Formas...
Última grande obra, tal escrito possui um componente antropológico inovador e, a nosso ver, coloca em
xeque a doutrina metodológica defendida nas Regras...; mais ainda: possui embutida uma visão que
postula uma "in teração" entre individualidade e subjetividade. Acreditamos que tais visões já estavam
implícitas em algumas passagens de obras anteriores de Durkheim. Quando se afirma que o sujeito sui
generis, a sociedade, é "formado por uma pluralidade de sujeitos associados de maneira a formar
um grupo" (Durkheim,1970: 67), mesmo que a noção de associação em Durkheim seja problemática,
fica-nos a impressão de que "sociedade" é uma noção, muitas vezes, utilizada de forma estenográfica.
A impressão é contraditória, porque há várias passagens onde a personificação da sociedade é
praticamente explícita, inclusive nas FEVR; contudo, podemos oferecer vários exemplos contrários:
- "As representações coletivas são o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas também no tempo; para a sua produção, uma profusão de espíritos diversos associaram-se, misturam-se, combinaram suas idéias e seus sentimentos; uma longa série de gerações acumularam suas experiências e seus saberes (Durkheim, 1994: 22-23 – sublinhado nosso);
- "a sociedade não existe e não vive a não ser por seus indivíduos " (496);
- "a sociedade não pode passar sem os indivíduos, assim como os indivíduos sem a
sociedade" (496);
- as representações coletivas são "uma síntese sui generis das consciências particulares"(605).
Ora, estamos diante de um verdadeiro esboço de uma teoria da interação social. Tais afirmações levam-
nos a inferir que a sociedade resulta de um efeito complexo de criação, de seleção, de disseminação e
de transmissão de uma "profusão de espíritos". A sociedade seria, assim, um efeito "emergente" das
ações e da "imensa cooperação" entre os indivíduos. Aparentemente, estaria resgatada a dualidade entre
o indivíduo e a sociedade sem que ocorra a separação entre a individualidade e a subjetividade, sem
que a dualidade seja transformada num dualismo. Estaríamos diante de uma idéia de humanidade
concebida como intersubjetividade.
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Nesse sentido, Durkheim não seguirá completamente seus ditirambos holistas. Suas posições sobre os
ritos religiosos seriam menos positivista do que "interacionista":
"os ritos são maneiras de agir que surgem apenas a partir dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar, a entreter ou a refazer certos estados mentais desses mesmos grupos" (1994: 13).
Ora, nessa visão, os ritos e, conseqüentemente, o simbolismo religioso seria a base de interações e
comunicações entre os membros dos grupos. O rito é uma mediação simbólica que fundamenta as
interações sociais. Outro exemplo seria sua teoria da magia. Além de romper com a visão de Lévy-
Bruhl de que a magia representa o produto de uma "mentalidade primitiva", sua explicação da magia
possui uma base cognitiva — seguimos, aqui, a análise de Boudon (1998: 93-137). Ao criticar Lévy-
Bruhl, Durkheim critica também um tipo de holismo que percebe a cultura como uma determinação que
formata a mentalidade dos indivíduos, tornando-a singular e irredutível às outras culturas e
mentalidades. O primitivo acredita na magia, segundo Lévy-Bruhl, por causa de uma mentalidade
primitiva q ue possui uma lógica diferente da do homem ocidental. Durkheim defende que o cérebro dos
primitivos é igual ao dos modernos, e que sua "mentalidade" diferencia-se somente do ponto de vista
dos seus conteúdos ideativos e não por uma diferença essencial qualquer.
Por que os primitivos acreditam na magia? A "mentalidade primitiva" é uma explicação arbitrária do
tipo camera obscura? São irracionais? Acreditam porque estão iludidos por alguma estrutura
inconsciente? A resposta de Durkheim é simples e coerente: os primitivos possuem boas razões para
acreditar na magia; além do mais, não têm uma teoria causal complexa como a nossa, um saber formal
e estatístico, nem uma teoria física do mundo (1998: 112). A explicação durkheimiana, assim, seria
cognitiva! Os primitivos acreditam na magia porque suas inferências causais não contradizem — pelo
menos de forma fundamental, pois sempre é possível, como na própria ciência, o recurso a explicações
ad hoc — o que acontece nos rituais mágicos. Desse ponto de vista, os ritua is mágicos possuem, para
os primitivos, uma eficácia causal. O primitivo, ao contrário do que pensou Lévy-Bruhl, sabe
manipular convenientemente as "leis" da lógica. Eles têm também uma "teoria" do mundo, por isso
acreditam na magia. Ou ainda: o primitivo é um ser racional que sabe escolher, mesmo por dentro de
um leque delimitado de escolhas.
Assim, Durkheim, ao oferecer uma explicação cognitiva a um problema de sociologia, trai suas
doutrinas metodológicas. Mas ele já tinha traído, e muito, as Regras..., quando escreveu "O suicídio"!
