PENSAR A AVALIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR - uma.pt · realizadas, do desempenho dos docentes e...

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69 II. Uma primeira análise sobre a avaliação do ensino superior: abrindo o debate PENSAR A AVALIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR Jesus Maria Sousa, José Sílvio Fernandes, Ana Catarina Fernando e Helder Arsénio Lopes O grupo da Universidade da Madeira, apesar de pequeno e heterogéneo, em termos de interesses pessoais, áreas científicas e correspondentes cosmovisões, iniciou o debate sobre a avaliação do ensino superior, procurando corresponder ao desafio do SNESup no sentido de evitar a reprodução acrítica de conceitos há longo tempo postos a circular. Acordámos, desse modo, que ao invés de recolher fundamentação teórica sobre a avaliação em abstrato (mera descrição de tipos, modalidades, funções, objetivos, critérios e instrumentos de avaliação, indicadores de desempenho, etc.), matéria essa patente em abundante literatura avulsa facilmente localizável, concentrar-nos-íamos sobre algumas questões mais de âmbito geral, que, por si só, são questões prévias de natureza epistemológica, filosófica, política e ideológica, não formatáveis por conceitos fechados à partida. Assim sendo, num livre exercício de opinião, propusemo-nos discutir sobre alguns temas, cruzando-os com a avaliação do ensino superior: 1. Avaliação e complexidade 2. Avaliação e objetividade/subjetividade 3. Avaliação e autonomia 4. Avaliação e liderança inclusiva Deste modo, o texto que se segue encontra-se organizado seguindo os quatro eixos norteadores da nossa reflexão, estando nós conscientes da emergência de eventuais

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II. Uma primeira análise sobre a avaliação do ensino superior: abrindo o debate

PENSAR A AVALIAÇÃO

DO ENSINO SUPERIOR

Jesus Maria Sousa, José Sílvio Fernandes, Ana Catarina Fernando e Helder Arsénio Lopes

O grupo da Universidade da Madeira, apesar de pequeno e heterogéneo, em termos de

interesses pessoais, áreas científicas e correspondentes cosmovisões, iniciou o debate sobre a

avaliação do ensino superior, procurando corresponder ao desafio do SNESup no sentido de

evitar a reprodução acrítica de conceitos há longo tempo postos a circular. Acordámos, desse

modo, que ao invés de recolher fundamentação teórica sobre a avaliação em abstrato (mera

descrição de tipos, modalidades, funções, objetivos, critérios e instrumentos de avaliação,

indicadores de desempenho, etc.), matéria essa patente em abundante literatura avulsa

facilmente localizável, concentrar-nos-íamos sobre algumas questões mais de âmbito geral,

que, por si só, são questões prévias de natureza epistemológica, filosófica, política e

ideológica, não formatáveis por conceitos fechados à partida. Assim sendo, num livre exercício

de opinião, propusemo-nos discutir sobre alguns temas, cruzando-os com a avaliação do

ensino superior:

1. Avaliação e complexidade

2. Avaliação e objetividade/subjetividade

3. Avaliação e autonomia

4. Avaliação e liderança inclusiva

Deste modo, o texto que se segue encontra-se organizado seguindo os quatro eixos

norteadores da nossa reflexão, estando nós conscientes da emergência de eventuais

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incongruências, no seu todo, provavelmente resultantes da riqueza e da diversidade de

posições, nem sempre consensuais, dentro do grupo.

1. AVALIAÇÃO E COMPLEXIDADE

A primeira questão que se impõe, quando se aborda a avaliação, é saber exatamente o

que se pretende avaliar. Esta questão é tão complexa que nos obrigou a uma primeira

discussão sobre se o tema que nos era proposto seria a “avaliação no ensino superior” ou a

“avaliação do ensino superior”. A subtileza conferida pelas preposições “em” ou “de”

delimitaria ou alargaria o âmbito da nossa reflexão, tendo nós optado pela “avaliação do

ensino superior” por esta designação abranger a “avaliação no ensino superior”. Estava então

dado o mote para a questão da complexidade do tema.

Tendo todos nós a ver com uma instituição em concreto, a avaliação do ensino superior

não pode deixar de encarar a Instituição do Ensino Superior (IES) como um sistema vivo,

enquanto organização humana, para a qual se impõe uma abordagem holística. Constituída

por um conjunto de entidades ou partes (alunos, professores, funcionários, gestores), o

sistema existe na relação que se estabelece entre essas partes ou subsistemas (interação),

através de um fluxo de informações (comunicação), tendo em conta a consecução de um

objetivo geral para o qual todos concorrem (equifinalidade).

Esse todo organizado pressupõe também uma hierarquia sistémica, em equilíbrio

homeostático, no pressuposto de que uma alteração numa componente do sistema afetará

em cadeia todos os demais elementos. Finalmente, enquanto sistema vivo, importa ressaltar a

sua abertura ao meio (sistema aberto), ao nível dos diversos patamares, culminando no

macro-sistema social onde jogam outras forças provenientes dos sistemas político, económico,

cultural, religioso, ideológico, etc. O fechamento ao meio provoca inelutavelmente a sua

morte por entropia. Ao encararmos a IES como um sistema complexo, “com qualidades de

totalidade, interdependência, hierarquia, autorregulação, intercâmbio ambiental, equilíbrio,

adaptabilidade e equifinalidade” (Littlejohn, 1982: 33), rejeitamos totalmente um discurso de

causalidade linear na sua avaliação, discurso esse característico do paradigma da simplificação

que marcou a modernidade.

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No momento em que vivemos de transição paradigmática (Santos, 2011), já não fazem

sentido leituras simplistas tendo em vista o alcance de verdades absolutas. Pelo contrário, não

só ao nível das ciências humanas e sociais, como ao nível das chamadas “ciências duras”, o

paradigma da complexidade (Morin, 2008) começa a ser partilhado pela comunidade

científica, numa atitude de relativização das certezas e de reconhecimento das especificidades

próprias, locais e regionais.

Ser uma instituição excelente, razoável ou fraca, ser eficaz ou ineficaz depende de uma

multiplicidade de fatores, todos eles interligados e relacionados com o fim a que se propõe,

isto é, ser verdadeiramente uma “organização aprendente” (Senge, 1990). Por isso,

consideramos que a avaliação do ensino superior, nomeadamente a de uma IES, passa pela

verificação da qualidade (palavra-chave mas com representações diversas) das aprendizagens

realizadas, do desempenho dos docentes e investigadores, das infraestruturas e dos recursos,

da forma como os processos decorrem, dos cursos ministrados e da gestão interna, enquanto

subsistemas em interação constante.

