Percursos do Mito de Electra: Da Oréstia a Mourning Becomes Electra

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS PERCURSOS DO MITO DE ELECTRA: DA ORÉSTIA A MOURNING BECOMES ELECTRA. Manuela Moura Fontenele de Brito João Pessoa, PB Maio, 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

PERCURSOS DO MITO DE ELECTRA:

DA ORÉSTIA A MOURNING BECOMES ELECTRA.

Manuela Moura Fontenele de Brito

João Pessoa, PB Maio, 2006

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MANUELA MOURA FONTENELE DE BRITO

PERCURSOS DO MITO DE ELECTRA:

DA ORÉSTIA A MOURNING BECOMES ELECTRA.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras (área de concentração: Literatura e Cultura).

Prof. Dr. Diógenes André Vieira Maciel - Orientador

João Pessoa, PB Maio, 2006

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PERCURSOS DO MITO DE ELECTRA:

DA ORÉSTIA A MOURNING BECOMES ELECTRA.

Por

MANUELA MOURA FONTENELE DE BRITO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras (área de concentração: Literatura e Cultura), aprovada, em 30/05/06, pela Banca Examinadora formada por:

Prof. Dr. Diógenes André Vieira Maciel/UFPB – Orientador

Profa. Dra. Valéria Andrade/UFPB – Examinadora

Profa. Dra. Íris Helena Guedes de Vasconcelos/UFCG - Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Muitos encaram a defesa de uma dissertação como uma vitória, mas não vejo

este momento dessa forma, mas, sim, como o ponto culminante de uma caminhada

que teve início há muitos anos atrás e também como o ponto de partida para uma

outra caminhada que se estenderá por muitos anos ainda.

Chegar até aqui não foi fácil. Os dois anos do mestrado foram cheios de altos e

baixos, momentos de felicidade, tristeza, desespero que, com certeza, valeram a pena.

Essa jornada não teria sido possível sem o apoio de muitas pessoas a quem devo meus

sinceros e carinhosos agradecimentos: minha mãe, Lucy; minha irmã, Mariana; minha

tia, Nilza (estas três pessoas foram fundamentais); meu namorado, Marcello, por todo

o apoio e compreensão; Liane Schneider e Lauro Martins, grandes amigos!; Diógenes

Maciel, meu orientador e amigo que teve a paciência de me agüentar; Milton Marques

Jr., professor e querido amigo que despertou em mim a paixão pelos gregos; Elisalva

Madruga, coordenadora do PPGL; e a todos os meus amigos que contribuíram para a

realização deste trabalho.

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RESUMO

O presente trabalho apresenta um estudo comparativo entre duas tragédias: a Oréstia,

trilogia grega antiga do século V a. C. escrita por Ésquilo, e Mourning becomes Electra

(Electra enlutada), trilogia norte-americana do século XX, escrita por Eugene O’Neill.

Com o objetivo de verificar como foi feita a reelaboração de um mito antigo – o mito

de Electra, inserido dentro de um mito maior, o dos Atridas – resolveu-se tomar como

objeto de estudo a segunda peça de cada trilogia, Coéforas, da trilogia esquiliana, e Os

perseguidos, de O’Neill. Como parte desse estudo também se verificou a possibilidade de

se fazer uma tragédia moderna a partir de uma tragédia antiga, uma vez que o conceito

de “trágico” é muito discutido hoje, com alguns teóricos preferindo falar em drama

moderno por causa do sentido comum que a palavra “trágico” passou a ter, enquanto

outros sustentam que é preciso saber separar os dois sentidos. Este trabalho se

fundamenta na leitura das teorias da tragédia clássica e da moderna, além de um estudo

do panorama do teatro norte-americano na primeira metade do século XX e na fortuna

crítica das obras estudadas. Aliado a isso, fez-se um estudo do mito e suas

representações, procurando-se entender como ele era visto na Grécia Antiga e como é

visto na modernidade. O estudo foi aprofundado fazendo-se uma análise comparativa

das personagens Electra/Orestes, da primeira peça, e Lavínia/Orin, da segunda, com

base nas suas relações e nas relações deles com a figura materna, elo entre os irmãos.

Na primeira peça, o personagem Orestes está em primeiro plano, o que é invertido na

segunda peça em que a personagem Lavínia domina toda a trilogia. .

Palavras-chave: tragédia, trágico, mito, Electra, drama moderno.

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ABSTRACT

The present work presents a comparative study of two tragedies: Orestia, an

ancient Greek tragedy from the fifth century b.C. wrote by Aeschylus, and Mourning

becomes Electra, a north-american trilogy from the twentieth century a. C. wrote by

Eugene O’Neill. With the objective of verifying how the re-adaptation of an ancient

Greek myth was done – the Electra myth, which is inserted in a larger myth, the

Atridas one – it was decided to take into account the second play from each trilogy,

Choephori by Aeschylus and The Hunted, by O’Neill. As part of this study, the possibility

of doing a modern tragedy based on the ancient one was also verified, because the

concept of the word « tragic » is an object of discussion nowadays, as some theorists

prefer the expression « modern drama » as they are against the common sense that the

word had received today, while other theorists afirm that it is necessary to separate the

two concepts. This work is based on readings about classical and modern tragedies as

well as a study of the north-american theatrical scene on the first half of the twentieth

century snd the critical reviews of the plays studied. Together with these readings a

study about myth and its representation was done to check how it was seen in Ancient

Greece and how modern times faces it. The work was concentrated in a comparative

analysis of the characters Electra/Orestes, from the first play, and Lavinia/Orin, from

the second play, based on their relationships and their relationships with the mother

figure, the conection between the brothers. On the first play, Orestes is on first plan,

what was inverted on the second play, where Lavinia dominates the whole trilogy.

Key-words: tragedy, tragic, myth, Electra, modern drama.

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SUMÁRIO

Introdução p. 8

Capítulo I: Perspectivas histórico-críticas ou

o antigo nunca foi tão moderno p. 11

1. Breve história: a forma dramática através dos tempos p. 11

2. A questão da tragédia moderna p. 27

3. Eugene O’Neill e o cenário norte-americano p. 33

Capítulo II: Os Atridas: um mito ontem e hoje p. 41

1. O sentido originário do mito p. 41

2. Aproveitamento dos mitos: epopéias e tragédias p. 43

3. Dessacralização dos mitos p. 47

4. O mito dos Atridas: das epopéias homéricas à Oréstia de Ésquilo p. 51

5. O mito dos Atridas: de Ésquilo à dramaturgia moderna p. 56

Capítulo III: Do sofrimento à perseguição: Electra e Orestes

nas trilhas da vingança e do tempo p.67

1. Electra e Orestes: trilhas da adaptação p. 67

2. As Coéforas p. 70

3. Os perseguidos p. 78

Considerações Finais p. 89

Bibliografia p. 92

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INTRODUÇÃO

A importância dos mitos para as produções culturais do Ocidente revela-se na

decisiva recorrência a este repertório, desde a Antiguidade Clássica até os tempos

modernos, por parte dos artistas, que buscam nele os temas de grande repercussão

sempre presentes e revisitados em romances, poemas, pinturas, esculturas e, claro, nas

formas dramáticas – do drama trágico antigo, passando pela ópera, pelo drama

moderno e chegando ao cinema.

Em grego, mythos designa uma ‘palavra reformulada’, podendo ser uma

narrativa, um diálogo ou a enunciação de um projeto. Os gregos buscavam exatamente

aquilo que poderia seduzir a audiência mediante o uso da palavra: unia-se o prazer

inerente à palavra falada (basta lembrar dos aedos) à utilidade da palavra escrita, pois o

texto escrito continha um ensinamento que permaneceria fixo, ao contrário das

narrativas orais, em que o conhecimento se transforma e se entrega ao sabor do tempo.

Os tragediógrafos antigos utilizam os mitos livremente, transformando-os

segundo suas necessidades estéticas e adaptando-os ao momento histórico em que

viviam. Os modernos, inspirados nos antigos, perceberam o caráter universal dos

mitos, mas sentiram a necessidade de transformá-los segundo novas formas de

pensamento, tratando os grandes temas míticos de acordo com suas exigências

específicas, relacionadas ao contexto histórico e a seus projetos estéticos.

O dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill foi um desses autores. Tendo

despontado na primeira metade do século XX, O’Neill fez parte de um movimento off-

Broadway chamado Little Theatres, pequenas companhias fixas de teatro que lutavam

contra o comercialismo da Broadway produzindo, preferencialmente, peças de autores

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norte-americanos. Dentre as peças mais famosas de O’Neill estão Desire under the elms

(Desejo sobre os olmos), Long day’s journey into night (Longa jornada noite adentro) e Mourning

becomes Electra (Electra enlutada).

Com a trilogia Mourning becomes Electra (Electra enlutada), objeto de estudo deste

trabalho, o velho tema grego da tragédia esquiliana – o mito dos Atridas – é

psicanaliticamente re-elaborado e transferido para personagens do tempo da Guerra

Civil norte-americana. A ação se passa na Nova Inglaterra, especificamente na mansão

dos Mannon, e se concentra nas relações entre os membros dessa família. Nela,

percebe-se claramente a presença do mito grego dos Atridas, que engloba o mito de

Electra, que, embora reformulado, estrutura as relações de amor e ódio que resultam

numa cadeia de crimes cometidos dentro de um mesmo grupo familiar.

Ao longo deste trabalho, pretende-se destacar de que forma o mito grego de

Electra, parte do complexo mito dos Atridas, foi adaptado numa trilogia do século XX,

tomando por base o registro mais antigo e completo que se tem dele, a trilogia grega

escrita por Ésquilo, a Oréstia, de 458 a.C. Para isso, propõe-se uma análise comparativa

com base no percurso da relação dos personagens Electra/Orestes, na segunda peça da

trilogia esquiliana intitulada Coéforas, e Lavínia/Orin, na segunda peça da trilogia de

O’Neill chamada Os Perseguidos, levando também em consideração suas relações com as

respectivas mães, Clitemnestra e Christine, que funcionam como um elo entre os

irmãos. Nesse estudo, também entra em discussão a questão da possibilidade de se

fazer uma tragédia moderna nos moldes da tragédia grega clássica.

Para que os objetivos deste trabalho fossem alcançados, foi feito um estudo das

teorias da tragédia clássica e da moderna, além de um estudo do teatro norte-americano

no início do século XX, juntamente com leituras acerca da obra de Eugene O’Neill.

Aliado a isso, fez-se necessário um estudo de mito e suas representações, de como ele

era visto na Grécia Antiga e de como é tratado na modernidade. Quanto ao estudo de

tragédia e de mito, as leituras aristotélicas foram fundamentais. De sua Poética foram

retirados os conceitos de tragédia e de mito na época clássica. Teórios como Jacqueline

de Romilly, Albin Lesky, Marcel Detienne, Pierre Vidal-Naquet e Jean-Pierre Vernant,

entre outros, fundamentaram o estudo da tragédia grega, definindo-a e pontuando suas

características, bem como a importância que essa manifestação teatral tinha para os

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gregos antigos. No que diz respeito às teorias do drama e da tragédia moderna, a base

teórica foi formada por teóricos como Raymond Williams, Peter Szondi, Georg

Lúkacs, Emile Zola, entre outros. Para um estudo acerca do teatro norte-americano no

século XX, foram feitas leituras de Iná Camargo Costa, Oscar Cargill e John Gassner,

entre outros.

Assim, dividimos este estudo em três capítulos. No primeiro, são discutidas as

questões do trágico e da tragédia a partir da compreensão do contexto grego e do

contexto moderno, fazendo-se uma retrospectiva histórica dessas teorias,

principalmente no que diz respeito à permanência e re-elaboração das formas,

culminando na apresentação do cenário do teatro norte-americano na primeira metade

do século XX. No segundo capítulo, são apresentados os conceitos de mito na

Antiguidade, principalmente entre os gregos, e como esses conceitos foram

dessacralizados. Também se discute o papel dos mitos nas epopéias homéricas e nas

tragédias gregas, fazendo-se um breve comentário sobre o mito dos Atridas em três

peças: Coéforas, de Ésquilo; Os perseguidos, de O’Neill; e Senhora dos Afogados, do brasileiro

Nelson Rodrigues. No último capítulo, foi feito o estudo comparativo das personagens

nas duas peças em questão, Electra/Orestes das Coéforas, e Lavínia/Orin, de Os

perseguidos, como citado anteriormente, para que fosse possível verificar como o mito de

Electra foi revitalizado por Eugene O’Neill, que meios ele utilizou para reconstruir esse

mito moldando-o aos conceitos modernos. Visto isso, partiu-se para uma discussão

sobre a tragédia moderna em que se concluiu que ela é possível de ser feita nos dias de

hoje sem que sua essência seja perdida, como foi mostrado pelo estudo comparativo

das duas peças já citadas.

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CAPÍTULO I

PERSPECTIVAS HISTÓRICO-CRÍTICAS OU

O ANTIGO NUNCA FOI TÃO MODERNO

1. Breve história: a forma dramática através dos tempos

A tragédia grega representada em festivais cívico-religiosos teve origem em uma

forma pré-dramática chamada ditirambo ou hino córico. Após algumas inovações, sua

forma madura consistia de: um coro e seu “chefe”, o corifeu; um protagonista; dois

outros atores; e figurantes. O coro cantava e dançava mas, diferentemente do

ditirambo, mantinha relações deliberadas com os atores. Já o corifeu usava uma

modalidade entre a fala e o canto nos momentos em que passava do canto coral para o

diálogo com os atores. Os três atores falavam e dividiam entre si todas as partes faladas

(ou as “personagens individuais”) e, algumas vezes, um dos atores poderia usar uma

modalidade de fala entre o recitativo e o canto, interagindo com o coro.

Em seu desenvolvimento e continuidade, não se excluindo as transformações

posteriores que sofreu (como o aumento do número de atores e a eliminação total do

coro), a tragédia grega tornou-se a base de uma forma geral, praticada em ordens

sociais e condições práticas muito diversas, que está centrada no diálogo representado

entre indivíduos, tornado propriedade cultural geral, pois pertence mais à sociologia da

espécie humana que à sociologia de uma determinada sociedade num certo local e

época.

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Com relação ao teatro grego, as condições que propiciam o surgimento do

diálogo são precisas. Ele surgiu a partir da transformação do coro, que representava o

caráter coletivo, na passagem para a personagem individual. É o aparecimento da

segunda personagem que torna possíveis relações mais ou menos independentes entre

as personagens, o que foi intensificado com o surgimento do terceiro ator. Isso foi o

reflexo de mudanças sociais que se formalizavam na forma artística, conforme

Raymond Williams:

Pois o que é evidente dentro do teatro clássico grego é a aparição desse elemento [o diálogo] em relações controladas com outros elementos formais, e o surgimento de sua modalidade peculiar – fala composta e ensaiada – em relações controladas com outras modalidades. O momento desse surgimento é, pois, sociologicamente preciso. Foi a interação, e apenas sob esse aspecto, a transformação, de uma forma tradicional (o canto coral) com novos elementos formais que, em sua nova ênfase, incorporava relações sociais diferentes. (WILLIAMS, 1992, p. 150)

Mas o surgimento do terceiro ator não proporcionou o que depois seria óbvio: a

distribuição de papéis entre vários atores, de modo que cada um representasse uma

personagem diferente. Isso foi uma marca dos limites da individualização dessa forma,

que, no contexto grego, ainda se mostrava parcialmente coletiva. As relações entre as

personagens distintas e a personagem coletiva mudaram a articulação dessas figuras,

pois a forma se tornou dinâmica. E essa articulação estava ligada a outras formas de

discurso e com a história prática de uma sociedade que passava por transformações

importantes.

A forma grega antiga tinha também como característica as diferentes

modalidades de voz: em canto, em recitativo e em fala. Formas simples de música

instrumental estavam integradas ao recitativo e ao canto coral, que ainda integrava a

dança. Formas convencionais de movimento estavam integradas ao recitativo e à fala

de três formas: gestos, mudança de posição e posturas. Ainda havia o uso limitado de

cenários, de figurinos e máscaras. Por isso, essa forma dramática deve ser classificada

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de um modo mais amplo culturalmente, do que a maioria das formas dramáticas que a

seguiram.1

Historicamente, algumas funções dramáticas do coro grego foram substituídas

pelo novo elemento formal do príncipe e do criado confidente. Como a tragédia grega,

essa relação continha a discussão e o esclarecimento geral, mas não tinha a dimensão

social de um coletivo presente, noção que se perdera dentro de uma sociedade

aristocrática e cortesã. Em seu lugar havia, agora, a confissão de sentimentos privados,

na relação problemática entre a realidade privada e a possibilidade pública.

Em fins do século XVI, na Inglaterra renascentista, outras inovações formais

eram praticadas. Apresentando-se em teatros populares ao invés dos aristocráticos, o

teatro renascentista inglês significou um grande avanço, tanto no campo da

representação como no dos cenários. Com essa forma teatral, surgiu um novo tipo de

fala caracterizada por sua diversidade: lingüisticamente, ela era co-extensiva com o

âmbito total da sociedade representada. Isso significa que ela incluía tanto uma

linguagem mais tradicional, quanto as formas faladas e próprias do popular. Tal

diversidade está relacionada com uma situação social específica:

Em primeiro lugar, ela era, linguisticamente, co-extensiva com o âmbito total de sua sociedade. Incluía, em parte de seu âmbito, raciocínio muito abstrato ou formal, no vocabulário dos bem educados, assim como elementos de verso formal, em formas tradicionais e rigorosamente estruturadas. Além disso incluía, em relações diversas, mas também regulares como essas, a linguagem e as formas faladas comuns da guerra, política, negócios e profissões, bem como o amplo vocabulário e as formas faladas (inclusive as formas faladas “vulgares”) do discurso popular mais comum. (WILLIAMS, 1992, p. 154)

Quanto à ação, o teatro renascentista inglês era também co-extensivo com uma

diversidade de tipos de relações. Esses tipos iam desde o mais formalmente público ao

publicamente ativo, passando pela intriga e pela contra-intriga, até o familiar e o

1 Segundo Raymond Williams (1992), duas outras formas dramáticas podem se dizer herdeiras da tragédia grega por fazerem uso de elementos de sua forma: a ópera italiana e a tragédia neoclássica francesa, ambas do século XVII. A primeira selecionou o canto e o recitativo coral e solista, enquanto que a segunda selecionou a fala formal. É importante realçar que na tragédia neoclássica o coro foi substituído por expansão das relações interpessoais e o número das personagens individuais foi ampliado.

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particular, incluindo formas de fala “interior”, ou seja, as formas de processo

intelectual e emocional eram agora representadas, bem como esses processos em

confusão e colapso.

Mas as transformações sócio-formais foram mais profundas. A tragédia

shakespeariana, por exemplo, admitia como forma expressiva uma interação de grande

abertura entre ordem social e desintegração social numa ação franca e variada em que

questões sobre a natureza humana eram representadas de forma direta. Já na tragédia

jacobiana não havia mais essa interação. O que havia eram forças de desintegração e de

dissolução em luta, juntamente com a dramatização da dissolução em processo. Era a

“guerra de todos contra todos” (cf. WILLIAMS, op. cit.).

É importante ressaltar que na forma central do Renascimento inglês questões

públicas e privadas estavam integradas dramaticamente. As peças da época, como as de

Shakespeare, procuraram representar as crises pelas quais o sistema estava passando,

geradas pelas contradições entre o público e o privado:

Na lembrança da ordem, no desejo continuado e na evidente necessidade de ordem, nas contradições entre ordem e poder, e nas contradições mais profundas entre uma ordem tradicional ou um poder corrupto e as forças, agora intensamente experimentadas, da personalidade individual e de uma mobilidade mais geral: em todos esses elementos de uma crise total é que essa forma notável ganhou corpo. (WILLIAMS, 1992, p. 156)

Na forma que se seguiu, a dimensão pública positiva desaparece em nome de

uma crise que se tornara mais “privada”, ou seja, a dissolução e o horror lutavam,

agora, com eles mesmos e não mais com a ordem. O drama burguês, surgido no século

XVIII em oposição à tragédia clássica, foi o que se pode chamar de “porta-voz” da

burguesia revolucionária, como diz Hauser:

O drama burguês implicava, desde o início, a relativização e depreciação das virtudes heróicas e aristocráticas, e foi, em si mesmo, uma propaganda da moralidade burguesa e da pretensão da burguesia à igualdade de direitos. Toda a sua história foi determinada por suas origens na consciência de classe da burguesia. Não foi, por certo, a primeira e única forma teatral a ter sua origem num conflito social, mas foi o

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primeiro exemplo de um drama que fez desse conflito o seu próprio tema e que se colocou abertamente a serviço de uma luta de classes. (HAUSER, 1998, p. 580)

Para Lukács, o drama burguês é o drama moderno porque, agora, ele possuía

dimensões sociais. Esse desenvolvimento da forma dramática, ou esta ruptura com o

que se fazia antes foi, segundo Lukács, necessário neste momento em particular por

causa da situação social específica da burguesia, no que ele concorda com Hauser ao

dizer:

O drama burguês foi o primeiro a surgir do confronto de consciência de classe; o primeiro com a intenção de expressar os padrões de pensamento e sentimento, bem como as relações com outras classes, de uma classe lutando por poder e liberdade.2 (LUKÁCS, 1990, p. 425)

A principal diferença entre o drama burguês e o pré-burguês não está no fato de

que agora questões políticas e sociais recebiam um enfoque mais direto, mas sim, no

fato de que o conflito dramático se dá entre o herói e as instituições. O herói burguês

luta contra forças anônimas e seu ponto de vista é formulado como uma idéia abstrata,

uma denúncia social. Essa diferença foi a base de uma transformação decisiva no

teatro, pois agora cidadãos comuns da burguesia se tornaram os “protagonistas da ação

dramática séria e significativa, e mostrou-os como as vítimas de destinos trágicos e

representantes de elevados princípios morais” (HAUSER, 1998, p. 583). Isso nunca

havia ocorrido antes, no teatro mais antigo.

Peter Szondi discorda, em alguns pontos, de Hauser e Lukács. Para ele, não

basta a presença de personagens burgueses numa peça para que ela seja definida como

drama burguês, é preciso que a obra apresente um tema ou motivo especificamente

burguês para ser considerada como tal, ainda que o processo social não se reflita no

drama da burguesia de forma direta. Ele afirma:

[..] a ascensão da burguesia não encontra tão diretamente sua sedimentação, por exemplo, na entrada em cena de heróis burgueses que se rebelam contra a ordem social dominante,

2 “For bourgeois drama is the first to grow out of conscious class confrontation; the first with the set intention of expressing the patterns of thought and emotion, as well as the relations with other classes, of a class struggling for power and freedom.” (LUKÁCS, 1990, p. 425, tradução nossa)

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mas é antes mediada, por um lado, pela ideologia burguesa que Max Weber analisou e, por outro, pela modificação do conflito dramático e do efeito trágico, que é por ela determinado. (SZONDI, 2004, p. 83)

Discordando diretamente de Lukács, Szondi diz que não foi a partir da luta de

classes que o teatro burguês começou, mas, sim, com a abolição do que ele chama de

“cláusula dos estados”. De forma resumida, a “cláusula dos estados”, que remonta ao

século XVI, postula que os personagens trágicos devem ser reis, príncipes, generais,

enfim, pessoas pertencentes à nobreza. Portanto quando os personagens das tragédias

passaram a ser homens comuns, pertencentes à burguesia, é que se tem o início do

drama burguês. Mas ele ressalta que mais importante que ter personagens burgueses

agindo no palco, é a diferença de sentido que essa mudança opera e a diferença no

efeito que exerce sobre o público:

A história que o drama burguês narra deve ser um exemplo para a própria conduta na vida, isto é, um exemplo negativo. Ele deve nos precaver de tornar-nos culpados ou, se já o somos, ele deve nos curar. (SZONDI, 2004, p. 53)

Segundo Hauser, a elevação do burguês comum à protagonista de uma tragédia

se deu porque os representantes do drama burguês não viam um sentido dramatúrgico

no fato de o herói pertencer a uma classe social mais elevada que a do homem comum,

o que diminuiria o interesse do espectador, o qual só poderia ser despertado quando

ele visse no palco pessoas de sua mesma classe social. Nesse ponto, Hauser e Szondi

concordam. Com seu estudo sociológico, Hauser vai mais além dizendo que o meio

que os dramaturgos burgueses encontraram para compensar a queda da posição social

ocupada pelo herói na tragédia clássica foi aprofundar e enriquecer seu caráter, dando

ao drama uma grande carga psicológica e gerando problemas antes desconhecidos dos

teatrólogos.