Durkheim menosprezou sempre os aportes teóricos que defendiam a construção de perfis psicológicos
convencionais para o entendimento da ação social (Weber e Simmel, por exemplo). Ora, Durkheim, ao
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construir categorias como as de "altruísta", "egoísta" e "anômico", não se está valendo de uma
psicologia convencional, não está construindo perfis psicológicos? Não estaria retomando a conexão
entre individualidade e subjetividade? Existiria, nesse sentido, uma tensão entre um Durkheim holista e
um outro "interacionista"? Não acreditamos que se chegue a tal ponto. Queremos apenas sublinhar a
existência de uma tensão, já que o "interacionismo" assinalado deve ser compreendido a partir das
contradições existentes na posição holista de Durkheim. Tais contradições, aliás, podem ser ainda
melhor visualizadas nas discussões durkheimianas sobre a moral.
5. A Moral em Durkheim
Há um veto antigo na filosofia moderna: não se pode derivar o dever-ser do ser. Geralmente, tal
derivação acontece a partir de considerações sobre a dita natureza humana. Mas esse veto trouxe a
seguinte situação paradoxal: se o dever-ser não pode ser derivado do ser, ele vai ser derivado do quê?
Não seria por isso que, pelo menos na época de Durkheim, a moral era uma completa metafísica, já que
o campo da ética era totalmente autônomo? Sem o ser, o dever-ser não iria flutuar ao sabor de ondas
misteriosas? De onde surgem nossas intuições morais? Aparentemente, havia dois caminhos para
resolver tais problemas: o primeiro seria sociobiológico; o segundo, pela construção sociológica de
uma ciência da moral. Durkheim, é claro, escolheu a segunda opção, sem desprezar, contudo,
totalmente a primeira. De todo modo, acreditamos que Durkheim tenha tido alguma intuição de que, de
alguma forma, a moral precisa basear-se numa apreciação da natureza humana. O respeito que tinha
pela biologia, até seu uso muitas vezes indiscriminado, leva-nos a crer que a moral, para Durkheim,
poderia ser inferida a partir de alguns fatos sobre a natureza humana.
Julgamos que um dos méritos de Durkheim foi o de perceber que a moral seria indissociável ao campo
cognitivo. Ela estaria imersa, digamos assim, num inconsciente cognitivo. Seria uma formatação básica
irredutível à tomada de consciência individual, embora relacionada, na modernidade, ao processo
histórico de individuação do ser humano. Certo, a consciência vai-se tornando cada vez mais
consciência moral — através da divisão do trabalho social, segundo Durkheim —, implicando a
percepção, ilusória ou não, de um fórum íntimo, isto é, de uma unidade interior distinta do mundo
social — apesar da crescente individuação, a moral continuaria "pública", jamais existindo de forma
"privada", porque seria construída socialmente.
Uma grande realização teórica de Durkheim foi de pensar que a objetivação social está sujeita à sua
cristalização em símbolos. Feliz ou infelizmente, tal inferência levou-o a caminhos, digamos assim,
"kantianos". Pode-se pensar que tal deriva foi produzida pelas ausências de uma Lingüística e de uma
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Psicologia mais desenvolvidas na época de Durkheim. Sem uma psicologia do inconsciente, Durkheim
não pôde imaginar a cristalização da objetivação social do ponto de vista de mecanismos que
prescindissem de um modelo baseado num sujeito sui generis, como o é seu modelo de sociedade. Sem
poder relacionar a cristalização simbólica à linguagem, não pôde apelar para o "cimento" da língua,
ficando à mercê da precariedade dos atos de fala. Por isso, no caso da moral, Durkheim não conseguiu
escapar da armadilha de transformar a dualidade entre o indivíduo e a sociedade num dualismo. Como
lhe foi quase impossível inscrever a moral — leia-se representações coletivas — nas práticas sociais, já
que lhe faltava uma teoria da linguagem adequada, a sociedade virou um sujeito sui generis, possuindo
inclusive a incrível capacidade de reflexão. A sociedade, portanto, transformou-se numa pessoa moral.
Durkheim, inclusive, percebeu de alguma maneira a contradição de personificar a sociedade:
"notar-se-á a analogia que existe entre este raciocínio e aquele pelo qual Kant demonstra Deus. Kant admite Deus porque sem essa hipótese a moral seria ininteligível. Nós admitimos como postulado que a sociedade seja especificamente distinta dos indivíduos, porque de outra forma a moral seria sem objeto e o dever não teria em que ser aplicado" (Durkheim, 1970: 68).
Entre Deus e a Sociedade, Durkheim escolheu a segunda opção, escolha que o deixou, segundo o
mesmo, um tanto indiferente, visto que sempre achou as duas opções coerentes. Ora, a divindade nada
mais é do que a "sociedade transfigurada e simbolicamente imaginada " (68).