Com este sentido de complexidade, a avaliação das aprendizagens dos alunos, enquanto

um dos subsistemas, não pode por isso ter apenas em conta os resultados imediatos de testes,

exames ou outros tipos de provas, quantificados e mensurados por parâmetros, partindo-se do

princípio de que o todo resultará da soma das partes. Ora onde está a avaliação dos

processos? Será que pela dificuldade de os avaliarmos nos leva a assumir que eles não

existem? Claro que é mais confortável o recurso a grelhas de avaliação quantitativa, porque

conferem segurança a avaliadores e avaliados. Mas há que se ter a consciência de que não se

está a avaliar o todo.

Por outro lado, se é importante o domínio dos conhecimentos por parte dos alunos, não

é só a esse nível que se espera avaliar. Não se deseja que o aluno do ensino superior seja um

mero reprodutor-repetidor de conteúdos veiculados, mas que também consiga surpreender o

próprio professor, criando algo de novo. Não estamos a falar da IES, enquanto sede de

construção de conhecimento, por excelência? E até que ponto o sentido crítico e as atitudes

são também valorizadas na avaliação dos alunos? Por isso, num paradigma da complexidade,

há que ter a consciência de que aquela determinada classificação pode (e muitas vezes

acontece) não corresponder ao futuro desempenho do aluno a médio e a longo prazo, como

faria supor uma visão linear e determinista.

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O mesmo poderemos dizer relativamente à avaliação do desempenho docente, outro

dos subsistemas da avaliação do ensino superior, igualmente pluridimensional, conforme

determinação do ECDU e do ECDESP, ambos republicados em 2009, referentes às vertentes de

avaliação a serem regulamentadas pelas instituições. Sendo incontornável o serviço de

programação, lecionação e avaliação, correspondentes à atividade pedagógica propriamente

dita, a vertente da investigação começa a ter um peso cada vez maior na avaliação do

professor, na lógica da mensurabilidade, com relevo para a hegemonia da língua inglesa sobre

as demais, das revistas sobre os livros e, no âmbito das revistas, com primazia para os blind (ou

double-blind) peer-review journals. Uma percentagem menor é adicionalmente atribuída ao

exercício de cargos de gestão e coordenação, bem como outra, também não muito relevante,

à prestação de serviços à sociedade. Algumas IES contemplam igualmente o chamado

desenvolvimento pessoal, valorizando a formação contínua em que o professor se envolve.

Também aqui, neste subsistema, tem prevalecido a adoção de métricas de

quantificação, levando os docentes a colecionar pontos ou outro tipo de unidades de medida

para alcançar o total definido em cada um dos regulamentos de avaliação adotados pelas IES.

As atividades científico-pedagógicas, de serviço ou de desenvolvimento pessoal resultam,

deste modo, de uma fórmula, onde se matematiza o desempenho. Mesmo a obrigação de

preenchimento de um relatório de autoavaliação não isenta o processo do seu efeito

quantificador.

Outro subsistema objeto de avaliação diz respeito às infraestruturas e aos recursos

materiais de uma determinada instituição, pesando a existência (ou não) de bibliotecas,

mediatecas, laboratórios, anfiteatros e salas de aula, salas de estudo, restaurantes, residências

para estudantes deslocados, campos de jogos, espaços apropriados para a simulação de

práticas, equipamentos informáticos, sistema wireless, reagentes, material desportivo,

projetores multimédia, etc., etc., tudo isto e muito mais, em relação direta com os cursos a

avaliar, na tal interação entre os vários subsistemas, atrás mencionada. Esta dimensão física

das IES não funciona sem a devida “alimentação”, através da aquisição de material, de

trabalhos de manutenção, fiscalização, limpeza, jardinagem, tratamento de lixos e outros

assegurados por recursos humanos. A desburocratização desses processos passará cada vez

mais pela responsabilização dos serviços em causa.

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A desejável comunicação entre os vários subsistemas exige também uma especial

atenção à regulamentação dos processos, numa linguagem clara e acessível. Como se faz uma

requisição? Quais as regras de avaliação de uma unidade curricular? Como decorre uma prova

pública? Como se concorre a um curso? Como se candidatar a uma bolsa de estudo? A

disponibilização e atualização permanente deste tipo de informação deverá facilitar e nunca

dificultar os procedimentos. A existência de serviços de apoio com agilidade suficiente para os

processos administrativos e académicos é o que marcará a diferença.

Outro dos subsistemas, talvez o cerne das IES, é a própria oferta formativa: os cursos. A

avaliação dos cursos replica a avaliação dos subsistemas atrás elencados, tal como tem efeitos

sobre eles, num jogo dinâmico de influências mútuas e recursivas. De entre os vários

parâmetros de avaliação de um curso, temos a sua própria história, a legislação que o suporta,

a teoria oficial e a sua lógica política, a justificação filosófica, o facto de ter sido já sujeito a

avaliação ou não, o alinhamento do curso, ou seja, a coerência interna entre a visão, a missão,

os fins, o título e o desenho curricular, a articulação entre o desenho curricular e os programas

das disciplinas, e entre os programas e os planos de aula, a articulação entre os fins do plano

de estudos e os objetivos dos programas em particular, a articulação entre estes, de modo a

não haver sobreposição de matérias, a articulação vertical entre os planos de estudos dos três

ciclos (licenciaturas, mestrados e doutoramentos), dentro da mesma área científica, a

implicação e o envolvimento por parte da gestão e administração, a formação científica e

pedagógica do corpo docente, na sua relação direta com a área do curso, as relações humanas

entre os professores e o diretor de curso ao nível da coordenação do ciclo de estudos, os

equipamentos e as condições de estudo, as saídas profissionais e taxas de empregabilidade,

etc. Um mundo sem fim, como vemos, atestando a complexidade da sua avaliação.

A própria gestão das IES constitui um outro, não menos importante, subsistema de

avaliação. Incluindo os diversos patamares de gestão e administração (conselhos de curso,

conselhos científicos, conselhos pedagógicos, etc.) em articulação com os estilos de liderança

dos responsáveis máximos da instituição e sua quota-parte no clima de conflitualidade

emergente, entram aqui em jogo também as várias estruturas de gestão e avaliação interna de

qualidade, em geral.

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Finalmente, para reforçar a natureza complexa da avaliação do ensino superior, temos a

introdução do elemento estranho que obriga idealmente à descentração de cada um, pela

abertura a outros pontos de vista sobre o conceito de qualidade, conferindo ao mesmo tempo

independência e neutralidade ao sistema de avaliação: as equipas de avaliação externa. Esta

questão remete-nos a uma reflexão profunda sobre a constituição dessas equipas e sua

metodologia de avaliação. Inspirados em Scriven (2012), perguntar-nos-íamos sobre o

seguinte: Quem são os avaliadores? Como é constituída a equipa de avaliação (consultores,

experts, um painel)? São todos especialistas? Serão competidores no plano nacional?

Pertencem ao mesmo grupo de interesses (mesma linha científica, ou mesmo centro de

investigação, por exemplo)? São estrangeiros? Existem grupos de controlo para comparação?

