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Denise Almeida Silva e Luana Teixeira Porto

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Pensando as Américas:

narrativas e violência

Denise Almeida Silva Luana Teixeira Porto

(organizadoras)

Denise Almeida Silva Luana Teixeira Porto(Organizadoras)

Pensando as Américas:

narrativas e violência

Pensando as Américas: narrativas e violência

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Denise Almeida Silva Luana Teixeira Porto

(Organizadoras)

Santa Cruz do Sul

2016

Pensando as Américas:

narrativas e violência

Denise Almeida Silva e Luana Teixeira Porto

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Editora Catarse LtdaRua Oswaldo Aranha, 444 Bairro Santo Inácio Santa Cruz do Sul/RS

www.editoracatarse.com.br

facebook.com/editoracatarse

Copyright® dos autores

Antonio Fausto Neto – Unisinos

Ernesto Söhnle Jr. – UNISC

Eunice Piazza Gai – UNISC

Fernando Resende – UFF

Jesús Gallindo Cáceres – Benemérita Universidad Autónoma de Puebla (México)

João Canavilhas – Universidade de Beira Interior (Portugal)

Walter Teixeira Lima – UMESP

CONSELHO EDITORIAL

Pensando as Américas: narrativas e violência

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Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406Correção ortográfica: Diana de AzeredoProjeto gráfico e diagramação: Daiana Stockey CarpesEdição: Demétrio de Azeredo Soster

P418 Pensando as Américas: narrativas e violência / Denise Almeida Silva, Luana Teixeira Porto (Organizadoras) – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2016.

187 p. (Coleção Acadêmica) Texto eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web.

1. Narrativa (Retórica). 2. Violência na literatura - América. 3. América - Civilização. 4. América – Aspectos sociais. 5. Literatura – História e crítica. 6. Literatura e sociedade. I. Silva, Denise Almeida. II. Porto, Luana Teixeira

CDD: 809.93355

Prefixo Editorial: 69563Número ISBN: 978-85-69563-12-9

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MANIFESTO

Graça Graúna

...fragmento que sou da fúria no choque cultural, aqui, manifesto o meu receio de não conhecer mais de perto o que ainda resta do cheiro do mato da água do fogo da terra e do ar Torno a dizer: manifesto o meu receio de não conhecer mais de perto o cheiro da minha aldeia onde ainda cunhantã aprendi a ler a terra sangrando por dentro

Nordeste do Brasil, fevereiro de 2010

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SUMIDOURO BRASIL1

Miriam Alves

Hoje a insônianão me deixou dormirsons de bomba de gáslacrimogêneopipocavamcomo se fosse preciso gáspara nos fazer chorar.Hoje percebi na minha insôniasecular que carrego muitas perguntassem respostasPerguntas que não querem se calarInsônia que não me deixa sonharHoje especialmente hojeuma pergunta retumba na menteestatela meu olhararrebenta as vidraçase as taças de cristaldos palácios reais dosgovernadores e presidentesNa Alvorada alvoroça vozescomo um coral cibernéticoa perguntar:cadê o Amarildo?

1 O poema alude ao chamado “caso Amarildo”, o qual remete ao desaparecimento, em julho de 2013, do pedreiro Amarildo Dias de Souza. O operário, que retornava de uma pescaria, foi detido em uma operação denominada “Paz armada”, a qual, em resposta a um arrastão nas proximidades da Rocinha, mobilizou 300 policiais e prendeu suspeitos, mesmo sem passagem pela polícia. Detido entre estes, Amarildo foi liberado após concluída sua averiguação na UPP da Rocinha; desde então seu paradeiro é desconhecido. O caso teve grande repercussão, inclusive internacional, e passou a simbolizar tantos outros desaparecimentos não esclarecidos nos quais, suspeita-se, aqueles que deveriam zelar pela paz e pela vida romperam seu compro-misso ético e profissional.

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Sumário

NARRATIVAS DA VIOLÊNCIA: A LITERATURA E SOCIEDADES NAS AMÉRICASDenise Almeida Silva e Luana Teixeira Porto

1 CONTAS PARA PRESTAR, NARRATIVAS PARA REMEMORAR: A DITADURA MILITAR BRASILEIRA EM CONTOS DE BERNARDO KUCINSKILuana Teixeira Porto

2 A DITADURA DESSACRALIZADA: UMA RELEITURA DA HISTÓRIA EM CALABAR: O ELOGIO DA TRAIÇÃO, DE CHICO BUARQUE E RUY GUERRALizandro Carlos Calegari

3 LITERATURA, VIOLÊNCIA E FRATERNIDADE: A EXPANSÃO DA PESQUISAArturo Gouveia de Araújo

4 A “IDEIA-FORÇA QUILOMBOLA” E A DENÚNCIA DA VIOLÊNCIA EM CONTOS DA LITERATURA NEGRA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEADenise Almeida Silva

5 LITERATURA E VIOLÊNCIA: DOS SABERES ANCESTRAIS À EXCLUSÃO Graça Graúna

6 UM ERRO FOI COMETIDO EM UM LUGAR: SOMBRAS DE VIOLÊNCIA NA LITERATURA INTERAMERICANARoland Walter

7 LA LITERATURA COMO INSTRUMENTO LIBERADOR Ignacio Martínez

8 O LEÃO NO INVERNO: EVARISTO, O COMISSÁRIO DE POLÍCIA DE CARLOS SAMPAYO E FRANCISCO SOLANO LÓPEZ David William Foster

9 PRÁCTICAS DE LA VIOLENCIA ENTRE LAS FUERZAS POLICIALES Y EL SEXO COMERCIAL, EN FUERZAS ESPECIALES, DE DIAMELA ELTITPaula Daniela Bianchi

10 SALSA, AMENDOIM, RUM E VIOLÊNCIA: O UNIVERSO MALDITO DE REY EM O REI DE HAVANAVera Lúcia Lenz Vianna e Rosani Ketzer Umbach

11 VERSIONES DE LO FEMENINO EN ROSARIO TIJERAS, DE JORGE FRANCO Rosane Cardoso

SOBRE OS COLABORADORES

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Narrativas da violência: a literatura e sociedades nas Américas

Denise Almeida SilvaLuana Teixeira Porto

A abordagem da violência, na forma e no tema de textos literários, é um tema recorrente na literatura das Américas. Tal centramento é compreensível quando pensamos que, na qualidade de elemento fundador das nações hoje independentes nas três Américas, a violência aparece naturalmente como traço constitutivo das sociedades americanas, o que também justifica a presença do tema nos textos literários.

Nas Américas, como Roland Walter (2013) registra, a brutalização das pessoas está essencialmente vinculada à brutalização do espaço, e ambas enraízam-se no passado, ao longo do qual se alinham violências de toda a ordem – do genocídio de tribos indígenas à escravidão, compreendida tanto como o período histórico específico em que foram tolhidas a liberdade e dignidade de milhares de seres humanos, como sob outras formas contemporâneas de iniquidade e desigualdade social. Testifica-se, hoje, à crescente recessão econômica, a qual dá lugar, por sua vez, ao incremento da pobreza e à marginalização de grupos sociais cuja vida é tragicamente impactada pela deterioração da conjuntura sócio-política-econômica, o que, por sua vez, gera renovadas ondas de violência. O dever de memória exige que se registrem encarceramentos, exílios, torturas e mortes que grassaram nas Américas ao longo do período ditatorial; ajuntam-se a estas, ainda, outras formas de violência que se alastram na contemporaneidade, como o terrorismo e o narcotráfico.

Voltamos, contudo, à violência primeira: a brutalização da terra e de seus habitantes, a qual se deve essencialmente a outra, que subjaz a ambas – a invisibilização do outro aos olhos dos colonizadores, para quem as gentes que em tudo diferiam de si não exigiam que se lhes atribuísse o status de humanidade. Testemunha disso é, por exemplo, a necessidade da promulgação da bula papal Veritas Ipsa, também conhecida como Sublimis Deus, promulgada pelo Papa Paulo III em 2 de junho de 1537, para alertar que também os índios e os negros escravos não eram animais brutos, e que, portanto, não deveriam ser privados da liberdade e domínio de seus bens.

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O fato de que a bula papal relacione liberdade e privação do domínio como as violações decorrentes da animalização do outro do europeu revela uma compreensão notável acerca da natureza da constituição identitária. Afinal, como Walter (2013) diz, citando Milton Santos (2007), se a cultura representa uma herança e aprendizado profundo das relações entre o homem e seu meio, então o cerne do problema identitário no que diz respeito a tantos grupos multiétnicos pan-americanos remonta a sua dissociação da terra em que sua história estava inscrita. O pesquisador alerta:

Ter uma história enraizada na terra roubada durante o período colonial, como no caso das primeiras nações indígenas pan-americanas, significa ter uma não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada durante um processo colonial, como no caso dos colonizadores e de seus descendentes, significa ter uma não identidade nutrida pelo remorso recalcado. (WALTER, 2013, p. 10).

O que está em jogo, em última análise, no contexto das relações tecidas a partir da dinâmica do processo colonizatório, é a resposta à pergunta: “Quem sou?”, ou ainda mais fundamentalmente: “Quem me tornei?”. Questionamentos como esses, como Ricoeur (2011) sublinha, transitam da fragilidade da memória à fragilidade da identidade. Mais do que o recuo temporal implícito nas interrogações (a relação difícil com o tempo justifica o recurso à memória), queremos registrar duas outras causas, arroladas pelo estudioso francês, como causadoras da fragilidade identitária: 1) o confronto com outrem, percebido como ameaça pelo fato mesmo de ser outro, e, portanto, um perigo “para a identidade própria, tanto a do nós como a do eu” (RICOEUR, 2011, p. 94); e 2) a herança da violência fundadora. As relações envolvidas na constituição dessa identidade fragilizada são relevantes aos estudos propostos no presente volume, pois estão na essência mesma do processo colonial, relação de poder que, ainda que com nuanças distintas, dado o objeto fundamental da relação em cada caso (exploração – relação mais frequente – ou povoação, como na América do Norte) afetou a todas as nações que agora constituem as Américas. Ricoeur (2011, p. 95) é claro:

É fato não existir comunidade histórica alguma que não tenha nascido de uma relação, a qual se pode chamar de original, com a guerra. O que celebramos com o nome de acontecimentos fundadores, são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um Estado de direito precário, legitimados, no limite, por sua própria antiguidade, por sua vetustez. Assim, os mesmos acontecimentos podem significar glória para uns e humilhação para outros. A celebração, de um lado, corresponde à execração, de outro. É assim que se armazenam, nos arquivos coletivos, feridas reais e simbólicas.

É justamente ao estudo dessas centenares feridas reais e simbólicas, revisitadas através da visão de escritores das Américas que este volume convida. Uma vez que seria impossível abarcar, no âmbito desta obra, a totalidade da história literária das Américas, optamos pelo centramento em obras que

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reafirmam, sobretudo a partir da segunda metade do século XX a repercussão de práticas sociais associadas à violência.

Quando examinamos obras recentes publicadas nas Américas que enfocam a violência, percebemos que, em muitas delas, esta recebe tratamento estético que coloca em destaque o engajamento do escritor; em alguns casos o tom panfletário da composição dá-se em detrimento de maior elaboração estética. Apesar dessa oscilação na forma de representação da violência, cabe registrar também que o tema persiste por indicar uma tentativa de parte dos escritores em criar uma imagem de nação e de sua identidade político-social-cultural com base na perspectiva de quem dela faz parte (e não daquele que a colonizou ou explorou) e a observa, percebendo suas especificidades e experiências históricas. Além disso, é possível compreender o tema da violência na literatura das Américas como meio para registrar impressões e avaliações da vivência de longos e dolorosos processos de colonização europeia, de marcar a diferença entre um nós e os outros quando consideradas as singularizadas das comunidades nativas e a estranheza dos colonizadores nas terras então descobertas em relação aos povos “primitivos”. Essa opção temática pode ser vista, nessa linha de raciocínio, como uma forma de compreender com condicionamentos básicos de formação social interferem no desenvolvimento da literatura nas Américas, já que não podemos desvincular a experiência estética literária deste continente da história dos países que o constituem e dos processos de violência que lhe foram impostos.

Para justificarmos a afirmação de que a violência é tema recorrente na literatura das Américas, lembramos obras separadas por grande diferença temporal, produzidas em diferentes países. Iniciamos com a Carta de Caminha, considerada a certidão de nascimento do Brasil, escrita ainda no início do século XIV, a qual já apresenta registro da violência do processo de aculturação portuguesa imposto aos nativos indígenas nas terras brasílicas, processo que se repetiu, com variações, em outros países colonizados. Publicada em 1924, a clássica obra da literatura hispano-americana La vorágine, do escritor colombiano José Eustasio Rivera, também denuncia práticas de violência contra indígenas e colonos escravizados no período conhecido como “fiebre del caucho”, marcado pela exploração e comercialização do caucho na região amazônica no Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia e Equador; na literatura uruguaia, Mario Benedetti, na novela Primavera con una esquina rota, de 1982, produz um texto em que se mesclam realidade e ficção, para abordar exílio, perseguição política, prisão e práticas de tortura comuns na ditatura militar do país, a qual perdurou de 1973 a 1985, e, nesta obra, o autor introduz, em meio à narrativa ficcional, depoimentos seus, assumindo a postura de testemunho na condição de expatriado e de alguém que rejeita a crueza do regime ditatorial em seu país.

Mais contemporaneamente, a rememoração dos sucessivos golpes de estado que resultaram no estabelecimento de inúmeras ditaduras militares nos anos de 1960 e 1970 em toda a América Latina ocasionou obras que comentam e avaliam, retrospectivamente, as agressões a que tantos cidadãos foram submetidos nesse período, quando os Estados Unidos, especialmente após a Revolução Cubana

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e a ascensão de Castro ao poder, intensificaram uma política de vigilância nas Américas, apoiando a instituição de governos militares como forma de refrear o estabelecimento de governos tidos como comunistas. Com referência a esse contexto, poderíamos lembrar as numerosas obras publicadas no Brasil já a partir dos anos 1970, como As meninas (1973), de Lígia Fagundes Telles, Zero (1974), de Ignácio de Loyola Brandão, A festa (1976), de Ivan Ângelo, Os tambores silenciosos (1976), de Josué Guimarães, Tropical sol da liberdade (1988), de Ana Maria Machado, Confissões de Ralfo (1988), de Sérgio Sant´Anna, Antonio (2007), de Beatriz Bracher, ou ainda K (2011), de Bernardo Kucinski.

Alongando, ainda uma vez mais, o olhar para a recorrência da representação da violência no âmbito das Américas, lembremos outras formas de abordagem do tema nos textos literários em outros países. Na literatura nicaraguense, identificamos, em obras dos séculos XX e XXI, registro de práticas de violência vividas durante o processo de colonização, independência e também quando houve a intervenção americana ao país e a ditadura somozista, além disso, texto literários da Nicarágua abordam a violência simbólica imposta às mulheres por meio da problematização da opressão e submissão feminina naquele lugar, estas denunciadas por diversas escritoras, dentre as quais Gioconda Belli, especialmente na obra La mujer habitada, de 1996, em que fica evidente a presença de uma voz feminina indígena que se opõe à visão dos espanhóis sobre a cultura dos povos nativos e, sobretudo, luta contra a dominação masculina e a favor do reconhecimento do papel da mulher no desenvolvimento da sociedade.

A literatura peruana também oferece vários exemplos de textos que tratam de violência, especialmente em relação ao contexto mais recente em que ocorreram no país diversos conflitos internos decorrentes de embates entre ativistas do movimento armado Sendero Luminoso e forças de segurança do Estado. Óscar Colchado, com a obra Rosa Cuchillo, de 1997, e Lurgio Gavilán com Memorias de un soldado desconocido, de 2012, podem ser citados como autores que criam ficção com base nas guerras, matanças e horrores vividos no Peru das últimas décadas. Rosa Cuchillo expõe vários episódios de violência no enfrentamento de senderistas com militares do Estado e também com camponeses, permitindo um processo de rememoração da história recente do país. Já o texto de Gavilán assume um caráter testemunhal, que entrecruza ficção e autobiografia para tratar da experiência de guerra rememorada pelo autor durante sua passagem pelo movimento Sendero Luminoso e pelas Forças Armadas.

Tais autores e obras ilustram o quanto a violência da realidade social repercute nas experiências estéticas e o quanto escritores, em diferentes momentos históricos, mostram-se atentos a criar, no plano ficcional ou em obras de teor testemunhal ou de literatura de testemunho. Mesmo não sendo considerada um gênero dentro do sistema literário, a chamada “literatura de testemunho” caracteriza-se por seu traço político e de resistência a formas de aniquilamento da vida humana decorrentes de processos violentos e catástrofes históricas, como guerras, genocídios, ditaduras, e por apresentar, na sua composição, uma intenção de dar um testemunho e criar

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uma memória de um evento histórico. Em perspectiva diferente, mas não oposta, o texto com teor testemunhal é um documento da cultura, visto que expõe uma leitura do real por meio da arte - sem seguir a lógica da representação realista do século XIX -, o que leva à compreensão de que, ao abordar traços da realidade, o texto já assume um teor testemunhal.

Independentemente da caracterização das obras que exploram a violência, essa forma de representação ainda sinaliza que essa temática diminui a distância entre o mundo das letras e discussões típicas das ciências sociais, o que, contudo, não autoriza a ideia de que a literatura produz sociologismo. Se aceitássemos essa prerrogativa como verdadeira, estaríamos ignorando uma das facetas que singularizam o texto literário, a qual consiste justamente na afirmação da função da literatura caracterizada por propor ao leitor a vivência dialética dos problemas sociais, dentre os quais se inclui a violência, seguindo a visão de Antonio Candido (2006; 1995).

Para Antonio Candido, em seu conhecido livro Literatura e sociedade, a literatura tem o poder de não só expor problemas de ordem social e incitar reflexão e posicionamento sobre eles, como também de estabelecer uma interlocução entre arte e conjuntura externa, já que, para ele, elementos da realidade social tornam-se elementos da estrutura interna da obra literária “a ponto dela poder ser estudada em si mesma; e como só o conhecimento desta estrutura permite compreender a função que a obra exerce” (CANDIDO, 2006, p. 9). Dessa forma, o processo de interpretação literária deve ser realizado “fundindo texto e contexto” (CANDIDO, 2006, p. 13), e o valor de uma obra deve ser construído em observação à forma e ao tema, o que possibilita, dentre outros caminhos de avaliação, a proposição de juízos críticos com respeito a textos literários que tematizam a violência com base na análise da forma como tal tópico é problematizado na tessitura da narrativa ou da poesia.

A presença constante do tema da violência no universo literário, ao contrário do que podemos supor, assume uma dupla relação entre representação literária e condicionamento social, já que, ao mesmo tempo em que propõe uma representação artística de cenas de crueldade nos contextos que ambientam as obras, o que incita a uma tentativa de equilíbrio entre forma estética e conteúdo social, indica ainda ser a violência uma marca constituinte das sociedades americanas. No caso específico do Brasil, Jaime Ginzburg (2012) defende que a história literária brasileira poderia ser contada através da ótica da violência, a qual tem se manifestado, ao longo da história, através de inúmeras práticas, tais como o genocídio contra indígenas, a escravidão, os processos de governo autoritário do Estado Novo e da Ditadura Militar. Inserindo-nos em uma reflexão mais ampla sobre o tema, sugerimos uma extensão da perspectiva do pesquisador brasileiro: propomos reconhecer que a história da literatura nas Américas também possa ser analisada à luz da história social de violência que tem assolado os países da América do Norte, Central e do Sul, e tal perspectiva perpassa a concepção do conjunto de textos que compõem este livro, cujo objetivo é discutir relações entre cultura, história e violência e

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literatura nas Américas com base na análise de obras que tratam de diferentes tipos de violência que têm sido experienciados ao longo do processo de formação dos países do continente americano.

Os textos incluídos neste livro tratam de obras das literaturas americanas que explicitam diferentes formas de violência. Para contextualizar as relações entre literatura e violência no contexto brasileiro, o ensaio de Luana Teixeira Porto aborda a representação da Ditadura Militar em contos de Bernardo Kucinski publicados no século XXI, os quais apresentam uma leitura desse processo histórico já mais distanciada. A persistência de produção recente sobre tema já bastante problematizado na literatura brasileira da segunda metade do século passado pode ser lida, na visão da autora, como uma denúncia, no plano estético, de que não houve superação do trauma histórico e que há muitas contas a prestar para compreender a dureza da ditadura no país, cuja avaliação pelos órgãos governamentais tem negligenciado o reparo dos danos a toda sociedade e vítimas envolvidas e proposto silenciamentos de vozes denunciadoras da violência do sistema imposto nos anos de chumbo.

Também Lizandro Carlos Calegari discute a representação da ditadura militar brasileira através da análise da peça Calabar: o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Embora o texto seja produzido na forma de peça teatral, apresenta uma narrativa sobre violência, ao tratar de um processo de intenso autoritarismo e repressão política no Brasil por meio da história de Domingos Fernandes Calabar, grande conhecedor das terras brasileiras e táticas de guerras e um dos personagens mais atuantes na derrota dos portugueses e espanhóis para os holandeses no período colonial brasileiro. Para o pesquisador, a obra de Buarque e Guerra constitui-se como uma metáfora para tratar do período ditatorial brasileiro, haja vista a associação, na obra, de imagens entre os dois momentos históricos, denunciar a realidade opressora do momento histórico ditatorial e ainda como registro do processo de violência instaurado na sociedade desde a colonização, sendo, portanto, um texto que dialoga com a história brasileira. Isso, contudo, na visão do crítico, não retira o potencial artístico do texto, pois a obra permite um deslocamento do olhar através da proposição de uma leitura do passado histórico brasileiro por meio de uma perspectiva materialista e não historicista.

O ensaio de Arturo Gouveia de Araújo retrocede à fase medial do século XX, evidenciando a inserção da violência na literatura brasileira a partir de ângulo inovador. O autor analisa o romance Fogo morto, de José Lins do Rego, e destaca cenas de violência protagonizadas por diferentes personagens da obra. A originalidade de Araújo reside na defesa da tese de que, apesar da heterogeneidade tanto de meios quanto de fins de que se recobrem as ações violentas na obra, há marcas, no texto, do exercício da fraternidade. Estas se evidenciam, por exemplo, através do comportamento do bode da casa do Mestre José Amaro, animal que se mostra solidário ao sofrimento do mestre, estabelecendo vínculos entre animal e homem, e na atuação do Capitão Vitorino, sempre disposto a evitar injustiças. O fato de que a fraternidade não impede a continuidade da violência potencializa sua virulência.

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O estudo de Denise Almeida Silva acerca da expressão da violência na literatura afro-brasileira contemporânea se desenvolve a partir da perspectiva crítica trazida pela “ideia-força” de resistência quilombola, noção que é discutida, sobretudo, com base no conceito como proposto por Abdias do Nascimento. Uma vez que a prática quilombola, tanto em seu viés histórico, como em suas ressonâncias simbólicas, tem se constituído em resistência a agressões que derivam, essencialmente, de processos de desumanização a que os africanos e seus descendentes têm sido, historicamente, expostos, a discussão foi trazida para o campo da ética. Dessa forma, os contos “Abraço do espelho”, de Cuti, e “A gente combinamos de não morrer”, de Conceição Evaristo, através dos quais a autora exemplifica a influência do ideal quilombola nas letras afro-brasileiras, são analisados em conjunção com as noções de liberdade e autonomia que subjazem à constituição do sujeito ético, e contrastadas, por um lado, com a negação da atribuição dessa agência ao africano e seus descendentes e, por outro, com os fundamentos éticos do quilombismo.

O ensaio de Graça Graúna procura contribuir com o diálogo sobre literatura e violência a partir da perspectiva trazida por outra minoria étnica, a indígena. A autora, ela mesma pertencente à etnia potiguara, e estudiosa de temas voltados, sobretudo, ao universo indígena, chama a atenção para abusos físicos e psíquicos a que essa população tem sido submetida, dentre os quais perseguições e preconceitos, torturas e abuso sexual, e negação dos direitos e dos saberes sagrados. É a partir da perspectiva da universalidade do direito de ser e de viver com dignidade em meio à diversidade, que a autora focaliza um conjunto de narrativas indígenas produzidas nos séculos XX e XXI e que problematizam as formas de violência contra o indígena. Nesse contexto, a própria diversidade constitui-se em forma de resistência que reclama o reconhecimento do indígena e sua literatura, a partir da afirmação, por seus autores, de valores étnicos, culturais e identitários próprios. A autora destaca, ao longo de seu texto, a defesa da literatura indígena como literatura autônoma, contrariando perspectivas críticas que asseguram sua não existência e valor como produção artística; ressalta a prática da auto-história, a qual, narrada a partir da visão indígena, traz a marca do coletivo no recontar individual.

O texto de Roland Walter, que se desenvolve a partir da rememoração de formas de violência praticadas em fases diversas do processo colonial, é o primeiro de uma série de ensaios que, deixando de lado a expressão da violência nas letras brasileiras, remete a reflexões acerca da forma como esta tem sido problematizada pela arte literária nas Américas. Nesse sentido, e em perfeita consonância com os objetivos deste volume, Walter faz mais do que repensar a forma como a arte literária revela a brutalização do homem e da terra no continente americano, em que uma relação ancestral e/ou identitária, espacial e temporal, foi rompida. Tomando como mote uma frase proferida pelo protagonista do romance Invisible Man, (“A mistake was made somewhere[...] I’m confused”(ELLISON, 1952, p. 9), que se declara tão ambivalentemente confuso quanto uma negra que ama e odeia homem que é seu senhor e pai de seus filhos, Walter levanta a hipótese de que as literaturas das Américas “têm sido e continuam a ser uma tentativa de mapear,

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revelar, problematizar de maneira criativa, diversa e multidimensional este ‘erro cometido em algum lugar’, e seu efeito de confusão, ambiguidade e ambivalência” (2016) que provem da violência indissociável à fundação das sociedades pan-americanas. Tais obras, ao reimaginar o passado, interrompem o presente e revelam um ambivalente entre-lugar das identidades americanas: para além de espaço de perda, estas afirmam-se como espaço de potencialização, abrindo possibilidades de evitar os traumas advindos da subalternização colonial no futuro. É, pois, do interior de uma “estética de interrupção, ruptura e conexão”, baseada no “princípio esperança” blochiano, associado ao que Glissant chamou de “estética da terra”, que Walter examina manifestações literárias que, ao mesmo tempo em que comentam a colonialidade do poder, afirmam uma nova história a partir da não-história colonial, divisando novas possibilidades e formas de vencer os obstáculos que impedem o ser humano de se realizar de maneira digna e justa.

É a partir da perspectiva proporcionada pelas letras de seu Uruguai natal que Ignacio Martinez comenta a expressão da violência nas Américas. Como Roland Walter, Martinez destaca o caráter de resistência assumido pela literatura e demonstra, com numerosos exemplos, como o povo uruguaio tem encarado a literatura como ferramenta de conhecimento e conscientização e, por isso mesmo, como ferramenta de libertação e de denúncia. A análise se desenvolve a partir do enquadramento do progressivo empobrecimento do país e da violência que vem a ocorrer a partir de sua deterioração e quanto coletivo social dentro do quadro maior da crescente crise econômica do pós-guerra, a qual se verifica mais agudamente a partir de meados da década de 1960, por toda a década de 1960 e ainda após o estabelecimento da ditadura em 1973. Exemplos da reação à violência social na literatura uruguaia são apresentados sobretudo através de poemas, sem descuidar o papel da narrativa romanesca, do teatro e da ensaística na resistência à opressão social e política.

A narrativa escolhida para análise por David William Foster, a história em quadrinhos Evaristo (1985), de autoria de Evaristo Solano López e Carlos Sampayo, dialoga com um período particularmente turbulento e não nitidamente politicamente definido da história argentina: a década entre 1955– 1966. A obra é, como Foster ressalta, “um notável produto cultural do período da redemocratização da cultura argentina durante a fase da reconstrução nacional que se seguiu à volta da constitucionalidade no final de 1983” (2016), escolhendo, como seu cenário temporal, o período entre a queda do Peronismo populista em 1955 e a implantação da ditadura autoritária e reacionária em 1966, em que a Argentina busca firmar alguma continuidade política e restaurar uma democracia operante. A figura fisicamente imponente do comissário de polícia Evaristo, da municipalidade de Buenos Aires que luta contra a incompetência e a corrupção dentro e fora das suas próprias fileiras, contrasta com sua inabilidade final de atingir seus objetivos. Nesse sentido, a metáfora do leão aparentemente perigoso, mas na realidade manso e inofensivo, desenvolvida pelos autores da obra e explorada por Foster, pateticamente sugere a dimensão da violência e impunidade geral que grassava naquele momento e local

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histórico. Nesse contexto, o sentimento de falência resultante oferece poderoso correlato objetivo com relação à história social argentina desse período.

A figura patética do comissário de polícia Evaristo perambulando pelas ruas violentas da cidade oferece contraste com as forças policiais representadas no romance Fuerzas especiales (2013), da escritora chilena Diamela Eltit, cuja análise, por Paula Daniela Bianchi, segue ao estudo de Foster. Como Bianchi ressalta, o romance integra o quadro de narrativas ficcionais latino-americanas em torno do político-prostitucional do século XXI, perspectiva a partir da qual a autora percebe a existência de duas vertentes temáticas bem definidas. A primeira diz respeito à prostituição, enfocando o trabalho sexual em associação tanto com os corpos e subjetividades envolvidos no mercado do sexo como com os marcos estruturais da violência que configuram dispositivos de poder. Uma segunda categoria associa a prostituição às novas tecnologias e, consequentemente, ao impacto da violência que conjuga a virtualidade, o laboral e a sexualidade. Ambas as vertentes temáticas, presentes no romance de Eltit, são cuidadosa e detalhadamente analisadas por Paula Daniela Bianchi.

O ensaio de Vera Lúcia Lenz Vianna e Rosani KetzerUmbach analisa um romance do escritor cubano Pedro Gutiérrez, El Rey de la Habana, e as autoras traçam o perfil de um indivíduo oprimido pela miséria e pela violência por meio da observação ao personagem protagonista e às relações entre forma do romance e conteúdo. A estética narrativa do romance é examinada à luz do conceito de “Realismo Sujo”, adotado como referência teórica na verificação de aspectos da história cubana que entram na história de Gutiérrez ao retratar as áreas mais baixas e sujas da realidade cubana. Para as ensaístas, a exploração do “Realismo Sujo” é um recurso recorrente na escritura de Gutiérrez, que comumente “cria um desassossego no leitor que se vê diante de um contexto impiedoso, sem escapatória” (2016, p. 169).

O último ensaio da coletânea, de autoria de Rosane Maria Cardoso, analisa a transposição do romance Rosario Tijeras (1999), de Jorge Franco Ramos, levantando a hipótese de que sua exposição para o gênero fílmico centra-se na exposição do corpo, a qual mimetiza a violência social presente no romance na forma de violência contra o corpo da mulher, através da banalização do feminino. Cardoso contrasta a construção da protagonista no romance, que se associa ao narcorrealismo, ou “novela sicaresca”, termo cunhado por Héctor Abad Faciolince para referir-se ao gênero narrativo que tematiza os matadores de aluguel, como uma estética na literatura colombiana - o narcotremendismo. A análise salienta, assim, o contraste entre o exercício do sicariato pela protagonista no romance, enfocado a partir da violência de que é vítima a heroína, e a imagen fátua, coisificada, de femme fatale com que a personagem é plasmada na película. Acima de tudo, interessa a Rosane Cardoso, segundo a linha de estudos escolhida para este volume, ressaltar não a exposição da violência em si, mas, segundo sugere Dorfman (1970), refletir sobre as formas múltiplas, contraditórias e ao mesmo tempo profundamente humanas de que a temática vem a se revestir a cada novo contexto.

Cabe ainda dividir com nossos leitores nossa decisão, enquanto organizadoras,

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de manter os ensaios escritos em espanhol na língua em que originalmente foram escritos. Julgamos que, dada a estreita relação entre a língua nativa e a expressão de mundo que esta oferece, seria uma forma de violência substituir o texto original por sua recriação em tradução. A única opção por tradução, a que ocorreu com o texto de David William Foster, escrito originalmente em inglês, partiu do próprio autor, o qual nos entregou o texto em versão já traduzida para o português. Embasaram nossa opção por uma edição bilíngue ainda dois motivos: a proximidade de países de fala espanhola do Brasil, o que facilita o entendimento do idioma, e a capacidade de gerar diálogo com leitores nas Américas, tanto em países que sofreram a experiência da colonização da Espanha como naqueles que contam com expressiva população latina, como os Estados Unidos.

Referências

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______. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

GINZBURG, Jaime. Apresentação. ______. Crítica em tempos de violência. São Paulo: Edusp; FAPESP, 2012. p. 13-18.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Unicamp, 2011.

VIANNA, Vera Lúcia Lenz; UMBACH, Rosani. Salsa, amendoim, rum e violência: o universo maldito de Rey em O Rei de Havana. In: SILVA, Denise Almeida; PORTO, Luana Teixeira. Pensando as Américas: narrativas e violência. Santa Cruz do Sul: Catarse, 2016. p. 160-171.

WALTER, Roland. Prefácio. In: GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2013. p. 9-13.

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Contas para prestar, narrativas para rememorar: a Ditadura Militar Brasileira

em contos de Bernardo Kucinski

Luana Teixeira Porto

O ano de 1964 no Brasil é marcado, no plano social e histórico, pela instauração

do regime militar no comando político nacional, o qual imprimiu uma nova relação entre Estado e sociedade civil através da repressão governamental àqueles que se opunham ao sistema que passou a vigorar no país. Líderes de partidos políticos e de movimentos estudantis, intelectuais, escritores, músicos, jornalistas figuraram entre sujeitos vítimas de perseguição. Muitos deles tiveram de viver na clandestinidade ou em exílio para evitar perseguição maior ou até mesmo a morte. Como foi um processo de intensa violência e opressão, a ditadura militar brasileira, que se estendeu até 1985, impôs à sociedade severas leis para coibir manifestações, práticas de tortura envolvendo militâncias políticas, exercício de autoritarismo para a defesa de uma organização política voltada à manutenção do poder e controle social pelos militares e ainda censura a manifestações artísticas e jornalísticas que expunham vozes dissonantes quanto ao regime político.

A censura, contudo, não impediu que artistas se manifestassem sobre o momento social e político na época, mesmo que, para isso, precisassem construir textos alegóricos para tratar do tema ou criar metáforas para se referirem a “personagens” e práticas do governo ditatorial. É assim, por exemplo, que surgiu a canção “Caminhando (Pra não dizer que não falei das flores)”, de Geraldo Vandré, a qual, em 1968, venceu um festival de canção e até hoje é considerada uma canção de protesto contra a ditadura militar, mostrando que, para o mundo da criação, não é possível impedir a presença de vozes de contestação. Ainda nos chamados anos de chumbo, desafiando censores e o próprio regime militar, muitos escritores produziram obras em que denunciavam não só as diferentes estratégias de repressão do sistema político bem como a crueldade da forma como eram tratados aqueles sujeitos que se rebelavam contra o governo.

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Para isso, diferentes formas de composição foram empregadas, como o estilo jornalístico para representar ficcionalmente eventos da ditadura militar, o uso da alegoria, a exploração do discurso autobiográfico e memorialista. A alusão ao contexto social, político e histórico levou parte da crítica literária a cunhar termos que caracterizassem, coletivamente, as obras tematicamente associadas a esse contexto político-social, mostrando a estreita relação entre literatura, política e história. Assim, por exemplo, o termo “literatura pós-64” foi empregado por Sussekind (1985) e Santiago (1982; 2002). Juntamente a estes termos, outras expressões foram usadas para evidenciar o teor documental dos textos, como deixa claro o uso de “romance-reportagem”, ou a presença de uma narrativa marcada pela voz em primeira pessoa, como na denominada “literatura do eu” que apareceu em muitos textos literários produzidos no período.

Além desses traços, há ainda outras marcas da literatura que tematiza esse período histórico, como configuração de narradores instáveis e de personagens em crise ou em situação de trauma (o que permite uma associação entre escrita, subjetividade e trauma), a exploração da fragmentação formal e aparente desorganização na estrutura dos textos. Nessa perspectiva de associação entre forma narrativa e período ditatorial brasileiro, Calegari (2008) analisou os romances Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, publicado em 1975, e outras três obras de 1976, A festa, de Ivan Ângelo, Reflexos do baile, de Antônio Callado, e Quatro-olhos, de Renato Pompeu. Para o pesquisador, as quatro narrativas, embora explorem estratégias de construção de narrador e personagem diferentes, sinalizam uma contrariedade à ideia de “racionalidade, desenvolvimento, modernização, uniformidade e totalidade que a ideologia buscava implantar” (CALEGARI, 2008, p. 294) e denunciam a falência da concepção de nação protegida pelo Estado assim como denunciam uma história social brasileira calcada em violência, caos e contradição. Enfim, o autor mostra haver uma intensa relação entre discurso narrativo e história brasileira, sendo esta tratada como algo não harmônico, e aquele configurado de forma aparente ilógica ou fragmentada para destacar o descompasso social do período autoritário da ditadura militar no país.

Outras obras também produzidas durante a ditadura brasileira receberam atenção da crítica especializada. Para ilustração disso, citamos o estudo de Dalcastagnè (1996), que se preocupou em investigar romances brasileiros que tematizam a opressão e a relação entre o gênero literário e o contexto do regime militar. A pesquisadora propôs uma divisão dos textos em três blocos: o de romances fragmentários que estabelecem diálogo com o jornalismo através especialmente da estilização (A festa, de Ivan Ângelo, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Reflexos do baile, de Antônio Callado); o de romances que exploram a paródia, o riso e a carnavalização para questionar o poder (Os tambores silenciosos, de Josué Guimarães, Sombras de reis barbudos, de José J. Veiga, e Incidente em Antares, de Érico Verissimo) e o de romances que “se constituem a partir da memória, que tratam da esfera privada e que têm como protagonistas mulheres” (DALCASTAGNÈ, 1996, p. 17), prevalecendo o trabalho da narração (Tropical sol

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da liberdade, de Ana Maria Machado, A voz submersa, de Salim Miguel, e As meninas, de Lygia Fagundes Telles). Para Dalcastagnè (1996, p. 17), essas narrativas, que foram produzidas e publicadas durante o período ditatorial, são “documentos imprescindíveis de um tempo que ainda não nos foi revelado por inteiro, de uma história que se tem de continuar fazendo, múltipla e definitivamente”.

Na narrativa curta, há também vastas investigações sobre como a ditadura militar é abordada em contos e crônicas, o que indica, de um lado, que o tema motiva a escrita em diferentes gêneros e por diversos escritores e, de outro, que a problematização desse evento histórico pode receber inúmeras escolhas estéticas, muitas delas associadas à própria forma dos gêneros, que muitas vezes é rompida para tornar a percepção sobre esse momento mais impactante e melhor associada à representação de um momento histórico não harmônico. Textos de Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, João Gilberto Noll, Flávio Moreira da Costa, Luis Fernando Verissimo, Ignácio de Loyola Brandão, Nélida Piñon, entre outros, têm sido eleitos em diferentes leituras críticas sobre literatura brasileira, conto e ditadura. Ginzburg (2012), por exemplo, ao examinar um conto de Caio Fernando Abreu publicado em 1982 (“Os sobreviventes”) e uma crônica de Luis Fernando Verissimo, de 1995 (“Lixo”), destaca a necessidade de se pensar a memória da ditadura no Brasil e o quanto a escrita literária pode se configurar como mecanismo de resistência à violência de nosso passado recente. Para o crítico, os dois autores estudados adotaram uma alternativa estética que valorizou “formalmente a ambiguidade, a tensão discursiva, a irredutilidade a uma verdade absoluta” (GINZBURG, 2012, p. 431), opções que indicam haver uma sintonia entre complexidade do evento e de sua representação artística.

Tanto os romances estudados por Calegari (2008) e Dalcastagnè (1996) quanto conto e crônica examinados por Ginzburg (2012), devido a uma maior proximidade entre evento histórico e produção das obras, podem, em tese, estabelecer uma referencialidade sobre a ditadura de forma mais intensa, o que não implica ausência de tratamento estético aos textos nem perda da qualidade literária e de valor social das narrativas. Ao contrário, os três pesquisadores citados destacam haver nas obras que analisaram elementos composicionais que desautorizam uma avaliação estética negativa dos textos e uma atribuição de valor apenas documental para as narrativas. Todavia, é necessário registrar que uma consonância entre perspectiva crítica sobre o evento e acabamento formal adequado para o exercício dessa criticidade por meio da experiência estética não é evidenciada em todos os textos literários brasileiros em que a ditadura brasileira é tematizada.

Passados mais de trinta anos do fim da ditadura militar no Brasil, resta perguntar se textos literários publicados mais recentemente sobre a ditadura militar ou que a usem como pano de fundo de enredos servem-se das mesmas estratégias das obras produzidas durante ou logo após o regime autoritário. Interessa também discutir o posicionamento crítico de textos mais próximos à atualidade e o que eles trazem, em sua estrutura composicional e abordagem temática, para compreender melhor o evento

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e contribuir para uma política de desmemória instituída no Brasil a fim de provocar o esquecimento das ações de violência e dor impostas durante o regime.

Considerando isso, este ensaio aborda relações entre a literatura brasileira e a ditadura militar, procurando observar como contos publicados recentemente elaboram literariamente o tema e que estratégias estéticas são exploradas para presentificar o evento e contribuir para que ele não seja esquecido. Para isso, ao examinarmos contos publicados no século XXI, buscamos identificar se há recursos formais e estruturais diferentes dos até então apontados pela crítica como recorrentes em narrativas que abordam a ditadura brasileira. Selecionamos, para uma análise mais detalhada, três contos de Bernardo Kucinski, publicados, em 2014, no livro Você vai voltar para mim e outros contos, que são: “Você vai voltar para mim”, “A negra Zuleika” e “A beata Vavá”, escolhidos por apresentarem imagens da ditadura brasileira e referências a esse momento histórico na composição do enredo e personagens. A identificação clara da ditadura nos contos possibilita-nos discutir, de forma mais objetiva, as relações entre forma narrativa e abordagem temática nos textos.

O exame dessas narrativas parte do pressuposto de que uma boa obra literária (e por extensão uma narrativa curta lida de forma isolada) deve apresentar um equilíbrio entre forma e conteúdo e, quando realizada uma leitura que associa texto e contexto, no caso em especial, contexto de opressão e violência, a arte não deve camuflar as experiências de barbárie, tal como propôs Benjamin (1994), para quem é preciso averiguar a qualidade e a autonomia da obra. No ensaio “O autor como produtor”, em que Benjamin (1994, p. 120) trata da autonomia da obra literária e da responsabilidade do escritor, o crítico defende a ideia de que o artista, diante da situação contemporânea, precisa “decidir a favor de que causa colocará sua atividade”, indicando uma “tendência” de ordem conteudística ou temática. Se, por um lado, o escritor deve posicionar-se, por outro, também deve buscar tornar sua produção de boa qualidade, utilizando para isso recursos que garantam a correspondência do nível interno da obra ao da tendência adotada. O equilíbrio entre o tema e sua abordagem formal, segundo Benjamin (1994, p. 121), assinala a qualidade da obra, sendo esse, portanto, um critério de valor: “a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário. Isso significa que a tendência politicamente correta inclui uma tendência literária”.

Passamos então às narrativas de Bernardo Kucinski, que publicou a antologia de contos três anos depois de K (2011), romance que também dialoga com a história recente brasileira e que apresenta, como narrador e protagonista, pai que conta o desaparecimento da filha durante ditadura militar no Brasil. No livro de contos, composto por 28 narrativas, o escritor anuncia em texto dirigido ao leitor no início do livro, que a obra reúne histórias inspiradas no “clima de opressão reinante em nosso país nas décadas de 1960 e 1970 e suas sequelas”, as quais lembram episódios desse tempo, mas que não são factuais, mas criações literárias. Preocupado em demarcar um espaço de escrita artística que conversa com uma realidade social determinada, mas que não é um simples relato memorialístico, Kucinski reconhece

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o limite tênue entre o real e o ficcional em narrativas que recuperam ou atualizam episódios históricos.

Para acentuar o tratamento artístico de clima de opressão da Ditadura Militar que explora em seus contos como temática central, o escritor se serve, especialmente, mas não de forma exclusiva, de quatro recursos estilísticos em várias de suas narrativas: o uso do discurso indireto livre na voz do narrador em terceira pessoa, a reprodução de cenas de tortura por meio de narração objetiva, a não obediência à estrutura tradicional do gênero conto e a adoção de “lacunas” ou interditos para aludir a processos de repressão e morte decorrentes de práticas de violência exercidas no período ditatorial contra aqueles que resistiam, de alguma forma, à política de controle social instituída pelo sistema autoritário.

Enquanto o discurso indireto livre sinaliza um entrecruzamento de vozes que fragmenta a narrativa e a afasta dos padrões tradicionais de composição, fazendo com que o conto incorpore na forma literária vozes conflitantes sobre a Ditadura no Brasil, as lacunas podem ser vistas não só como estratégias de uma “obra aberta” para despertar a interlocução do leitor, mas também como tentativas de rememoração que nunca serão completas ou capazes de reproduzir com fidelidade eventos traumáticos pela própria dificuldade de traduzir em palavras aquilo que pode ser indizível.

Já a descrição objetiva de cenas de tortura torna as narrativas do livro mais do que simplesmente textos de denúncia dos horrores praticados pelos militares: acentua a brutalidade das ações e das dores provocadas por aqueles que se mostram indiferentes a elas e que agem com frieza e firmeza para punir e castigar física e moralmente suas vítimas. A ruptura formal com gênero é uma expressão de resistência a um pensamento conservador, afeito à ideia de sociedade como algo harmônico, como veremos mais adiante.

O conto “Você vai voltar para mim”, que dá título ao próprio livro, reúne todos esses traços característicos da coletânea. Narrativa curta, escrita em terceira pessoa, seu tema é a perseguição, durante o inquérito policial, aos prisioneiros de esquerda e contrários ao regime militar. O texto assume um teor documental ao contextualizar o modo como os processos de julgamento aos “criminosos” eram realizados, denuncia a existência de “acordos” supostamente legais e aceitos entre todas as partes para evitar torturas e repressões dentro do sistema prisional, as quais eram reiteradas mesmo depois da assinatura de decisões judiciais que determinavam prisão sem abuso de autoridade ou violência. Contudo, essa associação direta entre narrativa e história da Ditadura Brasileira é trabalhada no conto através da configuração das vozes do narrador e dos personagens que compõem o enredo.

O personagem central da narrativa é uma mulher encarcerada que sai do estabelecimento prisional para prestar depoimento em primeira audiência de processo em que é acusada de vários crimes cometidos contra o regime militar. Sem ser nomeada, sem ter uma identidade apresentada (o que a torna representante ficcional de toda uma coletividade vítima da ditadura que viveu os mesmos dramas problematizados no conto), sabemos apenas que ela está recolhida em uma cela

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onde sofre sucessivas torturas e humilhações. É ameaçada de morte se contar o que sabe e revelar as torturas que lhe impõem na prisão. Já no início do texto, fica clara a ameaça quando o torturador que a acompanha no camburão que a levará até a audiência diz: “Veja bem o que você vai dizer, não esqueça que depois você volta pra cá; você volta pra mim” (KUCINSKI, 2014, p. 69). A fala do torturador, indicativa do interesse do sistema em garantir um silenciamento das vítimas, será no final do conto repetida e é justamente escolhida para título do texto por carregar consigo a expressão máxima da dor e da ameaça de tortura comuns no regime militar e vividos pelo personagem, elemento que também dá destaque para a opressão e o autoritarismo impostos nos tempos da ditadura.

Ao longo do conto, lemos a reprodução, pelo discurso do narrador, das torturas e restrições de cuidados com a presa no cárcere, das orientações para o depoimento dela no processo, da reunião entre ela, seu advogado e o juiz que a interroga, do diálogo final entre a mulher e seu antigo e contínuo torturador. No início do texto, o narrador já aponta as marcas da violência praticada contra a mulher na prisão e as tentativas de obstruir sua fala e seu discurso de denúncia contra as agressões sofridas:

Era a primeira audiência do seu processo. Depois que foi marcada, não perduraram mais, deixaram entrar comida, pomadas, roupa. Hoje está de blusa nova, saia também. Todos a querem bem-apresentada. Ia dar tudo certo, garantiram. Só precisava manter o controle. Não dizer nada, apenas negar as acusações do indiciamento. Ficar nisso. (KUCINSKI, 2014, p. 69).

De forma sutil, em linguagem objetiva e permeada de imagens precisas sobre a forma de atuação dos torturadores, o narrador destaca ser a mulher uma sobrevivente da violência do contexto autoritário do regime limitar, já que muitos outros presos foram mortos dentro da cadeia: “Estava só ela no camburão. Só ela, de tantos companheiros, ainda viva e indo para uma audiência na Justiça Militar. Se não fosse aquela notícia de sua prisão, estaria morta”. (KUCINSKI, 2014, p. 69). A reiteração da expressão “só ela” pode ser vista, em nossa leitura, como um indicativo de perplexidade do narrador diante do que conta e do que observa, sinal também que incita a pensar numa perspectiva narrativa de falta de empatia com o torturador e, portanto, com o regime militar, e de solidariedade com as vítimas.

Para corroborar essa perspectiva de leitura, destacamos que o narrador registra também a inquietação da prisioneira e medo da repetição de agressões físicas, introduzindo em seu próprio discurso o desabafo do personagem e o desejo de morte diante da dificuldade de sobreviver às torturas, como vemos em: “Ela mesma pediu, mais de uma vez, me matem, me matem. E o filho da puta dizia eu vou te matar, sim, mas quando eu quiser” (KUCINSKI, 2014, p. 69-70). A presença do discurso indireto livre, nesse fragmento, para reproduzir a fala da mulher e do torturador indica uma escritura fragmentada em que a sobreposição de vozes e sua consequente suposta desorganização narrativa importam como elemento estético para caracterizar a

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desarmonia e violência do contexto. Afinal, não seria possível tratar com uma estrutura linear e harmônica uma realidade de desajustes sociais.