Segundo Lukács, o que está em discussão aqui é a crescente complexidade que

determina o personagem dramático. Isso pode ser visto sob diferentes perspectivas.

Neste novo drama, as personagens são mais complicadas, as questões levantadas nas

peças estão mais intricadas e unidas umas com as outras e também com o mundo

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externo, para poder expressar esse inter-relacionamento entre o homem e o mundo ao

seu redor. Em contrapartida, o conceito do mundo externo está mais relativo no drama

burguês, uma vez que é ele que determina as ações humanas, que define o homem:

Por mais que as circunstâncias definam o homem, mais difícil este problema parece, e mais a atmosfera parece absorver tudo nela mesma. O homem, com contornos distintos, não mais existe; apenas ar, apenas a atmosfera. Tudo que a vida moderna tem introduzido como uma forma de enriquecer as percepções e emoções parece desaparecer na atmosfera, e a composição é o que sofre... 3(LUKÁCS, 1990, p. 428)

Essa influência da vida moderna sobre o homem, as mudanças nas relações

sociais e trabalhistas trazidas pelo capitalismo fez com que as relações humanas se

tornassem cada vez mais impessoais. Antes, no sistema feudal, havia uma relação de

dependência entre os homens que possuía o senso de unidade, o que foi racionalizado

pelo sistema burguês. Daí o homem ter desenvolvido uma visão da vida e do mundo

baseada em objetivos padrões, comuns a toda uma sociedade. Lukács chama isso de

“deslocamento” nas relações de liberdade e repressão, e formula essa transformação:

“previamente, a vida era individualista, agora os homens, ou melhor, suas convicções e

perspectivas na vida o são”4 (LUKÁCS, 1990, p. 432). No que se refere ao drama ele

diz que o drama renascentista era o dos grandes indivíduos, enquanto o burguês é o

drama do individualismo.

O maior tema do individualismo é a realização da personalidade que só pode ser

conseguida suprimindo-se as personalidades de outras pessoas. Isso gerou um novo

tratamento das relações humanas no drama, determinando o fim de personagens que

estavam apoiados em relações emotivas com outras personagens, como a figura do

servo e do confidente. Estava claro que os ideais humanos defendidos pelo drama

burguês eram incompatíveis com a concepção de tragédia clássica e do herói trágico, 3 “The more the circumstances define man, the more difficult this problem seems, and the more the very atmosphere appears to absorb all in itself. Man, distinct contours, no longer exists; only air, only the atmosphere. All that modern life has introduced by way of enriching the perceptions and emotions seem to vanish into the atmosphere, and the composition is what suffers…” (LUKÁCS, 1990, p. 428, tradução nossa) 4 “previously, life itself was individualistic, now men, or rather their convictions and their outlooks on life, are” (LUKÁCS, 1990, p. 432, tradução nossa)

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então, outros elementos também foram abolidos do drama como as tiragens

grandiloqüentes, consideradas falsas por Diderot, o estilo afetado da tragédia e o falso

caráter de classe, atacados por Lessing.

Descobria-se agora, pela primeira vez, que a verdade artística é valiosa como arma na luta social, que a reprodução fiel de fatos leva automaticamente à dissolução de preconceitos sociais e à abolição da injustiça, e que aqueles que se batem pela justiça não precisam temer a verdade em nenhuma de suas formas, numa palavra, que existe uma certa correspondência entre a idéia de verdade artística e a de justiça social. (HAUSER, 1998, p. 584)

Pode-se dizer que isso corresponde a uma antecipação da aliança formada entre

radicalismo e naturalismo no século XIX, cujas bases foram lançadas quando alguns

autores, como Diderot, formularam os princípios mais importantes do teatro

naturalista. Um exemplo disso é a idéia da “quarta parede” imaginária sugerida por ele,

segundo a qual as peças são representadas como se não houvesse público. Tal idéia

“marca o início do reinado da ilusão total no teatro – o afastamento do elemento

lúdico e o mascaramento da natureza fictícia da representação”. (HAUSER, 1998, p.

585)

Um outro princípio do teatro burguês que serviu de base para o naturalismo é a

idéia do homem como parte e função de seu meio, visto que o ambiente em que o

homem está inserido tem um papel ativo na formulação de seu destino. Com isso, foi

colocado em discussão o problema da culpa trágica, pois os representantes do drama

burguês introduziram no teatro o homem cuja culpa é o oposto do trágico, pois está

condicionada pelo meio. A doutrina sobre personagens dramáticos de Diderot ilustra

bem o quanto materialismo e naturalismo são condicionados por fatores sociais.

Segundo ele, a posição social de um personagem é mais importante que suas qualidades

individuais. Tal doutrina fundamenta-se na suposição de que é mais fácil o espectador

identificar-se com uma peça ou com um personagem quando vê sua própria classe

social representada no palco.

Agora, o drama estava ameaçado de perder sua simplicidade pela motivação

psicológica e racional que se tornaram características do drama burguês, o que poderia

Page 19: Percursos do Mito de Electra: Da Oréstia a Mourning Becomes Electra

19

se tornar um problema, uma vez que a ação e a encenação perderam sua nitidez e os

personagens se tornaram mais ricos e menos claros, dificultando o entendimento da

peça. Mas foi exatamente isso que se tornou a principal atração desse novo teatro. É

certo que a sociedade burguesa ofereceu à tragédia menos material do que as épocas

passadas, mas o público burguês preferia assistir a peças com “final feliz” e não as

“angustiantes” tragédias, pois era comum na época a associação de tragédia e tristeza.

Sendo a burguesia uma classe social formada por elementos variados, como

grupos que eram solidários com as camadas mais pobres e grupos que ora estavam a

favor das classes altas ora das classes baixas defendendo idéias contrárias, ela estava

fadada à dissolução, ou auto-destruição, levando junto consigo o teatro da época que

poderia ter sido uma arma eficaz para a divulgação dos ideais burgueses. Como aponta

Hauser:

Em resumo, estamos aqui diante de uma forma literária que, tendo começado por ser uma das mais eficazes armas da burguesia, acabou por converter-se no instrumento sumamente perigoso de sua auto-alienação e desmoralização. (HAUSER, 1998, p. 596)

Porém, não se pode dizer que as formas dramáticas eram apenas antecipações

ou reflexos de processos sociais gerais, pois as relações sociais concretas foram

desvendadas nas qualidades formais profundas e específicas do drama. A crise total que

atinge uma determinada sociedade é diferente do que ela é na ação social quando está

representada no teatro, e ainda deve-se considerar que quando ela é representada em

diferentes tipos de prática, não é mais a mesma ação, em virtude de mudanças e

rupturas ocorridas.5

Mas as questões sociais não foram realmente excluídas, foram substituídas por

novas relações sociais sob forma dramatizável, como na comédia de costumes, em que

se reconhece um mundo burguês, no qual o dinheiro e a propriedade constituíam o 5 Segundo Raymond Williams (1992), o drama heróico é um bom exemplo disso. Uma vez abstraídas e isoladas as atitudes de uma ordem social soberana, ele mostrou o conflito, ao mesmo tempo internalizado e externalizado, das ambições, desejos e limitações humanas, que não abalavam homens, mulheres e reinos por transcorrerem dentro dos limites de uma personagem. Os conflitos do novo individualismo e as forças sociais em luta reprimidas pela noção voluntária de soberania absoluta foram removidos e excluídos.

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real, mais do que o poder político, contrastando com as preocupações sociais. Por

haver uma integração entre o público e o material dramático preso à mesma vida

contemporânea, essa forma mediou e criou um conjunto de relações sociais específicas.

É o que encontramos em Szondi, quando ele fala que a forma dramática é “conteúdo

precipitado”. Tais relações aparecem formalizadas, por exemplo, no meio verbal. Isso

porque a generalização de uma forma quase-coloquial (porque artificial) de fala

dramática estava avançando e também porque a tendência a usar material

contemporâneo e local como tema para as peças estava em processo e viria a se tornar

a ênfase significativa e diferenciadora do teatro de uma nova época.

Em meados do século XVIII, as características do teatro burguês já estavam

sendo definidas, bem como os fatores que influenciaram uma transição do drama: o

primeiro foi a utilização de material contemporâneo, o que já leva ao segundo fator, o

uso de material nativo, ou seja, a congruência entre a época, o lugar e o ambiente da

ação dramática e da representação teatral se tornara possível; o terceiro fator foi a

generalização da fala dramática, que passou a ser coloquial (em prosa, não em verso); o

quarto fator foi uma extensão e abrangência sociais, ou seja, todas as vidas

independentemente da classe social, podiam se tornar material do teatro; e o quinto

fator foi um novo espírito secular , que permitiu que se retirasse do teatro (ação

dramática) toda e qualquer intervenção sobrenatural para que se pudesse atingir um

comportamento humano provável. Todos esses fatores serviram de base para as

convenções do teatro moderno, como mostra Raymond Williams (1992).

Segundo Peter Szondi, o drama burguês se opõe ao drama moderno que, para

ele, começa em Ibsen, com suas tendências filosóficas e sociais, e vai até Brecht, para

quem o leitor deve estar consciente das iniqüidades do mundo atual. Ou seja, o drama

moderno compreende o período da passagem das relações de natureza intersubjetiva

para aquelas marcadamente intrasubjetivas, sublinhando, assim, a chamada “crise” da

forma do drama. Em Teoria do drama moderno, este autor no ensina que o drama da

época moderna surgiu no Renascimento, mostrando a força do homem que acabava de

sair do mundo medieval, sua “audácia de construir, partindo unicamente da reprodução

das relações intersubjetivas, a realidade da obra na qual quis se determinar e espelhar”

(SZONDI, 2001, p. 29). Esse homem encontrava nas relações intersubjetivas o

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21

essencial para existir e alcançava sua realização dramática no ato de decisão, pois ao

decidir-se pelo mundo da comunidade estava manifestando seu interior, que se tornava

presença dramática. Assim, a comunidade se relacionava com ele e a realização

dramática era atingida.

As relações intersubjetivas tinham como meio de expressão lingüística o

diálogo. Com a supressão do prólogo, do coro e do epílogo, o Renascimento presencia

o domínio absoluto do diálogo no drama, que se torna apenas a representação dessas

relações. Mas a fala dramática não deve ser entendida como expressão do autor, pois

ele está ausente no drama, instituindo apenas a conversação. Ela também não é dirigida

ao público, que deve assistir à peça calado, de forma passiva, o que faz com que ele seja

transportado para o mundo dramático, como diz Szondi: “A relação espectador-drama

conhece somente a separação e a identidade perfeitas, mas não a invasão do drama

pelo espectador ou a interpelação do espectador pelo drama.” (SZONDI, 2001, p.31)

Um elemento que contribui para esse distanciamento entre o público e o drama

é o tipo de palco criado para o drama renascentista e classicista, o “palco mágico”

assim chamado porque não tem uma passagem para a platéia e só se torna visível no

início do espetáculo, parecendo ser retomado pela peça ao final, quando cai a cortina,

como se fosse propriedade dela. Já a relação ator-papel é contrária à relação

espectador-drama, pois não visa o distanciamento e, sim, a união entre os dois para a

construção do homem dramático.

Um outro aspecto do drama dessa época é o fato dele ser primário, ou seja, ele

se representa a si mesmo. Dessa forma, sua ação e sua fala são “originárias”,

acontecem no presente, pois esta é a época do drama. Isso não quer dizer que ele seja

estático, mas que tem seu próprio tempo:

[...] o presente passa e se torna passado, mas enquanto tal já não está mais presente em cena. Ele passa produzindo uma mudança, nascendo um novo presente de sua antítese. O decurso temporal do drama é uma seqüência de presentes absolutos. (SZONDI, 2001, p. 32)

Por esse motivo, faz-se necessário que haja uma continuação temporal entre as

cenas, uma vez que cada uma possui seu passado e também seu futuro fora da

Page 22: Percursos do Mito de Electra: Da Oréstia a Mourning Becomes Electra

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representação. Da mesma forma que há essa exigência pela unidade de tempo, também

há pela unidade de lugar. As mudanças de cena freqüentes devem ser evitadas em

nome da cena absoluta ou dramática. Assim se evita a intervenção do eu-épico na peça.

É desse contexto do drama clássico que tem origem o drama moderno, o drama

do final do século XIX. Como dito antes, Szondi considera que ele tem início com

Ibsen (1928- 1906), que se diferencia dos outros autores do período pelo modo como

constrói suas peças, fazendo uso da técnica analítica, que consiste em expor a matéria

dramática no próprio desenvolvimento da peça para que o mais importante se torne a

análise dos acontecimentos derivados da matéria exposta. Em outras palavras, a

matéria dramática seria uma ação já ocorrida que serviria de base para o desenrrolar da

peça, retirando-se o efeito epicizante para se atingir o trágico. Pois algo que já

aconteceu é muito mais atemorizante (por ser imutável) do que algo que pode vir a

acontecer e, portanto, evitável. Um exemplo disso é o Édipo Rei, de Sófocles.

Mas é justamente a diferença entre a estrutura dramática de Ibsen e a de

Sófocles que está o problema formal que provoca a crise do drama. Diferentemente de

Sófocles, Ibsen usa o presente como um pretexto para evocar o passado, que passa a

ser o próprio tema da peça, escapando-se do presente dramático porque o tempo não

pode ser presentificado, só um fragmento dele pode. Uma outra diferença entre os dois

dramaturgos é a verdade, que em Sófocles é objetiva e em Ibsen é a da interioridade.

Sendo objetiva, a verdade faz parte do mundo; sendo interiorizada, sobrevive a

modificações externas, é a base para os motivos das decisões manifestadas e oculta o

efeito traumático das decisões, vive no interior dos seres humanos solitários e alienados

uns dos outros, porém surge das relações intersubjetivas. Sendo assim, sua

representação dramática direta é impossível e o uso da técnica analítica se faz essencial

para que ela seja levada ao palco. Mas, como afirma Szondi:

Mesmo assim ela permanece em última instância estranha a ele. Por mais que esteja atada a uma ação presente (no duplo sentido do termo), ela continua exilada no passado e na interioridade. Esse é o problema da forma dramática em Ibsen. (SZONDI. 2001, p. 44)

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Por outro lado, Ibsen conseguiu unir o presente e o passado que não pode ser

presentificado com maestria na maioria de suas peças ao fazer uso da funcionalização

dramática, que está voltada à elaboração da estrutura causal e final de uma ação única.

Mas, ao decidir revelar as verdades ocultas das pessoas por meio das próprias

personagens em suas peças, Ibsen as destruiu. Como diz Szondi: “em épocas hostis ao

drama, o dramaturgo torna-se o assassino de suas próprias criaturas” (SZONDI, 2001,

p. 46)

Essa interiorização, que faz com que o elemento intersubjetivo seja substituído

pelo intrasubjetivo, também foi observada por Szondi em outros autores do mesmo

período, como Tchéckov e suas reflexões monológicas, Strindberg e as transformações

internas que suprimem o intersubjetivo, Maeterlinck e a dispensa da ação, e

Hauptmann com a dramática social suprimindo a singularidade do presente, que se

torna também passado e futuro.

Assim, o drama do final do século XIX nega a atualidade intersubjetiva. E o que

determina suas características é a oposição sujeito-objeto. Nessa relação de oposição, o

caráter absoluto dos três conceitos básicos do drama são transformados e relativizados,

causando uma mudança nas características do próprio drama. O fato é relativizado em

Hauptmann pelas condições objetivas que ele deve representar; o presente é

relativizado em Ibsen pelo passado que deve ser revelado; e o intersubjetivo em

Strindberg é relativizado pela perspectiva subjetiva que ele toma. Dessa forma, o fato

se torna acessório, o presente se torna passado e o intersubjetivo dá lugar ao

intrasubjetivo.

A essa transformação formal de sujeito e objeto se contrapõe uma separação

estática no conteúdo, o que gera uma contradição interna no drama moderno. E essa

oposição é representada pelas situações épicas básicas que aparecem como cenas

dramáticas, como a introdução de uma outra personagem na peça que tem a função de

um narrador épico.

O período de transição entre o drama do século XIX e o do século XX não é

determinado apenas pelo afastamento e conseqüente contradição da forma e do

conteúdo provocados pela oposição sujeito-objeto. Para superar essa contradição faz-

Page 24: Percursos do Mito de Electra: Da Oréstia a Mourning Becomes Electra

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se necessário recorrer aos elementos formais que estavam encobertos na forma

problemática antiga. E então, como diz Szondi:

[...] a mudança para o estilo em si não-contraditório se efetua à medida em que os conteúdos, desempenhando uma função formal, precipitam-se completamente em forma e, com isso, explodem a forma antiga. (SZONDI, 2001, p. 95)

Dessa mudança surgiram o que Szondi chama de “experimentos formais” que

foram vistos como futilidades, como uma maneira de escandalizar o burguês ou ainda

como incapacidade pessoal, mas cuja necessidade é logo percebida quando se pensa na

mudança estilística, porque interpretados em si mesmos. Além dessas novas formas

que tentaram “solucionar” a “crise”, fazendo com que a forma resulte de um novo

conteúdo, existiram correntes que apenas tentaram “salvá-la” de diferentes maneiras.

Uma dessas correntes foi a chamada peça de conversação, que surgiu na

segunda metade do século XIX, predominando na Europa. Ela tenta “salvar” o drama

recorrendo ao diálogo porque se acreditava que o bom dramaturgo seria aquele que

escrevesse um bom diálogo. Mas o diálogo que se utiliza aqui se torna apenas

conversação, uma vez que é alienado dos sujeitos e se apresenta como autônomo,

diferentemente do diálogo no drama clássico que é o espaço coletivo onde a

interioridade das personagens se objetiva.

Os diálogos das peças de conversação giram em torno de temas do dia-a-dia,

como a industrialização, o socialismo, o voto feminino e o divórcio. Dessa maneira,

elas passam a ter a aparência de modernas ao mesmo tempo em que adquirem um

caráter exemplarmente dramático que representava mais a aparência que a realidade,

em que o diálogo é apenas conversação. E visto que a conversação não tem uma

origem subjetiva e uma meta-objetiva, ela nem define os homens e nem passa para a

ação.

A ação de que a peça de conversação necessita para se apresentar como well-made-play lhe é emprestada de fora. Ela incide sem motivação no drama, com a forma de acontecimentos inesperados – e seu caráter absoluto é destruído também por isso. (SZONDI, 2001, p. 107)

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Uma outra tentativa de salvamento foi a peça de um só ato que surgiu no final

do século XIX escrita por dramaturgos, como Strindberg, Zola, Maeterlinck, O’Neill,

entre outros, que já sentiam que a forma do drama havia se tornado problemática. Esse

tipo de peça não é a miniatura de uma peça maior, como se pode pensar, mas uma

parte do drama que possui sua totalidade. Ela tem como modelo a cena dramática, ou

seja, ela tem em comum com o drama o ponto de partida e a situação, mas não a ação.

A tensão está atrelada à situação, uma vez que não é mais extraída do fato

intersubjetivo, daí então a necessidade de se chegar a uma situação limite, anterior à

catástrofe. Já a catástrofe se dirige ao homem e à sua ruína, ao espaço vazio e sem ação

em que ele foi condenado a viver até atingir essa ruína. Por isso, a peça de um só ato é

tida como o drama do homem sem liberdade.

Este confinamento, ao mesmo tempo em que foi uma tentativa de salvamento

do drama, foi também uma forma de se evitar o movimento em direção ao épico, no

qual muitos dramaturgos estavam tentando buscar respostas para sair da “crise” do

drama do século XIX. Numa situação de confinamento, “os homens isolados, aos

quais corresponderia formalmente o silêncio ou o monólogo, são forçados por fatores

externos a voltar ao dialogismo da relação intersubjetiva” (SZONDI, 2001, p. 113)

Nesse confinamento, os homens não têm o espaço que precisam para ficar

isolados em seus monólogos ou em silêncio, daí que, sem o espaço ideal, o discurso de

um homem fere o outro, forçando-o a responder, quebrando-se o confinamento.

Então, o estilo dramático que estava ameaçado de ser destruído pela falta de diálogo é

“salvo” quando o monólogo se torna impossível numa situação de confinamento e

transforma-se em diálogo. Porém, deve-se levar em consideração a artificialidade

característica das peças de confinamento, pois os meios utilizados para tornar possível

tal situação são tantos que o espaço temático acaba sofrendo danos. Assim, para que se

atinja o objetivo de “salvar” o drama, é preciso que a artificialidade seja superada.

Segundo Szondi, esse salvamento parece ser possível com o existencialismo, que

nada mais é do que a tentativa de um novo classicismo, que deveria superar o

naturalismo ao cortar o laço que une o homem e o meio, aumentando a alienação. Sem

estar mais unido ao meio, o homem está agora livre, e é no restabelecimento dessa

liberdade que o existencialismo se aproxima do classicismo. E da mesma forma que a

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corrente anterior, o dramaturgo existencialista tenta salvar o drama da epicização

fazendo uso de situações de confinamento.

Mas por ter uma temática diferente, o existencialismo retira o caráter artificial

das situações de confinamento. Ao ser transposto para essa situação, o homem sente a

estranheza essencial de toda a situação que se transforma em estranheza acidental. É

esta a temática existencialista, e é por isso que o homem nunca é mostrado em seu

ambiente natural, sendo transposto para um ambiente novo. Mas o problema do

existencialismo foi pôr em questão o princípio formal do drama, a relação

intersubjetiva, quando se inverteu a idéia de que a vida social é problemática dizendo

que as relações humanas é que o são.

Uma outra tentativa de solução para a crise do drama apontada por Szondi seria

o teatro épico, que tem em Brecht seu maior representante. Este dramaturgo enumera

as transformações que o teatro dramático sofreu em sua mudança para épico: o teatro

épico narra um processo, não o incorpora; faz do espectador um observador ao

mesmo tempo em que desperta sua atividade e força-o a tomar decisões, transmite-lhe

conhecimentos ao invés de vivências e o contrapõe à ação; o teatro trabalha agora com

argumentos e não mais com sugestão; as sensações são estimuladas para chegar às

descobertas; o homem é objeto de investigação, mutável e modificador; há uma

expectativa sobre o andamento da peça, em que os acontecimentos não têm mais um

curso linear; o mundo é visto como o que vem a ser e o homem como o que tem de

ser; são mostrados os motivos do homem e não seus impulsos; é um teatro no qual o

ser social determina o pensamento e não o oposto.

