Percursos literários da I República Portuguesa

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  1 Percursos literários da I República Portuguesa  António Martins Gomes (Centro de História da Cultura - FCSH) Óscar Lopes, na sua História da Literatura Portuguesa (Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1973), divide a análise do período de produção literária da transição para o século XX com base num critério simultaneamente factual e político: a “geração de 1890”, com a duração de duas décadas, e a “geração da República”, que lhe sucede. O autor assinala desta forma o começo de uma fase literária com a mudança de regime ocorrida a 5 de Outubro de 1910, um episódio da História de Portugal que parece ser ainda mais vinculativo do que a sempre incontornável viragem de século. Com efeito, a revolução de Outubro materializa, com o advento do novo regime político, o sonho messiânico e a esperança salvífica numa nova divindade chamada República , prenunciada há muito pelo patriarca Henri ques Nogueira, e os 16 anos que abrangem a primeira fase literária da República Portuguesa são de uma produção bastante frutífera e diversificada, a qual se bipolariza essencialmente entre a criação vanguardista e o apego aos costumes tradicionais, podendo ser dividida em três f ases: a primeira (1910-1914), marejada de saudade e tradição; a segunda (1915-1920), transbordante de modernidade e inovação; e a terceira (1921-1925), fervilhante de empenho e militância. Em 1910, no ano de mudança política e em que Teófilo Braga se torna Presidente do Governo Provisório, é publicado Próspero Fortuna, um romance que denuncia o descalabro de Portugal sob a égide da dinastia de Bragança e defende a República como solução nacional. A cem anos de distância da sua publicação e à luz da sua mensagem apologética, esta obra de Abel Botelho é o melhor exemplo da literatura portuguesa de tese republicana, ao transmitir a ideia de República como uma entidade redentora aos olhos de uma burguesia desiludida com a incúria reinante em Portugal no crepúsculo da monarquia. Na verdade, este romance abeliano apresenta-se como um reflexo histórico da crise existente entre o fim do reinado de D. Luís e o início do de D. Carlos: pugna

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O período de 16 anos que circunscreve a primeira fase da República Portuguesa (1910-1926) é bastante enérgico e diversificado no domínio da produção literária, a qual se divide – de uma forma genérica – entre a vanguarda urbana e a tradição rústica, o umbilicalismo e a consciência social. Três revistas marcam essencialmente esta fase: a Águia, órgão difusor do Saudosismo, de cujos autores destacamos Teixeira de Pascoaes e Augusto Gil; o Orpheu, revista cosmopolita que contém artigos e poemas vanguardistas, dos quais Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro são exemplos incontornáveis; e a Seara Nova, publicação que surge do desejo de maior intervenção social, como crítica ao sebastianismo e ao isolamento da Europa, sendo Aquilino Ribeiro e Raul Brandão dois escritores modelares.

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Percursos literários da I República Portuguesa 

António Martins Gomes (Centro de História da Cultura - FCSH)

Óscar Lopes, na sua História da Literatura Portuguesa  (Lisboa: Editorial

Estúdios Cor, 1973), divide a análise do período de produção literária da transição

para o século XX com base num critério simultaneamente factual e político: a “geração

de 1890”, com a duração de duas décadas, e a “geração da República”, que lhe

sucede. O autor assinala desta forma o começo de uma fase literária com a mudança

de regime ocorrida a 5 de Outubro de 1910, um episódio da História de Portugal queparece ser ainda mais vinculativo do que a sempre incontornável viragem de século.

Com efeito, a revolução de Outubro materializa, com o advento do novo regime

político, o sonho messiânico e a esperança salvífica numa nova divindade chamada

República, prenunciada há muito pelo patriarca Henriques Nogueira, e os 16 anos que

abrangem a primeira fase literária da República Portuguesa são de uma produção

bastante frutífera e diversificada, a qual se bipolariza essencialmente entre a criação

vanguardista e o apego aos costumes tradicionais, podendo ser dividida em três fases:

a primeira (1910-1914), marejada de saudade e tradição; a segunda (1915-1920),

transbordante de modernidade e inovação; e a terceira (1921-1925), fervilhante de

empenho e militância.