Na cena da audiência na qual a mulher se descontrola ao ser contestada pelo juiz por suas confissões registradas pelo delegado em momento anterior à prisão, passamos, como leitores, a perceber o grau de abalo psíquico da mulher, seu trauma e seu medo de voltar à prisão de onde saiu para a audiência devido às práticas de tortura, pois ela diz aos gritos: “Assinei sob tortura! Esse delegado filho da puta me pendurou sete vezes” (KUCINSKI, 2014, p. 70). Ao registrar sua indignação pela forma como o delegado conseguiu a confissão, a mulher acaba também registrando uma denúncia de tortura contra os militares, o que, na sequência do conto, será apresentado como motivação para reunião entre todos em outra sala, momento em que ela resolve contar tudo o que viveu:

No recesso do gabinete, ela disse tudo. Não conseguiu parar de falar. Mostrou os hematomas nos braços e nos tornozelos, falou das palmadas, dos choques nos seios e na vagina, da ameaça de estupro, da simulação de fuzilamento, dos afogamentos, dos onze dias na solitária. (KUCINSKI, 2014, p. 70).

Esse relato serve também como razão para a tomada de uma decisão para solucionar o caso e assim também silenciar a prisioneira: o juiz determina mandá-la de volta para a mesma cadeia onde estava, no Dops, e na qual ela não queria, em hipótese alguma, estar novamente. Mas isso não é dito a ela, que é enganada pelo juiz, que mente ao dizer que ela seria transferida para um presídio feminino. No mesmo camburão que a levou para a audiência, ela encontra o mesmo torturador que lhe provoca pânico. Então, ela “Vê, aterrorizada, entrarem pelo mesmo portão através do qual haviam saído para o tribunal” (KUCINSKI, 2014, p. 71). Ao chegarem, ouve a voz de seu antigo e agora renovado torturador sentenciar: “Eu disse que você ia voltar pra mim, não disse? Vem, benzinho, vamos brincar um pouco” (KUCINSKI, 2014, p. 71). A fala do torturador deixa claro que as agressões e humilhações não cessarão, ao contrário, serão insistentemente repetidas e tratadas com escárnio, como brincadeira. Essa fala ainda indica uma postura de desrespeito à vida humana dentro e fora da prisão e a associação dos encarcerados a vítimas fáceis, objetos para violentar, vidas para ceifar, perspectiva que é intensificada no final do conto, quando o narrador diz: “Os outros em volta riem” (KUCINSKI, 2014, p. 71), e que intensificam a violência da cena e também do momento histórico problematizado na narrativa.

Sobre este conto, cabe registrar ainda duas observações. A primeira diz respeito ao fato de que a voz da mulher aparece explicitada, em discurso autônomo, apenas uma vez: quando admite ter confessado crimes sob tortura policial. Ao longo da narrativa, temos ainda a presença de outras duas vozes, a do juiz, que conduz a audiência, e a do policial que dirige o camburão e que é um dos torturadores da militante. E é esse policial que repete à mulher que ela vai voltar à prisão e ser novamente aterrorizada para ele. Assim, a fala “Você vai voltar para mim” soa irônica e cruel por marcar o deboche diante do terror da tortura experienciada pela prisioneira,

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seu prazer em fazê-la sofrer e ainda sua certeza da continuidade das práticas de repressão e violência. Cria-se, assim, de forma intencional, uma preponderância da voz dos agressores em relação à da vítima, situação que formalmente reproduz a luta desigual de forças entre opressores e oprimidos na ditadura militar brasileira.

A segunda observação relaciona-se à pulsão de morte do personagem central e à perspectiva melancólica do texto motivadas ambas pelo intenso sofrimento na situação de cárcere no Dops. Ao relatar a postura da mulher diante do seu desabafo e relato das torturas vividas na prisão, o narrador descreve que ela preferia morrer a voltar para aquela cadeia e que adotaria diferentes estratégias, até pôr fim a sua vida caso tivesse de voltar para aquele lugar. A visão do personagem é a de que não vale a pena viver se a vida for dentro de uma cela em que torturas são diárias e a violação dos direitos humanas é sucessiva. Ou seja, não é possível suportar tantos horrores e violências.

O final do conto, com o registro de que tudo voltará como antes e de que a mulher vivenciará torturas novamente, assegura que não há transformação do impasse vivido pelo personagem, que, em situação-limite, só poderá esperar a morte ou lutar para fazê-la acontecer. Em outras palavras, permanece a sensação de perda, agora da vida que poderia ser diferente, sem tortura, e também se intensifica a inconstância psíquica de uma vida que permanecerá sombria e hostil. Esse sentimento de perda leva à certeza de que os conflitos não foram superados, de que a dor não acabará e de que a história de vida e da sociedade é marcada por catástrofes. Essa percepção de um “eu” num mundo em conflito é um dos sintomas de melancolia, entendendo-a na acepção de Benjamim (1984), para quem a melancolia é um registro da constatação da impossibilidade de se encontrar uma saída, uma vez que a desarmonia marca tanto a história quanto o sujeito.

No conto “A negra Zuleika”, a ditadura militar brasileira aparece como pano de fundo em uma narrativa que, além desse tema, aborda também violência associada à discriminação social e racial. Narrado em terceira pessoa, o conto está dividido em quatro partes, que recebem os títulos de “Zuleika”, “Percival”, “Freddy” e “Rodrigo”, os quais são personagens dos contos e têm suas histórias sintetizadas em cada fragmento da narrativa. Zuleika é uma jovem negra, pobre, empregada doméstica e mãe de quatro filhos - cada um de um pai diferente e todos sem presença paterna efetiva -, vive em uma periferia com a mãe, que cuida dos netos, e gosta de frequentar a praia com colegas e amigas. Percival é um homem de classe média alta, elitista, preconceituoso, racista, adora curtir piscina e sol em clube, porque a praia é muito democrática e ele “não gosta de se misturar” (KUCINSKI, 2014, p. 30). Em um sábado, na praia, vê Zuleika e suas amigas tomando sol e se sente incomodado com a cena: “não sei o que essa negada vem fazer em Copacabana, por que é que eles não vão pra praia deles, lá na Boca ou na Cocota?” (KUCINSKI, 2014, p. 30). Freddy é um homem branco de quarenta anos que atua como policial há 18 anos e que é mandado por seu chefe a prender Zuleika na praia por ela supostamente cometer ato subversivo denunciado por Percival. Ao levar a mulher para depor, Freddy acaba seduzido por

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Zuleika, com quem inicia um relacionamento afetivo e sexual. Os dois, Freddy e Zuleika, acabam tendo um filho, Rodrigo, mas nunca assumem o envolvimento; continuam como amantes, e Freddy pouca assistência financeira dá a seu filho com quem não mantém laços afetivos. Rodrigo é o filho de Zuleika e Freddy, cuidado pela avó, que toda segunda-feira ordena que o neto mais velho, Mário, vá buscar na cerca as duas latas de leite que Freddy atira pela janela para sustentar o filho.

Essas partes, assim resumidas, anunciam quatro “cenas” que, lidas isoladamente, mostram cenários sociais diversos (lazer, desigualdade, discriminação social, racismo, repressão policial, prostituição e promiscuidade, etc) num contexto de forte divisão de classes. Lidas em conjunto, porém, permitem reconhecer discursos camuflados ou espaços em branco que fazem alusão à condenação de qualquer voz oposta ao regime ditatorial, ao processo histórico de discriminação racial e social e, pois, aliadas à imposição da visão dominante sobre grupos minoritários no Brasil. O conto, por isso, mescla brutalidade do sistema ditatorial e crueldade de um contexto de violência social e racial.

Zuleika, a personagem central do conto, é denunciada na praia por um “figurão” de classe média (Percival) que a vê cantando “a música do Vandré” (KUCINSKI, 2014, p. 30). Apontada como “crioula comunista”, “subversiva” e “negra abusada”, logo é abordada por policial chamado pelo figurão para recolhê-la da praia e ser presa “por perturbar a ordem pública e tentativa de subversão” (KUCINSKI, 2014, p. 31). O policial é Freddy, que pode ser definido também como homem afeito a conquistar mulheres e a explorá-las sexualmente, tornando-as objeto de prazer e deleite. É assim que trata Zuleika, que sofre sozinha as dificuldades de sobrevivência e de criação dos filhos, desamparados por seus pais, e também o preconceito racial. Este é registrado no conto pela expressão pejorativa anunciada no título do texto (que já rotula a personagem por sua identidade racial), pela forma como os outros a olham e a discriminam exemplificada pela postura de Percival e pelo tratamento como ser objetificado, que recebe do homem com quem se relaciona e tem um filho. Todos esses elementos são indícios de uma violência social e de um preconceito racial que são abordados no texto sem haver um discurso narrativo que se posicione claramente a favor de um ou de outro personagem, mas que possibilita ao leitor a percepção de injustiças sociais, repressão e exclusão motivada por desrespeito à diferença de cor e de ideologias.

Em relação à dificuldade de aceitação de posicionamentos políticos divergentes num contexto de repressão militar, como é o ilustrado no conto, a escolha do escritor para abordar o período ditatorial foi a de pôr em contraste a postura de dois personagens: Percival e Zuleika. Enquanto ele assume o discurso do opressor, calcado em legitimação de uma “verdade” em que ideias de contestação geram crime e a subversão precisa ser combatida por meio do encarceramento dos sujeitos que a praticam, ela exemplifica a busca pela liberdade e pela fuga de modelos fixos e conservadores de comportamento, inclusive quanto à forma como estabelece suas relações pessoais, afetivas e sexuais, mesmo que tudo isso

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acarrete situações de exclusão do quadro social e repressão, esta especialmente vivenciada pelo fato de ser denunciada como moralmente impossibilitada de frequentar a praia ao cantar canção de protesto. Percival e Zuleika, nessa linha de raciocínio, são expoentes de dois grupos opostos: os repressores e os reprimidos, figuras típicas do contexto ditatorial.

A ditadura militar é o cenário onde ocorrem as cenas do conto, mas não é um espaço claramente identificado no texto. Sua referência é registrada por meio da alusão à música de Geraldo Vandré que Zuleika canta na praia e que motivou a sua apreensão pelo policial. Essa referência é uma das lacunas do texto que convidam à interação do conto com o leitor e que singularizam o conto como uma narrativa aberta, que carece do diálogo com seu interlocutor para que seu sentido seja pleno. Assim, ao leitor cabe recuperar (ou buscar conhecer) rastros capazes de compreender, por exemplo: a) a citação à canção “Para não dizer que não falei das flores”, de Vandré, ícone da produção cultural de resistência no período da Ditadura Militar no Brasil; b) a referência à exploração sexual contra mulheres negras instituída desde o processo de escravidão, continuada em momentos pós-abolição da escravatura e legitimada pelo poder governamental, haja vista a condição do policial como representante da lei e do Estado e a forma como estabelece sua relação com Zuleika, iniciada durante a apreensão dela por ele para a delegacia ao ser acusada de subversão.

Relatos mais objetivos sobre a dor e o horror daqueles que foram vítimas de opressão também estão presentes no livro. Em “A beata Vavá”, por exemplo, o autor constrói uma narrativa marcada pela presença de duas vozes, a de um ex-prisioneiro e de um companheiro seu de cadeia, que registram um “caso conhecido” de uma mãe muito apegada à fé cristã que viu na imagem de Jesus Cristo uma aparição de seu filho, então preso pelos militares junto com outros estudantes do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes). A imagem de Cristo transformada na imagem do filho é uma alusão direta a práticas de tortura dentro das cadeias como forma de os policiais obterem informações sobre grupos de resistência ao regime ditatorial, como podemos perceber no seguinte fragmento:

Essa primeira visão lhe veio numa reza da tarde; ela orava ajoelhada, de olhar fixo na imagem, quando percebeu que Jesus vertia sangue dos punhos, dos tornozelos, logo da boca, e se transmutou rapidamente na imagem de seu filho: viu o seu filho crucificado e vertendo sangue. (KUCINSKI, 2014, p. 23-24).

A cada imagem de seu filho Anésio na figura de Jesus torturado, a beata procurava ajuda, intercessão pelo filho por meio de religiosos ou até mesmo de militares, e sempre constatava que as aparições eram indícios de violência e tortura impostas a seu filho na prisão. Essas histórias, diz o narrador, ficaram no imaginário do povo de Salvador, e, sendo realidade ou não, alerta ele, todos na região sabem do drama vivido por Vavá e seu filho. A ela, por todo o seu poder de premonição, ficou a tarefa de acolher outras mães que tiveram filhos desaparecidos ou presos e, por sua

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história “extrassensorial”, impõe medo até mesmo depois de morta àqueles que foram os sujeitos cruéis torturadores:

Disse que o coronel Araújo, por exemplo, foi tomado de tanto medo que, antes mesmo de acabar a ditadura, abandonou a farda e se converteu. Hoje ele é pastor de uma Igreja evangélica; ao velório não veio, talvez temendo que o espírito da beata viesse puxá-lo pelas pernas, ele concluiu. (KUCINSKI, 2014, p. 28, grifo do autor do conto).

O conto, que mescla a voz do narrador à voz do ex-companheiro de prisão que reproduz o “caso da beata”, formando uma narrativa repleta de citação formalmente marcada pelo uso de letra em itálico e que introduz um tom híbrido à narrativa justamente pelo fato de haver uma mescla entre depoimento e conto, expõe uma ruptura com a forma tradicional do conto como traço estético para registrar a barbárie do evento histórico. A ruptura com a forma tradicional de composição, neste caso, pode ser compreendida como estratégia para denunciar o conflito de ordem externa, que passa a ser incorporado no plano interno do texto, na sua forma de narrar. Se houver uma tensão externa, como os conflitos do contexto ditatorial, haverá também uma tensão interna na obra de arte, propõe Adorno (1982) ao tratar da relação entre arte e sociedade. Para o crítico, a obra de arte formula uma resposta em termos de estrutura artística para representar a experiência danificada do contexto externo:

Que as obras de arte, como mônadas sem janelas, “representem” o que elas próprias são, só se pode compreender pelo fato de que a sua dinâmica própria, a sua historicidade imanente enquanto dialética da natureza e do domínio da natureza não é da mesma essência que a dialética exterior, mas se lhe assemelha em si, sem a imitar. (...) Mas são reais enquanto respostas à forma interrogativa do que lhes vem ao encontro a partir do exterior. A sua própria tensão é significativa na relação com a tensão externa. Os extratos fundamentais da experiência, que motivam a arte, aparentam-se com o mundo objetivo perante o qual retrocedem. Os antagonismos não resolvidos na realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes da sua forma. (ADORNO, 1982, p. 16).

Ao apontar a necessidade de um conflito interno na obra que se concilia ao conflito externo, Adorno (1982) direciona a observação sobre a coerência da forma e do conteúdo de um texto, o que é verificado no conto “A beata Vavá” pela presença da forma híbrida da narração que promove uma “subversão” da narrativa e seu gênero. Essa coerência proposta pelo pensador frankfurtiano aponta também para o equilíbrio entre forma e conteúdo requerido por Benjamin (1994) ao indicar um critério de valor para o julgamento de textos artísticos.

Ao desenvolvermos uma leitura das narrativas do escritor, podemos defender a tese de que, do ponto de vista sócio-político, os contos de Kucinski (2014) podem ser lidos como textos contrários ao apagamento da memória sobre a ditadura brasileira. Isso porque, além de não banalizarem o tema e tampouco

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o tratarem como algo já compreendido e superado no inconsciente coletivo, não se inscrevem na perspectiva de esquecimento do evento implantada no Brasil por razões também políticas e de controle social. Nesse sentido, vale recuperar o posicionamento de Seligmann-Silva (2012, p. 66-67), que, ao abordar narrativas fílmicas que tematizam a ditadura militar no Brasil, discute, ao mesmo tempo, a necessidade de se construir uma memória sobre esse evento histórico e razões que justificam uma “desmemória com relação à ditadura” no país.

Segundo o estudioso, há três fatores que contribuem para essa desmemória e o consequente silenciamento de vozes/textos sobre a ditadura brasileira: a diminuição de forças de oposição, que se deixaram cooptar por interesses econômicos e assumiram o “jogo do esqueça isso” ditado pela antiga direita (SELIGMANN-SILVA, 2012); o surgimento de “nova violência” no cenário contemporâneo, que diminui o espaço da presentificação da violência da ditadura que fica no passado, mesmo que este seja recente; e a falência de teses explicativas sobre eventos históricos associada ao “abalo das lutas revolucionárias, que observamos desde as últimas décadas do século XX” (SELIGMANN-SILVA, 2012, p. 67).

As três narrativas examinadas de Kucinski (2014), por darem voz, mesmo que tímidas, a personagens que são vítimas da violência do regime militar e por expor posicionamentos divergentes quanto ao mesmo através da caracterização de personagens que apresentam práticas de contestação ao sistema, conduzem a uma perspectiva de arte que não se propõe ao esquecimento dos eventos históricos violentos como o da ditadura. Ao contrário, asseguram sua presença, sua rememoração, impedindo seu apagamento na memória coletiva de leitores interessados em aprender história através dos textos e a apreciar a qualidade estética de obras que dialogam com contexto de produção, evidenciado suas fissuras e tensões.

Os contos de Kucinski (2014), por suas estratégias de composição, já assinaladas nas páginas anteriores deste texto, não trazem inovações se compararmos com os recursos formais já identificados em narrativas produzidas durante da ditadura militar brasileira. Retomando o objetivo deste ensaio, então, registramos que percebemos uma continuidade do uso de formas estéticas para abordar a ditadura militar na narrativa literária recente de Bernardo Kucinski, mas que essa percepção não pode ser estendida a outros autores, haja vista a análise de narrativas de apenas um escritor neste ensaio. Para uma proposição crítica mais ampla e generalista, outras obras e escritores precisam ser examinados para encontrar, talvez, mais elementos em comum entre narrativas dos anos 1970 e 1980 e as deste século.

Quanto ao posicionamento crítico de textos mais próximos à atualidade, estamos cientes de que as narrativas de Kucinski (2014), ao ratificarem as estratégias já exploradas por outros autores, não têm seu valor artístico e social minimizado; em situação oposta, ampliam a presença de uma literatura que se funda e se consolida como monumento contrário à barbárie e como textos capazes de construir uma “historiografia inconsciente”, que, na visão de Adorno (1982), afasta-se do historicismo e constrói uma consciência verídica a partir de opções

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formais que melhor expressam os antagonismos sociais. Essa historiografia inconsciente assegura as relações entre texto e contexto de produção e, no caso dos textos em discussão, ainda sinaliza uma postura da arte frente à sua condição realista de não ser puramente mimética, mas de problematizar os eventos históricos e suas tensões, como o faz Kucinski (2014).

Por fim, cabe ainda registrar que as estratégias de composição adotadas pelo autor nos contos examinados indicam não só um teor testemunhal acerca da ditadura militar brasileira, mas também acenam para a ideia de que esse evento traumático não está superado e que há muitas contas a prestar para compreender o horror das ações da ditadura no país. Reforçam a necessidade de resgatar vozes que foram e continuam sendo silenciadas em discursos oficiais sobre os anos de chumbo.

Referências

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SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

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A ditadura dessacralizada: uma releitura da história em Calabar: o elogio da traição,

de Chico Buarque e Ruy Guerra

Lizandro Carlos Calegari

O impacto da Ditadura Militar na produção cultural brasileira é inegável. Entre

1964 e 1985, quando o país esteve oficialmente submetido às pressões do regime militar, artistas em geral tiveram que rever temática e formalmente os projetos de publicação de suas obras. Por um lado, via-se um sistema de governo que, pautado na violência e no autoritarismo, obrigava os produtores culturais a investirem em novos temas; por outro, em decorrência disso, havia a censura, que levava os autores a apostarem em modelos alternativos, isto é, em formas estéticas e composicionais que, até então, tinham ganhado pouco ou nenhum vulto. Muitos romancistas, poetas, músicos e teatrólogos tiveram que reavaliar seus textos caso quisessem atingir um público relativamente amplo para seus trabalhos.

A Ditadura Militar se tornou mais violenta particularmente depois da promulgação do Ato Institucional n.º 5, de 13 de dezembro de 1968, durante o Governo de Arthur da Costa e Silva. Entre 1968 e 1974, a brutalidade do regime atingia níveis surpreendentes, de modo que todo e qualquer cidadão suspeito de atividades subversivas era investigado e, em diversos casos, coagido, torturado ou mesmo assassinado. Os censores detinham o poder e também a tarefa de investigar o que estava sendo escrito ou divulgado nas páginas de jornais, revistas, panfletos ou papéis avulsos. Não foram poucas as obras censuradas que sofreram retaliações em razão de seu conteúdo que andava na contramão da proposta ideológica do Estado. Inúmeros romances, poemas, letras de música e peças teatrais foram proibidos de serem publicados ou tiveram suas datas de lançamento adiadas.

Não é objetivo deste capítulo apresentar um painel com nomes de autores cujos livros foram submetidos a alterações substanciais ou expressamente proibidos de circular durante os anos de chumbo do regime militar. Em vez disso, intenta-se explorar um segmento da produção cultural produzida em tal época e

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um texto exemplar – no sentido, aqui, de exemplo, de verificação, mas também de importância – dentro de tal contexto. Nesse sentido, a proposta é verificar a dimensão do teatro brasileiro surgido na década de 1970 e, dentro desse recorte, que elementos temáticos e formais a peça Calabar: o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra, resguarda como meio de denúncia à realidade opressora do momento histórico em questão. A premissa básica é de que a aludida obra, embora se centre em episódios históricos específicos, retrata a violência a que foi submetido o Brasil desde seu processo de colonização.

Calabar: o elogio da traição começou a ser escrito no início dos anos 1970. A intenção de seus autores era levar a obra aos palcos em novembro de 1973. Contudo, alguns dias antes de sua estreia, o texto foi apreendido e reexaminado. Devido a seu conteúdo revolucionário, foi proibida a sua encenação. O trabalho de Buarque e Guerra só foi liberado para apresentação em 1980, quando a censura se tornou mais branda. O livro sofreu várias adaptações e mudanças em sua estrutura, mas a ideia central e o teor crítico do texto, ao que parece, têm se mantido os mesmos. Atualmente, já na sua 38ª edição, a obra continua sendo uma das mais importantes de um período histórico com características particulares e uma das mais prestigiadas peças que compõem o teatro moderno brasileiro.

A propósito do teatro brasileiro, ele teria ganhado novas configurações a partir da segunda metade do século XX. Até então, como explica Nunes (2002), predominavam, em solo nacional, comédias de costume cujo intuito era entreter o público. Nesse caso, “a presença de um grande humorista era muito mais importante do que o próprio texto e a montagem cênica do espetáculo” (NUNES, 2002, p. 14). Todavia, um público mais exigente, formado por intelectuais, artistas e apreciadores, começa a se esboçar, solicitando um teatro com ambições estéticas pautadas no ideário das vanguardas europeias. Surge, assim, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), maior representante desse processo de renovação, que contava com artistas estrangeiros e que tinha como público-alvo a burguesia paulista.

Nem todos, entretanto, simpatizaram com o estrangeirismo introduzido pelo TBC e com suas propostas temáticas um tanto que alienantes. O espírito nacionalista que se formou por volta dos anos 1950 exigiu um teatro mais engajado aos problemas sociais brasileiros, e essa reação nacionalista apareceu com mais força com o grupo paulista Teatro Arena, em 1953. O Arena, porém, não se diferenciava muito do TBC, tanto que, em 1955, surgiu o Teatro Paulista do Estudante, que trouxe consigo os anseios do movimento estudantil, bastante atuante no plano político nacional (NUNES, 2002). Partindo inclusive de teses marxistas, os novos atores e atrizes manifestavam o desejo de praticar um teatro que acenasse para a reflexão dos problemas brasileiros. Dentre alguns problemas discutidos, estavam o futebol, as greves, a pobreza e a religiosidade popular.

O problema foi que o Arena, em uma das suas fases, destacou-se mais pelo seu conteúdo do que por suas investidas estéticas. Assim, seu objetivo era principalmente conscientizar os trabalhadores da exploração a que eram

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submetidos, de incitá-los à luta pela transformação social, enfim, para promover a revolução (NUNES, 2002). Nesse esquema, ele se deparou com um problema: o público para quem eles queriam falar não podia comprar os ingressos e a plateia que podia comprá-los não queria ouvi-los. Como decorrência, o grupo entrou em crise financeira e ideológica. Para não naufragarem, seus membros buscaram uma nova orientação: a partir de 1963, começaram a encenar obras estrangeiras com viés brasileiro1. Isso não agradou alguns componentes, de forma que acabaram abandonando o Arena.

Alguns desses artistas que saíram do Arena ajudaram a organizar o Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), que visava a um público em lugares bastante ecléticos: escolas, sindicatos, igrejas, ruas. Essa nova proposta teatral admitia colocar os objetivos políticos acima dos estéticos. Ao CPC ligaram-se diversos artistas renomados, dentre eles, Augusto Boal, Ferreira Gullar e Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha). Ele ganhou notoriedade pelo fato de o país estar reclamando por melhores condições de vida e por mais igualdade social. Essa consciência crítica que vinha sendo despertada foi importante porque, alguns anos depois, em 1964, observava-se o golpe militar, ocasião em que um presidente eleito democraticamente foi deposto e um regime ditatorial foi instaurado (NUNES, 2002).

O CPC e a UNE, em virtude do teor crítico do seu projeto, foram os primeiros órgãos a serem reprimidos pelos militares. Aos meses que se seguiram a abril de 1964, devido às censuras em curso, surgem outros grupos que impuseram resistência ao regime militar. Em tal contexto, houve a ascensão do grupo Oficina e a montagem do show Opinião. Conforme Yan Michalski (1985), o show Opinião, dirigido por Noal e interpretado por Nara Leão, Maria Bethânia, João do Vale e Zé Keti, veio a constituir-se numa das mais fortes trincheiras teatrais contra a Ditadura Militar. Enquanto teatro de resistência, ele trazia como característica básica a utilização da colagem lítero-musical, que seria adotada por outros grupos subsequentemente.

Embora nem todos os críticos concordem com a efetividade do show Opinião na luta contra a ditadura2, o consenso é de que ele teria marcado uma interessante parceria entre o teatro nacional e um grupo de jovens músicos que estariam, a partir daí, cada vez mais presentes no cenário cultural brasileiro (NUNES, 2002). Graças a ele, ainda, dá-se uma revolução artística de forma que, da sua segmentação, cria-se um novo gênero que, mais tarde, receberia a denominação de Música Popular Brasileira (MPB). Com isso, teatro, literatura e música se aliariam para levar à população, de maneira mais concreta, uma mensagem de resistência à ditadura.

O teatro brasileiro, depois do golpe de 1964, sofreu vários altos e baixos. No entanto, aos grupos teatrais que surgiram, com maior ou menor expressividade,

1 Como expõe Nunes (2002), um texto estrangeiro era “nacionalizado”, isto é, era entendido como uma leitura pela qual se esforçava por descobrir o que as peças internacionais poderiam dizer ao Brasil de então.2 Cf., por ex., COSTA (1996) e SCHWARTZ (1978).

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somava-se outro movimento que visava a colocar em xeque a cultura dominante. Esse movimento, liderado principalmente por jovens, ficou conhecido como movimento de contracultura, também chamado de movimento hippie. O objetivo desse movimento não era simplesmente destruir a cultura dominante, mas, acima de tudo, mostrar para a sociedade elementos culturais alternativos com o intuito de revitalizar os seus valores morais e éticos. O problema foi que o AI-5, em 1968, colocou abaixo a euforia contestatória que havia tomado o Brasil.

Nesse sentido, o teatro que vinha se desenvolvendo até então perdeu totalmente o seu espaço. Entre 1964 e 1968, a imprensa liberal e a de esquerda foram caladas, os partidos foram atemorizados, os comícios e as propagandas políticas foram abolidos, mas os teatros ainda sobreviviam mediante certas negociações. De acordo com Prado (1996, p. 120), “as salas de espetáculo eram dos poucos lugares onde ainda era lícito a uma centena de pessoas se encontrarem e manifestarem a sua opinião, guardadas certas precauções”. Depois de 1968, tanto o teatro engajado quanto aquele organizado pelo movimento de contracultura foram censurados. Conforme Nunes (2002, p. 29),

[f]icou difícil fazer teatro no Brasil. Paranoicos, os censores viam suspeitas mesmo onde não havia nada. A maioria dos artistas abandonou qualquer pretensão política e voltou-se para o teatro comercial. Os que tinham maior ambição artística faziam espetáculos calcados na beleza plástica de cenários, gestos e figurinos. O teatro foi ficando mudo e os poucos dramaturgos que insistiam no teatro político precisavam camuflar tão cuidadosamente suas intenções que nem sempre a plateia conseguia decifrar.

É em meio a esse contexto de repressão e de censura que surge a peça Calabar: o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. O brasileiro Chico Buarque vinha de duas experiências ligadas ao teatro político-musical (Morte e vida severina e Roda-viva), experiências essas que foram fundamentais para a composição da aludida obra. Por sua vez, o moçambicano Ruy Guerra, embora tenha começado sua carreira no cinema, realizando alguns curtas-metragens, enveredou, mais tarde, para o movimento renovador da MPB, criando melodias e letras em parceria com Edu Lobo, Milton Nascimento, Baden Powell, Sérgio Ricardo, dentre outros compositores.

Essas experiências dos autores foram decisivas para que Calabar tivesse características bastante particulares. Nela, observam-se o humor farsesco; a fusão entre a MPB e o teatro, objetivando a resistência política à ditadura; falas de duplo sentido, para ludibriar a censura; e questionamento da história oficial e da identidade nacional brasileira. O mais interessante é que ela faz referência a uma fatia da história do Brasil colonial para criticar a violência e o autoritarismo do período ditatorial. Com isso, pode-se dizer que, embora a obra centre-se em momentos específicos da história nacional, ela tece uma crítica à história de violência do país desde o seu processo colonizatório até os dias atuais. Essa leitura só é possível graças às escolhas temáticas e formais feitas por Buarque e Guerra.

A obra retrata a época do Brasil colônia, fazendo um panorama da sociedade

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brasileira, das alianças de poder, das traições, das histórias de amor, da Igreja, das revoltas e conquistas, da própria história da nação. O tema principal é a invasão holandesa em terras brasileiras, as quais foram favorecidas em virtude da criação das Companhias Holandesas das Índias Ocidentais. Os holandeses visavam à ocupação de zonas de produção açucareira na América portuguesa e ao controle do suprimento de escravos. Contudo, para isso, era preciso dominar as terras e vencer guerrilhas contra os atuais donos na época, os portugueses.

Como estímulo para conseguir aliados, os holandeses passaram a oferecer recompensas a quem com eles colaborasse. O próprio Domingos Fernandes Calabar aceitou o posto de major que lhe foi oferecido, mas afirmou que passou do lado português para o holandês não como traidor ou mercenário, mas como patriota, vendo que os holandeses procuravam implantar melhorias no Brasil, enquanto portugueses e espanhóis tinham apenas interesse em explorar o país. Como Calabar era conhecedor de todo o território, de informações e de táticas de guerras, sua mudança de lado foi fator definitivo para as sucessivas derrotas dos portugueses e espanhóis e para a vitória e a consequente colonização holandesa. Tempos depois, Calabar foi preso e condenado. Seu nome ficou para sempre associado à ideia de traição.

Um dos objetivos do livro é este: questionar se Calabar realmente foi um traidor ou se tudo não passou de uma visão unilateral a partir da ideologia portuguesa, para a qual Calabar tem sido considerado o traidor da pátria. Dessa forma, a obra apresenta, antes de tudo, uma reflexão sobre o ato de trair, prática tão comum no período de colonização e também nas mais diversas épocas da história. A peça é dividida em dois atos e traz personagens históricos e ficcionais.

No primeiro ato, predomina o colonizador português, expondo seus métodos e pontos de vista, mostrando toda sua ira devido à traição sofrida. O personagem Calabar ainda está vivo, porém em momento algum fala. Nessa primeira parte, Mathias de Albuquerque tenta, através de uma carta, reconquistar Calabar para o lado das tropas portuguesas, pois sua suposta traição custou para Portugal a perda de batalhas e do domínio sobre cidades de Pernambuco para os holandeses. Todavia, a finalidade real seria punir o “traidor”. Em razão das diversas traições e traidores – Camarão, Dias e Souto –, Calabar torna-se prisioneiro dos portugueses e é executado pelos seus antigos companheiros de guerra.

Para Mathias de Albuquerque, essa punição devia servir de exemplo para os demais que ousassem trair a pátria. Bárbara, mulher do executado em questão, em um impulso de fúria, exprime todo seu sentimento de revolta. Ela deixa bem claro que todos são assassinos sem compaixão e que não pouparam a vida de um inimigo indefeso. Afirma que o mataram por covardia e, para manterem suas dignidades, iriam calar-se e fingir que nada aconteceu. O primeiro ato tem seu fim com Bárbara mostrando toda sua revolta e indignação devido à morte de seu marido, pois para ela tudo não passou de um ato de covardia.

No segundo ato, predomina o invasor holandês, que foi contemplado pela mudança de lado de Calabar, mostrando os benefícios que isso trouxe para os

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holandeses, como, por exemplo, a vitória em várias batalhas e conquistas de várias cidades de Pernambuco. Entra em cena Maurício de Nassau, proclamando que Calabar não morreu em vão, e que sua memória será sempre respeitada pelos holandeses, que devem a ele o grande sucesso na guerra contra Portugal. Em seguida, reafirma ao Frei Manoel, que traiu os portugueses, a liberdade de culto no Brasil e promete governar de uma forma progressista e com construções arquitetônicas, como, por exemplo, uma ponte que atravessaria o rio Capibaribe.

Sem ter outro meio de sobreviver, já que virou viúva, Bárbara torna-se prostituta e cansa de tentar expor o heroísmo de Calabar, as suas ideias e objetivos. Aos poucos, ela é convencida por Anna de Amsterdam que seus esforços são em vão e que ela nunca passará de uma voz sem ouvidos para escutá-la. O governo de Nassau e suas idealizações estavam custando muito caro, tanto que a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais não estava satisfeita com sua administração. Nassau tem sonhos considerados impossíveis de fazerem-se reais. Gradativamente, as Companhias vão falindo e não demora muito para que Nassau, assim como Mathias de Albuquerque, conheça o fracasso. Entretanto, despede-se do Brasil, levando em mente apenas pensamentos positivos e acreditando ter deixado seu nome na história visto ter sido o maior dos sonhadores. A peça termina com Bárbara convidando o público a fazer aquilo que todos os personagens mais bem fizeram na história: trair.

Como é possível constatar, a intenção de Chico Buarque e de Ruy Guerra não era apenas de denunciar a versão oficial sobre um episódio e um personagem do período colonial brasileiro. O objetivo era também atingir o próprio regime militar. Nessa época, tornou-se comum o uso das metáforas nas produções artísticas a fim de, por um lado, enganar a censura rigorosa do sistema e, por outro, denunciar a situação da época. Assim, a relação existente entre o período da Ditadura Militar e da peça Calabar está na analogia de imagens de ambos os períodos históricos que, após uma observação mais atenta, ficam evidentes e facilitam a identificação das críticas.

Nesse sentido, Calabar pode representar os rebeldes, os artistas, os escritores, os estudantes e tantas outras classes que foram massacradas, punidas e censuradas pelo regime. No contexto da Ditadura Militar, os “traidores” eram as pessoas que pensavam de modo diferente, que discordavam dos métodos e da forma de governo da época. Assim como Calabar, inúmeras pessoas foram presas e torturadas por serem consideradas traidoras da pátria, opositores ou conspiradores. Artistas, estudantes, sindicalistas, membros da Igreja e a população em geral, todos foram conduzidos por leis rígidas e cerceadoras de liberdades, de certa maneira, manipulados por alguns meios de comunicação e, muitas vezes, até forçados a acreditar que o regime militar seria o melhor para o Brasil. Muitos foram espancados, exilados e até mortos pelo regime. Isso, no entanto, ocorreu em grande segredo, já que a pena de morte nunca foi oficialmente implantada.

Já os comandantes da Ditadura podem ser representados pelas figuras de Mathias de Albuquerque, Felipe Camarão, Sebastião do Souto e personagens que apenas pensam em seus próprios interesses e no poder que querem ter e exercer

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sem medir esforços para isso. Assim, a ditadura e os militares podem ser associados diretamente aos portugueses, pelo fato de estarem no poder e de usarem disso para explorar o país e também pelo fato de terem torturado e executado Calabar, igualmente ao que era feito com aqueles que se posicionassem contra o regime e seus métodos de administração.

As lutas armadas ocorridas no período da Ditadura Militar podem relacionar-se com as guerrilhas lideradas por Calabar. Bárbara, por sua vez, representaria os artistas engajados e tantos outros que enfrentaram o governo e reivindicaram por melhorias, com o intuito de mudar para melhor, de buscar a verdade e, acima de tudo, a justiça. Ela representaria a consciência populacional, o grito do oprimido e a voz de protesto. Contudo, no decorrer da história, ela vai sendo calada a exemplo de tantos que lutavam contra o regime e foram sendo silenciados aos poucos. O poder em ambas as épocas foi implantado, trazendo grande insatisfação. Todavia, a medida tomada para resolver o problema foi o abuso de poder, a censura, a falta de liberdade de expressão e até a morte. Assim como Calabar, estudantes, sindicalistas, membros da Igreja e tantos outros foram punidos por discordarem, questionarem, se oporem e pensarem de maneira diferente.

Nem todos, porém, aceitavam essa forma de viver: havia atos de rebeldia contra o regime, seja através da arte engajada ou de tumultos, de revoltas ou de guerrilhas. No livro, isso é mostrado através de Bárbara, que encara as autoridades e defende, sem medir esforços, seu ponto de vista, sua opinião. No período da ditadura, também houve várias Bárbaras que foram silenciadas através da dor, pois essa “rebelião dos opositores” muitas vezes custava a própria vida. Ambos os períodos ficaram marcados pela opressão, pela censura.

Em Calabar, a dessacralização da Ditadura Militar brasileira ocorre não somente por meio da fábula encenada pela peça, mas principalmente pelos recursos estéticos adotados pelos autores. Assim, um olhar atento para o livro permite afirmar que, por intermédio da carnavalização, tal como pensada por Bakhtin (1981, 1987), é possível projetar uma crítica ao sistema ditatorial e também pôr em xeque a história oficial que celebra os poderosos e martiriza os fracos e os oprimidos. Nesse sentido, o livre contato familiar entre os homens, as excentricidades, as mésalliances, a profanação, a polifonia, a paródia e as situações cômicas são alguns dos recursos empregados para narrar uma história que nem sempre privilegia as elites.

A propósito do carnaval, ele teve suas origens em práticas festivas da Antiguidade greco-romana e recupera, na cultura renascentista, uma força transformadora. Em tal período, amainado o rigor da censura medieval, a proposta carnavalesca surge acompanhada do riso e da alegria como um patrimônio do povo e dotado de um caráter universal. Assim, se na Idade Média o riso é abolido das esferas oficiais da ideologia e de todas as formas oficiais da vida, porque o “tom sério exclusivo caracteriza a cultura medieval oficial” (BAKHTIN, 1987, p. 63). No Renascimento, entretanto, ele é readmitido dentro da obra literária, valorizado tanto quanto o sério, já que se constitui numa “das formas capitais pelas quais

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se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre a história, sobre o homem” (BAKHTIN, 1987, p. 57). De qualquer modo, a alusão ao popular proposta pelo autor visa a chamar a atenção para as origens da força dessacralizadora e livre do riso carnavalesco, ou seja, a manifestação popular consistiria numa resposta aos princípios organizadores e formalizadores da sociedade.

Com isso, tomando como base teórica os estudos do pensador russo, a literatura carnavalizada configura-se como aquela que sofreu direta ou indiretamente a influência deste ou daquele aspecto folclórico, antigo, medieval ou mesmo regional. Dentro da problematização da poética histórica, os domínios do sério/cômico, do lúdico, do fantástico experimental, do simbolismo e do mito, da polifonia da narrativa e da pluralidade estilística se mostram como aspectos centrais que definem a literatura carnavalizada. Assim, ela trabalha, principalmente, com os domínios da cultura popular, sua ideologia e seus aspectos históricos. Dessa forma, as festas, os rituais, as encenações, as solenidades e os espetáculos populares se constituem como fonte e ponto de partida na organicidade da literatura carnavalizada.

Ao tratar da carnavalização da literatura, Bakhtin (1981) parte do próprio termo carnaval, definindo-o como um “conjunto de todas as variadas festividades, dos ritos e formas de tipo carnavalesco”, e sua influência na literatura enquanto gênero. A carnavalização, para o autor, seria a “transposição do carnaval para a linguagem da literatura” (BAKHTIN, 1981, p. 105). Note-se que o teórico fala em “transposição”, pois o carnaval não é um fenômeno literário; é uma “forma sincrética de espetáculo de caráter ritual” que se adapta a épocas, povos e festejos particulares, sem representantes específicos, já que todos atuam, isto é, vivem uma vida carnavalesca. Nesses termos, a carnavalização se caracterizaria por proceder a uma inversão do cotidiano (BAKHTIN, 1981, p. 105). Sendo o carnaval, na acepção bakhtiniana, o locus privilegiado da inversão, pretende-se, nesse capítulo, avaliar como tal recurso se faz presente em Calabar e em que medida ele intenta contra a ordem autoritária estabelecida.

Bakhtin (1981) destaca quatro categorias através das quais a carnavalização da literatura pode ser percebida. A primeira delas seria o livre contato familiar entre os homens. Em lugar público, com livre gesticulação e discurso, as pessoas se libertam e se aproximam mais umas das outras. Conforme explica o autor, os indivíduos, separados na vida por intransponíveis barreiras hierárquicas, entram em contato na praça pública carnavalesca. A partir de tal particularidade, salienta o teórico, averigua-se o caráter especial da organização das ações de massas, determinando-se igualmente a livre gesticulação carnavalesca e o franco discurso carnavalesco (BAKHTIN, 1981, p. 106).

Em Calabar, Chico Buarque e Ruy Guerra dessacralizam as hierarquias de poder impostas pelos regimes autoritários justamente quando colocam, lado a lado, na peça, estratos sociais diferentes. Assim, na abertura da peça, vê-se logo a figura de Frei Manoel juntamente com moradores locais. Na mesma cena, aparece Mathias de Albuquerque, com o rosto ensaboado e com uma navalha na mão, na presença de

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um escrivão. Ainda nessa mesma composição inicial, observam-se, aos fundos, dois soldados que apertam o garrote sobre um prisioneiro louro que grita; há, ainda, fuzis, sugerindo um acampamento militar.

Se a preocupação dos governos autoritários é manter a ordem hierárquica, Calabar elege como personagens não somente aqueles segmentos que constituem a elite da sociedade – representada por Mathias de Albuquerque, por Maurício de Nassau, pelos soldados e religiosos –, mas também as parcelas marginalizadas – representadas por Calabar, Bárbara, Anna de Amsterdam e os moradores. Assim, é justamente esse encontro de diferentes classes e grupos o que propicia a inversão e a dessacralização dos valores formadores da tradição. Ao dar voz às parcelas marginalizadas, Calabar resiste ao autoritarismo uma vez que celebra a democratização de seus atores sociais.

A segunda categoria através da qual a carnavalização pode ser percebida na literatura diz respeito à excentricidade. É ela que dá ao homem condições de se expressar, de revelar seus aspectos humanos ocultos. De acordo com Bakhtin (1981), o comportamento, o gesto e a palavra do sujeito libertam-se do poder de qualquer posição hierárquica (de classe, título, idade, fortuna) que os determinava na visão extracarnavalesca, razão pela qual se tornam excêntricos e inoportunos do ponto de vista da lógica do cotidiano não-carnavalesco. Conforme complementa Bakhtin (1981, p. 106), “[a] excentricidade é uma categoria específica da cosmovisão carnavalesca, organicamente relacionada com a categoria do contato familiar; ele permite que se revelem e se expressem – em forma concreto-sensorial – os aspectos ocultos da natureza humana”.

Com isso, os personagens, ao revelarem o que pensam ou ao expressarem gestos ou comportamentos espontâneos e/ou obscenos, demonstram um espírito de excentricidade e de libertação das normas estabelecidas. No espaço autoritário onde se movimentam os personagens de Calabar, a excentricidade consistiria num recurso que traduz o sentimento de inconformidade e desconforto da sociedade para com o Estado. Assim, com o propósito de destruir aquela ideologia que visava a traçar uma personalidade social do povo como branda, tolerante e respeitosa, Chico Buarque e Ruy Guerra se valem de assuntos que desrespeitam a moral e os bons costumes pregados pela elite e mesmo pela Igreja. Em função disso, matérias consideradas subversivas, tais como a manifestação de atos sexuais explícitos, exibição sensual ou erótica das partes do corpo, vulgaridade de expressões ou linguagem de baixo calão, buscam pôr em xeque os fundamentos de uma sociedade dita acomodada e sem reação frente ao poder.

Em várias passagens de Calabar, observam-se cenas extravagantes, uso de vocábulos obscenos e de palavras de baixo calão. Provavelmente, uma das situações mais sugestivas é aquela em que uma autoridade holandesa discute com Mathias de Albuquerque o futuro da nação brasileira, estando ambos sentados numa latrina:

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HOLANDÊS – Excelência...MATHIAS (contorcendo-se em cólicas) – Um momento...Mathias caga. Aliviado, solta um longo suspiro.HOLANDÊS – Sente-se melhor?MATHIAS – Melhor? O senhor não faz ideia do que seja... (BUARQUE; GUERRA, 2001, p. 16-17).

Nessa interação, Holandês e Albuquerque conversariam sobre os rumos políticos do país; no entanto, devido às circunstâncias, os assuntos sérios são deixados em segundo plano. Tanto um quanto outro falam de banalidades, e o que chama a atenção, na cena, é o mal-estar de ambos e o esforço para se aliviarem das dores intestinais. O que se verifica, com isso, não é um discurso pomposo que envolve os dois personagens, mas cenas cômicas cujo intuito é ridicularizar as autoridades, culminando, pois, no rebaixamento da história oficial. Assim, por meio das excentricidades, as elites são criticadas naquilo que têm de podre, de sujo e de mesquinho.

A terceira categoria que define a carnavalização na literatura consiste naquilo que o autor chama de mésalliances. Seria a celebração de alianças, de acordos antes nem imaginados. Como escreve Bakhtin (1981, p. 106), “[e]ntram nos contatos e combinações carnavalescas todos os elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos outros pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca”. Nesse particular, ficariam lado a lado o elevado e o baixo, o grande e o insignificante, o sábio e o tolo, só para citar alguns pares. Nesse sentido, justamente por ser uma peça teatral, a economia do meio, muitas vezes, concorre para as mésalliances. A interação entre personagens de diferentes estratos sociais quebra a rigidez dos códigos formais impostos pelos regimes autoritários e/ou ditatoriais.

As mésalliances são muito frequentes em Calabar. No início da peça, Mathias de Albuquerque, Frei Manoel, Bárbara e os moradores estão em interação uns com os outros. Enquanto os dois primeiros representam o poder, os dois últimos grupos filiam-se às classes marginalizadas e reprimidas, representando, assim, o alto e o baixo. Em outra cena, essa aliança pode ser percebida pela interação entre Frei Manoel e Anna de Amsterdam: “Um banquete com vinhos, manjares da Holanda e Anna de Amsterdam sobre a mesa sem toalha. O banquete constitui uma orgia muda, durante a fala do Frei” (BUARQUE; GUERRA, 2001, p. 6). Observa-se, aqui, que a fala do Frei é entrecortada por uma situação que destoa do discurso bem-aceito pelas autoridades religiosas e governamentais. É a comunhão entre o sagrado e o profano, ferindo o discurso histórico oficial.

A propósito, a quarta categoria que define a carnavalização da literatura está ligada à profanação. Segundo Bakhtin (1981), esta seria formada pelos sacrilégios carnavalescos, por todo um sistema de descidas e aterrissagens carnavalescas, pelas indecências carnavalescas, relacionadas com a força produtora da terra e do corpo, e pelas paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas. Além da situação previamente exposta que aponta para a questão da profanação do discurso religioso,

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há uma outra passagem, em Calabar, que merece atenção. Trata-se do momento em que soldados holandeses, afoitos com a ideia de as terras brasileiras passarem para seu domínio, profanam vasos sagrados católicos:

HOLANDÊS – Brindemos à América holandesa! De Nova Amsterdam a Buenos Aires! (Os moradores respondem ao brinde com euforia).FREI (levantando-se) – Senhor! Maior agravo e injustiça não se pode fazer aos católicos romanos: o profanar os vasos sagrados nos quais se consagra o sangue de Cristo no sacrifício da missa. Basta essa só injúria para que os moradores não tenham por firme vossa amizade e promessa.Os moradores, subitamente cabisbaixos, retomam em surdina a canção Miserere nobis. O Holandês joga fora o vinho, toma o cálice pelo pé e beija-o, depositando-o em seguida sobre a mesa, respeitosamente. (BUARQUE; GUERRA, 2001, p. 7).

A profanação dos vasos sagrados católicos é um sinal de desrespeito ao poderio português, à sua tradição e às suas crenças. Mais do que isso, é uma forma de afronta ao poder institucional dominante, já que, ao se profanarem elementos religiosos cristãos, está-se, de certa forma, atingindo os poderes autoritários e ditatoriais, os quais têm buscado na ideologia religiosa argumentos para justificarem suas ações violentas. Durante o processo colonizatório, a Igreja subsidiou o poder estrangeiro. Durante a Ditatura Militar, ela fez o mesmo. É claro que a Igreja desempenhou diferentes papéis com o golpe de 1964, mas o que se percebe é que, para preservar a moral e os bons costumes, ela se aliou ao poder da época.

Outra característica fortemente marcada do processo carnavalesco é a polifonia. O texto carnavalesco oferece uma pluralidade de vozes e de consciências independentes. A narrativa polifônica, portanto, apresenta uma participação múltipla de vozes (personagens) e estilos, ao invés de uma linearidade do conteúdo na obra literária. Há uma coexistência e uma interação de personagens e linguagens, de universos, de pontos de vista, que remetem à organização do texto carnavalizado. Nesse sentido, o mundo é pensado mais espacialmente do que temporalmente, havendo, por isso, uma simultaneidade de pontos de vista sobre ele. Para tanto, o universo carnavalesco é ambientado por uma grande quantidade de personagens e de temas. Assim, os personagens “falam” através de um espaço duplo. Espaço ambivalente que é necessário para que as relações entre narrador, personagem e fruidor se completem.