Essas modificações têm em comum o fato de substituírem a passagem recíproca de sujeito e objeto, essencialmente dramática, pela contraposição desses termos, que é essencialmente épica. Desse modo, na arte a objetividade científica torna-se objetividade épica e penetra todas as camadas de uma peça teatral, sua estrutura e linguagem, bem como sua encenação. (SZONDI, 2001, p. 135)

Ao transpor essa teoria do teatro épico para a prática, Brecht o faz com uma

riqueza muito grande de idéias, que têm a função de isolar e distanciar os elementos do

drama tradicional convertendo-os em objetos épico-cênicos. Como exemplo disso,

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tem-se o distanciamento do espetáculo como um todo, com o uso do prólogo, o

prelúdio ou a projeção de títulos; as personagens podem se distanciar de si mesmas ao

utilizarem a terceira pessoa para falarem de si; o ator distancia-se de seu papel; o palco

limita-se a retratar o mundo; o cenário é agora um elemento autônomo que não mais

simula uma localidade real; há ainda o distanciamento em relação à ação, que não

precisa ser linear, conseguido através de recursos como a projeção de legendas e

canções numa tela colocada no palco, ou colocando personagens no meio do público

que interrompem a ação e a comentam.

É por meio desses distanciamentos que a oposição sujeito-objeto, que está na

origem do teatro épico, converte-se em princípio universal de sua forma. E a relação

intersubjetiva é deslocada, como se houvesse uma passagem da falta de

problematização da forma para a problematização do conteúdo.

2. A questão da tragédia moderna

Diferentemente de Peter Szondi, que discute as tentativas de

salvamento/solução do drama, Raymond Williams, em Tragédia moderna (2002), debate

a literatura trágica na modernidade, expondo idéias e experiências trágicas cobrindo o

mesmo período de Szondi – de Ibsen a Brecht – mas apresentando uma tipologia da

tragédia moderna a partir destes mesmos autores, começando com a definição da

tragédia liberal, que tem em seu centro uma situação isolada:

Um homem no ponto culminante de seus poderes e no limite de suas forças, a um só tempo aspirando e sendo derrotado, liberando energias e sendo por elas mesmo destruído. A estrutura é liberal na ênfase sobre a individualidade que se excede, e trágica no reconhecimento final da derrota ou dos limites que se impõem à vitória. (WILLIAMS, 2002, p. 119)

A tragédia tem sido, ao longo dos séculos, o conflito entre um indivíduo e as

forças que o destroem, no centro do qual existe uma tensão entre o impulso desse

indivíduo e a resistência absoluta a essas forças destrutivas. Essa tensão foi

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representada de várias formas até chegar à transformação do conflito trágico em vítima

trágica. Sobre esse novo sentido de tragédia, diz Williams:

Esse sentimento estende-se até uma posição comum: a nova consciência trágica de todos aqueles que, horrorizados com o presente, estão, por essa razão, firmemente comprometidos com um futuro diferente: com a luta contra o sofrimento aprendida no sofrimento: uma exposição total que é também um envolvimento total. Sob o peso do fracasso, em uma tragédia que poderia ter sido evitada mas que não o foi, essa estrutura de sentimento luta agora para se formar. Contra o medo de uma morte geral, e contra a perda de conexões, um sentido de vida é afirmado – aprendido mais intimamente no sofrimento do que jamais o foi na alegria – uma vez que as conexões tenham sido feitas. (WILLIAMS, 2002, p. 263)

Tal processo teve início com a tragédia elizabetana que mostrava “um homem

individualizado, com suas próprias aspirações, com sua natureza própria, inserido

numa ação que acaba por levá-lo à tragédia.” (WILLIAMS, 2002, p. 120). A mais

importante contribuição desse período foi a permanência de uma ordem pública no

centro da qual acontece a tragédia pessoal.

Com a tragédia burguesa tem-se a mudança de status do herói, que deixa de ser o

representante de uma classe elevada para se tornar o representante da classe burguesa.

Com isso, a piedade se transforma em compaixão, o que indica um crescimento do

humanitarismo. Mas, apesar das tentativas de luta da burguesia contra a ordem social,

esse tipo de tragédia não pode ser considerado como sendo suficientemente social

porque não podia transpor as reais contradições de seu tempo. Embora os limites

sejam conhecidos, eles ainda não foram nomeados, e é só quando isso acontece que se

tem o herói trágico como um rebelde em luta contra uma sociedade falsa. Isso só

acontece com a tragédia liberal, mas antes de se chegar a ela é importante que sejam

apresentadas as contribuições da tragédia romântica.

Segundo Williams, nessa tragédia ocorre uma renovação do individualismo, os

desejos do homem voltam a ser intensos; e a sociedade é vista como convenção, como

inimiga do desejo que é absoluto, mas se insere num contexto em que o homem foge

de si mesmo, pois é culpado do crime de ser ele mesmo. Desse contexto surgiu a figura

do libertador individual, um homem que, atuando sozinho, podia mudar os limites

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humanos e o mundo em que vivia. Recusando o papel de vítima, esse homem

transformou-se num novo tipo de herói cujo heroísmo residia na aspiração em alcançar

os limites. A tragédia liberal criou uma nova estrutura de sentimento e os maiores

representantes dela, segundo Williams, são Ibsen, referido aqui anteriormente, e Arthur

Miller, cujas tragédias foram uma tardia revitalização da tragédia liberal.

Um outro tipo de tragédia, chamada por Williams de tragédia privada, tem

como característica tratar do homem cujos desejos mais profundos são frustrados por

outros homens e pela sociedade. O que a torna diferente é que esses desejos incluem

destruição e autodestruição.

Dá-se, àquilo que é chamado desejo de morte, a condição de um instinto geral, e o que deriva desse desejo, ou seja, destruição e agressão, é visto como essencialmente normal. O processo da vida é então uma luta contínua e um contínuo ajuste das poderosas energias que se voltam para a satisfação ou para a morte. (WILLIAMS, 2002, p. 143)

No que concerne à satisfação, sabe-se que ela assume uma dimensão

temporária, independentemente de sua intensidade, envolvendo a subjugação ou a

derrota de outros indivíduos. Já o desejo de morte pode ser menos intenso que a

satisfação, mas uma vez alcançado é permanente. Na tragédia privada, vida e morte

têm uma avaliação que foge aos esquemas tradicionais.

A tempestade que acomete a vida não é necessariamente desencadeada por qualquer ação pessoal; ela começa quando nascemos, e o nosso abandono a ela é absoluto. A morte, por oposição, é uma espécie de realização, capaz de trazer, comparativamente, ordem e paz. (WILLIAMS, 2002, p. 144)

De acordo com Williams, a obra de August Strindberg é a melhor representação

desse tipo de tragédia. Em seu mundo, as relações primárias são valorizadas e o fator

da mácula é tido como natural e é menor comparando-se à associação entre amor e

destruição, também tida como natural em todos os relacionamentos. Parte-se do

pressuposto de que homens e mulheres tentam se destruir no ato de amar, e a vida

gerada desse ato é culpada por não ser desejada não apenas por ser quem é, mas por

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não ter um lugar definitivo para ela. Assim, a criação da vida e sua condição são

trágicas.

A influência de Strindberg pode ser notada, principalmente, no drama norte-

americano de Eugene O’Neill a Tennessee Williams. O próprio O’Neill assume que foi

lendo Strindberg que soube o que seria o drama moderno e que o que existe de mais

duradouro em sua obra veio desse primeiro impulso. Todavia, O’Neill criou seu

próprio padrão dentro do drama moderno mostrando a tragédia de pessoas que, em

seu isolamento, destroem-se umas às outras porque seus relacionamentos particulares

estão errados e também porque a vida está contra elas. E, para além dessa luta,

encontramos o desejo de morte. Diferentemente de Strindberg, O’Neill identificou

com maior clareza a família como a entidade destrutiva, especialmente em Mourning

Becomes Electra (1931) e Long Day’s Journey Into Night (1941).

A próxima fase da tragédia moderna está ligada a uma crise profunda da

literatura moderna que diz respeito a uma separação da experiência em social e pessoal.

Tendo sido a tragédia moldada por essa divisão, surgiram dois tipos dela: a tragédia

social, mostrando homens arruinados pelo poder e pela fome, que vivem em uma

civilização destruída ou que se destrói a si mesma; e a tragédia pessoal, com homens e

mulheres sendo destruídos nos seus relacionamentos mais íntimos e, por outro lado,

com o indivíduo que conhece seu destino, para quem a morte e um isolamento

espiritual são formas alternativas de sofrimento e heroísmo.

Então é necessário que se escolha entre um dos tipos, embora as conexões entre

eles sejam visíveis, pois quando se dá forma ao mundo imaginário uma das duas

realidades passa a ser dominante.

Se, por um lado, a realidade é fundamentalmente pessoal, então as crises da civilização são análogas a um desajuste ou desastre psíquico ou espiritual. Se a realidade, por outro lado, é essencialmente social, então os relacionamentos frustrados, a solidão destrutiva, a perda de razões para viver são sintomas ou reflexos de uma sociedade em desintegração ou decadente. As ideologias, em ambos os lados, põem-se sutilmente em ação. As explicações dos outros são meramente uma falsa consciência ou racionalização; a verdade substancial está aqui, ou aqui. (WILLIAMS, 2002, p.162)

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Para Williams, dentre as obras literárias que possibilitam um estudo das etapas

desse longo processo de divisão, as duas mais importantes são Anna Karênina (1875-

1877), de Tolstoi, e Mulheres apaixonadas (1921), de Lawrence. Em ambos os romances

têm-se um relacionamento que termina de forma trágica, com mortes que adquirem

significação a partir da ação como um todo. E a forma do relacionamento trágico é

definida pela forma de outros relacionamentos que funcionam de um modo diferente,

ou seja, é através deles que se confere ao relacionamento trágico um contexto. Mas

também é impossível lê-los sem sentir a presença de questionamentos sociais, tais

como: modos de vida severamente contrastados; a natureza do trabalho e sua relação

com o modo de vida do homem; e aspectos referentes à natureza de uma civilização.

Um outro tipo de tragédia tem início quando o ritmo do sacrifício na sua forma

original se perde, quando os heróis que tocam os espectadores/ leitores são vítimas de

fato e são vistos assim, quando o vínculo emocional se dá com o homem que morre e

não mais com a ação que o levou a isso. Essa idéia de sacrifício pode ser vista nas

obras de Eliot, Crime na catedral (1935) e The cocktail party (1949), e de Pasternak, Doutor

Jivago (1956). Mas, segundo Williams, deve-se estar atento às variações e à ambivalência

desse ritmo:

Temos de reconhecer, nessas ações, os modos sutis pelos quais o ritmo do sacrifício é sempre dependente do contexto, e que tipo de contexto seria esse numa obra literária que é também uma obra de nossa própria época. Temos de reconhecer os movimentos em que o herói se torna vítima e em que tanto o herói quanto a vítima podem ser vistos um no lugar do outro. Temos de reconhecer os processos de um destino escolhido ou imposto, não só no nível do enunciado, mas também no da ação como um todo. (WILLIAMS, 2002, p. 208-209)

Temos ainda de reconhecer o processo de transformação na sua elaboração e

reação, pelo qual renovação e culpa trocam de lugar ou se embaralham, e por meio do

qual uma morte é vista como uma derrota ou uma vitória, uma realização ou um

simples colapso. Em 1945, Albert Camus afirmou que uma grande forma moderna do

trágico se fazia necessária e estava para nascer. Mas já se foi dito que a tragédia não é

possível no século XX porque as idéias filosóficas do período não são trágicas. Porém,

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segundo Williams, os três sistemas de pensamento característicos do período, a saber o

marxismo, o freudismo e o existencialismo, são trágicos sim, pois:

O homem pode atingir uma vida plena somente após violento conflito; ele é essencialmente coibido e, na sua realidade dividida, hostil a si mesmo enquanto vive em sociedade; está lacerado por contradições intoleráveis numa condição na qual impera um absurdo essencial. (WILLIAMS, 2002, p. 245)

Assim, parece lógico que dessas proposições de suas associações por tantas

mentes tenha surgido tanta tragédia. O estado mais avançado que se poderia alcançar é

o humanismo trágico de Camus e o compromisso trágico de Sartre. Mas será que esse é

mesmo o ponto máximo a que se pode chegar? É essa a última palavra acerca do

sofrimento geral?

Segundo Raymond Williams, o ponto máximo parece não ser esse. De acordo

com ele, Eugene O’Neill escreveu, decididamente, tragédias do homem isolado, para

quem a vida fica sem sentido externamente e cuja luta baseia-se num sentimento de

dominar a vida, dominar a ele mesmo. As pessoas, isoladas, destroem-se umas às

outras porque seus relacionamentos particulares estão errados e também porque a vida

está contra elas. Nessa luta, reside o desejo de morte. Além disso, O’Neill identificou a

família como entidade destrutiva mais claramente que Strindberg, por exemplo. Mas

seus dramas familiares são, na verdade, dramas isolados, como se pode perceber na

trilogia Mourning becomes Electra, que será estudada mais à frente.

O que se está propondo não é, fundamentalmente, um conjunto de relacionamentos destrutivos, mas um modelo de destino que não depende de qualquer crença exterior ao homem. A vida em si mesma é destino, nesse padrão fundamental que é, mais uma vez, a família intrinsecamente auto-destrutiva. (WILLIAMS, 2002, p. 158)

A esse padrão fatal são conferidas particularidades, como a Guerra Civil norte-

americana, mas são falsas particularidades. O que realmente importa é o padrão de

fatalidade imposto que confere um sentido de inevitabilidade às ações das personagens.

Por isso pode-se falar de trágico em O’Neill, assunto a que retornaremos.

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3. Eugene O’Neill e o cenário norte-americano

O declínio do teatro no século XIX não foi um fenômeno que ocorreu apenas

nos Estados Unidos. Esse foi o século da arte feita para a massa e, acima de tudo, foi

um século em que o romance predominou. O teatro norte-americano estava

desconectado com as idéias do Romantismo, sua ênfase no indivíduo e na vida

burguesa, pois, nos Estados Unidos do século XIX, predominava o mito da mobilidade

social, do indivíduo como uma fôrma plástica que poderia ser moldada facilmente nos

contornos do homem de negócios bem sucedido, do político em ascensão ou do herói

nacional. Os atores representavam justamente esses tipos sociais, personagens com os

quais o público se identificava porque representavam o que ele gostaria de ser. O teatro

tinha se estabelecido como um espelho do cenário nacional.

Em 1912, Winthrop Ames, herdeiro de um magnata das estradas de ferro,

recém chegado da Europa onde fora estudar e repleto de influências teatrais européias,

construiu um teatro chamado Little Theatre, dando início a um movimento de reação

contra o comercialismo que caracterizava o teatro da época e, também, a possibilidade

de se criar, a partir das experiências bem sucedidas de teatro moderno europeu, o

próprio teatro norte-americano, digno desse nome, que previa: casas pequenas e

produções mais baratas, pois eram contra o teatro comercial que se fazia; montagem de

peças de dramaturgos modernos como Bernard Shaw, Ibsen e Tchekov, que não eram

encenadas em outros teatros; criar companhias de repertório com elencos fixos; e a

montagem de peças de dramaturgos locais, segundo aponta a professora Iná Camargo

Costa em Panorama do Rio Vermelho (2001).

Os Washington Square Players, criado em 1914, mais tarde Theatre Guild

(1919), e os Provincetown Players, criado em 1915, foram os grupos teatrais que mais

se destacaram dentro do movimento dos Little Theatres. Foi do primeiro grupo a

montagem da primeira peça expressionista da dramaturgia norte-americana, The Adding

Machine (1923), de Elmer Rice. Já o segundo tem, entre seus maiores feitos, a produção

das primeiras peças de Eugene O’Neill, entre elas Beyond the Horizon, produzida na

Broadway em 1919, colocando O’Neill e o teatro norte-americano no cenário mundial.

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As realizações que o Provincetown Players conseguiu foram consideráveis, não

se pode negar: em oito temporadas, que consistiram em dois programas de verão e seis

de inverno, foram produzidas noventa e três peças de quarenta e sete escritores norte-

americanos. O’Neill foi responsável por dezesseis dessas peças. Além disso, foram eles

que estabeleceram o teatro como um foco sério da atividade artística nos Estados

Unidos; sua atuação conjunta e a ênfase na importância do trabalho em grupo,

integrando todos os elementos de performance, estabelecerem um modelo copiado por

outros grupos. Juntamente com os Washington Square Players criaram as bases do

teatro norte-americano moderno, expondo questões importantes como: as teorias

sobre teatro moderno e de vanguarda; a tragédia enquanto gênero no teatro moderno;

e a atuação do diretor e do cenógrafo no teatro, principalmente no que diz respeito à

relação desses profissionais da cena com o texto dramatúrgico. Essas questões até hoje

se fazem pertinentes.

Os caminhos de dramaturgos como O’Neill e Rice estão ligados à trajetória dos

trabalhadores europeus que imigraram para os EUA em fins do século XIX e que já

conheciam e representavam, em seus círculos dramáticos, peças de Ibsen, Hauptmann

e Gorky, por exemplo. Esses fatos não vêm à tona por questões políticas, pois um

programa do governo conhecido como Red Scare, instaurado durante a primeira

guerra, foi “a mais extensa, intensa e brutal perseguição pública e privada, da história

americana, ao movimento operário” (COSTA, 2001, p. 33), que destruiu todos os

registros relativos às atividades desse grupo no período entre 1900-1920. Por causa

dessa repressão, a história teatral dos trabalhadores norte-americanos só começa

efetivamente a partir de 1920, com seu apogeu nos anos 1930.

A crise financeira de 1929 acelerou a falência da Broadway e dos Little Theatres,

abrindo os olhos de algumas pessoas do ramo para a necessidade de um novo teatro

que dramatizasse os grandes problemas sociais da época. Assim, em 1930, o teatro

amador ganhou um novo impulso com a politização generalizada e o florescimento do

agitprop (estética de inspiração soviética). Durante esse período, surgiram vários grupos

que representavam temáticas sociais e lutavam contra o fascismo, o racismo e o Estado

burguês.

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Em sua luta, esses grupos conseguiram grandes avanços na história do teatro

norte-americano, como a criação do National Committee Against Censorship of the

Theatre Arts (Comitê Nacional contra a Censura nas Artes Teatrais). Esse comitê foi

criado a partir de um episódio conhecido como “Batalha de Washington”, quando

jornais fascistas fizeram uma campanha contra a apresentação da peça Waiting for Lefty,

de Clifford Odets, produzida pelo Theatre Union, em 1935, em Washington. A reação

veio por meio dos trabalhadores apoiados por um outro grupo chamado New Theatre,

e a peça foi apresentada.

O fim desses grupos teatrais “de esquerda” está ligado à criação do Federal

Theatre Project pelo governo Roosevelt. Esse projeto visava criar trabalhos para os

artistas e técnicos que ficaram desempregados após a crise de 1929 em âmbito

nacional, cobrindo todos os setores das artes. Mas contra ele estavam congressistas da

facção anti-Roosevelt, burocratas que administravam as verbas do projeto, a imprensa,

veteranos do teatro profissional que se sentiam ameaçados e produtores da Broadway.

Com seu fim em 1939, a maior parte dos grupos da época que aderiram a ele foram

dissolvidos.

Eugene O’Neill teve uma dupla herança: de seu pai, James O’Neill – ator

famoso por deter os direitos da peça O Conde de Monte Cristo e por ter interpretado o

papel principal da peça por duas décadas – , ele herdou as idéias do teatro do século

XIX – notadamente, aquelas ligadas ao melodrama – que primava pelo significado

central do acontecimento; e da tradição naturalista ele herdou idéias sobre como o

meio-ambiente determina ações e caráter e a tendência de ver o cenário como uma

imagem concreta e mecanismo central do destino. Mas sua tentativa de escrever

diálogos com linguagem autêntica, seu interesse em examinar a natureza humana sob

pressão e sua preocupação em colocar seus personagens em situações extremas

determinou um estilo diferente de escrita, muito distante do melodrama. E, além disso,

possibilitou diferentes abordagens de sua obra: a mais comum é a psicanalítico-

biográfica, que, após a produção de Long Day’s Journey Into Night (1956), se tornou

padrão nos 30 anos seguintes; estudos sobre tragédia e psicanálise, incentivados pela

defesa de O’Neill pela produção de tragédias no teatro moderno quando muitos foram

contra; estudos comparativos com Strindberg, fonte que inspirou O’Neill, e Ibsen,

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entre outros; e estudos um tanto inconsistentes de raça e gênero que o acusam de

racista e misógino, como aponta Iná Camargo Costa no já citado Panorama do Rio

Vermelho (2001).

Em suas primeiras peças – Thirst (1916), Fog (1917), Recklessness, Abortion (1914),

Where the Cross is Made (1918), Before Breakfast (1916) – classes sociais e caráter se

desintegravam sob pressão. O indivíduo nessas primeiras peças é um produto de forças

arbitrárias que habita um mundo contingente onde navios são naufragados, vidas são

destruídas por gravidezes perdidas e pela tuberculose, por casamentos doentios e

aflições repentinas. Seus mares são assombrados por icebergs e a sociedade pelo

fantasma da injustiça social; o sucesso material existe apenas para ser traído por

acontecimentos e a juventude para ser destruída por doenças, pobreza e morte. Tudo

isso parece um reflexo do que O’Neill passou na juventude, como se seus fantasmas

fossem exorcizados em suas peças.

Influenciado pelos trabalhos de Schopenhauer e Freud, O’Neill procurou

retratar em algumas peças a tensão existente entre o desejo pela morte, por uma

resolução final para um desejo não-consumado, e o desejo pela vida, implícito no ser

masculino, ou no instinto sexual masculino. Foi nessa tensão que ele encontrou

algumas vezes um sentido de ironia e, em outras, o sentido do trágico:

[...] Mas tragédia, eu acho, tem o sentido que os gregos deram a ela. Para eles, ela trazia exaltação, um ímpeto em direção à vida. Ela os levou a entendimentos espirituais profundos e os libertou das ganâncias insignificantes da existência. Quando eles viam uma tragédia sendo encenada, eles sentiam suas próprias esperanças desesperançadas enobrecidas na arte... Qualquer vitória que possamos ganhar não é nunca aquela que sonhamos em ganhar. 6 (BIGSBY, 1982, p. 43)

Em sua busca pela tragédia, O’Neill continuou escrevendo peças que

mostravam essa tensão vida-morte e seres derrotados pelo mundo social vivendo

sempre num ambiente claustrofóbico. Em Beyond the Horizon (1920) – sua primeira peça

6 “[...] but tragedy, I think, hás the meaning the Greeks gave it. To them it bought exaltation, an urge toward life and ever more life. It raised them to deeper spiritual understandings and released them from the petty greeds of everyday existance. When they saw a tragedy on the stage they felt their own hopeless hopes ennobled in art… Any victory we may win is never the one we dreamed of winning.” (BIGSBY, 1982, p. 43, tradução nossa)

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a ir para a Broadway e a ganhar o prêmio Pullitzer – as visões são intencionalmente

abandonadas quando o destino intervêm para dobrar a mente aspirante em simples

ironia. The Emperor Jones (1920) é uma soma do colapso da ilusão e do caráter, numa

dissolução do universo pessoal, inspirada em episódio das revoluções e contra-

revoluções no Haiti, mas que permite outras associações políticas. Considerada uma

obra-prima do expressionismo norte-americano, foi a primeira peça que deu

reconhecimento internacional ao dramaturgo e, conseqüentemente, ao drama norte-

americano.