Em 1910, no ano de mudança política e em

que Teófilo Braga se torna Presidente do Governo

Provisório, é publicado Próspero Fortuna , um romance

que denuncia o descalabro de Portugal sob a égide da

dinastia de Bragança e defende a República como

solução nacional. A cem anos de distância da sua

publicação e à luz da sua mensagem apologética, esta

obra de Abel Botelho é o melhor exemplo da literatura

portuguesa de tese republicana, ao transmitir a ideia

de República como uma entidade redentora aos olhos

de uma burguesia desiludida com a incúria reinante

em Portugal no crepúsculo da monarquia.

Na verdade, este romance abeliano apresenta-se como um reflexo históricoda crise existente entre o fim do reinado de D. Luís e o início do de D. Carlos: pugna

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por um Estado laico, apresenta uma estratégia retórica com vista à formação cívica,

nomeia Camões como o maior exemplo patriótico a seguir, incrimina a nefasta conduta

governamental levada a cabo durante a dinastia brigantina, e dá visibilidade ao

  jornalismo panfletário, um importante método difusor do pensamento republicano

durante as duas últimas décadas do regime monárquico e incitador à sublevação

portuense de 31 de Janeiro de 1891.

A revista Águia  (1910-1932) assinala o início da primeira fase literária da

República Portuguesa na qualidade de

órgão difusor do Saudosismo, por meio

de autores como Teixeira de Pascoaes

(director entre 1912 e 1917), Jaime

Cortesão, António Correia de Oliveira,

Afonso Lopes Vieira ou Augusto Gil (que

tinha composto no ano anterior a sua

neo-romântica “Balada da neve”, incluída

em Luar de Janeiro ), cujas obras evocam

as raízes da alma nacional através de

um misticismo panteísta e procuram

instilar as marcas da saudade na

identidade portuguesa ao longo desses

tempos inaugurais da República. É

também nesta publicação  – de

periodicidade quinzenal no ano da

primeira série, e mensal a partir de 1912

 – que se estreia Fernando Pessoa como

ensaísta da nova poesia portuguesa.

No número 8 da Águia  (1911), Teixeira de Pascoaes, imbuído de populismo

bucólico e historicismo sentimental, entre outras características congéneres, mostra odesejo de renovar (ou, melhor dizendo, ressuscitar) a pátria portuguesa através da

República, época equiparada a uma segunda fundação nacional:

O cinco de Outubro foi já um facto de grande alcance, porque noslivrou da influência de Roma, apagou as lâmpadas de Roma. Agora só resta(e será o mais custoso) apagar os fachos de Paris, e guiarmo-nos pela nossaprópria candeia, alimentada com o azeite das nossas oliveiras… É precisoeducar este Povo dentro da sua personalidade; um vestuário estrangeiro nãolhe fica bem; não foi feito para o seu corpo.

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Em 1911, Manuel

de Arriaga é eleito

Presidente da República,

entra em vigor o primeiro

Acordo Ortográfico da

Língua Portuguesa, com

vista a simplificar a escrita e

combater o analfabetismo, o

Estado separa-se da Igreja,

e a marcha “A Portuguesa” é

adoptada como hino

nacional. Aparentemente, o

conteúdo dos seus versos,

compostos por Henrique

Lopes de Mendonça e

musicados por Alfredo Keil

na sequência do Ultimato

inglês em 1890, não

apresenta uma identificação

imediata com a ideologia

republicana; contudo, a sua orientação positivista, assente nos valores da elevação e

da transcendência épica (Heróis do mar, nobre povo, nação valente , Imortal , Levantai  

hoje de novo), ou na simbologia da luz (o esplendor  de Portugal), possibilita a sua

conversão espontânea ao republicanismo; por sua vez, o refrão dá o mote inequívoco

para a revolta pela via bélica e, vinte anos antes, antevê a forma de implantação da

República em Portugal.