Contudo, com Deus ou com a sociedade, o resultado da escolha seria o mesmo: a moral continuaria
sem objeto e o dever sem ser aplicado, pois como resolver isso sem uma teoria que inscreva as
representações coletivas nas práticas sociais? A sociedade é a Idéia Transcendental de Durkheim: a
forma moral e a forma da realidade constituídas em totalidade absoluta. Assim, como o Deus da
metafísica clássica, a sociedade sobrevoa as práticas concretas dos indivíduos. Por isso, a noção de
totalidade em Durkheim está recheada de fetichismo e de... perspectiva divina. Nesse sentido, não pôde
fugir do velho racionalismo, pois "divinizar" a sociedade tem como fundamento epistemológico
atribuir racionalidade a todas as coisas — em suma, Durkheim não escapou completamente do
racionalismo puro.
O fato de afirmar a sociedade como uma potência moral (Durkheim, 1970: 39) não eliminou a
percepção de que, se
"as representações coletivas são exteriores com relação às consciências individuais, é porque não derivam dos indivíduos
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considerados isoladamente, mas de sua cooperação, o que é bastante diferente " (39).
Novamente, vemos aquela ênfase na cooperação, embora isso não impeça de Durkheim de afirmar ao
mesmo tempo uma visão substanciada de sociedade. O agregado social, por exemplo, "é este que
pensa, que sente, que quer, ainda que não possa querer, sentir ou agir senão por intermédio de
consciências particulares" (39). A sociedade, quando vista como resultado da associação e da
interação entre indivíduos, seria uma noção estenográfica; quando vista como uma "pessoa moral",
seria uma substanciação ou personificação. Durkheim, a nosso ver, não escapa desse movimento
pendular, embora o pêndulo, fazendo as contas, tenha um movimento mais direcionado a uma visão
pela qual a sociedade é vista como um sujeito sui generis.
Mas o pêndulo continua seu movimento. No estudo da moral, Durkheim mostra a importância da
dualidade entre a alma e a singularidade da personalidade individual — a alma vive e está no mundo
(1970: 41). Nesse momento, Durkheim está retomando, somente que através de outras noções, a
dualidade entre o indivíduo e a sociedade. Boa parte do movimento do pêndulo é ocasionada por sua
aguda consciência do paradoxo da identidade: como articular em nós, a partir de nossa individualidade,
cujo leitmotiv é nos singularizar separando-nos dos outros, todo o aparato de pertença social que nos
solidariza e nos integra num grupo, numa comunidade? Durkheim parece intuir que nossa identidade
afirma-se como um produto enigmático de duas dinâmicas potencialmente antagônicas no mundo
moderno, em virtude das quais cada um de nós pode dizer "eu" sem que não pense ou não se sinta
também como "nós". Cada sociedade ou cultura vai atenuar ou exacerbar o conflito ou a
complementaridade dessas duas dinâmicas, o que vai gerar, em Durkheim, uma reflexão sobre o
antagonismo e/ou as conexões entre a solidariedade mecânica e a orgânica.
Porém, Durkheim não resolve de forma satisfatória o paradoxo da identidade, principalmente quando
substancia a sociedade e a coloca como exterior à individualidade. Na oscilação entre o "nós" e o "eu",
o holismo durkheimiano pende a balança para o primeiro. Mas, se a identidade é regida por duas
dinâmicas, uma delas relacionada ao processo de formação da individualidade, isto é, à capacidade
humana de se singularizar, como o indivíduo pode ser um agente ativo? Aparentemente, em Durkheim,
o indivíduo não teria o atributo da agência. Contudo, nas obras dedicadas à educação, Durkheim parece
defender que seria através do aprendizado social e da internalização das normas que o indivíduo estaria
capacitado a agir. Parece que o raciocínio admite, ao mesmo tempo, a exterioridade do fato social e a
internalização das normas, ou seja, a sociedade é transcendente ao indivíduo, mas também imanente.
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Ultrapassa-nos e nos é interior. Vive em nós e para nós. Ela é nós (1970: 71). O indivíduo, inclusive,
devido provavelmente à sua capacidade de ação, pode escolher a sociedade de seu gosto:
"a única questão a ser proposta para o homem não consiste em saber se ele poderia viver fora de uma sociedade, mas em que sociedade ele gostaria de viver; reconheço, aliás, de muito bom grado, a todo indivíduo, o dire ito de adotar a sociedade de sua escolha, (...) a sociedade, ao mesmo tempo em que constitui uma finalidade que de nós extravasa, pode nos parecer boa e desejável, uma vez que ela se incorpora em todas as fibras do nosso ser" (72).
Ora, para supor o direito do indivíduo em poder escolher a sociedade de sua escolha, seria necessária a
premissa de que o mesmo tenha uma mínima capacidade de ação, logo de escolha. Para Durkheim, tal
inferência não é contraditória com a afirmação de que a sociedade formata-nos, enquadra-nos e nos
constrange. A sociedade
"nos ordena porque é exterior e superior a nós; a distância moral que nos separa faz dela uma autoridade, diante da qual nossa vontade se submete";
contudo, como a sociedade
"nos é interior, como ela está em nós, como ela é o que somos, nós a amamos, a desejamos, ainda que com um desejo sui generis pois que, independente do que façamos, ela é nossa senão em parte e nos domina de forma infinita" (73).