Mas com Desire Under the Elms (1924), O’Neill estava certo de que havia criado

uma tragédia, embora estivesse enganado. Novamente, questões como emoções

distorcidas, sonhos frustrados, instinto sexual, desejo, fazem com que a peça seja

totalmente o contrário do que ele entende por tragédia. Os personagens centrais da

peça – um casal – não enfrentam uma luta gloriosa com o destino ou uma busca

heróica pelo inalcançável. Pelo contrário. O casal não possui valores morais ou

espirituais.

Ainda em 1924, O’Neill escreveu All God’s Chillun Got Wings, peça na qual ele

aborda a questão do racismo e as pressões do mundo social, ao mostrar o

relacionamento entre um homem negro e uma mulher branca. Nesse mundo, a

liberdade não é acessível para todos. Uma marca do iconoclasmo social de O’Neill é

que ele é capaz de criar, a partir da questão do racismo, a metáfora da alienação numa

peça que possui um cenário naturalista e uma constante pressão expressionista, que na

verdade é um paralelo da pressão social sofrida pelos protagonistas. O registro

lingüístico de The Emperor Jones e de All God’s Chillun Got Wings revela uma decidida

afirmação do direito dos negros por parte de O’Neill, ou seja, “ao definir a fala negra

como padrão, o dramaturgo avisa que adotou o ponto de vista de quem fala assim para

contar sua história” (COSTA, 2001, p. 81).

Com The Great God Brown (1926), ele experimentou o uso de máscaras, antigas

em sua origem, mas modernas em seu conceito, como uma forma de expressar sua

insatisfação com o teatro que ele “herdou” e como uma “pista” sobre a direção na qual

ele acreditava que o teatro deveria seguir. Como ele mesmo diz, no que viria a ser um

manifesto contra o novo teatro norte-americano:

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Eu me apego cada vez mais à convicção de que o uso de máscaras será eventualmente descoberto como a mais livre solução do problema do dramaturgo moderno em como, com a melhor clareza dramática possível e economia de meios, ele possa expressar aqueles conflitos profundos escondidos da mente consciente e inconsciente que a investigação psicológica continua a nos mostrar. Ele deve encontrar algum método para apresentar esse drama interno em seu trabalho, ou confessar-se incapaz de retratar uma das preocupações mais características e impulso igualmente único e significante de seu tempo.7 (BIGSBY, 1982, p. 67)

Nessa peça, ele utiliza as máscaras para enfatizar o significado mais superficial

que as pessoas mostram a outras pessoas e a forma como são mal-interpretadas

justamente por usá-las. A peça é sobre o paralelo entre o processo de criação e o

mundo inventado do teatro.

Strange Interlude (1928), como O’Neill mesmo a descreve, foi uma tentativa de

fazer um novo drama psicológico mascarado, mas sem o uso de máscaras.

Expressando a dialética entre o consciente e o inconsciente, nessa peça as máscaras

foram assimiladas a um modo realista, tornando-se a face pública de uma consciência

interior, a qual o público tinha acesso a partir de agora. Além de ter se tornado

extremamente popular, fez um enorme sucesso ao ser publicada, recebendo um prêmio

Pullitzer, e, mais tarde, ao ser transformada em filme.

Mas foi com Mourning Becomes Electra (1931) que O’Neill atingiu a maturidade em

termos de criação teatral. Segundo Bigsby (1996), o tema permaneceu o mesmo, uma

imagem dominante do mundo como máscara, mas ele começou a sentir que poderia

expor esse mundo interior sem recorrer ao simples artifício do “aparte”. Interessado

em mostrar a desintegração do ego nessa peça, O’Neill optou por não fazer uso de

solilóquios porque, segundo ele, estes não revelam nada dos motivos dos personagens,

seus desejos secretos e sonhos, que não possa ser mostrado através da pantomima ou 7 “For I hold more and more surely to the conviction that the use of masks will be discovered eventually to be the freest solution of the modern dramatist’s problem as to how, with the greatest possible dramatic clarity and economy of means, he can express those profound hidden conflicts of the conscious and unconscious mind which the probing of psychology continue to disclose to us. He must find some method to present this inner drama in his work, or confess himself incapable of portraying one of the most characteristic preoccupations and uniquely significant, spiritual impulses of his time. (BIGSBY, 1982, p. 67, tradução nossa)

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de diálogos. Ele também dispensou o uso de máscaras porque elas introduzem um

simbolismo óbvio de dualidade de caráter, apostando na maquiagem, no diálogo e na

habilidade dos atores em se comunicar, para substituir o que antes havia sido mostrado

através de mecanismos simples do teatro da época. O’Neill reescreve aqui a trilogia

grega chamada Oréstia, de Ésquilo, encenada no século V a.C., na qual ele baseou sua

trilogia moderna.

A trilogia esquiliana intitulada Oréstia é composta por: Agamemnon, Coéforas e

Eumênides. Em linhas gerais, trata do mito dos Atridas: Agamêmnon regressa para casa

após lutar na guerra de Tróia, mas ao chegar é assassinado pela mulher e o amante

desta. Electra e Orestes, filhos do casal, vingam a morte do pai, a mando do deus

Apolo. Após matar o amante de sua mãe e ela própria, Orestes é perseguido pelas

Erínias, divindades vingadoras de crimes dentro de uma família, e vai até Atenas, onde

é julgado e absolvido pelo voto da deusa Atena. No final as Erínias são transformadas

em divindades do bem, as Eumênides, uma vez que fica instituído o julgamento

humano no Areópago. Já a trilogia de O’Neill recupera o mito, mas o reveste de outra

roupagem para adaptá-lo ao público do século XX. Em Mourning becomes Electra,

composta de A volta ao lar, Os perseguidos e Os amaldiçoados, Ezra Mannon volta para casa

após a Guerra Civil. Lá chegando é assassinado pela mulher e o amante desta. A filha

Lavínia convence o irmão Orin a vingar a morte do pai matando o amante da mãe.

Com isso, ela provoca o suicídio da mãe. Orin, sentindo-se culpado e perseguido pelos

fantasmas dos antepassados, tenta livrar-se de sua culpa confessando o crime, mas

Lavínia não pode deixar que os segredos da família sejam expostos, e faz com que o

irmão se mate. No final, ela fica sozinha na casa que mais parece o túmulo da família.

Sua última peça, Long Day’s Journey Into Night, fala de uma fé no amor, talvez

inspirada por seu casamento, o que lhe proporciona enfrentar sua “morte” (num

sentido figurado) numa peça escrita com profunda pena, entendimento e perdão. A

peça é modelada ao redor das várias tentativas de isolamento adotadas pela sofrida

família Tyrone, enquanto que, como na maioria de seus trabalhos, o método retórico

da peça é moldado em declarações ditas e desditas, frases que são retiradas antes de

estarem completas, crueldades proibidas pela compaixão, bondades desfeitas pela

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amargura. O mundo das personagens é um mundo de gestos incompletos,

necessidades nunca satisfeitas, desejos nunca realizados.

A figura de Eugene O’Neill, que se destacou por mais de quatro décadas no

teatro norte-americano, é marcada pela força e originalidade genuínas. Para ele o teatro

seria fútil se não abordasse grandes temas, uma vez que ele estava sempre preocupado

em abordar temas sociais. A prosa sólida, os momentos de pura poesia, o

experimentalismo consciente, o engajamento angustiado com o dilema do livre arbítrio

e do determinismo, a criação de personagens pressionadas pelos vários extremos do

mundo social, são as características de um escritor que acreditava que a tragédia era a

mais alta forma do drama, cuja imaginação esteve sempre atraída pelo excesso, mas que

esteve sempre preocupado em descobrir um caminho no qual o espírito humano

pudesse sobreviver aos rigores de uma vida dolorosa e desiludida. Como ele mesmo

afirma:

O teatro para mim é vida – a substância e interpretação da vida.... (E) vida é luta, frequentemente, se não geralmente, luta sem sucesso; porque a maior parte de nós tem alguma coisa no nosso interior que nos previne de alcançar o que sonhamos e desejamos. E então, com nosso crescimento, estamos sempre vendo além do que podemos alcançar. Eu suponho que esta é uma razão pela qual eu tenho me sentido tão indiferente quanto aos movimentos políticos e sociais de todos os tipos.8 (CARGILL et all, 1961, p. 107)

8 “The theatre to me is life – the substance and interpretation of life... [And] life is struggle, often, if not usually, unsuccessful struggle; for most of us have something within us which prevents us from accomplishing what we dream and desire. And then, as we progress, we are always seeing further than we can reach. I suppose that is ine reason why I have come to feel so indifferent toward political and social movements of all kinds.” (CARGILL et ll, 1961, p. 107, tradução nossa)

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CAPÍTULO II

OS ATRIDAS:

UM MITO ONTEM E HOJE

1. O sentido originário do mito

Na Antiguidade, sabe-se que as narrativas míticas eram usadas como modelos

de comportamentos para as pessoas que tinham certas crenças e viviam de acordo com

elas. Mas o que é mito? A partir de várias leituras, pode-se chegar a uma definição:

Mito é uma narrativa dos tempos fabulosos ou heróicos, de significação simbólica, que

se refere à cosmogonia e também a aspectos da condição humana. Podem ser

narrativas sobre deuses ou Entes Sobrenaturais ou sobre pessoas e acontecimentos

ilusórios, elaboradas e aceitas por grupos humanos e que representam um papel

significativo em suas vidas.

Para os etnólogos, mitos servem como modelos de comportamento pois

relatam histórias que aconteceram no começo dos tempos. Os sociólogos definem

mito como uma crença coletiva, dinâmica e universal que reveste a forma de uma

imagem através de símbolos. Já para os psicólogos, para que exista mito é preciso que

exista uma crença revestida de símbolos que, ao mesmo tempo, a mascaram e

exprimem, mas que não pode ser abertamente afirmada.

Partindo desses empregos qualificados da palavra, chega-se a um significado do

que vem a ser mito:

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Um relato (ou uma personagem implicada num relato) simbólico que passa a ter valor fascinante (ideal ou repulsivo) e mais ou menos totalizante para uma comunidade humana mais ou menos extensa, à qual ele propõe a explicação de uma situação ou forma de agir. (DEBEZIES, 1998, p. 731)

Mas segundo Pierre Brunel (1998), para se chegar a uma definição de mito é

prudente que se considere suas funções. A primeira delas é que o mito conta, ele é uma

narrativa; a segunda diz que o mito explica; e a terceira diz que o mito revela. Então se

pode dizer que o mito é uma narrativa do sagrado ocorrida nos tempos primordiais,

explicando as causas da criação ou de um acontecimento, revelando seres e deuses.

Como diz Mircea Eliade:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. [...] o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento [...] É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. (ELIADE, 1986, p. 11).

Para o homem arcaico, o mito é muito importante porque lhe ensina e explica

de onde ele veio, de que ele é constituído e tudo o que está relacionado com a sua

existência e seu modo de existir no universo. O mito desempenha, então, uma função

indispensável na vida humana, pois o homem encontra nele os modelos que servem de

exemplo para seus atos.

Durante muito tempo, entre os gregos antigos, o mito teve esse significado de

relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, com a interferência dos

deuses. No Ocidente, a mitologia grega produziu um legado de narrativas que acabou

por inspirar a literatura e outras artes, passando a constituir um arcabouço onde toda a

cultura ocidental passou a buscar inspiração.

Na civilização grega antiga, os mitos também desempenhavam funções dentro

da sociedade. Para os gregos, o mito esclarece algumas questões sobre os tempos

fabulosos, a cosmogonia, respondendo a perguntas de caráter existencial (como, por

exemplo, “de onde viemos?” ou “para onde vamos quando morremos?”) e explica

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fenômenos naturais e biológicos. Ao mesmo tempo, ele propõe explicações para

situações diversas e modelos de comportamento, tendo, assim, uma função ética, pois

tais narrativas constroem limites para a ação humana, impedindo que o homem

ultrapasse os limites impostos pelos deuses e seja punido.

No início, os mitos circulavam em relatos orais, pois não existia a escrita ainda,

e as narrativas foram passando pelas gerações e chegando até a população através dos

rapsodos, poetas que criavam seus poemas e os transmitiam oralmente, e os aedos,

cantores que cantavam as poesias. É durante essa fase oral do mito que surgem as

narrativas épicas, sendo as mais conhecidas a Ilíada e a Odisséia, ambas atribuídas a

Homero. Não se pode deixar de salientar a importância de Hesíodo e sua Teogonia (ou o

surgimento dos deuses – relato sobre os tempos primordiais), que junto com Homero

é o mais antigo poeta grego cujas obras chegaram até nós.

Com o advento da escrita, esses e outros poemas puderam ser sistematizados, e

uma outra forma de arte literária surgiu – a tragédia. Baseadas nas narrativas míticas e

nas epopéias de Homero e Hesíodo, as tragédias gregas brilharam por muitos anos nos

palcos atenienses, no período conhecido como século de ouro da Atenas Clássica (séc.

V a. C.).

2. Aproveitamento dos mitos: epopéias e tragédias

No contexto grego, a epopéia teria sido o primeiro gênero literário derivado do

repertório de mitos ancestrais. Dos poetas épicos, destaca-se Homero, considerado o

melhor de todos, não só por Aristóteles como também por outros filósofos e críticos

literários. Platão, grande filósofo grego, expulsa os poetas da República, mas não

expulsa Homero, por considerá-lo um educador, seus poemas eram levados às salas de

aula estando associados à primeira alfabetização. Porém, é importante salientar que, na

época de Homero, os poemas não eram escritos, pois não havia escrita, a tradição era

oral. Ele era um rapsodo, um cantor que recitava seus versos apelando apenas para a

memória. Por isso, uma das partes constantes da epopéia é a invocação; os poetas

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(cantores) pediam ajuda às Deusas e Musas para fazerem um bom trabalho, ou seja,

para serem capazes de cantarem bem os mitos:

Quando o poeta é possuído pelas Musas, ele sorve diretamente da ciência de Mnemósine, isto é, sobretudo do conhecimento das “origens”, dos “primórdios”, das genealogias. [...] Graças à memória primordial que ele é capaz de recuperar, o poeta inspirado pelas Musas tem acesso às realidades originais. Essas realidades manifestaram-se nos tempos míticos do princípio e constituem o fundamento deste Mundo. (ELIADE, 1986, p. 108).

Cabe ainda lembrar que Homero viveu no período limite entre a maturidade da

mitologia e o início da crítica rigorosa que foi feita aos mitos, conforme veremos

adiante. Alguns críticos defendem a idéia de que Homero desempenhou um papel

importante na sociedade grega uma vez que suas epopéias – Ilíada e Odisséia –

forneceram bases para o estudo de um mundo real, sendo esses escritos praticamente

os únicos documentos que restaram como evidências daquela civilização na qual viveu

o poeta. E. A. Havelock considera a epopéia homérica uma enciclopédia de

conhecimentos coletivos:

Homero não apenas se pronunciou sobre os assuntos mais importantes como a guerra, o comando dos exércitos, a administração dos Estados, a educação do homem, mas revelou-se mestre em todas as artes: rituais detalhados, procedimentos jurídicos, gestos e práticas de sacrifício, modelos de vida familiar, relações com os deuses e até instruções completas sobre a maneira de se construir um barco fazem parte das informações fornecidas pelos milhares de versos da Ilíada e da Odisséia. (HAVELOCK apud DETIENNE, 1992, p. 58).

A Ilíada narra um período do décimo ano da guerra de Tróia em que os gregos,

cansados com o cerco que fazem à cidade, decidem atacar. É então que vemos vários

heróis, tanto gregos quanto troianos, se enfrentarem no campo de batalha: Aquiles,

Agamêmnon, Odisseu, Ájax, Diomedes, Menelau, Heitor, Enéias, Paris, entre outros.

A Odisséia narra o retorno de Odisseu, um dos heróis gregos, à sua terra natal (Ítaca).

Logo depois que Tróia é tomada e os tesouros são divididos, Odisseu parte para casa,

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mas comete uma ofensa aos deuses e é condenado a vagar por muito tempo antes de

chegar ao seu destino. Após dez anos e muitas aventuras pelos mares (ninfas, sereias,

monstros, deuses, divindades, ciclopes) ele finalmente chega e vê seu reino tomado por

pretendentes à mão de sua esposa, uma vez que acreditavam estar ele morto. Com a

ajuda do filho e de um empregado, Odisseu mata os pretendentes e restabelece a paz

no seu reino.

As epopéias homéricas, por seu caráter de vasto repertório de mitos, mas

também pela tessitura desses mitos em narrativas comoventes, acabaram contribuindo

significativamente para o surgimento de uma outra forma de arte literária: as tragédias.

Os dramaturgos gregos confinaram-se quase absolutamente num círculo restrito de histórias míticas; uns após outros, todos recorreram a Homero e aos demais poetas do ciclo épico; Ésquilo, Sófocles e Eurípides, para não mencionar seus inúmeros rivais menos conhecidos cujas obras se perderam, trabalharam e retrabalharam os mesmos temas [...] A arte do dramaturgo antigo consiste em realçar a importância trágica do enredo, em expor os caracteres e preparar incidentes de maneira a excitar a atenção. (KURY, 2003, pp. 12-13).

Dentre os vários autores de tragédias, três obtiveram um destaque maior por

serem considerados os melhores de sua época, o século V a.C.: Ésquilo, Sófocles e

Eurípides. Ésquilo (525 – 455 a.C.), foi o autor de tragédias da justiça divina. Ele foi o

primeiro a diminuir a importância do coro (conjunto harmônico de atores que, como

representantes do povo junto aos personagens principais, e declamando e cantando,

narram a ação, a comentam, e freqüentemente nela intervêm com ponderações e

conselhos) e a transferir o papel principal para o diálogo, aumentando o número de

atores de um para dois. Os deuses estão presentes em toda parte no mundo esquiliano,

mas isso não quer dizer que seja um mundo ordenado. É um mundo onde a violência

reina, onde se é perseguido, onde se grita de medo. Mata-se e morre-se em busca da

justiça divina.

Mas, por meio da angústia e do temor, pelo mistério em que se envolve o sagrado, uma mesma fé apresenta-se em toda parte, tentando reconhecer nessas forças terríveis os traços, os sinais, os marcos de uma justiça superior, que é simplesmente mal

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compreendida. Essa busca da justiça confere uma dimensão extra à obra de Ésquilo, pois amplia o alcance de cada fato e de cada palavra. (ROMILLY, 1998, p. 50)

Sófocles (495 – 405 a.C.) foi, dos três autores, o mais premiado nos concursos,

tendo escrito tragédias dos heróis solitários. A expansão política que ele conheceu e

viveu fez com que a sociedade ateniense da época tivesse uma maior confiança no

homem. Isso marcou profundamente sua obra:

Ele coloca, portanto, o homem no centro de tudo, e entremeia suas tragédias com obrigações conflitantes e debates sobre condutas. Ele acredita na importância do homem e na sua grandeza. Chega assim a conceber imagens de heróis que ninguém conseguiria dobrar – mesmo que fossem renegados por aqueles que os cercavam, mesmo que os deuses parecessem zombar deles. (ROMILLY, 1998, p. 72)

São de Eurípides (480 – 406 ou 405 a.C.) as “tragédias das paixões”. Tendo

introduzido no gênero trágico muitas inovações, foi considerado um autor moderno,

mas não agradou a todos. O mundo representado em suas peças não tem nada daquela

ordem invocada por seus antecessores. Influenciado pelos sofistas, ele questionava a

ordem política e criticava os deuses, seus heróis são mais parecidos com homens

comuns ao invés de superiores a eles.

Com efeito, seu teatro é desconcertante em função de suas mil facetas, com seus variados reflexos. Ele evoca a política com suas lutas do dia-a-dia; ele condena, discute, protesta. Seus personagens obedecem a uma nova psicologia, pois estão mais próximos de nós que os heróis dos outros trágicos, e também mais inteiros nas suas paixões – as quais Eurípides nos mostra em toda a sua crueza. (ROMILLY, 1998, p. 102).

É nas tragédias que podemos encontrar as maiores referências aos mitos gregos:

por usarem dos mitos para construírem suas peças, os tragediógrafos acabavam por

“fixar” uma versão para aquele mito, mas apenas aqueles que tinham maior aceitação

junto ao público. Ésquilo “fixou” uma versão para o mito dos Atridas com sua trilogia

Oréstia, e foi, a partir dela, que outras versões foram escritas. Sófocles “fixou”, por

exemplo, o mito de Édipo com a tragédia Édipo Rei, ou com o que nos restou: Édipo

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Rei, Édipo em Colono e Antígona. Já Eurípides nos deixou o mito de Medéia “fixado”

como o da mãe que mata os próprios filhos para vingar-se do marido.

Dessa forma, percebe-se a importância que as tragédias tiveram e têm até hoje,

pois os mitos ainda hoje são correntes graças a elas e a essas versões que ajudaram a

“fixá-los”. Se não fosse assim, não teríamos hoje tantas obras que fazem referências a

tais mitos e não nos encantaríamos com eles.

3. Dessacralização dos mitos

Sabe-se que uma história transmitida oralmente, que não esteja a cargo de um

“doutor da memória”, modifica-se no espaço de algumas gerações. Por isso tantas

versões diversas de um mesmo mito. Então, seria natural pensar que quando essas

narrativas orais fossem transformadas em narrativas escritas, muito se perderia do

relato original. Alguns estudiosos acreditam nessa hipótese. Mas não se deve acreditar

que a escrita veio substituir uma tradição oral supostamente enfraquecida, mesmo

porque ela não estava fraca e o surgimento da escrita na Grécia (século VIII a.C.) não

se deu de forma repentina.

Quanto às narrativas mitológicas, pode-se afirmar que a escrita, muitas vezes,

desfigura o mito de suas características básicas como, por exemplo, de suas variantes. E

também o distancia do momento da narrativa. Isso porque os poetas obedeciam

sobretudo a ditames estéticos, vez que toda obra de arte possui suas características.

Para reduzir um mitologema a uma obra-de-arte, digamos, a uma tragédia, o poeta terá que fazer alterações, por vezes violentas, a fim de que a razão resulte única, se desenvolva num mesmo lugar e “caiba” num só dia. (BRANDÃO, 2004, p. 26).

Brandão trata acima do que Aristóteles, na Poética, chamou de concentração de

efeitos, ou seja, unidade de ação e compressão temporal. Um outro problema que a

escrita trouxe para a mitologia foi quanto à sua documentação. Sabe-se que um mito

possui inúmeras variantes e que uma obra-de-arte, seja uma epopéia ou uma tragédia,

só pode apresentar uma dessas variantes, ou aquilo que se torna uma nova variante. O

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48

problema reside no fato de que na Grécia a poesia tinha um grande prestígio e a

variante apresentada por um grande poeta tornava-se canônica com as demais caindo

no esquecimento.