Utilizando-se do aludido princípio, Calabar se volta para a coletividade. Isso significa que o livro não apresenta a voz de um indivíduo em monólogo ou diálogo, mas várias vozes, várias consciências que se impõem à medida que lhe é oportunizado o direito de expor suas ideias. Tal recurso técnico empregado por Chico Buarque e Ruy Guerra possibilita a uma multiplicidade de personagens terem acesso à voz narrativa. Em decorrência disso, ter-se-ia uma literatura social voltada para a coletividade, com seus problemas, angústias e frustrações. Assim, fica-se sabendo não apenas o que pensam os personagens que representam o poder, mas também aqueles indivíduos marginalizados. É o que se verifica, por exemplo, a partir das falas de Anna de

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Amsterdam e Bárbara. Essa última, aliás, encerra a peça incitando a revolução: “sede são, aplaudi, vivei, bebei, traí, ó celebérrimo iniciados nos mistérios da traição” (BUARQUE; GUERRA, 2001, p. 97).

Afora tais elementos, a paródia, segundo Bakhtin, seria uma das técnicas populares mais contundentes na literatura carnavalizada. Como explica o autor, a origem da paródia remete à Antiguidade, mas ela não aparece nos chamados gêneros puros como a epopeia e a tragédia. A paródia na literatura age para desentranhar aquela voz recalcada que sufoca o homem (BAKHTIN, 1981). Em função disso, ela funciona como um processo libertador, pois, ao inverter valores e conceitos preestabelecidos, ela dá margem para que traços do inconsciente individual e social se revelem. Nesse sentido, o processo parodístico, através do julgamento público incitado pelo carnaval, constitui-se numa crítica social.

Em Calabar, no tocante à paródia, merecem registro referências a recortes históricos específicos e acontecimentos sociais marcantes que definem o propósito crítico da peça. Nas últimas páginas da obra, a rigor, o leitor pode ter acesso a uma bibliografia relativamente extensa sobre a história do Brasil do período colonial. Trechos desses livros aparecem na peça constituindo a fala de muitos personagens. Uma vez que tais excertos são incorporados num outro contexto, eles ganham valores específicos, perdendo, em inúmeros casos, aquele tom elevado e sério que comumente caracteriza o discurso histórico oficial. Com isso, a história oficial é relida à luz da paródia, que ironiza certos episódios e desautoriza o poder oficial.

Nesse particular, a figura de Maurício de Nassau permite reler a história pelo viés paródico. No momento em que ele passa a liderar as terras pernambucanas, seu discurso é recheado de promessas grandiosas que objetivavam o desenvolvimento do Brasil:

NASSAU – Senhores, a Companhia das Índias Ocidentais, que financiou a campanha das Américas, fecha agora o balanço dos últimos quinze anos com um saldo devedor aos seus acionistas da ordem de dezoito milhões de florins. Para corrigir esse estado de coisa, recebi um mandato de governar-vos por cinco anos. Mas pretendo realizar cinquenta anos em cinco. (BUARQUE; GUERRA, 2001, p. 57).

Para remeter ao contexto da segunda metade do século XX, o discurso de Nassau incorpora, por meio da paródia, a fala de Juscelino Kubitschek, o qual teria governado o Brasil de 1956 a 1961 com o lema “cinquenta anos em cinco”. O problema foi que tanto Nassau quanto Kubitschek malograram em seus projetos desenvolvimentistas, agravando a crise econômica brasileira. Tal descumprimento de propósitos revela a falta de credibilidade do povo por seus líderes, os quais se mostram inconsistentes na consecução de suas metas. Como se verifica, a paródia visa a um efeito dessacralizador, pois tanto um quanto outro, devido a seus fracassos, são destronados do poder e ridicularizados, denunciando a fragilidade dos governantes brasileiros em diferentes épocas e momentos históricos.

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O carnaval, na concepção bakhtiniana, é mais do que uma festa ou um festim; é, nos termos de Stam (1992, p. 89), “a cultura opositora do oprimido, o mundo afinal visto ‘de baixo’, não a mera derrocada da etiqueta, mas o malogro antecipatório, simbólico, de estruturas sociais opressoras”. Nesse sentido, o carnaval é profundamente igualitário. Ele inverte a ordem, casa opostos sociais e redistribui papéis de acordo com o mundo às avessas. O carnaval, com isso, coroa e destrona; ele arranca de seus tronos monarcas e instala hilariantes reis da bagunça em seus lugares.

A propósito, o ritual da destronização é um dos pontos centrais do carnaval. Consiste na elevação ao trono de um rei bufão, do rei momo, senhor-escravo. A partir da efemeridade da festa carnavalesca, já se pode perceber a deposição, a destronização, do monarca. Conforme explica o autor russo, na base do ritual de coroação e de destronamento do rei, “reside o próprio núcleo da cosmovisão carnavalesca: a ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação” (BAKHTIN, 1981, p. 107). Ainda segundo o teórico, “o cerimonial do rito do destronamento se opõe ao rito da coroação; o destronado é despojado de suas vestes reais, da coroa e de outros símbolos do poder, ridicularizado e surrado” (BAKHTIN, 1981, p. 107).

A obra de Chico Buarque e Ruy Guerra, considerando-se tais pressupostos, apresenta a imagem do mundo social e político que se assenta em estruturas de coroamento e descoroamento. Resguardadas as diferenças, o rei momo do carnaval manteria uma homologia com os personagens do livro (Calabar, Bárbara e Anna) no sentido de que tanto aquele quanto estes são arrancados da periferia e passam a assumir papéis centrais nos seus respectivos contextos. Ou seja, o livro elege como protagonistas os excluídos, os marginalizados, os perseguidos e os esquecidos da história oficial. Todavia, ao mesmo tempo em que esses últimos ganham espaço na peça, eles são apresentados sem nenhuma nobreza ou mérito. Portanto, trata-se de um coroamento que pressupõe, simultaneamente, um destronamento. As autoridades, em contrapartida, não obstante seu coroamento, são destronadas ao longo do texto, dada a dessacralização a que são submetidas em virtude das críticas a elas dirigidas.

A leitura de Calabar revela situações cômicas que provocam o riso, conforme se observou em algumas passagens transcritas. O riso, segundo argumentos desenvolvidos por Bakhtin, tem um profundo significado filosófico, é um ponto de vista particular sobre a experiência, não menos profundo que a seriedade. O riso popular festivo triunfa sobre o pânico sobrenatural, sobre o sagrado, sobre a morte, e provoca a queda simbólica de reis, de nobrezas opressoras, de tudo o que sufoca e restringe. Ademais, o riso assume o papel de uma consciência crítica, através da qual diferentes formas de autoritarismo podem ser ridicularizadas. De acordo com o pensador russo, o riso carnavalesco também está dirigido contra o supremo, para a mudança dos poderes e verdades, para a mudança da ordem mundial. Seja como for, o caráter cômico, cujo efeito alcançado é o riso, empresta à peça um sentido crítico.

O carnaval, enquanto conjunto das variadas festividades e ritos, apresenta

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como mecanismo básico a inversão. Tal acontecimento festivo surge em oposição ao cotidiano. Logo, a alegria, a comicidade, a fantasia e o grotesco se contrapõem à austeridade, à seriedade e à uniformidade e, por isso, ele é situado no paradigma da desordem em contraste com a ordem sustentada por outras estruturas. Ao assumir essa desordem, o carnaval se coloca contra tudo o que é fundamentado pela moral, pelo civismo e pela ética social. Conforme complementa Da Matta (1983), é por meio desse evento festivo que determinados aspectos da realidade social – facetas que normalmente estão submersas pelas rotinas, interesses e complicações do cotidiano – são dramatizados e imbuídos por significados novos e às vezes surpreendentes. Ainda de acordo com esse autor, é durante o carnaval que é permitida a confusão das regras hierárquicas.

A carnavalização, segundo preceitos desenvolvidos por Bakhtin, consistiria na transposição do carnaval para a linguagem literária. Isso significa, por conseguinte, que um dos propósitos da carnavalização na literatura é proceder à inversão de uma ordem instituída hierarquicamente. Assim, aquelas categorias que definem a carnavalização – o livre contato familiar entre os homens, a excentricidade, as mésalliances, a profanação, a polifonia, a paródia e o riso – têm em vista colocar em xeque determinadas estruturas. Ao valer-se dos aludidos recursos, Calabar busca lançar possibilidades de leitura que visam a trazer à tona o que está marginalizado, reprimido. Tudo isso objetivaria a dessacralizar o poder e propor mudanças numa sociedade com uma ideologia histórica dominante, encompassadora e autoritária como é o Brasil.

A análise de Calabar, a partir do ponto de vista da carnavalização bakhtiniana, permite que se vislumbre a história do Brasil de uma perspectiva que favoreça os excluídos e os marginalizados, dessacralizando-se, com isso, as estruturas de poder autoritárias. Esse mesmo olhar para a história pode ser complementado, considerando-se as premissas do materialismo histórico, tal como apregoado por Benjamin (1985). A peça de Buarque e Guerra, nesse sentido, promove uma leitura a contrapelo da história, uma vez que ela visa a trazer à tona não apenas a história dos vencedores, mas, sobretudo, a dos vencidos. Esse historiador materialista é, então, aquele capaz de identificar os germes de uma outra história em que se levam em conta os sofrimentos acumulados pela humanidade redimida.

Calabar estaria em consonância com a perspectiva histórica benjaminiana, pois o filósofo alemão argumenta no sentido da necessidade de se recuperar o passado num instante tenso e ameaçado, pois, assim, os vínculos entre aquele momento e o presente se entrelaçam de forma a fazerem verter, da classe oprimida, um pensamento crítico, renovador e inconformado. Na peça, dois momentos delicados da história do Brasil foram articulados: o primeiro vinculado à colonização, e o segundo, à Ditatura Militar. Esses eventos ilustram uma história pautada na violência e no autoritarismo em que, muitas vezes, diversas vozes foram silenciadas.

Assim, o historiador materialista é aquele que, ao olhar para o passado, não se depara com uma cadeia de acontecimentos articulados harmoniosamente; ao contrário, é aquele cujo olhar se identifica com a visão perplexa do anjo da história

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de Benjamin (1985). Segundo o crítico, enquanto um olhar mais ingênuo permite apenas que se perceba o passado enquanto uma cadeia de acontecimentos, o anjo, perplexo, “vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa a nossos pés” (BENJAMIN, 1985, p. 226). A perplexidade que caracteriza o anjo está diretamente relacionada a um passado traumático. A história do Brasil é uma história traumática de forma que seus agentes são marcados pelo horror, pelo receio, pelas limitações, pelas incertezas e pelas instabilidades do passado e do presente.

Nesse sentido, Calabar autoriza uma outra leitura do passado histórico brasileiro justamente porque desloca o olhar de uma perspectiva historicista para uma perspectiva materialista. Segundo Benjamin (1985), o verdadeiro conhecimento histórico se originaria da classe oprimida em luta, pois só ela teria acesso às diferentes formas de exploração e de desumanização. É possível se ter acesso à história de opressão da sociedade brasileira porque, na obra em questão, os autores conferem voz às minorias, representadas, principalmente, por Bárbara e por Anna de Amsterdam. Ao personagem Calabar não é conferido voz, mas essa particularidade é estratégica no texto, já que ao leitor é concebido direito de julgá-lo. Contudo, seja qual for o julgamento feito pelo leitor, a condenação e o assassinato do protagonista não se justificam.

Assim, a dessacralização da história oficial concebida tanto do ponto de vista da carnavalização, tal como proposta por Bakhtin (1987), quanto pelo método materialista, tal como defendida por Benjamin (1985), culmina, em última instância, no imperativo de não se deixar uma fatia dessa história se perder ou ser esquecida. Calabar contribui para o amadurecimento dessa consciência, pois permite que se questionem as estruturas de poder construídas historicamente. Ao se manterem vivas as lembranças de um passado autoritário e ameaçador, a elite dominante tem seu poder revisado e questionado. Assim, Calabar busca não somente dessacralizar o poder oficial, mas apontar perspectivas para as classes oprimidas.

Referências

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______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ______. Magia e técnica, arte e política. Vol. I. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 222-232.

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BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S. A., 2001.

COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

NUNES, Elzimar Fernanda. A reescrita da história em Calabar: o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. 2002. 140f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literaturas) – Universidade de Brasília, Brasília, 2002.

PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996.

SCHWARTZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992.

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Literatura, violência e fraternidade:

a expansão da pesquisa

Arturo Gouveia de Araújo

O presente ensaio decorre de uma leitura sobre a fraternidade e a violência

em narrativas da literatura brasileira. Depois de um mapeamento panorâmico de ocorrências da fraternidade como reação à violência, selecionamos textos em que essa relação ocorre de forma mais sistemática, como “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa (1994), e Quarup, de Antônio Calado (1969), para análise mais aprofundada. Examinada cada obra em seu contexto, a República Velha e o Brasil da ditadura militar, a pesquisa procede a uma análise textual do significado da fraternidade como exceção, em suas raras ocorrências tanto na vida social quanto nas representações literárias. A escolha do conto rosiano e do romance calladiano deveu-se, entre outras causas, ao fato de a ação privilegiada para análise corresponder à seguinte sequência: espancamento/estado de debilidade/fraternidade. Tal sequência, pelo que pudemos constatar até o momento, perfaz o modelo mais complexo de violência/fraternidade nas narrativas da literatura brasileira, impondo-se como parte significativa do enredo, não como episódio periférico ou secundário. As outras cenas que encontramos, na leitura de várias obras, não demonstram essa amplitude em termos de matéria e relato. Mas, começamos a pensar na possibilidade de explorar também a mesma categoria em ocorrências secundárias, identificando sua significação exatamente por essa condição singular. Após estudo minucioso do corpus já citado, empreendemos novas buscas com o intuito de dar continuidade à pesquisa. No momento, o enfoque parte de dados mais genéricos para depois centrar-se no romance Fogo morto, de José Lins do Rego (1988), como resultado parcial da continuidade da pesquisa.

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1. Dos animais aos homens: os empecilhos comuns

Para a caracterização panorâmica das ocorrências da fraternidade na literatura brasileira, partimos da necessidade do estabelecimento de uma tipologia para tal fim. Considerando um número expressivo de manifestações fraternas nas narrativas, verificamos a inexistência de unidade capaz de reuni-las numa categoria monolítica. Para dar um direcionamento mais unitário a tal enfoque, decidimos categorizar os gestos de fraternidade, por enquanto, em dois tipos.

O primeiro tipo, no caso o mais extenso, envolve todas as manifestações contingentes. Trata-se de ações fraternas que não se impõem à narrativa como categoria dominante, no dizer dos formalistas russos (TOLEDO, 1971). Conforme estes, a dominante textual é uma categoria temática ou estrutural que marca presença quantitativa e qualitativa na composição artística, prevalecendo sobre as demais categorias. É comum que tal distinção se imponha à leitura como marco inseparável da análise, como se tivesse de ser contemplada em qualquer recorte investigativo. Ainda que discordemos dessa inferência, reconhecemos nela a relevância da diferença representada por uma certa categoria que, de fato, tem tal presença no texto, que sua exclusão da análise demonstra um procedimento arbitrário e impertinente.

Entretanto, uma leitura inversa dessa perspectiva pode demonstrar pertinência ao menos em dois aspectos: a) a leitura analítica daquilo que é contingente pode tratar a exceção de forma a estabelecer ligações plausíveis com a dominante textual e fazer revelações contrastivas capazes de mostrar o sentido dialético da contingência na sua relação conflitante e diferencial com o que é mais patente; relativizações importantes podem decorrer daí e gerar deduções que a leitura exclusiva da dominante textual pode não alcançar; b) a análise pode inserir determinadas exceções em uma série similar de outras obras, de uma tradição, de uma tendência, de um gênero, e estabelecer um outro padrão de sistema cujo sentido pode ser enriquecido em leitura comparativa.

O segundo tipo diz respeito ao que já está consagrado na escolha do corpus: a presença dominante da temática, com fundamental incidência sobre o que os formalistas russos chamam de “motivos associados”. Trata-se de toda uma cadeia de ocorrências na qual se faz presente, no caso, a fraternidade. Sua exclusão, de resultado mais negativo do que o supracitado, traduz, a nosso ver, uma mutilação do texto por uma leitura muito estreita. Isso pode ser exemplificado pela ausência de análise dos pretos velhos do conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, uma das maiores lacunas em sua fortuna crítica.

Ainda como exemplo do primeiro tipo, temos as mais dispersas ações de fraternidade nas narrativas, de forma aparentemente aleatória e secundária. Essa situação pode abranger até a ação de animais em relação com seres humanos fragilizados ou em estado de morte. Da mesma forma que Chklovski (TOLEDO, 1971) propõe a análise do discurso do cavalo na novela Kolsthomer, de Tolstoi, poderiam ser feitas ponderações sobre situações semelhantes na literatura brasileira. É o caso de

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Vidas secas, de Graciliano Ramos, Quincas Borba, de Machado de Assis, Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato (2001), entre outras obras.

No caso de Fogo morto, o bode da casa do Mestre José Amaro também apresenta um gesto humano ao aproximar-se de seu dono no pior estado deste: já com um acúmulo de sofrimentos, é abandonado por todos e condenado à aporia da solidão. Como único ser que marca presença junto ao mais profundo desamparo do mestre, o bode é caracterizado pelo narrador como um ser que sente a opressão vivida pelo protagonista, estabelecendo uma identidade íntima, de laços fraternos, entre animal e homem. Os berros desse momento são singulares em toda a narrativa, além de imprevisíveis.

São manifestações surpreendentes, preenchendo as lacunas deixadas pelas pessoas. As reações dos animais às situações negativas metaforizam momentos de humanização de irracionais, como se adquirissem não apenas racionalidade capaz de livre-arbítrio, mas também senso de responsabilidade e afeto. Nessas manifestações, eles se comportam como partícipes do destino dos humanos, como podemos observar, ainda que de forma efêmera, na situação precária dos personagens, violentados de várias formas. O que unifica todos esses momentos é uma superioridade momentânea dos animais, considerando-se que a compaixão é, etimologicamente, “sofrimento com”, mas em posição superior (PAES, 1988, p. 38). Nessa situação-limite, ainda que tais gestos sejam pontuais, poderíamos conceber um certo deslocamento da ação protagônica para os animais, na medida em que os humanos descem profundamente na escala dos valores históricos e ontológicos.

Tais ocorrências, apesar de figurarem como exceções, merecem ser encaradas não em seu isolamento, mas em uma leitura contrastiva que as contemple não como algo apenas destoante e digressivo no texto, mas em sua integração problemática com o que mais se destaca na obra. A extrema desigualdade dos resultados – excepcionalidade da fraternidade e predominância da violência – autoriza a análise a fazer deduções coerentes sobre a inexistência de condições objetivas para a efetivação da fraternidade num modelo social calcado sobre o individualismo e a exclusão sistemática de iniciativas altruístas. Uma crítica contundente ao capitalismo, como se vê, pode ser averiguada a partir da leitura criativa, dialética e bem direcionada da contingência textual.

Outro exemplo dessa tendência é a prontidão do Capitão Vitorino, em Fogo morto, a sempre ajudar pessoas injustiçadas. Como único personagem a enfrentar tanto o tenente Maurício quanto Antônio Silvino, suas ações, embora recorrentes, não constituem um sistema expressivo de intervenções capazes de influenciar o enredo, no tocante ao destino dos personagens. É impossível superar a violência dominante ou criar uma resistência significativa aos desmandos que imperam na sociedade patriarcal que despreza o Estado de direito. As convicções de Vitorino são tão enraizadas em sua formação de homem justo, com ideais democráticos muito avançados para o contexto, que ele gera admiração nas pessoas quando é preso pela polícia e quando é espancado pelo cangaceiro. Essa mudança na recepção popular, porém, não deixa de ter um tom irônico: a admiração não exclui o senso comum segundo o qual o heroísmo de Vitorino

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não é deliberação consciente, mas um impulso espontâneo típico de seu estado de loucura mansa, que não mede esforços para arriscar-se à morte exatamente porque não tem entendimento racional das coisas. A imagem dele como criança existe até na mente de Adriana, sua esposa; o estigma de homem abestalhado e inconsequente, velho chato, mas dócil, é comum às pessoas, do Mestre José Amaro ao Coronel José Paulino, das crianças aos trabalhadores de beira de estrada. Mesmo o tenente e o líder cangaceiro, que sentem a interferência negativa de Vitorino em seus trabalhos, acabam se convencendo da inutilidade de se trocarem com um velho maluco.

Essa exceção representada por Vitorino, em todo o romance, nos expõe a situação oposta: o medo, a retração, a impotência da maioria. Ninguém resiste, de forma coletiva e planejada, à violência desmedida da polícia. O convívio das pessoas com invasões de casas, prisões arbitrárias, torturas, demonstra a inexistência de organização social para movimentos políticos de cobrança de direitos no patriarcado rural. O que o Ocidente concebe, desde o Iluminismo, como sociedade civil, na qual deveria fluir o direito constitucional, parece uma utopia do Capitão Vitorino; uma meta impossível para quem internaliza, como naturais, os desmandos da ordem e da desordem – e para um país que, nas relações internacionais, adere apenas parcial e formalmente à implantação da forma republicana. A população, salvo aqueles que aderem ao banditismo, acomoda-se à opressão escravocrata que permanece ainda na República. A resistência de Alípio, o discurso indignado de Manuel de Úrsula, dentre outras manifestações na surdina, revelam o plano de adesão ao cangaço exatamente porque não há justiça a que recorrer. A permanência do Mestre José Amaro nas terras de Lula de Holanda, por exemplo, mesmo depois da ordem de expulsão dele, não ocorre por causa de um limite imposto por lei, em forma de garantia de direitos, mas por uma contraordem de Antônio Silvino ao Coronel. Como se vê, a ilegalidade das ações perpassa diversos episódios, investigáveis como fio comum ao enredo. Identificado tal fio, capaz de conduzir a leitura, a fraternidade comporta-se, mais uma vez, como contingência. Toda uma cultura opressiva, dependente da violência e inteiramente à margem de garantias legais, confirma a impossibilidade estrutural de florescimento da fraternidade social. Da leitura de uma exceção, de uma ocorrência esporádica, pode-se chegar à revelação de um quadro social mais significativo de um momento histórico.

2. O caso Fogo morto: esboço de um modelo de análise

Em Fogo morto, a sequência espancamento/estado de debilidade/fraternidade, que observamos nos textos de Guimarães Rosa e Antônio Callado, não se completa. Mas, propomos aqui algumas observações como matéria do ensaio que segue.

O espancamento ocorre em vários momentos, com vítimas distintas, o que já não acontece no conto rosiano, nem em Quarup. A ação violenta, assim, apresenta uma heterogeneidade tanto de meios quanto de fins, o que as outras duas narrativas desconhecem. Além disso, há uma diferença radical no exercício da

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fraternidade, seja em relação ao espaço onde transcorre, seja em relação às vítimas do espancamento.

No que tange ao destino de Marta ou do Mestre José Amaro após a surra sofrida por cada um, não há um envolvimento das pessoas fraternas para fins de recuperação do personagem espancado. Marta é levada para a Tamarineira no pior estado de manifestação de sua loucura e não há nenhum indício de melhora ou amenização de uma debilidade mental muito mais inacessível ao trabalho dos fraternos que uma debilidade física. Não há também nenhum esforço consciente por parte dela, ao contrário do que fazem Nhô Augusto e Nando, para a autossuperação e a assunção de uma nova vida. Em relação ao Mestre José Amaro, o desfecho não é tão diferente: a opção pelo suicídio não apenas invalida qualquer tentativa de fraternidade, como também o coloca sob um estado irreversível de derrota, sem a menor sensação de esperança, nem do ponto de vista religioso, como Nhô Augusto, nem do ponto de vista de uma última resistência política, como no caso de Nando. O Mestre José Amaro, além de não conseguir vencer tal aporia, é representado no romance em duas situações contraditórias: em casa, ao bater na filha, é algoz; na cadeia, ao ser torturado pela polícia, é vítima. Essa sua dupla posição é essencial para o delineamento de seu perfil: do autoritarismo doméstico à opressão social, é envolto em uma cadeia de violência que, dentro de um conjunto de fatores negativos, só faz piorar sua condição – em sua convivência com outras pessoas, mas também consigo próprio. Por exemplo, em um dos momentos em que bate em Marta, ele reconhece a loucura dela – uma descoberta arrasadora que completa todo um perfil negativo da filha: solteira, velha (aos olhos dos valores patriarcais) e herdeira sem condição de seguir-lhe o ofício, nem de protegê-lo. A relação desse núcleo narrativo com o outro – o da tortura na cadeia de Pilar – é uma das sugestões mais criativas do narrador, o que geralmente passa despercebido pelas análises críticas. A ambos os núcleos seguem tentativas de fraternidade, porém sem o mesmo envolvimento, mais aprofundado e cristão, encontrado no conto rosiano e no romance calladiano. Entretanto, essa lacuna requer uma explicação para o discernimento crítico de sua função no romance. A incompletude da ação fraterna, sem as condições encontradas nas outras narrativas, desafia a fortuna crítica há décadas e merece um olhar mais detido em sua significação.

2.1. A primeira ocorrência

A primeira ocorrência da fraternidade em Fogo morto se dá em espaço doméstico, como consequência da violência do mestre sobre a filha. Diferente do que transcorre com Nhô Augusto e Nando, a relação hostil do pai com a filha perfaz uma situação de efeito trágico, no sentido aristotélico, devido à proximidade dos personagens envolvidos na ação. Quanto mais próximo um personagem do outro, maior o impacto negativo da ocorrência, sobretudo em se tratando de relações consanguíneas. O Mestre José Amaro, descarregando sua raiva sobre a filha indefesa, acaba saindo mais fragilizado e frustrado do ato, reconhecendo definitivamente o estado de loucura de Marta. Ele

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o comunica à esposa, o que só faz aumentar o repúdio dela diante da já conhecida irredutibilidade do marido (REGO, 1988, p. 170-171).

Esse detalhe é o ponto culminante de uma cena mais dilatada, que começa com a intolerância do mestre em relação aos atos descontrolados de Marta. O diálogo entre pai e filha é impossibilitado por duas causas: de um lado, a indisposição do mestre para tal empreendimento, uma vez que sua tosca formação patriarcal, somada ao orgulho inerente a sua autoimagem de homem, não considera importantes tais valores; de outro lado, a condição cada vez pior de Marta a torna inacessível, impassível de uma mínima conversa que teria como solução um certo pacto familiar fundamentado em respeito mútuo, primando pela harmonia do conjunto. A solução é a violência verbal e física: depois de um surto de loucura da filha, o mestre a surra sem piedade com uma tira de sola, querendo matar “esta ira” (REGO, 1988, p. 167).

O desenrolar da cena expõe dois empecilhos à violência do mestre: as reprovações morais da esposa e a formação de um súbito acesso de epilepsia, que ele é capaz de vencer, após muito esforço. Ao recuperar-se, despreza os pedidos de Sinhá e justifica sua ação como o único meio de conter a doença de Marta. Sua insistência no ato hostil revela um raro momento em que o mestre pratica uma ação com as mãos fora do seu trabalho de seleiro. Essa exceção é representativa de uma ironia drástica: a forma de romper sua letargia e seu sedentarismo é fazendo da filha uma vítima de sua incompreensão. Tal ignorância, conjugada à excrescência do ato covarde diante da filha, revela uma das maiores contradições do mestre, sobretudo se compararmos sua opção pelo espancamento com sua total impassibilidade no ato de prisão ordenado pelo tenente Maurício.

Na cena em que a força policial invade sua casa, a única reação do mestre é querer vestir uma roupa melhor para ir à prisão. A resposta do soldado já é reveladora da natureza do inquérito a que o mestre vai ser submetido, à margem de qualquer lei ou garantia de defesa: “- Não precisa não, velho; para cipó-de-boi esta está boa demais” (REGO, 1988, p. 374).

Nos extremos das cenas, vemos as contradições sociais que, às vésperas de uma eleição republicana, engendram mecanismos que desqualificam o Estado de direito. Convém salientar que não se trata apenas de deliberações do tenente Maurício, mas de toda uma estrutura política que o acoberta, como bem frisa, em vários instantes, o Capitão Vitorino. No âmbito doméstico, da mesma forma, as contradições não são produzidas apenas pela rudeza do mestre: não há organizações sociais, embasadas no direito vigente ou em ideais de fraternidade, capazes de impedir a violência contínua. O próprio fato de o mestre declarar a surra como meio de cura é resultado de um misto de grosseria pessoal com uma estrutura social inteiramente falida em termos humanísticos. A aplicação da fraternidade, historicamente impossibilitada nos meios mais avançados da Europa, berço do Iluminismo, encontra no Interior da Paraíba, no início do século XX, um dos entraves mais eficazes contra sua realização.

A novidade que aparece na surra de Marta é que é a primeira vez em que o

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mestre chora aos olhos da esposa, contrariando toda a dureza que apresenta desde o princípio do enredo, quebrando seu orgulho, ainda que implicitamente, e reconhecendo-se como responsável pela degradação da filha. Embora esse reconhecimento não seja tão palpável, por declaração ou sentimento nítido de um mea culpa, a própria forma de ele se comportar a partir daí denuncia o peso que ele se atribui a tal estado. Mesmo em momentos de entusiasmo por Antônio Silvino, em raros instantes em que o mestre se sente bem, a lembrança da filha é sempre pungente e arrasadora para sua consciência. Trata-se de uma forma indireta de retratação e autocondenação, o que se restringe ao foro privado e não tem a menor ocorrência nas instituições repressivas, como a polícia. O choro – uma expressão contraditória de compaixão e autocrítica – não é suficiente para a reconciliação entre pai e mãe, o que anula as possibilidades de uma busca de melhores condições para os dois lidarem com Marta. A ausência de tal perspectiva explica a prática tão espontânea de fraternidade por parte da mãe, da comadre Adriana e de alguns amigos, o que isola o mestre do convívio de alguns mais próximos e o coloca sob um efeito negativo de cobranças morais, que ele não tem antes no enredo. A última cena da primeira parte do romance é o ponto culminante desse isolamento – só rompido, ironicamente, pela presença de um bode junto ao mestre:

O mestre José Amaro não quis ver a saída da filha. Emocionado, entrou em casa e o soluço da mulher cortou-lhe o coração. Joca e Passarinho tinham entrado, e a sua comadre Adriana gritava:- Cuidado, não machuquem a bichinha.(...)(...) O mestre não pensava em nada. Havia dentro dele um vazio esquisito. Teve medo de voltar para dentro de casa. E ali mesmo, por debaixo da pitombeira, baixou a cabeça e chorou como um menino. O bode manso chegou-se para perto dele e lambeu as suas mãos. E começou a berrar, como se tivesse coração de gente. (REGO, 1988, p. 206-207).

Observe-se que o mestre, com aparência de indiferença ante a cena de recolhimento da filha ao hospício, na verdade aumenta sua capacidade de avaliar seus fracassos, sem conseguir superá-los nem evitar a corrosão interior da culpa. A presença constante de Marta em seus monólogos mostra o quanto o mestre se avalia cada vez que se lembra da filha. As confusões mentais apresentadas desde o início, provenientes, em maior parte, de conflitos externos, são alargadas agora por um conflito interno tão atuante em sua consciência quanto os demais problemas que o desagradam. Não se trata mais de nutrir ódio por José Paulino ou Lula de Holanda, porque a origem desse novo sentimento negativo não está em homens poderosos a quem ele não quer se submeter. A violência sobre Marta desloca o sentimento de ódio para a filha, causando a ele um maior desequilíbrio interior, na medida em que o mestre se flagra como agente da violência. Tais são as condições subjetivas para o florescer da culpabilidade e dos mecanismos psíquicos de autodefesa, tensão esta inexistente nos algozes que acometem Nhô Augusto e Nando, ao ponto de lhes decidirem a morte.

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O Major Consilva e seus capangas, bem como Ibiratinga e seus subordinados, afastam de suas consciências qualquer senso de responsabilidade culposa e dolosa. Em primeiro lugar, as vítimas que eles alvejam não têm nenhuma relação consanguínea com eles, sendo-lhes mais fácil, do ponto de vista psicológico, lidar com inimigos prejulgados perigosos e situados fora de sua intimidade. Em segundo lugar, a violência exercida em grupo, sobretudo por mecanismos estatais, apresenta características semelhantes, guardadas as proporções, às estratégias dos crimes políticos contra a humanidade, autolegitimados em sua lógica de eliminação, como aqueles estudados por Hannah Arendt – crimes praticados conforme um planejamento coletivo fundamental à dissolução da culpa (ARENDT, 1999).

Nesse contexto, não se delineia propriamente uma ação individual, concentrada em um sujeito, capaz de despertar reações condenatórias e atingir o agente da violência com uma forte pressão. Consilva e Ibiratinga comportam-se como mandantes, sem relação direta, do ponto de vista corporal, com seus inimigos, delegando as decisões violentas a outros, o que descentra a responsabilidade por surra e morte e dissipa a formação de alguma dor semelhante ao remorso ou arrependimento. Incapazes de autorreflexão crítica, aumentam seu poder de atuação e tornam-se absolutamente isentos a pressões como as que Sinhá e outros exercem sobre o mestre. Em Fogo morto, de fato, apesar da hierarquia inerente à ordem patriarcal açucareira, o Mestre José Amaro e Sinhá agem em posição de igualdade diante da filha. A mãe reivindica tanto espaço de proximidade e proteção à filha quanto todos os direitos que o pai diz ter sobre a ordem familiar. Por mais que o mestre grite e ratifique sua posição de “galo”, não tem instrumentos para diferenciar-se muito da esposa, a qual se impõe ao marido de alguma forma, não sendo ele, por exemplo, um empecilho para que a ação fraterna de outros flua abertamente. O mestre, mesmo com seu jeito radical, de decisões unilaterais, não se impõe aos fraternos como terror capaz de tolher-lhes o ímpeto.

Oposta a essa relativa igualdade entre os pobres é a situação mais vertical que se apresenta no conto rosiano e em Quarup. Primeiramente, aqui, a violência extrapola os limites familiares, sendo, no primeiro caso, de latifundiário para latifundiário, numa disputa sangrenta dentro de uma mesma classe, acabando por despojar a vítima de todo o seu poder e resultando numa concentração de domínios, por parte do vencedor, antes impensável. No caso de Quarup, é bem maior a verticalidade da diferença: as Forças Armadas, instituição que, por formação e princípio, concentra os maiores instrumentos de coerção do país, deixam de exercer seu papel constitucional – defender o território nacional contra invasores externos – para perseguir e torturar pessoas da sociedade civil, ainda na primeira fase da ditadura militar. Essa desigualdade de condições aumenta quando sabemos que Nando e seus humildes amigos não possuem armas. Trata-se, pois, de um cenário histórico muito mais nocivo à prática da fraternidade, porque a violência é travada de uma classe dominante contra quaisquer membros da sociedade que discordem da implantação do golpe, ambição que requer um contínuo aperfeiçoamento do poder e dos mecanismos de repressão necessários à

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sua manutenção. Isso não descarta, por exemplo, hostilidades dentre os segmentos das próprias classes promovedoras da ditadura militar – irradiação de uma tirania muito além do que discernimos na representação dos velhos poderes rurais.

Tal situação social – o da intangibilidade do poder – dificulta o desempenho da fraternidade que, ao contrário de Fogo morto, sente-se tolhido e ameaçado pelo poder, tendo que se recolher a um espaço socialmente não visível, onde os impulsos fraternos se tornam impassíveis de expansão e de assimilação por outras pessoas. Nesse caso, a fraternidade não pode figurar sequer como resistência ativa à violência dos poderosos, mas unicamente como um gesto de socorro privado a pessoas que beiram a morte. O soerguimento das vítimas é uma vitória simbólica sobre a violência, mas é também a proclamação da morte da fraternidade, circunscrita a um fato singular que demanda uma ação voluntária para uma certa acidentalidade, sem funcionamento permanente, sem caráter institucional. Tal como ocorre na história, conforme apontam os diversos teóricos, as representações literárias da fraternidade enfocam o modelo cristão de um altruísmo que continua a predominar sobre as concepções políticas de fraternidade burguesa, nunca sedimentada em termos efetivos. Por isso, acreditamos que os estudos atuais da fraternidade, sempre que enfatizam a defesa e a revalorização do “princípio esquecido” (BAGGIO, 2008 e 2009), não conseguem mostrar uma leitura crítica e cética do capitalismo, recaindo frequentemente em soluções porosas.

Encontramos alguns estudos sobre a ocorrência de fraternidade na literatura brasileira, mas com outra proposta de enfoque. Por exemplo, o ensaio de Raul José Matos de Arruda Filho enfoca a novela À margem da linha, de Paulo Rodrigues (2001); Mariana Rocha Santos Costa faz uma análise comparativa entre Esaú e Jacó, de Machado de Assis, e Dois irmãos, de Milton Hatoum (2006). Mas tal relação, interpretada desde a etimologia do substantivo, pertence ao que Giuseppe Savagnone (BAGGIO, 2009) conceitua como “má-fraternidade”. Trata-se de uma “fraternidade negativa”, garantida nesse sentido apenas como relação familiar1, o que acaba tendo um sentido formal não condizente com a situação do enredo, seja entre os irmãos, seja em seu conflito com o mundo externo. Essa relação entre irmãos mutuamente destrutivos, ou de desejos sexuais proibidos, não se situa no âmbito da fraternidade universal, devido ao egoísmo pleno de suas manifestações (BAGGIO, 2009, p. 205-216). Convém reafirmar nosso interesse por uma fraternidade não-familiar, que não se sustenta na mera raiz da palavra, muito menos na prática proscrita entre irmãos. Mesmo em Fogo morto, por exemplo, em que a relação do Mestre José Amaro com Marta evidencia uma relação familiar, a fraternidade provém de outros personagens da redondeza.

Como viemos demonstrando, não é esse tipo de relação fraterna que interessa a nossa pesquisa. Do que estudamos até o momento, raríssimos são os enredos

1 Esse diferencial é decisivo para situar nossa proposta de estudo num campo ainda não delineado pela crítica bra-sileira. Esses estudos da “má fraternidade”, pioneiros nessa linha temática, em nada condizem com nossa pesquisa.

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que representam, em uma de suas manifestações de fraternidade, uma situação fundamentada em laços de sangue. Mas, enquanto o objetivo dos irmãos retratados por Paulo Rodrigues é a construção desse “valor identitário”, tal procedimento é inteiramente estranho ao romance de Lins do Rego. Se a preocupação dos filhos é com o pai desaparecido e desconhecido, Marta, em Fogo morto, não sofre dessa ausência, ao contrário: é a presença excessiva do pai, autoritária e punitiva, coercitiva e proscritiva da liberdade da filha (semelhante ao que ocorre, na Casa-Grande, com Dona Olívia e Neném), que verdadeiramente incomoda. Não há por parte dela uma busca do pai, mas uma crescente repulsa que impede o desfrute de valores identitários e de uma mínima alegria comum. Ao contrário dos irmãos que questionam a ausência do pai, Marta sequer tem condições mentais para reflexões razoáveis. Sua loucura crescente, cada vez mais fora de autocontrole, ferindo o mestre de vergonha e aborrecimento e levando-o a puni-la pela surra, abrange gestos irracionais impassíveis de detenção, o que desafia qualquer deliberação voluntária capaz de apostar em uma simples melhora. Sinhá e Adriana tentam diminuir os efeitos da loucura, mas esta só faz avançar, inutilizando os planos solidários da mãe e da comadre. Chega-se a um ponto crítico em que nem a violência paterna é mais eficaz (como um ato provocador de dor e medo para levar a vítima à retração), nem tentativa alguma de convívio solidário e consolador com Marta. Eliminadas todas as formas de paliativo caridoso, a solução encontrada pelas pessoas, ao redor do mestre e com a permissão tácita e indesejada dele, é retirar Marta de circulação. A aparente indiferença e, ao mesmo tempo, o sofrimento do mestre, nessa cena, são a expressão culminante do que já está prenunciado na primeira referência à filha, no diálogo com o pintor Laurentino: “Tenho esta filha que não é um aleijão” (REGO, 1988, p. 51).

Essa cena estabelece um gesto paradigmático do mestre: a constante atribuição de culpa aos outros. Em relação à filha, ela é a única responsabilizada pela sua condição de mulher solteira, culpada, indiretamente, pela vergonha do pai diante dessa rejeição motivadora de falatórios. Ao longo do romance, não temos maiores informações sobre os motivos de nenhum homem da redondeza interessar-se por Marta. Na visão do pai, entretanto, tudo já está explicado, porque a resolução do problema depende exclusivamente da vontade da filha. O narrador, por sua vez, também não esclarece, nem de sua posição objetiva, nem de sua posição acoplada à interioridade do protagonista, as causas da loucura de Marta. Sequer há uma versão do pai para a demência gradativa da filha, nem mesmo no momento em que ele reconhece de vez o estado mental tão precário dela. O que o mestre faz, no diálogo com Sinhá, um dos raros momentos de humildade em que ele se despoja de sua pretensa superioridade em relação à esposa, é apenas constatar, com bastante sofrimento, a loucura da filha. Mas não há nenhum questionamento a respeito de possíveis causas do fato. Nenhum de seus monólogos, tão recorrentes ao longo da obra, registra a mínima preocupação em ponderar sobre situações que teriam levado à derrocada da lucidez da filha.

No outro extremo da hierarquia, ocorre o mesmo: Lula de Holanda não

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se preocupa em evitar a frustração da filha, comportando-se antes de tudo como um homem despótico que não se afeta com os sentimentos dos outros. Essa tirania patriarcal, que desconhece os avanços burgueses modernos, dentre eles o valor da individualidade e da autonomia das pessoas, não é apenas expressão da idiossincrasia do coronel, mas um valor estrutural da sociedade retratada. O isolamento de Neném, aparentemente apenas um procedimento de autodefesa dela, também mostra a ausência de estruturas objetivas capazes de proporcionar um mínimo de emancipação para as mulheres. Esse lado mais atrasado do país manifesta-se diretamente no comportamento e nas consequências das decisões irredutíveis sobre as pessoas mais fracas.

Vemos, pois, que a estrutura familiar aqui estudada tem uma particularidade histórica que não corresponde ao recorte feito pelos poucos estudos que encontramos sobre a categoria da fraternidade na literatura brasileira. Esse breve diálogo com o ensaio de Raul Arruda tem a pertinência de mostrar a singularidade do que almejamos em análise.

Por causa da especificidade da sequência de ação que privilegiamos, nossa leitura não contempla nem a relação com romances brasileiros que protagonizam irmãos nem todo um legado arquetípico de origem bíblica que serve de base simbólica a esses conflitos familiares. Em nosso recorte, a violência física é imprescindível à provocação de debilidades que despertam compaixão e dedicação fraterna às vítimas. Nada disso é compatível com o corpus de outros trabalhos e o enfoque crítico das obras. Em Fogo morto, por exemplo, um outro modelo familiar impõe desafios à leitura: Marta sequer tem irmãos, o que já invalida o recurso às narrativas bíblicas como instâncias secundárias de significação. Da mesma forma, Neném é filha única; Dona Olívia tem Dona Amélia como irmã, mas o conflito dela, um ponto em comum com as outras duas, é com o pai. Enfatizar essas diferenças é uma forma de demonstrar o tipo de leitura que propomos, resultado não só da matéria imposta pelo romance, mas também da diretriz assumida ao longo do exercício de análise e interpretação.

Em outra referência à novela de Paulo Rodrigues, Raul Arruda destaca a figura do “Pai mítico”, cujo lugar não seria jamais ocupado por Mano, um dos filhos. Ora, se essa observação, de base psicanalítica, tem sua pertinência para a obra de Paulo Rodrigues, insistimos em demonstrar que tal proposta de estudo, impulsionada por uma concepção de fraternidade incompatível com a nossa, só nos é válida para comparações esclarecedoras. O embate de contrastes teóricos e metodológicos enriquece e ajuda a compreensão das diferenças. Em Fogo morto, por exemplo, não há esse pai mítico (na forma simplificada aqui apresentada) ou sequer tentativas simbólicas de substituição do provedor paterno. O pai, negativamente presente, é constitutivo da loucura da filha. Seja em Dona Olívia, cuja mente estanca no passado da fundação do engenho, seja em Neném e Marta, que representam uma geração mais nova, contemporânea da derrocada de Lula de Holanda, os substitutivos criados pelas mulheres não são compensatórios; não demonstram capacidade alguma de

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sublimação das frustrações passionais, relativas aos sonhos de casamento. Dona Olívia acomoda-se à tessitura imaginária de uma mortalha para o pai, o “velho”, em declarações extemporâneas que desconhecem as mudanças dos fatos, a começar pela morte do capitão Tomás Cabral de Melo, ocorrida há décadas. Mas o caráter inoportuno e inútil desse gesto tem um sentido que liga o passado ao presente: os gritos provocativos de Dona Olívia exprimem o permanente e insuperável incômodo representado pelo pai. O pai, portanto, continua a ocupar espaço em sua mente, o que descarta a busca por um “pai mítico” que substitua o opressor. A reação de Dona Olívia, pois, incapaz de reordenamento mental e estabelecimento de novas metas de vida (impossibilitadas desde a estrutura familiar e social fechada do patriarcalismo coronelista), figura como autodestruição simbólica que progride na passagem do tempo. Tal progressão, um fluxo teleológico às avessas, traduz a completa ausência de afirmação das mulheres em tal contexto. Ou elas se submetem às determinações dos maridos, já reprodutores de determinações estruturais do contexto em que vivem, ou cedem à loucura como forma inconsciente de refúgio e resistência, o que não comporta qualquer benefício para elas. Tal loucura não-idílica, de fato, despojada de aura romântica, pode ser lida como uma antecipação simbólica da morte.

No caso de Marta, a loucura avança de tal forma, que a impele a gestos de agressividade sem alvo definido, como gritos aleatórios e expressões de força com os braços, não tendo capacidade sequer de pronunciar uma frase de protesto. De Dona Olívia a Marta, pois, a loucura adquire formas agravantes de somatização. Dona Olívia ainda tem um conforto familiar que Marta, de classe pobre, não tem – ainda que a crescente tendência de Lula de Holanda ao misticismo isolado de tudo crie na própria Casa-Grande um cenário semelhante a um hospício. Mas o internamento de Marta em Recife, a começar pela forma como ela é levada, é uma humilhação sem precedentes para o mestre José Amaro.

Obviamente, o destino das três loucas é muito pungente. Elas pertencem ao idealismo abstrato, no sentido lukacsiano da expressão, mas como quixotescas negativas. Suas mentes são dogmatizadas não por uma convicção, mas por uma afetação patológica destituída de meta construtiva. O coser interminável da mortalha faz de Dona Olívia uma Penélope mais solitária que a esposa de Ulisses, sem desfecho reconciliador. Não se trata de um marido que tarda a retornar de uma guerra e até é dado como morto, mas de uma proibição fatal (não detalhada na narração) que a leva ao absoluto esquecimento de um suposto noivo e à lembrança traumática do pai que, apesar de morto, é uma ferida aberta na mente da filha. Neném isola-se de todos e cultua um brinquedo como uma menina de mentalidade retrógrada, fato também causado pela intervenção arbitrária do pai em sua vida amorosa. Mas a situação de Marta é ainda agravada pela pobreza doméstica, pela residência em beira de estrada – que salta à vista de todos e estimula falatórios – e pelo recolhimento final na Tamarineira. Sem querer derivar a leitura para a especulação sobre a qualidade e o tipo do serviço público, por volta de 1911, oferecido num hospício brasileiro, a lonjura da filha desperta

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a constante tristeza da mãe e a incapacidade desta de manter-se junto ao mestre. O resultado final, sem fraternidade institucional, sem o menor efeito positivo dos gestos solidários tentados, é a desarmonia absoluta da família.

Em Fogo morto, ainda na primeira ocorrência de violência e fraternidade, Marta é brutalizada pelo pai, socorrida pela mãe, mas o “novo” estado de Marta, ao invés de ser uma recuperação, é o aprofundamento do seu estado de loucura, já decorrente de fatores anteriores, não esclarecidos pelo narrador. Cabe à pesquisa demonstrar o sentido dessas mudanças negativas, relacionando-as ao percurso infeliz e frustrado do Mestre José Amaro. O destino de um personagem periférico, como Marta, na verdade tem uma repercussão muito importante no trajeto do protagonista, figurando como um dos principais componentes de seu acúmulo de fracassos. A negatividade representada por Marta, uma vez ligada à do próprio pai, torna a análise mais rica que uma leitura estanque do perfil de cada personagem. Essa leitura relacional é um dos procedimentos metodológicos essenciais da pesquisa. Ela leva o leitor a indagar, a partir de um fato periférico do romance, por que o ponto de culminância dessa situação é a loucura; a ausência de políticas sociais para o cuidado das pessoas diferentes; e o que tudo isso representa numa leitura mais ampla de seu contexto histórico: o descaso governamental da República Velha, fato quase generalizado pelo Interior do país, onde não funciona, frente ao poder tradicional dos coronéis, sequer a democracia formal.

2.2 A segunda ocorrência

A segunda ocorrência, em Fogo morto, da sequência de violência e fraternidade atinge o Mestre José Amaro, José Passarinho e o cego Torquato, espancados na cadeia. Suspeitos de estarem transmitindo informações a Antônio Silvino, são presos pelo Tenente Maurício e submetidos a uma sessão de tortura policial. Eles acabam sendo soltos pela intervenção do Coronel José Paulino, num gesto formal de “fraternidade”, sem o mesmo envolvimento caridoso da situação anterior ou do que acontece com Augusto Matraga e com Nando. Essa singularidade de Fogo morto impõe algumas questões elucidáveis em análise textual. Trata-se da indagação sobre o caráter e a finalidade da intervenção do Coronel, os interesses políticos e a demonstração de poder sobre a polícia (como também faz com Antônio Silvino, na invasão do Engenho Santa Fé).

Como se vê, as reflexões desenvolvidas até o momento sobre a relação entre literatura, violência e fraternidade ainda nos colocam em um campo praticamente inóspito. A configuração peculiar de cada enredo requer uma meditação cautelosa sobre a aplicabilidade dos conceitos teóricos. Em Fogo morto, por exemplo, a expressão de um sentimento de compaixão por parte de uma vizinhança do Mestre José Amaro, caindo sobre ela a responsabilidade, excluindo o pai da tomada de providência, sobretudo quando a loucura de Marta se manifesta em escala irreversível, anula as possibilidades

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de diálogo e soluções humanísticas para o problema. Apesar de esse quadro ser particular, na relação de pai para filha, a sociedade coronelista está implicada nele pela sua ausência, pela inexistência de instituições objetivas que propiciem a socialização da fraternidade. Nos dizeres da dialética adorniana, trata-se de uma presença negativa da ordem dominante.2

O mestre, por sua vez, é submetido às arbitrariedades do tirano policial, sendo vitimado por torturas e humilhações, sem o mínimo de respaldo na ordem constitucional republicana estabelecida no Brasil. O tempo presente do romance é o ano de 1911. A República, proclamada em 1889, com a Constituição de 1891, não traz o menor avanço social – em termos legais e de direito civil – ao interior nordestino.