Como são selecionados os sujeitos a entrevistar? Constituem uma amostra? Ela é

estratificada? Como é salvaguardada a validade interna? A avaliação é “goal-based” ou “goal-

free”? Quanto tempo é necessário para a sua estada na IES? Que tipo de técnicas,

procedimentos e recursos é utilizado? Existem observações? Essas são do tipo de observação

participante? Como se registam os dados? Há diário-de-bordo, gravações

áudio/fotográfico/vídeo, testes, simulação, role-playing, inquéritos e entrevistas? Existe

pesquisa bibliográfica? Como se processa a análise de texto? E a análise de dados (estatísticas,

análise de custos, consultadorias)? Como são as técnicas de relato (texto, histórias, jogos,

gráficos, desenhos livres, fotografias, filmes)?

2. AVALIAÇÃO E SUBJETIVIDADE/OBJETIVIDADE

O dilema entre a subjetividade e a objetividade, quando se aborda a avaliação, é outro

dos eixos merecedores da nossa atenção. Se quisermos ir de facto ao fundo da questão, isto é,

onde julgamos se encontra o problema estrutural, implica um distanciamento que permita

uma reformulação ao nível dos alicerces, dos fundamentos, que irá possibilitar uma rotura, no

sentido kuhniano do termo, ou seja uma mudança de paradigma. Uma das dificuldades de que

enferma o tratamento da problemática da avaliação está, a nosso ver, numa perspetiva em

que o processo pedagógico (que é o centro da conceção de avaliação que aqui queremos

tratar – outras haverá) é ainda visto como um processo cumulativo em que a adição de alguns

conhecimentos permite alcançar os objetivos visados.

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Seguindo a linha de um grupo de trabalho de que alguns de nós fazem parte e que se

tem debruçado sobre este tema, especialmente no âmbito do treino desportivo, com

publicações nomeadamente A Rotura (2008), que, como o próprio nome indica, visa uma outra

perspetiva do processo pedagógico (neste caso, ligado ao desporto, seja numa vertente de

treino, seja como um desporto ligado ao ensino e ao trabalho a nível escolar, não se limitando

no entanto a este âmbito de aplicação), julgamos que o foco não deve ser posto no quadro

aplicativo, mas no objeto da ação, o Homem. Temos assim, como dizíamos, que todo o

processo deve ser considerado em relação à forma como este Homem se adapta na sua

integração num contexto, de que é uma componente e em relação ao qual não é, portanto,

corpo estranho, tal como Bertrand Russell (1925) perspetivava este mesmo Homem em

relação à natureza, e ao contrário do que alguns que se chamam de ecologistas eventualmente

ainda defenderão. Em consequência o Homem participa num conjunto de dialéticas que

alteram o todo, e inclusive o próprio Homem.

O Homem transforma-se, em consequência de todo este processo.

Em educação /formação, avaliar é estimar a evolução de um indivíduo num processo de

adaptação em relação a um contexto em que se integra, recebendo e transmitindo sinais

(estímulos – que são transformações ou acumulações de fatores mecânicos, físicos, químicos,

etc. - até atingirem um limiar de algo que nós, no nosso processo de adaptação, estamos em

condições de detetar). E, quando detetamos esse algo, estamos condicionados para dar uma

resposta ou não.

Ou seja, uma adaptação transforma e o que dantes existia fica diferente, se é diferente

não tem as mesmas características e se não tem as mesmas características, quando vamos

outra vez pensar no assunto, temos de alterar algumas das premissas, como é evidente.

Avaliar em educação/formação é introduzir um artefacto que tem dois efeitos que na sua

complementaridade criam sinergias que os amplificam. Isto é, 1 – tenta resolver este problema

(o que vai solicitar um conjunto de funções que vão desde a identificação da funcionalidade do

problema, até ao treino da capacidade de ir colher os dados e informações necessários para o

resolver e desenvolver as estratégias e modos operativos necessários; e 2- se falha, é

penalizado e se acerta tem um prémio. É como os objetivos imediatos no desporto – não

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valem só por si (se a bola entra na baliza ou não…), mas se a bola entrar na baliza posso

“importunar” outros vários dias, ou o inverso. Há um reforço da motivação.

Na avaliação em educação/formação aproveita-se também este reforço de motivação

para aumentar o efeito do processo de adaptação (aqui mais pela negativa, com a reprovação,

no desporto mais pela positiva, com a vitória).

A avaliação é uma ferramenta que pode e deve portanto ser utilizada em

educação/formação, pois reforça o sinal que conduz à motivação do avaliado, de acordo com

uma intencionalidade (que não é da ferramenta) que lhe é conferida pelo contexto em que

está integrada, numa dinâmica (não é a soma das partes, só!) que lhe dá um sentido (para o

avaliado, naquela altura, podendo ser diferente noutras alturas ou para outros observadores).

Como o desenvolvimento sustentado do ensino superior e da ciência implica uma visão a

médio/longo prazo e, consequentemente, a definição de uma estratégia evolutiva, a avaliação

do ensino superior tem de apreciar um produto de ciclo longo e não ficar por apreciações

pontuais que até podem ser tidas por muito objetivas, rigorosas e precisas, mas que

normalmente são (por ignorância ou falta de competência) desenquadradas da tendência

evolutiva que se propôs alcançar.

A avaliação deve assim ser realizada em função das metas e dos objetivos definidos e da

respetiva estratégia evolutiva, utilizando as variáveis e indicadores que são mais pertinentes

para controlar a tendência do desenvolvimento do processo e não aqueles que são tidos, de

forma arbitrária (muitas vezes ao serviço de interesses pouco transparentes), como os únicos

importantes e válidos para avaliar o ensino superior.

Ora se a avaliação é uma ferramenta, ela não é objetiva nem subjetiva, não exclui nem

inclui nada. O quadro de referência em que é utilizada é que pode ou não estar ajustado às

necessidades e às conceções que hoje temos. Uma chave de parafusos (chave de fendas)

também é uma ferramenta, que não tem intencionalidades nem identidades. Serve para…

apertar ou desapertar parafusos, para agredir alguém ou para nos defendermos, etc. – mas

claro que tem características e, de acordo com estas, pode ter funcionalidades. A avaliação,

que não faz nada por ela própria, se utilizada por pessoas que a usam de qualquer maneira ou

num quadro de referência desajustado às necessidades, poderá, tal como o desporto que

também é só um meio, servir para alguma coisa ou não, sendo apenas uma questão de sorte.

Mas se utilizada com intencionalidade e… competência (tal como qualquer outra ferramenta)

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já pode ser um auxiliar poderoso para realizar uma obra…ou para a destruir. A avaliação é uma

ferramenta para percebermos e eventualmente calcularmos como uma adaptação está a ser

feita – o que nos pode permitir apreciar e mesmo quantificar os rendimentos que estão a ser

obtidos.