Ainda no mesmo ano em que são lançadas as

bases ideológicas da Renascença Portuguesa ,Teixeira de Pascoaes, orientador deste movimento

filosófico e cultural que acompanha o voo místico d’A

Águia , publica Marânus . Neste poema extenso em

verso decassilábico, cujos dezassete cantos

congregam elementos da paisagem nortenha no

sentimento de um sujeito contemplativo, a saudade – o

sangue espiritual da raça e o seu estigma divino,

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segundo o próprio autor – chega a adquirir o estatuto de uma deusa simultaneamente

pagã e cristã:

Ó nova Divindade, eu quero erguer-te,No mais alto da Serra, um belo altar,Feito de saibro e rosas matutinas,Alumiado do sol e do luar.Ali, será Belém. Os pastoresSe hão-de ajuntar, em grande romaria,Na adoração do novo Deus menino,Rezado pela nova Profecia.(Marânus , canto VII)

Em 1914, Mário de Sá-Carneiro publica A confissão de Lúcio e Dispersão   – 

título que indicia desde logo a sua vincada crise de personalidade  – e Fernando

Pessoa ortónimo introduz o paulismo na poesia (“Pauis de roçarem ânsias pelaminh'alma em ouro…”). Quanto aos heterónimos pessoanos, começam a desdobrar-se

na sua entidade autónoma e dão aqui os seus primeiros passos líricos: o engenheiro

futurista Álvaro de Campos faz a

orquestração em verso livre da

“Ode Triunfal” numa escala

apoteótica de motores em marcha e

engenhosas onomatopeias a

glorificar o progresso da civilizaçãoindustrial; o estóico Ricardo Reis

compõe versos epicuristas à pobre

ceifeira, desejando outrar-se nela; e

o rústico Alberto Caeiro coloca-se

na pele d’O Guardador de 

Rebanhos : 

XVIQuem me dera que a minha vida fosse um carro de boisQue vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,E que para de onde veio volta depoisQuase à noitinha pela mesma estrada.Eu não tinha que ter esperanças – tinha só que ter rodas...A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...Quando eu já não servia, tiravam-me as rodasE eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

[…] 

XXO Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

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Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeiaPorque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Em 1915, José de Almada Negreiros  – “Poeta d’Orpheu, Futurista e Tudo…”

 – publica o Manifesto Anti-Dantas e por extenso , uma violenta sátira panfletária contra

Júlio Dantas, um dos principais representantes da instalada literatura tradicionalista:

“O Dantas nu é horroroso! / O Dantas cheira mal da boca! / Morra o Dantas, morra!

Pim! / O Dantas é o escárnio da consciência! / Se o Dantas é português eu quero ser

espanhol!”.

Na sequência de muitas

tertúlias de café, são publicados os dois

únicos números de Orpheu , uma revista

cosmopolita que contém artigos

doutrinários de estética e poemas

vanguardistas de autores como

Fernando Pessoa, Mário de Sá-

Carneiro, Luís de Montalvor (director do

primeiro número e, em 1930, fundador

da mítica Editora Ática) ou Ângelo de

Lima. Perante uma comunhão tão

singular de “ismos” neste projecto luso-

brasileiro  – simbolismo, decadentismo,

modernismo, sensacionismo, futurismo

ou interseccionismo, podemos

considerar estar aqui o momento de

transição para a segunda fase literária

da I República Portuguesa,

caracterizada por esta onda prolífica de

géneros estéticos.Segundo Luís Francisco Rebelo, com o Orpheu morre o século XIX e nasce o

século XX nas letras e nas artes nacionais. Com efeito, no mesmo ano em que

Bernardino Machado é eleito Presidente da República e surge o Integralismo Lusitano,

movimento filosófico de tendência monárquica e católica (tendo António Sardinha

como um dos seus principais representantes), esta Revista Trimestral de Literatura   – 

que contou “apenas” com dois números – destaca-se pelo seu carácter inovador, tanto

ao nível da apresentação estética como do conteúdo, assumindo-se desde logo contra

a tradição academista e o saudosismo; por esta razão, este movimento artístico-

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cultural acaba por ser incompreendido pela generalidade do público e da crítica, que

adjectiva depreciativamente os seus colaboradores de lunáticos e alienados.