Dentro de um quadro mais amplo de descaso governamental do Brasil em relação ao Interior, o desespero do mestre reflete a impotência das leis objetivas (tornando-as abstrações inaplicáveis) frente aos poderes tradicionais, seja o desmando coronelista, seja a prepotência policial que age com os pobres como se não houvesse limites. Tal panorama histórico, implicado sutilmente na narrativa, deve ser levado em conta para uma compreensão mais precisa da ineficácia social da fraternidade. Daí ela só funcionar, paliativamente e de forma pontual e circunstancial, nos gestos das pessoas mais próximas à situação.

Da surra familiar à surra na cadeia, é crescente o quadro de violência que não sofre nenhuma intimidação por mecanismos legais. No caso da ajuda prestada às vítimas por pessoas próximas, todo esse quadro mostra a involução: aquilo que foi idealizado pela burguesia como princípio revolucionário, a ser sedimentado para uma atuação sistemática e impessoal, reflui para os gestos pessoais que não superam o modelo cristão, centrado na boa índole dos indivíduos. A narrativa mostra, portanto, que a fraternidade não alcança o estatuto de sociabilidade para o qual foi projetada desde o Iluminismo. Não se cumpre, pois, uma das maiores ambições da burguesia: a meta de secularização do cristianismo, no que tange à comunhão positiva entre os homens e os povos. A própria consolidação da burguesia impede a realização dos ideais humanísticos preconizados por ela na modernidade.3

Um dos princípios da fraternidade, na interpretação de Giuseppe Tosi (BAGGIO, 2009, p. 56), é a concepção de que “existe em todos os homens, inclusive os mais desprezíveis, uma chama, uma centelha divina que não se apaga”. Na mesma linha de pensamento, Baggio (2009) vê a raiz modelar da fraternidade na crucificação de Cristo, fato que torna a todos irmãos. Céticos em relação à comprovação, no plano histórico, desses postulados tão otimistas e generalizados, averiguamos que, na literatura em estudo, os personagens mais pobres demonstram isso em suas ações, à revelia de qualquer intenção pessoal de ganhos materiais.

2 Para melhor compreensão da questão, é necessário recorrer à visão de Theodor Adorno (2009) sobre o negativo na filosofia política. Segundo ele, o negativo não se restringe à negação do estabelecido, ao contrário: é a presença do pró-prio estabelecido no que seria a sua antítese, diluindo-a, anulando-a, muitas vezes de forma sutil e até imperceptível. 3 A esse respeito, destacam-se as reflexões de Jürgen Habermas (1987) e as pesquisas do economista alemão Albert Hirschman (1989), ainda com pouca tradução no Brasil, como o ensaio publicado pela revista Novos Estudos Cebrap.

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Uma outra categoria concerne às marcas físicas da violência sobre o corpo das vítimas, o que rende comparações muito profícuas e se impõe como metonímias reveladoras de um período histórico. Em Fogo morto, Marta e José Amaro não têm cicatrizes na pele, mas marcas simbólicas de um sofrimento perpetuado: na primeira, a loucura, sem solução à vista, sendo ela recolhida ao hospício pela generosidade de alguns parentes e pessoas próximas, mas sem a menor garantia de uma vida mais amena na Tamarineira; o segundo, vítima de uma solução mais rápida e desesperada: o suicídio. A ausência de qualquer mecanismo objetivo para amenizar-lhes o desfecho, ao menos uma sugestão esperançosa, de cunho religioso, é a expressão mais contundente da ineficácia social da fraternidade. Comparados ao Mestre José Amaro, que, em seu desespero final, comete suicídio (ponto culminante de seu acúmulo de sofrimentos, que só faz aumentar sua impotência e sua incapacidade de enfrentar os problemas), Nhô Augusto e Nando destacam-se por um fim heroico. O ex-padre completa sua deseducação matando um soldado, adotando o nome de Levindo e fugindo para o sertão de Pernambuco como mais um desafio à ditadura; o outro torna-se “Augusto Matraga”, motivo mítico de um narrador – ou mais de um – que abre seu canto com a declaração da condição inefável de seu personagem, diluído em um tempo imensurável: a anulação do herói (“Matraga não é Matraga, não é nada”) remete-o a uma instância abstrata situada além da finitude e do sofrimento. O herói pode ser resgatado pela memória, pela tessitura de diversos rapsodos4, mas sua situação post-mortem, para além do destino comum dos outros homens, é elevada a uma espécie de divinização redentora, invertendo a pretensão do inimigo de que “Não tem mais nenhum Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas”. Essa declaração fatídica é sublimada na bela morte do herói, ainda que sua repercussão seja mínima. A narrativa, contudo, dá a entender que um motivo mítico, inicialmente gerado em um vilarejo, tem uma grandeza simbólica que se espalha pelo sertão mineiro, fato constante na poética rosiana.

Por fim – apenas um novo começo –, é preciso questionar se o gesto do Coronel, em Fogo morto, evitando a continuidade da tortura sobre os personagens pobres ou dos abusos do líder cangaceiro sobre um homem da própria classe de José Paulino – o Coronel Lula de Holanda –, caracteriza-se realmente como fraternidade. Ainda que a análise demonstre resultado negativo, é preciso questionar o sentido da incompletude do processo. Demonstrada resposta positiva, é preciso diferenciar a singularidade desse gesto daqueles encontrados em narrativas nas quais a fraternidade é exercida com abnegação, sem qualquer retorno para os altruístas. Uma das questões mais pertinentes dessa leitura é inserir tais fatos em um horizonte mais amplo de interpretação, sem deformar, obviamente, a construção da obra, e demonstrar a relação dessas ocorrências ficcionais com o contexto histórico em que se realizam. A leitura dessa situação, mesmo em representação artística, poderá contribuir para

4 A tese de Alcir Pécora de vários narradores do conto rosiano encontra-se no DVD Matraga: o uso das paixões. Disponível em: http://vimeo.com/66163616.

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uma visão mais crítica e procedente da rejeição histórica da fraternidade por parte das classes dominantes. No caso do Brasil, a leitura do contexto implicado na obra mostra a extrema dificuldade de real sedimentação dos valores republicanos que as próprias classes dominantes herdaram da Revolução Francesa e usaram como artifícios ideológicos para a derrubada do Império.

Em Fogo morto, a dupla intervenção do jovem José Paulino – frente ao cangaceiro Antônio Silvino e ao Tenente Maurício – demonstra uma ampliação gradativa do seu mandonismo local. Diferente da decadência econômica de Lula de Holanda, acentuada, entre outros fatores, por sua condição pessoal grotesca, a postura de José Paulino indica a consolidação de todo um poder regional centrado nele. Sua capacidade de controlar, com astúcia e estratégias de boa vizinhança, tanto a polícia quanto o cangaço, coloca-o acima da ordem legal e do banditismo, ao mesmo tempo em que ele se fortalece pela cooptação de ambos. Embora José Paulino não seja protagonista, sua representação, de fundo, em aparições muito pontuais, perfaz um quadro muito mais significativo que o enfoque direto dos três protagonistas, no que concerne ao funcionamento do poder. Essa condição nos leva a inferir que ele é incapaz de exercer a fraternidade, nos dois modelos históricos aqui delineados: a fraternidade social, de cunho iluminista, seria um sério entrave para a centralização do poder, além de impossível onde os avanços democráticos são mínimos e inoperantes. O Coronel acima do banditismo – em conciliação com o cangaço, não em combate – concorre para uma certa anulação da função da polícia; o Coronel acima do Tenente Maurício é a dupla negação de tudo o que o Estado representa em termos policiais. A única força social decisiva é a da economia açucareira que, nos limites regionais, encarna a própria lei e tira proveito máximo de outras forças relevantes, legais e ilegais. Esse tipo de hegemonia, atingido por negociações feitas por práticas personalistas e ao mesmo tempo dentro de uma lei vulnerável e volúvel, distancia-se dos ideais republicanos preconizados historicamente pelo próprio poder do capital.

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A “ideia-força quilombola” e a denúncia da violência em contos da literatura negra

brasileira contemporânea

Denise Almeida Silva

Este estudo propõe a análise de formas de violência presentes na literatura afro-brasileira contemporânea a partir da perspectiva crítica trazida pela “ideia-força” de resistência quilombola. A noção é discutida com base em estudos pioneiros de Abdias do Nascimento, nas décadas de 1970 e 1980. Neles, o conceito de quilombismo é proposto a partir da continuada violência perpetrada contra o negro - migrante nu roubado de seu continente natal e continuamente agredido, espoliado e desconsiderado ao longo do Brasil colônia e república - e da resistência a esse processo.

Uma vez que essas práticas envolvem saberes e ações que implicam, ultimamente, a desumanização dos africanos e seus descendentes, opto por trazer esta discussão para o campo da ética. Assim, formas de violência expressas em contos selecionados são analisadas em conjunção com as noções de liberdade e autonomia que subjazem à constituição do sujeito ético, e contrastadas, por um lado, com a negação da atribuição dessa agência ao africano e seus descendentes, e, por outro, com os fundamentos éticos do quilombismo. Foram selecionados, para análise, os contos “Abraço do espelho”, de Cuti, e “A gente combinamos de não morrer”, de Conceição Evaristo, os quais permitem contrastar o ideal quilombola de paz e realização plena das potencialidades e direitos humanos com sua negação através da recusa a esses direitos.

O fato de que o estudo se faz a partir de centramento em contos da vertente afro-brasileira delimita a análise da violência a um corpus literário muito específico no seio da literatura brasileira contemporânea, o qual tem características próprias. Inicialmente, situo o processo, ainda em curso, de formação e afirmação da literatura afro-brasileira dentro do corpus maior da literatura brasileira, e o caráter de contranarrativa que tem assumido ao expor temas sobre os quais a sociedade e a literatura brasileira canônica têm silenciado, como o racismo. Em seguida, traço

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associações entre ética, violência e quilombismo, passando, finalmente, a exemplificar, através da análise de contos, como este último, enquanto “ideia-força”, entra na literatura afro-brasileira contemporânea por meio da construção de contranarrativas de denúncia a um circuito opressivo de violências.

A literatura afro-brasileira e a “ideia-força” quilombola: violência e ética

Desde há muito, vozes pioneiras isoladas como as de Domingos Caldas Barbosa (1737-1800), Maria Firmina dos Reis (1825-1917), Luiz Gama (1830- 1882), Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1891-1922), Lino Guedes (1906-1951), Solano Trindade (1908-1974) e Carolina Maria de Jesus (1914-1982) vêm expressando a subjetividade negra na literatura brasileira.1 Contudo, é sobretudo, a partir dos anos 1970, quando o movimento negro brasileiro se rearticula com expressividade política a nível nacional, que se intensifica a formação de coletivos e associações negras, muitos dos quais têm, entre seus membros, elementos que unem ao ativismo político o ativismo literário.

Como resultado dos esforços envidados desde então, um grupo expressivo de escritores/as, bem como algumas vozes críticas acadêmicas, vêm firmando e afirmando, no seio da literatura brasileira, um corpus literário específico que é, como a escritora Conceição Evaristo define, marcado “[...] por uma subjetividade construída, experimentada, vivenciada a partir da condição de homens negros e de mulheres negras na sociedade brasileira” (EVARISTO, 2011, p. 131). A escritora destaca, ainda, como traços recorrentes relevantes dessa literatura,

[...] a afirmação de um pertencimento étnico; a busca e a valorização de uma ancestralidade africana; a intenção de se construir como um contradiscurso literário a uma literatura que estereotipiza o negro; a cobrança da reescrita da História Brasileira no que tange à saga dos africanos e seus descendentes no Brasil; enfática denúncia contra o racismo e as injustiças sociais que pesam sobre o negro na sociedade brasileira. (EVARISTO, in PEREIRA, 2007, p. 285-286).2

Destaco, do registro de Evaristo, características da literatura afro-brasileira contemporânea especialmente relevantes para este estudo: 1) a afirmação e valorização

1 A escritora e ativista negra Miriam Alves (2010) chama a atenção para o fato que, desde o período colonial, figura, em todos os campos da atividade artística, o trabalho de afrodescendentes; apesar de desconhecida e não canonizada, a produção de escritores negros esteve sempre presente nas entidades e manifestações negras. Em seu BrasilAfro autorrevelado: literatura brasileira contemporânea (2010), Alves traz uma boa introdução à li-teratura afro-brasileira e suas articulações com a história e lutas reivindicatórias da diáspora africana no Brasil. Informações mais detalhadas sobre a trajetória do Movimento Negro Brasileiro podem ser buscadas em Petrônio Domingues (2007).2 A declaração da escritora evidencia, ainda, um dos aspectos enfatizados pelos estudiosos da literatura afro-brasileira: longe de ser definida apenas em termos étnicos, a compreensão da natureza desse corpus literário deverá repousar sobre um conjunto de características. Veja-se, a esse respeito, por exemplo, o ensaio “Por um conceito de literatura afro-brasileira” (DUARTE, 2011).

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do pertencimento étnico e cultural negro e, por outro lado, a denúncia de repetidas injustiças sociais e práticas racistas; 2) o caráter de contradiscurso dessa literatura.

Inicio pela segunda das características destacadas. Relatando a virtual inexistência de personagens negros na literatura brasileira, DalCastagnè (2008) raciocina que a literatura reflete, em suas ausências, mais ainda do que naquilo que expressa, características centrais da sociedade brasileira. Assim sendo, a quase total eliminação de personagens negros revela uma outra ausência, desta vez temática: o racismo, eliminado de nossas letras, segundo a autora, dada a persistência do mito da “democracia racial”.

Contudo, a eliminação temática da “opressão cotidiana das populações negras e [d]as barreiras que a discriminação impõe às suas trajetórias de vida” (DALCASTAGNÈ, 2008, p. 87) não significa que esta esteja totalmente ausente da literatura brasileira contemporânea. Ausente, é verdade, das obras publicadas pelas grandes editoras, como as que formaram o corpus da pesquisa desenvolvida por DalCastagnè3, é, como se viu, intensamente presente nos textos da vertente afro-brasileira da literatura contemporânea. Cabe aqui ressaltar, como o faz a autora, que não se tem em mente noção ingênua de mímese literária: o problema, como a pesquisadora resume, “não é o de uma imitação imperfeita do mundo, mas a invisibilização de grupos sociais inteiros e o silenciamento de inúmeras perspectivas sociais, como a dos negros” (DALCASTAGNÈ, 2008, p. 89).

A esse respeito, lembro, com Pollak (1989, p. 4), que é necessário que sejam considerados “[...] os processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e formalização da memória”. A forma plural é relevante aqui, uma vez que a declaração é feita no curso de crítica à concepção de uma memória coletiva una e uniforme, a qual desconsidera a presença de grupos marginais, cuja memória e história contrasta com a dos grupos dominantes. Assim, narrativas outras correm subterrâneas, operando um trabalho de subversão que vem a aflorar quando, através de conflito entre as narrativas dominantes e dominadas, estas entram em disputa, propiciando a emergência de histórias e memórias minoritárias. Nesse sentido, o persistente trabalho dos coletivos e escritores negros traz à luz outra narrativa, ou, mais acuradamente, uma contranarrativa a que emerge das páginas da ficção brasileira contemporânea.

Volto, agora, ao destaque dado ao registro, feito por Evaristo, acerca dos temas recorrentes na literatura afro-brasileira, o que faço para ressaltar a estreita vinculação desta com a violência: discriminações e injustiças sociais correspondem a formas de violência, já que, como Bonamigo (2008) define, esta se estende para além de atos de agressão física, englobando, também, aqueles resultantes de poder, inclusive ameaças, intimidações e procedimentos associados a formas variadas de desumanização. É assim que Alves (2010), ao citar a afirmação de Figueiredo (2009) de que a violência,

3 A pesquisa, promovida por DalCastagnè, sobre o personagem do romance brasileiro contemporâneo, envolveu 258 romances, publicados entre 1990 e 2004, pelas editoras apontadas como as três mais representativas pelo país em consulta preliminar: Companhia das Letras, Rocco e Record.

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juntamente com relações afetivas e história/memória ancestral, é um dos três grandes temas recorrentes na escrita feminina nos Cadernos negros, estende a constatação da autora à literatura afro-brasileira em geral. Alves (2010) lista, como evidência da recorrência dessa temática, narrativas que incluem: preconceito/exclusão, aborto, prostituição e formas de violência autoinflingidas, físicas e mentais, perpetradas contra o próprio corpo, tanto para adequá-lo a padrões estéticos eurobrancos como para diminuir ocorrências de rejeição e segregação racial.

Os atos elencados por Alves poderiam ser pensados a partir de tipologia proposta por Dahlberg e Krug (2012), autoras que admitem três amplas categorias de violência: a autoinflingida, subdivida em agressão autoinflingida e comportamentos suicidas; a interpessoal, verificada tanto no âmbito da família ou parceiros íntimos como em comunidade; e a coletiva. Contrastando com as duas categorias anteriores, estabelecidas a partir das características daqueles que praticam o ato violento, a violência coletiva sugere motivos para sua prática por grandes grupos sociais, subdividindo-se em violência social (cometida com o fim de praticar um plano coletivo de ação social, como crimes de ódio, atos terroristas ou a violência de gangues); violência política (guerras e outras violências praticadas pelo Estado) e econômica (ataques motivados pelo lucro que impedem acesso a serviços essenciais, ou os que criam divisão e fragmentação econômica).

O fato de que Dahlberg e Krug (2012), mesmo para estabelecer categorias amplas, foram incapazes de se ater a um critério único, atesta a dificuldade de categorizar um fenômeno tão englobante e diverso como a violência. Embora diferentes tipologias distingam entre atos individuais e coletivos, não só a natureza abarcada por cada um destes é diversa em cada tipologia, como parece haver, sobretudo, dificuldade em caracterizar a violência coletivamente produzida. Veja-se, por exemplo, a classificação produzida pelo Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (CIIIP) (BONAMIGO, 2008), segundo a qual a violência individual é a que se manifesta em nível interpessoal, e inclui fenômenos tão diversos como a segurança civil, e as violências anômica, doméstica e contra crianças. Essa mesma tipologia define violência coletiva como aquela praticada ativa e diretamente pela sociedade, ou por meio de grupos significativamente importantes, mas cria categorias diferentes para o que chama de violência estrutural (praticada dentro da estrutura social, gerando desigualdades), violência cultural (uso da diferença para inferiorizar ou desconhecer o outro) e violência estatal (resultante de instituições legitimadas para o uso da força, como processos armamentistas e tecnologias de destruição).

O que quero ressaltar é a necessidade de critério mais claro, e ao mesmo tempo menos segmentado e mais abrangente, para a análise da violência. Nesse sentido, é convidativo pensar esse fenômeno social a partir da noção de ética, o que faço invocando reflexões tecidas por Marilena Chauí.

Como Chauí (2000) didaticamente explica, o campo ético abrange os valores e obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as virtudes, as quais são realizadas por um sujeito moral, que é o principal constituinte da existência ética.

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Para a constituição de tal sujeito, é indispensável que este seja consciente, dotado de vontade, responsável e livre. A autora explica a relevância de cada uma dessas atribuições: consciência implica a capacidade de reflexão e, pois, a possibilidade de reconhecer a si e aos outros como sujeitos éticos; a vontade aponta tanto para a capacidade de deliberação e escolha como para a possibilidade de controle de desejos, impulsos e tendências, conforme estas estejam em conformidade com a consciência; a responsabilidade permite avaliar os efeitos e assumir consequências, tanto com referência ao próprio indivíduo como aos outros. Finalmente, a liberdade, conforme a filósofa sublinha, “não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta” (CHAUÍ, 2000, p. 434).

A partir dessas características, pode-se deduzir que o campo ético abrange dois polos indissociáveis: o agente ou o sujeito moral e os valores morais, ou virtudes éticas. Será agente ético aquele que, entre a passividade e a atividade, optar por esta última. Isso porque, nesse contexto, ser passivo é ser dominado, ou por inclinações, circunstâncias ou pela vontade de um outro – em qualquer dessas circunstâncias um sujeito abdica ou é forçado a abdicar da própria consciência, vontade, liberdade e responsabilidade. Chauí (2000) é clara: se a ética concebe o sujeito como essencialmente racional, voluntário, livre e responsável, então esvaziá-lo dessas características equivale a tratá-lo como não humano, e, portanto, a violentá-lo em sua natureza, e isso nas cinco diferentes acepções que distingue no termo:

A ética se opõe à violência, palavra que vem do latim e significa: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; 5) consequentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror. (CHAUÍ, 2007).

A vinculação entre ética e quilombismo pode ser reconhecida tanto quando este é pensado como fenômeno histórico, como quando se consideram, também, suas ressonâncias ideológicas e expressão nas artes. De fato, um e outro são inseparáveis: a finalidade básica do Quilombismo é gerar uma sociedade “livre, justa, igualitária e soberana”, capaz de promover a felicidade do ser humano (NASCIMENTO, 2009, p. 275); era este, também, o objetivo dos quilombos históricos.

Todo o processo que marcou a entrada no negro no Brasil e sua exploração econômica e social foi fundamentalmente antiético. O tráfico negreiro só foi possível a partir da ciência racista do século XIX, a qual retirava do africano a capacidade de agência, definindo-o como bruto, com base em teorias como as de Arthur de Gobineau (1816-1882) e Houston Stewart Chamberlain (1855-1927). A essa prática primeira de invisibilização,

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que corresponde a desnaturar, segue-se outra, que ela autoriza: o escravismo, o qual nada mais foi senão o uso de força contra a vontade e liberdade do africano. Como Nascimento (1980, p. 58) retoricamente indaga, “Quem nega que a aristocracia colonial portuguesa, e todo o grupo colonizador do Brasil foram incondicionalmente racistas e trataram os africanos escravizados como destituídos de qualquer humanidade?”.

Não surpreende, pois, que os escravizados tenham praticado formas variadas de resistência, das quais interessa discutir, aqui, o quilombismo. Aos olhos da Coroa, o quilombo se afigurava como prática ilegal, já que para os senhores de escravos os aquilombados eram propriedade perdida, e população insurreta e perigosa. Para os negros, contudo, o quilombo significava “reunião fraterna e livre, solidariedade, sobrevivência, comunhão existencial (NASCIMENTO, 2009, p. 263). Organizados de forma associativa, muitas vezes em lugares de difícil acesso (o que facilitava sua defesa) e com organização econômica e social própria, os quilombos foram, na visão de Nascimento (1980, p. 255), “genuínos focos de resistência física e cultural”, que proporcionavam a seus ocupantes a fuga à violência do sistema escravista e a continuidade de sua herança cultural africana.

Segundo a historiadora Nascimento (2006) resenha, é ao final do século IX, que o termo quilombo, empregado pela retórica abolicionista, passa a incorporar o significado de instrumento ideológico contra formas de opressão; é ainda sobretudo como ideologia que o conceito adentra o século XX, e sua mística manifesta-se em um momento de redefinição da identidade nacional, como foi a Semana de 22. Cerca de meio século mais tarde, nos anos de chumbo, a retórica do quilombo como sistema alternativo passa a ter, na linguagem de Beatriz Nascimento (2006, p. 123), a função de “correção da nacionalidade” face à ausência de cidadania plena e a obstrução de canais reivindicatórios. Por essa época, alcança sucesso significativo a peça Arena contra Zumbi, uma contranarrativa à história oficial que busca no quilombo metáfora para a resistência popular às forças da opressão. A partir dos anos 1970, quando se verifica a reorganização e revitalização do movimento negro brasileiro, o quilombismo, que havia servido como forma de reação ao colonialismo de fato, reage ao colonialismo cultural. É então fundamental o papel pioneiro de Nascimento (1980), a quem se deve a percepção e registro inicial do quilombismo no processo histórico-cultural da população afro-brasileira.

Em sua obra O Quilombismo, Nascimento (1980) reúne sete documentos de militância pan-africanista, dos quais destaco o sétimo: “Quilombismo: um conceito científico emergente do processo histórico cultural das massas afro-brasileiras”. Nesse documento, a definição do então emergente conceito de quilombismo é feita a partir da denúncia de um quadro de violência contra a memória negra, a qual, o teórico ressalta, tem sido alvo de graves distorções, através da negação de seu passado histórico, que é reduzido à história da escravidão transatlântica. Tal negação é preocupante, porque ter um passado equivale a partilhar a responsabilidade pelo destino e futuro da comunidade de pertença; no caso da população negro-brasileira, equivaleria, como Nascimento (2009, p. 109) raciocina, a preservar a integração com o continente de

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origem, e assumir, também, a condição de “cidadãos genuínos e edificadores deste país”, a qual geralmente não lhe é atribuída, apesar de, por longo tempo, ter se constituído em mão de obra fundamental para o desenvolvimento econômico do país.

Considerando o modelo quilombista como uma “ideia-força”, “energia que inspira modelos de organização dinâmica desde o século XV” (NASCIMENTO, 1980, p. 256), o pesquisador proclama seu fundamento ético: assegurar “a condição humana do povo afro-brasileiro, há tantos séculos tratado e definido de forma humilhante” (NASCIMENTO, 1980, p. 264, ênfase acrescentada).

Nascimento (1980) registra a percepção de que o ideal quilombista encontra-se difuso, mas consistentemente permeando todos os aspectos da vivência afro-brasileira; via de regra, reprimido pelas estruturas dominantes, é, outras vezes, sublimado através de mecanismos de defesa fornecidos pelo inconsciente individual ou coletivo. Na literatura, essa ideologia capaz de despertar a resistência e organizar a reação à violência injusta e discriminante transparece não apenas como ideal igualitário e fraterno, mas, sobretudo, como indicativo de descontentamento com uma realidade opressiva e injusta. Como Evaristo (2010, p. 133) lembra, a palavra poética é, mais do que modo de narração do mundo, a revelação de “utópico desejo de construir um outro mundo”. Antes que refletir o ser, aponta para o mundo que “poderia ser”, o que, como a escritora raciocina, revela, através do desejo por um outro mundo, o descontentamento com uma ordem estabelecida. Constrói-se, assim, contranarrativa que ocupa um lugar antes vazio, e atua como contrafala ao discurso oficial, detentor do poder.

A autora percebe uma “mística quilombola latente ou patente, como forma de defensiva e afirmativa do negro, na sociedade brasileira” (EVARISTO, 2010, p. 138). Esta é visível, por exemplo, na adoção, por várias organizações no passado, do nome Quilombo ou Palmares, termos que carregam a sugestão da ação “quilombola como um paradigma de organização social entre os negros brasileiros, capaz mesmo [...] de mobilizar as massas negras dado o seu apelo psicossocial profundamente imerso nas raízes da história, cultura e vivencia afro-brasileira” (EVARISTO, 2010, p. 138).

Para além da tematização de Zumbi e do Quilombo de Palmares, o ideal quilombola manifesta-se, na literatura afro-brasileira contemporânea, no contexto de estratégias de resistência desenvolvidas com vistas a buscar modos de enunciação positivos na descrição daqueles que, por séculos, tiveram seu corpo violado e foram alvos de todo o tipo de violência: daí por que frequentemente esses textos assumem caráter denunciatório, como é o caso dos textos analisados a seguir.

A expressão da violência em “Abraço do espelho”, de Cuti, e “A gente combinamos de não morrer”, de Conceição Evaristo

Publicado por Cuti nos Cadernos negros v. 32, o conto “Abraço do espelho”

ressalta a introjeção de paradigmas inferiorizantes com relação à cultura e fenótipos do ser negro, o que leva a sua negação e até mesmo rejeição; “A gente combinamos

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de não morrer”, publicado por Conceição Evaristo em sua segunda coletânea de contos, Olhos d´Água (2014), narra um frustrado pacto de sobrevivência firmado por um jovem que, juntamente com sua família e demais moradores da favela onde mora, diariamente vivencia os desafios de viver em local dominado por narcotraficantes. Como se percebe, ambas as narrativas estão longe de tematizar Zumbi dos Palmares, ou qualquer outro herói ligado ao quilombismo histórico. Contudo, ambas celebram formas de enfrentamento e resistência contemporâneas, quotidianamente vivenciadas por populações afetadas por racismo e injustiças sociais de toda a ordem. Abuso físico e psíquico, e formas de intimidação e opressão, embora de natureza diferentes, estão presentes nas duas narrativas.

No conto “Abraço do espelho”, a protagonista, Delinda, declara-se em “dilema íntimo de seu processo de identidade” (CUTI, 2009, p. 27): pobre, sente que deve apresentar-se da forma mais adequada possível na entrevista de emprego que se aproxima. Como é negra, supõe que seria mais bem aceita se submetesse os cabelos a um alisamento. Contudo, na escola de samba, integra a Ala das Guerreiras, cuja proposta, para aquele Carnaval, era denunciar os “cento e vinte anos inócuos da Lei Áurea, alertando para a escravidão estética vigente” (CUTI, 2009, p. 28). Evidentemente, nesse contexto, não pode apresentar-se com cabelos alisados, pois Tilai, a líder da ala, conclama suas guerreiras a proclamar seu orgulho racial: “Não podemos deixar de honrar o que a natureza nos presenteou no alto de nossas cabeças” (CUTI, 2009, p. 34).

A proclamação de Tilai às mulheres de sua ala no sentido de exibir uma estética própria, que revelasse sua dignidade e beleza de acordo com seu fenótipo natural, constitui-se em incentivo à resistência contra pressões sociais no sentido de desnaturar a afrodescendente. Aceitar a pressão no sentido de mudar a aparência, equivaleria, como diz a líder, a desonrar a natureza e, pois, a ser coagido e constrangido, o que caracterizaria brutalidade tanto psicológica como física, levada a efeito sob intimidação. Se, por um lado, Delinda proclama, com orgulho e prazer, a recém descoberta autoestima e orgulho étnico que a levam a valorizar e gostar de seu cabelo crespo, sua mãe entende que sua aparência pode ter grande significado na procura do emprego e a aconselha a mudá-la.

Essa dualidade lembra a distinção, registrada por Munanga (2012), entre uma identidade objetiva, composta por características tais como as culturais e linguísticas, e uma identidade subjetiva, que corresponde à maneira como o indivíduo ou grupo se define ou é definido pelos seus outros. No conto em estudo, o conflito se faz, pois, a partir de uma autodefinição ou autoatribuição positiva, operada a partir da visão da própria protagonista e de alguns membros de sua comunidade étnica (há diferentes visões dentro da comunidade, como se verá mais tarde), e a presunção de uma identidade que lhe será atribuída por grupos étnicos outros, hegemônicos, a qual ela antecipa como provavelmente negativa, formulada a partir da cor da pele e do cabelo, elementos que atestam o pertencimento à raça negra.

Em seu estudo sobre corpo e cabelo como ícones de construção da beleza e da identidade negra, Gomes (2002) pondera o efeito duplo e contraditório que o racismo

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desenvolve sobre os negros: se, por um lado, fragmenta-lhes a identidade, por outro, impulsiona-os à busca de referências identitárias africanas. Contudo, o fato de que estas foram ressignificadas em nossa sociedade a partir do processo de miscigenação racial e cultural que sempre privilegiou os padrões eurocêntricos e levou à implementação de políticas de branqueamento leva a um conflito racial coletivo do qual, como Gomes (2002, p. 22) sublinha, participam todos os brasileiros:

O cabelo do negro expressa o conflito racial vivido por negros e brancos no Brasil. [...]. Considerando a construção histórica do racismo brasileiro, no caso dos negros o que difere é que a esse segmento étnico/racial foi relegado estar no polo daquele que sofre o processo de dominação política, econômica e cultural e ao branco estar no polo dominantes. [...]. Ver o cabelo do negro como “ruim” e o do branco como “bom” expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode significar a tentativa do negro de sair do lugar de inferioridade ou a introjeção deste. Pode ainda representar um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas de usar o cabelo.

Comportamentos que conduzem um indivíduo a rejeitar-se a si mesmo e a sua herança racial revelam uma carga expressiva de violência uma vez que, como Todorov (2001, p. 88) registra, o reconhecimento constitui-se no “oxigênio da existência”. Segundo o autor, toda a coexistência implica reconhecimento, já que, como ser social, o indivíduo necessita ter sua existência reconhecida e seu valor confirmado pelos que o cercam. Reconhecimento e confirmação são, assim, duas modalidades do processo de reconhecimento, cuja falha leva à rejeição e à negação, ambas integrantes, também, do processo de reconhecimento. A rejeição opera à semelhança da negação gramatical, a qual, ao negar, afirma a existência daquilo mesmo que nega; na negação, porém, a ofensa infligida ao sujeito é bem mais grave, já que este, condenado ao silêncio e à solidão, se vê ameaçado pelo nada.

No ambíguo processo de rejeição/aceitação de seu corpo e cultura, Delinda oscila entre preservar sua natureza física ou alterá-la. A tensão é enfocada já ao início do conto, quando a personagem diz-se “atormentada”, uma aflição que se prolonga já por duas semanas e que apenas consegue “sufocar” – e, portanto, abafar, mas não extinguir – quando, na quadra da escola de samba, o som da bateria e as cores da escola de samba “eriçam” suas raízes.

No confronto entre seus dois interesses, integrar dignamente a ala das mulheres da Escola de Samba Unidos da Africanidade e a possibilidade da manutenção de sua real aparência, opõem-se à necessidade de “adequação” da mesma, através de processo de alisamento, e obtenção do novo emprego. Tal “adequação” se faz necessária, sobretudo, porque, como Gomes (2002) registra, no Brasil, a discriminação racial que incide sobre os negros ocorre não somente em decorrência de seu pertencimento étnico, mas pela conjugação deste com a presença de sinais diacríticos inscritos no corpo, os quais remetem a uma ancestralidade negra e africana.

Assim, Delinda desenvolve o processo que Gomes (2002, p. 182) descreve como o desenvolvimento de “um olhar desencontrado” em relação a si mesma, à

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sua raça e à sua cultura. A pesquisadora adverte que, no movimento de rejeição/aceitação do corpo negro, coexistem atitudes opostas. O sentimento de rejeição revela construção sócio-político-cultural que apela para a naturalização da inferioridade do afrodescendente. Aqueles que são social e psicologicamente convencidos dessa realidade desenvolvem estratégias de aproximação da posição socialmente mais desejável. Assim acontece, no conto, com as mulheres da Ala das Guerreiras que se recusam a participar do protesto, “com” Dona Juliana, mãe de Delinda, a qual a aconselha a evitar namorar homens negros, e prosseguir com o alisamento do cabelo, para não “prejudicar a filha no jogo da aceitação social”, e com Nzinga, que modifica a aparência capilar e afirma, com orgulho: “Eu consegui mudar e não me arrependo. Gasto menos e gosto mais de mim” (CUTI, 2009, p. 29-30). Por outro lado, a manutenção do cabelo de acordo com seu padrão natural pode ser visto como expressão visível de afiliação do sujeito a um polo social e racial. Nesse caso, os traços fenotípicos são preservados e valorizados a partir da assunção de orgulho à pertença racial e cultural própria.

É apenas pressionada pela penúria econômica que Delinda aceita conviver com uma estética que realmente não aprova, e que a faz sentir “estranha, [dividida] em si mesma” (CUTI, 2009, p. 34). Sente-se envergonhada ao lembrar a injunção da líder da escola de samba a que todos valorizem sua aparência natural. O dilema aumenta quando considera a declarada preferência do namorado pelo cabelo crespo. Decide-se: encrespa o alisamento; um olhar ao espelho certifica-a de que tomara a decisão correta.

O final do conto reserva surpresa: na entrevista, na empresa de cosméticos, é recebida por executivo bem vestido, negro, em cujo sucesso profissional Delinda antevê sua própria possibilidade de ascensão. A impressão é reforçada pela informação de que a empresa está investindo em linha de produtos étnicos. Assim, finalmente apaziguada consigo mesma e com sua herança cultural, a personagem sente-se leve, e desfila, livre e solta, “voando igual a um beija-flor” (CUTI, 2009, p. 38).

Apesar do final feliz, é inegável que o conto expõe formas de morte simbólicas: a autonegação, motivada pelo desejo de aceitação e o temor da rejeição racista, e a negação e rejeição do ser negro por seus outros. Por outro lado, apesar de registrar, também, deliberado entorpecimento como forma de evasão da realidade, “A gente combinamos de não morrer” delineia ambiência em que a presença de agressões variadas e a morte física estão marcadamente presentes.

Contrastando com o primeiro conto analisado, em que o texto é narrado retrospectivamente, de forma linear, a partir do conhecimento de um desenlace feliz por um narrador onisciente que parece simpatizar com o drama de Delinda, o conto “A gente combinamos de não morrer” apresenta uma estrutura complexa. A narrativa, fragmentada, vem ao conhecimento do leitor através de três personagens diferentes, que se alternam na exposição de seu drama vivencial – o protagonista, Dorvi, sua esposa, Bica, e a mãe desta, Dona Esterlina. A estratégia narrativa proporciona a visão do delicado equilíbrio entre a morte e a vida enfrentado pelos moradores da favela a partir de diferentes perspectivas: a do protagonista, pessoalmente envolvido com o

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tráfico de entorpecentes, e a das mulheres da família, que diferem tanto quanto ao tipo de relacionamento com o protagonista (a posição de mulher e mãe gera perspectivas diferentes na avaliação da iminência da morte de Dorvi) quanto na forma como enfrentam a violência quotidiana.

Chama a atenção, de início, o pacto firmado pelo protagonista, o qual é expresso já no nome do conto: antes que um pacto de vida, Dorvi e seus companheiros formulam a expectativa de evitar a morte. Ao invés de processo de crescimento, renovação e transformação, viver é, para Dorvi e os seus, adiar o momento em que cessarão de sobreviver. Nesse contexto, é profundamente expressivo o desenvolvimento das metáforas da cinza e do pó, que ambivalentemente lembram a desintegração do ser na morte e a droga pela qual os traficantes matam e morrem.

Todo o conto desenvolve-se a partir de uma ambiência de descaso para com a vida: do cotidiano da comunidade marginal enfocada no conto fazem parte medo, fome e morte. Já a frase inicial introduz banalidade com que o extermínio é praticado por indivíduos ainda muito jovens: “A morte brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos” (EVARISTO, 2014, p. 99). A seguir, o texto chama a atenção para a fumaça que se ergue do que parece ser apenas um “monturo de lixo”, mas é, na realidade, proveniente de corpos descartados. Como o protagonista, Dorvi, raciocina, nesse contexto a vida é “capim, mato, lixo, é pele e cabelo. E é e não é” (EVARISTO, 2014, p. 100). Note-se a progressão da vegetação desprezível, feita para ser pisada, à vegetação de maior envergadura, mas igualmente sem serventia, e, como tal, comumente arrancada, ambas classificadas como lixo.

O fato de que o corpo humano é metonimicamente sugerido por pele e cabelo não parece ser fortuita. Trata-se de um conto cujos protagonistas são marginais, pobres e negros, como se pode deduzir a partir da maneira como Dona Esterlina refere-se a ator negro como modelo que poderia ter sido imitado por um de seus filhos, já falecido: “Idago era tão bonito! Podia trabalhar na televisão, feito aquele negro que é ator” (EVARISTO, 2014, p. 102). No contexto da negritude, corpo e cabelo são frequentemente tomados como sinais diacríticos, índices de diferença racial facilmente perceptíveis e, por isso mesmo, alvo de comentários e comportamentos racistas.

Se o corpo-molambo que se volatiza em fumaça acentua a indiferença para com a vida humana, a figura do pó, desenvolvida ao longo do texto, sugere sua transitoriedade (somos pó e ao pó voltaremos). Da sacada da casa do chefe do tráfico, contemplando o mar, Dorvi dimensiona seu lugar no universo em que vive:

[...] Grande é o mar. Quando não estou com a arma por perto, me borro de medo. Tenho vontade chorar. Olhando o mar lá de cima, vi que pequeno sou eu. O outro, o que me fornece, estava na sala com os amigos e me chamou para dentro. É um pessoalzinho meio besta. Não tenho ilusão. O que temos em comum é o pó do qual somos feitos. É o pó que nos faz, mais nada. Mas o meu pó corre mais perigo. Meu pó vira cinza rápido. (EVARISTO, 2014, p. 104).

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Como se vê, o motivo da cinza retorna, com variantes. Ante a prepotência dos controladores do tráfico, Dorvi lembra a simplicidade de elemento que a todos iguala: o pó. Logo este elemento passa ambiguamente a sugerir tanto o pó a que retorna o ser humano como o que dá riqueza ao traficante. Contudo, mesmo aí há gradações: o “pó” de alguns corre mais perigo que os outros. Qualquer que seja a situação, não há dignidade ou grandeza associada a ela, nada que sugira valor à natureza humana.

Contrastando com a violência praticada em “Abraço do Espelho”, narrativa em que, para além do abuso psíquico, a manifestação física da violência limita-se à violação da natureza capilar, o conto de Evaristo (2014) apresenta agressões que se intensificam, variando da coação e constrangimento à tortura e ao assassinato. Nesse contexto, a iminência da morte intensifica o desejo pela vida. Avaliando a rapidez com que seu corpo poderá ser consumido, Dorvi deseja a companhia da família: quer que a mulher, Bica, e o bebê a ele se ajuntem, ainda que seja no fundo do mar. O anseio se intensifica quando descobre ter sido traído, o que leva a reflexões sobre o valor da vida, família e as desigualdades e injustiças sociais:

Quero fazer uma viagem profunda, pro fundo do mar-amor. Predileta minha, o putinho meu e eu, os três... A viagem funda que afunda. A vida vale? A dívida é minha? Com quem dividir essa dívida? E essa dúvida? Dileta minha, putinho meu... (EVARISTO, 2014, p. 104).

A dor da separação do filho, ainda bebê, traz de volta a figura do pó, agora associado ao nascer da vida, já que o “pó contaminado”, por ele comercializado lembra-lhe ainda outro pó, o talco: “Mas que merda, pó contaminado, até parece talco para por na bunda de neném. Pois é, meu filho nasceu” (EVARISTO, 2014, p. 100).

A questão da vitimização, também, dos não diretamente envolvidos no comércio ilegal, visível nas reflexões de Dorvi, é intensificada ao longo das seções do conto narradas a partir do ponto de vista e voz de sua mulher e de sua sogra. Veja-se, por exemplo, a transição entre a narração de Dorvi e a primeira fala de Bica, em que o termo medo é reiterado com efeito intensificador:

Bica se afastou como se o filho fosse só dela. Não sei para que o medo.

Não sei porque o medo, pensou Bica. Se ao menos o medo me fizesse recuar, pelo contrário, avanço mais e mais na mesma proporção desse medo. É como se o medo fosse uma coragem ao contrário. Medo, coragem, medo, coragemedo, coragemedo de dor e pânico. (EVARISTO, 2014, p. 100).

Nove vezes, se incluído na contagem o composto “coragemedo”, a palavra medo é reiterada em dois curtos parágrafos. São, porém, repetições propositivas, com força expressiva ligada à expressão temática. A primeira delas, ao início da fala de Bica, ecoa o medo do marido, com importante modificação: se a Dorvi intriga a serventia

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do medo, sua mulher surpreende-se com sua causa, já que não cumpre a função de alerta ou antídoto contra si próprio. Ao contrário, a repetição da exposição ao medo embrutece e enrijece.

É justamente esse coragemedo que fortalece a Bica. Para ela, bem como para a população acuada, a morte é leve como a poeira, e a vida confunde-se com o pó branco de fumaça adocicada que tantas vezes inala. Pó, traficantes e morte são tríade que bem conhecem, como fica claro quando, ao som de repetidos tiros, Bica rememora a morte do irmão Idago. O som informa que mais um corpo tombou, como já tombara o do irmão: um vacilo e escopetas, “como facas afiadas, brincam tatuagens, cravam fendas na nossa tão esburacada vida” (EVARISTO, 2014, p. 101) Mais uma vez, a imagem inicial da morte como brinquedo reaparece, na figura da faca que tatua o corpo, arrancando-lhe a vida.

Outra forma de vitimização tematizada no conto é a perda da inocência da infância, em contato com o medo e a violência gerada pelo tráfico. Bica lembra como, aos onze anos, seu irmão Idago foi punido por delatar os roubos de merenda e o fumo no ambiente escolar, o qual “transitava de mãos em mãos feito aquela brincadeira inocente de passa anel” (EVARISTO, 2014, p. 103). Parece a Bica que o pote de pimenta que a “boca traidora” do irmão foi obrigada a ingerir foi justo, pois, aos onze anos, Idago “já não era tão inocente” e “já sabia o alcance de suas palavras”, especialmente porque estas, por vezes, “feriam segredos e escorregavam pela ladeira abaixo parando lá na delegacia” (EVARISTO, 2014, p. 103).

A violência a que os moradores estão expostos, real e inescapável, é contrastada, ao longo do conto, com a exposta na TV, onde se morre e mata de mentira. A Dona Esterlina, mãe de Bica, apraz a programação mais amena da TV, que lhe entorpece os sentidos; aprecia especialmente a analgesia operada pela novela, que a alivia, qual cachaça. Busca propositalmente o alívio à realidade, pois é extremamente consciente da violência que a cerca. Diz: “Quando choro diante da novela choro também por outras coisas e pela vida ser tão diferente. Choro por coisas que não gosto nem de pensar” (EVARISTO, 2014, p. 105). A violência impacta a Dona Esterlina na medida mesma em que atinge aqueles que são próximos a si. Antecipa o fim que aguarda o companheiro escolhido pela filha, morte que acabaria com a felicidade que sonhara para Bica, deixando-a viúva e sozinha para criar o bebê.

Desse ponto em diante, o conto precipita-se para o seu final, um final já sabido e intuído tanto por Dorvi como por Bica, que narram, respectivamente, as duas últimas seções do conto. Já então Dorvi sabe-se um não cumpridor do pacto de preservação de vida que transparece no título do conto. Lembra a iniciação na vida de crimes, quando, aos treze anos, pela vez primeira sente o gosto do enfrentamento, que lhe provoca gozo orgásmico; compara este gozo ao experimentado quando, aos sete anos, arranca um dente de leite com suas próprias mãos, e a mãe o proclama homem.

Uma vez que Dorvi é calado, resta a Bica registrar o resto da história. Pensa:

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“Será que ainda há dor por vir? E Dorvi?”. A sequência parece sugerir que o nome do protagonista é um composto formado por “dor” e “vi”, um testemunho nominal da vivência da violência. Agora o companheiro já é para ela “[...] um presente incompleto e um futuro vazio” (EVARISTO, 2014, p. 102). Sabe que não voltará; deseja uma maneira de não morrer tão cedo e viver vida menos cruel para o filho. Sabe, ainda, que “não morrer, nem sempre é viver” (EVARISTO, 2014, p. 102). Mais do que preservar vida, é necessário vivê-la com dignidade, sem medos. Por isso, enquanto prossegue o tiroteio, contempla o filho, que dorme, pensa nos corpos se esvaindo em sangue, e repensa a vida, narrando sua história.

O conto termina, assim, com a pressuposição de que a narradora que finaliza o registro da história de Dorvi, sua família e comunidade é Bica. Este é um detalhe significativo, pois ressalta sua postura de agente ético, capaz de reflexão, vontade e responsabilidade: Bica avalia os fatos decorridos, seus efeitos e consequências. Ao fazer do diário o meio de registrar sua dor, esta se apresenta em todo o seu peso; por outro lado, este é um momento em que fica particularmente visível o modo como Bica é capaz de autorar sua vida, apesar da intensa situação de vulnerabilidade social a que está exposta. Evidência disto já fora dada na infância, quando aos sete ou oito anos, convidada a formar palavras no quadro por sua professora, Bica revela as realidades que fazem parte inescapável de seu cotidiano: “E escrevi pó, zoeira, maconha. E fui escrevendo mais e mais. Craque, tiro, comando leste, oeste, norte, sul, vermelho e verde também” (EVARISTO, 2014, p. 108). Já então Bica intui a potencialidade da escrita, e toma ocasião para, antes que apenas mostrar sua habilidade de escrita, inscrever no quadro-negro sua história, arrolando a professora e os colegas como testemunhas da realidade em que vivia.

Esta forma de agir contrasta com a submissão inicial demonstrada por Delinda, a qual, pressionada, abdica da própria consciência e vontade, vindo a assumir o papel de agente ético livre somente mais tarde, sob a inspiração do namorado e da líder da Ala das Guerreiras. Narrativas como a de Bica, e a retrospectivamente exposta pelo narrador onisciente que conta a experiência de Delinda, inscrevem uma história outra, que contrasta, em seu ponto de vista, temática e vivência autoral com a de narrativas da literatura canonizada, constituindo-se em contranarrativa em que é visível a expressão da ideia-força quilombola de resistência a formas de violência.

Conclusão

Em estudo sobre textos literários que permitem observar as possíveis motivações que levam personagens a cometer atos agressivos, Ginzburg (2012, p. 7) propõe que questionamentos sobre a violência se desloquem dos seus perpetradores para os que sofrem as perdas. Ele sugere que o eixo dos questionamentos passe da legitimidade das condutas e de suas motivações para

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questões mais universais, como “`Por que um ser humano mata outro?” ou “Por que um ser humano agride outro?”.

Considerando-se o corpus analítico escolhido para este estudo, uma pergunta necessária é “Por que um ser humano julga-se autorizado a agredir alguém com base na sua pertença étnica e/ou social?”, ou ainda mais pungentemente: “Por que, com base nessas mesmas pertenças, um ser humano coisifica outro ser, não reconhecendo sua humanidade?”

Tais perguntas são relevantes porque este estudo centra-se em formas de violência resultantes ou derivadas de ausência de compaixão, não reconhecimento ou anulação do outro e negação da dignidade humana fundamentalmente motivadas pela discriminação racial e social. O fato de que os questionamentos permanecem sem resposta, ou que respostas possíveis, como o prazer do poder e a dificuldade em conviver com a diferença, seja ela étnica, econômica ou social, sejam profundamente banais e insatisfatórias, ressalta a violência exposta.

Antes que respostas a estas perguntas, os contos vêm a despertar reflexões sobre as mesmas. Por que o cabelo negro deve ser alisado? Que padrões são utilizados para estabelecer sua feiura? Estas são perguntas a que falta uma resposta científica; é, antes, um padrão derivado das formas de beleza associadas à população que detém o poder econômico que parece ter sido essencializado e prestigiado.