Na educação/formação estamos normalmente a avaliar uma intencionalidade de

transformação do Homem em relação a objetivos que devem estar definidos numa visão do

Homem e da sua evolução, integrando estas transformações numa estratégia (que se chama

de política) e com objetivos que estejam de acordo com os recursos existentes,

nomeadamente tecnológicos, e que tem uma expressão num quadro operacional em que se

procura dar um sentido racional ao todo das nossas diferentes atuações.

O Problema (P maiúsculo) tem dois âmbitos:

1. Um âmbito geral, resultante logo do próprio quadro de referência utilizado –

que quer ver a dialética das partes para apreender a complexidade. Ora, como

vimos atrás, não há partes, há um todo que podemos, com os necessários

cuidados, extrapolar, sempre, da vertente que vemos, para a conjetura que

abarca o todo (tal como fazemos com a visão em que percecionamos sempre

um todo, mesmo que completamente errado, pois nunca vemos uma

superfície – vemos sempre “um volume” uma vez que apreendemos qualquer

coisa por trás – e ao contrário do que fazemos na matemática em que temos

superfícies só com duas dimensões e até pontos sem dimensão, mas são

construções mentais e por isso as conclusões que retiramos devem sempre ter

isto em conta, tal como as passagens para situações concretas de aplicação.

Ora, até os matemáticos com todo o cuidado de perceberem os postulados de

que partem falham frequentemente nestas passagens e imaginam que 2+2=4

quando é só aproximadamente 4, visto que 2 na prática não é um valor

absoluto mas é o resultado de um limite que aceitamos – 2= a 1,99999… ou a

2,000…x)

2. Num âmbito já mais específico, mas resultante de 1- também, em que há uma

tendência (de onde resultam problemas de aculturação graves, diga-se) para

tratar conceitos, que não são mais do que ferramentas, como se fossem ‘seres

vivos’, portanto numa perspetiva animista (como se fosse um ser vivo com

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vontade e dinâmica própria) tal como faz Morin (2013) “Comment vivre avec

nos idées?” (mas eu sou as minhas ideias também! Ou serão uma espécie de

acrescento ao “self”, à minha identidade?).

A partir daqui, sabendo como funciona o Homem que queremos que se adapte, de

acordo com uma transformação intencional para atingir os objetivos concebidos para a

estratégia (esta é apenas uma entre muitas) e de acordo com a visão do Homem que

imaginamos e por que optámos (com maior ou menor consciência), podemos fazer uma

avaliação com objetividade X e, portanto, com um custo (capitais - tempo, recursos, trabalho -

Z) para usar num quadro que justifique quer a objetividade X quer os custos Z. O que sair de X

e Z para ‘baixo ou para cima’ seria ignorância, incompetência ou falta de seriedade. Em relação

à avaliação excluir ou incluir temos uma problemática idêntica.

Depois é só saber como somos capazes de fazer para ter custos aceitáveis. Contudo,

uma coisa é assumir que, por exemplo, uma avaliação (genericamente) possa cumprir com as

funções a que se destina, de uma forma eficiente e credível sem se tornar um ícone

burocrático que assume um peso maior nos custos do que nas mais-valias que permite retirar

(numa relação benefícios/custo negativa) tem que obedecer a características, como:

1- Considerar a relação custos/benefícios e otimizá-la em relação aos objetivos

visados e ao que iremos alcançar;

2- Ser: a) Objetiva – ter um sentido, não ser neutra e encerrar a globalidade do

fenómeno que pretende avaliar; b) Precisa – ter uma discriminação

apropriada, evitando os custos de esta ser excessiva e as falhas de não ser

suficiente; c) Rigorosa – não cometer erros e abarcar o fenómeno considerado;

3- Ser: a) Pertinente – por os seus indicadores medirem o que pretendem e não

outros aspetos; b) Fiel – por avaliar sempre a mesma coisa; c) Válida – por ter

um padrão de medida aferido para o fim considerado; d) Transferível – por

serem generalizáveis os seus resultados.

Outra coisa é confundir estas e outras caraterísticas da avaliação. Não nos esqueçamos

de que, já no início do século XX, Einstein nos alertava para a necessidade de considerar a

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tripla relação fenómeno/sinal/observador, chamando a atenção para o facto de o observador

não ser neutro. Uma avaliação deve assim ser coerente no seu todo, definindo as estratégias e

as formas de operacionalização adequadas, articulando os meios e recursos disponíveis,

apresentando uma coerência indubitável entre o que se pretende avaliar e os instrumentos

que são utilizados e, no entanto, ser suficientemente concisa e precisa, para que não haja

desperdícios. Uma avaliação é um instrumento estruturante do processo que avalia e por isso

mesmo deverá ser concebida tendo em conta as inter-relações que se estabelecem entre os

intervenientes deste processo, o mundo, o país, a ciência, o ensino superior, as instituições,

etc.

Em síntese diremos que uma avaliação é:

Uma ferramenta com que podemos trabalhar e não um fim em si própria.

Uma apreciação das transformações que o Homem avaliado operou em reação a

um conjunto de estímulos a que foi sujeito (adaptação) e não a contabilização

dos “acrescentos” que foram feitos a esse mesmo Homem (novas habilidades,

conhecimento, etc.)

Exemplificando:

- Utilizada criteriosamente (isto é se quem usar souber o que anda a fazer e fizer

bem feito), a avaliação tanto pode ser integradora e promotora de um processo

evolutivo, respeitando as diferentes autonomias e escolas de pensamento e

ação, como ter uma função predominantemente castradora da autonomia

assumindo-se como um mero exercício de poder, visando a formatação e

uniformização em quadros pré-definidos e estereotipados com o objetivo de

seriar para excluir. Quando o sentido dos objetivos visados é encarado de uma

forma muito restritiva, isto é, sem respeito pelas diversas estratégias possíveis

para alcançar um fim, a avaliação fica comprometida, mesmo que o rigor e a

precisão sejam adequadas ao processo.

A estrutura da avaliação, os parâmetros utilizados, as conclusões retiradas e a utilização

dada aos resultados obtidos (assim como, o que não é de excluir, os erros cometidos) são

fatores condicionadores das funções a cumprir por uma avaliação. Será integradora e

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promotora de um processo evolutivo, respeitando as diferentes autonomias e escolas de

pensamento e ação se, nomeadamente:

1. Permitir comparar a fase de evolução do processo em relação a outros

processos semelhantes ou a fases diferentes de evolução daquele processo.

2. Permitir mostrar falhas possíveis entre os pontos fortes ou os pontos fracos

apresentados, podendo mesmo quantificar a importância das falhas focadas em

relação a outras grelhas de referência, por exemplo, apresentando uma grelha

de comparação dos aspetos focados, uma listagem exaustiva dos aspetos a focar

e sua justificação, etc.