A estátua em bronze de Pessoa, da

autoria de Lagoa Henriques, colocada em frente

à Brasileira do Chiado desde 13 de Junho de

1988, assinala simbolicamente o espaço físico

desta geração urbana: o café, lugar privilegiado

para redigir textos e trocar ideias entre cigarros

e bebidas. É uma geração genial mas quase

sempre insatisfeita, ao viver entre o

individualismo e a fragmentação, a evasão pelo

mundo e o aconchego do lar, o alheamento para

além do horizonte físico e a consciência da

realidade, o comprazimento em pensar e o

padecimento de sentir, a perpétua loucura e os

relampejos de lucidez. Já em 1912, Mário de Sá-Carneiro pronuncia-se, numa das

primeiras cartas endereçadas a Fernando Pessoa, a propósito desta geração cerebral

que, salvo raras excepções, exclui do seu programa o idealismo romântico e o sujeito

feminino como objecto de culto ou como motivo central do texto lírico e narrativo: “A

nossa geração é mais complicada, creio, e mais infeliz. A iluminar as suas

complicações, não existe mesmo uma boca de mulher. Porque somos uma geração

superior.” (apud Eugénio Lisboa, Poesia Portuguesa: do  “ Orpheu ”  ao Neo-Realismo ;

Lisboa, ICLP, 1986, 16)

1916 é o ano em que Portugal

se integra nas forças aliadas (França,

Inglaterra e Rússia) da Primeira Guerra

Mundial e Mário de Sá-Carneiro se

suicida apoteoticamente em Paris com25 anos. “Fim” é o seu último poema,

assim nomeado a título póstumo pelo

seu padrinho  Fernando Pessoa para

encerrar simbolicamente o ciclo efémero

da sua produção literária, iniciado em

1912 com o livro de contos Princípio :

Quando eu morrer batam em latas,

Rompam aos saltos e aos pinotes,Façam estalar no ar chicotes,Chamem palhaços e acrobatas!

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Que o meu caixão vá sobre um burroAjaezado à andaluza...A um morto nada se recusa,Eu quero por força ir de burro.

Em 1917, no ano das tão debatidas

aparições marianas, surge o primeiro e único

número de Portugal Futurista , publicação difusora

do futurismo literário português, onde colaboram

Álvaro de Campos (“Ultimatum”) e Almada Negreiros

(“Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do

Século XX”), e Raul

Brandão publica a sua

obra-prima Húmus ,um romance em

formato diarístico

onde se desenvolvem

memórias e cogitações intelectuais que reduzem o

homem ao mais ínfimo da sua existência cósmica em

dois monólogos interiores e metafísicos, num incipiente

estilo precursor do nouveau roman , a ser cultivado mais

tarde por Samuel Beckett, Albert Camus e VergílioFerreira, entre outros.

No ano seguinte, o Presidente Sidónio Pais é morto a tiro no Rossio por um

republicano, assinalando desta forma radical o seu descontentamento em relação aos

caminhos traçados pelo novo regime político. A partir daqui, instala-se uma longa

crise, marcada por uma constituição sucessiva de governos até 1926 (24 ao todo,

sendo formados 15 até 1921). Em memória do seu “Presidente-Rei”, em cuja

personalidade depositava uma enorme esperança política, Fernando Pessoa dedicaum extenso poema. São estas as duas quadras nostálgicas que o iniciam:

LONGE DA FAMA e das espadas,Alheio às turbas ele dorme.Em torno há claustros ou arcadas?Só a noite enorme.

Porque para ele, já viradoPara o lado onde está só Deus,São mais que Sombra e que PassadoA terra e os céus.