O conto “A gente combinamos de não morrer” desperta questionamentos ainda mais profundos. Por que crianças matam e morrem? Por que a delação e a violência são estimuladas desde a infância? Por que, apesar do contínuo medo da morte, crianças, mulheres e homens continuam habitando em local de risco? Por que, entre a população em situação de risco, há, via de regra, negros? Por que a tentação ao dinheiro fácil advindo do narcotráfico é mais poderosa do que o temor da morte?

Em ambos os contos analisados, a violência não é narrada por seus praticantes, mas por narrador onisciente que é simpático às vítimas da violência ou, como em algumas das seções do conto de Evaristo (2014), pelos personagens vitimizados. Ademais, antes que a visão da prática da violência, propriamente dita, as narrativas prolongam-se sobre os efeitos que esta provoca em suas vítimas. Não há descrição das sensações corporais provocadas pela seção de alisamento; evitam-se, no segundo conto, detalhadas descrições dos assassinatos, que são sugeridos pelo som das balas e pela fumaça que se ergue a partir dos corpos incinerados como forma de descarte. Que um ser humano seja eliminado por poder, sem qualquer emoção a não ser a adrenalina do enfrentamento e o gozo que este provoca, são indicativos suficientes da desvalia com que a vida humana é contemplada, e da violência contra ela cometida. Nesse contexto, o efeito mais palpável da violência é a consequência última dos atos praticados, ou seja, a morte, e também uma quase morte em vida, já que a população sente-se constantemente acuada pelo temor dos extermínios, com os quais convive diariamente. Já o primeiro conto, “Abraço do espelho”, embora também evidencie violência associada à falta de compaixão e ao

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não reconhecimento da vontade e liberdade humanas, o faz a partir de situação que leva à anulação do ser pelo não reconhecimento, ou rejeição, de sua própria natureza através de um detalhe que pode parecer mínimo a alguns: a modificação capilar. Por isso mesmo, o conto demora-se na tematização da angústia psicológica que esta provoca e no enquadramento da incitação ao alisamento dentro de um quadro de busca de sustento econômico e de aceitação social.

A exposição quilombola da violência pela literatura, ao sugerir a visão de um mundo outro a partir de ponto de vista e vivência autoral negros, não poderia deixar de lado experiências a que este segmento da população está sujeito, como a agressão racista, tematizada no conto de Cuti (2009). O fato de que “A gente combinamos de não morrer” não enfatiza a pertença étnica, e só sutilmente sugere que, pelo menos em parte, a população da comunidade narrada é pobre e negra, enquadra-se, ainda, dentro do ideal quilombola, já que este, segundo proclamado por Nascimento (1980), estende-se a toda a “raça humana”. Por outro lado, a opção de enfocar a violência a partir da “ideia-força” quilombola permite analisá-la a partir de seu ideal de liberdade, igualdade e fraternidade, que levaria à cessação das formas de violência aqui analisadas. É nesse contexto que pensar violações físicas e psíquicas a partir do ponto de vista da ética é convidativo, pois, ao evidenciar um quadro de relações intersubjetivas marcadas pela opressão e medo derivados de usos de força contra a natureza, vontade e liberdade, os contos magnificam o desrespeito e brutalização do ser humano, convidando à intensa reflexão sobre tais atos.

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Literatura e violência: dos saberes ancestrais à exclusão

Graça Graúna

La poesiarompe el silencio

de la memoria milenáriadel pueblo mapuche

en este relatode la historia,

grabada en los espiritusde nuestro pueblo

(Rayen Kvyeh, poeta mapuche/Chile)

Introdução

São inúmeras as formas de violência contra os povos indígenas: a começar pela invasão dos territórios, pelos abusos sexuais, pelas injúrias, perseguições e preconceitos, pelas torturas, pela negação dos direitos e dos saberes sagrados, entre outros tratamentos desumanos aos quais os indígenas são submetidos. Diante deste quadro, urge sublinhar uma das advertências que os indígenas costumam ouvir do líder Ailton Krenak, nas rodas de conversa: “O Brasil está se construindo em cima de um cemitério” (Cf. MUNDURUKU, In: O banquete dos deuses, 2000).

Neste ensaio, considero tão importante quanto necessário tratar do tema literatura e violência à luz da literatura indígena, quer seja por meio de relatos, histórias e crônicas, e quer seja por meio de outras intervenções tecidas, também, em rodas de conversa. O objetivo é abordar o tema a partir de um conjunto de textos narrativos de autoria indígena produzidos nos séculos XX e XXI e que problematizam as formas de violência contra o indígena.

A representação que se faz do índio no campo da literatura não indígena está muito longe do éthos, isto é, do ser da questão, considerando o conjunto de

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costumes e hábitos e cultura de uma determinada coletividade; especificamente os diferentes povos indígenas que habitam no continente americano, chamados de ameríndios. Esta designação implica uma das faces da representação que se faz do “índio”, do “ameríndio” e ou de “amerígena”, por exemplo. Todavia, essas designações não apagam a presença colonizadora, nem apaziguam a conflituosa relação entre os nativos e os europeus. Basta observar a etimologia dessas palavras e não perder de vista os equívocos oriundos do choque cultural, desde a viagem Colombo, Cabral e tantos outros colonizadores. Ora, nunca é demais repetir os estragos provenientes do “erro” de percurso dos portugueses para chegar à Índia, até “descobrirem” no meio do caminho uma terra “mui formosa”, onde “se plantando, tudo dá”. Como se não bastasse apelidarem de “índios” os primeiros habitantes da suposta ilha, aí começou o primeiro bullying da nossa história, em meio a uma enxurrada de gente trazendo numa mão a cruz e na outra mão uma espada. O resultado a gente já sabe: rajadas e rajadas de preconceitos contra os povos indígenas.

Apesar do genérico termo “índio” com que são tratados, os povos indígenas têm consciência do seu lugar no mundo, posto que se autodeclaram e se reconhecem: potiguara, guarani, pataxó, xavante, kayapó, xukuru, entre tantos outros nomes que designam os povos originários.

Desde cedo, o ser indígena aprende a respeitar o outro para ser respeitado; desde cedo, aprende que o povo indígena é igual aos demais povos. Muito embora a sociedade dominante não reconheça a riqueza cultural e a trajetória de lutas dos Povos Originários, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNEMAT, 2009, p. 12) reafirma que “no exercício dos seus direitos, os povos indígenas devem ser livres de toda forma de discriminação”. O Capítulo VII, “DOS ÍNDIOS”, no Artigo 231, da Constituição da República Federativa do Brasil (1988), afirma que:

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Reconhecer, proteger e fazer respeitar: um conjunto de palavras que exprime ações, mas no contexto em que se encontram na referida Constituição sugerem ações distantes; parecem engessadas e muito longe, portanto, da triste realidade em que vivem os mais de 250 povos nativos que habitam um imenso território chamado Brasil. A propósito dos costumes e hábitos fundamentais, dos valores, ideias e tradições mencionados na Constituição de 1988, convém lembrar que existem e resistem, no Brasil, cerca de 180 línguas indígenas.

O Brasil não reconhece os Brasis. Triste Bahia, dizia o poeta Gregório de Matos, nos tempos coloniais de Porto Seguro, de Salvador e adjacências... Triste Brasil, que desconhece, abandona e desrespeita os filhos de Pindorama, isto é, “Terra das

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palmeiras”, como se diz na língua tupi. Triste Brasil, ó quão dessemelhante da nossa Mãe Terra das Palmeiras.

Para a compreensão desse ponto de vista, não há como falar em direitos sem mencionar a adaptação popular que o ativista Frei Betto fez da Declaração Universal dos Direitos Humanos (reconhecida em 10 de dezembro de 1948). Essa adaptação pode e deve ser compartilhada através do site DHNET: o primeiro site brasileiro sobre os nossos humanos direitos nas paragens virtuais. Vale conferir:

Todos nascemos livres e somos iguais em dignidade e direitos.Todos temos direitos à vida, à liberdade e à segurança pessoal e social.Todos temos direito de resguardar a casa, a família e a honra.Todos temos direito ao trabalho digno e bem remunerado.Todos temos direito ao descanso, ao lazer e às férias.Todos temos direito à saúde e assistência médica e hospitalar.Todos temos direito à instrução, à escola, à arte e à cultura.Todos temos direito ao amparo social na infância e na velhice.Todos temos direito à organização popular, sindical e política.Todos temos direito de eleger e ser eleito às funções de governo.Todos temos direito à informação verdadeira e correta.Todos temos direito de ir e vir, mudar de cidade, de Estado ou país.Todos temos direito de não sofrer nenhum tipo de discriminação.Ninguém pode ser torturado ou linchado. Todos somos iguais perante a lei.Ninguém pode ser arbitrariamente preso ou privado do direito de defesa.Toda pessoa é inocente até que a justiça, baseada na lei, prove ao contrário.Todos temos direito à liberdade de pensar, de nos manifestar, de nos reunir e de crer.Todos temos direito ao amor e aos frutos do amor.Todos temos o dever de respeitar e proteger os direitos da comunidade.Todos temos o dever de lutar pela conquista e ampliação destes direitos (FREI BETO, 2010).

Porta-vozes indígenas: desafios e perspectivas

Todos nós temos o direito de ser e de viver com dignidade, em meio à diversidade; mas poucos se dão conta de que essa diversidade constitui também uma prova de resistência indígena no Brasil. À luz dessa resistência, a literatura de tradição oral e escrita dos povos indígenas se manifesta no protagonismo com base na ancestralidade, no coletivo e nesse caminho vem se juntar a outras vozes excluídas, exiladas, periféricas, híbridas entre outros aspectos que fazem parte do nosso cotidiano: quer seja no campo ou na cidade, circulando em barcos, ônibus, metrô, avião; ou pelos sertões, agrestes e litorais, cerrados; pelos rios, pelas montanhas e cordilheiras e onde mais houver o desejo de ir e vir, o desejo de manifestar a nossa autonomia também pela escrita.

Atentos à construção desses direitos, os mentores e os organizadores do site Índio Educa (2016) relatam experiências sobre educação e, na interação com os

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visitantes do site, comentam acerca do uso dos termos “índio” e “indígena”. O site é aberto a visitantes indígenas e não indígenas, mas o pensamento que sobressai no projeto é de autoria indígena. Um exemplo dessa interação remete ao fragmento que segue:

Então por que o Índio Educa, usa “ÍNDIO Educa” e não “Indígena Educa”?É exatamente para tentar desconstruir essa imagem estereotipada do “índio”. Pode notar que nossa página tem ícones com desenhos de “índio” de forma bastante genérica, porém, quando pesquisar mais, ler os textos, assistir os vídeos, só mostra o contrário, mostra que existem populações indígenas de diversas etnias. A ideia de criar o “Índio Educa” partiu exatamente de penetrar no imaginário das pessoas que quando vão pesquisar, buscam a palavra “ÍNDIO” e não indígena. Portanto, desconstruir a imagem pejorativa de “Índio” é saber usar a criatividade de forma lúdica. (ÍNDIO EDUCA, 2016, s/p).

Essa forma de livre interação (entre indígenas e não indígenas) constitui um passo importante para o fortalecimento da cultura e da história dos Povos Originários e contribui também para o entendimento da Lei 11.645. Sancionada em 2008, essa Lei “estabelece diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena’” (BRASIL, 2008, s/p).

Em 2015, na Revista Palimpsesto, da UERJ, comentei a respeito dos equívocos de Colombo e de como eles perpetuam as diferentes formas de preconceito contra nós, indígenas. Rotulam-nos de preguiçosos, dissimulados, ignorantes, tratando-nos como se fôssemos seres irracionais e invisíveis, e, como se não bastasse, insistem em falar por nós, escrever por nós. Infelizmente, muitos desconhecem que ser indígena é também se apresentar – quando necessário – como protagonista da própria história. Ser indígena é ter consciência da autonomia e do grupo a que pertence. E quando me perguntam o que é ser índio, hoje, penso no ser (ethos) da questão e me vem à memória uma série de pensamentos que eu ouvi, que eu li e intuí dos ancestrais e de lideranças indígenas. Nesse caminho, o ser da questão se manifesta, por exemplo, na percepção de que “posso ser o que você é, sem deixar de ser o que sou”; como diz Marcos Terena, em rodas de conversa ou em palestras pelo Brasil afora (Cf. documento eletrônico da Ação jovens indígenas, 2013).

Fundador do movimento indígena no Brasil, Terena (1994) é escritor, articulador dos direitos indígenas junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e responsável também pela agência de notícias Viatan. Escreveu o livro O índio aviador, primeiro romance indígena destinado ao público infantil e juvenil. Esse livro conta com a colaboração de Atenéia Feijó, jornalista brasileira que, na década de 1980, conheceu o autor em meio aos conflitos entre “brancos e índios”, na região amazônica. A narrativa de Terena (1994) traz reflexão e ação sobre cultura, política e tecnologia, tendo como protagonista o ser indígena em busca de seu lugar na sociedade moderna,

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mas sem abandonar suas tradições. Numa das passagens do livro, o narrador reflete, por exemplo, sobre questões identitárias:

Para todos os efeitos, de acordo com sua certidão de nascimento, ele se chama Mariano Guli. Cor da pele: branca. Não há qualquer informação que o identifique como índio. O que atrapalha um pouco é a timidez. Mas é uma timidez que não compromete sua rapidez de raciocínio. Torna-o apenas uma pessoa reservada, reflexiva e, aparentemente, pouco emotiva. Com as feições semelhantes às de um japonês, moreno, esse comportamento é até positivo. Deixa-o ainda mais parecido com um nissei. Para os brancos, claro. No fundo é sua própria identidade indígena, adaptada aos objetivos que começa a perseguir. (TERENA; FEIJÓ, 1994, p. 37).

Na entrevista ao Blog da Aviação Civil, o líder Terena fala das muitas histórias contidas no seu livro e enfatiza, sobretudo, as lutas a favor dos povos indígenas. No referido Blog, o entrevistador ressalta:

Não à toa, afinal ele foi o primeiro indígena brasileiro a estudar aviação e a aprender a dominar a tecnologia do “mais pesado que o ar”, a aprender o conceito de luta pela demarcação de terras, a montar estratégias de campo para os camponeses, a conhecer os latifundiários, a tanta coisa. Ah, e a receber uma carta da escritora nordestina Raquel de Queiroz [...] ela disse para o indígena usar o dom da escrita a favor do seu povo. “Usei. Assim como usei a tecnologia da aviação para conversar com as aldeias e trocar experiências. Eu era um indígena do Pantanal, aí fazia voos rasantes, para alegrá-los e mostrar que um índio poderia voar” (Cf. Blog da Aviação Civil, 2015).

Tudo em volta impele a mais questionamentos. Na última década do século XX, em meio a tantas inquietações, a literatura de autoria indígena continuava e continua ainda se perguntando: em quanto tempo passam quinhentos anos? Onde e como procurar, vascular alguma resposta acerca de literatura indígena, essa ilustre desconhecida? Até que ponto os sonhos dariam pistas sobre os silêncios, a história, a memória, a resistência e a ancestralidade no campo da literatura ameríndia? Questões dessa natureza não cabem no cânone que norteia as academias. Talvez seja atrevimento indagar sobre a estreita relação entre poesia e prosa, literatura e história ou sobre se é permitido recitar histórias e fazer da poesia um elo na contação de histórias, considerando o jeito de ser e de viver na concepção indígena.

Mediante estas inquietações, atrevo-me a reiterar o que exponho no livro Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil (2013). Nesse livro, abordo o fato de que a visão indígena contrapõe-se ao modo de ver da sociedade dominante, pois esta não reconhece a manifestação literária de autoria indígena. Esse reconhecimento só viria a ocorrer, se o pensamento indígena fosse baseado exclusivamente na existência do livro “branco”, conforme o conhecemos na atualidade.

Penso e imagino que, ao cercar-se da realidade cotidiana e do direito de sonhar um mundo possível, os autores e as autoras indígenas rompem o silêncio

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nos relatos, na história, na poesia, como sugere a poesia da escritora Mapuche Rayen Kvyeh, na epígrafe que antecede a introdução deste ensaio. Penso, imagino e me reconheço no canto guarani, no toré dos Xukuru, dos Kariri-Xocó, dos Potiguara e de outros parentes. Penso, imagino e me reconheço no toque da flauta Tukano, no trançado da esteira e dos cestos dos Fulni-ô, na feitura do colar Pankararu, no sopro da flecha ou mesmo no caminhar pelas margens dos rios onde habitam os Krenak. Penso e imagino e me reconheço na poesia Mapuche, entre outras literaturas que revelam mundos.

Esta percepção implica abordar questões que transitam pelos humanos direitos em prol do fortalecimento indígena e contra “um conservadorismo e um paternalismo que hoje não cabe na relação com os povos indígenas”, como adverte Terena (2006, p. 264-265), no livro Mídia e direitos humanos, publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos – SEDH (2006), junto à UNESCO.

Os estereótipos e os preconceitos contra os povos indígenas são apenas uma ponta do iceberg. Há séculos, os saberes indígenas aparecem subjugados pelo discurso hegemônico. Situação um tanto semelhante diz respeito à educação brasileira. Como adverte o II Módulo do Fórum de Atualização sobre Culturas Indígenas, realizado no período de 16 a 18 de junho de 2010, na terceira Exposição Séculos Indígenas no Brasil: “a educação brasileira permanece refém de uma compreensão acerca do processo de ensino aprendizagem e da construção do conhecimento fragmentado e hermeticamente isolado em caixinhas” (2010, p.110).

No livro Doéthiro: Álvaro Tukano e os séculos indígenas no Brasil, organizado por Coe (2012), o autor Álvaro Tukano faz reflexões acerca de sua trajetória no movimento indígena. Para o fortalecimento desse movimento, o líder Tukano cruzou céus e mares. Na década de 1980, em Roterdan/Holanda, participou do Tribunal Bertrand Russel, onde denunciou sobre “os crimes de etnocídio cometidos pelos missionários do Rio Negro e pelos governos ditadores da América Latina” (TUKANO, 2012, p. 20).

Pelas estradas de Rio Branco e Xapuri, o líder encontrou parentes indígenas e seringueiros engajados na luta pela demarcação das reservas extrativistas. Ele constatou que o seringueiro carrega lembranças do “velho herói e companheiro Chico Mendes, que morreu em defesa das florestas da Amazônia” (TUKANO, 2012, p. 46). Em Cruzeiro do Sul (AC), Álvaro Tukano e Ailton Krenak acompanharam as atividades do Centro de Pesquisa Indígena (CPI), cientes de que “os pesquisadores de índios não gostaram dessa ideia”. Os tais “pesquisadores” não se pouparam em fomentar imagens preconceituosas em torno das lideranças indígenas. Não é à toa que o cronista Tukano (2012, p. 55) afirma que, para alguns pesquisadores, “o índio não conhece nada; ele só é bom quando diz o segredo tribal”.

Em 1993, ano internacional dos Povos Indígenas, Álvaro Tukano visitou o Vale do Rio Doce, terra dos Krenak em Minas Gerais. Um dos objetivos da visita era documentar as palavras dos velhos sábios, a exemplo de Dona Laurita, avó do líder Krenak. No fragmento que segue, é importante observar o desejo de paz e o respeito à

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diversidade no depoimento do líder Tukano (2012, p. 178):

A Dona Laurita nos chamou atenção. Ela conhecia toda história de seu povo. Era líder religiosa, falava a Língua Krenak e instruía seus filhos para não perder as tradições. O grande líder era Ailton Krenak, porque ele fora o coordenador da União das Nações Indígena – UNI Nacional. Ele conhecia os problemas dos índios brasileiros.

Mantendo as tradições que aprendeu, desde cedo, com a sua avó Laurita, o líder Ailton Krenak viaja pelo mundo em defesa dos direitos indígenas. No início de julho, em Porto Seguro (BA), a convite da 68ª Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), compartilhamos a mesa-redonda intitulada “Intelectuais indígenas: escritores, cineastas e ativismo intelectual”. Na ocasião, revisitei a crônica “Escrevivendo a literatura indígena”, que escrevi em 2013 durante o 10º Encontro de Escritores e Artistas Indígenas, no Rio de Janeiro. Minha referência à crônica foi no intuito de reiterar a existência da nossa literatura indígena. Na mídia, nos bancos escolares (do Ensino Fundamental ao Superior) e noutros setores da sociedade envolvente, existem grupos que insistem em dizer que não há consenso quanto ao uso da expressão Literatura Indígena, e que, ao mesmo tempo, propagam a não existência dessa literatura.

Porque a nossa literatura existe e sempre existiu, tomo a liberdade de fazer um breve comentário acerca dos originais do livro inédito escrito por Ailton Krenak (2015), intitulado ThaKrukMik: o livro da Vó Laurita. Esse título é uma alusão à Dona Laurita, aquela mesma que o líder Tukano encontrou no vale do Rio Doce (MG). Essa narrativa de Krenak encontra-se em vias de publicação e as minhas observações acerca dos originais desse livro são fruto do prefácio que fiz a convite do autor. É nesta perspectiva que eu compartilho as minhas primeiras impressões desse livro que, certamente, alimentará o diálogo entre os povos.

Desde a infância, Ailton Krenak foi iniciado a ouvir e a contar de memória as muitas histórias do seu povo. Porque toda história tem uma voz primeira, o menino sabido ouviu da boca os mais velhos as histórias que atravessam o tempo; ele ouviu dos parentes as muitas histórias de amor e sabedoria, de sofrimento e luta pela conquista da terra onde os Krenak, falantes da língua burum, cultivam os ensinamentos das mulheres dos rios, das matas, das florestas. Nos originais do livro de Vó Laurita, o contador de histórias observa que na aldeia tudo corria em paz: “Mulheres e crianças no pátio da aldeia, com as malocas todas enfeitadas para ficar bonito o dia, e os homens correndo nas trilhas em busca de alguma caça levar para a casa, quando avistaram um tamanduá”.

Na auto-história de Krenak, a energia que vem do ato de narrar salta aos olhos, porque vem do coletivo. A noção de auto-história traz um significado peculiar, porque faz parte da visão indígena, do jeito de ser e de viver, do senso crítico, das histórias contadas e vividas pelos próprios indígenas. Em Krenak, o recontar individual se junta ao coletivo e dá lugar ao espanto e ao maravilhamento

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de que faz parte a benzedura que Laurita herdou da mãe Xakruk, que é chamada de Bastiana ou Pedra Pequena.

A narrativa de Krenak vem reforçar a estreita relação entre literatura e história, desmascarando a visão oficiosa que permeia a visão dos povos indígenas nos livros didáticos e nos chamados “paradidáticos”. A propósito, cabe até perguntar: de que forma os professores, as professoras do ensino fundamental, médio e do meio acadêmico estariam ou estão dispostos a perceber os desejos de liberdade e de justiça e a intuição (mensageira da alma) que vem da sábia Laurita? Será que a Lei 11.645/08 traz respostas para isso tudo?

Em várias passagens dos originais do livro, Ailton Krenak conta de memória as idas e voltas do seu povo em São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, entre outras rotas, em meio a tantos outros migrantes e retirantes que perderam suas terras e que saíram pelo mundo, só com a roupa do couro e dormindo em cima de pedras; degredados, sem registro, sem cocar, mas com esperança de rever a terra para descansar a cabeça. Desse modo, o livro de Vó Laurita problematiza um cenário que muitos ainda desconhecem:

aquelas poucas famílias de krenak que vivia na margem esquerda do rio Doce, agora tinham companhia de gente vinda das mais remotas aldeias de Pernambuco, Goiás, Mato Grosso, Amazonas, Bahia, Acre e Maranhão, todos para cumprirem pena de degredo na sua terra (Cf. Originais do livro de Krenak).

Mais um livro de autoria indígena nos aproxima do tema “literatura e violência”. No Banque dos deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira, o escritor Daniel Munduruku (2000) comenta sobre os direitos, a terra e a violência. Ao discutir essas questões, ele destaca o pensamento de Krenak sobre a construção do Brasil em cima de um cemitério, conforme citamos anteriormente. Nas palavras do escritor Munduruku (2000, p. 82):

Desde o século XVI, o esforço dos governos foi sempre no sentido de exterminar o índio, visto como um estorvo ao progresso e ao desenvolvimento. O reconhecimento da humanidade dos povos brasileiros chegou ao Brasil via bula papal, documento que impunha que os portugueses cuidassem bem dos nativos, pois eles também eram filhos de Deus. E, para torná-los cristãos, foi-nos enviado o exército cristão daquela época: a Companhia de Jesus. Vinham para converter os gentios, selvagens, que não conheciam o Deus cristão.

Como se pode ver, quanto mais a chamada cultura ocidental insiste em aprisionar os saberes dos povos originários, mais estes povos resistem, pois estão cientes dos valores étnicos, culturais e identitários. Pensando nisso, convém perguntar até que ponto o ato de olhar através da lente constitui também uma das formas do fazer literário de autoria indígena?

Tudo é possível, quando a alma não é pequena – diria o poeta Fernando Pessoa.

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O pensador indígena Basil Johnston (1998, p. 8), da nação Anishinaube/Canadá, afirma que “a cultura indígena apesar de ser primitiva em tecnologia, não é nada primitiva em pensamento, nem nas instituições, conhecimentos, percepções, relacionamentos, atitudes, códigos, éticas”.

Em outras palavras, fazer literatura através da lente é uma das características de Caimi Waissé Xavante, da etnia A’wwê Uptabi (Xavante/MT), que se destaca como cineasta no meio indígena. Em relato publicado na Revista Leetra Indígena, Caimi (2013, p. 22-23) observa que os anciãos falam que a tecnologia veio para complementar a contação de histórias, considerando que os xavante são detentores da tradição oral. Sobre a imagem do índio na sociedade envolvente, o cineasta xavante não esconde a admiração ao parente Mário Juruna que, munido de um gravador, “deixou bem claro que a máquina chegou para servir de aliada, para não desviar os relatos”. O cacique Juruna foi vítima de muitos preconceitos e poucos se dão conta de que o preconceito é uma forma de violência que leva ao cemitério. Preocupado com a imagem que se tem do índio nas escolas, o cineasta Caimi (2013, p. 22) faz a seguinte observação:

No Brasil, as pessoas falam num “índio” genérico e de um índio que, se existiu, já deixou de viver há tempos – uma ideia de índio que não mostra a realidade e só faz confundir a cabeça dos brasileiros ou o que é pior, mantém o preconceito e ideias estereotipadas sobre eles.

O cineasta xavante também observa que, ao apresentar os vídeos nas escolas, as crianças perguntam muito se os índios existem mesmo. Ele vê nessa pergunta que os livros didáticos não mostram o indígena como é na realidade e assevera: “nesses livros nós não existimos mais” (CAIMI, 2013, p. 23). Por outro lado, Caimi (2013, p. 23) considera que o “vídeo vem acabar com essa distorção, diminuindo o preconceito e a desinformação sobre a população indígena do Estado por meio da produção audiovisual indígena”.

Literatura indígena: que bicho é esse?Dizem que a onça, quando ameaçada, bota fogo pelas ventas. Na estreita relação

entre fábula e realidade, o escritor Cristino Wapichana (2013) publicou um livro de contos destinado ao público infantil e juvenil, intitulado A onça e o fogo. Ele também é músico e cineasta. O seu povo habita em Roraima. No título do seu relato “Brasil, mostra tua cara”, publicado na Revista Leetra Indígena, é notória a referência ao poeta e cantor Cazuza.

Injuriado com as diferentes formas de violência contra o indígena, o autor traz reflexões acerca dos “civilizados”, que ao chegarem ao Brasil no século XVI praticaram muitas violências contra os primeiros habitantes: povos indígenas foram “massacrados, assassinados, escravizados, caçados e, achincalhadamente denominados de selvagens. Foi assim que começou um extermínio sem precedentes” (WAPICHANA, 2013, p. 24).

Entre os porta-vozes indígenas, o escritor Edson Kayapó (Doutor em

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Educação pela PUC/SP) fala da necessidade de abrirmos os nossos corações para o (re)encantamento da nossa literatura indígena. O que significa isso? Ele comenta que, apesar das dificuldades, dos preconceitos, dos descasos sofridos pelos indígenas, a nossa literatura é um dos caminhos para a nossa sobrevivência; já não podemos calar, como diz o pajé Luís Caboclo de Almofala, do povo Tremembé (CE), na epígrafe que o parente Edson Kaiapó insere no início do artigo publicado na Revista Leetra Indígena (2013, p. 29-33). Apesar dos mais de 500 anos de sofrimento, o desafio está em mantermos o foco no fortalecimento da nossa luta; a literatura indígena pode contribuir para enfrentarmos o mundo em crise, como afirma o escritor Kayapó (2013, p. 29):

Nossa literatura é um instrumento de defesa e de justiça junto aos nossos povos, é também uma produção que colabora de forma efetiva para o fortalecimento e valorização do nosso jeito de ser, além de ser lição de encantamentos para o mundo em crise.

Tendo como base esses princípios, o escritor reflete sobre os processos de exclusão e como isso pode comprometer os direitos dos povos indígenas, pois o Estado brasileiro não está cumprindo as obrigações com os povos originários. Eu não diria que é mais fácil ser índio hoje, ainda que alguns projetos indígenas tenham merecido a atenção dos poderes públicos, a exemplo do Projeto dos Tupinambá, no Sul do Bahia. Mas não é fácil ser índio hoje. Basta ver a calamitosa situação dos Guarani, de Mato Grosso. Pensando no coletivo das ações indígenas, o parente Kaiapó (2013, p. 30) fala da necessidade de se recontar a história do Brasil:

é fundamental que os curandeiros / ervateiros / pajé / parteiras / farinheiros / caçadores / escritores / poetas / doutores e demais sábios dos nossos povos tomem a frente no processo de produção de histórias que recontem a história do Brasil.

Nesta perspectiva, o escritor ressalta a importância da literatura indígena (oral ou escrita), no combate aos preconceitos arraigados na sociedade dominante, pois nossa literatura “é uma maneira de revisar a história nacional e afirmar a diversidade”. Kaiapó (2013, p. 30) acrescenta:

nós, escritores indígenas, estamos dotados de uma missão que numa perspectiva espiritual nos autoriza a sermos porta-vozes dos nossos antepassados. Nesse sentido, a nossa missão está muito além de rever a opressora história oficial brasileira. Buscamos contar “outras histórias” para afirmar que estamos aqui, que não fomos exterminados, que a nossa população vem aumentando significativamente e que continuaremos ressignificando o nosso jeito de ser.

Reiterando a ideia de ressignificação identitária, cabe uma leitura atenta à contribuição de Severiá Idioriê (pensadora e escritora xavante). Na crônica “Sobre ser e estar no mundo: caminhos possíveis”, publicada na Revista Leetra

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Indígena (2013), a escritora Severiá (2013, p. 74-77) relata sobre o constrangimento que sofreu, ao ser observada – dos pés à cabeça – enquanto esperava numa fila de banco o seu salário de professora. Foi um olhar de rejeição o que recebera, pois trajava uma roupa básica - short, camiseta branca -, cabelos soltos ao vento e embaraçados, cheio de poeira em meio à viagem de caminhão da aldeia para a cidade. No modo de ver do outro, ela parecia suja, não bastasse a cara de nojo que recebeu como se estivesse exalando um mau cheiro. Incrédula, diante do acontecido, Severiá (2013, p. 75) comenta:

Lembrei-me da história que um velho amigo me contou e ouço suas palavras: dependência química é contornável, o que não é contornável é a falta de caráter. E adaptei suas palavras: “sujeira a gente limpa com qualquer sabão, mas preconceitos, não”. Imagino como foi difícil para Dom João VI e sua comitiva aprender a tomar banho, no nosso estilo Tupiniquim, diriam alguns. O conceito de limpeza, odores, beleza, muda muito. Cada cultura tem seu padrão. Compreendo.

Resistência, ressignificações, existência indígena. Na esteira dos movimentos indígenas do Nordeste, a escritora Marleide Quixeló (CE) vive numa favela, em São Paulo. Pela consciência que tem do que é viver longe do território de origem, denuncia a tristeza que é sentir-se obrigada a esconder sua espiritualidade, seu jeito de viver, suas origens. Na crônica de sua autoria, publicada no livro Memórias do movimento indígena do Nordeste (organizado pela Thydêwá e publicado em 2015), ela se declara indígena misturada e sem-terra, mistura da relação do Quixeló com o povo negro. Quixeló (2015, p. 27) enfatiza:

Muitos indígenas passam por esses preconceitos (...). O que implica em indigenidades tardias, ou seja, as pessoas só vão perceber (e se perceberem) depois de adultas a quais etnias/povos indígenas pertencem. Passam metade de suas vidas negando sua existência e presença nativa participando e produzindo nas cidades.Ao percebermos a grande mentira com a qual crescemos, nós indígenas nos manifestamos de diferentes formas: lutando, estudando, trabalhando, poetizando, cantando, sonhando...(...) somos cidadãos indígenas e não indigentes periferizados e silenciados como querem nos manter os projetos colonialistas atuais.

A luta continua

Manter vivos os saberes que herdamos dos nossos ancestrais não é uma tarefa fácil, mas por acreditar na luta, continuamos e assim deve ser.

Cabe a cada um de nós – cientes das diferenças – salvaguardar os nossos direitos. Tendo em mente que os povos indígenas são iguais aos demais povos, como reza a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, é tão importante quanto necessário respeitar a luta contra as injustiças sociais e acolher os esforços em

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prol da reafirmação da democracia e dos direitos legais. Essa tomada de consciência não constitui uma ameaça ao estado de arte da literatura, pois literatura se faz e sente, misturando sonho e realidade, razão e emoção, com espírito de solidariedade e respeito, pois, quanto mais conscientes da nossa autodeterminação, da nossa identidade, mais livres somos e ou poderemos ser na busca do nosso desenvolvimento sócio-econômico, político e cultural.

E, se for permitido sonhar, invoco aos ancestrais o direito à literatura indígena e que num futuro próximo todos possam celebrar o fato de que os povos indígenas sejam considerados iguais aos demais povos da terra. Apesar da violência que em suas diversas formas se alastra pelo mundo, não bastasse a matança dos rios, com o agronegócio empestando as matas, testemunhamos ainda o genocídio de grupos étnicos, como vem acontecendo com os Guarani Kaiowá (MT).

Apesar dos tempos difíceis, a luta continua e pelo direito de sonhar, cabe também mesclar de humor o direito de ser “otimística”, quer dizer, otimista; pois é violenta demais a carga de estereótipos e preconceitos que nos sufoca há mais de 500 anos. Quer seja indígena ou não, o fato é que a boa literatura vence o tempo.

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Um erro foi cometido em um lugar: sombras de violência na Literatura Interamericana

Roland Walter

Em Canto General (1950), o escritor chileno Pablo Neruda delineia uma árvore de vida que é “nutrido por muertos desnudos/ muertos azotados y heridos”. Como símbolo pós-colonial, a vida desta árvore no presente é nutrida pela destruição colonial do passado: “[...] sus raíces comieron sangre/ y extrajó lagrimas del suelo:/ las elevó por sus ramajes,/ las repartió en su arquitectura” (NERUDA, 1950, p. 478).

Em A mulher habitada (1992), da escritora nicaraguana Gioconda Belli, Itzá, guerreira nahua resistindo à invasão dos colonizadores, observa que “os espanhóis diziam que deviam nos ‘civilizar’, fazer-nos abandonar a ‘barbárie’. Mas eles, com barbárie nos dominaram, nos despovoaram. [...] Os espanhóis queimaram os nossos templos; fizeram fogueiras gigantescas onde arderam os códices sagrados de nossa história; uma rede de buracos era a nossa herança” (BELLI, 1992, p. 104-137).

Em Crossing the Mangrove (1995), da escritora guadalupense Maryse Condé, Xantippe, temido e condenado ao ostracismo pela comunidade de Rivière au Sel, recorda a sombra que o passado lança sobre sua existência no presente da seguinte maneira:

Foi nas raízes das árvores manjack que a poça do meu sangue secou. É que um crime foi cometido aqui mesmo há muito, muito tempo. [...] Sei onde os corpos torturados estão enterrados. Descobri suas covas embaixo do musgo e líquen. [...] cada noite venho aqui para me ajoelhar. Ninguém descobriu este segredo enterrado e esquecido. (1995, p.204- 205).1

Em A mercy (2008), da escritora norte-americana Toni Morrison, a voz narrativa observa que o processo da colonização e dominação (de pessoas e terras) levou à fragmentação e alienação e o seu efeito mais perverso é “o interior murchando que escraviza e abre a porta para aquilo que é selvagem” (MORRISON, 2008, p. 160). No romance, este interior murchando é simbolizado por uma imagem assombradora e

1 As traduções neste ensaio são de minha autoria.

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uma pergunta acertada: a imagem que persegue Florens nos anos de 1690 é aquela de sua mãe junto com seu irmãozinho, vendo-a ir embora (depois de ser vendida); a pergunta: “quem é responsável?” (2008, p. 3). A mercy não dá respostas claras a esta pergunta, mas aponta as múltiplas formas e práticas de uma violência embrutecedora encadeada pela máquina colonial que aliena e fragmenta as pessoas, deixando-as órfãs (2008, p. 59) — sujeitos-efeito do passado no presente —, tanto os que dominam quanto os que são subalternizados embora, claro, de maneira diferente.

Em La brûlerie (2004), do escritor canadense Émile Ollivier, o narrador, refletindo sobre Montreal, “esta terra de passagem”, cheia de “personagens anônimos no coração do anonimato, transparentes e visíveis no seio de um mundo invisível” (OLLIVIER, 2004, p. 12), descreve os emigrantes haitianos no Canadá como “náufragos [...] destinados à errância”, incapazes de “encontrar a osmose, a simbiose feliz” entre o passado sofrido, o presente vivido e o futuro desejado. São pessoas que se movem de um deslocamento para outro numa “sociedade que tem medo de tudo que é diferente” (OLLIVIER, 2004, p.70-71, 123, 142). No Canadá, segundo o autor, a outridade (seja ela de natureza cultural, étnico-racial ou sexual) é a alteridade interior que marca as fissuras na imaginada fusão multicultural canadense. Nas palavras do narrador em La brûlerie: “Que belo paradoxo! Elogiamos a mundialização de maneira voluntária, celebramos ad nauseam a abolição das fronteiras e defendemos o espaço aberto, a mescla de culturas [...]; porém, sentimo-nos incomodados pelos viajantes, pelas pessoas sem casa” (OLLIVIER, 2004, p. 153). O que o narrador de Ollivier problematiza, portanto, é que num presente caracterizado pelo que Quijano (1997) denominou “colonialidad del poder” nem todos têm igual acesso ao espaço multicultural supostamente sem fronteiras.

O que liga estes escritores e seus textos na sua diferença é uma criação literária que revela e problematiza uma relação ancestral e/ou identitária (espacial e temporal) interrompida com a terra, uma representação de lugar/espaço onde as sombras do passado constituem os ecos silenciosos e os traços mnemônicos (muitas vezes traumáticos) da différance hifenizadora no mito de fundação dos discursos oficias. Os textos de Neruda, Belli, Condé, Morrison e Ollivier, entre muitos outros escritores e artistas pan-americanos, traduzem uma atitude descolonizadora no sentido de problematizar e perlaborar (o durcharbeiten freudiano) o trauma da dupla brutalização de pessoas e do espaço e seus efeitos que caracterizam as terras americanas.

Neste processo, revelam o contingente e ambivalente entre lugar das identidades americanas enquanto espaço de perda (alienação/subalternização, etc.) e potencialização (construção de subjetividade/identidade, ou seja, de uma posição de sujeito). Um espaço transferido cuja realidade intersticial é caracterizada por um passado reimaginado que interrompe o presente linear numa performance espiral em direção a um futuro utopicamente melhor ou alternativamente diferente. Esta interrupção do presente pelo performativo, facilitada pela defasagem que separa (e liga) o real recalcado da (com a) realidade — já que este real verleugnet enquanto inconsciente persegue a realidade, ou melhor, pensando com Bakhtin (1981), vibra nela como subtexto/ discurso skaz —, se traduz na textura do texto como mímica caracterizada por uma oscilação ambígua entre

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o domínio da forma e a deformação tanto do domínio quanto da forma.2 O ato de dar vozes pessoais e raízes históricas à dor, ao sofrimento e ao remorso causados por diversas formas e práticas de violência (física, epistêmica e ecológica), bem como o ato de lembrar e problematizar a experiência de subalternização enquanto efeito colonial — por que e como as coisas aconteceram? — abre a possibilidade de evitá-las no futuro; ou seja, nas palavras da narradora no romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: “enquanto o sofrimento estivesse vivo na memória de todos, quem sabe não procurariam, nem que fosse pela força do desejo, a criação de um outro destino” (EVARISTO, 2003, p. 130).

Gostaria de alegar que esta participação das diversas formas e práticas de violência e suas consequências no ato da reflexão, conscientização e humanização das vítimas em representações literárias (e artísticas, em geral)3 demonstra a capacidade da imaginação humana de construir liberdade/identidade a partir do espaço da não liberdade e não identidade. Como tal, a memória na arte pan-americana retraça (e assim mina) a fronteira, separando e ligando o mesmo e o outro, e abre um lugar intersticial (um espaço fronteiriço diria Guillermo Gomez-Peña, 1987) baseado numa “razão do Outro” (DUSSEL, 1995, p. 69) no nível do discurso e do relato (ou história) que suplementa a razão hegemônica de maneira ambígua e ambivalente. No clássico mundial de Ralph Ellison, Invisible man (1952), o narrador sem nome descreve esta entre existência ambivalente e ambígua da seguinte forma: “‘A mistake was made somewhere,” ‘ [...] ‘I’m confused’ [...]. ‘I too have become acquainted with ambivalence’” (ELLISON, 1952, p. 9). A hipótese é que as literaturas das Américas têm sido e continuam ser uma tentativa de mapear, revelar, problematizar de maneira criativa, diversa e multidimensional “este erro cometido em algum lugar” e seu efeito de confusão, ambiguidade e ambivalência; erro e efeito nascidos de uma violência que constitui a condição de fundação das sociedades pan-americanas.

O processo de criar história significa criar vida e está intimamente ligado ao Dasein humano. Dentro da criação artística um dos pilares deste processo é a memória; os outros: a imaginação e a emoção. Esculturas, pinturas, textos, fotografias liberam o futuro esquecido do passado no presente visando a um futuro melhor, ou seja, constituem os gritos liberados das ruínas se transformando em novas e outras possibilidades de ser e de se relacionar. A arte, portanto, trabalha este “princípio esperança” blochiano por meio do que Glissant (1997) memoravelmente chamou de “estética da terra”. Para o autor, o objetivo da teoria da literatura comparada deve ser a reativação da “estética da terra”.

Em Poétique de la relation, Glissant (1997, p. 150-151) argumenta que este fazer poético nos possa ajudar a mudar o “pesadelo” que atualmente estamos vivendo.

2 Aqui penso, por exemplo, no barroco, que como paradigma, mentalidade, sensibilidade, cosmovisão, discurso e/ou estilo de arte e vida transcultural constitui um “protoplasma incorporativo” (Lezama Lima) e/ ou antropofágico (Andrade) caracterizado por mobilidade, versatilidade, instabilidade, pulsão (Carpentier) e metamorfose contínua. Outro exemplo é o processo de “signifying’” enquanto retórica discursiva, este complexo e diverso processo de res-semantização dos signos do discurso escravizador pelos afrodescendentes nas Américas (GATES, 1989).3 Exemplos são as fotografias da equatoriana Lúcia Chiriboga e as esculturas do mexicano Victor Manoel Con-treras e do brasileiro Frans Krajcberg, entre outros.

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Mas como conseguir restabelecer esta “conexão estética da terra”, pergunta ele, num contexto cultural de produção e consumo material desenfreado e seu efeito de fragmentação, alienação, miséria e violência humana? E responde: por meio de uma “estética de interrupção, ruptura e conexão” que envolve a imaginação (GLISSANT, 1997, p. 150-151). Em Traité du tout-monde, Glissant (1997, p. 119) afirma que, ao contrário da ciência, “a escritura nos leva às intuições imprevisíveis, nos faz descobrir os constantes escondidos do mundo”. É mediante o imaginário, o seu prolongamento “por uma explosão infinita”, que se pode descobrir novas possibilidades e vencer os obstáculos que impedem o ser humano de se realizar de maneira digna e justa. Neste sentido, a “estética da terra” glissantiana ao enfatizar que a terra e o habitante da terra são saturados por traumas de conquista — saturação esta que ameaça a própria essência do homem e do seu ambiente — liga o indivíduo, a comunidade e a terra no processo de criar história da não história (pós-)colonial. A literatura, Glissant (1997, p. 147) alega em Traité, pode nos ensinar a força política da ecologia, ou seja, traduzir a essência ecológica “da interdependência de todas as terras, do mundo inteiro”.

O que Glissant (1997) não providencia, porém, são os instrumentos analíticos com os quais podemos reativar e assim pôr em prática esta estética. Ao ter aberto o horizonte da “estética da terra”, ele nos convida ao trabalho de encontrar metodologias e abordagens que abrem as trilhas para chegar a este horizonte. É necessário, portanto, perguntar qual é o papel da teoria literária neste empreendimento. Em outras palavras, como e com que objetivos engajar-se analiticamente dentro de uma “estética da terra”? E como trabalhar esta estética em relação com os diversos tipos do ‘entre’ pan-americano?

Nas minhas pesquisas de cunho comparativo e interdisciplinar, utilizei e redefini o paradigma da transculturação e os diversos processos mnemônicos envolvidos para poder analisar a representação dos fluxos erráticos de elementos culturais nos entre lugares (diaspóricos) e interfaces transnacionais das literaturas interamericanas (WALTER, 2003; 2009). Mais recentemente elaborei o eixo teórico do inconsciente político, cultural e ecológico com o objetivo de revelar e examinar os traços mnemônicos das diversas fases e tipos de colonização e colonialidad del poder que imbuem a tessitura de obras literárias pan-americanas (WALTER, 2012; 2013; 2014; 2015). Penso que qualquer abordagem crítica de questões identitárias deve necessariamente voltar à experiência violenta da colonização e seus efeitos. O genocídio de tribos indígenas, a escravidão e o sistema de plantação e as várias formas de exploração da natureza, entre outros, caracterizaram as diferentes fases e processos de colonização e ainda continuam a ter um impacto sobre o pensamento e o agir das pessoas não somente em termos de como elas se relacionam e tratam os diversos outros, mas como as imagens destes eventos traumáticos perseguem ideias e atos. A representação do espaço é simbolizada por uma natureza nutrida pelos corpos e mentes violados da história colonial e do presente neocultural, um engajamento literal com o que o poeta caribenho Harris (1981; p. 90) chama “o fóssil vivo de culturas enterradas”, e, poder-se-ia acrescentar, a dança moribunda de culturas vivas. Caracterizadas por violências físicas, ecológicas

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e epistêmicas com efeitos colonizadores sobre o espaço, a mente e o corpo dos seres humanos que as habitam, estas culturas dançam de rosto colado, constituindo diversos entre lugares multiétnicos particulares. Em seguida, elaborarei esta dança do ‘entre’ com base em textos literários e críticos oriundos de diversos contextos étnico-culturais das Américas.

No livro ¿Por qué no cuidar a esos montes sagrados?, o jovem agricultor Girvan Tuanama Fasabi trabalha o tema da terra enquanto episteme cultural. O livro, ― um grito em defesa da Pachamama, do direito da comunidade Kawana Ampi Urku las Palmeras no departamento de San Martín na Amazonia peruana de decidir sobre o destino das terras que habitam desde gerações ― defende o uso e cultivo coletivo da terra pela comunidade indígena contra a intrusão das empresas transnacionais que se apropriam destas terras com o objetivo de explorar os recursos naturais; um processo de neocolonização tolerado se não ativamente incentivado pelas diferentes instâncias governamentais que leva à diasporização por meio de um desenraizamento étnico-cultural. As autoridades regionais e nacionais, segundo o autor, não “escuchen las voces de las comunidades locales, la posición de las comunidades [...] estamos queriendo el território para garantizar que los hijos de nuestros hijos tengan agua, conozcan siquiera un pez [...]” (FASABI, 2012, p. 18). O que está em questão aqui — como em muitas partes das Américas e do mundo inteiro — não é somente a subsistência das existências humanas, vegetais e animais, mas uma episteme cultural: uma cosmogonia/ cosmologia articulada numa língua específica, o quéchua neste caso, que forma a base do ser-estar étnico-cultural num lugar num dado tempo. Resume Fasabi: “Y me pregunto, pues, cuando deforestamos todo ese monte ¿adónde se irán los espíritus? ¿Por qué no cuidar a esos montes sagrados?” (FASABI, 2012, p. 27).

Mais ao norte, em Toronto, Canadá, os habitantes desta megacidade, envolvidos no seu dia-a-dia de ganhar a vida, não se importam com (ou ignoram) o fato de viver em terra roubada. Ao descrever os diversos matizes étnico-culturais da cidade, a voz narrativa do romance What we all long for (2005), da escritora canadense Dionne Brand, diz o seguinte: “Todos estão sentados em cima da terra dos Ojibwa, mas quase ninguém sabe ou tem interesse em saber por que esta genealogia é deliberadamente não demonstrável à exceção do nome da cidade” (BRAND, 2005, p. 4).

No romance Almanac of the Dead (1992), a escritora indígena norte-americana Leslie Marmon Silko figura a maldição das Américas na violência militarizada massacrando o continente: os esquadrões de morte financiados pelos Estados Unidos; o comércio de órgãos humanos; o tráfico de drogas4; assassinatos em série, estupros, a destruição do ecossistema em benefício do capital corporativo e imobiliário; o colonialismo internalizado; o racismo étnico-cultural, etc. Mediante a representação desta rede de violências, Silko (1992, p. 734) recria o embate entre as civilizações autóctones e as barbáries feitas pelos intrusos europeus nas Américas — “quinhentos

4 A ligação entre o tráfico de órgãos humanos e drogas também constitui a trama do romance The Guardians (2007), da escritora chicana Ana Castillo.

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anos de explosões, incêndios e matanças” —, destacando, entre outras, uma das questões não resolvidas, mas cruciais (por causa de seus efeitos no presente) que liga o passado com o presente das Américas: o roubo da terra não recompensado. Neste sentido, uma das vozes narrativas que tece a narrativa multidimensional alerta: “a terra tem que ser devolvida aos povos cujos ancestrais continuamente viveram na terra por vinte mil anos” (SILKO, 1992, p. 524).