Sinceramente, tais frases são a demonstração do movimento pe ndular de Durkheim na questão da
dualidade entre o indivíduo e a sociedade: se nós somos a sociedade, temos uma capacidade de ação; se
ela nos domina de forma infinita, nossa capacidade de sermos sujeitos de nossa ação é bastante restrita.
Aparentemente, a sociedade domina-nos de forma infinita porque nossa individualidade só pode ser
explicitada como subjetividade social — mas, posto dessa forma, isso resolve a contradição entre a
ação individual e a dominação infinita do social? Parece que não, embora Durkheim abra a
possibilidade de que,
"ainda que haja uma moral de grupo, comum a todos os homens que o compõem, cada homem tem sua moral própria: até mesmo onde o conformismo seja o mais completo, cada indivíduo cria em parte a sua moral" (95 — sublinhado nosso).
Pelo que entendemos, Durkheim não nega a relativa independência das representações individuais e das
consciências particulares em relação ao determinismo coercitivo da sociedade, o que parece contradizer
suas opiniões usuais sobre a relação entre individualidade e coerção social. A contradição parece maior
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quando se volta ao tema da identidade, pois Durkheim possui a intuição de que o indivíduo não pode
ser apenas um epifenômeno dos determinismos sociais, justamente por causa da dualidade entre o
indivíduo e a sociedade e do paradoxo identitário:
"(...) o homem é duplo. Nele, há dois seres: um ser individual que possui sua base no organismo, cujo campo de ação encontra-se, por isso mesmo, bastante restrito; e um ser social que representa em nós a mais alta realidade (...). Tal dualidade de nossa natureza tem como conseqüência, na ordem prática, a irredutibilidade do ideal moral ao utilitarismo, e, na ordem do pensamento, a irredutibilidade da razão à experiência individual" (Durkheim, 1994: 23).
Ou ainda:
"as representações, cuja trama constitui nossa vida interior, são de duas espécies diferentes e irredutíveis uma a outra. Umas relacionam-se ao mundo exterior e material; outras, a um mundo ideal pelo qual nós atribuímos uma superioridade moral sobre o primeiro. Nós somos, assim, realmente formados de dois seres que são orientados para sentidos divergentes e quase contrários " (377).
Seria essa a concepção de alma de Durkheim. Uma concepção que se nutre do paradoxo da identidade
assinalado acima. Tal visão propõe que, na formação da identidade (ou da alma), a relação com o outro
(seja a sociedade, sejam as interações entre os indivíduos) é fundamental, expressando inclusive a idéia
de que os indivíduos possuem uma racionalidade prática, mesmo que a razão prática seja determinada,
no fundo, por um sujeito transcendental, a sociedade. A identidade individual seria, assim, a forma
particular e idiossincrática de como é vivenciada e expressada a moralidade do mundo social. Contudo,
a percepção, sempre opaca em Durkheim, de um indivíduo completamente socializado não o estimulou
a sair de uma dicotomia entre o indivíduo e a sociedade. Ora, se o fundamento ontológico do humano
está no social, o que resta para o indivíduo? Se o social é exterior ao individual, qual a condição de
existência do indivíduo? Se levarmos as posições de Durkheim a um reductio lógico, principalmente
quando substancia completamente a sociedade, poderemos inferir que a individualidade, enquanto tal, é
associal e anistórica — na verdade, parece ser independente do social. Ela, a individualidade, só pode
se afirmar e se comunicar com uma outra através do médium supremo: a sociedade. É preciso a
mediação, pois
"as consciências individuais são, com efeito, por si mesmas fechadas umas às outras: só se podem comunicar por meio de sinais em que se traduzam seus estados interiores. Para que o comércio que se estabelece entre elas possa terminar numa comunhão, isto é, numa fusão de todos os sentimentos particulares num sentimento comum, é
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preciso, pois, que os sinais que os manifestam cheguem a fundir-se numa só e única resultante. É a aparição dessa resultante que adverte os indivíduos que estão em uníssono, que os faz tomar consciência de sua unidade moral" (Durkheim, 1994: 329).
Ora, essa afirmação magistral parece ser uma versão sociológica da monadologia de Leibniz!
Durkheim, na verdade, parece considerar o indivíduo como uma mônada e tenta resolver o mistério de
como essas mônadas interagem e vivem em sociedade através de um sociologismo. Podemos perceber
indiretamente essa visão do indivíduo, enquanto mônada, em algumas afirmações famosas das
Regras... :
"a dureza do bronze não figura nem no cobre, nem no estanho, nem no chumbo que serviram para formá-lo e que são corpos maleáveis ou flexíveis; figura na mistura por eles formada. A fluidez da água, suas propriedades alimentares ou outras, não existem nos dois gases que o compõe, mas na substância complexa que formam ao se associarem" (1950: xxv).