(in Acção , Ano II, n.º 4, 27/2/1920)

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Em 1919, António José de

Almeida torna-se o sexto Presidente da

República e, não havendo regra sem

excepção na história desta geração

predominantemente masculina, Florbela

Espanca edita o seu Livro das mágoas ,

um extenso conjunto de 68 sonetos que

procuram espelhar a sua dolorosa

experiência sentimental. O poema

introdutório deste volume é uma

intertextualidade do primeiro soneto do

Parnaso  camoniano, que, para além da

ideia de verdade autobiográfica

transmitida no sofrimento amoroso do

sujeito lírico, de natureza petrarquista, apela aos leitores para que com ele se

identifiquem, a fim de melhor poderem entender o seu drama:

Este livro é de mágoas. DesgraçadosQue no mundo passais, chorai ao lê-lo!Somente a vossa dor de TorturadosPode, talvez, senti-lo… e compreendê-lo… 

Este livro é para vós. AbençoadosOs que o sentirem, sem ser bom nem belo!!Bíblia de tristes… Ó Desventurados, Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!

Livro de Mágoas… Dores… Ansiedade Livro de Sombras… Névoas… e Saudades! Vai pelo mundo… (Trouxe-o no meu seio…) 

Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,Chorai comigo a minha imensa mágoa,Lendo o meu livro só de mágoas cheio!… 

A terceira fase literária da I República Portuguesa tem o seu início a 15 deOutubro 1921, sendo assinalada pelo número inaugural da Seara Nova , uma das

revistas mais duradouras do século XX (a sua primeira série será editada até 1979), a

surgir do descontentamento no meio intelectual em relação aos caminhos ínvios da

República e como crítica à influência sebastianista e ao alheamento social na criação

artística e literária. Logo no primeiro número, os membros seareiros declaram-se

“poetas militantes, críticos militantes, economistas e pedagogos militantes”, e as suas

linhas programáticas pugnam pelos princípios elementares da “coisa pública”: 

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"- Renovar  a mentalidade da elite portuguesatornando-a capaz dum verdadeiro movimentode Salvação;

- criar uma opinião pública nacional que exija eapoie as reformas necessárias;

- defender  os interesses supremos da naçãoopondo-se ao espírito de rapina dasoligarquias dominantes e ao egoísmo dosgrupos, classes e partidos;

- protestar  contra todos os movimentosrevolucionários e todavia defender e definir agrande causa da verdadeira revolução;

- contribuir  para formar acima das Pátrias, aunião de todas as Pátrias  – uma consciênciainternacional bastante forte para não permitirnovas lutas fratricidas."

No ano seguinte, o conto pessoano O banqueiro anarquista  sai no primeiro

número da revista Contemporânea e Aquilino Ribeiro publica O Malhadinhas , obra

inserida na natureza pagã e nas raízes mais profundas da tradição popular, e que

narra a história picaresca, em forma de monólogo, de um almocreve beirão,

simultaneamente rústico e sentimental.

Em 1923, o ano em que Manuel Teixeira Gomes é eleito Presidente da

República, Raul Brandão imprime em Os Pescadores   – um conjunto de dezasseis

histórias dedicadas ao seu avô, também morto no mar  – a marca pitoresca dos

costumes piscatórios e a perspectiva trágica da existência humana, numa digressão

de norte a sul de Portugal. Aqui transcrevemos um excerto do capítulo “Mulheres”,

uma crua prosa centrada na tragédia das mulheres de negro, sempre à espera que o

mar trague e leve mais um dos seus na dura faina da pesca, e no tema da miséria

social, que começará a predominar mais para o final da década seguinte com o neo-

realismo:

Foz do Douro. Esta velha, crestada pela desgraça e pelo tempo, comsulcos de velhice e de lágrimas na cara, é que os impele para o mar. E o martem-lhos levado todos. Dobra-se-lhe o corpo exausto, rodilha gasta pela vida.

Mas quando o Inverno chega e a fome aperta, é ela que os injuria: – Má raios partam o mar! Então quereis morrer à fome e osmeninos?

Se os batéis estão em perigo, corre a costa, açoitada pelo vento,bebendo as lágrimas e o cuspo do mar, e contendo o coração em farrapos,com as mãos negras apertadas sobre a tábua rasa do peito.

 – Quem lhe falta, tiazinha?

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 – O meu filho,o meu neto. Já omaldito me levou o pai,leva-me agora osfilhos!