A terra não somente deve ser devolvida, como também ser dada plena soberania aos povos ameríndios. No romance The round house (2013), Louise Erdrich, escritora indígena norte-americana, denuncia a falta desta soberania. Ao narrar o amadurecimento intelectual de Joe Coutts de treze anos numa reserva indígena de North Dakota, em 1988, o livro focaliza o abuso sexual de mulheres indígenas por homens brancos nas reservas norte-americanas. Logo nas primeiras páginas, a mãe de Joe, Geraldine Coutts, é brutalmente violentada por um homem branco num ato selvagem de vingança. Traumatizada, Geraldine retira-se em silêncio, provocando pesar e raiva no seu marido, um juiz tribal, e no seu filho o ímpeto de entender e resolver importantes questões de justiça, vingança e a natureza inexplicável do mal. Num trecho, o pai de Joe refere-se a vários processos da Suprema Corte entre 1823 e 1987, destacando, desde o passado, “a desapropriação das nossas terras continua”. Ademais, as selvagens políticas (neo)coloniais institucionalizadas também “tiraram de nós o direito de processar não indígenas que cometem crimes nas nossas terras” (ERDRICH, 2013, p. 229).

Tanto Brand no Canadá quanto Silko e Erdrich nos Estados Unidos e Fasabi no Perú denunciam uma das características mais importantes de uma colonialidad del poder que desde os tempos da colonização escreve novos capítulos: a questão da terra enquanto base de uma episteme cultural, ou seja, de um etos e uma cosmovisão que possibilitam a posição do sujeito dentro de uma sociedade e a partir deste lugar sua relação com o mundo. Nas Américas, com o estabelecimento dos diversos impérios autóctones pré-colombianos (asteca, inca, entre outros) e com a chegada dos europeus e a implícita apropriação do espaço e transculturação forçada, a palavra ferida pelos diversos deslocamentos era e, muitas vezes continua sendo incapaz de transmitir a equação sujeito/ língua/ lugar/ mundo. A violência da conquista e dos contínuos conflitos que tenham resultado dela é figurada através dos abusos sexuais e desfigurações de corpos femininos, da extração dos recursos naturais, poluição industrial, expulsão de pessoas e povos, genocídio e escravização, exploração de mão de obra em nome de um chamado ‘progresso nacional’.

A meu ver, de todas as coisas fora do lugar (SCHWARZ, 1989) nas Américas, é nesta equação quebrada que reside uma das fontes principais do entre lugar identitário que caracteriza os povos americanos de diversas formas. Um entre lugar onde os gritos das falas subalternizadas ecoam nos silêncios forçados de uma contínua transculturação esquizofrênica cuja violência é epistêmica, física e ecológica. Um entre lugar onde múltiplos conflitos constituem o signo — e especialmente o acesso ao signo — como lugar de luta sobre autoridade social e semântica. Um entre lugar caracterizado,

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segundo Glissant (1992, p. 144), por uma violência espacial e temporal, um “tempo explodido, sofrido” ligado a um “espaço transferido”. Um entre lugar identitário de fluxos transculturais onde as memórias oficiais e diversas contramemórias étnico-culturais deixam seus traços opostos e mesclados. Se, segundo Geertz (1973, p. 27), a base da teoria cultural é a revelação e a problematização das “estruturas conceituais que informam os nossos atos de sujeitos” com o objetivo de entender as sociedades nas quais estes sujeitos são inseridos, então alego que estes entre lugares são os espaços ideais para este tipo de “thick description”5.

Uma análise que, neste caso específico das Américas, indica o cerne do conflito étnico-cultural que provoca os rizomas do “entre” — a oposição entre basicamente dois significados atribuídos à terra: seu uso pelos grandes proprietários rurais, os governos e as indústrias por um lado, e por outro pelas comunidades indígenas e pequenos agricultores. Enquanto para os primeiros a terra é um instrumento de lucro, de exploração, de negócios, para os autóctones e pequenos agricultores a terra simboliza o lugar onde seus antepassados e divindades vivem, ou seja, um lugar que confere identidade à comunidade e onde se procura o sustento. Nesta dicotomia de modelos de convivência e sociedade dentro de um tópos, um lugar-espaço cruzado pelos vetores sociais de “raça”, “etnia” e “gênero”, reside o que Cornejo-Polar (2000, p. 147) chama de “heterogeneidade conflituosa” das nações latino-americanas que são “traumaticamente desmembradas e cindidas”. Se a memória é a base da reprodução cultural e nesse processo uma forma que produz sentido (do self), o trauma não pode ser recordado porque os eventos traumáticos foram reprimidos da consciência, ou seja, não codificados na narração (oral ou escrita) da memória. Segundo Caruth (1996, p. 4), experiências traumáticas causam uma “ruptura na experiência do tempo, self e mundo”. Como é possível traduzir catástrofes e seus efeitos traumáticos como também a cura destes para a palavra escrita?

Para Taylor (1989, p. 28), a memória constitui um “espaço moral, um espaço no qual questões são levantadas sobre o que é bom ou mal, o que vale a pena fazer ou não, o que faz sentido e tem importância para alguém e o que é trivial e secundário”. Neste sentido, para muitos artistas, o espaço intersticial entre a memória oficial e as contramemórias constitui o lugar propício para trabalhar a humanização da memória étnico-cultural. Mesmo que todas as testemunhas da escravidão, do sistema mercantil da plantação e do genocídio indígena desapareceram do nível da “memória funcional” e se deslocaram para o da “memória armazenadora”, os estereótipos e preconceitos implícitos neste processo colonial continuam agindo no nível da memória funcional.6 Um dos objetivos principais da escrita multiétnica das Américas é voltar às raízes das

5 Para Geertz (1973, p. 10), um dos pilares desta teoria é a análise da “ideologia como sistema cultural”. 6 Aleida Assmann (2011) distingue entre dois modos de memória — memória funcional e memória armazena-dora — cuja relação é caracterizada por um constante fluxo de seus elementos mnemônicos. Os termos foram cunhados para superar a oposição entre a memória habitada (que pertence a um indivíduo, grupo, etc.) e a me-mória não habitada (livraria, museu, universidade, arquivo, etc.) estabelecida por Pierre Nora em The realms of memory, vol. 1: Conflicts and divisions (1996, p.1-20).

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diferentes formas e práticas violentas de colonização que acumulam desde há séculos e afetam toda a biota para conscientizar os leitores da contínua injustiça sofrida. O que constitui a poética-política destas escritas, portanto, é uma democratização da memória cultural distorcida, falsificada e silenciada pelos diversos discursos hegemônicos.

A reconfiguração da relação entre memória, lugar e consciência em nossos tempos de fluxos entre lugares e identidades é de suma importância. Caracterizada por complexas fissuras e fusões culturais de suas raízes rizomáticas, a memória diaspórica cria uma continuidade móvel, fragmentada e performática entre lugares e tempos. Neste sentido, a memória diaspórica é um conflituoso “processo de conexão” (BAL, 1999, p. 7) que contribui para a (re)criação identitária entre diversos epistemes culturais, em vez de constituir a base para uma identidade fixa enraizada num único lugar. O que se esconde atrás de termos como, por exemplo, ‘flexibilidade’ e ‘transnacionalidade’ é articulado pela voz narrativa de um dos romances fundadores da chamada Chicano Literary Renaissance, ...Y no se lo tragó la tierra/ ...And the earth did not part de Tomás Rivera (1971, p. 114): “cuando lleguemos, cuando lleguemos, ya, la mera verdad estoy cansado de llegar. Es la misma cosa llegar que partir porque apenas llegamos y [...] la mera verdad estoy cansado de llegar. Mejor debería decir, cuando no lleguemos porque esa es la mera verdad. Nunca llegamos”. O romance, cujo enfoque é a realidade vivida dos trabalhadores migrantes de descendência mexicana nos Estados Unidos nas décadas 60 e 70, além de revelar que o salário baixo é uma das bases fundamentais da subalternização, ou melhor, da neocolonização dentro do que Quijano (1997) teoriza como colonialidad del poder, desmistifica a migração como um sistema orquestrado entre nações, neste caso o México e os Estados Unidos, que mina a base estável da legalidade: viver com os pés na estrada por causa de necessidades (políticas, econômicas, sociais, etc.) — e não impelido pelo desejo de aventura e/ou tédio da vida burguesa como no caso dos escritores da geração beat — torna difícil o estabelecimento de uma vida sócio e politicamente digna. O romance denuncia a transformação de pessoas migrantes em objetos vulneráveis de exploração como objetivo principal de uma migração institucionalizada que cria um no-man’s-land, um nepantla em termos sociais e legais. Voilà uma das estratégias e práticas imperiais de subalternização mais usadas desde os tempos do mercantilismo até o capitalismo neoliberal e a diasporização transnacional de hoje.

Em seguida, gostaria de voltar ao trauma da violência colonial e examinar o efeito dela no pensamento e agir dos personagens em romances dos escritores caribenhos Patrick Chamoiseau e Gisèle Pineau. Argumentarei que nas obras destes autores em geral, mas especificamente em Biblique des derniers gestes (2003) de Chamoiseau e L’espérance-macadam (1996) e Morne câpresse (2008), de Pineau, a estetização da violência tem como objetivo a revisão da historiografia hegemônica e neste processo a problematização de aspectos culturais e identitários marcadamente imbuídos de questões de raça e gênero.

Com relação à violência natural dos ciclones que ciclicamente se refletem e refratam nas violências dos homens de Savane, uma aldeia em Guadalupe, Rosette (1996, p. 241-242; grifo meu) em L’espérance-macadam, pensa que

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a vergonha e as feridas remontaram das profundezas do passado para emergir suas miragens, suas promessas do fabuloso amanhã no presente. Não, nada tem mudado desde que os primeiros Negros da África foram transbordados neste país que somente sabe gerar ciclones, esta terra violenta onde tanta maldição pesa sobre os homens e as mulheres de todas as nações. Nada tem mudado.... O sabre, a corda, as correntes...

Filhas sexualmente abusadas pelos pais; mães batendo em filhas por não (querer) acreditar nestes atos; homens violando mulheres num ambiente de convivência caracterizado por fúria, ódio, rancor, inveja e desconfiança: voilà o panorama de uma violência que, igual à força natural dos ciclones, castiga a comunidade de maneira cíclica, reforçando a ideia da maldição da raça negra articulada pelos próprios personagens: “Não, o Bom Deus não amava os Negros, nunca lhes dá o menor favor no céu e na terra. [...] Havia tanta malandrice enraizada em nós, Negros” (ROSETTE, 1996, p. 127).

A violência representada na escrita de Pineau (1996, p. 99) é cruzada por sexo e gênero e resumida em três palavras: “Fender, rachar, cortar”. O caso de Hortense, brutalmente assassinada por seu companheiro, Regis, que a acusa de traição, serve como exemplo da bestialidade humana. Depois de matá-la, Regis corta Hortense em pedaços com seu “sabre” e coloca a cabeça, as mamas e a vagina em cima de uma folha de banana no chão da cozinha. A repetição desta imagem sangrenta ao longo da trama reforça o eco gritante da acusação silenciosa por parte da mulher assassinada; imagem esta, que igual a uma fotografia ou pintura de cores berrantes e/ou motivos chocantes grava-se na mente dos leitores enquanto lugar de memória, articulando não somente a violência contra a mulher nesta sociedade pós-colonial, mas a coisificação da mulher como objeto de consumo masculino numa sociedade contemporânea onde a colonialidade do patriarcalismo escreve capítulos neocoloniais. Neste sentido, e especialmente à luz da internalização da culpa pelos próprios afrodescendentes, aceitando “a maldição” da raça negra como algo ‘natural’, as raízes do ‘neo’, que imbuem o ‘pós’, se alimentam do fértil subsolo da máquina colonial de plantação e escravização dos africanos e seus descendentes. Como tal, este subsolo do passado alimenta os que vivem no presente, transformando os sujeitos em seu efeito via crises traumáticas ― Regis que vive sua ansiedade de castração herdada da máquina de plantação escravizadora mediante o que Fanon (1967) chama de violência desviada dos colonizados; violência esta que pode ser de natureza tanto psicológica e autoinfligida, como física e direcionada contra seus iguais ― ou via pós-memória7 como no caso de Rosette (1996, p. 166), que de vez em quando imagina os tempos passados ao observar a realidade do presente: “Em sua volta surgiram os Negros da África mortos nos porões dos negreiros sob o chicote, dilacerados pelos cachorros, vomitados pelos chamados senhores do mundo. Ela ouvia os suspiros das mulheres e os gritos dos órfãos, mas também as vociferações dos quilombolas que fugiram para o alto dos montes”. A

7 Marianne Hirsch (1999, p. 8) utiliza o termo postmemory para descrever o tipo de memória daquelas gerações subsequentes que não viveram os eventos traumáticos, mas os conhecem somente por meio de “estórias e ima-gens com as quais cresceram”.

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autora, em contraposição à maior parte dos personagens, consegue perlaborar o trauma e curar sua culpa de sobrevivente, descendente de africanos escravizados, desassociar seu libido de uma subjetividade sexual autônoma negada, controlar o impulso de reviver cenas de uma violência incompreensível, inefável, num ato de conscientização que compreende o impacto contínuo da violência formativa da era de plantação na vida das pessoas, sedimentando-a enquanto memória coletiva e assim libertando-se da vitimação autocolonizadora.

Também, em Morne câpresse (2008), Pineau utiliza a estetização da violência para enfatizar e problematizar questões históricas e culturais. O romance descreve a criação e destruição de uma instituição — a Congregação das “Filles de Cham” — que ajuda as mulheres que o sistema patriarcal e consumista (ab)usa e depois deixa à margem; mulheres caídas na “mundialização do Mal” (PINEAU, 2008, p. 107) “das drogas, da prostituição, dos infanticídios, do incesto, das violações” (PINEAU, 2008, p. 123). A pergunta que a trama do romance conota — qual a razão das mulheres se encontrarem nestas condições — tem duas respostas: a atitude dos homens e a cultura consumista. A fundadora da comunidade, Pacôme, foi criada pela mãe depois que o pai abandonou a família para viver com outra mulher. O costume dos homens de ‘trocar’ mulheres e abandoná-las grávidas ou com crianças recém-nascidas é, segundo a narração, endêmico de uma sociedade que nasce na violência do sistema de plantação. Esta prática que sustenta a virilidade e enfraquece a base da família enquanto lar, proteção e educação das crianças que crescem sem esteio, soltas, piruetando em direção aos abismos de uma sociedade baseada nos valores do consumo: o paraíso falso de um hedonismo instantâneo e contínuo regido pelo Moloch do capital que coloniza tudo o que é natural: “[...] a ilha transformou-se docemente em descarga selvagem, [...] as antigas plantações eram envenenadas pelos pesticidas e adubos químicos, [...] os montes verdes, as terras virgens desapareceram cada dia um pouco mais sob o concreto, ferros velhos, alcatrão, as carcaças de carros e todas as imundícies da sociedade de consumo” (PINEAU, 2008, p. 59).

Pacôme, portanto, inspirada pela leitura dos textos de intelectuais negros, instigada pela própria experiência e em contato com os espíritos dos ancestrais, considera-se eleita para fundar uma comunidade que presta assistência às mulheres caídas nas imundícies da “mundialização do Mal”. O terreno para este projeto é doação de uma família que enriqueceu com a escravização dos africanos e afrodescendentes e a exportação de café para a Europa — uma ex-plantação de café, portanto, onde não somente a flora e fauna nativa foram violentamente colonizadas pelo cultivo de vegetais importados, mas onde as atrocidades perpetradas por seres humanos vagam pelo ambiente enquanto “fantasmas do passado” (PINEAU, 2008, p. 260). Ao longo dos anos, as mulheres que vivem na comunidade transformaram esta ex-plantação num paraíso de flores, cores e bem-estar, pelo menos assim parece à primeira vista. Entretanto, desde o início do romance, a voz narrativa nos faz lembrar um passado aparentemente não tão passado: “[...] o viajante não podia imaginar que no passado o horror habitava estes lugares e que desde este tempo homens acorrentaram outros homens pelo açúcar, café, cacau... Será que a terra se lembra deste passado? As correntes,

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a dor, o chicote, a cólera perante a ignomínia e o silêncio das Nações...” (PINEAU, 2008, p. 59; grifo meu). Toda a obra da autora delineia diversas versões desta pergunta, revelando diferentes aspectos e matizes de uma terra onde o mundo humano e não humano cresce de geração a geração como “plantas de raízes cortadas. Arbustos fracos que cresceram na sombra do ódio. Rebentos com sede, queimados pelo sol, arrastados pelo vento e que se alimentaram pelos seus próprios erros de sobreviver, resistir à desgraça...” (PINEAU, 2008, p. 259). Ao crescer e viver na “sombra do ódio” com “a sombra do medo e miséria em cada um de seus gestos” (PINEAU, 2008, p. 121), as gerações guadalupenses, mesmo ‘esquecidas’ do passado, têm “um espinho [...] plantado no meio dos seus corações” que parecia “fossilizado na carne” (PINEAU, 2008, p. 122):

Os descendentes dos escravos se lembraram que chegaram de lá... Desta história apagada das memórias... E uma dor infernal, sem nome nem rosto, começou a roê-los, devorá-los. A partir deste momento, os filhos buscaram consolação no fumo das ervas, nas pipas do crack, os corpos ardentes, a loucura, o álcool...

Assim, pela desintegração da capacidade humana de sintetizar impressões num todo consciente, conduzindo a uma fragmentação na percepção do self, da realidade, das emoções e das memórias sedimentadas, os acontecimentos traumáticos do passado provocam diversas formas de violência — inerentes às múltiplas práticas neocoloniais de dominação e resistência — que contribuem para a brutalização das pessoas e do espaço no romance.

O fracasso violento da comunidade das Filhas de Cham nos primeiros anos do século XXI tem suas raízes na violenta “irrupção na modernidade” (GLISSANT, 1992, p. 146) das ilhas caribenhas; na esquizofrênica “não história” caracterizada por um “espaço transferido” e um “tempo torturado”. Pineau (2008), na sua obra, delineia um povo sem raízes na terra, um povo traumaticamente e violentamente ancorado nas ondas do mar que liga e separa as costas africanas e americanas. Ao trabalhar a relação rizomática e violenta entre a palavra latina cultura e seus desdobramentos epistemológicos ‘cultura’, ‘colônia’, e, por extensão, ‘terra’, ‘solo’ e ‘cultivação’8, a ficção dessa autora estabelece enquanto recuperação retórica um senso de lugar — as ramificações culturais, político-econômicas e históricas da geografia — ligado a um senso de história e cultura e neste engajamento estético com a amnésia cultural-histórica e perda de origens constrói a base para um pertencimento à terra. É neste sentido que a estetização da violência na obra de Pineau (2008) serve para diagnosticar e problematizar questões de identidade cultural.

Ao analisar a obra Drums and colours do poeta Derek Walcott, o escritor e crítico literário Benítez-Rojo (1996, p. 300) escreve o seguinte: “Qual é o problema que segundo Walcott permanece constante no Caribe? Violência, violência completa, violência histórica [...] descobrimento, escravidão, colonialismo”. Em Biblique des derniers gestes

8 Para uma análise cientifica desta relação, ver Young, Bosi e Benítez-Rojo, entre outros.

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de Chamoiseau (2003), M. Balthazar Bodule-Jules chama o tráfico de seres humanos entre a África e as Américas “o crime de fundação dos povos americanos”. Tanto os descendentes dos escravagistas quanto os dos escravizados são “marcados por este traumatismo maior [...]: é suficiente escutar seu rumor subir em nossos ossos” (CHAMOISEAU, 2003, p. 59-60). É a “maldição que chegou do mar” que imbui a identidade individual e coletiva, o etos e a cosmovisão da comunidade antilhana; maldição esta que faz parte do “mal” universal de qualquer forma e prática violenta inerente às relações de domínio. Desta perspectiva, as mais que oitocentas páginas do romance focalizam fragmentos das diversas vidas de Balthazar Bodule-Jules — em uma delas, ele nasce e cresce há centenas de anos na África, chega à Martinica num navio negreiro e, depois da fuga, vive como quilombola; em outra, nasce e cresce na Martinica, anda pelo mundo enquanto guerrilheiro, participando de diversos movimentos anticolonialistas do século XX, para voltar à ilha lutando de maneira pacífica contra várias formas de dependência neocolonial — numa moldura dupla: a “maldição” negra como parte constitutiva do “mal” universal do colonialismo-imperialismo. Com base em entrevistas e nos escritos de Balthazar, comentários e relatos de seus amigos, assim como na sua própria imaginação estimulada pelos gestos de Balthazar, o narrador-jornalista (CHAMOISEAU, 2003) reconstrói as lembranças do velho Balthazar durante os últimos dias antes da morte deste, admitindo que, por meio de sua própria imaginação durante o processo da escrita, sua própria memória tornou-se aquela de Balthazar e vice versa. A memória individual de Balthazar, portanto, é ao mesmo tempo a memória de uma comunidade radicada em Martinica, da diáspora negra das Américas e, por causa das múltiplas vidas do personagem-guerrilheiro nas guerras anticoloniais do mundo, a memória humana dos danados da terra — traços mnemônicos entrelaçados, mutuamente se prolongando. Nestas andanças mágico-realistas através de tempos e mundos — que enquanto relato de um discurso imaginado cria “um organismo aberto, circular e vivo” (CHAMOISEAU, 2003, p. 471) de tempos, lugares, mundos (humanos e não humanos) e constitui uma resistência à violência (pós/neo)colonial do pensamento e da língua colonial ocidental — Balthazar, enquanto testemunho e agente de diversos tipos de violência, chega a dois insights principais: 1) “Era o testemunho visionário de uma memória coletiva que habitava em todos nós, em todas as Américas” (CHAMOISEAU, 2003, p. 74); 2) ”O Ocidente é uma máquina de etnicídios, uma força cega de genocídios!” (CHAMOISEAU, 2003, p. 385). Para os afrodescendentes antilhanos a ligação entre estes insights é o negreiro, símbolo e berço de sua digenèse, como diria Glissant (1997). Chamoiseau (2003, p. 62-63) delineia o nascimento enquanto morte de Balthasar num negreiro assim:

Neste barco terrível, tudo contra ele, um cadáver desconhecido esfriou eternamente. A carne gelada queria aspirar o resto do seu calor, tentava entrar nele, engoli-lo inteiramente. Ele quis levantar num pulo para romper este contato. O gancho dos aços fixados ao seu colo, seus pulsos, seus tornozelos, tinha-lhe crucificado no pequeno espaço onde devia sobreviver. A carne morte ficou colada contra ele, chupando, gelada como um abismo [...] ela se tinha introduzida nele e o tinha dispersado nas carnes desfeitas ao longo do

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porão. [...] Ele se tinha estendido em volta dele e nele mesmo, misturando-se com o balanço do barco sob comando de uma bruxa, o fracasso imemorial da vida e morte que, mais uma vez e para sempre, move de um lado para outro no fogão das criações novas. M. Balthazar Bodule-Jules declarava que nasceu lá, na pilha desta consciência.

Nascido no negreiro-mar enquanto mãe, onde a morte penetra e chupa a vida dos ‘recém-nascidos’, o ser escravizado e seus descendentes habitam este lugar intervalar entre o que Caruth (1996, p. 7) chama “a crise da morte e a correlativa crise da vida, entre a estória da natureza insuportável de um evento e a estória da natureza insuportável de sua sobrevivência”.

É deste entre lugar de uma pós-memória interbiótica, onde a destruição e a reconstrução dançam de rostos colados, que Chamoiseau (2003) escreve e, como muitos dos seus conterrâneos hemisféricos, tenta refazer as trilhas do “erro cometido em um lugar”, no dizer do narrador sem nome no clássico mundial Invisible man de Ralph Ellison (1952); trilhas opacas, não lineares, ofuscadas pela erva maligna do esquecimento institucionalizado pelo discurso da historiografia oficial; trilhas que Chamoiseau (1997, p. 120) reconstrói por meio de “memórias [que] irradiam no Traço; habitam-no de uma presença-sem-matéria oferecida à emoção. Suas associações, Traços-memórias, nem fazem monumentos nem cristalizam uma memória única: são o jogo de memórias entrelaçadas. [...] me fazem compreender-ver-tocar-imaginar o entrelaçamento das histórias tecidas por minha terra”. Mediante este desejo-imaginação-emoção mnemônico — processo este que é um exemplo de como Chamoiseau (1997) cria-criouliza as realidades e cronotopias via prolongamentos entrelaçando os mundos vegetais, animais e humanos — a estetização da violência revela e problematiza questões de história, cultura e identidade: é a fissura de fundação que cruza a suposta fusão cultural das sociedades antilhanas com a bestialidade perversa de formas e práticas colonizadoras desde os tempos passados.

Esta contínua colonialidad del poder é inscrita nas mentes e corpos dos seres humanos e da natureza. Gostaria de retomar a questão de memória da terra levantada pela voz narrativa em Morne câpresse, de Pineau (1996), e colocá-la de uma maneira mais universal: como a terra é afetada pela violência humana? Em outras palavras, como as representações literárias traduzem a ligação entre a brutalização do ser humano e a brutalização da geografia? Se a paisagem tem a sua fala, como alega Édouard Glissant (1996), poder-se-ia argumentar que ela tem memória?

O termo ‘lugar’ pode ser definido de maneira geográfica, ambiental, fenomenológica (ao ligar ‘corpo’ e ‘lugar’) e genealógica (ao ligar ‘ancestralidade’ com ‘território’), em termos de expansão de império, urbanização e diminuição da natureza virgem, entre outros. Se segundo Lefebvre (1974) os espaços são percebidos, concebidos e vividos, ou seja, tanto reais quanto imaginados e conforme Raffestin (1980) a territorialidade é um tipo especifico de espaço delimitado pelo agenciamento dos personagens, então alego que a demarcação do espaço (com seus lugares) resulta tanto de medições e mapeamentos cartográficos quanto do sistema semiótico de linguagem

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e suas imagens articuladas. Para Ashcroft (2001, p. 156) “o lugar é um resultado de habitação, uma consequência dos modos como as pessoas vivem num espaço”. Por outro lado, a maneira como pessoas habitam um lugar — seu imaginário, episteme cultural, língua, gestos, maneira de falar e vestir, etc. — é determinada por este lugar. Assim, Zukin (1991, p. 268) argumenta que “o espaço estrutura as percepções, interações e senso de bem-estar ou desespero, pertencimento ou alienação das pessoas”, estimulando “tanto a memória quanto o desejo” e indicando “categorias e relações entre estes”. As formas de espaço constituem tanto o meio como o modo da nossa conscientização, ou seja, o espaço torna-se, simultaneamente, a forma das experiências vividas e a imagem de seus conteúdos. Isso significa que pertencer a um lugar é determinado menos pelo que se possui em termos de propriedade (terreno, casa, etc.) do que pela relação entre a memória fragmentada, seletiva e imaginada e a experiência vivida.

Ao falar em espacialidade da vida social e geografia afetiva, ou seja, “a concretização das relações sociais embutidas na espacialidade”, Soja (1989, p. 7) enfatiza que a “organização do espaço é um produto social” que “surge de uma prática social”. E práticas sociais são determinadas pelas relações de poder vigentes num lugar; relações estas imbuídas de sistemas mnemônicos de codificação já que é a memória que designa valor às coisas e lugares. Assim, a cultura pode ser definida como efeito mnemônico produzido pelas relações hierárquicas entre espaços e as comunidades que lhes atribuem significância. Com o aumento significativo dos fluxos erráticos de capital, seres humanos, ideias, tecnologia e comunicação nos e entre os mercados ‘livres’ que compõem o sistema capitalista na fase contemporânea da globalização transnacional, o ser humano (em mobilidade nas rotas mundiais) perde mais e mais suas raízes culturais e mnemônicas do local. Assmann (2011, p. 346; grifos meus) alega que “em um tempo de mobilidade e renovação modernas, torna-se obsoleta a memória do local e, com ela a responsabilidade por um determinado pedaço de terra”. Uma memória em fluxo, desvinculada do local significa uma ruptura no continuum do Dasein enraizado em reflexão e conscientização enquanto base do agir. Como Manuel Castells (1983, p. 314) ressalta, sob os imperativos capitalistas de crescimento urbano, “o que tende a desaparecer é o significado dos lugares para as pessoas”.

Neste sentido, a cidade é um espaço principal das deformações de lugar, trabalho e relações sociais. Com base numa mentalidade de supercrescimento imperial, cidades como Berlim, Los Angeles, México DF, São Paulo e Singapura, entre outros, foram reestruturadas nas últimas décadas pelo capital das empresas privadas com o suporte dos governos. Neste processo, os interesses dos urbanistas impuseram-se às vontades dos habitantes destas metrópoles: áreas de residência social, parques para a população, por exemplo, quase sempre tinham que ceder aos projetos de shopping, residência de luxo, ou, como no caso de Los Angeles, autoestradas.

Lorna Dee Cervantes e Helena María Viramontes, escritoras chicanas, traduzem esta violência urban(ístic)a nos seus textos ao focalizar a construção de freeways nas décadas de 60 e 70 em Los Angeles e San José, Califórnia. Num grupo de poemas de sua coleção Emplumada (1981), Cervantes emprega a autoestrada como leitmotiv de deslocamento;

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uma agressiva desterritorialização geográfica causada pelo planejamento urbanístico que levou a uma desterritorialização social, material e espiritual do bairro chicano: “Estas aldeias mais velhas morrem/ transformando-se em trechos de autoestrada./ Os altos andaimes cortam uma cesárea limpa/ através de ventres-vales e poeira fértil. [...] Neste lugar vejo somente estrangeiros./ Nas prateleiras há antiguidades amargas,/ restos ianques/ e estes não dos californios” (CERVANTES, 1981, p. 42-43); “As casinhas perto da grisalha fábrica de conservas,/ deitadas no meio de abraços selvagens de rosas trepadeiras/ e gerânios vermelhos da altura de um homem/ não existem mais. A autoestrada oculta tudo/ isto debaixo de uma cicatriz elevada” (CERVANTES, 1981, p. 39). Estes trechos, tirados dos poemas “Californios” e “Freeway 280”, revelam o ominoso impacto distópico da autoestrada sobre a comunidade chicana e a natureza, ambas reduzidas a um wasteland do desenvolvimento urbano. Em “Freeway 280”, porém, à descrição da devastação pela freeway segue uma narrativa de reapropriação que inscreve um processo de descolonização enquanto utopia concreta: “Mas sob os falsos sons do vento das pistas abertas/ nos lotes abandonados lá embaixo, grama nova brota,/ mostarda selvagem lembra, velhos jardins/ voltam mais fortes do que foram,/ árvores continuam em pé,/ velhinhas chegam aqui com bolsas de papel para colecionar verdura, [...]” (CERVANTES, 1981, p. 39). A imagem da natureza recuperando espaço e das velhinhas em busca de ervas sugere um processo de cura no qual a tradição do saber feminino (medicinal e espiritual) garante a sobrevivência da comunidade num ciclo de vida e morte guiado pela força da memória: uma contramemória de resistência étnico-cultural que inclui toda a biota.

Em contrapartida, Helena María Viramontes, em Their dogs came with them (2007), não dota sua narrativa de um horizonte de utopia concreta. As “freeways”, cuja poluição e barulho de carros, serpenteiam através da trama, “amputaram as ruas, tornando-as becos cotós sem saída, e as vidas dos vizinhos coçaram como membros-fantasma na memória de Mama. [...] Tranquilina apontou para os muros da autoestrada manchados com grafite das gangues. O sólido bloco de concreto sem fim pareceu tão frio e cinzento quanto o céu cheio de chuva” (VIRAMONTES, 2007, p. 33). Neste romance, a construção da autoestrada, ao desenraizar as pessoas, literalmente enterra o saber comunitário e a memória dos lugares embaixo do concreto. O resultado é uma fragmentação e alienação de comunidades étnico-culturais que gera um aumento de marginalização, pobreza e violência de gangues. Uma vez destruído o lugar de vida coletiva com seus laços de afeto, possibilidades de trabalho e lazer, os bairros tornam-se cemitérios onde homens-fantasma e cachorros soltos lutam para sobreviver: “Cachorros emergiram, bandos deles vagando pelas ruas em busca de comida no lixo e desafiando os pobres” (VIRAMONTES, 2007, p. 124). Uma animalização da vida humana criada pela ligação entre o racismo étnico-cultural e o que o filósofo Curtin (2005, p. 145) chama de “racismo ambiental”, isto é “a conexão, em teoria e prática, entre raça e ambiente de forma que a opressão de um é ligada e sustenta a opressão de outro”. O racismo ambiental é um fenômeno sociológico exemplificado no tratamento ecologicamente discriminatório de povos socialmente marginalizados ou economicamente discriminados. É uma forma extrema

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do que Plumwood (2001, p. 4) chama de “centrismo hegemônico” nutrido por racismo, sexismo, colonialismo e imperialismo; formas de domínio entrelaçadas que tenham sido convocadas historicamente com o objetivo de explorar seres humanos e não humanos e ao mesmo tempo minimizar pretensões não humanas para com uma natureza compartilhada. Neste processo, não se deve esquecer, como Plumwood (2003) assinala, que a definição ocidental da humanidade sempre dependeu e continua depender da presença do não humano como incivilizado e animalesco. A justificação de processos de invasão/ colonização/ dominação procedeu desta base antropomórfica e racista que nega e cancela o self dos diversos Outros. No romance de Viramontes (2007), a memória, tão crucial para a descolonização, se perde não somente por causa das autoestradas, mas pela violência multidimensional que esta invasão do capital privado provoca: um inferno bárbaro cuja imagem de “lágrimas”, “sangue” e “feridas de bala” (VIRAMONTES, 2007, p. 325) cristaliza-se no grito desesperado da personagem Tranquilina: “We’rrrre not doggggs”! (VIRAMONTES, 2007, p. 324). “Não somos cachorros”, denuncia não somente a inferiorização e subalternização da comunidade chicana que vive em Los Angeles há gerações pela contínua reestruturação do espaço pelos fluxos do capital, como também, de forma explícita, as estratégias de repressão social e espacial do capital corporativo e as inerentes formas e práticas da perda da terra privada, o conflito racial, a difamação cultural, o controle social legal e extralegal, a abjudicação dos direitos civis e o desempoderamento político que os descendentes de mexicanos têm sofrido desde a época da chegada dos intrusos anglos.

Enquanto nas escritas de Cervantes (1981) e Viramontes (2003) a máquina neoliberal de um capitalismo selvagem, ou disaster capitalism nas palavras de Klein (2007), agride o ser humano e a natureza, em When the killing’s done, de Boyle (2011, p. 2006), seres humanos travam uma “guerra total” entre si para salvar a natureza. A Dra. Alma Boyd Takesue é uma bióloga que trabalha para o National Park Service da Califórnia e encabeça esforços de salvar os animais em risco de extinção, nas Channel Islands, de espécies invasoras como ratos e javalis. O antagonista dela, Dave LaJoy, é um comerciante local ferozmente contrário à matança de qualquer tipo de animal que tenta subverter os planos de Alma. Esta confrontação entre os dois escala em violência e a trama revela e ficcionalmente problematiza o domínio que os seres humanos tentam exercer sobre o mundo natural e questões inerentes como a explosão populacional do mundo, a poluição em nome de um crescimento econômico imediatista, o consumo de carne e a resultante diminuição das florestas para a criação de pastos, o uso de pesticidas para o aumento de produção e o benefício material, a monocultura, a criação em massa de animais, a erosão do solo, a coisificação e reificação do ser humano consumista “num mundo de sociedade, comércio, TV e esquecimento”. Neste cenário surge a questão principal: como restaurar um ecossistema alterado pelo ser humano? Deve-se matar animais invasores para salvar os nativos ameaçados por estes; matar em nome da restauração ecológica? Deveríamos administrar o ecossistema ou deixar que ele mesmo se recomponha: “E se nós deixaríamos tudo do jeito que o mundo era antes de nós — assim como Deus o fez. Não seria mais fácil?” (BOYLE, 2011, p. 103). A trama

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do romance revela o caos criado pela intervenção humana no ecossistema: imbuída de ironia, a narrativa, especialmente o desfecho dos eventos, conota que por bem ou mal, a dinâmica da natureza é imprevisível. A frase “[...] aqui era o caos, aqui era o outro [...]” (BOYLE, 2011, p. 249), lida no fluxo do relato, é emblemática desta violência inerente à convivência de diferentes espécies: da perspectiva humana significa diferenciação outrizadora, já que a maioria dos seres humanos parece bem relutante em traduzir para a prática o que Lawrence Buell chamou de “re-habitação”, ou seja, uma vivência não hierárquica entre o mundo humano e não humano; de uma perspectiva vegetal/animal significa distância e cautela perante um intruso que parece mexer com tudo de maneira desastrosa. A violência, portanto, continua segundo o desfecho do romance porque os diversos tipos de colonialidade nas e entre as diversas espécies continuam: entre nativos e intrusos nós e entre os mundos humanos, vegetais e animais.

Violência física, epistêmica e ecológica dentro de um contexto de contínua colonialidad del poder. Em contraposição a Hardt e Negri (2003, p. 171), para os quais o império é constituído por redes elusivas, “flexíveis e híbridas” de “produção do capital”, para Quijano (1997) a colonialidade do poder abrange: a) o conflito de epistemes culturais e estruturas de poder dentro de um processo histórico; b) a experiência (e noção) da diferença cultural como condição de subalternidade que oscila entre alienação e potencialização; c) a categorização hierárquica das regiões e populações mundiais pela hegemonia ocidental; d) o papel da mídia, ideologia, sistema educacional e do Estado no estabelecimento desta hierarquia dentro de cada nação e entre nações; e) a (re)invenção/ (re)apropriação de lugares e espaços no mapeamento (trans)nacional; f) os fluxos erráticos de capital e de seres humanos entre os mercados ‘livres’ que compõem o sistema capitalista nas diversas fases de sua globalização. O enfoque analítico de Quijano (1997) é as relações de poder e suas práticas e formas de controle de diversos âmbitos da existência social, como o trabalho, a natureza, as matérias primas, o sexo, o saber e a autoridade. Neste processo, o crítico peruano mapeia, em linhas teóricas gerais, alguns dos principais assuntos que caracterizam os três tipos de violência tematizados ao longo deste ensaio que, como efeito da colonialidade do poder, imbuem as paisagens interamericanas contemporâneas. Estes tipos de violência são entrelaçados: a violência epistêmica que determina sujeitos em termos absolutistas e subalternos espelha e trabalha para racionalizar a violência material praticada nos corpos de todos os seres bióticos — humanos, vegetais, animais. Neste sentido, corpos, terras, mares e recursos naturais são zonas de contato coloniais onde as ideias e os scripts da palavra escrita têm permitido aos conquistadores/ colonizadores/ dominadores alicerçar a barbaridade de sua violência ‘civilizadora’ com padrões de negação e esquecimento institucionalizados que ressoam em diversos espaços fronteiriços pan-americanos do século XXI. Nestes espaços ditos pós-coloniais, a colonialidade dança a invenção, a demonização, marginalização e a resultante reconstrução identitária de diversos outros aos perversos ritmos da música (trans)nacional — um tipo de world music constituída por sincópicas desterritorializaçôes e reterritorializaçôes passadas e contemporâneas de uma violência (neo)colonial que resulta em poucas oportunidades de trabalho, brutalidade policial, encarceramentos e

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principalmente a negação de direitos humanos como educação e saúde e destarte provoca e alimenta as lutas por identidade, terra e dignidade. Neste sentido, Alarcón (1992, p. 34) observa que “para muitos de nós, a nossa América foi tomada de nós. A nossa América tenha sido invadida, ocupada, branqueada, amordaçada, suprimida, sanitizada, e no melhor dos casos, ignorada”. Perante este cenário, gostaria de lembrar uma observação do crítico e escritor indígena Owens em Mixblood Messages (1998, p. 51) quando ele critica a pouca atenção que críticos pós-coloniais, em geral, prestam à literatura indígena: “Os autores poderiam ter feito uma argumentação muito interessante que, de fato, a escrita indígena norte-americana não é pós-colonial, mas colonial; que os colonizadores nunca saíram, mas simplesmente mudaram de nome, chamando-se americanos”. Será que esta permanência dos colonizadores e suas práticas sob outro nome é aplicável a outras escritas nas Américas? Penso que os escritores e seus textos analisados neste trabalho reforçam esta ideia.

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La literatura como instrumento liberador

Ignacio Martínez

La creciente crisis económica de la post-guerra, que tiene su punto alto a mediados de la década del 50 y toda la década del 60 hasta la dictadura de 1973, provoca ineludiblemente un deterioro en las relaciones políticas y sociales del Uruguay.

A su vez origina un crecimiento de diversas manifestaciones de violencia social. La recesión económica, la desocupación, la marginación de cada vez mayores sectores sociales que ven deteriorada su calidad de vida, el crecimiento de la pobreza, la expulsión de sectores del campo a las ciudades y de las ciudades al exterior son el marco violento general para que se agudicen los enfrentamientos y se generen nuevos hechos de violencia.

Esta situación es acompañada por un marco similar a nivel regional y mundial. A la recientemente culminada guerra de Corea se le sumará el inicio de la guerra de Vietnam; las guerras por la liberación del colonialismo, principalmente en África subsahariana; la guerra civil en Argelia, los enfrentamientos racistas en Estados Unidos y el surgimiento de los poderes militares en América como respuesta de los sectores dominantes para sojuzgar a los pueblos que venían en franco crecimiento en sus luchas por superar las injusticias sociales (Golpe en Colombia, 1948; en Venezuela, 1948; en Paraguay, 1954; en Argentina, 1955; en Guatemala, en República Dominicana, en Brasil 1964, etc).

Uruguay, la mal llamada “Suiza de América” también ve deteriorada su sociedad. La firma de los convenios con el Fondo Monetario Internacional produce crecientes limitaciones en el bienestar de las grandes mayorías nacionales. Los salarios ven reducido su poder adquisitivo. La inflación se vuelve incontrolable llegando a tres dígitos. El cierre de empresas produce creciente desocupación. El país está controlado por un puñado de familias que tienen el poder sobre las grandes extensiones de tierra, sobre las exportaciones, sobre el sector financiero del país y los grandes medios de comunicación, convirtiéndose en un bloque en el poder que será, finalmente, quien respalde las crecientes medidas represivas contra el movimiento popular.

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La resistencia del pueblo uruguayo

El pueblo uruguayo organizado tiene diferentes expresiones para resistir el empobrecimiento del país y su deterioro como colectivo social. Los trabajadores crecen en su organización sindical y se unifican en una única Central (1964-1966). Aparecen nuevas alternativas políticas a los ya tradicionales partidos “blanco” y “colorado” (el Frente Amplio en 1970-71). También surgen movimientos guerrilleros. Se incentivan las luchas obreras y estudiantiles.

Junto con estos incrementos de las expresiones sociales, el gobierno responde con más medidas represivas. A la violencia propia de las condiciones de vida del progresivo empobrecimiento, se le suman medidas represivas que aumentan la violencia policial en las calles. Las llamadas “Medidas Prontas de Seguridad”, que facultan al Poder Ejecutivo al ejercicio de plenos poderes y a la suspensión de las garantías individuales, acrecientan formas de violencia que vuelven cotidianas la tortura, los allanamientos, la detención de ciudadanos sin garantías y el asesinato político.

El pueblo uruguayo se manifiesta de muchas maneras reclamando mejoras. También expresa sus ansias de soluciones a través de las artes que rápidamente ocupan un espacio casi exclusivo a favor de las causas populares.

Así el teatro, la música, las artes plásticas, la poesía, los cuentos y las novelas tienen un vertiginoso desarrollo de producciones, acompañadas de una cada vez más comprometida búsqueda de las temáticas y de la calidad al servicio de la denuncia o del crecimiento de la conciencia colectiva para los cambios.

El Semanario Marcha, fundado en 1939 y clausurado por la dictadura en 1974, dirigido por Carlos Quijano, será uno de los exponentes más altos de la cultura al servicio de una severa crítica al proceso económico y político en crisis, y alentador de propuestas de cambios de un signo de izquierda independiente. Hombres y mujeres de la talla de Julio Castro, Sarandy Cabrera, Arturo Ardao, Alfredo Mario Ferreiro, Hugo Alfaro, Homero Alsina Thevenet, Carlos Martínez Moreno, Manuel Flores Mora, Carlos Real de Azúa, Mario Benedetti, Pablo Mañé Garzón, Álvaro Castillo, Eduardo Galeano, Idea Vilariño, Ángel Rama, Alfredo Zitarrosa, Rubén Enrique Romano, María Esther Gilio, Gerardo Fernández y Salvador Puig y Guillermo Chifflet conformaron las diversas etapas de su equipo de redacción, al tiempo que producían valiosas piezas literarias en el mundo de la poesía, el teatro, el cuento y la novela, fundamentalmente. Otras expresiones artísticas fueron el nacimiento del teatro independiente, de Cinemateca y del Club de Grabado.

Dos ejemplos de la fuerza que tiene la situación social en la literatura uruguaya son los dos poemas que siguen, de Idea Vilariño (Montevideo, 18 de agosto de 1920 - 28 de abril de 2009):

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Los Orientales1

De todas partes vienen, sangre y coraje, para salvar su suelo los orientales; vienen de las cuchillas, con lanza y sable, entre las hierbas brotan los orientales. Salen de los poblados, del monte salen, en cada esquina esperan los orientales. Porque dejaron sus vidas, sus amigos y sus bienes, porque es más querida la libertad que no tienen, porque es ajena la tierra y la libertad ajena y porque siempre los pueblos saben romper sus cadenas. Eran diez, eran veinte, eran cincuenta, eran mil, eran miles, ya no se cuentan. Rebeldes y valientes se van marchando, las cosas que más quieren abandonando. Como un viento que arrasa van arrasando, como un agua que limpia vienen limpiando. Porque dejaron sus vidas...

1 Oriental, denominación que adquieren los uruguayos habitantes de la República Oriental del Uruguay. Poema musicalizado por “Pepe” Guerra editado en libros, revistas, textos de estudio y fonogramas.

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A una paloma

Palomita blanca, vidalitá,2 de ojito rosado, antes te cantaba, vidalitá, como enamorado. Palomita linda, vidalitá, palomita triste, qué poco te queda, vidalitá, de lo que antes fuiste. Palomita flaca, vidalitá, de piquito hambriento, todas las plumitas, vidalitá, te las llevó el viento. Es un viento malo, vidalitá, es un viento frío, te dejó sin plumas, vidalitá, y el buche vacío. Palomita zonza, vidalitá, de piquito bobo, cuidá de tu nido, vidalitá, que anda suelto el lobo. Pobre palomita, vidalitá,

2 Género poético - musical del cancionero popular del Uruguay. Poema musicalizado por Daniel Viglietti, edita-do en libros, revistas, textos de estudio y fonogramas.

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de vuelo perdido, si no le hacés frente, vidalitá, te deshace el nido. Palomita linda, vidalitá, palomita fea, aprontá el piquito, vidalitá, para la pelea. Palomita enferma, vidalitá, de alita quebrada, si no sacás fuerzas, vidalitá, te quedás sin nada. Palomita negra, vidalitá, de piquito rojo, crecé, palomita, vidalitá, sácale los ojos. Crecé tus alitas, vidalitá, crecé el corazón, crecé, palomita, vidalitá, y volvete halcón.

Otro ferviente defensor de las causa populares e implacable luchador contra todo tipo de violencia, fue Mario Benedetti (Paso de los Toros, 14 de septiembre de 1920 - Montevideo, 17 de mayo de 2009). Grandes sectores del pueblo hicieron de su poesía un estandarte y en muchos casos las convirtió en canciones. “¿De qué se ríe?” fue musicalizado por Alberto Fávero e interpretada, entre otros, por Nacha Guevara y Soiledad Bravo. “El Sur también existe” fue musicalizado por Joan Manuel Serrat para el disco homônimo de gran difusión a la salida de La dictadura formando parte de la construcción de la identidad nacional, de la rebeldia y la profunda vocación democrática

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¿De qué se ríe?(Seré curioso) En una exacta foto del diario señor ministro del imposible vi en pleno gozo y en plena euforia y en plena risa su rostro simple seré curioso señor ministro de qué se ríe de qué se ríe de su ventana se ve la playa pero se ignoran los cantegriles3 (3) tienen sus hijos ojos de mando pero otros tienen mirada triste aquí en la calle suceden cosas que ni siquiera pueden decirse los estudiantes y los obreros ponen los puntos sobre las íes por eso digo señor ministro de qué se ríe de qué se ríe usté conoce mejor que nadie

3 Cantregriles: denominación a los barrios pobres y excluidos. Término tomado de uno de los barrios más ricos de Punta del Este y del Cantegril Country Club de la misma ciudad turística.

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la ley amarga de estos países ustedes duros con nuestra gente por qué con otros son tan serviles cómo traicionan el patrimonio mientras el gringo nos cobra el triple cómo traicionan usté y los otros los adulones y los seniles por eso digo señor ministro de qué se ríe de qué se ríe aquí en la calle sus guardias matan y los que mueren son gente humilde y los que quedan llorando de rabia seguro piensan en el desquite allá en la celda sus hombres hacen sufrir al hombre y eso no sirve después de todo usté es el palo mayor de un barco que se va a pique seré curioso señor ministro de qué se ríe de qué se ríe.

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El Sur también existeCon su ritual de acero sus grandes chimeneas sus sabios clandestinos su canto de sirenas sus cielos de neón sus ventas navideñas su culto de dios padre y de las charreteras con sus llaves del reino el norte es el que ordena pero aquí abajo abajo el hambre disponible recurre al fruto amargo de lo que otros deciden mientras el tiempo pasa y pasan los desfiles y se hacen otras cosas que el norte no prohíbe con su esperanza dura el sur también existe con sus predicadores sus gases que envenenan su escuela de Chicago sus dueños de la tierra con sus trapos de lujo y su pobre osamenta sus defensas gastadas sus gastos de defensa con sus gesta invasora el norte es el que ordena pero aquí abajo abajo cada uno en su escondite hay hombres y mujeres que saben a qué asirse aprovechando el sol y también los eclipses apartando lo inútil y usando lo que sirve

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con su fe veterana el sur también existe con su corno francés y su academia sueca su salsa americana y sus llaves inglesas con todos su misiles y sus enciclopedias su guerra de galaxias y su saña opulenta con todos sus laureles el norte es el que ordena pero aquí abajo abajo cerca de las raíces es donde la memoria ningún recuerdo omite y hay quienes se desmueren y hay quienes se desviven y así entre todos logran lo que era un imposible que todo el mundo sepa que el sur también existe

Textos como Primavera con una esquina rota (Benedetti) o El color que el infierno me escondiera (Carlos Martínez Moreno) son también novelas que se irán incorporando a la denuncia y al testimonio de profundas heridas sociales generadas por la injusticia, el atraso y la enajenación, en la cárcel y el exilio la tortura y la muerte a que han sido sometidos los pueblos del hemisferio al antojo de los decires de los países centrales.