Durkheim propõe a aplicação desse raciocínio (propriedades "emergentes") para a sociologia. Se
levarmos adiante tal analogia, teremos o seguinte resultado: se os indivíduos podem ser comparados ao
cobre, ao estanho e ao chumbo, serão vistos como entidades separadas umas das outras como são
aquelas substâncias químicas; assim, os indivíduos unir-se-iam ex nihilo, formando uma nova entidade
chamada "sociedade". Ora, a analogia possui um problema grave, pois os indivíduos não podem ser
vistos de forma isolada e independente (inclusive, Durkheim alerta-nos sobre esse erro várias vezes) do
social. A analogia leva-nos a pressupor uma concepção de pessoa "que estaria num estado de
natureza, não marcada pelas relações com outras pessoas e pelos processos reais de reprodução
social" (Giddens: 1984, 229). Em suma, estaríamos diante de um indivíduo-mônada. A subjetividade,
no fundo, está inscrita apenas no social, enquanto a individualidade, na independência do indivíduo-
mônada. Durkheim, quando substancia a sociedade, separa assim a subjetividade da individualidade,
repetindo um velho vício da metafísica moderna.
Um vício que, inclusive, pode ser percebido na sua discussão sobre a divisão do trabalho.
6. A base social da moral
Pensamos que Durkheim, ao relacionar a moral à divisão social do trabalho, deu passos funda mentais
para a construção de uma "ciência da moral". Sua abordagem é, a nosso ver, de uma extrema
originalidade. Sua atenção está voltada ao problema da coesão social de uma sociedade burguesa
consumista preocupada com o trabalho, movida por uma racionalidade instrumental e abalada por
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conflitos trabalhistas. Ora, a coesão social, para Durkheim, enraíza-se na moral que seria, digamos
assim, o "cimento" da sociedade. Assim, abordou a divisão do trabalho do ponto de vista da moral, isto
é, a partir da noção de solidariedade. Analisando a divisão do trabalho desse modo, Durkheim
examinou a expressão jurídica da solidariedade: o Direito Penal. Partindo das formas de solidariedade,
constituirá, bem dentro do espírito da época, uma morfologia do social.
Durkheim é claro: quer fundar uma "ciência da moral". Postula, assim, que a moral pode ser apreendida
de forma empírica, criticando os moralistas e a pretensão de uma metafísica da moral. Retira a moral
do limbo e a torna um produto social; logo, podendo ser, preferencialmente, apreendida pela sociologia.
O caminho para tal apreensão é original: Durkheim analisará a divisão do trabalho enquanto
solidariedade, isto é, a partir da moral e da coesão social. As formas de solidariedade enquadram a
divisão social do trabalho. Nesse sentido, distingue-se dos diversos pensadores que abordaram a
divisão do trabalho tendo como referência a economia. Inclusive, Durkheim possui uma profunda
desconfiança dessa disciplina, já que esta possui como ponto de partida de análise o indivíduo racional.
O ponto de partida, para Durkheim, no intuito de compreender os fatos sociais, é a própria sociedade,
sendo esta o meio e o fim da sociologia. Um fato social precisa ser percebido enquanto fato social —
ditado que será sempiterno na sua doutrina. Assim, Durkheim pretende, com o estudo da divisão do
trabalho, perceber a "base social" da moral — não seria propriamente uma "base material", como
querem alguns, e sim uma base organizativa (funcional) e simbólica (representacional); em suma,
social no sentido durkheimiano.
Durkheim defende que a função da divisão do trabalho é determinada por uma questão moral: a
solidariedade, noção fundamental para entender como se mantém coesa uma sociedade. E, para
entendê- la enquanto fundamento moral da coesão social, Durkheim vai estudar a solidariedade
empiricamente, isto é, através de sua expressão jurídica: o direito penal, o crime e a pena. Descobre,
assim, que há duas solidariedades, cada uma expressando um direito diferente: o direito repressivo
estaria preferencialmente relacionado à solidariedade mecânica, baseada na semelhança, e o direito
restituitório à solidariedade orgânica, baseada na diferença. Do direito repressivo ao restituitório, da
solidariedade mecânica à orgânica (cooperação e complementaridade), haveria um salto evolutivo na
divisão do trabalho: aumento da complexidade social ("densidade" e "volume"), multiplicação das
funções e dos "papéis sociais", especialização crescente do trabalho, surgimento das profissões e,
principalmente, a individuação do sujeito: a solidariedade orgânica seria acompanhada — para utilizar
uma outra linguagem — do surgimento progressivo de uma nova subjetividade, calcada no
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individualismo. Tal inferência permite a Durkheim defender que o individualismo moderno é um
produto social e não da volição dos indivíduos.
A solidariedade mecânica envolve uma situação social na qual não existe individualidade enquanto tal.
A divisão do trabalho é primitiva. Os indivíduos estão subsumidos na "consciência coletiva", esse
conjunto de crenças, sentimentos e costumes comuns a todos os membros do grupo. Durkheim vai mais
longe na análise e, inclusive, com muito preconceito: na solidariedade mecânica não há distinção
pessoal, isto é, seria por isso que o homem ocidental não consegue distinguir um índio de um outro, um
negro de um outro, um aborígine australiano de um outro, já que não há distinção pessoal entre os
membros de sociedades fundadas na solidariedade mecânica. A semelhança na solidariedade determina
a semelhança física entre os indivíduos. Praticamente não haveria, na verdade, dualidade entre
indivíduo e sociedade nas sociedades regidas pela solidariedade mecânica, pois o indivíduo estaria
totalmente subsumido na consciência coletiva.