3. Permitir definir falhas ou não na fundamentação utilizada através, por exemplo,

da exigência de mostrar quais os pontos focados em diferentes parâmetros

fundamentais nessa fundamentação (quadro de referência e autores de suporte,

documentos justificativos de aspetos considerados, debates realizados, etc.)

A avaliação assume-se aqui como um documento de análise e crítica ao processo

realizado, numa perspetiva externa de referência. Será um mero exercício de poder visando a

formatação e uniformização se se limitar a exigir o cumprimento de mínimos em alguns

parâmetros estabelecidos de forma aleatória ou correspondendo a uma estandardização do

processo, eventualmente com base na existência destes parâmetros em escolas consideradas

de referência ou como modelos a seguir;

- Avaliações tidas por negativas em certos momentos do ciclo de desenvolvimento

(por exemplo: de uma instituição, curso, docente, aluno), quando vistas

isoladamente e reportando-se a quadros de referência estáticos, podem, por

outro lado ser entendidas como um passo necessário na estratégia evolutiva

previamente definida. Temos de avaliar se estamos no caminho mais adequado,

ou seja, avaliar para perceber e eventualmente calcular como uma adaptação

está a ser feita, o que pode permitir apreciar os rendimentos que estão a ser

obtidos. Deste modo, não só os objetivos visados devem ter em consideração a

evolução do processo, como o rigor considerado deverá basear-se na noção de

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tendência, mesmo que para tal, por uma questão de eficiência, se tenha de

abdicar um pouco da precisão dos indicadores recolhidos;

- Mais de cem anos depois de Einstein ter alertado para a não neutralidade do

observador (como referimos acima), continuamos ainda a assistir, nos círculos

mais ilustres do conhecimento, à discussão da necessidade de criar critérios de

avaliação objetivos, que eliminem toda a subjetividade possível. Para além do

evidente erro metodológico, quando considerada esta exigência na

generalidade, é possível obviar a algumas destas incorreções exigindo a

definição do paradigma de referência – pelo menos em relação ao quadro

teórico específico e à sua influência no quadro aplicativo (por comparação com

outras influências), estabelecendo critérios de análise da relação

fenómeno/sinal/observador em cada um dos quadros considerados e

verificando a validade, fidelidade, pertinência e transferibilidade de cada uma

destas análises. A comparação dos custos e a relação com os resultados obtidos

também seria de considerar;

- Na “fação das métricas”, uma tendência que nos lembra o apogeu do positivismo

nu e cru, como que um volte face que nos fez esquecer todos os ensinamentos

do passado da evolução da ciência, uma enxurrada de indicadores surgem como

justificativos da objetividade, rigor e precisão, como por exemplo, o número de

publicações, o fator de impacto da publicação, o número de citações, as

fórmulas soberbas dos regulamentos de avaliação que permitem que um

docente seja avaliado por um conjunto de números, para a qual é suficiente a

capacidade de interpretação contida numa folha de Excel, os campos com x

carateres dos formulários que nos impingem, etc., sem qualquer objetividade,

fazendo-nos esquecer que cada um destes parâmetros nos dá a indicação de

uma determinada variável, mas carece de uma interpretação das competências

que visa. Qualquer indicador, quando é concebido para medir algo, parte

naturalmente de uma conjetura inicial que lhe confere um sentido e uma

intencionalidade, o que faz com que, sem a definição das bases programáticas

utilizadas e eventualmente do quadro de referência (depende se aceitarmos que

estamos num quadro de ciência normal), tudo vale. Normalmente o aumento do

rigor e da precisão sem ter em conta os objetivos visados (e os custos em

relação aos resultados obtidos) dão uma aparência de eficiência (embora sejam

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o contrário, porque aumentam as exigências – custos – sem quaisquer

resultados – lucro).

Porém a definição dos objetivos visados e a exigência de validar e de mostrar a

pertinência (medir o que se pretende) permitem verificar a coerência do processo, ou não;

- A aplicação da avaliação de desempenho aos docentes do Ensino Superior é outro

paradoxo, um processo muitas das vezes altamente burocratizado, e portanto

com custos elevados (em tempo e em muitos outros parâmetros), e que no

contexto atual é inconsequente quando os resultados são positivos. Ou seja, se

o docente mostra ser muito bom e acumula os pontos necessários para

progredir, fica na mesma pois a progressão nas carreiras está bloqueada; se é

mau é despedido. Qual será a coerência intrínseca a este tipo de avaliação?

Quais as adaptações ao contexto que se pretendem no processo evolutivo do

indivíduo? Esta é uma das situações onde é evidente que o rigor e a precisão

utilizados são infrutíferos, diríamos mesmo um desperdício de meios e recursos,

pois os objetivos visados definidos motivam a procura da média (uma avaliação

que não destoe dos pares). Nos casos em que a ambição pessoal até é

motivadora da procura da excelência, então também não seria necessário o

estímulo da avaliação, podendo o investimento ser feito noutro tipo de

processos. Não podemos utilizar um instrumento de medida sem verificar que

mede o que pretendemos e se o que pretendemos tem a ver com os objetivos

visados - validação e pertinência de novo;

- Um dos problemas a que se tem assistido a nível europeu tem sido a falta de

visão estratégica ou mesmo a ausência de estratégia e de objetividade, pois

limitamo-nos a correr atrás dos acontecimentos num provincianismo

condicionado por um imaginário de querer fazer como pretensamente se faz nos

Estados Unidos da América…sem se ter a preocupação de mostrar a coerência

no respetivo quadro de atuação;

- Uma avaliação mal feita e ainda por cima com o principal objetivo de excluir

(direta ou indiretamente, de forma taxativa ou implícita) pode ser muito mais

perigosa e prejudicial do que a inexistência de uma avaliação formal, uma vez

que, em última instância, a oferta/procura acabaria por ser reguladora. Numa

83

avaliação mal feita, a função de exclusão normalmente é descartada e

justificada com avaliações feitas por terceiros e não por quem tem a função de

objetivamente avaliar. É fácil avaliar e seriar instituições e docentes quase

exclusivamente pelo número de publicações e citações que muitas vezes,

demasiadas vezes, veja-se por exemplo, Sokal & Bricmont (1999), e Kolata

(2013), parecem resultar de confrarias pouco claras (não excluindo interesses

económicos), o que é difícil (e responsabilizante) é por exemplo, avaliar as

instituições por aquilo que valem as transformações que os alunos tiveram.

Este conjunto, necessariamente sintético, de exemplos evidencia a frequência com que

a avaliação no ensino superior é tratada, sem que exista uma preocupação de ter em

consideração uma coerência na relação entre o rigor, a precisão e a objetividade. Os

positivistas (empirismo lógico) tinham o cuidado de isolar a situação estudada e de tirar

conclusões tipo: nas condições verificadas …acontece. A conjetura passava para quem estava

no mercado e precisava aplicar – e os lucros vinham já com o risco e não com o trabalho,

portanto…

Certamente, que será muito fácil sermos rigorosos e precisos se desprezarmos a

objetividade, isto é, o sentido dos objetivos visados.