En un terreno más difícil de definir desde el punto de vista de los géneros clásicos de la literatura, Galeano ha sido y es uno de los exponentes más altos en la incorporación de estas temáticas en sus obras.

Desde Las venas abiertas de América Latina (1971), hasta Patas arriba (2008) prácticamente en todos sus ensayos o cuentos, o cuentos breves, han estado presentes los temas de la violencia contra los pueblos y la lucha de estos por terminar con esos oprobios que deshonran la condición humana y la vida trascendiendo el Uruguay y proyectándose a toda América Latina, sumando de manera consecuente la defensa de los pueblos originarios.

Circe Maia, la poeta uruguaya más importante en la actualidad (Montevideo, 1932) también ha sido y es referente de estas luchas. El poema que continúa,

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musicalizado por Daniel Viglietti, se ha convertido en un himno por la justicia y por la aparición de los detenidos desaparecidos, publicado en diversas ediciones, afiches y formatos fonográficos.

Otra voz canta

Por detrás de mi voz – escucha, escucha – otra voz canta. Viene de atrás, de lejos; viene de sepultadas bocas, y canta. Dicen que no están muertos – escúchalos, escucha – mientras se alza la voz que los recuerda y canta. Escucha, escucha; otra voz canta. Dicen que ahora viven en tu mirada. Sostenlos con tus ojos, con tus palabras; sostenlos con tu vida que no se pierdan, que no se caigan. Escucha, escucha; otra voz canta. No son sólo memoria, son vida abierta, continua y ancha; son camino que empieza. Cantan conmigo, conmigo cantan. Dicen que no están muertos; escúchalos, escucha,

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mientras se alza la voz que los recuerda y canta. Cantan conmigo, conmigo cantan. No son sólo memoria, son vida abierta, son caminos que empiezan y que nos llaman. Cantan conmigo, conmigo cantan.

Escritores que han padecido muchos años de cárcel incorporaron en sus obras

la temática en cuestión. Así, Mauricio Rosencof (Florida, Uruguay, 1933) tiene, en su fecunda obra, textos como Memorias del calabozo o Las cartas que no llegaron.

De la misma manera Carlos Liscano (Montevideo, 1949), Fernando Butazzoni (Montenvideo, 1953) y Milton Fornaro (Minas, 1957) han editado con diferentes tonalidades expresivas sobre el tema, novelas referidas a hechos concretos de la vida de los perseguidos, los presos políticos, los torturados y los desaparecidos en trabajos como El furgón de los locos o Las cenizas del cóndor o Si le digo le miento, respectivamente.

Poetas que han incursionado de manera sostenida en la poesía canción de marcado sesgo popular, como Washington Benavides (Tacuarembó 1930) o Marcos Velázquez (1939-2010) han hecho énfasis en la denuncia de situaciones sociales cargadas de violencia contra las grandes mayorías de la población, especialmente los humildes, en torno a quienes ya la pobreza es una de las violencias más horribles a las que se condena a millones de seres humanos en el mundo.

El teatro, a diferencia de Argentina, que creó todo un programa llamado Teatro por la Identidad, no ha presentado un desarrollo de la temática de la violencia social en todos sus aspectos en cuanto a la creación de textos en esa dirección. Un punto alto, sin embargo, es Pedro y el Capitán, de Mario Benedetti o Elena Quinteros, presente, de Gabriela Iribarren.

No obstante estas propuestas muy concretas que dan cuenta de un detenido torturado y una detenida desaparecida respectivamente, hacia fines de los años 60 y hasta la dictadura (1973) hubo una fuerte presencia del teatro en la resistencia a través de puestas clásicas que tenían un claro mensaje para la actualidad que se vivía en ese momento en Uruguay. Fuenteovejuna (Lope de Vega), Galileo Galilei (Brecht), adaptación de Tirano Banderas (novela de Ramón del Valle-Inclán), El Señor Puntila y su criado Matti (Brecht) fueron parte de esos hitos del teatro uruguayo, así como La empresa perdona un momento de locura, de Rodolfo Santana, representada en plena dictadura, o las comedias de Eduardo Sarlós, La Pecera o Sarita y Michelle, que tomaron otros

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aspectos de la violencia en la sociedad y las expusieron a través de la dramaturgia El diálogo entre la literatura y la historia reciente ha estado, entonces, signado por una producción intensa sobre los temas socio-políticos con marcada definición ideológica que en modo alguno ha significado un detrimento en la calidad literaria.

El pueblo uruguayo ha incorporado la literatura como una herramienta de liberación, de denuncia, de conocimiento, de crecimiento en su conciencia y en su sensibilidad hacia los cambios tan necesario hoy, en el siglo XXI. Esto permite afirmar la total vigencia de prácticamente todos los ejemplos citados. Esa vigencia se explica en la necesidad hoy de avanzar en las transformaciones de fondo que permitan la construcción de un ser humano nuevo para lo cual no alcanzan únicamente las soluciones económicas, aunque son imprescindibles.

Es necesario comprender que los cambios deberán ser culturales o no serán cambios sino mejoras parciales expuestas a futuros retrocesos. La duración y la sustentabilidad de las transformaciones deberán reposar en el cambio de la matriz ideológica donde las artes y en particular la literatura como espejo de lo que somos, puede seguir cumpliendo un rol esencial en este proceso de liberación. Liberación de nuestra condición de consumidores que transitamos la vida, para convertirnos en realizadores de la vida para honrarla y compartirla como el más grande de los sucesos.

Referencias

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______. El sur tambíen existe. Poemas – La vida en palabras. En: <http://www.poemas.de/el-sur-tambien-existe/>. Acedido: 15 ago. 2015.

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_______. A una paloma. In: Cancionero.com. Diario digital de música de autor Canciones escritas por Idea Vilariño. En: <http://www.cancioneros.com/nc/5973/0/a-una-paloma-idea-vilarino-daniel-viglietti>. 2013 B. Acedido: 15 ago. 2015.

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O leão no inverno: Evaristo, o comissário de polícia de Carlos Sampayo e Francisco Solano López

David William Foster

Ao organizar um comentário sobre o comissário de polícia Evaristo1, é inevitável que se reevoque o solitário homem de princípios de Raymond Chandler2 em suas andanças pelas ruas violentas da cidade. É somente de relativa consequência que o Evaristo de Solano López e Sampayo seja comissário de polícia, e não o detetive free-lance que encontramos nos romances de Chandler. No último caso, Philip Marlowe deve, na verdade, lutar contra a corrupção morosa da alta hierarquia da polícia de Bay City (uma Santa Mônica, Califórnia, fracamente disfarçada), enquanto no Evaristo (1985) dos argentinos,3 o domínio de Evaristo é a polícia da municipalidade de Buenos Aires, onde ele luta contra a incompetência e corrupção nas suas próprias fileiras e a corrupção daqueles que veem a força policial com uma agência de serviço pessoal.

É significativo que enquanto as narrativas ecoam a ideologia americana do guerreiro solitário que combate as forças do mal (que é, afinal, o tema mais duradouro das narrativas clássicas e mais influentes das histórias em quadrinhos

1 Nota do editor: Foster refere-se a Philip Marlowe, detetive particular criado por Raymond Chandler, cuja primei-ra aparição é em O sono eterno (The big sleep, 1939). A citação abaixo é retirada de The simple art of muurder (1950).2 A caracterização completa de Chandler é: “Essas ruas violentas devem ser percorridas por um homem que não seja, ele próprio, violento, e que não esteja maculado nem com medo... Ele é o herói, ele é tudo. Ele deve ser um homem completo e um homem comum e ainda um homem incomum. Ele deve ser, para usar uma velha expressão, um homem de honra, por instinto, por inevitabilidade, sem pensar nisso, e certamente sem mencionar isso. Ele deve ser o melhor homem no seu mundo e um homem bom o bastante para qualquer mundo”. (CHANDLER, 1950, p. 991-992). Philip Marlowe é especificamente mencionado por Pablo De Santis em sua nota introdutória à edição espanhola de Evaristo (SAMPAYO; SOLANO LO-PEZ, 1998, p. 9). 3 Publicado em inglês como Evaristo: Deep City (1986) (Evaristo: Cidade Profunda). A versão inglesa inclui somente seis das treze histórias originais em espanhol. A publicação do livro original de 1985 foi em francês como La mort est toujours au rendez-vous, e parece que Evaristo não foi publicado em forma de livro em espanhol na Argentina até 1988. As tirinhas apareceram originalmente no jornal cultural Fierro em 1985. Fierro era uma das publicações cultu-rais mais importantes daquele período, que envolveu a volta da democracia constitucional à Argentina começando no final de 1983. Veja Ferman (1993, p. 92-105). Fierro, que apareceu entre 1984-87, foi dirigida por Juan Sasturain.

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americanas), Evaristo4 é raramente idealizado na tradição de Dick Tracy (Tracy é parte do sistema), Batman (Batman é um suplemento do sistema, no sentido que ele colabora com o chefe de polícia de Gotham City) ou Superman (o Superman opera inteiramente fora da ordem estabelecida).

Figura 1: Evaristo

Fonte: SAMPAYO; SOLANO LOPÉZ, 1998, capa

Evaristo é um ex-campeão peso pesado que engordou consideravelmente ao longo dos anos, apesar de ser ainda solidamente musculoso. Ele não tem medo de usar seu talento pugilístico, apoiado por seu apreciável tamanho, para desferir socos quando desafiado para além de seu limite; até mesmo, em um caso, chuta um oficial, deixando-o abatido, sem sentidos, por ter usado de violência contra um menino de rua. Nesses casos, Evaristo se vale da considerável impunidade geral, que vai de alto

4 Entende-se que Evaristo seja o sobrenome do comissário de polícia. Apesar de Evaristo ser um primeiro nome comum em espanhol, também pode ser um sobrenome ítalo-argentino. É prática comum na Argentina chamar as pessoas diretamente por seus sobrenomes, sem o acompanhamento de títulos; as pessoas são chamadas da mesma forma por estranhos (tal como quando Evaristo é apontado na rua); não é, portanto, surpreendente que nunca venhamos a saber o primeiro nome dele, nem mesmo quando ele se registra como hóspede em um hotel provinciano. A contracapa, no entanto, da edição espanhola original afirma que a personagem de Sampayo e Solano López é baseada num lendário comissário de nome Evaristo Meneses (1907- 1992). Então o leitor pode escolher entre o primeiro nome da figura histórica e o uso sociolinguístico argentino de um sobrenome. Informa-ção biográfica sobre Evaristo Meneses é fornecida por Juan Pablo Meneses em “Los códigos de Meneses”; veja também a resenha “Evaristo Meneses, um comissário que se convertió em leyenda”.

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a baixo dentro da corporação da polícia na Argentina, desconsiderando seu recurso à violência por ter ocorrido fora de sua capacidade oficial: “Esta es uma conversación extraoficial” (SAMPAIO; SOLANO LÓPEZ, 1998, p. 35); ou: “El agente fué herido en servicio: prepárenle una excensión médica!” (SAMPAIO; SOLANO LÓPEZ, p. 198).5

Evaristo não se recusa a bater em uma mulher também e está claro que ele está propenso a barganhar com criminosos profissionais em troca de informação para se beneficiar (e.g. fazendo vista grossa para uma operação de jogos ilegal ou para negócios envolvendo contrabando de remédios e portanto, talvez, perigosos). Tais atividades bem poderiam ser consideradas como uma transigência dos supostos compromissos morais de Evaristo, contudo são o custo lamentável, mais compreensível, de buscar alcançar algum grau de justiça em um país como a Argentina, cujas raízes históricas estão no contrabando e outros negócios ilícitos. Ao recusarem-se a idealizar Evaristo, os autores retratam de modo verosímil as limitações impostas ao comportamento moral pelas desagradáveis realidades de uma dinâmica social específica.

Figura 2: “Y los hombres así”

Fonte: SAMPAYO; SOLANO LOPÉZ, 1998, p. 25

É importante notar que as seis histórias que compõem Evaristo acontecem durante um período indeterminado no final dos anos 1950 e começo dos anos 1960, quando a Argentina está tentando estabelecer alguma continuidade política entre a

5 Em português: Esta é uma conversa extraoficial; O agente foi ferido em serviço, preparem-lhe uma dis-pensa médica.

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queda da presidência de Perón em 1955, com suas emblemáticas práticas sociais e econômicas, e a implantação da ditadura autoritária e reacionária em 1966, a qual irá levar, dez anos mais tarde, ao pesadelo draconiano da tirania neofascista (1976- 1983). Na verdade, Evaristo é um notável produto cultural do período da redemocratização da cultura argentina durante a fase da reconstrução nacional que se seguiu à volta da constitucionalidade no final de 1983.

Há pelo menos duas referências históricas significativas nessas histórias, além da representação gráfica de um período particular na história argentina, visível através da cultura material presente nas tirinhas. A primeira é a viagem de Evaristo a Cuba quando a insurgência rebelde tinha se tornado um problema para a vida urbana – isto acontece imediatamente antes do golpe de janeiro de 1959 que levou Fidel Castro ao poder. A outra é a história fracamente disfarçada do sequestro do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann nos subúrbios de Buenos Aires pelos serviços de inteligência e de segurança israelense, o Mossad e o Shin Bet, em junho de 1960. Geralmente considerado pelos argentinos (pelo menos pelos não-judeus) como uma violação ultrajante da soberania nacional,6 as ações de Israel contribuíram para o sentimento antissemita que varreu a Argentina nos anos 1960, o que é parcialmente visível em Evaristo.

Há somente duas ocasiões nas quais as tentativas de Evaristo falham ao resolver as coisas e, circunstancialmente, resultam em algum equilíbrio moral no mundo. Uma delas é quando falha ao impedir que seu filho seja morto pelos sequestradores, que se aproveitam da descoberta de sua identidade para conseguir vantagens pessoais com a polícia. Evaristo mata a ambos antes de se dar conta de que eles já haviam matado seu filho: ele nunca descobre quem os mandou. A outra ocasião em que falha é quando tenta descobrir algo sobre os agentes estrangeiros que foram vistos na cidade (que, se descobre depois, serem do Mossad e Shin Bet). Ele e seu parceiro vigiam os agentes (que nunca são identificados como israelenses, sendo chamados somente de “os estrangeiros”) e o nazista capturado até o avião em que eles supostamente se dirigem para Israel, mas, em uma emboscada, são pegos por criminosos, que batem no detetive e seu parceiro, deixando Evaristo inconsciente. Há uma insinuação clara de que elementos dentro do governo argentino e das forças armadas fazem parte do esquema de sequestro. Quando Evaristo acorda no hospital, usando uma proteção para o pescoço, é informado pelo policial no seu quarto de que um golpe militar havia acontecido e o chefe de polícia – talvez ironicamente, mas da parte de quem? – deseja-lhe uma rápida melhora (SAMPAIO; SOLANO LÓPEZ, 1998, p. 64). Enquanto isso, Evaristo lê um jornal no qual uma das manchetes afirma: “Los servicios secretos estranjeros actuaron com impunidad, última pruieba de corrupción de nuestro gobierno”7 (SAMPAIO; SOLANO LÓPEZ, 1998, p. 6). No entanto,

6 Um dos mais notáveis relatos do assunto, The capture of Adolf Eichmann, de Pearlman, dá pouca importância à própria existência da Argentina, talvez como parte de uma sórdida história de como o governo de Perón forneceu refúgio seguro para Eichman, Joseph Mengele (chamado de Dr. Morte), e milhares de outros nazistas e simpatizantes do nazismo.7 Em português: Os serviços secretos estrangeiros atuaram com impunidade, última prova de corrupção de nosso governo.

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o tão criticado governo de Arturo Frondizi, que chegou ao poder em 1958 através de eleições indiretas, só foi derrubado por um golpe militar em março de 1962, alguns meses antes de Eichmann ser enforcado por crimes de guerra na Alemanha. Conquanto a discrepância cronológica possa sugerir que a alusão não é ao caso Eichmann, é uma referência a uma falha da segurança argentina tão notória (que foi possível, deve se insistir, por colaboração interna) e que teve tão sérias repercussões sociais e internacionais que dificilmente poderá ser entendida como uma referência a um evento fictício. Mais que isso: a falha humilhante de Evaristo em suas investigações e sua própria derrota são correlatos objetivos indicativos da seriedade daquele evento histórico.

É, entretanto, importante que as narrativas de Solano López e Sampayo se passem em um período turbulento e não nitidamente politicamente definido entre 1955 - 1966. Tivessem elas acontecido no período Peronista (1946-1955), Evaristo teria de ter assumido uma visão política em relação ao regime, que era de natureza populista e supostamente socialmente comprometido, o que teria feito dele um agente daquele período do governo e de suas políticas. Certamente, o Peronismo trouxe uma relação completamente nova entre a polícia e os cidadãos, particularmente as classes populares, que mais se beneficiaram de políticas socionacionalistas. Apesar de a corrupção na hierarquia ter, sem dúvida, prevalecido durante o período, é improvável que a relação criativa de Solano López e Sampayo tenha querido estar associada ao Peronismo, uma vez que o tipo de postura esquerdista que eles representavam considerava o Peronismo uma versão socialista falsa, ineficaz e incapaz de produzir alguma mudança estrutural viável. Ao mesmo tempo, o Peronismo não tem nenhuma utilidade nem para a velha esquerda nem para a nova esquerda emergente e, vigorosamente, perseguiu qualquer coisa que representasse oposição esquerdista às suas políticas e programas.

Concomitantemente, qualquer identificação de Evaristo com o período subsequente ao golpe de 1966, que seria o primeiro em uma série de sete governos de fato que duraram até 1983, o teria alinhado aos interesses da ala direita e às várias tentativas para realinhar a ordem argentina com a história pré-lapsária do país antes de 1946 e a seu passado fascista anterior, logo após os governos pró-germânicos e, em última instância, pró-nazistas, que emergiram do primeiro golpe militar da Argentina em 1930. Isso dificilmente levaria ao tipo de figura empática e patética que Evaristo destina-se a personificar. A turbulência política do final dos anos 1950 e do começo dos anos 1960 é propícia, precisamente porque não se presta a claras definições ideológicas, sendo fundamentalmente marcada, como no caso da administração Frondizi de 1958-1962, pelas tentativas – decididamente inúteis – de restaurar uma democracia operante na Argentina.

De fato, o triste sentimento de falência dessas tentativas tem, nas falhas de Evaristo (no sentido de declínio de seu corpo anteriormente sólido, e em sua ocasional inabilidade de tomar a si o controle do que está acontecendo na rua) um sugestivo correlato objetivo secundário referente à história social argentina. Isto é mais evidente na história de seu fracasso em salvar seu filho natural sequestrado, “Terror en las Calles” (Terror nas Ruas), na qual seu corpo, que começa a mostrar sinais de danos irreparáveis do fumo contínuo, é correlacionado com o velho leão que escapou do zoológico municipal. O leão, apesar da histeria pública

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dizer o contrário, não é mais uma ameaça à segurança dos cidadãos do que a decrescente bravura de Evaristo é uma ameaça ao crime organizado que mata seu filho. O sentimento triste oriundo dessa correlação é confirmado quando Evaristo, abandonado ao fantasma de seu fracasso, se aproxima do leão e bate na sua cabeça, murmurando “Amigo, vos y yo andamos perdidos...” (SAMPAIO; SOLANO LÓPEZ, 1998, p. 98). Ele olha fixamente com tristeza para a van do zoológico enquanto esta desaparece na rua, devolvendo o leão ao cativeiro. Então, apesar dos seus esforços para parar de fumar e para banir o fumo ao seu redor, sua tristeza é acompanhada por um sopro de fumaça de um cigarro em suas mãos.

Figura 3: “É velho e mansinho”

Fonte: SAMPAYO; SOLANO LOPÉZ, 1998, p. 99

Solano López, cuja mais famosa colaboração artística foi com a história em quadrinhos Eternauta (1957-59), de Héctor Oesterheld, estreia em Evaristo, e seus desenhos são maravilhosamente eficientes em capturar a turbulência nesse período transicional da história social da Argentina e em retratar os cidadãos do submundo do crime que floresceu com aquela turbulência. A Argentina sempre teve um submundo excepcionalmente abundante, ainda que se argumente que ele tenha prosperado especialmente como resultado dos efeitos traumáticos do Peronismo e das tentativas subsequentes, tanto dos governos militares como civis, de se opor a ele. Mas o cerne dos desenhos de Solano López é o corpo de Evaristo, tanto quando formalmente vestido no seu papel de policial como em várias outras formas despidas, como nós o vemos em sua intimidade doméstica, na intimidade

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de suas relações com mulheres, com quem, condizendo com o sexíssimo do período – outro toque de realismo brutal que se opõe a qualquer idealização possível – Evaristo não se abstém de ter relações sexuais por razões pessoais e pragmáticas. Certamente, em várias ocasiões Evaristo é inegavelmente um crápula. Nós também o vemos na intimidade de um banho de vapor turco, negociando proteção de um proeminente contrabandista por informação sobre a filha desaparecida de um importante médico judeu.

Ainda que Evaristo, nas roupas formais de rua do dia-a-dia (terno, camisa branca de manga comprida, gravata, chapéu de feltro estilo Panamá), se passe por um oficial gorducho, seu corpo quase nu permanece impressivo em sua virilidade. Nós o vemos como um boxeador profissional em flashback, com o corpo ainda com a definição muscular apropriada à profissão, e nós o vemos em pelo menos duas ocasiões subsequentes como um homem jovem ainda, com o sólido perfil de Clark Kent convencionalmente vestido de Superman. No entanto, o envelhecido Evaristo, apesar de sua pança, é ainda impressionantemente musculoso, e ainda mantém todos os pelos do corpo e do crânio. Nós o vemos sexualmente ativo em uma ocasião e, apesar de seu corpo ser representado por uma silhueta negra, fica claro, a partir da linguagem corporal da sua parceira, aqui e em outras sequências, que houve relação sexual e que ele ainda tem uma performance satisfatória. A mulher que esteve com ele na cena descrita em forma de silhueta mais tarde ataca outra mulher que ela acredita estar atrás das afeições de Evaristo, e a briga de gatos resultante é uma metonímia da preservada potência masculina de Evaristo.

Por causa da estatura do detetive (e deve-se levar em conta sua altura, que é além da média), Evaristo domina os quadrinhos em que aparece, geralmente sendo colocado em primeiro plano, de maneira a evidenciar sua perspectiva exagerada. Significantemente, nós basicamente o vemos de pé, e sua mera presença é suficiente para colocá-lo em total comando de seu entorno. Daí por que, depois que soca precisamente o nariz de um editor de jornal que está complicando sua vida, é particularmente irônico quando diz: “No le he pegado, Pérez-Peres”8 (SAMPAIO; SOLANO LÓPEZ, 1998, p. 37); quando soca e chuta a esse editor mais tarde em público, vai embora, limpando as mãos e declarando aos observadores ao redor. “No le he pegado” (SAMPAIO; SOLANO LÓPEZ, 1998, p. 43)9, como se estivesse dizendo “Eu não estive aqui” apesar da forma como sua presença física sobrepuja a todos no quadro em que aparece.10

8 Em português: Eu não o atingi, Pérez-Peres.9 Em português: Eu não bati nele.10 Note novamente o tom antissemita implícito no nome do editor (Peres é o equivalente sefardita de Pérez), na natureza hipócrita do médico judeu (Lubitsch) cuja filha tinha desapareceu durante a história (“El célebre caso Lu-bitsch” [O famoso caso Lubitsch]), na vítima dos cuidados de Pérez-Peres ou na história sobre os agentes secretos estrangeiros (“Operación Hermann” [A Operação Hermann] (Herman seria o nome equivalente ídiche/judeu), na qual os agentes infiltrados são encorajados por poderosos interesses judeus locais, os quais somos levados a iden-tificar como tal por causa de características físicas estereotipadas e por um candelabro menorah exibido de forma proeminente. Eu não estou afirmando práticas antissemitas por parte de Solano López ou Sampayo, mas estou, sim, notando a verossimilhança com o antissemitismo amplamente disseminado na Argentina naquele período (veja o estudo abrangente e detalhado de Senkman sobre o antissemitismo na Argentina.)

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Figura 4: “Não bati nele”

Fonte: SAMPAYO; SOLANO LOPÉZ, 1998, p. 43

Apesar de Evaristo ser capaz de fortes emoções – especialmente raiva frente à injustiça e inépcia – seu rosto é geralmente uma máscara apática; entretanto nós somos levados a entender que, no geral, ele não hesita nem por um momento, processando detalhes nas profundezas do seu ser interior. Talvez seja esse o significado do subtítulo adicionado na versão em inglês da narrativa gráfica Evaristo.11 A referência não é propriamente à cidade de Buenos Aires como tal, embora haja muitas ressonâncias ao que fica visível no cotidiano da complexa vida portenha. Mas pode-se argumentar que é a mente inquisitiva de Evaristo que é a cidade profunda, proporcional, na sua profundidade, à exponencial maldade nociva da cidade, ambas causadas por seus criminosos endurecidos e por sua supostamente decente autocracia.

A natureza da profunda compreensão de Evaristo das motivações humanas que outros não veem ou não apreendem é evidente na história final, “Leyenda de um pistolero herido” (“Lenda de um pistoleiro ferido”), que trata de um gangster que forçou um médico a tratá-lo por causa de um ferimento a bala. A intervenção do médico é bem sucedida, mas porque ele foi coagido a não reportar o incidente à polícia, como é requerido pela lei, recusa-se a aceitar os presentes que seu paciente tenta lhe oferecer para demonstrar sua gratidão por ter salvo sua vida. Vinte e tantos anos mais tarde, o pistoleiro é ferido em um confronto com a polícia no qual Evaristo está presente. Evaristo deixa a perseguição policial e, dispensando a companhia de três agentes que o acompanham, se dirige à casa do médico, chegando antes do gangster ferido. Evaristo

11 Nota do editor: a versão inglesa denomina-se; Evaristo: Deep city.

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o prende depois que ele é atendido pelo médico. Apesar de Evaristo explicar que ele havia adivinhado que o gangster iria mais uma vez procurar o médico que tinha salvo sua vida anteriormente, devido a uma relação de dependência psicológica, o médico somente murmura para si mesmo, com respeito a Evaristo, “Esse hombre está loco” 12(SAMPAIO; SOLANO LÓPEZ, 1998, p. 120).

Os parâmetros de Evaristo, citados anteriormente, podem ser vistos em exibição na história “Villa Carton” (“Favela”), na qual há a interseção entre a violência relacionada a uma torneira de água comunitária, que seca em uma das inúmeras áreas de favela de Buenos Aires (o que repentinamente rompe o bem urdido tecido da modernidade que geralmente caracteriza a megalópole) e um assassino aparentemente psicopata que espanca suas vítimas até a morte com um martelo.

Em contraste com os esforços de Evaristo para descobrir tanto quem é responsável pela interrupção da distribuição de água quanto quem é responsável pelas mortes brutais, um dos jornais locais se encarrega de explorar ao máximo o caráter sensacionalista do crime, enfatizando que trata-se de um “loco” (louco). Um dos quadros (SAMPAIO; SOLANO LÓPEZ, 1998, p. 69) mostra uma primeira página com uma manchete gritante e identifica o jornal como La razón, um lendário tabloide noturno que apelava para os sentimentos e interesses da classe trabalhadora popular.13

É desnecessário dizer que a questão é que tal sensacionalismo e a histeria que ele provoca – quem é esse louco e quem será a próxima vítima e por quê? – somente interferem na busca pela verdade, uma vez que a intenção é criar uma realidade alternativa que sirva, de forma manipulativa, para vender jornais, uma realidade alternativa baseada numa lógica narrativa significativamente em desacordo com a da narrativa na qual Evaristo baseia sua investigação. Se a lógica narrativa de Evaristo é baseada em estabelecer, de maneira racional, a relação entre a evidência objetiva à sua disposição (a clássica força motivadora da ficção detetivesca, inspirada por uma habilidade privilegiada de dedução), a lógica narrativa do jornal é animada pela maximização de pontos selecionados e a atribuição de sentido a eles de acordo com os imperativos sensacionalistas. Assim, há menos uma coerência perceptível entre ambas do que desconsideração, desprezo e até mesmo a valorização de uma incoerência retórica, que pouco ou nada importa para a lógica narrativa da imprensa marrom. Esta se torna algo além de barulho comercialmente motivado nos bastidores quando acaba por prejudicar uma investigação policial socialmente legítima de Evaristo, especialmente quando nos damos conta de que há uma relação direta entre os brutais assassinatos e a circunstância de desespero induzido pelo corte de distribuição de água para as favelas.

Isso se deve porque a narrativa que Evaristo termina por descobrir, ao invés de

12 Em português: Este homem está louco!13 Pode-se atribuir as práticas sensacionalistas e outras da imprensa marrom à La razón. Ainda assim, ela proveu para muitos – pelo menos até o período de tirania neofascista de 1976-83, o que contribui para seu derradeiro desa-parecimento da cena jornalística argentina – uma cobertura confiável e imparcial das notícias. Pode-se depreender que era possivelmente “imparcial” demais para aqueles cujos interesses se identificavam com a esquerda radical.

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realmente seguir a tradição do investigador movido pela dedução, que os assassinatos são, aparentemente, o trabalho de alguém da favela, apesar de que sua identidade nunca é realmente confirmada. Depois que Evaristo inadvertidamente o leva a quem é responsável pelo corte de água na favela (de novo, não está claro porque o chefe dos recursos hídricos corta o fornecimento de água, mas pode-se presumir que é mais lucrativo desviá-la ilegalmente para outro lugar), o chamado louco bate nele até a morte com um martelo e então entrega-se para a polícia. A narrativa não está diretamente interessada no procedimento dos trabalhos policiais nem no processo legal subsequente que o assassino será forçado a enfrentar. Em vez disso, o interesse está nas circunstâncias da favela e na emaranhada precariedade da existência humana que lá habita e na provável permanência dessa realidade para aqueles que também são forçados a enfrentá-la em função das realidades socioeconômicas do país.

Evaristo é, no final, nada mais que um espectador infeliz, incapaz de fazer algo a respeito do que ele testemunha, investiga, analisa; atua dentro de parâmetros restritos da sua posição oficial. Diferentemente de um herói de quadrinhos americano ou de uma personagem de ação de um filme de Hollywood, Evaristo é impotente, uma vez que ele não pode se um executor e dificilmente será um agente de justiça significante, diferente de seus equivalentes urbanos tais como Batman. Dessa forma, sua narrativa oficial é decididamente patética, e pode-se entender por que as narrativas escandalosamente falsificadas do jornal – que em um certo momento vai longe ao ponto de encenar um dos assassinatos para fornecer material ilustrativo para sua história – são capazes de envolver o público leitor de forma sedutora. Apesar de trabalhar de forma tão pouco ao gosto das massas, Evaristo resolve o caso, mas não tem nenhuma narrativa “real” e envolvente para oferecer no lugar da narrativa do jornal, ficando satisfeito somente em descobrir que, misteriosamente, o serviço da água, com a morte do homem que o controlava, se com referência a um grupo de garotos jogando futebol (a diagonal aqui corresponde a um recuo para criticar a favela, com suas palavras finais, numa esquina, como um rótulo inconsequente), o artista gráfico sinaliza que não há nada mais a fazer ou a dizer, e nós sabemos de crises da polícia: “No saldrán nunca de aqui.../...nunca” (SAMPAYO; SOLANO LÓPEZ, 1998, p. 82).14

Ao final, Evaristo acaba mal tanto pela corrupção abrangente do sistema argentino como por sua própria predileção por pegar atalhos, não importa quão justificáveis. Quando apresenta a um juiz um dossiê de evidência em um caso que estava investigando, é informado de que está preso como consequência de uma acusação contra ele, e é preso. A imagem final de Evaristo é a do juiz rasgando o dossiê que Evaristo havia submetido a ele e jogando-o na lata de lixo (SAMPAYO; SOLANO LÓPEZ, 1998, p. 196). Em particular, essa representação gráfica da sua ruína assegura nosso entendimento de que, no final, seja lá o que Evaristo representa moral e eticamente, não está à altura das realidades sócio-históricas, que são imutáveis, e tão intransigentes como aquelas enfrentadas pelos jovens habitantes da favela que ele tenta defender.

14 Em português: Eles nunca irão sair daqui... / ...nunca.

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Figura 5: “Tenho contra você uma denúncia por corrupção”

Fonte: SAMPAYO; SOLANO LOPÉZ, 1998

De fato, há uma nota quase nostálgica na evocação do lendário Evaristo Meneses feita por Sampayo e Solano López, um sentido da Argentina antes da queda na qual, conquanto, talvez chamá-los de figuras nobres tivesse sido um exagero, havia certo nível de respeito mútuo entre os cidadãos e a polícia, um sentimento de que seria possível aos representantes do último grupo ser seres humanos respeitáveis e conceituados. Se a força policial altamente profissional que predomina na Buenos Aires pós-tirania conta ou não com o apoio do povo é uma questão para investigação sociológica. O sentido real de Evaristo, no entanto, é o que foi perdido com a absorção da força policial pelo regime de terror que vitimou a sociedade argentina depois de 1976, na qual o tipo de policiamento altamente individualizado e frequentemente profundamente machista,15 ainda que fundado na moralidade de alguém como Evaristo, se tornou para sempre ultrapassado.

15 Pode-se acrescentar, também: além de machista, profundamente homofóbica, apesar de nenhum material em Evaristo apontar para a realidade urbana da assim chamada anomalia sexual, ainda que haja uma alta incidência histórica desta última em Buenos Aires.

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Referências

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Tradução para o português de Viviane Ferreira de Faria; editoração de Denise Almeida Silva.

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Prácticas de la violencia entre las fuerzas policiales y el sexo comercial en Fuerzas Especiales,

de Diamela Eltit

Paula Daniela Bianchi

La novela Fuerzas especiales (2013), de la escritora chilena Diamela Eltit, integra el mapa de los relatos que denomino ficciones latinoamericanas de lo político-prostitucional del siglo XXI. Desde de esta perspectiva, la trama que se teje en Fuerzas especiales me permite establecer dos series literarias bien delineadas. La primera alude a la prostitución concebida como trabajo sexual en correspondencia con los cuerpos y subjetividades que intervienen en el mercado del sexo y con los marcos estructurales de la violencia como configuradores de dispositivos de poder. La segunda vincula la categoría de trabajo sexual con las nuevas tecnologías y el impacto de las marcas de la violencia que conjuga las esferas de lo laboral, de la virtualidad y de la sexualidad.

Contextos de las violencias

La trama transcurre en un barrio periférico de la ciudad de Santiago de Chile que se encuentra sitiado por los carabineros. Dos escenarios principales del barrio ocupan la narración: los bloques, construcciones de cuatro pisos de treinta metros cuadrados donde reside la protagonista junto a su madre, padre y hermana y un cibercafé en el que ejerce el trabajo sexual mientras se evade tras los contenidos que le ofrecen las pantallas a través de la red cibernética. Desde el título se puede anticipar aquello que compondrá el relato. En un primer momento hace referencia a las fuerzas especiales de carabineros integradas por tiras y pacos1 que atraviesan la historia represiva de

1 En 1963 se creó en Chile la agrupación policial Grupo Móvil de Carabineros. En 1973 con el inicio de la dictadura cívico militar el destacamento fue renombrado como Fuerzas Especiales. Una de las cosas que trajo aparejada esta subordinación se vio reflejada en los salarios más precarizados y en el equipamiento inferior para estas Fuerzas. Los pacos son la policía chilena uniformada mientras que los tiras reciben este nombre por ser un tipo de policía chilena secreta, o vestida de civil.

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Chile. Pero también alude a las fuerzas especiales que deben reunir los cuerpos y las subjetividades de la pobreza que habitan los bloques para resistir en las márgenes de la ciudad, encerrados y vigilados por la policía y también por las miradas panópticas de sus habitantes y de las tecnologías como, por ejemplo, las cámaras de seguridad o “autos espías” (ELTIT, 2013, p. 65): “En este tiempo ya nadie cierra los ojos en los bloques porque ya no sabemos cómo vivir o cómo dormir sin la ira de la policía y sin la acústica destructiva de sus balizas” (ELTIT, 2013, p. 43). Cuerpos y subjetividades de la violencia como un aglomerado compacto irrumpen en los espacios sociales como monedas de intercambio de bajo costo y sucumben subordinados al consumo permanente de aquello que no pueden comprar. A su vez, se encuentran posicionados en una situación de seres devoradores de sus pares precarios y precarizados en tareas laborales inestables y en supervivencias peligrosas.

En este contexto, de peligrosidad continua y violencia ensordecedora, en el relato emerge la voz en primera persona de la protagonista, que provoca la construcción de una narración de estructuras de la violencia crónica y casi naturalizada que se mece entre la abyección corporal y los intentos de desvío como líneas de fuga respecto de los dispositivos de la violencia que la oprimen para sobrevivir como sea necesario. El registro narrado en primera persona, por momentos, se sitúa en un registro callejero –vulgar y coloquial- y, por otros, en un registro de violencia habitual que nunca es cuestionada. La protagonista utiliza un lenguaje punzante que da cuenta de lo violento y de las huellas de los cuerpos marcados por ello, que resalta la brutalidad y el asedio policiales pero también el intenso miedo que sienten ella y los demás personajes, un miedo que es parte integral de escenario periférico del barrio. Mientras la narración, de párrafos muy extensos, por momentos se confunde con la construcción de un monólogo interior o con la voz de una narradora omnisciente, a veces, produce un lenguaje de alto impacto en el que se intercalan enunciados referentes a intervenciones armadas permanentes como, por ejemplo, con la expresión con la que se inicia la novela: “Había dos mil Webley-Green 455” (ELTIT, 2013, p. 11), “Había tres mil Murata 8mm” (ELTIT, 2013, p. 42), y con la que finaliza: “Había cuatro millones de proyectiles de artillería teledirigidos de alto rango XM82 Excalibur” (ELTIT, 2013, p. 165). Es decir, una repetición del lenguaje de la violencia sintetizada en cada arma que se menciona en todo el relato de manera inesperada en cualquier párrafo como un recordatorio de la intimidación cotidiana. A través de un lenguaje que establece las fuerzas de las armas, que se dispara como proyectil y que adjetiva el estallido de las palabras.

La joven ejerce el sexo comercial en el cubículo número ocho de un cibercafé en el que cobra a diario mil pesos chilenos por cada media hora de sexo, mientras se distrae mirando las distintas pantallas que le brinda la red cibernética intentado olvidar el miedo que significa saberse un cuerpo sitiado por las fuerzas especiales que amenazan entrar a los bloques y desplazar a quienes vivan ahí para ser reemplazadas como objetos sin valor por otros nuevos cuerpos desechables. La permanencia o exclusión de quienes habitan los bloques depende del plan ilegítimo que traza la policía que los

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mantiene en estado de alerta y de ignorancia respecto de quiénes serán los siguientes en ser expulsados:

Existe un plan curioso de repoblamiento de los bloques, una forma ilegal de ocupación en los espacios donde ya no queda nadie, un programa que estimulan los pacos y los tiras. ¿Por qué? No lo sabemos. Pero creemos que pretenden infectarnos o infiltrarnos de asombro e inseguridad. Después de que se llevan a los vecinos, aparecen nuevas familias. ¿Quiénes son? No lo sabemos. (ELTIT, 2013, p. 67).

El barrio – construido como micro espacio de la violencia - se encuentra en permanente vigilancia y amenaza por parte de las Fuerzas especiales: pacos y tiras que arremeten con absoluta intimidación contra los cuerpos homogéneos que ocupan los bloques en medio de un torbellino de gritos, sirenas, golpes y ladridos, aniquilando toda posibilidad de lenguaje dejando lugar a una caja de resonancias: “Oigo risas y balas. Risas, lágrimas y balas. Escucho lamentos, risas, música. Escucho risas y música. Gritos” (ELTIT, 2013, p. 41). La represión policial que contornea el barrio tiene como finalidad regular los cuerpos que pueden resultar ser una amenaza para la ciudad que existe fuera de los bloques. El barrio de la novela puede asociarse con el barrio La legua2, lugar intervenido desde hace tiempo por la policía chilena.

En la novela, Diamela Eltit incorpora las tecnologías comunicacionales como los celulares y sus cámaras de fotos, las computadoras e internet. La trama remarca la tecnología y el mundo virtual que recorren en la historia y cómo son fundamentales para el desarrollo de los habitantes del bloque y la joven. Para ella el espacio del cíber representa una dimensión totalizadora: “El cíber es todo para mí, milagroso, gentil” (ELTIT, 2013, p. 14), ya que a través de las pantallas se manifiesta la línea de fuga que por un instante le permite creer en la posibilidad del escape hacia una falsa libertad. Porque lo que encuentra en la red la fagocita: “[…] me da las fuerzas necesarias para entrar al cíber y sumergirme en ese espacio que me devora” (ELTIT, 2013, p. 37).

La abstracción que le producen las propuestas de la red activa la articulación del deseo como un dispositivo vinculado con el consumo sexual y virtual, e incluso el deseo como un dispositivo de fuga: “pienso pero luego me distraigo en uno de mis sitios preferidos que da inicio a la nueva temporada de zapatos manufacturados con la piel de una serpiente que habita en el norte argentino” (ELTIT, 2013, p. 29). Deleuze y Guattari, en el ensayo El anti Edipo (1985), proponen que el deseo no es una carencia sino una canalización de los flujos de deseos producida por las estructuras sociales donde las intervenciones del poder político codifican las pasiones y deseos inconscientes. Sostienen que en las sociedades capitalistas las máquinas deseantes conforman un sistema productor de deseos –flujos, líneas de fuga y conexiones- mientras que las máquinas sociales son sistemas económicos y políticos de producción. A su vez, las máquinas técnicas se encuentran en estado de interdependencia de estas. “Desear

2 El barrio La legua se encuentra ubicado en la zona de San Gerónimo, en las periferias de Santiago de Chile.

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implica la construcción misma del deseo, formular qué disposición se desea, el mundo que aumenta tu potencia, el mundo en el que tu deseo discurra. El deseo se convierte de esta manera en el objetivo del desear” (DELEUZE; GUATTARI, 1985, p. 108). Es decir, ya no es el deseo de la falta que sostiene el psicoanálisis sino el deseo como productor. Pero aquí el flujo del deseo manifestado por la protagonista es desviarse, es aludir a las líneas de fuga que desterritorializan, donde el deseo se traduce en un devenir vital porque el deseo es un proceso no una carencia. La protagonista de la novela solo anhela comer fricas y ser devorada por la red. Es un deseo que deviene en vitalidad, comer y ser devorada para sobrevivir para escapar de la existencia impuesta.

Si bien en el espacio que comparte la joven con los demás, se encuentran reunidos y en ciertos momentos funcionan como una masa homogénea, a la vez experimentan soledad y desamparo. No es posible el desarrollo de lazos familiares, amorosos o solidarios, solo existe una imposibilidad de unión e interés (amor) por el otro. En este contexto, se produce una tensión entre el sobrevivir en el cíber a través del trabajo sexual y la amenaza de la precariedad de los cuerpos expuestos a ser aniquilados en cualquier momento; peligrosidad que está presente en todo el relato donde el sexo, deseo y consumo se vuelven los protagonistas de la novela constituidos a partir del encierro y de la violencia.

El cuerpo como sitio de negociaciones

En este apartado analizaré la prostitución asumida como trabajo sexual -- ligado con el dinero, el consumo, el deseo, las tecnologías y las relaciones de poder -- que articula los cuerpos de las trabajadoras sexuales como sedes de negocios y de negociaciones diversas. La protagonista trabaja como prostituta en un cíber ubicado en una zona marginal la ciudad de Santiago de Chile en condiciones de precariedad y desprotección extremas aunque sabe que mientras se mantenga en actividad y a salvo de la brutalidad policial podrá comer y sobrevivir.

Si los cuerpos son construcciones socioculturales simbólicas y discursivas también conforman un espacio transaccional. Diamela Eltit afirma que los cuerpos de las mujeres se encuentran ceñidos por los modelos dominantes y colonizadores al ser considerados un objetivo político en el sistema neoliberal (2014). De ese modo, son sumidos en la dependencia y constituidos como sedes de negocios: “múltiples, incesantes, paradójicos”. Entonces, también pueden ser asumidos como un espacio de negociaciones, a veces, rentable otras, no tanto.

Trabajo sexual y el cuerpo asediado

“El trabajo que tengo” es el título del primer capítulo de la novela de Eltit, que adelanta cómo el empleo de la protagonista será fundamental para su desarrollo y sustento porque la subsistencia depende de ella misma y de su cuerpo como fuerza

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productiva de trabajo. La joven desempeña sus actividades sexuales en un cíber donde solo expone el cuerpo abierto para ser penetrado y recibir a cambio una remuneración, mientras sus ojos y su mente navegan por internet. De esta manera, el deseo del consumo es el eslabón que enlaza el cuerpo como espacio de intercambio en el que interviene el dinero que aplaca el hambre, que permite las prácticas sexuales y la posibilidad de traspasar las pantallas de la red cibernética. Por ello, la narradora asevera

Voy al cíber como mujer a buscar entre las pantallas mi comida. Todos se comen. Me comen a mí también. Me bajan los calzones frente a la pantalla. O yo misma me bajo mis calzones, me los bajo atravesada por el resplandor magnético de las computadoras. (ELTIT, 2013, p. 11).

Así, el lenguaje filoso que transmite la realidad que vive la protagonista se fusiona con el devorar y funciona como parte del mismo deseo de consumo sexual, virtual y monetario. De espaldas a los clientes que le dan su capital económico, ella como mujer se alimenta también de aquello que ve en la computadora:

Dejo que me metan el lulo o los dedos adentro, hasta donde puedan. Nunca digo: sácame el lulo ni digo: sácame los dedos. No lo hago porque me concentro en el sitio de modas alternativas que me absorbe tanto que mis ojos se pasean por mi cerebro clasificando las prendas de manera hipnótica. (ELTIT, 2013, p. 12).

Lo que enuncia la protagonista en esta cita es cómo se escinde su cuerpo de su subjetividad en el trabajo sexual. Cómo se torna un cuerpo, tal vez, deseado en una codificación fragmentaria: una espalda y un orificio pronto a ser penetrado por un segmento del cuerpo masculino, codificada entonces como objeto o mercancía que asume un valor pecuniario, una tarifa y también una mirada y un pensamiento que consumen imágenes en la computadora mientras es penetrada. En ese momento su cuerpo produce un doble flujo de circulación de consumo: por un lado, la transacción económica en términos monetarios efectuada por el trabajo sexual. Por el otro, el deseo de consumo que le provoca lo que ve en las pantallas, el negocio de compra-venta legal e ilícita que se mueve en el ciberespacio por lo que accede a una doble penetración de contendidos y peneana.

El luloEl cuerpo de los clientes, policías casi todos, es configurado de manera

fraccionada en la que se resalta solamente el pene. La narradora elige llamarlo lulo, incluso un capítulo de la novela se titula así: “El lulo”. Este término es utilizado en Chile de modo despectivo a veces, vulgar otras. La referencia es tomada de la forma en que envolvían a los niños recién nacidos y cómo quedaban prácticamente inmovilizados. Pero también se le puede decir así a algo cilíndrico de contextura flácida o a la naranjilla, fruta cítrica. Entonces, se puede asumir que el pene es despreciado, burlado e infantilizado por la protagonista. A su vez, se lo compara con las balas y la

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tiranía manifestada por los tiras y pacos, por lo que ella lo define como un lulo que le molesta, le duele, le amenaza, como “un lulo raro, marcial, terrible el lulo” (ELTIT, 2013, p. 100). Es algo que la lastima pero que le permite ganar una ínfima suma de dinero para subsistir que representa tiempo y ganancia, es decir, una mercancía: “Eso significa el lulo, unos minutos que me reportan mil pesos, los mil pesos que recibo en monedas o un billete doblado o arrugado” (ELTIT, 2013, p. 108). No obstante, el pene encarna la medicalización a la que tiene que acudir la protagonista para evitar ese dolor que la atraviesa como balazos. Recurre a cremas para untarse en la vagina dolorida y a pastillas vencidas que le hacen doler menos el cuerpo, igualmente Omar, su compañero las consume:

[…] untarme la crema que compré en la feria y meterme mis propios dedos para curarme las heridas que me causa el lulo. […]. Ponerme la crema que me recomendó el Omar, me la recomendó el Lucho, me la recomendó mi hermana porque mi mamá la compró para ella. (ELTIT, 2013, p. 104).

El dolor que la penetra está establecido como un dolor ancestral, que pasa de madre a hijas y conocidas. A penas un ungüento comprado en una feria que vende “medicamentos piratas” fabricados en “laboratorios clandestinos” (ELTIT, 2013, p. 150) que alivian por ráfagas momentáneas el dolor. Pero la mejor definición que brinda la joven es la comparación del pene con un juguete o con un animal domesticado y manso: “Pero una parte de mí conoce las crispaciones del lulo y sabe cómo manejarlo, sí, manejarlo con la misma pericia o desgano o rutina o ausencia con la que se alimenta o a un animal doméstico. O a igual a como jugaba distraídamente con los niños de mi hermana” (ELTIT, 2013, p. 108). De este modo, el pene se ubica en la intersección de las fronteras de la animalidad doméstica y de la tecnoprótesis del cyborg representada en el “lulo marcial” que se clava como balas, como un arma de fuego. Pero el pene, además, es el que configura las subjetividades e identidades de los varones de la novela. Es el que determina quién es el portador de esa extensión porque dentro de las representaciones lúlicas también se encuentra una clasificación de lulos policiales en la cual no es lo mismo el lulo de un paco que el de un detective o el de un tira y claro que los lulos policiales se diferencian del resto de los lulos masculinos. Así el lulo de los pacos es sumiso, obediente y austero mientras que el de los tiras tiene un movimiento circular y lento, asimismo de significar media hora gratis porque los tiras no pagan sino que usan los servicios del cíber gratuitamente.