As formas de solidariedade implicam formas de socialidade. Contudo, Durkheim nunca conseguiu —
pelo menos seria a nossa opinião — explicar os mecanismos concretos que fundamentam a socialidade.
Nas Regras..., Durkheim explica que a socialidade é dada pela associação (1950: 86-87; 102-103). A
solução é um tanto insuficiente, pois o termo está conectado ao velho abuso de Durkheim em produzir
analogias com a biologia ou a química. A explicação da formação de associações entre os indivíduos
passa por uma metáfora da síntese química. Fiat Chimia!, e surge a associação entre os indivíduos. Mas
sobra uma questão fundamental: como passar de uma associação entre indivíduos para uma associação
de grupos? Afinal, há uma separação formal entre os fatos individuais e os sociais? De química em
química chegamos ao grupo social? Como nasce uma sociedade, baseada na solidariedade mecânica, na
qual não há diferenças entre os indivíduos?
A resposta de Durkheim é um tanto mecânica, pois se baseia num princípio do senso comum, inclusive
incorporado pela biologia e pela química, segundo o qual ações e sentimentos contrários repelem-se,
enquanto ações e sentimentos semelhantes atraem-se:
"todo o mundo sabe, com efeito, que há uma coesão social cuja causa encontra-se em uma certa conformidade de todas as consciências particulares a um tipo comum que não é outro senão o tipo psíquico da sociedade. Em tais condições, não somente todos os membros do grupo são individualmente atraídos uns aos outros já que se parecem, mas são também ligados ao que constitui a condição de existência desse tipo coletivo, isto é, a sociedade formada por sua reunião" (1998: 73).
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Talvez, Durkheim utilize essa explicação mecânica por ser a mais simples, isto é, por ser
aparentemente a forma evolutiva mais simples imaginada de associação entre indivíduos.
De todo modo, a explicação de Durkheim não é antropológica, nem histórica; parecendo ser tipológica
e classificatória. Como o social só pode ser explicado por ele mesmo, Durkheim fica no impasse de
explicar a evolução das formas de associação do ponto de vista de uma classificação, isto é, de forma
apriorística. Tal argumento atina-se com a proposta classificatória de Durkheim (1950) de, a partir da
junção de hordas, construir segmentos ou grupos sociais que vai do mais simples ao mais complexo por
justaposição: da horda, passando pelas sociedades polisegmentares simples, até às sociedades
polisegmentares duplamente complexas. Por isso, talvez, tal mania classificatória tenha levado
Durkheim a afirmar que "todas as sociedades nascem de outras sociedade s sem solução de
continuidade" (1950: 104). De uma classificação a outra, Durkheim vai recorrer a explicações
mecânicas, principalmente para tentar entender a passagem da solidariedade mecânica à orgânica, isto
é, explica a passagem por fatores relacionados a uma morfologia social: o volume físico da sociedade e
a sua densidade dinâmica ou moral (intensidade interativa ou moral entre os indivíduos). Novamente,
repetimos: mesmo que seja interessante e pertinente sob alguns aspectos, não é possível explicar a
mudança social apenas pela morfologia social. Seria como se Durkheim postulasse que a única forma
de compreender a mudança social fosse através dos conceitos utilizados para entender a reprodução da
ordem social. Produz-se assim uma lacuna imensa: a incapacidade de propor uma teoria da mudança
social.
Sem essa capacidade explicativa, fica misterioso o processo pelo qual se formou, realmente, o chamado
individualismo moral. Durkheim, na verdade, confunde o processo de individuação, explicado
parcialmente pela divisão do trabalho social, com o surgimento do individualismo, que seria uma
expressão histórica e particular do processo de individuação, característico das sociedades ocidentais e
européias. Individuação é a condição necessária, mas não suficiente, do individualismo. Pode-se
imaginar sociedades nas quais o processo de individuação — inclusive, influenciado pelo
aprofundamento da divisão social do trabalho — seja bastante acentuado, mas que não ocasionou o
surgimento de um individualismo moral, como o existente nas sociedades ocidentais e européias
(pensamos na China, na Índia e, de uma certa maneira, no Japão).
Por outro lado, não sabemos até que ponto Durkheim separa ou apenas distingue a solidariedade
mecânica da orgânica. De todo modo, seria imposs ível não pensar, quando da distinção entre mecânico
x orgânico, em outra distinção famosa: comunidade x sociedade de Tönnies — Weber vai utilizar
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também tal distinção quando se refere ao societário e ao comunitário (seguimos aqui o texto de Dubar,
1991). Achamos que Durkheim retoma tal distinção, apenas colocando uma diferença fundamental: a
solidariedade orgânica seria também permeada por uma moral, não sendo um mundo completamente
utilitário. Enquanto há uma separação entre as duas solidariedades, fica difícil entender como o
individualismo é a moral fundamental da solidariedade orgânica — na verdade, mesmo posteriormente,
Durkheim jamais explicou isso de forma mais aprofundada, já que, como vimos, confundiu o processo
de individuação com o individualismo propriamente dito. Como fica então a relação entre a
solidariedade orgânica e o individualismo? Da forma como caracterizou a solidariedade orgânica,
Durkheim não conseguiu explicar de forma convincente como a solidariedade orgânica é a base social
do individualismo; talvez, repetimos, ela seja a base do processo de individuação — ainda assim,
achamos insuficiente explicar a base social do individualismo apenas pelo desenvolvimento da divisão
social do trabalho, mesmo explicando-a pelo surgimento de sua pretensa base moral: a solidariedade
orgânica.