3. AVALIAÇÃO E AUTONOMIA

Relativamente ao terceiro eixo de reflexão, consideramos que a autonomia do ensino

superior será generosamente democrática, se, no quadro legal que a define, caracteriza e

legitima, se cumprirem os requisitos de responsabilidade e de colaboração que devem presidir

a um tão importante mecanismo de regulação e gestão das IES. Para que fosse hoje possível

congratularmos com o sucesso do projeto de autonomia, deveríamos ter que admitir não

haver razões para a criticar, bastando apenas a função de a problematizar com a finalidade de

lhe acrescentar sentido ou novos processos, caminhos e finalidades. Independentemente da

pertinência do questionamento, devemos primeiro proceder à própria crítica da autonomia

das IES tal como ela se nos apresenta, no quadro de avaliação do ensino superior.

84

Na realidade, o ensino superior pode queixar-se de ser constantemente sujeito a

pressões para, no âmbito das competências que lhe são devidas, oferecer uma formação de

qualidade e satisfazer exigências que vão da simples conformação com a procura de emprego

e com a promoção da investigação científica até as políticas nacionais, europeias e

internacionais de contribuir para melhorar o seu posicionamento nos rankings que pretendem

ordenar a qualidade das instituições. Parece, portanto, haver uma consideração prévia que

sujeita o quadro da autonomia à função vastíssima de dar resposta ao cada vez mais

competitivo “mercado” do ensino superior global. Terá, por isso, que ser salvaguardada a

autonomia das IES e, consequentemente, a definição e caracterização das suas funções,

incluindo os mecanismos de financiamento.

Não se trata unicamente de se saber se os orçamentos disponibilizados garantem ou

não a exequibilidade dos planos de desenvolvimento ou se, por maioria de razão, no caso

particular das IES públicas, o Estado permite usar saldos de anos anteriores. Trata-se

sobretudo de, em ambas as direções, as dos financiadores e as dos financiados, haver um

conhecimento amplo do conjunto de regras que lhes garanta a capacidade de colaboração e

de negociação, que permita criar uma autonomia efetiva e eficaz. Caso contrário,

permaneceremos no estado atual de agressão à autonomia do ensino superior, por via da

restrição direta ou indireta de competências, no quadro financeiro e científico-pedagógico.

É incompreensível que os decisores políticos e os responsáveis pelas instituições não

tenham encontrado, ao longo dos anos de vigência do sistema, uma forma de diminuir estes

constrangimentos. Compreende-se que haja naturalmente desconfianças mútuas, justificadas

pelo facto de que quem financia, regra geral tenda a manifestar uma posição de controlo e

verificação penalizadora, para evitar responsabilizações pela inconveniente ou desastrosa

aplicação dos recursos financeiros. Não se entende, porém, que, depois de provas dadas de

responsável utilização do erário público, não se permita às instituições que usem

minimamente o quadro autonómico que lhes é conferido e continuem a sofrer restrições

impensáveis para o exercício da sua autonomia.

A título ilustrativo, o RJIES, no ponto 2 do artigo 114º, estabelece que a utilização dos

saldos de gerência “provenientes de dotações transferidas do Orçamento do Estado não

carece de autorização do ministro responsável pela área das finanças e do ministro da tutela”.

85

No âmbito das restrições legais entretanto adotadas, a aplicação desta norma foi igualmente

condicionada. Não se atendeu, por exemplo, aos efeitos de uma medida que podia dar um

sinal de regularização do sistema, atribuindo às instituições que tivessem obtido resultados

positivos, a meritória possibilidade de usar os saldos de gerência.

Aceitar-se-ia que, no atual contexto financeiro, tivessem que justificar a sua aplicação

para o financiamento de programas de desenvolvimento (investigação, cursos, recursos

humanos e instalações). Também, no âmbito da salvaguarda da sustentabilidade de cada

instituição, seria de usar tal mecanismo para a satisfação imediata de compromissos quanto a

projetos de investigação científica e de gestão dos vários recursos atinentes ao funcionamento

dos cursos, sem os quais o processo de acreditação poderia ser posto em causa. Há formas de

premiar ou de penalizar os sistemas e esta seria, decerto, aquela que melhor poderia ser usada

para promover uma gestão diferenciadora dos recursos institucionais.

As limitações que hoje comprometem a autonomia das IES assumem uma feição mais

sombria, quando associadas aos diversos processos de avaliação, em particular nos casos em

que o processo de acreditação impõe previamente malhas muitos estreitas à conceção,

estruturação e execução dos projetos de cursos conferentes de grau. Não é permitido, no

exercício responsável pela autonomia das instituições, demonstrar, de forma rápida e eficaz, a

capacidade de dar resposta às exigências do meio quanto à oferta formativa ou, se for esse o

caso, a propostas de colaboração interinstitucional, de cariz nacional ou internacional. O

processo de acreditação prévia é longo, caro e penalizante, coartando as instituições da sua

capacidade criativa de apresentar soluções imediatas para a oferta de cursos.

Quem quer que esteja há muito neste sistema fica com a sensação de que existe uma

lacuna insanável entre os textos programáticos sobre a natureza e função do ensino superior e

os normativos aplicáveis à sua organização e gestão funcional. Não será despiciendo

considerar que a crítica da autonomia das IES carece ainda da firme oposição a tudo quanto se

aproxime de uma atitude de servilismo administrativo e oficiante, inteiramente contrário aos

nobres intentos que fundaram o ensino superior.

Devemos, por isso, propugnar para que se realize a superação do constrangimento

anti-autonómico, através de medidas concretas que passem pela já referida liberdade de

utilização dos saldos de gerência, pela capacidade de gerir científica e pedagogicamente os

cursos, de modo a que possam habilitar as instituições da oferta formativa necessária para

86

dotar os nossos jovens de uma preparação adequada para enfrentarem, com competência e

credibilidade, o mercado de trabalho. Outrossim, é fundamental usar a autonomia das IES para

incrementar a criação de projetos interuniversitários, com os consequentes custos financeiros,

mas com previsíveis vantagens como a renovação de oferta de cursos, a criação de sinergias

para o investimento na investigação científica e o aumento da massa crítica. Igualmente,

ajudará a combater, no caso particular de uma IES que, devido a especificidades ditadas pela

tradição académica ou por uma leitura mais restritiva da natureza e função da autonomia do

ensino superior, a tendência para o isolamento e para a recusa da inovação e da

transformação.