Cabe-se ainda apontar que, com o surgimento da escrita e o crescimento da

filosofia, o mito passou a ser visto de outra forma. Os filósofos Pré-Socráticos

tentaram desmitificar ou dessacralizar o mito em nome do logos (razão). Porém, essa

crítica não visava à essência do mito e, sim, às atitudes dos deuses que, segundo eles,

não poderiam ser concebidos como injustos, adúlteros e vingativos. O

antropomorfismo dos deuses também é censurado, como enfatiza o filósofo grego

Xenófanes (576-480 a.C.):

Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem, com suas mãos, pintar e produzir as obras que os homens produzem, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, e a eles atribuiriam os corpos que eles mesmos têm. (B 15 – traduzido por G. S. Kirk e J. E. Raven, The Presocratic Philosofers. Cambridge, 1957, p.168, apud ELIADE, 1986, p. 134)

Xenófanes também acredita que existe um deus acima de todos os deuses e

homens cuja forma, pensamento e atitudes não se assemelham aos mortais. Assim

como ele, Demócrito (520-440 a C.) também fez sérias críticas às representações dos

deuses. Reduzindo toda a criação a um entrechoque de partículas denominadas átomoi

(átomos), ele acreditava que os deuses eram entes superiores aos homens, embora

fossem compostos também de átomos, o que os tornava mortais. Para ele, os deuses

vulgares e a mitologia nasceram da fantasia popular.

Um outro entrave para a mitologia foi a dicotomização postulada pelo poeta

tebano Píndaro (521-441 a.C.). Segundo ele, dentre as diversas variantes de um

mitologema, apenas uma é verdadeira, as demais são criações dos poetas:

O mundo está repleto de maravilhas e, não raro, as afirmativas dos mortais vão além da verdade; mitos, ornamentados de hábeis ficções nos iludem... As Graças, a quem os mortais devem tudo que os seduz, tributam-lhes honras e, as mais das vezes, fazem-nos crer no incrível! (PÍNDARO, Olímpias, 1, 28-33, apud BRANDÃO, 2004, p.28)

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Assim, ele diz ao público para acreditar somente numa única versão para cada

mito, aquela filtrada por ele, que também era poeta. Dessa mesma forma pensava

Ésquilo (525-456 a.C.), um dos três grandes tragediógrafos gregos, considerado o pai

da tragédia. Ele acreditava que o poeta tinha como dever moral extrair do mito a

variante verdadeira:

‘O dever do poeta’, diz Ésquilo a respeito do mito de Fedra, ‘é ocultar o vício, não propagá-lo e trazê-lo à cena. Com efeito, se para as crianças o educador modelo é o professor, para os jovens o são os poetas. Temos o dever imperioso de dizer coisas honestas’. (BRANDÃO, 2004, p.29)

Um outro fator que contribuiu para a dessacralização da mitologia foi a

politização, que gerou o deslocamento de alguns mitos, principalmente de heróis,

fazendo com que eles sempre passassem pela cidade de Atenas, não importando de

onde viessem ou para onde fossem. Como se sabe, a peregrinação é uma característica

dos heróis, mas a passagem obrigatória por Atenas pode ser atribuída a causas políticas:

para defender a hegemonia política da cidade, alguns poetas modificaram os mitos

tanto com as peregrinações como atribuindo gestas de outros heróis aos locais e

fabricando-lhes falsas genealogias. Com os feitos dos heróis de cidades inimigas

fizeram o inverso, denegrindo-os.

Já no século IV a C., Epicuro (341- 270 a.C.) retomou as idéias de Demócrito

procurando libertar o homem do medo dos deuses. Sua hipótese era a de que se os

deuses são matéria como o homem e estão também, por esse motivo, sujeitos à morte,

por que então temê-los? Em um fragmento de sua Ética pode-se notar que ele colocava

os deuses como impotentes diante do mal:

Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso, o que, igualmente é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que Deus não os impede? (EPICURO, Ética, apud BRANDÃO, 2004, p. 30)

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Depois de todas essas idéias ou “ataques”, a mitologia parecia estar morta e os

deuses, além de desmitizados, estavam dessacralizados. Mas ainda no século IV a.C.

uma parte da mitologia pôde ser salva com o surgimento de duas formas de

interpretação do mito: o alegorismo e o evemerismo. “Os mitos não eram mais

compreendidos literalmente: procurava-se neles agora ‘significações ocultas’,

‘subentendidos’” (ELIADE, 1986, p. 135). Essas ‘significações ocultas” foram

denominadas de alegoria no século I d.C., sendo a interpretação alegórica das

mitologias homérica e hesidiótica, desenvolvida pelos estóicos que reduziram os deuses

gregos a princípios físicos ou éticos e “salvando” Homero e Hesíodo diante das elites

helênicas.

Todavia, não foi só a alegoria que “salvou” a mitologia. Nos fins do século IV

a.C., o poeta alexandrino Evêmero publicou uma obra intitulada História Sagrada, na

qual afirmava ter descoberto a origem dos deuses: “estes eram antigos reis e heróis

divinizados e seus mitos não passavam de reminiscências, por vezes confusas, de suas

façanhas na terra.” (BRANDÃO, 2004, p. 31).

O evemerismo, a alegoria e todas essas outras idéias surgidas anteriormente,

ajudaram a mitologia a sobreviver até mesmo ao Cristianismo porque, como afirma

Junito Brandão,

[...] os ataques desfechados contra o mito partiram sempre da elite pensante, de filósofos, de poetas e de escritores (com muitas e poderosas exceções) e se uma parcela dessa mesma elite pensante descobriu, sobretudo no Oriente, “outras mitologias” capazes de alimentar-lhe o espírito, a massa iletrada, tradicionalista por vocação e indiferente a controvérsias sutis, a alegorismos e a evemerismos, agarrava-se cada vez mais à tradição religiosa. (BRANDÃO, 2004, p. 32).

Porém não se pode esquecer que essa sobrevivência da mitologia se deve

também, em grande parte, à transmissão da cultura grega via helanismo, pois as

epopéias, tragédias e todos os poemas antigos que nos restaram permitiram que esses

relatos míticos chegassem até nós.

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4. O mito dos Atridas: das epopéias homéricas à Oréstia de Ésquilo

O mito grego dos Atridas diz respeito a uma maldição familiar que transformou

o palácio de Micenas num lugar de crimes e horrores. Antes de explicar o mito, é

necessário que se fale sobre hamartía e génos. Hamartía vem do verbo grego hamartanéin,

que significa “errar o alvo”. Com o tempo, o significado foi ampliado e o verbo passou

a significar “errar, perder-se, cometer uma falta”. Daí, hamartía poder ser traduzida

como “erro, falta, inadvertência”, e na Grécia antiga essas faltas eram julgadas de fora

para dentro, ou seja, não se julgavam intenções e, sim, fatos. A palavra génos pode ser

traduzida, em termos de religião grega, como “descendência, grupo familiar” e definida

como “pessoas ligadas por laços de sangue”.

Quando uma hamartía é cometida dentro de um génos, ela tem que ser vingada.

Existem dois tipos de vingança: a ordinária, quando a falta se dá entre membros de

uma família cujo parentesco é em profano (esposos, cunhados, sobrinhos e tios), com a

vingança executada pelo parente mais próximo da vítima; e a extraordinária, quando a

falta cometida se dá entre parentes em sagrado (pais, filhos, netos e irmãos) e a vingança

fica a cargo das Erínias, ou Fúrias Infernais.

A essa idéia do direito do génos está indissoluvelmente ligada a crença na maldição familiar, a saber: qualquer hamartía cometida por um membro do génos recai sobre o génos inteiro, isto é, sobre todos os parentes e seus descendentes em sagrado ou em profano. (BRANDÃO, 2004, p. 77).

O mito dos Atridas9 tem como núcleo central a hamartía de Atreu. Tendo

encontrado um carneiro de velo de ouro, Atreu prometeu sacrificá-lo a Ártemis, mas

guardou o velocino num cofre. Aérope, sua esposa, mas amante de seu irmão Tieste,

secretamente entregou a este o velocino. Na luta pelo trono, Tieste propôs que seria o

rei aquele que mostrasse à assembléia um velo de ouro, o que Atreu prontamente

concordou por não saber da traição da esposa. Mas Zeus mandou Hermes aconselhar

Atreu a fazer outra proposta, segundo a qual o rei seria designado por um prodígio: se

o sol seguisse seu curso normal, Tieste seria o rei; se voltasse para o leste, Atreu

9 Conferir o quadro da genealogia dos Atridas na página 66.

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52

ocuparia o trono. Com a ajuda de Zeus, o sol voltou para o leste e, assim, Atreu passou

a reinar em Micenas e expulsou o irmão de seu reino.

Pouco tempo depois, Atreu descobriu a traição de Aérope e, depois de mandar

lançá-la ao mar, fingiu uma reconciliação com Tieste, convidando-o para um banquete

no qual serviu as carnes dos três filhos do irmão. Após o banquete, mostrou-lhe as

cabeças dos seus filhos e novamente o baniu de Micenas. Tieste refugiou-se em Sicione

e, a conselho de um oráculo, uniu-se à filha Pelópia, com quem teve um filho chamado

Egisto. Após o nascimento do filho, Pelópia foi para Micenas e se casou com o tio, e

assim Egisto foi criado juntamente com os dois filhos que Atreu tivera com Aérope:

Agamêmnon e Menelau. Mais tarde, Egisto recebe do padrasto a ordem para matar

Tieste, mas descobre a tempo que é seu filho e mata Atreu, entregando o trono ao pai.

Pelópia, ao ver a cena, se mata com a espada do pai.

Não se sabe como, mas Agamêmnon surge no mito como o rei por excelência,

encarregado do comando supremo dos exércitos gregos contra Tróia, segundo

Homero. Reinava sobre Argos, Micenas e toda a Lacedemônia, de acordo com algumas

tradições. Quando das núpcias de seu irmão Menelau com Helena, o atrida passou a

cortejar Clitemnestra, irmã de Helena, que já era casada com Tântalo II, filho de Tieste.

Para ficar com ela, Agamêmnon matou Tântalo II e o filho recém-nascido do casal,

obrigando Clitemnestra a casar-se com ele. Desse enlace, nasceram Ifigênia, Electra,

Crisótemis e Orestes. Este é o primeiro estágio do mito.

Quando os gregos se reuniram em Áulis para seguir para Tróia, o mar foi

tomado por uma grande calmaria que impediu a partida. Calcas, o adivinho, explicou

que o fato se devia à cólera de Ártemis, por Agamêmnon ter dito que nem ela caçaria

uma corça tão bem quanto ele. Para aplacar a ira da deusa, o chefe grego prometeu

sacrificar o mais belo fruto do ano em Argos, que, por fatalidade, era sua filha Ifigênia.

Apesar de relutar, Agamêmnon consentiu no sacrifício da filha, o que agravou ainda

mais a raiva de sua esposa. E, assim, a armada grega partiu para Tróia.

Dez anos depois, de volta da guerra, Agamêmnon retorna à sua casa e é

cruelmente assassinado por Egisto e Clitemnestra, que haviam se tornado amantes.

Nos trágicos, as circunstâncias de sua morte variam: ora Agamêmnon foi morto

durante o banquete de boas vindas, ora o foi durante o banho. Para alguns foi morto

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53

pela esposa, para outros pela esposa e o amante, ou ainda apenas por Egisto. Este,

como dito antes, é filho de Tieste, portanto vingador do pai, que foi morto por

Agamêmnon. Após a morte de Agamêmnon, ele ainda reinou em Micenas ao lado de

Clitemnestra por sete anos até a chegada de Orestes.

Orestes, com todo o fardo das faltas cometidas pelos familiares, é conhecido no

mito como o vingador do pai, Agamêmnon. Mas é só a partir dos tragediógrafos que

ele se torna um personagem de primeiro plano. Quando do assassinato do pai, Orestes

escapou do massacre graças à irmã Electra, que o enviou para a Fócida, reino de seu tio

Estrófio. Existem variantes no mito quanto à salvação de Orestes: ele teria sido salvo

por uma ama, por um preceptor ou por um velho servidor da família.

Quando atingiu a idade adulta, Orestes recebeu do deus Apolo a ordem de

vingar o pai. Para isso, vai para Argos acompanhado pelo primo Pílades, onde é

reconhecido pela irmã e juntos tramam o assassinato de Egisto e Clitemnestra. Muitas

são as variantes nas tragédias quanto ao reconhecimento de Orestes por Electra, mas é

certo que Electra, a virgem indomável, é tida como a “mentora” do crime e o irmão o

executor. Como diz Junito Brandão (2004, p. 91): “Mas tragédia é obra de arte! O mito,

no entanto, continua o mesmo...”

Para realizar sua vingança, Orestes se apresenta no palácio como estrangeiro

vindo da Fócida para anunciar a sua morte e lá mata Egisto e Clitemnestra. Como

matou a própria mãe, ele é perseguido pelas Erínias e busca abrigo no templo de Apolo

em Delfos, que o manda para Atenas para ser julgado e se livrar das Erínias. Como o

julgamento terminou empatado, coube a Palas Atena, como presidente do tribunal,

desempatá-lo: o “voto de Minerva” foi em favor de Orestes, que foi absolvido de seu

crime.

Após o julgamento, seguindo instruções de Apolo, Orestes foi para a Táurida,

onde contou com a ajuda da irmã Ifigênia para roubar a estátua de Ártemis e se livrar

da manía (loucura) provocada pelo matricídio. Ao voltar, foi procurar sua prima

Hermíone, filha de Menelau e Helena, prometida a ele em casamento. Aqui ele repete a

história do pai: encontrando sua noiva casada com Neoptólemo, a raptou e matou seu

marido. Com ela teve um filho e reinou em Argos e em Esparta.

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54

Electra não aparece nas epopéias homéricas, mas dá nome a duas tragédias e

está presente com destaque em outras tantas que relatam o mito de sua família. Após o

assassinato do pai, foi humilhada no palácio até ser dada em casamento a um pobre

camponês, conforme está em Eurípides. Depois de vingar a morte do pai com a ajuda

do irmão e ficar ao lado dele até o julgamento em Atenas, casou-se com Pílades.

O mito dos Atridas está parcialmente presente em diversas passagens da Ilíada e

da Odisséia de Homero, mas é nesta última que se encontra o maior mitologema de

Agamêmnon registrado em epopéias: livro I, v. 29-47 (Zeus fala aos deuses sobre o que

Egisto fez e que fim teve), v. 298-300 (alusão de Atena ao destino de Agamêmnon e

Orestes); livro III, v. 193-198 (Nestor lembra a Telêmaco o destino de Agamêmnon),

234-235 (Atena remete-se à morte de Agamêmnon), 254-312 (Nestor conta a

Telêmaco o que aconteceu com Agamêmnon desde a partida de Tróia); livro IV, v.

512-547 (Menelau conta a Telêmaco o que aconteceu com seu irmão); livro XI, v. 387-

466 (Agamêmnon conta a Odisseu, no Hades, o que aconteceu com ele).

Por se encontrarem em partes diversas nos poemas, torna-se muito difícil reuní-

las e colocá-las em ordem cronológica para se ter uma dimensão mais clara do mito,

portanto, é nas tragédias que ele se encontra relatado por inteiro e de forma mais fácil

de ser montado, embora uma ênfase seja dada à segunda parte do mito, que se inicia

com o casamento de Agamêmnon e Clitemnestra e vai até o final aqui relatado.

São nove as tragédias que contam a maldição dos Atridas: Oréstia (Agamêmnon,

Coéforas e Eumênides), de Ésquilo; Electra, de Sófocles; Electra, Helena, Ifigênia em Áulis,

Ifigênia em Táurida e Orestes, de Eurípides. Como dito antes, elas apresentam variações

do mito que, entretanto, não comprometem a essência da narrativa originária. É claro

que, como cada tragediógrafo viveu uma época diferente, as idéias de seu tempo

influenciaram na feitura de cada peça, daí haver variantes do mesmo mito.

É importante ressaltar a importância da trilogia esquiliana, cuja excelência na

estrutura já era elogiada desde os antigos. E a admiração continua até hoje, como atesta

Mário da Gama Cury na introdução da tradução que fez da Oréstia:

Por exemplo, a prestigiosa publicação inglesa The Economist, no número datado de 23 de dezembro de 1989 (página 14), ao fazer uma resenha dos fatos mais notáveis da história mundial

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desde a Antiguidade até nossos dias, começa pelo chamado “século de Péricles” (século V a.C.), mencionando como evento marcante na evolução da humanidade a primeira representação em Atenas (em 458 a C.) da Oréstia de Ésquilo. (KURY, 2003, p. 7)

Na mesma introdução, Kury ainda ressalta o conhecido julgamento de Goethe

segundo o qual Agamêmnon é a “obra-prima das obras-primas”. Dentre os antigos,

Aristófanes, poeta e crítico literário em suas comédias, diz que Ésquilo era o único

poeta trágico realmente dionisíaco e que foi o primeiro a estruturar frases

grandiloqüentes. Segundo Dionísios de Helicarnassos, Ésquilo usava sua genialidade

para criar um vocabulário poético próprio quando os recursos de linguagem

disponíveis na época se tornavam insuficientes para seu propósito. “De acordo com

pesquisadores modernos, Ésquilo criou mais de mil palavras em suas sete peças

restantes e nos fragmentos das que se perderam” (KURY, 2003, p. 14)

Retomando um fato já narrado nas epopéias, na Oréstia, Ésquilo “procurou

definir a justiça divina, considerando sua evolução e seu ajustamento ao longo de uma

seqüência de gerações.” (ROMILLY, 1998, p. 57) As três peças da trilogia (Agamêmnon,

As Coéforas, As Eumênides) se entrelaçam conforme um movimento, visando uma justiça

melhor: como castigo de pecados anteriores, temos um assassinato realizado por uma

mulher culpada (Clitemnestra mata Agamêmnon), um assassinato realizado por um

homem inocente (Orestes mata a mãe e Egisto) e, no final, um julgamento do qual

participam deuses e homens.

Na primeira peça, Agamêmnon, Clitemnestra planeja e executa a morte de seu

marido com a ajuda do amante, Egisto, quando Agamêmnon retorna ao palácio após a

vitória na Guerra de Tróia. A peça termina com a advertência do coro de que Orestes,

então no exílio, voltaria para vingar a morte do pai. Nas Coéforas, temos o regresso de

Orestes, que, com a ajuda da irmã, Electra, mata Clitemnestra e Egisto, vingando,

assim, o assassinato do pai. Na terceira peça, Eumênides, temos a perseguição a Orestes

pelas Erínias e sua fuga para Atenas, onde ele é julgado por um tribunal integrado por

Atena, Apolo e cidadãos da cidade, e é absolvido de seu crime. Fica instituído o

Tribunal do Areópago e as Erínias são transformadas em entidades benévolas.

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56

Na metade das duas primeiras peças, Agamêmnon e As Coéforas, dois assassinatos

acontecem, cujas mortes são, ao mesmo tempo, sacrifício e expiação. Cada assassinato

é esperado, temido e lamentado, tornando cada tragédia uma unidade organizada. Na

terceira peça, As Eumênides, acontece um julgamento que suscita o temor por uma vida

que está em jogo. Apesar de não assistir aos assassinatos, o público presenciava o

confronto entre esposa e marido, mãe e filho, via as Erínias seguindo o culpado e

sentia a presença dos deuses. Cada tragédia assume um valor religioso.

Os homens voltam-se para os deuses e solicitam seu apoio; pode-se dizer que as três tragédias são embebidas do sagrado, que está presente em cada uma delas, de maneira tangível. Agamêmnon faz o espectador assistir ao delírio profético de Cassandra; As Coéforas espalham-se ao redor da tumba do rei, e seu auxílio é longamente invocado; além disso, os principais agentes que desencadeiam a ação são um oráculo dedicado a Orestes e um sonho de Clitemnestra; por fim, As Eumênides trazem à cena deuses (Apolo, Atena) e, principalmente, aqueles seres de aspecto horrível, As Erínias, deusas encarregadas de vingar o crime. (ROMILLY, 1998, p. 58)

Talvez essa pequena amostra de genialidade justifique o grande sucesso que as

tragédias fizeram na Atenas Clássica e fazem até hoje, não só as peças de Ésquilo,

como também as de Sófocles e Eurípides que, como vieram depois dele, já

encontraram a estrutura desse tipo de arte estabelecida, uma vez que Ésquilo é

considerado o criador da tragédia em sua forma definitiva. O que cada um fez foi

acrescentar o seu estilo próprio de tratamento, como já mencionado.

5. O mito dos Atridas: de Ésquilo à dramaturgia moderna.

Considerando a vasta produção acerca desse assunto, tomaremos,

primeiramente, neste capítulo, o importante trabalho da professora Carlinda Fragale

Pate Nuñez (2000), intitulado Electra ou uma constelação de sentidos, no qual ela faz uma

leitura profunda de algumas versões constitutivas do mito de Electra, dos

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57

tragediógrafos gregos do século V a. C. à dramaturgia moderna. É a partir de suas

considerações neste trabalho que estudaremos as peças referidas aqui.

No primeiro capítulo, “O trágico despertar dos Atridas”, a autora aponta a

primeira dificuldade que um comparatista dedicado à mitologia enfrenta: não poder se

falar em uma versão mais autêntica de um mito, e, sim, de sua versão mais antiga, no

que se refere à forma literária. Uma outra opção seria focalizar a versão considerada

mais complexa, bem conservada, estilizada, dentre as existentes. Um segundo passo é,

uma vez escolhida a versão de referência, esquematizar as seqüências narrativas que

irão nortear o estudo comparativo.

No que diz respeito ao mito de Electra, três peças gregas antigas se destacam: as

Coéforas, de Ésquilo (458 a.C.); a Electra, de Sófocles (415 a.C.?); e a Electra, de Eurípides

(413 a.C.). Isso porque “[...] compõem o trinômio grego em que melhor se pode

constatar a ressemantização de um conflito imemorial – a insurreição dos filhos”

(PATE NUÑEZ, 2000, p. 21). Ao fazer um estudo comparativo das três peças, além

de se considerar os fios narrativos que conduzem as personagens, leva-se em conta,

principalmente, as diferenças, inovações, acréscimos e/ou supressões que compõem a

particularidade de cada uma das versões, o que não implica alteração do mito. Vejamos

a maneira como Pate Nuñez apresenta esta comparação.

Quanto ao espaço, nas Coéforas a ação se passa em Argos, cidade portuária; na

Electra sofocliana, em Micenas, sede do império micênico; e na Electra de Eurípides, se

passa também em Micenas, mas no campo, o que sugere a introdução de segmentos

populares na trama.

As personagens secundárias em Ésquilo são Pílades, amigo fiel de Orestes que

possui apenas uma fala, de fundamental importância para que Orestes mate a mãe, e a

Ama, que tem uma atuação decisiva evocando as razões da matrifobia. Em Sófocles,

Pílades se mantém sempre calado e é o Preceptor que desempenha um papel

fundamental para que o matricídio ocorra. Ainda temos Crisótemis, irmã de Electra,

inventada pelo poeta para contrastar com a protagonista. Em Eurípides, as

personagens secundárias são Pílades, o Ancião, os Dióscuros, um mensageiro e o

Camponês casado com Electra. Essa diversidade de tipos humanos, segundo Carlinda

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58

Pate Nuñez, “[...] é responsável por um esvaziamento do páthos trágico” (2000, p.26),

por tornar a ação favorável à melodramatização.

No que se refere ao coro, nas Coéforas ele é formado por libadoras estrangeiras

escravizadas que se ligam à personagem Cassandra (da primeira peça da trilogia) por

dois atributos: elas possuem a mesma nobreza, o mesmo poder oratório/oracular da

sacerdotisa de Apolo e funcionam como transmissoras da palavra do deus a inspirar

Electra. O título da peça indica a importância do coro para Ésquilo, ao mesmo tempo

em que neutraliza “o protagonismo individualizado, em favor de uma configuração

propriamente catastrófica da ação trágica”. (PATE NUÑEZ, 2000, p.27) Já em

Sófocles, o coro de mulheres micênicas apresenta decisões maduras e racionais,

sublinhando a superioridade de Electra e sua ligação ao pai pelo mesmo

descomedimento. Na peça de Eurípides, o coro, já sem tanta importância, é formado

por jovens micênicas que dão leveza e impulsividade à cena.