De todo modo, na segunda metade do livro A divisão do trabalho social (1998: 259-261), Durkheim
sugere que as duas solidariedades são complementares. Onde antes havia uma coexistência entre
ambas, como se fossem princípios contrários; agora, há uma dualidade e uma complementaridade.
Além do mais, na primeira parte do livro, havia uma separação temporal e espacial entre as duas
solidariedades: a mecânica existindo apenas nas sociedades tradicionais e primitivas; a orgânica, nas
sociedades modernas. Ora, para Durkheim, o individualismo é a "moral tradicional" do mundo
moderno, isto é, faz parte da sua "consciência coletiva" (conjunto de crenças, sentimentos e costumes
que subsume a pessoa justamente no imaginário coletivo do individualismo). Assim, a solidariedade
mecânica continuaria sendo a característica permanente de todos os fatos sociais. Seria a base da
integração social, enquanto a orgânica a base predominante, no mundo atual, da integração sistêmica.
Enfim, a dualidade entre as duas solidariedades faria parte da dualidade estrutural, conceituada por
Giddens (1984: 74-78), cuja circularidade engloba a estrutura e a ação, a integração sistêmica e a
integração social.
Como Durkheim transforma quase sempre a dualid ade em dualismo, as propriedades estruturais dos
sistemas sociais são vistas como "externas" ao agente individual. O "externo" é identificado ao
"coercitivo", justamente à coerção social do fato moral. Quando Durkheim postula a coerção social da
solidariedade e, mesmo nas suas análises metodológicas, a coerção do fato social, parece ter em mente
o imperativo categórico de Kant. Contudo, o imperativo categórico não implica apenas uma coerção, e
sim também um impulso que habilita a ação. Inicialmente, Durkheim terá em mente apenas o lado
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coercitivo dos fatos sociais e da moral (solidariedade), mas aos poucos reconhecerá o lado
"disposicional" da moral e dos fatos sociais, isto é, reconhecerá também que o enquadramento da
conduta patrocinada pela moral, por exemplo, implica uma fusão de constrangimento sistêmico e
capacidade de ação. O indivíduo é enquadrado, mas também adquire uma competência ou um recurso
que o possibilita a agir. A aquisição da linguagem seria um exemplo perfeito (Giddens, 1984: 228): a
língua é uma coerção social (uma verdadeira "coisa" ou "fato social") que nos formata e nos
constrange, adquirida a partir de nossa integração na "sociedade", sendo completamente independente
de nossa vontade; mas, ao mesmo tempo, habilita-nos ou nos qualifica para a ação.
No entanto, o lado coercitivo permaneceu dominante pela ausência fundamental, em Durkheim, de uma
teoria da ação e, principalmente, de uma teoria do poder. Contudo, acreditamos que a dificuldade de
Durkheim em perceber as relações intrínsecas entre o lado coercitivo e o disposicional (habilitante) da
solidariedade (moral) seja proveniente também de uma insuficiência conceitual, a começar por uma
visão insuficiente do processo de socialização. Seria essa insuficiência conceitual outra razão de
explicar o eterno movimento pendular de Durkheim entre uma visão substanciada da sociedade e uma
"interacionista" ou, como já foi dito várias vezes, o motivo pelo qual invariavelmente transforma a
dualidade entre o indivíduo e a sociedade em dualismo.
7. O problema da socialização
Acreditamos que a ênfase na moral e no estudo das representações coletivas permitiu a Durkheim ser
um dos grandes pioneiros na análise da socialização humana. Pois, por estar preocupado com o
problema da coesão social, Durkheim precisou analisar os processos pelos quais o indivíduo interioriza
os valores morais da sociedade. Por isso, examinou e postulou, nos seus diversos trabalhos, a natureza
empírica das regras morais. Não causa surpresa, assim, que um dos caminhos utilizado, para entender a
interiorização da moral, foi a construção do conceito de "representação coletiva". E, ao discutir
representação e interiorização, talvez tenha sido o primeiro sociólogo a construir uma teoria (pelo
menos o esboço) da socialização — conceito necessário para se entender a educação e a interiorização
dos valores morais.