Andou toda avida de luto. Viu-osdespedaçados naspedras, e deitou toda aternura que tinha paradeitar. Mas incita-os,pragueja, empurra-os,para que não haja fomeem casa.

Só o mar dá osustento e a morte. Hámais de um mês que

dura o Inverno. – Má raiospartam o mar!

E corre com as redes à cabeça, a cesta no braço, e os soluçosrepresados na garganta, levando o neto atrás de si a rasto para o barco.

 – Tenho chorado tantas lágrimas como aquele mar salgado!...

Em 1925, Bernardino Machado torna-se o último Presidente da I República

Portuguesa e José Régio publica os Poemas de Deus e do Diabo , cuja consequente

temática da solidão “de marfim” e do

narcisismo social virá a ser condenada

com tamanho entusiasmo por Álvaro

Cunhal no artigo “Encruzilhada dos

homens”, publicado em 1939 na Seara 

Nova , em manifesta campanha pelo

programa de acção neo-realista. Apesar de

todo este umbilicalismo exacerbado que

caracteriza a poesia regiana, as célebres

estrofes do poema “Cântico negro”mantêm-se totalmente actuais, na plena

exaltação da liberdade individual e no

combate à sempre perigosa e ameaçadora

unanimidade ideológica, cujas

consequências serão levadas ao extremo

durante a Segunda Guerra Mundial:

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"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos docesEstendendo-me os braços, e segurosDe que seria bom que eu os ouvisseQuando me dizem: "vem por aqui!"Eu olho-os com olhos lassos,(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)E cruzo os braços,E nunca vou por ali...

[…] 

Ide! Tendes estradas,Tendes jardins, tendes canteiros,Tendes pátria, tendes tetos,E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...Eu tenho a minha Loucura!Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;Mas eu, que nunca principio nem acabo,Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,Ninguém me peça definições!Ninguém me diga: "vem por aqui"!A minha vida é um vendaval que se soltou,É uma onda que se alevantou,É um átomo a mais que se animou...Não sei por onde vou,Não sei para onde vouSei que não vou por aí!

Ainda neste mesmo ano, ao cair

do pano da I República e a anteceder a

instauração da ditadura militar, sai A morte 

do palhaço , de Raul Brandão  – um

romance enigmático de cariz filosófico

com a temática da loucura e do sonho,que reformula a História de um Palhaço ,

escrita em 1896  –, e é publicada A

Capital , a obra eciana que mais ironiza o

republicanismo através do seu

protagonista Artur Corvelo e dos membros

do Clube da Rua do Príncipe.

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Neste romance, editado 25 anos após a morte de Eça, podemos presenciar

toda uma série de preconceitos deste autor em relação ao republicanismo e ao

egoísmo dos seus membros, continuamente destacados pelos aspectos negativos – a

sua perfilhação política deve-se apenas a oportunismos, ódios pessoais ou meros

devaneios, e nunca a uma verdadeira consciência ideológica. Os republicanos

representados, ou, dito de outro modo, caricaturados pela sua pena sarcástica, são

burgueses sem escrúpulos, que agem sobretudo em função dos seus interesses

particulares, nunca hesitando em atribuir à monarquia toda as culpas pela situação

débil do país ou pelos seus próprios fracassos.

Assim, em jeito de breve conclusão, a primeira fase literária da I República

Portuguesa prolonga-se ao longo de dezasseis anos, marcados essencialmente por

três revistas artísticas e literárias que se distinguem pelo diferenciado grau de

empenhamento social: os membros da Águia  e do Orfeu  privilegiam a orientação

estética da arte pela arte e prezam o seu individualismo, estando os primeiros mais

ligados ao saudosismo e à tradição, e os segundos ao modernismo e à inovação;

quanto aos autores da Seara Nova , preferem o combate ideológico, sendo orientados

por uma linha de acção colectiva e por uma militância político-social.

In A Vida Cultural na Lisboa da I República (1910-1926)  – Actas do Colóquio Nacional , Lisboa,

Câmara Municipal de Lisboa, 2011.