Quanto ao desejo de vingança, percebe-se que Electra e Orestes, em Ésquilo, se

correspondem e são solidários nesse ponto, diferentemente dos irmãos sofoclianos,

que se qualificaram para vingar a morte do pai independentemente. As duas Electras

são muito diferentes. Sobre a primeira diz Carlinda Pate Nuñez:

A degradação social de que é vítima, assim como a indignação pelos desmandos provenientes dos atuais governantes, são responsáveis pela interiorização de uma revolta que não chega a se concretizar em atos. (PATE NUÑEZ, 2000, p. 29)

Sobre a personagem em Sófocles, diz Carlinda:

Já a protagonista de Sófocles, confinada em cárcere privado e em vias de sofrer a extradição, vive situações que a constrangem, naturalmente, à ação. (PATE NUÑEZ, 2000, p. 29)

Na Electra de Eurípides, Orestes age sob coação da irmã, personagem

notadamente mais forte se comparada às duas Electras anteriores. O que se percebe é

um crescimento da personagem Electra e uma diminuição do personagem Orestes nas

três peças em questão.

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59

O reconhecimento nas Coéforas se dá através de uma madeixa de cabelos, de

pegadas e de um tecido feito por Electra para seu irmão. Na peça de Sófocles, ele se dá

pelo anel do pai que Orestes usa, cabendo a Crisótemis identificar os sinais de seu

retorno: uma madeixa de cabelos e uma coroa de flores. Na peça euripidiana, Orestes é

reconhecido por uma cicatriz na pálpebra.

Cabelos, pegadas, uma veste, um anel, uma cicatriz atravessam, como variantes, a constante sequência do reconhecimento na narrativa mítica. A convocação de cada um desses elementos se liga, de um lado, ao atendimento a um dos requisitos do mito oral, de outro, à irradiação de simbolismos a serviço da economia dramática. (PATE NUÑEZ, 2000, p.33)

Dois desses elementos constam das três versões gregas: madeixa e pegadas. Eles

possuem uma conexão intrínseca na medida em que estão relacionados à cabeça e aos

pés, que ocupam um espaço privilegiado no corpo humano por compreenderem a

relação entre o céu e a terra, como aponta Carlinda:

Inferem eles a cardinalização da existência humana pela marcha, em horizontalidade, que conduz ao horizonte sem fronteiras da verticalidade. De baixo para cima, a observação do corpo sugere as noções de início e fim e descreve, por órgãos e sentidos, o alfa e o ômega do próprio mistério da humanidade, que, acéfala, não evolui; ápode, não avança. (PATE NUÑEZ, 2000, p. 34)

Os cabelos ainda estão simbolicamente ligados a laços indestrutíveis que

determinam seu corte em caso de luto ou submissão. O Orestes esquiliano corta seu

cabelo ao chegar a Argos em sinal de luto pelo pai; em Sófocles, a impessoalidade deste

gesto gera uma desvalorização deste elemento; e em Eurípides há uma igual

desvalorização do gesto de Orestes, mas há uma grande quantidade de referências aos

cabelos cortados de Electra. Já as pegadas são de suma importância na peça esquiliana

por atestarem que Orestes e Electra pertencem à mesma família, mas, nas duas outras

peças, elas são desprestigiadas, uma vez que o reconhecimento, em uma peça, se dá por

um anel real e, na outra, por uma cicatriz.

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60

No que se refere aos assassinatos, cabe lembrar que a ordem de ocorrência dos

crimes é importante porque hierarquiza as vítimas e determina o impacto final. Em

Ésquilo, Egisto morre primeiro e Orestes hesita em matar a mãe, mas o faz, matando

numa só pessoa a mãe e a adúltera, imagem que se constrói com o assassinato de

Clitemnestra ocorrendo ao lado do corpo de Egisto. Em Sófocles, ao contrário, a mãe

morre primeiro e não há hesitação por parte de Orestes. Como representante e

vingador de seu pai, conduz Egisto ao local em que este matou Agamêmnon e o mata.

Em Eurípides, Egisto morre primeiro, mas seu assassinato não se dá em cena, é

narrado. Isto também ocorre com a morte de Clitemnestra, onde só se sabe o que

aconteceu pelo diálogo entre os irmãos. Isso concorre para a superlativização dos

sentimentos dos assassinos.

As Erínias, divindades vingadoras de crimes de sangue, aparecem em graus

muito diferentes nas três peças enfocadas. Nas Coéforas, em sua perseguição a Orestes,

são sinais provocadores de ação; na Electra de Sófocles não há a perseguição de

Orestes e elas são citadas poucas vezes; em Eurípides há apenas o anúncio da

perseguição e fuga de Orestes para Atenas, não havendo a presença física dessas

divindades.

Estes diferentes papéis atribuídos às Erínias estão atrelados a momentos

históricos distintos. Orestes, na Oréstia, escapa à ação dessas divindades porque Ésquilo

tenciona relatar a evolução pela qual passava o direito na democracia ateniense.

Sófocles viveu em uma época em que não se cabia mais falar sobre o direito do sangue

ou sobre vinganças individuais, pois o século de Péricles privilegia a vigência de leis

ordinárias exercidas publicamente. Influenciado pelo racionalismo do final do século V,

Eurípides coloca as Erínias como personagens que não podem ser antropomorfizadas,

não comparecendo na ação, diferentemente do que vimos na Oréstia, em que na última

peça da trilogia, tais personagens compõem o coro.

Para nos referirmos às adaptações modernas do mito, levaremos em

consideração, além do já citado trabalho da professora Carlinda Pate Nuñez, dois

artigos escritos por Sábato Magaldi: “A Electra de O’Neill” (1989, p. 255-261), no qual

ele faz um estudo comparativo entre Mourning becomes Electra, de Eugene O’Neill, e a

Oréstia; e “A peça que a vida prega” (1993, p. 50-59), onde ele faz um outro estudo

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comparativo, agora entre Mourning becomes Electra e Senhora dos Afogados, de Nélson

Rodrigues, sem perder de vista o vínculo que ambas possuem com a Oréstia.

No início do século XX, o dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill foi

buscar no mito de Electra e sua família, o fio condutor para a escritura de um drama

psicológico moderno – a trilogia Mourning becomes Electra (Electra Enlutada). São muitas

as semelhanças entre esta trilogia e a de Ésquilo, mas ao transpor o mito para a

modernidade, O’Neill o revestiu com as exigências do realismo contemporâneo sem,

contudo, desprezar a noção de destino presente na lenda.10

Assim é que, na trilogia moderna, temos a ação transplantada para os Estados

Unidos pós-Guerra Civil, com os seguintes pares correspondentes entre os

personagens: Agamêmnon – Ezra Mannon; Clitemnestra – Christine; Electra – Lavínia;

Orestes – Orin; Egisto – Adam Brant; Pílades – Peter; e Hermione – Hazel.

Na primeira peça da trilogia, A volta ao lar (Homecoming), a ação se passa na

mansão dos Mannon à noite. É nessa parte que o público toma conhecimento do

crime que vai desencadear uma série de outros crimes e testemunha o primeiro deles: o

patriarca da família, Ezra Mannon, é morto por sua esposa adúltera, Christine, com a

ajuda de seu amante, Adam Brant. Na segunda parte, Os perseguidos (The Hunted), a ação

se passa em dois ambientes diferentes: a mansão dos Mannon e a popa de um navio no

cais à noite. É nessa parte que os filhos do casal, Lavínia e Orin, vingam a morte do pai

matando o amante da mãe, ou melhor, Lavínia induz Orin a cometer o crime. Como

decorrência desse crime, Christine se mata, a partir de condições criadas por Lavínia.

Na terceira peça, Os amaldiçoados (The Haunted), a ação se dá na mansão dos Mannon à

noite, um ano depois dos acontecimentos do ato anterior. Os irmãos Lavínia e Orin

estão de volta de uma viagem feita para ajudar Orin a esquecer o que fez e não mais se

culpar pela morte da mãe. Mas isso de nada adianta e ele, acometido pela loucura, se

mata, deixando Lavínia sozinha na casa.

Pode-se notar que, assim como em Sófocles e Eurípides, em O’Neill

Electra/Lavínia é elevada ao primeiro plano da trama, compondo, junto com o irmão,

o par protagonista. Seu final é totalmente diferente das versões gregas, como cabia a

10 São muitos os pontos semelhantes e distintos entre a trilogia moderna e as peças gregas referidas aqui. Mas a discussão deles será objeto do nosso próximo capítulo.

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uma adaptação influenciada pelas idéias surgidas no final do século XIX e início do

XX. Segundo Sábato Magaldi:

Lavínia domina quase completamente a trama: desarma Adam Brant ao descobrir-lhe a identidade, tem a revelação de que o pai foi envenenado, leva Orin a assassinar o amante da mãe e cria as condições para que ela se suicide, permite que Orin também se mate para evitar que divulgue os segredos da família, e decide consumir-se solitária na casa senhorial. (MAGALDI, 1989, p.259)

Em contrate com a personalidade forte de Lavínia, seu irmão Orin é um

personagem fraco, diferentemente do Orestes esquiliano, visto que “[...] a dúvida, a

indecisão, a fragilidade são seus traços dominantes.” (MAGALDI, 1989, p. 260) Ele se

deixa influenciar facilmente pela irmã a ponto de fazer o que ela quer e se tornar

apenas um joguete em suas mãos. No final, não agüenta o remorso pelo suicídio da

mãe e se mata.

O coro, nesta trilogia moderna, se pulverizou em uma série de personagens que

circundam a casa dos Mannon, destacando-se o personagem Seth, jardineiro da família.

Por ser composto de personagens populares, o coro de O’Neill representa a voz do

povo, mas sem a missão educativa do coro grego, fazendo apenas comentários sobre o

que acontecia na mansão dos Mannon.

A perseguição das Erínias também está na Electra Enlutada. É claro que,

transposta para os tempos modernos tal e qual está na peça de Ésquilo, ficaria

totalmente inverossímil, então O’Neill resolveu assinalar a presença do ódio e da morte

na mansão dos Mannon para que todos pensassem que ela era assombrada e, assim, o

papel das divindades vingadoras fica à cargo dos antepassados da família.

Passando para o cenário brasileiro, temos o mesmo mito recontado de outra

forma pelo dramaturgo Nélson Rodrigues em sua peça Senhora dos Afogados.

Apresentada no Rio de Janeiro em junho de 1954, é inegável o vínculo que tem com a

trilogia de O’Neill, como afirma Sábato Magaldi:

Acredito hoje que a admiração que Nélson nutria por O’Neill serviu de estímulo inicial para empreender a ambiciosa tarefa de Senhora. Por honestidade intelectual, ao invés de repelir o

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parentesco apontado, ele preferiu assumi-lo como um elemento óbvio. Porque a peça brasileira parte para uma realização autônoma, em que as referências ao mito grego original se acham tão contaminadas por outros valores que o modelo se dilui. (MAGALDI, 1993, p.51)

A diferença entre as duas obras começa pela extensão. Senhora dos Afogados não é

uma trilogia, mas uma peça em três atos, portanto mais condensada, principalmente

porque a idéia da cadeia ancestral de crimes não está presente aqui. Há uma cadeia de

crimes gerados por um primeiro crime, mas todos se concentram nas ações dos

personagens da família em questão – os Drummond – que aparecem em cena.

A ação, assim como em O’Neill, se passa na casa dos Drummond, perto de uma

praia selvagem, com exceção de um quadro, onde ela é transferida para o café do cais.

Diferentemente de O’Neill, cujas ações da trilogia se passam em um ano, em Nélson

toda a ação se dá em dois dias. Como pares correspondentes de personagens, temos:

Ezra Mannon – Misael Drummond; Christine – D. Eduarda; Lavínia – Moema; Orin –

Paulo; Adam Brant – o Noivo. Em O’Neill, os nomes dos personagens tinham uma

vinculação eufônica com os do mito, mas Nélson preferiu adotar essa relação apenas

para o sobrenome da família. Cabe aqui mencionar dois fatos relativos aos

personagens: ao contrário de Ezra e de Agamêmnon, Misael morre apenas no final da

peça, de razões não explicadas; e o Noivo é filho de Misael, não sobrinho.

No primeiro ato de Senhora dos Afogados, o público toma conhecimento do

primeiro crime cometido pelo patriarca Misael Drummond: o assassínio de uma

prostituta no dia de seu casamento. No segundo ato, acontece a chegada daquele que

veio se vingar de Misael - o Noivo, filho de Misael e da prostituta – que consegue que

D. Eduarda se entregue a ele. Moema incita o pai e o irmão, Paulo, a vingarem-se de

sua mãe e do Noivo. É no terceiro ato que Paulo mata o Noivo e Misael mata a esposa.

Arrependidos, Paulo se mata e Misael morre. Moema, assim como Lavínia, termina a

peça sozinha em casa, guardando uma semelhança assombrosa com a mãe.

Pode-se notar que relações incestuosas povoam a peça de Nélson, a começar

das relações afetuosas entre Moema e o pai (e o ódio desta pela mãe), e entre Paulo e a

mãe. O Noivo é uma outra figura que gera esse tipo de relação, primeiro ao se ligar a

Moema e, depois, no seu relacionamento com D. Eduarda. Em O’Neill também temos

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sugeridos os complexos de Édipo e de Electra, mas na peça brasileira eles estão mais

explícitos.

O coro em Senhora dos Afogados é composto ora por vizinhos ora por mulheres

do cais. Seus integrantes, ao contrário de Mourning becomes Electra, não possuem nomes e

dialogam diretamente com os outros personagens da peça. Nélson toma algumas

liberdades dramáticas com o coro de vizinhos: em um momento da peça, ele tapam o

rosto com uma das mãos, indicando que não participam da ação; e em vários

momentos, eles utilizam máscaras, que seriam suas verdadeiras faces. Já o coro das

mulheres do cais funcionam “como verdadeiras deusas vingadoras, a exigir a punição

do assassínio. Representam a consciência viva contra a impunidade, como as Erínias

em relação a Orestes”. (MAGALDI, 1993, p.55).

Assim como em O’Neill, em Nélson a personagem Moema é elevada ao

primeiro plano, em detrimento de seu irmão Paulo que, assim como Orin, funciona

como apenas um elemento para que Moema possa realizar seu desejo de ser a única

mulher da casa e da vida do pai. Da mesma forma de Orin, acometido pela loucura e

sentindo remorso pelo que fez, Paulo se mata. E a inegável força de Moema se

assemelha muito à de Lavínia. Para conseguir o que quer, ela não hesita em matar as

duas irmãs e a avó e arquiteta um plano para fazer com que o pai mate a mãe e o

irmão, o amante desta. Mas ao contrário de Lavínia e sua mãe, que têm uma

semelhança física impressionante, Moema e a mãe se assemelham apenas pelas mãos e

gestos.

Como personagens secundárias temos a avó, mãe de Misael, que, após ver o

filho matando a prostituta, encontra na loucura um refúgio da responsabilidade de ter

presenciado o crime do filho. “Alienada do mundo, ela não julga, não condena –

encontra na ausência a cura da tragédia” (MAGALDI, 1993, p.58). E as personagens

do cais: a dona do bordel, mãe da prostituta assassinada, o vendedor de pentes e Sabiá,

que rege o coro de mulheres.

Neste trabalho, propõe-se um estudo comparativo de duas peças, dessas

trilogias apontadas acima: Coéforas, segunda peça da trilogia de Ésquilo, e Os perseguidos,

segunda peça da trilogia de O’Neill. Para isso, o estudo estará centrado nas relações

entre duas personagens: Electra e Orestes, na primeira peça; e Lavínia e Orin, na

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segunda peça. Além disso, também será levada em consideração a personagem

Clitemnestra, mãe de Electra e Orestes, e Christine, mãe de Lavínia e Orin, pois ela é o

elemento que une os irmãos. Esse estudo será feito com o objetivo de verificar de que

forma essas personagens são trabalhadas nas duas peças e sua evolução, para, dessa

forma, verificar-se de que forma o mito de Electra foi adaptado para a modernidade.

Foi escolhida a versão esquiliana por esta ser o registro mais antigo e completo

desse mito no teatro, um dos motivos pelos quais O’Neill também a escolheu como

base para seu drama psicológico moderno. E a trilogia de O’Neill foi escolhida

justamente por isso, por ele pensar assim e se propor a reelaborar esse mito dando-lhe

uma roupagem moderna. Primeiro será feito um estudo das duas personagens nas

Coéforas, para depois compará-las com as personagens correspondentes em Os

perseguidos.

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CAPÍTULO III

DO SOFRIMENTO À PERSEGUIÇÃO: ELECTRA E

ORESTES NAS TRILHAS DA VINGANÇA E DO TEMPO

1. Electra e Orestes: trilhas da adaptação

No século V a. C., Ésquilo escreveu a Oréstia, trilogia em torno do mito dos

Atridas – família maldita cujo “erro” de um antigo ancestral desencadeia uma série de

crimes intrafamiliares, como já foi explicitado no capítulo anterior. Séculos depois, o

mesmo mito serve de base para a feitura de um drama psicológico moderno, quando,

em 1931, o dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill escreve a trilogia Mourning

Becomes Electra (Electra enlutada, conforme a tradução em português)11. Nesta

transposição, o principal problema a enfrentar, segundo O’Neill, seria dar à trilogia

uma aproximação psicológica moderna do antigo sentido que o Destino tinha para os

gregos, apresentando o mito com uma “nova roupagem”, de modo que o público do

século XX o aceitasse e o sentisse.

Era grande o risco de esvaziar as tragédias originais de sua carga mítica, sem estabelecer valores novos, capazes de substituir-lhe o alcance. A palpável diferença entre as versões que Ésquilo, Sófocles e Eurípides deram à lenda devem ter

11 Para este trabalho estamos utilizando a seguinte edição: O’NEILL, Eugene. Mourning becomes Electra. New York: Random House, 1959. Daqui por diante, citaremos apenas a paginação.

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animado O’Neill na tarefa de acrescentar à história do teatro a sua exegese. (MAGALDI, 1989, p. 254)

Sábato Magaldi, certamente, se refere às duas outras versões do mito dos

Atridas escritas por dois outros tragediógrafos gregos, Sófocles e Eurípides, que se

intitulam Electra. O’Neill preferiu se basear em Ésquilo por essa ser a versão mais

antiga que nos restou no teatro e por ser a única trilogia a tratar desse tema. Mas, assim

como Sófocles e Eurípides, o norte-americano optou por elevar a personagem Electra

ao primeiro plano, como já podemos constatar apenas com a leitura dos títulos das

peças.

Apesar disso, são muitos os pontos de semelhança entre Mourning Becomes

Electra e a Oréstia, a começar pelos nomes das personagens, como já foi apontado no

capítulo dois. A ação nas duas trilogias se passa em duas cidades portuárias, cujo

cenário, em Ésquilo, é o palácio real e, em O’Neill, é a mansão dos Mannon, em estilo

grego, como era moda na época. Em ambas, o patriarca volta para casa após ter

combatido na guerra: Agamêmnon, comandante dos gregos em Tróia; Ezra Mannon,

general do exército norte-americano na Guerra Civil. Essas e outras semelhanças já

apontadas são incontestáveis, mas a escolha por elevar a personagem Lavínia ao

primeiro plano fez com que surgissem vários pontos de divergência.

É justamente com base nessas divergências entre as duas obras que se pode

dizer que aqui se trata de uma paródia. A palavra tem origem no termo grego parodia

que pode significar uma oposição ou contraste entre textos ou, ainda, como afirma

Hutcheon:

A paródia é, pois, na sua irônica “transcontextualização” e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que o incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia. (HUTCHEON, 1985, p. 48)

Essa ironia, que muitas vezes tem um sentido negativo em seu uso comum, aqui

pode ser bem-humorada ou depreciativa, criticamente construtiva ou destrutiva,

dependendo dos objetivos do autor da paródia. Esta, por sua vez, tem na incorporação

sua realização e forma, e na separação e contraste sua função. Ela recontextualiza,

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sintetiza e reelabora convenções de maneira respeitosa, e acentua a diferença entre as

obras, tendo a característica de ser transformadora. A análise da paródia pode auxiliar o

estudo da dramaturgia comparada12, facilitando “o estudo da passagem de

determinados traços ou características de uma literatura para outra” (BETTI, 2000, p.

143). Ou ainda, ajudar na leitura comparativa entre experiências e relações passadas ou

atuais, através do estudo dos registros lingüísticos, políticos e sociais dentro de uma

sociedade, ou sociedades.

Mas há que se fazer uma distinção entre paródia e plágio e paródia e sátira, pois,

segundo Hutcheon, eles estão muito próximos. Os dois primeiros se distinguem com

base na intenção: enquanto que na paródia a intenção é de imitar com ironia crítica, no

plágio, a imitação é feita com a intenção de enganar. Já a paródia e a sátira estão muito

mais próximas, pois tanto uma quanto a outra implicam distanciação crítica e, por isso,

julgamento de valor, e é aí que está a diferença: a sátira faz uma afirmação negativa do

objeto satirizado, enquanto que na paródia moderna “verificamos não haver um

julgamento negativo necessariamente sugerido no contraste irônico dos textos”

(HUTCHEON, 1985, p.62). É importante ressaltar que O’Neill não pretendeu dar um

sentido risível quando parodiou o texto de Ésquilo e, apesar de sua conhecida

admiração pelas tragédias gregas antigas, também aqui não pretendeu imitar de forma

nostálgica, mas como “uma confrontação estilística, uma recodificação moderna que

estabelece a diferença no coração da semelhança” (HUTCHEON, 1985, p. 19).

Pra fazer sua trilogia, O’Neill baseou-se, inegavelmente, na trilogia esquiliana,

mas há também traços pessoais em sua obra, além da influência das idéias e conceitos

de sua época que o auxiliaram a desenvolver certas questões que foram apenas

sugeridas por Ésquilo, como os complexos de Electra e Édipo. Como afirma Magaldi:

Na tentativa de estabelecer as equivalências entre a tragédia grega e o drama psicológico moderno, O’Neill precisou frequentemente reportar-se ao modelo esquiliano e muitas vezes, também, enveredar por caminho pessoal. As necessidades de maior fundamentação psicológica, no

12 Segundo Betti, a dramaturgia comparada “se estende do(s) texto(s) ao campo histórico das relações inter-textuais e contextuais por ele(s) referidas; na perspectiva inter-textual, ela concentra-se sobre o domínio dos respectivos discursos e sobre suas formas de construção de sentido” (BETTI, 2000, p. 146).

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procedimento realista, fez que a trilogia grega, aparentada superficialmente a uma peça em três atos, se convertesse em uma trilogia em treze atos. Tudo é preparado e discutido em minúcias no texto norte-americano, para que o menor gesto encontre a motivação dramática num crescendo interior. (MAGALDI, 1989, p. 258)

É uma leitura comparativa de duas peças das trilogias – Coéforas e Os Perseguidos –

que se segue agora para mostrar como foi feita essa adaptação do mito à modernidade,

tomando por base as personagens Electra/Lavínia e Orestes/Orin, bem como suas

relações com as figuras maternas – Clitemnestra e Christine, respectivamente,

considerando a já citada ressemantização do conflito entre filhos e mãe.