A socialização seria entendida basicamente como uma "educação moral". Contudo, tal educação não
seria propriamente construída, como em Piaget (1984), por exemplo, e sim transmitida via coerção do
fato social, isto é, do fato moral. Tal transmissão ocorreria através da disciplina e da ligação umbilical
dos indivíduos aos grupos sociais (vide os mecanismos de associação discutidos acima). A
interiorização dos valores acontece de fora para dentro, isto é, via a internalização de modelos culturais,
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para utilizar uma linguagem mais contemporânea. Sendo impositiva, a socialização possui um
componente repressivo acentuado, por isso toda a atenção de Durkheim ao fenômeno das sanções
morais e ao do crime. Contudo, a socialização humana evoluiu, transformando as modalidades de
interiorização de valores: a repressão vai dando lugar, aos poucos, à cooperação e à complementaridade
(Durkheim, 1998). O resultado moderno da evolução da socialização é a constante individuação do ser
humano.
Assim, à medida que se vai desenvolvendo, à medida que vai ocorrendo a predominância da
solidariedade orgânica, à medida que se expande o individualismo, a vida social passa a ser percebida
do "interior". Por isso, Durkheim, apesar de reiterar a importância da disciplina na educação, vai
enfatizar, para a socialização moderna, o papel da autonomia da vontade; em suma, a socialização vai
ficando cada vez mais voluntária. Contudo, tal afirmação ainda fica prejudicada pela ênfase excessiva
de Durkheim no lado coercitivo da moral. Na sua obra, as relações de cooperação sempre estiveram um
tanto subsumidas nas relações de coerção. Além do mais, para entender uma socialização cada vez
mais "voluntarista" e individual, precisaria supor de alguma forma uma correlação essencial entre as
estruturas sociais e as estruturas mentais; ora, isso não ocorre porque ele nunca levou adiante a
dualidade entre o indivíduo e a sociedade, porque sempre teve a tendência de transformar a dualidade
em dualismo. Sempre pensou a sociedade como um todo realista. Nunca conseguiu, até porque era uma
questão de estratégica acadêmica a defesa da separação científica entre a psicologia e a sociologia,
admitir o paralelismo psicossocial entre as representações individuais e as coletivas; o paralelismo
entre a interiorização individual das estruturas sociais e dos sistemas de interações sociais e a
exteriorização social das estruturas cognitivas e psíquicas.
Não há em Durkheim o conceito de indivíduo socializado. Existe apenas o esboço. A socialização seria
mais do Homem do que dos indivíduos concretos interagindo entre si. Durkheim finda separando a
individualidade da subjetividade, não conseguindo levar adiante suas intuições "interacionista s". Sua
concepção de subjetividade admite de forma mitigada a formação de sujeitos individuais formados na
intersubjetividade. Seu conceito de subjetividade é identificado ao conceito mesmo de humanidade.
Certo, Durkheim advogou um individualismo moral, realçando o papel do indivíduo, principalmente
nas suas obras políticas (Giddens, 1997: 103-147); contudo, seu indivíduo é muito mais independente
do que autônomo. O indivíduo, em Durkheim, não é o autor do nomos, isto é, da norma, da regra e da
lei, pois a divina graça da autonomia foi reservada para a sociedade, lócus único da subjetividade. Não
conseguiu, assim, exceto em alguns momentos, descer definitivamente do limbo universalista do
humanismo clássico — e mesmo do republicanismo francês do início do século XX (1997: 103-147) —
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para o terra-a-terra sociológico da identidade. Na resposta à pergunta "quem sou eu?", Durkheim
respondeu essencialmente: "eu sou Humano". Esboçou uma visão de identidade distintiva e
diferenciada, principalmente quando analisou o processo de individuação e de formação das
representações coletivas, mas, sem um conceito de socialização mais abrangente, não se livrou do
universalismo abstrato de um sujeito sui generis e transcendental, a "sociedade". Portanto, findou não
escapando das aporias do Homem e, por mais que lhe fosse indiferente, nem das de... Deus.
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RESUMO
O objetivo deste artigo seria discutir a problemática do indivíduo em Durkheim. Inferimos que discutir o indivíduo seja debater também algumas questões correlatas, tais como a subjetividade e a individualidade. Tentaremos mostrar que o holismo de Durkheim é marcado por uma tensão entre um holismo propriamente dito e uma posição "interacionista", e que tal tensão, talvez, seja produto da transformação da dualidade entre o indivíduo e a sociedade (postulada e defendida várias vezes por Durkheim como fundadora da sociologia enquanto ciência do social) em um dualismo que separa a individualidade da subjetividade.
Palavras-chave: Durkheim; individualidade e subjetividade; teoria social.
RÉSUMÉ
Cet article porte sur la problématique de l'individu chez Durkheim, thématique qui implique l'analyse de questions générales sur la subjectivité et l'individualité. On essaie de montrer que le holisme de Durkheim est ponctué d'une tension entre un holisme pur et dur et une position "interactionniste". Cette tension est peut-être le produit de la transformation de la dualité entre l'individu et la société — soutenue, à plusieurs reprises, par Durkheim lui-même comme étant fondatrice de la sociologie en tant que science du social —, en un dualisme qui écarte l'individualité de la subjectivité. Mots-clé: Durkheim; l'individualité et la subjectivité; théorie sociale.
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