Para reforçar as condições propiciadoras de boas práticas de autonomia no âmbito do

ensino superior, será ainda necessário considerar a própria capacidade de autorregulação do

sistema, apesar da sua complexidade intrínseca. Nesse processo, terá que se revelar sempre

no quadro de uma resposta contextualizada, a partir de escolhas que providenciem lideranças

competentes e inclusivas; uma oferta formativa e de investigação adaptadas e

qualitativamente diferenciadoras; sistema de valores e de crenças, promotores de espírito

institucional; projeção de uma imagem coesa e funcionalmente produtiva; e satisfação de

compromissos internos e externos.

Como consequência desta reflexão, será preciso promover uma nova autonomia para

as IES? Solicitar aos poderes que a legislam ou que lhe conferem competências a alteração de

todo o seu conspecto jurídico? Agregar IES para liderarem esse processo, de modo a que

possam, por antecipação, apresentar ao poder político, um modelo alternativo, mais inclusivo

e eficaz? Promover a aplicação desse modelo às IES, considerando as contingências dos

processos de avaliação a que estão sujeitas? Talvez seja essa a via mais conveniente, até pelo

facto de estarmos a assistir a tendências uniformizadoras, ademais potenciadas pela

acreditação dos cursos e pela limitação ao financiamento de novos projetos de investigação.

Se se fizesse o esforço por corrigir as falhas que têm sido identificadas e para as quais

tem havido múltiplas propostas de solução, provavelmente dispensaríamos o ensino superior

de mais um intervalo para repensar a sua autonomia.

Para tempos de crise, exigem-se respostas céleres e eficazes. Desse ponto de vista, a

solução menos custosa e garantidamente menos arriscada passaria pelo respeito do quadro de

valores que criou o atual modelo de autonomia das IES, embora com a necessidade de o

87

adaptar pontualmente às exigências de abertura e de adaptação à mundialização do ensino

superior. Faz, por isso, sentido aplicar-lhe as extensões já conceptualmente experimentadas

para as áreas da cultura e da comunicação, através das designações “cultura-mundo”

(Lipovetski, 2010) e “comunicação-mundo” (Mattelart, 1997).

4. AVALIAÇÃO E LIDERANÇA INCLUSIVA

Finalmente, procurando cruzar a avaliação do ensino superior com um determinado

tipo de liderança, diríamos, como ponto de partida desta reflexão, que a liderança democrática

é uma conquista antropológica. Decorre do nosso sentido gregário e da necessidade de

organização para dar sentido aos projetos comuns das sociedades. O sentimento de pertença a

um grupo não se compadece da emergência de projetos individuais conflituantes que possam

pôr em causa a coesão e o funcionamento dos grupos. Por isso, a evolução das sociedades

humanas foi acompanhada das mais diversas formas de liderança ou, se optarmos pelos

sistemas políticos, de regimes que configurassem modos diferenciados de entender o processo

de liderança. Não cabe aqui, desenvolver este tema, mas, em todo o caso, não deve escusar-se

a contribuição do pensamento político e da filosofia para o estabelecimento de ligações entre

os processos de liderança política e aqueles que nos trazem a esta reflexão sobre a avaliação

do ensino superior.

Nas nossas estruturas de ensino superior, particularmente depois da entrada em vigor

do RJIES, nota-se claramente uma tendência para um modelo de governo das instituições que

privilegia a cooptação de liderança, embora fundada no princípio democrático de prevalência

do corpo docente especializado (ao nível das categorias profissionais mínimas e das respetivas

validações em função do grau académico obtido). Neste sentido, o modelo atual é bem diverso

do anterior, uma vez que retira o poder atribuído aos corpos académicos (funcionários,

estudantes e docentes), que detinham uma força liderante inquestionável não só nos órgãos

colegiais, como também contribuíam para a eleição do líder das instituições. Um reitor de uma

universidade pode hoje ser eleito a partir de um universo mais restrito de eleitores, uma vez

que há maior probabilidade de a conjugação entre docentes e membros externos cooptados

determinarem a sua eleição.

88

Esta reflexão é fundamental para percecionar hoje a estrutura do ensino superior e a

capacidade de se poder adotar modelos de liderança eficazes e inclusivos, que, no âmbito

deste nosso entendimento, possam enquadrar devidamente os diversos tipos de avaliação a

que as instituições estão sujeitas. Nesse sentido, impõe-se lançar um conjunto de questões, a

cujas respostas se possa fazer corresponder uma visão orgânica do processo de avaliação, em

íntima conformidade com a liderança que a promove, superintende ou prepara. Quem

constrói os instrumentos de avaliação? Um grupo de iluminados que faz prevalecer os seus

pontos de vista top-down? Quem indica os avaliadores? Como se executa o poder arbitrário de

avaliar? Que possibilidade há de recurso? Que funções são atribuíveis às lideranças

intermédias, como os conselhos de curso ou os conselhos científicos? Outras tantas perguntas

podem ser acrescidas e um rol interminável de respostas poderiam ser dadas, consoante as

leituras mais ou menos académicas, as experiências de avaliação, na condição de avaliador ou

na de avaliado; ou, ainda, as não evitáveis, mas imprescindíveis opiniões baseadas em

convicções sobre modelos e eficácia da avaliação.

Devemos, por isso, tentar, se bem que de forma sucinta, uma aproximação à questão

fundamental, que é a de se obter um processo de avaliação do ensino superior que decorra

diretamente da aplicação dos normativos legais e demais procedimentos regulamentares à

capacidade de a liderança das instituições conseguir ser inclusiva. Parece, pois, ser adequado

continuar a propugnar por esclarecer as questões prévias sobre a legitimidade, credibilidade e

competência de quem avalia; a transparência do processo, com a indicação clara dos critérios

adotados e das suas implicações no resultado final da avaliação; a capacidade de contestar os

resultados; a implicação dos resultados obtidos na melhoria de qualidade de quem é avaliado

ou das estruturas avaliadas; a garantia de participação democrática nos processos de avaliação

(não há democracia sem opinião, não há avaliação sem inclusão da diferenciação no processo

avaliativo). Todo um conspecto epistemológico poderia enformar este questionamento, mas

não saberia decerto encontrar a resposta definitiva.

Dado que a avaliação é um processo complexo, contínuo, evolutivo, adaptável e

contingente, embora não infrequentemente tomado como sistemático e permanente, naquilo

que de mais negativo podem ter as referidas designações, é imperioso adotar medidas que

possam tornar aceitáveis os modelos de avaliação. Decorre deste processo a necessidade de se

saber se, na avaliação dos funcionários, por exemplo, o SIADAP produz uma avaliação, liderada

89

pelas instituições, que seja qualitativamente vantajosa para a melhoria do serviço prestado.

Esta vertente é de uma importância decisiva, uma vez que as restantes atividades académicas

dependem em elevado grau do desempenho dos funcionários nas suas diversas valências.