2. As Coéforas

Em Coéforas, a ação se passa no palácio real de Argos e os personagens

principais são Clitemnestra, Egisto, Orestes, Electra e Agamêmnon, que se faz presente

através de seu túmulo e ao ser tantas vezes evocado pelos filhos. Mas antes de ir

adiante nos pormenores da peça, é preciso que se faça uma contextualização da

situação em que se encontra a família no momento da ação.

Na primeira peça da trilogia, Agamêmnon, o rei de Micenas volta para casa após

chefiar os gregos na guerra de Tróia, trazendo consigo Cassandra, filha do rei Príamo

de Tróia. Ao chegar é morto pela esposa, Clitemnestra, apoiada pelo amante, Egisto, e

os dois também matam Cassandra. Coéforas se inicia com o retorno de Orestes, filho de

Agamêmnon e Clitemnestra, que foi enviado à Fócida logo após a morte do pai, ainda

criança. Em seu retorno, ele se encontra com a irmã Electra, que está fazendo libações

no túmulo do pai com algumas escravas do palácio, as coéforas do título. Orestes,

então, lhe conta que veio vingar a morte do pai a mando de Apolo, vontade que se

acentua quando ele sabe da situação de Electra no palácio, visto a irmã viver como

escrava. Ele conta seu plano à irmã e às escravas e se dirige ao palácio, sempre com seu

amigo Pílades. Ao chegar ao palácio, ele mata Egisto e depois Clitemnestra. Vendo-se

perseguido pelas Erínias maternas – deusas vingadoras – , vai ao templo de Apolo

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pedir ajuda. Em Eumênides, temos o julgamento de Orestes, do qual participam deuses e

mortais. Ele é absolvido graças ao voto de Atena que, para aplacar a ira das Erínias, as

transforma em divindades benfazejas, as Eumênides do título.

As personagens secundárias são duas: Pílades, primo e amigo de Orestes, que o

acompanha no seu retorno ao palácio e que enuncia uma única e fundamental fala para

a consumação do assassinato de Clitemnestra, lembrando a Orestes o oráculo de Apolo

(Coéforas, v. 1149-1153)13, e a ama de Orestes, Kilissa, que atua decisivamente ao evocar

as razões da matrifobia (Coéforas, v. 959-967)14. É importante notar que o coro de

libadoras estrangeiras, escravas do palácio que situam o drama na esfera religiosa, dão

nome à peça pela importância que esse elemento tinha para Ésquilo e, assim, nem

proclama Orestes como protagonista absoluto e nem privilegia a atuação de Electra.

Há como que a neutralização do protagonismo individualizado, em favor de uma configuração propriamente catastrófica da ação trágica. [...] Por outro lado, são as mesmas coéforas que, salvaguardadas da memória de Cassandra, funcionam como a palavra de Lóxias a inspirar Electra, por essa via tão comprometida com a determinação apolínea quanto o irmão. (PATE NUÑEZ, 2000, p. 27)

Por este ser um coro de estrangeiras escravizadas, ele tem uma ligação com a

personagem Cassandra, da primeira peça, sacerdotisa de Apolo que tem o dom de

prever acontecimentos. Todas possuem a mesma cosmovisão, o mesmo poder

oratório/oracular e são inspiradas por Apolo. Elas também se correspondem pela

cidadania, pelo infortúnio e pelos reclamos de justiça. A determinação apolínea se

refere ao oráculo do deus Apolo, que determina que o assassinato de Agamêmnon não

pode ficar impune. Segundo o deus, cabe a Orestes a vingança que, se não for levada a

cabo, fará de Orestes vítima de terríveis sofrimentos. Diz o oráculo, como relata

Orestes:

13 "Que restaria de agora em diante, Orestes,/ do oráculo de Apolo, das proclamações/ de Pito, sua intérprete, da lealdade, / penhor dos juramentos? Seria melhor,/ obedecer aos deuses que a todos os homens!" (Coéforas, v. 1149-1153) 14 "Na presença de seus criados Clitemnestra/ quer dar a impressão de estar preocupada;/ seus olhos, todavia, ocultam um sorriso,/ pois tudo para ela se encaminha bem;/ para o palácio dos Atridas, ao contrário,/ os estrangeiros anunciam claramente/ a mais completa ruína. Certamente Egisto/ irá ficar com o coração cheio de júbilo/ quando escutar as novidades que lhe trazem." (Coéforas, v. 959-967)

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Por certo o onipotente oráculo de Apolo/ não falhará depois de haver determinado/ que eu enfrentasse este perigo até o fim/ e revelado em altas vozes aflições/ que fizeram gelar o sangue no meu peito/ se não vingasse um dia a morte de meu pai/ punindo os homicidas; o deus ordenou/ que eu os exterminasse em retaliação,/ enfurecido pela perda de meus bens./ Se eu não o obedecesse, disse ainda o deus,/ teria de pagar um dia a minha dívida/ com a própria vida entre terríveis sofrimentos. (Coéforas, v. 353-364)

Com isso, a ênfase textual recai mais sobre a argumentação de Orestes de que

os assassinatos de sua mãe e do amante se realizam nos termos de um ato religioso.

Percebe-se, desse modo, que a participação de Electra não é determinante do ato

vingativo, pois, quanto ao desejo de vingança, os irmãos se correspondem e se

solidarizam, mas Electra não faz declarações tão ousadas: a indignação que ela sente

perante o que aconteceu em relação à sua atual condição no palácio, onde é tratada

como escrava, faz crescer uma revolta interior que não se exterioriza, não se concretiza

em atos, conforme já afirmamos, apoiados em Pate Nuñez (2000).

Orestes, ao contrário de Electra, é o encarregado de tudo o que diz respeito à

vingança, visto que, além de estar cumprindo a determinação de um deus, tem seus

bens e seu direito ao trono de Micenas ameaçados. Por isso, é ele quem elabora e

realiza o plano de vingança e diz a todos os envolvidos o que eles devem fazer: a

Electra, manda que volte ao palácio (“Ela regressa ao palácio”, diz Orestes apontando

para a irmã, Coéforas, v. 727); e ao coro manda que voltem ao palácio e tenham cuidado

com o que falam (“E tu, volta ao palácio imediatamente/para que tudo marche como

desejamos./Peço-vos a maior prudência nas palavras,/falando ou omitindo-vos

discretamente”, Coéforas, v.761-764) e que guardem segredo do plano (“Quanto a vós

todas, devereis guardar segredo”, Coéforas, v. 728).

Pode-se notar, portanto, que toda a ação vingativa é realizada por Orestes,

Electra não participa, apenas impele o irmão, maquinando a partir da ira os desejos de

vingança, com seus relatos do que está se passando no palácio e de sua vida desde que

Clitemnestra e Egisto assumiram o poder:

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Falas das desventuras de meu pai;/a mim, porém, privaram-me de tudo,/dando-me o tratamento de uma escrava;/confinada em meu quarto como um cão/maligno, mais pronta a chorar que a rir,/eu me ocultava para soluçar,/sofrendo sem um momento de alívio. (Coéforas, v. 575-580)

Ela sabe que sozinha não pode fazer nada e espera ansiosa a volta de seu irmão

para que ele possa fazer vingar o assassinato do pai, a quem dirige um apelo pela volta

de Orestes:

[...] Que um feliz acaso/ traga de volta Orestes! Eis a minha súplica;/ouve-me, pai! Concede-me que eu seja sempre/mais sensata que minha mãe e tenha as mãos/muito mais inocentes! São estas as preces/referentes a nós, mas quanto aos inimigos/imploro que afinal venha juntar-se a mim/um homem para te vingar, bastante forte/para matar teus assassinos, pai querido,/em justa retaliação... (Coéforas, v.188-197)

Mas o fato é que Orestes já chega em Argos determinado a fazer justiça ao pai,

matando a mãe e o amante dela, ou seja, os relatos da irmã apenas acentuam essa

vontade, mas não são determinantes dela. O relacionamento entre os irmãos gira em

torno da idéia de proteção. Como sendo o salvador do reino de Micenas, Orestes é

para a irmã aquele que a libertará dos males que sofre, que lhe trará de volta sua antiga

vida no palácio, quando o pai anda vivia, e que a protegerá como o pai o fazia:

Ah! Presença querida que agora recebes/minha ternura quatro vezes, pois terei/de chamar-te de pai, de dar-te todo o amor/que deveria dedicar à minha mãe/(aquela que por todas as razões odeio)/de transferir-te ainda o carinho devido/à minha irmã sacrificada cruelmente/e de te amar por ver em ti neste momento/o irmão fiel capaz de me trazer de volta/a consideração de todos os mortais! (Coéforas, v.311-320)

Orestes sente o dever de proteger a irmã, de fazer com que ela seja de novo

respeitada como era seu direito, pela sua descendência real. E ele a trata com carinho,

chamando-a sempre de “irmã querida” (cf. v. 23 e 561), e sabe que ela está ao seu lado

na vingança contra os assassínios do pai, mesmo que não participe ativamente da ação.

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Já Clitemnestra funciona como elo de ligação entre os filhos, uma vez que é por

causa de seus atos que Orestes retorna ao palácio, unindo-se à irmã. E o sonho que ela

tem logo no início da peça, que é o motivo pelo qual o coro e Electra fazem libações

no túmulo de Agamêmnon quando da chegada de Orestes, tem o sentido de ressaltar o

confronto mãe/filho. Segundo Pate Nuñez, o sonho é um emissário de uma revelação

enquanto depositário de uma verdade. Sobre a função dos sonhos, no contexto grego,

ela afirma:

De acordo com seu significado (nunca buscado intuitivamente, mas, o mais das vezes, com o auxílio de manuais, os pinákia), pode-se constituir um sonho simbólico (adornado por metáforas ou enigmas, que exigem esforço interpretativo); se propõe a premonição direta de um acontecimento futuro, denomina-se hórama (visão); quando o pai ou outra personagem respeitada ou impressionante (um sacerdote, um deus, um ancestral) revela um simbolismo do que pode (ou não) acontecer, trata-se de um khrematismós (oráculo) que integra a experiência religiosa do sonhador. (PATE NUÑEZ, 2000, p. 47)

Segundo esta classificação, pode-se dizer que nas Coéforas se dá o hórama, pois a

identificação de Orestes com a serpente onírica significa a adoção da identidade de

matricida pelo herói, que passa a agir em função de um renascimento simbólico. Eis o

sonho, relatado pelo coro a Orestes:

No sonho pareceu-lhe parir uma víbora,/de acordo com a sua própria afirmação./Ela envolveu em fraldas a pequena víbora,/como se se tratasse de uma criancinha./No sonho, ela mesma lhe apresentava o seio/[...] (que a víbora) Feriu e logo o sangue misturou-se ao leite. (Coéforas, v. 688, 689, 691, 692, 694, 696)

Em seguida, Orestes o interpreta:

Cumpre-me interpretá-lo então literalmente:/se, nascida do mesmo ventre de onde vim,/a víbora, como se fosse uma criança,/depois de ser vestida em fraldas pôs a boca/no mesmo seio em que me alimentei na infância/e misturou sangue com leite enquanto a mãe/gritava perturbada pela dor intensa,/indiscutivelmente ela, que nutriu/um monstro

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pavoroso, terá de ofertar-me/seu próprio sangue, e eu, transformado por ela/numa terrível víbora, matá-la-ei,/como posso inferir do sonho inspirador. (Coéforas, v. 707-721)

Segundo Adélia Bezerra de Meneses (2002), serpente, entre os antigos,

representava algo vindo do mundo dos mortos, do subterrâneo, daí sua identificação

com Agamêmnon, como o fazem os adivinhos de sonhos no início da peça. Assim

também o pensa Clitemnestra, por isso manda as libações ao túmulo do marido

assassinado para tentar aplacar sua fúria. Mas, sabe-se que essa interpretação não está

totalmente correta e que agora o matricídio será insuflado não apenas por Apolo, mas

também pelas divindades infernais manifestadas através do sonho. Segundo uma

interpretação psicanalítica deste sonho, apresentada por Meneses (2002),

Essa identificação de pai e filho faz-se de maneira muito forte no âmbito da imagem: a serpente é o pênis de Agamêmnon penetrando a mulher, ao mesmo tempo que é a criança-falo sendo parida; enquanto que sugar-morder o seio é – ao mesmo tempo amamentação e coito sádico. Além disso, a serpente que, parida pela mulher, lhe morde o seio – é uma representação estilizada do uróboro (serpente que morde a própria cauda), figuração da totalidade. O círculo se fecha, recompondo a unidade mãe-filho. (MENESES, 2002, p.132)

E quando Orestes se identifica com a víbora ao interpretar o sonho da mãe, ele

também se identifica com o pai e com a própria mãe, víbora assassina. Pode-se dizer

que esse é um sonho edípico, mas que nesse contexto não tem que ser necessariamente

interpretado como tal, pois no imaginário clássico, a relação sexual com a mãe pode ser

entendida como sonho de tomada de poder, uma vez que ‘mãe’ significa ‘pátria’. Pate

Nuñez (2000), dá uma outra interpretação à característica edípica do sonho de

Clitemnestra, pois, segundo ela, no sonho existe a realização de desejos incestuosos,

mediante o domínio e a posse a mãe, mesmo que para matá-la. E esse matricídio

expressa uma vingança que se faz mais em nome da dupla rejeição de que Orestes foi

vítima – rejeição do filho perante o pai e, depois, perante o amante – do que, apenas,

pela morte do pai.

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A imagem da serpente é recoletiva do feixe de presenças masculinas ao redor de Clitemnestra, gulosamente disposta a dela servir-se na proporção mesma em que se alternam as identidades e os desejos do filho, do amante e do pai no serpentiforme Orestes. (PATE NUÑEZ, 2000, p.53)

Ainda segundo Pate Nuñez, ao apelar para a maternidade no momento de sua

morte, na tentativa de fazer com que o filho desista de seu intento, Clitemnestra dá

sustentação à sua imagem de objeto de desejo. E a ama Kilissa é a contrapartida

maternal e compensatória da mãe assassina: ela preenche as necessidades de amor de

Orestes com sua dedicação e afetuosidade. Dessa forma, ratifica-se a identificação de

Orestes com o pai pelo signo ofídico, e se oportuniza a sua constituição enquanto

sujeito desejante.

Quanto à relação mãe-filha, Brandão (2002) sustenta que ambas são vítimas do

despotismo patriarcal. Aliás, Brandão considera que toda a trilogia é um debate entre o

matriarcado, configurado por Clitemnestra e pelas Erínias, e o patriarcado, configurado

por Agamêmnon, Electra, Orestes, Apolo e Atena. Diz ele referindo-se a Electra:

Seu ódio pela mãe e por Egisto fundamentava-se a princípio na repulsa pelo adultério de Clitemnestra e na repugnância que sentia por Egisto, que, além de inimigo antigo e irreconciliável, ocupava o trono de Agamêmnon, que, longe do lar, combatia em Tróia. Esse rancor aumentou por força das reclamações da rainha, que acusava diariamente a filha de haver salvo a vida de Orestes, única ameaça futura à estabilidade dos amantes. (BRANDÃO, 2002, p. 335, vol. III)

Clitemnestra é vista também como o duplo de Electra, como que uma projeção

de características pertencentes a ela, mas que não são mostradas por ela própria. Da

mesma forma que Electra é o duplo de sua mãe. Como explica Vernant:

O duplo é uma realidade exterior ao sujeito, mas que, em sua própria aparência, opõe-se pelo seu caráter insólito aos objetos familiares, ao cenário comum da vida. Move-se em dois planos ao mesmo tempo contrastados: no momento em que se mostra presente, revela-se como não pertencendo a este mundo, mas a um mundo inacessível. (VERNANT, 1990, p. 389)

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Quanto ao assassinato, tanto Pate Nuñez (2000) quanto Brandão (2002)

defendem que foi um ato vingativo de uma mãe, e que Agamêmnon não poderia fugir

à sua morte porque é culpado pelo sacrifício de Ifigênia e pela destruição de Tróia, e

também porque pesa sobre ele a maldição do génos familiar. Todas essas culpabilidades

o deixam impossibilitado de exercer seu poder de discernimento e de fazer valer seu

julgamento. Entra aqui a questão do destino para os gregos. Agamêmnon não poderia

evitar sua morte porque não pode fugir ao seu destino. Para os gregos, todos os

mortais e também os imortais estão sujeitos ao destino.

Assim como Orestes veio vingar a morte do pai, as Erínias aparecem para

vingar a morte de Clitemnestra. Essas divindades ctônicas que têm como função vingar

assassinatos entre membros consanguíneos desempenham, na trilogia esquiliana, a

função polissêmica de referencializar personagens ausentes, conquistando um espaço

cada vez maior, chegando atuar como personagens com atores desempenhando seu

papel em Eumênides.

Profundamente associadas à Terra-Mãe, entendem que o sangue parental derramado dessangra a própria matriz originária e, por isto, insurgem-se implacáveis, como intendentes da expiação, do remorso, do pavor que tal violência suscita. Farejando as relações metíficas emanadas do assassínio intrafamiliar, prontificam-se a desgarrar-se das profundezas infernais em missão saneadora, que previne contra o risco de infectação de todo o grupo social. (PATE NUÑEZ, 2000, p. 43)

O que mais provoca horror em relação às Erínias é o fato de que elas são

testamentárias de um sentimento materno e dirigem seu ódio àquele que devassa os

segredos da maternidade. É por isso que elas também são referidas como "Erínias de

uma mãe". Assim sendo,

Para as Erínias a morte de Agamêmnon é de somenos importância: a rainha Clitemnestra não se ligava a ele pelo ius sanguinis, pelo direito consanguíneo e estava de outro lado vingando o sangue derramado de sua filha Ifigênia. (BRANDÃO, 2002, p. 337, vol. 3)

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É por essa razão que Clitemnestra não é assombrada pelas Erínias quando mata

seu marido. E é por essa razão que Orestes é perseguido por elas por matar a mãe, pois

aqui se configura um crime consanguíneo, mais grave ainda por ter sido cometido

contra a mãe. Orestes, então, é tomado pela demência funesta que elas disseminam. E

o único meio que ele encontra para livrar-se da manía (loucura) é pedir ajuda a Apolo,

afinal ele cometeu o assassinato a mando do deus, ou seja, ele foi o instrumento da

vontade divina. Aconselhado por ele, Orestes procura Atena, que institui o Conselho

dos Areopagitas em Atenas, tribunal encarregado de julgar os crimes de sangue, onde

Orestes é absolvido.

3. Os perseguidos

É justamente a noção de Destino grega que O’Neill tenta adaptar à

modernidade, mostrando que o orgulho dos Mannon tem a mesma noção trágica de

hamartía (erro), o que explica a mesma cadeia de erros que culmina com a destruição da

família, diferentemente do visto em Ésquilo.

Em Os perseguidos, a ação se passa na Nova Inglaterra, logo após o término da

Guerra Civil norte-americana, e os personagens principais são Christine, Adam Brant,

Lavínia, Orin e Ezra Mannon, cujo corpo é velado no interior da mansão. Sua morte

ocorre na primeira peça da trilogia, A volta ao lar. Logo que ele regressa para casa, após

combater na Guerra Civil, é assassinado pela esposa Christine com a ajuda de seu

amante, Adam Brant. Os personagens secundários são os irmãos Peter e Hazel, e

algumas pessoas da cidade que, juntamente com o jardineiro Seth, formam o que se

pode chamar de coro, o tempo todo fofocando sobre a família e querendo saber que

segredos estão escondidos dentro da misteriosa e assombrada mansão ou por trás das

máscaras (“life-like mask”, rostos estáticos) comuns a todos da família. Essas máscaras

funcionam como um sinal visual do destino partilhado pelos membros dessa família

maldita.

Na transposição do mito grego, deuses comandando a ação da peça seria

inverossímil, então os deuses aqui são outros, na verdade mais terríveis que os gregos,

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pois infundiram nos homens a idéia de culpa, do “pecado original”, de que não podem

fugir. Esses “deuses” são os conceitos modernos que nos foram apresentados pela

moderna psicologia para explicar as ações humanas, com a culpa, as frustrações, os

desejos do subconsciente e os complexos. Entretanto, há também a idéia de um crime

cometido por um ancestral que desencadeia toda uma série de crimes dentro da família,

que termina destruída: o pai de Ezra, Abe Mannon, expulsou de casa seu irmão David

porque ele se apaixonou por uma enfermeira, portanto de classe social inferior. Fez

isso não só pelo escândalo que a situação traria para a família, mas também porque se

apaixonou pela mesma mulher. David não suportou as pressões de um casamento

desigual e suicidou-se. Antes disso, porém, seu irmão havia lhe roubado grande parte

de sua fortuna. Anos mais tarde, pobre e doente, a enfermeira pede ajuda a Ezra, que a

despreza, e ela acaba morrendo. De sua união com David, nasce Adam Brant, que se

une à esposa de Ezra para vingar a morte da mãe. A justificativa para o assassinato de

Ezra pela esposa Christine não se dá pelo sacrifício de uma filha, mas pelo ódio que a

esposa sente por ele por causa da decepção amorosa do casamento, devido ao

puritanismo da família Mannon. E esse ódio pelo marido teve conseqüências terríveis,

pois, conforme afirma Magaldi:

Surgiu daí o repúdio à filha Lavínia, e o amor ao filho Orin, porque, concebido na maior parte do tempo quando ausente o marido, lhe parecia ser fruto apenas seu. (MAGALDI, 1989, p. 257)

A relação de Christine e Lavínia, assim como Clitemnestra e Electra nas Coéforas,

é baseada em ódio. A mãe odeia a filha por motivos já apresentados e a filha odeia a

mãe, considerando-a sua rival, por acreditar que ela lhe roubou todo o amor a que

tinha direito: o amor de seu pai e do que viria a ser seu pretendente, na verdade amante

da mãe. Ela anseia por tomar o lugar de sua mãe, tornando-se uma esposa para o pai e

uma mãe para o irmão. O que se tem aqui é o que Freud chamou de ‘complexo de

Electra’, que, assim como o ‘complexo de Édipo’, tem início com um objeto amado

primário: a mãe. Mas, segundo a teoria freudiana, logo esse objeto é abandonado pela

filha ao perceber que a mãe também foi vítima de uma castração. Ela, então, transfere

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seu amor para a figura paterna, no anseio de gerar um filho dele, que seria a solução

para a sua castração. Dessa forma ela se tornaria a mãe, tomando o lugar desta.

Da mesma forma que ocorre nas Coéforas, Christine é o duplo de sua filha. Mas

em Os perseguidos essa relação também ocorre entre os personagens masculinos, pois

Ezra é o duplo de Orin. Percebe-se isso nos relatos de Orin sobre a guerra, quando ele

sonhava que matava repetidamente o mesmo homem, que tinha o rosto de seu pai:

Orin: [...] Eu tinha esse estranho sentimento que a guerra significa matar o mesmo homem repetidas vezes, e no final eu descobriria que esse homem sou eu! Suas faces continuam a aparecer em sonhos – e elas mudam para o rosto de nosso pai – ou para o meu – o que isso significa Vinnie? (p. 781)15

O complexo de Édipo, por outro lado, é o que baseia a relação de Christine

com o filho Orin. Como dito antes, o objeto amado primário é a mãe, que o filho

abandona diante da ameaça de castração por parte do pai, ou seja, o menino teme que

o pai o castre se ele continuar a desejar a mãe, pertencente ao pai por direito. Proibindo

o incesto e instituindo as relações corretas de desejo dentro da casa, o pai se torna uma

figura da lei. E ao abandonar seus desejos edípicos, o menino passa a se identificar com

o pai. Orin ama sua mãe, como ele mesmo afirma quando conversa com ela sobre

Adam Brant:

Orin: Não! Por Deus! Eu apenas quis dizer que não importa o que você fez, eu a amo mais do que qualquer coisa no mundo e... Christine: Oh, Orin, você é o meu menino, meu bebê! Eu amo você! Orin: Mãe! Eu posso perdoar qualquer coisa, qualquer coisa! – em minha mãe – exceto uma – Brant!

Christine: Eu juro! Orin: Se eu souber que aquele desgraçado - ! Por Deus, eu mostraria a você que não aprendi a matar por nada! (p.775)16

15 "I had a queer feeling that war meant murdering the same man over and over, and that in the end I would discover the man was myself! Their faces keep coming back in dreams - and they change to Father's face - or to mine - What does that mean, Vinnie?" (p. 781. Tradução nossa) 16 "Orin: No! For God's sake! I only meant that no matter what you ever did, I love you better than anything in the world and - Christine: Oh, Orin, you are my boy, my baby! I love you!

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Logo depois, ao falar das Ilhas Paradisíacas, que se localizam nos mares do sul e

parecem ser um lugar paradisíaco, onde se esqueceria todo o sofrimento, sobre o qual

Orin leu a respeito, ele diz:

Orin: E eu nunca mais vou deixá-la. Eu não quero Hazel ou outro alguém. Você é a minha única garota! (p. 776)17

Lavínia tem um porte militar, o que a assemelha ao seu pai, e simboliza seu

papel de guardiã dos segredos da família e de sua cripta (como ocorre ao final da

trilogia), figurando como um agente de repressão durante a peça toda. Ao contrário da

Electra de Ésquilo, Lavínia é quem comanda a ação, do começo ao fim, mas assim

como sua correspondente grega, ela também não quer sujar as mãos. Para isso, ela

manipula o irmão Orin para que ele mate o amante de sua mãe, pois ela sabe da relação

existente entre mãe e filho e que Orin não perdoaria a traição da mãe. Ao fazer isso, ela

indiretamente leva Christine ao suicídio, mas tendo certeza de que isso ocorreria, pois a

mãe havia lhe falado que morreria se algo acontecesse a Adam.

A questão do suicídio é uma diferença marcante entre as duas peças. Em

Coéforas, não há suicídio e tampouco as personagens são manipuladas por outras.

Orestes está determinado a matar a mãe e Egisto porque assim o ordenou um deus, a

quem os mortais devem obediência. Além disso, Apolo lhe fala de que seus bens estão

sendo dilapidados e de seu direito ao trono de Micenas. A questão do divino entra

muito forte nessa peça porque a sociedade assim o permitia e aceitava. Em O'Neill, ao

contrário, isso não seria plausível.

Além de provocar o suicídio da mãe, Lavínia também leva o irmão Orin a isso

na terceira peça da trilogia. Ao voltar das ilhas com Lavínia, lugar que ele sempre

sonhou em visitar com a mãe, ele não agüenta mais a culpa pelo suicídio da mãe, uma

vez que ela o cometeu em decorrência do assassinato de Adam pelo filho, e nem Orin: Mother! I could forgive anything - anything! - in my mother - except that other - that about Adam Brant! Christine: I swear to you - ! Orin: If I thought that damned - ! By God, I'd show you then I hadn't been taught to kill for nothing." (p. 775. Tradução nossa) 17 "Orin: And I'll never leave you again now. I don't want Hazel or anyone. You're my only girl! (p. 776. Tradução nossa)

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agüenta a perseguição fantasmagórica dos seus antepassados, que aqui fazem o papel

das Erínias gregas, assombrando Orin por causa de seu crime.

Ameaçando revelar toda a verdade, Orin se tornou um perigo, pois vale lembrar

que Lavínia é também a guardiã dos segredos da família. A única forma que ela

encontrou para calar o irmão foi levando-o ao suicídio também. E ela termina seus dias

sozinha, como que enterrada viva na casa/cripta da família.

Mas há uma grande diferença entre os dois suicídios: o de Christine é um ato de

vontade, ela escolhe se matar; o de Orin é um ato de loucura, pois além de sua fraqueza

de caráter, ele está dominado pelos fantasmas da casa, como que acometido pela

demência funesta que as Erínias espalham. O primeiro é um ato de vontade porque,

apesar de ser levada a isso, Christine escolhe fazê-lo. Lavínia provoca a situação porque

já sabia que a mãe optaria por fazer isso no caso da morte de Adam.18 Já Orin foi

levado pela irmã a isso, mas ele não tinha opção de escolha como sua mãe porque

estava tomado pela loucura.

Ao contrário da Electra nas Coéforas, Lavínia é quem elabora o plano de

vingança de Orin contra a mãe, o que no fundo faz parte de um plano maior: seu plano

pessoal de vingança contra a mãe pela morte do pai e por todo o amor que lhe foi

roubado. E Christine tem plena consciência do que a filha é capaz:

Christine: Eu sei pelo que você estava esperando – contar a Orin suas mentira e fazê-lo ir à polícia! Você não ousaria fazer isso sozinha – mas se você puder fazer com que Orin – É isso, não é? É isso que você estava planejando nos dois últimos dias? Conte-me! Responda-me quando falo com você! O que você está planejando? O que você vai fazer? Conte-me! (p. 764)19

Já Orin, ao contrário de Orestes nas Coéforas, é apenas um brinquedo nas mãos

da mãe e da irmã. Isso é previsível quando se tem aqui a elevação de Lavínia ao

18 Christine conversa com Lavínia sobre contar a verdade a Orin e diz: "Don't tell him about Adam! He would kill him! I couldn't live then! I would kill myself!" ("Não conte a ele sobre Adam! Ele o mataria! E então eu não poderia mais viver! Eu me mataria!" - p. 778. Tradução nossa) 19 "Christine: [...] I know what you've been waiting for - to tell Orin your lies and got him to go to the police! You don't dare do that on your own responsability - but if you can make Orin - Isn't that it? Isn't that what you've been planning the last two days? Tell me! Answer me when I speak to you! What are you plotting? What are you going to do? Tell me!" (p. 764. Tradução nossa)

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primeiro plano da peça, numa relação contrária ao que se tinha em Ésquilo. Enquanto

Orestes é o responsável pela irrupção da ação na peça grega, seu correspondente na

peça norte-americana faz apenas o que lhe mandam fazer ou o que ele é levado a fazer,

pois parece que ele não se dá conta de que é apenas um joguete nas mãos da mãe,

quando ela lhe conta sua versão sobre Adam Brant, levando-o a crer que Lavínia está

louca, e nas mãos da irmã, quando ela o usa para realizar sua vingança. Como afirma

Magaldi:

Quanto a Orin, a dúvida, a indecisão, a fragilidade são seus traços dominantes. Foi para a guerra a fim de ser separado da saia materna, e se tornou herói menos por valentia do que pela disponibilidade irresponsável dos que se sentem desamparados. Era como se suprimisse sempre um mesmo homem, talvez ele próprio. (MAGALDI, 1989, p. 260)

Uma outra questão importante que assemelha as duas peças é quanto à

prolepse. Em Coéforas, ela é apresentada na forma de sonho, o já referido sonho de

Clitemnestra, figurando como um aviso dos deuses ctônicos. Em Os perseguidos, ao

contrário, a antecipação não se manifesta através de sonhos, os personagens ‘sentem’ o

que vai acontecer durante toda a peça. Temos vários exemplos disso ao longo dos

acontecimentos, como quando Christine conversa com Lavínia sobre o que esta

pretende fazer, ela diz que precisa avisar Adam: "Eu tenho que ver Adam! Eu tenho

que avisá-lo!" (p. 778)20 Um outro exemplo é a canção que o marinheiro no cais onde

está ancorado o navio de Adam canta para ele momentos antes de seu encontro com

Christine, aliás, este personagem é visto como uma figura profética, justamente pela

sua canção:

Eles dizem que eu enforquei minha mãe Longe! Eles dizem que eu enforquei minha mãe Oh, enforquei, meninos, enforquei! (p. 794)21

Adam pressente sua morte e diz:

20 "I've got to see Adam! I've got to warn him! (p. 778. Tradução nossa) 21 "They say I hanged my mother Away - ay - i - oh! They say I hanged my mother Oh, hang, boys, hang!" (p. 794. Tradução nossa)

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Eu tenho um pressentimento de que nunca mais levarei esse navio para o mar. Ele não me quer agora - um covarde escondendo-se nas saias de uma mulher! O mar odeia um covarde! (p. 794)22

As imagens recorrentes das Ilhas Abençoadas também funcionam como uma

prolepse, pois os que almejam em ir para lá são os que morrem: Adam, Christine e

Orin. A descrição que se tem delas é bem semelhante ao paraíso cristão, que agora

parece perdido por causa do pecado que eles cometeram. Brant diz:

Ah - as Ilhas Abençoadas - Talvez nós ainda possamos encontrar a felicidade e esquecer! Eu posso vê-las agora - tão perto - e um milhão de milhas distante! A terra morna sob o luar, os ventos brandos soprando as palmeiras, as ondas batendo nos arrecifes cantando uma música em seus ouvidos como uma canção de ninar! Ah! Existe a paz e o esquecimento para nós lá - se o menos pudéssemos encontrar essas ilhas agora! (p. 799)23

Essa idéia de uma ilha paradisíaca, para onde vão as almas das pessoas que já

morreram está relacionada com a idéia do Inferno grego e suas regiões. São cinco ao

todo, mas há uma em especial chamada Ilha dos Bem-aventurados, que é o local para

onde vão os heróis depois de sua morte e seu julgamento no Inferno. É bem possível

que Orestes tenha ido para lá ou que Clitemnestra e Egisto tenham almejado um dia

também fazer parte desse paraíso, mas nunca se saberá porque isso não está nas

versões que dão conta do destino dos Atridas depois de sua morte.

Diferentemente das Coéforas, em que o reconhecimento entre os irmãos Electra

e Orestes é de fundamental importância para o desencadeamento da vingança de

Orestes, em Os perseguidos, esse reconhecimento não poderia se dar da mesma forma.

Então o que O’Neill fez foi convertê-lo numa armadilha, na qual Lavínia se certifica da

identidade de Adam Brant, filho da enfermeira pela qual o tio de Ezra, David se

22 "I've a foreboding I'll never take this ship to sea. She doesn't want me now - a coward hiding a woman's skirts! The sea hates a coward!" (p. 794. Tradução nossa) 23 "Aye - the Blessed Isles - Maybe we can still find happiness and forget! I can see them now - so close - and a million miles away! The warm earth in the moonlight, the trade winds rustling the coco palms, the surf on the barrier reef singing a croon in your ears like a lullaby! Aye! There's peace, and forgetfulness for us there - if we can ever find those islands now!" (p. 799, tradução nossa)

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apaixonou loucamente e foi expulso de casa pelo pai – erro que gera toda uma cadeia

de crimes na família.

Após o que foi mostrado, pode-se dizer que O’Neill fez uso de todos os

elementos da técnica antiga e da moderna de que dispunha para criar seu drama

psicológico moderno. As personagens estão no limite de suas forças, prestes a arrancar

a máscara familiar, que os mostra como seres sobrenaturais e, ao mesmo tempo,

humanos, como afirmou Magaldi:

[...] O'Neill serve-se de todo o arsenal da técnica antiga e moderna para alcançar a maior funcionalidade dramática. As personagens encontram-se todas na zona limítrofe em que ostentam a máscara familiar e estão prestes a arrancá-la, produzindo a impressão ambígua de seres sobrenaturais e ao mesmo tempo terrivelmente humanos. (MAGALDI, 1989, p. 261)

Segundo Williams, O’Neill escreveu tragédias do ser isolado, cuja luta em tentar

dominar a vida, que não tem sentido fora dele, é um elemento a mais na ênfase trágica.

Em Mourning becomes Electra e outras peças, ele mostrou a família como entidade

destrutiva, mas o que parece um drama familiar na verdade é um drama do isolamento,

em que as personagens se entrechocam e se destroem por acreditarem que a vida está

contra elas. O que se tem não é um conjunto de relacionamentos destrutivos, “mas um

modelo de destino que não depende de qualquer crença exterior ao homem.”

(WILLIAMS, 2002, p. 158)

A noção grega de destino preocupou O’Neill na feitura desta trilogia, pois ele

acreditava que o público moderno, que não possui uma crença nos deuses ou na

punição divina da forma como os gregos acreditavam ser possível, não aceitaria ou se

envolveria com uma peça nesses moldes. Ele teria que transpor essa idéia grega de

destino e punição para o seu tempo, o que foi conseguido através do uso de conceitos

da moderna psicologia.

As relações entre as personagens principais estão baseadas exatamente nos

desejos, nas frustrações, no sentimento de culpa e nos complexos de Electra e Édipo,

como já foi mostrado: Ezra está dividido entre a esposa Christine e a filha Lavínia;

Christine, decepcionada com o marido e com o casamento, encontra compensação no

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filho Orin e no amante Adam Brant, primo do marido; Adam relaciona-se com

Christine e Lavínia; esta é noiva de Peter, mas sente atração por Adam, numa

transferência de sua fixação pelo pai; Orin está noivo de Hazel, mas prefere dedicar-se

à mãe e, depois da morte desta, à irmã. Segundo Magaldi:

Electra enlutada adquire extraordinária concentração pela cadeia sentimental formada. Os laços sempre se fecham entre as paredes da casa dos Mannon, já que os elementos estranhos existem mais para mostrar a inevitabilidade do incesto. A máscara de todos os membros da família – máscara de morte, idêntica nos vivos e nos retratos dos antepassados – justifica psicologicamente a estranha atração de uns pelos outros e lhes confere autenticidade cênica. (MAGALDI, 1989, p. 260)

A semelhança física dos personagens membros da família, as “máscaras de

morte” que todos usam, foi um dos elementos utilizados para dar um clima

fantasmagórico à trilogia que, juntamente com a presença do ódio e da morte na

mansão dos Mannon, foi a forma que O’Neill encontrou de substituir a perseguição

das Erínias gregas, a punição divina para crimes consangüíneos.

Esse clima fantasmagórico que ronda toda a trilogia dá também um aspecto

ilusório aos relacionamentos entre as personagens, fazendo com que o aspecto

destrutivo fique em segundo plano. E é justamente dessa ilusão que resultam o

adultério e o incesto. O único sentimento real é a luta desses “fantasmas” para fazerem

parte da vida. Segundo Williams, aqui já não se explica mais as relações pela psicologia,

mas pela metafísica:

[...] E no entanto, apesar de todo o cuidadoso enxerto do modelo freudiano, isso não é psicologia, mas metafísica: a característica metafísica daquele que está isolado e para quem a vida, de qualquer outro modo que não seja sofrimento, frustração e perda, é impossível. A resolução característica não é nem grega nem freudiana, mas simplesmente a conquista da morte, que, por não haver um Deus, tem de ser auto-infligida, por meio do suicídio ou do total recolhimento. (WILLIAMS, 2002, p. 159)

Esse é o indivíduo trágico de O’Neill, que se sente incapaz de comunicar-se

com outro indivíduo e se consome na culpa ignorando as fronteiras entre realidade e

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ilusão. Nessa sua luta interna, pois os conflitos agora não são mais externos e, sim,

internos, a única solução encontrada é a morte, conseguida através do suicídio, como

no caso de Christine e Orin, ou do recolhimento, no caso de Lavínia que, ao se

encerrar na mansão familiar no final da peça, desiste de viver para expiar na solidão o

destino da família.

Pelo que foi mostrado, chega-se à discussão sobre o que se tem hoje: tragédia

moderna ou drama moderno. Szondi, como mostrado no primeiro capítulo, não fala

em tragédia, mas em drama moderno, embora o sentido trágico permaneça dentro dele,

enquanto Williams, ao contrário de Szondi, afirma ser possível fazer uma tragédia hoje.

O grande problema parece ser a nova significação de trágico dada pela modernidade,

aquela em que trágico se tornou um adjetivo comum, que se refere a acontecimentos

como um desastre de avião ou uma carreira arruinada. Williams fala dessa

transformação do conceito de trágico através dos tempos referindo-se tanto ao seu

sentido comum quanto a acepção relacionada à forma de arte dramática que

sobreviveu por vinte e cinco séculos que, juntamente com as obras que restaram,

conferem um peso importante à palavra. Ele diz:

A coexistência de sentidos parece-me natural, e não há nenhuma dificuldade fundamental tanto em ver a relação entre eles quanto em distinguir um do outro. (WILLIAMS, 2002, p. 30)

E ele vai mais além dizendo que alguns teóricos e pessoas ligadas à academia

não aceitam falar em tragédia moderna porque desdenham dos usos “imprecisos e

vulgares” que a palavra “tragédia” tem atualmente. Mas a discussão não deve ficar no

âmbito da palavra, como ele afirma:

Mas fica claro, à medida que escutamos, que o que está em jogo não é somente uma palavra. Tragédia, nós dizemos, não é meramente morte e sofrimento e com certeza não é acidente. Tampouco, de modo simples, qualquer reação à morte ou ao sofrimento. Ela é, antes, um tipo específico de acontecimento e de reação que são genuinamente trágicos e que a longa tradição incorpora. Confundir essa tradição com outras formas de acontecimento e de reação é simplesmente uma demonstração de ignorância. (WILLIAMS, 2002, p. 31)

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Então, resta saber se O’Neill escreveu ou não uma tragédia. Segundo Williams,

como dito antes, ele escreveu uma tragédia familiar de indivíduos isolados, seguindo

um modelo grego. Claro que ele teve que adaptar esse modelo à modernidade porque

alguns conceitos e crenças não seriam aceitos pelo público moderno. Além disso,

O’Neill dispunha de todo um aparato técnico e teórico que facilitou o

desenvolvimento de algumas questões que foram apenas sugeridos por Ésquilo na

Oréstia, justamente por causa das limitações de seu tempo.

O trabalho pode ser descrito como uma trilogia grega clássica composta de termos freudianos e apresentada com os elementos teatrais e o estilo do expressionismo do século XX. A noção grega de destino foi substituída por O’Neill pelos desejos subconscientes, as frustrações e os “complexos” que a moderna psiquiatria tem nos mostrado para fundamentar nossas ações externas. (HEINEY & DOWNS, 1973, p. 198)24

O determinismo de O’Neill foi, em grande parte, causado pela sua leitura dos

tragediógrafos gregos, Freud, e a cultura norte-americana do início do século XX, que

figuram a família como uma forma de destino. Destino que deliberadamente molda o

enredo da peça, a descrição das personagens e até mesmo a fala dos Mannon. A morte

cai bem aos Mannon, como diz Orin no velório do pai. O luto cai bem a Electra. E fica

a certeza de que não se pode lutar contra o destino.

24 “The work might be described as a classic Greek trilogy recast in freudian terms and presented with the theatrical devices and style of twentieth-century expressionism. For the fate of the Greek drama O’Neill substituted the subconscious desires, the frustrations, and the “complexes” which modern psychiatry has shown to underlie our external actions.” (HEINEY & DOWNS, 1973, p. 198, tradução nossa)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda é cedo para ajuizar o mérito de O luto cai bem a Electra como fixação teatral de prováveis mitos modernos. Não cabe, ainda agora, compará-la sob esse prisma à excepcional força mítica da Oréstia. Deve bastar-nos a certeza de que a trilogia o’neilliana é uma admirável realização artística – e isso não é pouco. (MAGALDI, 1989, p. 261)

Este trabalho teve como objetivo principal mostrar de que forma um mito

grego antigo, o de Electra, foi re-elaborado no contexto moderno, fazendo um estudo

comparativo de duas peças: Coéforas, segunda peça da trilogia Oréstia, de Ésquilo, e Os

perseguidos, segunda peça da trilogia de Eugene O’Neill, Mourning becomes Electra. Para

isso, foi feito um estudo das relações entre os personagens Electra/Orestes, na

primeira peça, e Lavínia/Orin na segunda, comparando os pares de personagens e suas

relações com a figura materna, que é o elo entre eles. Seguindo os exemplos de

Sócrates e Eurípides, O’Neill elevou a personagem Lavínia ao primeiro plano da

trilogia, o que permitiu que surgissem vários pontos divergentes nas duas obras, como

o tema do suicídio e o final, e que alguns pontos semelhantes, como as relações mãe-

filho e mãe-filha, fossem melhor explorados

Ao longo da pesquisa, um outro tema intrinsecamente relacionado ao estudo

desenvolvido foi trazido à tona: a feitura de uma tragédia moderna é possível? Através

das leituras percebeu-se que este é um tema bastante discutido e que parece não ter

fim. Alguns críticos afirmam que isso não é possível e outros dizem o contrário, que é,

sim, possível fazer uma tragédia moderna sem se perder sua premissa básica: que o

herói deve sofrer para, através do sofrimento, expurgar sua culpa.

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É claro que cada época deu à forma histórica da tragédia sua contribuição e

refazer esse percurso histórico foi de essencial importância para que se pudesse fazer

uma leitura mais apurada da peça de O’Neill. Além disso, foi indispensável o estudo

sobre o contexto em que o autor estava inserido. Que influências ele sofreu para a

feitura da trilogia. O’Neill partiu da idéia de fazer um drama psicológico moderno a

partir de uma trilogia grega antiga que aborda a trajetória de crimes que acontecem

dentro de uma família maldita em decorrência de um erro ancestral. Ele escolheu

basear-se na Oréstia por esse ser o registro mais antigo e completo dos Atridas no teatro

antigo.

Mas uma questão o preocupava: como trazer para o presente a idéia grega de

Destino de uma forma que os espectadores se identificassem com o enredo e o

sentisse? Ele conseguiu isso substituindo a idéia de Destino por vários outros conceitos

importados da psicologia e da psiquiatria moderna. Noções como desejos

subconscientes, que dão base para os complexos de Electra e de Édipo, amplamente

aproveitados na peça de O’Neill, além de frustração e culpa, fazem parte da construção

dos personagens e do enredo desta tragédia moderna, composta a partir de dados da

teoria freudiana e apresentando, em termos formais, elementos que a situam em meio

ao desenvolvimento do drama moderno.

Essa questão sobre se é possível fazer uso de um mito grego antigo na

modernidade, sem que ele perca sua matéria central, foi um outro ponto discutido

neste trabalho. Pela leitura que foi feita da peça de O’Neill verificou-se que isso é

possível, pois a sua transposição para a época atual foi feita com maestria, visto que o

tema central do mito não foi perdido ou modificado, apenas se deu uma “nova

roupagem” a ele para que o público da época não rejeitasse a peça ou não se

identificasse com os personagens e seus sofrimentos. Afinal, a tragédia busca

justamente provocar o temor da platéia diante de situações possíveis, com as quais seja

possível uma identificação.

Para isso, O’Neill identificou na tragédia esquiliana alguns pontos que haviam

sido apenas sugeridos pelo tragediógrafo, talvez porque ele não tivesse recursos

suficientes na época para desenvolvê-los, e baseado nos conceitos modernos da

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psicologia e metafísica, além do uso de vários recursos cênicos que não existiam na

Grécia Antiga, os apresentou ao público.

Como resultado desse estudo, concluiu-se que a feitura de uma tragédia

moderna é possível quando revestida de elementos modernos, pois uma peça seguindo

exatamente o modelo grego não seria de interesse para o público moderno, mesmo

porque, ao longo do tempo, a tragédia como gênero dramático sofreu várias

modificações para se chegar ao que se tem hoje, contudo sua essência não foi perdida,

e é nisso que os dramaturgos têm se apoiado para construir suas tragédias.

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