Para tal, será de toda a conveniência que as academias não descurem estes processos

e que os considerem de extrema importância para a harmonização que se requer que exista

entre os diversos corpos do ensino superior. Nos laboratórios, nas bibliotecas, nos serviços

académicos e de ação social, nos recursos humanos, patrimoniais e financeiros, e nos

restantes serviços de secretariado e apoio, as instituições merecem poder contar com

funcionários competentes, motivados e capacitados para resolver os problemas que lhes são

colocados. Não teremos chegado a resultados de qualidade se o processo de avaliação dos

funcionários também não promover lideranças inclusivas que visem valorizar individualmente

a idiossincrasia de cada funcionário em função do seu empenho no projeto institucional.

Os alunos constituem, por certo, o fundamento da razão de ser das instituições de

ensino superior. São eles os mais regularmente avaliados, os mais conhecedores de intensos e

variados modelos e procedimentos de avaliação. Apesar da imensa produção académica e dos

regulamentos aprovados para a avaliação dos alunos, ainda é comum aceitar-se que não existe

consenso sobre o modelo mais conveniente para cada unidade curricular, em função da sua

especificidade, ou para cada aluno em particular, em função da sua relação com a turma em

que está inserido ou com a capacidade de atingir as metas definidas. Acontece que, de forma

mais ou menos acrítica, os docentes adotam formalismos e informalismos atinentes a qualquer

tipo de avaliação, para construir a sua própria legitimidade avaliadora, ademais salvaguardada

pelas normas e regulamentos aplicáveis. E, neste ponto, admite-se que a avaliação dos

discentes seja, de certo modo, mais fácil de realizar do que a dos outros dois corpos

estruturantes das instituições.

Tomando o exemplo da avaliação num grupo, uma turma é uma unidade, constituída

por elementos que interagem durante um período definido e que, por conseguinte,

conformam elementos para a avaliação formal e não formal com óbvias vantagens para o

docente. Todavia, no estado atual da evolução do nosso sistema, o problema coloca-se

sobretudo ao nível da evolução das modalidades anteriormente adotadas, muito orientadas

para avaliações de registo formal, para aquelas que se supunha constituírem uma inovação do

processo Bolonha, fundamentalmente orientado para a obtenção de uma equação equilibrada

entre a aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento de competências para aplicação na

90

vida pessoal e profissional. Talvez não se queira assumir a verdade, mas parece que o conforto

do passado ainda faz dormitar a avaliação de muitos dos nossos alunos.

Para a avaliação dos docentes e/ou investigadores, que é de todas a mais recente, pelo

menos na forma como agora é efetivada, concorrem as vertentes de progressão na carreira, a

avaliação de desempenho e, indiretamente, a não menos importante avaliação dos cursos

onde prestam serviço. Podemos dissertar longamente sobre as questões que atrás

referenciámos para a sua aplicação à avaliação dos docentes. Neste aspeto, a liderança das

instituições tem um papel fundamental a desempenhar, uma vez que é a ela que cabe

promover os meios necessários, em acordo com o que lhe é permitido no âmbito da sua

autonomia e dos recursos que pode obter, para permitir que o corpo docente seja preparado

para atingir os momentos de avaliação em condições perfeitamente integradoras das

diferenças individuais, de categoria profissional, de graus académicos, de prestação de serviço

docente, de investigação científica, e de serviço à instituição e ao meio.

Se há margem para a liderança inclusiva, ela deve ser exercida precisamente junto dos

docentes das instituições com a correspondente harmonização de comportamentos

democráticos de auscultação dos pares, de adoção de sugestões, de implementação e

execução de procedimentos conferentes de participação de todos nos processos a que todos

dizem respeito. Dir-se-á que se trata de um projeto de liderança e de avaliação ingente e

utópico. Talvez seja, mas a própria democracia também já pertenceu a essa categoria e hoje

até se receia que volte a ser reclassificada.

Cabe aqui rememorar que a história das universidades está repleta de exemplos de

personalidades eminentíssimas em todas as áreas de saber que, por imposição de

circunstâncias de cerceamento das suas liberdades individuais ou da sua autonomia

intelectual, que caso tivessem sido sujeitas exclusivamente a políticas de exercício da sua

atividade funcional, decerto não teriam alcançado o patamar que ousaram atingir. O filósofo

Karl Popper, na sua autobiografia intelectual, confessa ter-se confrontado com essa

dificuldade, na sua experiência na Nova Zelândia, tendo ficado verdadeiramente aliviado,

como se de uma verdadeira libertação se tratasse, quando recebeu o convite do eminente

economista e filósofo Friedrich A. Hayek, já no fim da Segunda Guerra, para lecionar na

Universidade de Londres (Popper, 2008).

91

EM JEITO DE SÍNTESE

Retomando os eixos analisados, assumimos, na generalidade o seguinte:

Apesar de considerarmos a avaliação do ensino superior de uma enorme

complexidade, não advogamos que, por isso, ela não deva ser realizada. Pelo

contrário, defendemos que se instale uma real cultura de avaliação nas IES, apenas

todavia com a consciência da multiplicidade de fatores que interagem, criando ou

afetando a qualidade da instituição.

A avaliação não deve ser encarada como um fim em si mesmo, mas como um

meio de transformação e promoção do Homem. Enquanto ferramenta não é objetiva

nem subjetiva, devendo porém ser utilizada em função dos objetivos definidos, dos

recursos disponíveis, do contexto em que é aplicada e das condições operativas. A

estratégia seguida deverá, naturalmente, considerar a globalidade do fenómeno que

pretende avaliar.

Devemos também considerar as tensões que se geram entre a autonomia

secularmente associada ao ensino superior, por um lado, e a imposição dos

“mercados”, através de mecanismos de acreditação e financiamento das IES e

respetiva oferta formativa, por outro, e no que tal representa em termos de agressão

e asfixia de qualquer tentativa de inovação, no fundo, o grande desígnio do ensino

superior.

Finalmente, uma avaliação que se deseja “construída”, ao invés de “decretada”,

passa necessariamente por uma liderança inclusiva, com lugar para a participação

efetiva de avaliadores e avaliados, numa relação dialógica e dialética, ao nível das

bases e das lideranças intermédias.

92

Em suma, os processos de avaliação que aqui foram sujeitos a breve análise e

reflexão, com a consideração prévia de questões epistemológicas, institucionais e

metodológicas, concorrerão para a avaliação da própria instituição e da sua

correlação com a avaliação de outras instituições congéneres. Não se trata apenas de

se saber se cada uma das instituições tem capacidade de melhorar a sua posição

relativa no conjunto nacional ou regional. Mais do que nunca, urge equacionar o seu

posicionamento no mundo global, para o qual terá inevitavelmente de desenvolver

outras competências, que passarão, por exemplo, pela capacidade de explorar as

tecnologias de comunicação que suportam a difusão planetária do conhecimento.

93

REFERÊNCIAS

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