En este sentido, Paul Preciado asegura que el modelo heterosexual funciona a través de la división y fragmentación de los cuerpos producidos como femeninos y masculinos donde se recortan órganos y se exhiben con mayor o menor intensidad generando una arquitectura corporal política (2002, p. 27). En general, en la literatura donde se exponen los cuerpos y sexualidades de las prostitutas se resaltan fragmentos que hacen a la genitalidad – senos, colas, orificios vaginales, labios - y al erotismo de las mujeres. Mientras que los varones son descriptos en su corporalidad viril completa (carnofalogocentrismo derriano). Sin embargo, la escritura de Eltit se torna política al

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especificar a los clientes masculinos como un pene, al que le quita el nombre fisiológico reemplazándolo por un significante despectivo-ridiculizante como el lulo, pero, además, es muy audaz al clasificar los tipos de penes y que estos según su estructura fálica le den entidad a tal o cual policía u hombre. Es decir, el lulo es constituido como clasificador y reorganizador de subjetividades masculinas en un mecanismo biopolítico de los cuerpos. Mientras el cuerpo de ella es inasible, los penes establecidos desde el régimen de lo visible operan como una parte reducida a las necesidades pulsionales de una práctica sexual, casi en el umbral de una animalidad domesticada sin contornos precisos. La narradora, quien marca el límite de su corporalidad, define lo que hace como un trabajo en el que se intercambian prácticas sexuales por dinero. Así lo sexual y lo económico se presentan ligado al sexo comercial que justamente escinde lo laboral de la esfera personal e íntima del personaje.

Selectividad salarialEl espacio del cíber le proporciona un lugar de trabajo y, a su vez, es un espacio de

saberes y un punto de fuga. El trabajo que lleva a cabo la protagonista está concebido en permanente resignificación y negociación en cuanto a las prácticas sexuales y el dinero porque si la opción del trabajo sexual trae aparejadas exclusiones y desigualdades en cuanto a vulnerabilidades y condiciones de precariedad, en este caso, la desproporción es mayor porque opera el género como medida selectiva del salario. Por ser mujer, la protagonista, recibe menos dinero que Omar, su compañero de oficio: “A mí me pagan mil porque yo soy mujer” (ELTIT, 2013, p. 13), mientras que Omar recibe hasta cinco mil pesos por día. En esta afirmación asume su desigualdad salarial por su condición genérica. Sin embargo, reconoce que a pesar de ser mujer tiene un valor superior al de su madre y hermana porque aún su cuerpo es productivo entretanto el de las otras yace en la cama y deja de ser lucrativo: “Dice que ella y mi hermana valen igual y que yo valgo un pucho” (ELTIT, 2013, p. 13). Es decir, vale apenas unas monedas, mil pesos en media hora, en medio de un espacio pequeño rodeado de violencias. Las mujeres inmóviles y desechadas como la hermana, la madre o la vecina ex compañera del cíber, la Guatona Pepa están representadas desde la pasividad y la enfermedad excretora de fluidos abyectos: vómito, tos, mierda. Pero a su vez todas se parecen, ellas y la guatona, lo único que las diferencia es la remuneración que ganan (ELTIT, 2013, p. 14). En cuanto a los hombres, son percibidos como mercaderías más valiosas en relación con lo salarial y como fuerza de trabajo3. La narración se ocupa de señalar las diferentes corporalidades femeninas –la madre, la hermana y la guatona Pepa- en permanente estado de degradación y uso gradual de sus corporalidades por parte de los varones que circulan en el texto pero posicionados como cuerpos masculinos en estado disfuncional y sometidos a otras violencias. En este contexto, los cuerpos de la

3 Se hace referencia al salario superior de Omar, un amigo trabajador sexual. A los sueldos de los pacos y tiras con sus diferenciaciones. Estos últimos perciben un haber superior aunque no lo suficiente como para recurrir a las coimas que les efectúan a los habitantes de los bloques.

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prostitución perciben una tarifa según su composición biométrica que toma en cuenta los géneros, la salubridad, la escala etaria, étnica/racial. Otra manera de establecer disímiles escalas de valores salariales en el sexo comercial puede generarse en relación con la etnicidad, los datos biométricos o franja etaria.

En este contexto desigual y precario, la protagonista narra su vida atravesada por la violencia interna y externa donde vive ejecutada por la policía. Ante el adentro violento, el afuera en la ciudad parece ser de circulación libre, mientras que el control ejercido por la policía y el Estado que le paga a esa policía se funde en el ambiente que respira la población del bloque. Así este texto plantea una concepción que sitúa a los personajes en una tensión de acción política, individual y colectiva, articulada por la violencia y por el modo en que la trama problematiza lo social. La ilegitimidad de los hechos que suceden dentro del cíber y en los bloques provoca buscar líneas de fuga porque lo prioritario para sobrevivir es funcionar por fuera del régimen normativo y regulador. Estos escapes pueden notarse, incluso, en los niveles de la escritura propuestos en la novela, ya que, el registro lingüístico y narrativo en los últimos capítulos escapa de cierta construcción de lo posible para incurrir en una especie de relato cercano al género fantástico, de ciencia ficción o ciberpunk, como veremos más adelante en el desenlace de la historia. Dentro de esta esfera, los pacos y tiras son quienes generan los mecanismos de la violencia más instintivos y los dispositivos de corrupción: “Más allá, lo sé, se parapetan otros y otros policías respondiendo al salario que tienen a costa de nosotros. […] Tienen la obligación de matarnos casualmente” (ELTIT, 2013, p. 78). Asesinar de modo casual por una gratificación se pone en correlato con la poca importancia que esos otros cuerpos tienen, ella lo sabe, así lo afirma en la cita. Por un salario mísero los carabineros se suman al dispositivo de los aparatos represores del estado con una legitimidad ilegal para asesinar impunemente. Ese, entonces, es el objetivo principal de exterminio de las vidas de las ciudades, las matanzas policiales, las corridas, las redadas, el encierro y la licencia para matar vidas sacrificables.

Los pacos y tiras Las figuras policiales (tiras y pacos) y las de los personajes que pueblan el

cíber establecen diferentes posiciones dentro de la trama reflejadas en sus acciones y en el modo en que estas son decodificadas por el resto del universo bloque lo que los ubica, a su vez, de un lado u otro de la ley. En cuanto a las relaciones laborales existen también diferenciaciones salariales y de jerarquías dentro de las fuerzas especiales de carabineros lo que supone una rivalidad interna dentro del dispositivo que conforman. Esto se debe a que el escalafón entre pacos y tiras no se mide solo por el lulo que tienen sino por los salarios que ganan, por sus uniformes y la cantidad de rabia y grasa acumuladas en sus cuerpos. Por ejemplo, los pacos son más ágiles por “la rabia infinita que eriza sus músculos” que por la hostilidad que “esconden sus cuerpos grasosos” (ELTIT, 2013, p. 65). Por su parte, los tiras “acumulan menos grasa pero tienen una estatura inferior” (ELTIT, 2013, p. 65) que les permite dar vueltas detrás de los pacos. En cuanto a la percepción de haberes los pacos “[c]on la luma en alto demostraban la

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legitimidad de la plata que ganaban y demostraban de manera simultánea su ira ante sus bajos salarios” (ELTIT, 2013, p. 49-50) porque les prometieron una ganancia extra si descargaban mejores golpes. A su vez, engrosan el sueldo con sus coimas y con la implementación del miedo y la violencia a los habitantes de los bloques. La narradora reconoce que estas prácticas se intensifican en todo el continente: en las villas, en los proyect o en las favelas latinoamericanas (ELTIT, 2013, p. 50) y que se les paga para que vigilen, repriman y asesinen a los moradores de los bloques y así poder garantizar cierta economía de la vida a expensas de la muerte de los otros en una clara relación de la biopolítica (FOUCAULT, 2006) donde intervienen los controles reguladores de las poblaciones y los disciplinadores de los cuerpos. En la novela el sistema policial se presenta en crisis, está mal remunerado, es corrupto, rabioso y legitimado para poder disponer del control de personas consideradas desviadas, marginales o conflictivas. Desde esta perspectiva, la joven sentencia que “la policía hace lo que quiere, o dice lo que quiere o se deja caer sobre nosotros como quiere” (ELTIT, 2013, p. 112). Es decir, responden a su deseo inmediato que es accionar dispositivos violentos y disciplinares sobre los habitantes del bloque. La furia policial se intensifica como una intervención política de aquello que deben hacer los policías, reprimir y exterminar esas vidas que exceden el espacio vivible. Fallar en la efectividad criminal del exterminio supone la frustración del deseo molar que se materializa en un odio que impide expresarse por medio del lenguaje: “por eso están enfurecidos los policías, porque no mataron a nadie hoy, y expresan su odio con palabras defectuosas” (ELTIT, 2013, p. 39) y privadas del habla que se interrumpe con la opacidad del lenguaje que queda impugnado ante el aniquilamiento de las vidas que se asumen como desechables en el barrio.

BloquesLos bloques remiten a la periferia citadina de Santiago de Chile y es presentado

como un “mundo estrictamente rectangular e inamovible” (ELTIT, 2013, p. 59), como un perímetro delimitado por un alambrado y custodiado por la policía. El bloque, orgánico y condicionante, se establece como un sitio en estado de excepción en medio de la ciudad y donde las vidas se transforman en un desecho sin valor de cambio: “esperar acuciosamente a la policía, a los tiras y a los pacos y en cualquier minuto llegarán los militares, milicos en tanques gigantescos para disparar a los bloques en un allanamiento multitudinario que nos va a imponer leyes grotescas” (ELTIT, 2013, p. 160). Los personajes de la novela son asediados por un modelo político-económico que los ubica en los extremos de la marginalidad. A su vez, el bloque constituye a sus moradores en una masa homogénea que los percibe casi indistinguibles a unos de otros: “Niños bloque”, “el bloque miedo”, “los quiltro bloque”, “bloque turba una”, “los habitantes bloque” , “La realidad bloque” , “el bloque cíber” (ELTIT, 2013, p. 48; 54; 94; 95;116; 158). De este modo, por momentos parece casi imposible poder hacer una distinción entre quienes habitan el bloque y la construcción misma. Lo único que los diferencia y “humaniza” (ELTIT, 2013, p. 113) son la rejas que los separa de los bloques, del resto de la ciudad y de la policía porque “[s]olo la diversidad anárquica de las rejas marca la

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diferencia” (ELTIT, 2.013, p. 112). Un enrejado que les puede dejar de un lado u otro de la división fronteriza que, de todas maneras, les recluye a la periferia. Entre violencias y encierros se puede delimitar un proyecto de nación y de territorio en tanto patria. Al respecto, Damiela Elit define la patria ya no como un espacio militarizado dictatorial sino como múltiples espacios fragmentarios, como segregaciones comunitarias que disputan un territorio, o apenas unos metros de territorio, como los bloques, donde circulan todo tipo de ilegalidades. Entonces, se puede pensar en una patria fraccionada y asediada por violencias y clandestinidades que devienen de esa territorialidad de las pasadas dictaduras, que guarda resabios militarizados transformados en la pugna de microespacios comunitarios –células- operados por microviolencias policiales que “enrejan” a una parte de población residual para que no tome contacto con el resto de la urbanidad.

Esta concepción de patria puede asociarse con lo que Josefina Ludmer plantea respecto de las ciudades latinoamericanas concebidas como islas urbanas. La autora afirma que quienes las habitan parecen haber perdido algo que incluso puede traducirse en la nación. También enfatiza que los isleños se configuran en plural y se fusionan en comunidades que se encuentran dentro de la ciudad y fuera de la sociedad, aisaldos al mismo tiempo (2010, p. 131) conformándose una noción de nación “en pedazos” y bestial donde el lenguaje es traducido en gritos o alaridos, que en términos de la teórica Cavarero (2009, p. 40) estos aparecen cuando “la violencia es extrema” y deja en lugar del lenguaje “la intraducibilidad sonora del ultraje”.

La muchedumbre del bloque es representada por la cadencia de los cuerpos, los gritos, aullidos y sirenas policiales. Casi no hay diálogos, sino un lenguaje deformado o defectuoso como el de los policías: “las palabras que están allí solapadas entre las letras ya ilegibles clavadas en las puertas de cada departamento” (ELTIT, 2013, p. 38). La narradora confirma su existencia y la de los demás a través de los ruidos emitidos por la policía: “Estoy segura de que estamos vivos pues el aullido de las balizas de los autos policiales nos obligan a taparnos la cabeza con las almohadas” (ELTIT, 2013, p. 35). Los habitantes de los bloques comparten la condición de precariedad y precaridad que identifica Judith Butler (2006), como así también, el riesgo de ser masacrados, desaparecidos, vulnerables y transformados en mercancías intercambiables. Así el relato inscribe a los bloques no como amenaza sino como un gueto a dominar y experimentar.

El bloque que habita la narradora es “una representación del bloque miedo, una forma gráfica que podría levantarse, hincharse, inflarse cualquier día. Y explotar como un tubo de gas” (ELTIT, 2013, p. 89). El miedo y el tiempo complementan a estos cuerpos bloques. El tiempo es la media hora que trabaja ella para ganar mil pesos y el tiempo inmediato, porque estas vidas no tienen vida a futuro: “Cuánto tiempo me queda. Cuánto miedo tengo hoy. Dónde se aloja. Cómo consigue contaminar mi respiración. Respiro aire y miedo” (ELTIT, 2013, p. 85). Estos cuerpos recluidos y casi confundidos con un cuerpo bloque se encuentran insertos en un reordenamiento urbano sesgado de la ciudad dentro de la ciudad, conformando la isla urbana que menciona Ludmer que los exceptúa del ser ciudadanos por los derechos poco claros

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que le son conferidos dentro de una trama jurídica dudosa y que se traduce en la materialidad de sus cuerpos desechables – enfermos, hambrientos, golpeados -. Ante cualquier dislocación posible de esta comunidad el Estado dispone del uso de las fuerzas especiales que no brindan soluciones estructurales a la problemática de los bloques sino que focalizan la reproducción de las inequidades de clase, género, jurídicas y, económicas en las que opera, ciertamente, una regulación del deseo que les impide elegir más allá de lo que se les permite.

Trabajo y tecnologías

El espacio del cíber, reapropiado para el intercambio sexual por dinero, permite también establecer prácticas como conversaciones mediadas por el uso del chat, despertar deseos o mundos probables que se presentan a través de consumo del mercado legal y clandestino que facilita la red profunda donde el tráfico de humanos, especies, y objetos es posible.

El trabajo sexual en el cíber funciona para la protagonista como líneas de fuga, como un múltiple espacio en el que la necesidad de consumo – real, si con esa miseria que gana se compra una frica para comer o virtual, si sueña con adquirir los atuendos en una pasarela milanesa- es el principal aliado. A partir del desafío de sobrevivir al asedio policial la tecnología se vuelve una herramienta de evasión, testimonial, futuridad y red de conocimientos de otras cosas que suceden en el mundo pero también se torna un instrumento de la clandestinidad e ilegalidad donde existen cuerpos que no valen nada excepto si son traficados en partes o completos.

Los personajes que en la urbanidad de los bloques son rechazados y vulnerados encuentran un punto de huida en el universo virtual. La protagonista maneja las tecnologías en un mundo precarizado y comparte los saberes globales de la tencnologización comunicacional. La inclusión tecnológica en las comunidades bloque permite que las fuerzas policiales incrementen los dispositivos del acecho y la vigilancia, invita a la evasión vía internet y también activa la predisposición a la alienación. El espacio del cíber se constituye en una extensión de lo cotidiano para la joven y la computadora, en una prótesis que le facilita adquirir saberes, le otorga cierto poder de evasión y posibilidades de soñar con otros consumos pero, sobre todo, la preserva del dolor de sentir su cuerpo penetrado y lastimado: “Yo venero la neutralidad de la computadora que me protege hasta de los crujidos de mí misma” (ELTIT, 2013, p. 13-14). No obstante, dentro del cíber es la pantalla la que genera momentos de “paz tecnológica” (ELTIT, 2013, p. 14) mientras otros dispositivos como el teléfono móvil le producen cierta dependencia que se traduce en la imperiosa necesidad de registrar momentos de desesperada violencia con la cámara del celular.

Las sociedades actuales consumen todo tipo de tecnología masiva que solidifica el libre acceso (por los precios más popularizados originándose un mercado más

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competitivo) pero que también serializa a quienes lo poseen, hasta casi lograr una masa compacta o bloques homogéneos tecnológicos. Las clases periféricas se encuentran en contacto con esos servicios aunque con algunas trabas y con dinámicas más costosas que el de las clases adineradas. La protagonista ingresa a las redes informativas que hacen de la vida una fugaz espectacularización. Puede navegar en internet profunda o registrar situaciones delictivas naturalizadas por el solo hecho de vivir inmersa en esos espacios agobiantes y excluidos en la frontera de las legalidades e impunidades donde el valor de los cuerpos se encuentra devaluado. Ella bucea en la red y halla excentricidades como, por ejemplo, el intercambio de información para poder suicidarse o la manera de comprar huesos humanos o bebés que son habilitadas para todo tipo de usuarios que, ocultos tras el anonimato que brinda la red, pueden cometer diversos ilícitos. Los mercados ilegítimos “[e]stán ahí con sus técnicas de camuflaje, […] aparecen y desaparecen de las redes para desorientar a los tiras del mundo que están con sus caras pegadas a las pantallas” (ELTIT, 2013, p. 25). Así confluyen redes de traficantes y de trata, de realidad y virtualidad mientras se activan en el ciberespacio otras actividades económicas atravesadas por la clandestinidad. El cíber es una gran vidriera que invita a la joven al consumo: “Así consiguen comercializar la languidez del sueño, del ocio y del cansancio” (ELTIT, 2013, p. 30) donde se origina, entonces, una fusión de universos reales y virtuales de apariencias, ostentaciones, tráficos y violencias.

La protagonista trabaja en el cíber, en el cubículo 8, como prostituta mientras mira la pantalla de la computadora y se transporta a otro sitio. Es decir, se escapa de un ambiente hostil que la sitúa a salvo de su propia marginalidad. Recibe mil pesos chilenos por cada media hora de trabajo y a su vez le debe dar trescientos pesos en concepto de alquiler del cubículo al Lucho, quien regentea el cíber. La conexión que establece ella con sus pares de trabajo, Lucho y Omar, “el mejor chupapico del cíber, muy famoso él por la artesanía de sus labios” (ELTIT, 2013, p. 12), por momentos es transformada en un descubrimiento conspirativo que el gobierno tiene para la represión de los bloques. Por eso, antes de que todo explote y los bloques se derrumben, los amigos prefieren desaparecer en la propia tecnología, dado que, ellos descubren el origen de la amenaza de acabar con las vidas de los ocupantes de los departamentos para ser reemplazados por otros habitantes operando desde la liminalidad policial, como vimos anteriormente.

El cíber y las antenas de los celulares que no siempre funcionan son los dispositivos de la información y comunicación que conectan a la joven y al resto de los vecinos con el espacio fuera de los bloques. Los celulares les crean una dependencia tal que vigila las antenas permanentemente, y si no funcionan ella sentencia que “no vale la pena vivir sin las antenas” (ELTIT, 2013, p. 123). Las computadoras colapsan y los celulares enmudecen y “[t]odos los habitantes del bloque hemos caído en un estado de estupor ante la crisis de los celulares. La ausencia de las llamadas […] nos empujan a un silencio anormal” (ELTIT, 2013, p. 124). La policía los asedia también cortando las torres de los celulares quedando, así, sitiados. El silencio de los celulares se compensa con el estruendo de los gritos de las voces y las sirenas en una analogía de gritos y

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mudez: “El silencio de los celulares me enloquece” afirma la protagonista al mismo tiempo en el que se produce “un ambiente sonoro intolerable” (ELTIT, 2013, p. 141) que la ancla en la realidad que no quiere escuchar.

Las fotografías que captura con el celular reproducen situaciones mediadas por lo digital que la hacen tomar posición de las nuevas formas de contar los sucesos y de retratar los cuerpos, a través de procesos digitales que funcionan como la intersección de las abstracciones y lo real. Fotografiar a su madre y hermana con el teléfono móvil le permite, de alguna manera, perpetuar esos efímeros instantes y documentar la relación existente entre ellas. Pero también, captar la inmediatez cristalizada en un momento a través de la captura de hechos fugaces de los seres excluidos de ciudadanía, que con la imagen de lo retratado, reafirman su posición de subjetividades violentadas.

De ese modo, el celular se establece como el instrumento de confirmación y el receptáculo de la memoria familiar cuando el teléfono móvil “testimoniaba que el deseo de corrección de mi madre solo dañaba la frente de mi hermana” (ELTIT, 2013, p. 33), o cuando quiere retener una último recuerdo del padre antes de que este muera: “yo saqué mi celular para conseguir resguardar la última imagen de mi padre. Quería subir esa imagen a las redes. Deseaba enterrar su salida en el cementerio virtual de las redes. Mi intención era retener a mi padre” (ELTIT, 2013, p. 55). En estas imágenes la protagonista procura recuperar a sus seres queridos. Incluso desea sepultar en las redes sociales, zonas de exposición testimonial, la figura del padre, ya que, sabe que no podrá rescatar el cuerpo porque será aniquilado por las fuerzas especiales y desechado como un desaparecido.

Por otra parte, las fotografías también se constituyen en manifiestos de intervenciones de lo político-tecnológico: “yo recuerdo las imágenes de los tiras que guardo en el celular” (ELTIT, 2013, p. 33) y de lo político-animal: “Saco el celu desde el bolsillo […] y me preparo para obtener un buen enmarque. Mantengo una cuidadosa y estricta colección de gatos y perros, aunque solo me interesa el borde magro de sus cuerpos y ese espacio animal donde las costillas muestran su poder y catástrofe” (ELTIT, 2013, p. 77). Las fotos tomadas como material probatorio irrumpen como instancias de politización de aquello que la narradora sostiene con su decir discursivo. Lo que enuncia en cada frase, en casa intervención de enunciados armamentistas, en cada descripción de los lumazos que impactan en los cuerpos, en cada ilegalidad que bordea los espacios clandestinos es confirmada por la imagen del celular. La otra instancia de lo político-animal no solo es recortada en la delgadez de los animales callejeros sino en el umbral que atraviesa a la protagonista de animalidad, como veremos luego. Porque esos cuerpos magros de animales echados a punto de morir, que oscilan en el pasaje de lo poderoso y lo catastrófico, desnudan el vínculo politizable de lo incierto “con esas vidas cuya muerte no constituye delito, [y que] traza un vector crucial de lo político y de lo ético” (GIORGI, 2014, p. 26). En esa frontera móvil en la que se encuentra la protagonista, ubicada entre la muerte y la sobrevida, es necesario corroborar que ella no es un contorno sino un cuerpo y una subjetividad vivos y que no fueron borrados:

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“Tengo las imágenes en mi celular. Quiero […] imprimir y ratificar nuestra existencia ahora que los pacos o los tiras vuelan como moscardones o abejas o como murciélagos o como sombras por mi cerebro” (ELTIT, 2013, p. 155).

Esta trabajadora sexual sortea un proceso de cambio que es la (des/rein)corporación virtual. Cuando la violencia en el barrio se torna insoportable y la desintegración de los bloques se avecina junto con el avance inminente de la policía, ella, Lucho y Omar “parapetados en el cíber” se “digitalizan” (ELTIT, 2013, p. 165) y a modo de avatar o de holograma pasan a formar parte de la red por medio de un videojuego que crearon en conjunto, donde no necesitan prostituirse para comer, ni tener miedo de ser identificables sino que dentro del videojuego sus subjetividades quedan desclasificadas y sin rasgos identitarios. Las redes les sirven para quitarse el miedo del cuerpo: “Contra el miedo o por el miedo nos sumergimos en las redes” (ELTIT, 2013, p. 88). Se desincorporan para reincorporarse en el ciberespacio a través de un dispositivo virtual que ciertamente ratifica el cuerpo que no se disuelve sino que continúa siendo materialidad inteligible. Porque ellos no quieren quedar en las calles, ni transitarlas ni habitarlas ni trabajarlas ni padecerlas, ellos se constituyen en la virtualidad que les resguarda y que les permite fugarse en una línea de la realidad, por eso, antes de que el cíber sea derribado ella expresa: “Omar y yo somos cíber, no calle, no. Calle no. […] Odiamos las veredas y los recodos” (ELTIT, 2013, p. 156).

La protagonista, entonces, encuentra la línea de fuga que le permite ser flujo, corriente moldeable: “Me puse frenética cuando descubrí que podía multiplicarme en pedazos que semejaban juegos de moléculas en fuga, biologías diezmadas, fragmentos de gustos que partían en un viaje diverso” (ELTIT, 2013, p. 136). Se transforma en un cuerpo sin órganos, deviene en línea, en flujo, estalla como un cuerpo orgásmico. En esta novela y en toda la obra de Eltit el cuerpo es el elemento fundamental a desterritorializar porque lo corporal se desintegra junto a la subjetividad de la protagonista en un cuerpo prisma, móvil, inaprensible y fluido que se articula y desarma, que se derrama en un cuerpo liso sin estrías, es decir, en un cuerpo sin órganos. En este sentido, Deleuze y Guattari (2006) formulan una conceptualización de lo liso y lo estriado. Respecto de lo estriado dicen que pertenece a las territorialidades y espacialidades fijas, sedentarias como los bloques de la historia de Eltit, mientras lo liso se manifiesta como espacios raificados, rizomáticos por los que circula el deseo que permite la multiplicidad de lo nómade y del espacio heterogéneo. También definen el cuerpo sin órganos como “lo que queda cuando se ha suprimido todo. Y lo que se suprime es precisamente el fantasma, el conjunto de significaciones y de subjetivaciones […] no hay quien lo consiga, no se puede conseguir, nunca se acaba de acceder a él, es un límite” (DELEUZE; GUATTARI, 2006, p. 156-157). Es decir, el cuerpo sin órganos de la protagonista se constituye como un cúmulo de prácticas que sirven para desequilibrar el sistema de producción de cuerpos seriados en el que ella se torna un cuerpo digital.

El punto de fuga que encuentra la joven de la novela es el de evolucionar

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en un avatar de su propio videojuego, en transformarse en un cibercuerpo. Nina Cabra (2011) aclara que en los videosjuegos se articulan elementos del juego con algunos aspectos tecnológicos para obtener una marca propia de ese video que permite abrir “geografías virtuales, donde las imágenes adquieren un estatuto muy particular, y en las cuales el jugador puede participar a través de un yo virtual, o avatar. Estas condiciones implicarían una recomposición de la relación entre realidad e imaginación, y de la lógica de la representación, que sería confrontada por una lógica de la simulación”. El juego instituye así una reconfiguración de las relaciones de poder y genera un flujo de asimetrías en cuanto al campo de acción generado para librar una batalla como en el caso del video Pakos Kuliaos (con una K que podría resignificar el anarkismo punk y el Kuliaos que remite a un habla coloquial sexualizada que deja en ridículo a los pacos).

Cada jugador/a de videojuegos en el campo del juego virtual puede diseñar su avatar o su otro yo, en otras palabras, consigue resubjetivarse porque el avatar o la nueva imagen virtual integra a quien juegue en los mundos posibles que habilita el juego que se concreta en la pantalla. No obstante, una característica muy importante que subraya Cabra es que los videojuegos “operan en la desterritorialización que implica la configuración de la realidad virtual como plano de significación y de constitución de identidades y de interacciones para la condición humana contemporánea, además del trazado de espaciotiempos virtuales, y la recomposición del espacio y el tiempo “reales” de los jugadores”. Jugadores que se reúnen fuera y dentro del espacio virtual/real yuxtaponiéndose cuerpos y subjetividades de un lado y otro de la pantalla.

El videojuego que elles desarrollaron es el primer video de origen chileno llamado “Pakos Kuliaos”. De este modo, pasan a enunciar el sueño del ser nacional que es combatir las fuerzas especiales. El trabajo en equipo del juego hace que continúen juntos en comunidad asumiendo una fuerte identidad nacional al haber creado el primer videojuego fundacional de la virtualidad chilena, un “veloz juego de defensa” (ELTIT, 2013, p. 165) de lo que se supone es la seguridad nacional. Porque ella y sus amigos, el Lucho y el Omar, se encuentran resguardados en la virtualidad y es en ese mundo donde pueden crear una comunidad fundante otra, perfeccionada por ella, una mujer sin nombre y trabajadora sexual.

Si bien el diseño y la musicalización del juego fueron desarrolladas por varones es la mujer del bloque la que le da el toque final, la que lo hace funcionar invirtiendo las jerarquías de los roles de género e instaurando un nuevo patrón de necroemponderamiento (VALENCIA, 2010) que deviene en virtualidad y en la constitución del deseo de destruir violentamente a los endriagos –sujetos que encarnan la violencia legitimada en un estado paralelo que legitima las prácticas clandestinas y comerciales como en este cado los pacos y tiras- que buscan aniquilar a los habitantes del bloque.

En sintonía con esta propuesta se alinea Donna Haraway (1999) que, ajustando las características individuales y heroicas del cyborg que ella definió en 1995, formula una concepción colectiva del mundo transformada en un artefacto social-relacional

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donde los actantes funcionan como entidades colectivas. Es por ello, que en la novela vemos este pasaje constante de la individualidad a lo colectivo y viceversa como una instancia de umbral.

El relato comienza con un epígrafe que es el título de un ensayo del escritor cubano Severo Sarduy que asevera: “Soy una Juana de Arco electrónica, actual” (ELTIT, 2013, p. 7). Desde la reafirmación del “yo” sujeto que abre el epígrafe “soy” posicionado y un nombre propio “Juana de Arco” -- que remite a una genealogía histórica y a una reescritura del título del artículo de Sarduy donde se produce otro juego de subjetividades -- situado en un tiempo de contemporaneidad se asiste en la lectura a la fusión de un “llegamos como una unión bloque” (ELTIT, 2013, p. 61) donde no resaltan individualidades, a pesar de las singularidades de cada uno de los personajes, para eludir el cerco de los carabineros y originar la hendidura que les permite escapar a la aniquilación de los bloques cuando la policía interviene las antenas y les dejan incomunicados. Es decir, la protagonista oscila entre el anonimato y la genealogía ancestral de Juana de Arco, una guerrera, militarizada que lucha para liberar su nación, pero es electrónica, es decir, actual, moderna, una Juana de Arco cyborg cuyos límites entre lo humano y lo no humano se borran. Es interesante remarcar el aislamiento en el que vive la protagonista que aparentemente se encuentra rodeada de gente, de familia y amigos y clientes pero que muy poco interactúa con ellos. La verticalidad estriada que suponen los bloques impiden el desarrollo del contacto con los otros, sin embargo, conviven en una comunidad lisa y rizomática.

Algunas conclusiones

En el recorrido Fuerzas especiales se puede inferir que al no estar inscripta la prostitución como un trabajo calificado y reglamentado se producen irregularidades y condiciones de precarización que hacen de la ciudad una zona de excepción biopolítica y de las trabajadoras sexuales cuerpos residuales y desechables donde las prácticas sexuales se insertan en la economía de la violencia y de la sexualidad desregulada, cuyos cuerpos y subjetividades activan dispositivos de consumo y deseo en los que son devorados o devoradores.

Lecturas como las de Fuerzas especiales proponen cierta transgresión de los valores hegemónicos sobre otras representaciones canónicas de las trabajadoras sexuales en la literatura latinoamericana contemporánea. Los personajes de estos relatos intentan desplazarse de la victimización para encontrar líneas de fuga y escapar de las prácticas sistemáticas de la violencia. A partir del análisis de la representación de la trabajadora sexual como articuladora de diferentes nociones de cuerpos, violencias, circulación de dinero e intercambios económicos y sexuales, la protagonista se corre de su condición de sujeto victimizado para configurarse en una subjetividad consciente de su situación de prostitución

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como trabajadoras sexual. Revertir este estereotipo es, por ejemplo, tomar la voz para intentar esgrimir ciertas tácticas que le permitan sobrellevar su trabajo. Es pretender invertir la imagen visible que proyecta el espejo respecto de la estigmatización que las “marca” socialmente.

El estigma que opera sobre la prostituta y el trabajo sexual construye el estereotipo en el imaginario socio sexual dominante e impulsa a los cuerpos y subjetividades de las trabajadoras a fluctuar entre el ser y el parecer como tácticas de encontrar líneas de fuga en las que el cuerpo es establecido como una herramienta de trabajo y donde las subjetividades recurren a las tretas de la escisión, ocultamiento, homogeneidad y multiplicidad porque el cuerpo y la subjetividad no son únicos y unívocos sino cuerpos prisma y subjetividades flexibles. Los cuerpos de estas textualidades generan transformaciones, mudan el aspecto que producen subjetividades en fuga que desestabilizan las redes de poder antes configuradas. Porque la subjetividad es flexible, y el cuerpo un prisma, o es “siempre un simulacro. Un holograma” (ELTIT, 2014).

Bibliografía

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CABRA, Nina Alejandra. Entre el fantasma, el Avatar y otras mutaciones de la imagen. Nómadas, n. 35, 2011. Disponible en: <http://www.scielo.org.co/scielo.php?pid=S0121-75502011000200006&script=sci_arttext>. Acceso en: 28 ene. 2016.

CAVARERO, Adriana. Horrorismo: Nombrando la violencia contemporánea.Anthropos: Barcelona, 2009.

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FOUCAULT, Michel. Historia de la sexualidad, Tomo I: “La voluntad del saber”. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006.

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GIORGI, Gabriel. Formas comunes: Animalidad, cultura, biopolítica. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2014.

HARAWAY, Donna. Las promesas de los monstruos: Una política regeneradora para otros inapropiados/bles. Política y sociedad, 30 (1999) Madrid 121-163

LUDMER, Josefina. Aquí América Latina: Una especulación. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2010.

PRECIADO, Paul B. Manifiesto contra-sexual. Madrid: Ópera Prima, 2002.

VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madrid: Melusina, 2010.

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Salsa, amendoim, rum e violência: o universo maldito de Rey em O Rei de Havana

Vera Lúcia Lenz ViannaRosani Ketzer Umbach

Em El rey de la Habana, publicado em 1999, o escritor cubano Pedro Gutiérrez traça o perfil de um indivíduo oprimido pela miséria e pela violência. Sua luta é a luta pela sobrevivência no submundo esquecido de Havana, território ficcional onde transitam miseráveis, prostitutas e homossexuais. A mescla entre ficção e história e uma linguagem corrosiva caracterizam a produção deste escritor contemporâneo, como Trilogia sucia de la Habana (1998), Animal tropical (2000), El insaciable hombre araña (2002) e Carne de perro (2003), entre outros. Gutiérrez constrói seu personagem principal de modo a aproximar o leitor de um mundo brutal e em franca deterioração, cujos habitantes acabam tornando-se invisíveis e descartáveis. Em sua perambulação pelo cenário urbano, Rey vive estritamente o minuto presente, o momento que respira. Marcado pela dor e pela repressão, o passado precisa ser esquecido como forma de rasurar suas lembranças desprovidas de aspectos positivos e humanizadores. A dúvida e a incerteza acompanham o dia a dia do personagem e o impossibilitam a traçar qualquer estratégia para o futuro. Sem poder apostar no futuro e com um passado perturbador, o presente torna-se, na narrativa, o tempo predominante, onde a vida de Rey, mesmo que suspensa por um fio, resiste à fome e ao abandono. Neste estudo, interessa aproximar o texto do escritor cubano ao que se denomina realismo sujo, bem como investigar a forma com que certos aspectos da história cubana entram na história que é contada. Teóricos como Birkenmaier (2014), Thompson (1992) e Leal (2006), entre outros, fornecem apoio teórico ao trabalho.

O romance El rey de la Habana, título original do livro de Pedro Juán Gutiérrez, apresenta a marca de uma narrativa que se caracteriza pela crueza do relato, por um linguajar sem adorno que não poupa o emprego de expressões vulgares e ilustra o que o escritor cubano denomina “una escritura muy cruda, muy visceral, un strip-tease de mi alter ego”, como observou em 2002, em uma entrevista concedida ao periódico La tercera (Chile), em que também afirma: “Trato de ser sincero al

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escribir”.1 No romance analisado, forma e conteúdo estão ligados de modo visceral, representando as vidas miseráveis que habitam o universo ficcional do escritor cubano. Em sua condição humana, mulheres, homens e crianças à deriva, famintos e sujos são as figuras que transitam no contexto ameaçador do romance. A paisagem de Havana, seus bairros e cores locais, é o cenário da obra, e é neste espaço que Reynaldo, um anti-herói adolescente, perambula e estabelece contato com outras personagens de forma provisória e desarticulada.

Um traço comum liga o protagonista central às demais criações literárias que figuram na narrativa – na grande maioria, são indivíduos movidos pelo instinto e pelo anonimato. O leitor adentra o espaço de uma trama que traz para o centro da narrativa um contingente de indivíduos periféricos, como Rey, Magda, Fredesbina, Kátia e tantos outros seres esquecidos. Eles vêm do nada, vivem o momento presente e, feito bichos, avançam sem perspectiva com um pouco de rum, amendoim, o ritmo da salsa, muito sexo e um pedaço de pão.

Pedro Juán Gutiérrez afirma que sua ficção não é política, mas não nega que um escritor é sempre um rebelde, está contra o poder estabelecido, e que a história, a política, a religião entram na história que se conta, mesmo que de forma oblíqua. Gutiérrez deixa claro que seus textos não devem ser vistos como um estudo sociológico e nem antropológico e que, ao narrar sobre a precariedade escolar do protagonista, ele não está falando sobre toda a juventude cubana.

Em entrevista concedida à Librusa y Delaware Review of Latin American Studies (2000, p. 7) sobre El rey de la Habana, o escritor cubano disse:

[...] Es una novela basada em situaciones que yo fui observando a lo largo de años. Los dos protagonistas da la novela son personas reales: la muchacha sigue vendiendo maní a cuatro quadras de aquí, nosotros la podemos ver. Ahora nos asomamos a la ventana y yo te puedo decir, “Mira, ése es el protagonista de El Rey de La Habana.” Y son anafalbetos, dejaran la escuela cuando tenían 5 o 6 años, y la madre es mongólica.

Esta mescla de realidade e ficção, a opção por uma prosa seca, direta e explosiva, o desejo do escritor em iluminar zonas de silêncio, contribuem para a construção de uma narrativa que perturba o leitor e o agarra em suas duras malhas. A utilização do que se chama “Realismo Sujo” para destacar as áreas mais baixas e sujas da realidade é um recurso recorrente na escritura de Gutiérrez. O termo “Realismo Sujo”, ou “Dirty Realism”, vincula-se inicialmente, ao contexto literário dos Estados Unidos dos anos sessenta, sendo utilizado na ocasião para descrever aquelas narrativas caracterizadas pelas distorções da linguagem, pela violência sem retoque, pelo mundo baixo e vulgar dos fluídos corporais, do sexo compulsivo entre outros aspectos. A literatura comumente aponta nomes como os dos escritores estadunidenses Charles Bukowski, Henry Miller e Raymond Carver, entre outros, para ilustrar esta estética que, além

1 A entrevista está disponível em: <http://www.pedrojuangutierrez.com/Entrevista_ES_Tercera.htm>.

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de romper com a literatura estabelecida, mostrava-se comprometida com a exposição do outro lado da sociedade: seu aspecto sombrio e brutal nem sempre destacado em outros textos literários. Referindo-se ao estilo de Gutiérrez, a Revista Librusa (2010, p. 6) endossa esta questão ao dizer que

o escritor ha sido calificado como una de las revelaciones más impactantes de la literatura cubana reciente. Sus textos presentan una visión inédita de la vida cotidiana en La Habana contemporánea, muy distinta de la que nos ofrecen los folletos turísticos y la propaganda gubernamental. Los personajes de Pedro Juan son seres siempre al borde de la muerte que luchan cada día por sobrevivir entre mendigos y borrachos, prostitutas y pícaros. Los textos están basados en hechos y personas reales y están escritos dentro de la mejor tradición del llamado realismo sucio, sin adornos ni aderezos.

O conjunto de obras de Juan Pedro Gutiérrez está, pois, associado a esta tendência que, posteriormente, se estendeu para outros países, como os da América Latina, e que traz seres oprimidos e desgarrados como protagonistas principais, revelando conflitos relacionados tanto à condição humana, como a uma determinada cultura ou local. A trama de El rey de la Habana ultrapassa o “local” ao permitir pensar o contexto universal na medida em que a condição de precariedade dos personagens nos remete a outros homens e mulheres que circulam numa espécie de “viveiro das incertezas”, expressão utilizada por Bauman (2007) ao discutir o colapso do pensamento, do planejamento, da ação nas sociedades e o aumento da incerteza e da insegurança instaurado nos centros urbanos de uma maneira geral.

A luta de Reynaldo, ou Rey, é uma luta inglória, pois sistematicamente ele sai de um ambiente sórdido para encontrar maior sordidez e desencanto. Cenas que causam impacto pelo estado de desumanização crescente dos seres fictícios inundam as páginas do texto e revelam uma escritura onde várias formas de violência operam como forças opositoras aos personagens.

Para analisar essas formas de violência, é importante considerar sua vinculação com o contexto social e histórico latino-americano. Conforme Sarlo (2002), em seu texto “Violencia en las ciudades. Una reflexión sobre el caso argentino”, existe um imaginário que interiorizou o medo, inclusive como metáfora da situação nacional, em que o Estado não é capaz de garantir a segurança dos cidadãos. Assim, a violência urbana surgiria em um contexto de fragilidade da noção de pertencimento à sociedade, o que provocaria rachaduras no pacto social, isolando ainda mais as pessoas já destituídas da proteção do Estado. A ideia do cada um por si toma vulto e se incorpora ao imaginário de uma sociedade em que as instituições não funcionam como deveriam e a delinquência aumenta, instituindo-se um sentimento generalizado de insegurança pessoal. “A violência é construída no tempo e no espaço”, lembra Ginzburg (2012, p. 35), para quem “as configurações estéticas estão articuladas com processos históricos.” Contrário a uma concepção universalista de violência, de caráter atemporal, que acredita haver uma inclinação para o mal ou uma agressividade inata no ser humano, Ginzburg (2012, p. 27) entende que “as circunstâncias históricas que envolvem especificamente as respectivas obras são fundamentais”. Levando em conta essa contextualização histórica, percebe-

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se que a narrativa de Gutiérrez, escrita na década de 1990, elabora ficcionalmente a situação de miséria e abandono em que se encontra grande parte da população em seu país, submetida que está às condições socioeconômicas então vigentes.

O relato do narrador inicia com a descrição do lugar onde Rey e a família moram, “o mais porco do edifício todo” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 7). Entre galinhas, porcos e pombas, eles disputam um espaço em meio a tentativas de invasão de outros inquilinos miseráveis. O protagonista de Gutiérrez (2006) é descrito enquanto menino e adolescente. A mãe, “manca da perna direita e um pouco limítrofe ou tonta” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 8), impõe castigos cruéis aos meninos sem piedade ou remorso. Não só o aspecto físico da figura materna encontra-se atrofiado: sua conduta moral indica um alto grau de deformação. Em terceira pessoa, a narrativa ilustra alguns dos castigos impostos às crianças. O teor de violência à qual os meninos são expostos é representado desde a abertura da narrativa. Em certas ocasiões, os meninos, Rey e Nelson, são presos em um armário escuro e úmido, infestado por baratas e ali permanecem por dias, encolhidos, apavorados, sem comida ou água. Em outras situações, os filhos são atirados dentro de um tanque de água:

[...] Às vezes, os afundava na água e não os tirava até que, meio asfixiados, esperneavam desesperados. Agora, maiores e mais fortes, rebelavam-se e impediam aquele castigo. Viviam soltos, embora fossem à escola, na esquina de San Lázaro com Belascoaín. Mais para fugir dela do que para aprender. (GUTIÉRREZ, 2006, p. 9).

A descrição de uma família em franca deterioração prenuncia incidentes negativos que são descritos rapidamente, quase como os flashes de uma máquina fotográfica, e conduzem o leitor a confrontar cenas cuja ação se desenrola numa sucessão veloz e dramática. Esta estratégia narrativa acentua a crueza do relato e causa mal-estar ao leitor que se vê à mercê de uma leitura asfixiante. A análise que Birkenmaier (2014, p. 38) oferece deste romance também destaca a intensidade e rapidez com que certas cenas são narradas. Ela observa que estas histórias “viven de la velocidad com que los protagonistas asesinan, mueren, hueyen y atacan”. Ao descrever o livro, seu estilo e temática, a autora oferece o seguinte comentário:

La perspectiva narrativa desde el personaje principal es decisiva al respecto. Igual en la observación de los adolescentes que ya no van a la escuela, porque lo que allí aprenden no les sirve para la vida cotidiana, donde el lector no sólo registra el hecho sino también las otras lecciones que aprenden en la calle. La realidad sucia se percibe como una realidad rica. El enfasis en la descripción realista de los marginados, por otro lado, tiene cierta lógica voyeurista dentro del mercado del libro, sobre todo en España. Leyendo las recepciones que El Rey de la Habana tuvo hasta ahora, me parece que el hecho de que se haya enfatizado siempre la inmediatez de la literatura de Gutiérrez – sobre todo en cuanto a la representación del sexo – a costa de su análisis social, no carece de cierto exotismo, impuesto desde la perspectiva europea a la literatura cubana. El éxito de las obras de Pedro Juán Gutiérrez en Europa se explica en parte por ser provocativas por sus excesos de sexo y de suciedad, y porque además se insertan perfectamente en el contexto de la llamada “literatura postmoderna” en Europa. (BIRKENMAIER, 2014, p. 37-55).

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Toda a família de Rey é dizimada em questão de segundos, sem aviso, e uma cena que beira a um pesadelo vai sendo narrada com detalhes violentos. Os meninos que espiavam uma vizinha, uma “mulatinha meio nua”, são surpreendidos por uma mãe enfurecida. Um incidente que poderia transcorrer em qualquer outro lugar sem maiores consequências, adquire no romance uma dimensão catastrófica, anunciando uma história sombria e esvaziada de eventos enobrecedores. Aos gritos, a mãe corre atrás dos filhos, e na confusão grotesca que se estabelece, a ação toma um rumo irreparável. A mãe morre atravessada por uma ponta de ferro na nuca ao ser empurrada, acidentalmente contra uma parede, por Nelson, o filho mais velho. Aterrorizado, o menino se atira do alto do prédio, espatifando-se no asfalto. A avó, esquelética e coberta de sujeira, não resiste ao cenário intolerável que se faz e desfaz sem maiores explicações, e morre do coração. Em estado de choque, Rey é o único membro da família que sobrevive.

A trajetória infeliz do protagonista é o fio condutor da narrativa, indicando desde a cena de abertura, sua impossibilidade de recuperação ou uma saída menos brutal. A violência vai se reduplicando na história: o personagem passa de um ambiente familiar violento para outro ambiente igualmente repressor, agora, sob a tutela do Estado. A natureza truculenta da polícia reiterada em várias partes da narrativa, que é treinada para agir sem qualquer grau de sensibilidade, desconsidera o estado de perplexidade do menino que acaba jogado em um reformatório. Para sobreviver às investidas dos prisioneiros, Rey vai se tornando mais embrutecido e calado, engolindo sua dor e suas perdas, incapaz de compreender ou articular seus sentimentos mediante a situação de miséria moral e física que o rodeia.

Para El Pais (1999), Rey é

un muchacho que, en las primeras páginas, pierde a su madre, su hermano y su abuela en menos de dos minutos. A partir de esa escena, en la que se combinan un homicidio, un suicidio y una muerte natural, Rey pasará por un reformatorio y por los cuchitriles más sucios y pestilentes de La Habana. Robará, pedirá limosna, participará en un espectáculo porno y exprimirá a unas cuantas mujeres, incluido un travestido, todos tan pobres como el.

A condição de desamparo e gradual reificação do protagonista adolescente caracteriza a sua trajetória sem rumo. Ao discorrer sobre os mecanismos ideológicos, Thompson (1992), descreve o processo de “reificação” como uma das formas da ideologia operar que serve para sustentar relações de dominação. A reificação é a estratégia de esvaziamento de aspectos históricos e sociais que rouba do sujeito o direito à inserção no contexto histórico de sua comunidade, expurgando-o do seu convívio. Perambulando a esmo pela cidade após fugir do reformatório, Rey percebe que a maioria de seus habitantes também convive com a pobreza e a degradação. A dureza de um sistema que regula, proíbe, cerceia e dissimula na tentativa de alinhar as consciências à lei ‘justa’ do Estado é sugerida de forma indireta.

A situação de precariedade de parte da população cubana é ficcionalmente ilustrada através de vários episódios. Em um deles, a voz narrativa se detém no comportamento animalesco de uma grande multidão que se agrupa desordenadamente

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na expectativa de comprar bebida barata. Em volta de um barril de cerveja morno e com gosto de vinagre, a multidão se aglomera e, como loucos, os personagens competem entre si aos socos e cotoveladas:

Eram quase todos negros, musculosos, cheirando a suor, agressivos, se apertando uns contra os outros, emitindo com violência o seu bodum, de lenços vermelhos, colares de candomblé. Rey metido naquele alvoroço, foi pisado. Apertado. Como uma batucada. [...] Um cheiro acre. Os negros lutando por uma jarra de cerveja péssima, barata, avinagrada. (GUTIÉRREZ, 2006, p. 84).

Com as asas de frango à venda ocorre o mesmo: briga e muitos palavrões. A situação de fome de uma parte dos cidadãos é ilustrada de maneira a compará-los a animais. Aqui são as mulheres que protagonizam uma cena violenta, como a negra que com “a mão esquerda dominou a outra pela nuca e com a mão direita deu um soco forte na boca. Partiu-lhe os lábios e os dentes. Sangue. Ninguém se afastou. Todos queriam comprar asas de frango fritas. Fosse como fosse” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 84).

Algumas vezes, somos lembrados do mundo dessacralizado de Rabelais, cujas imagens, gestos e valores encontram-se acentuadamente invertidos. A topografia do corpo, como aponta a análise de Bakhtin (1986) sobre o mundo rabelaisiano, está voltada para o extrato baixo do corpo, para a zona dos órgãos genitais, dos excrementos, dos odores fétidos. No romance de Gutiérrez, a descrição de inúmeras cenas de sexo despojadas de qualquer sensibilidade e a profusa referência a cheiros, defeitos físicos, morte, sangue, entranhas conferem um toque quase repulsivo à narrativa. O rebaixamento de Rey é tanto que ele e o lixo, o lixo e ele se aproximam e se confundem. Mas, se em Rabelais o rebaixamento convive com o riso, com a transformação que é associada à renovação e à fertilidade, ao nascimento do novo, na obra estudada nada se renova – a vida, o nascimento, a morte são vistos de forma inteiramente negativa.

Lá, o alto e o baixo se misturam, e “each image is subject to the meaning of the whole; each reflects a single concept of a world of becoming; even though the image may be separately presented”, como Bakhtin (1986, p. 153) observa. O deboche, a atitude desafiadora, o grotesco são necessários para o esvaziamento da autoridade, da intimidação da igreja e das verdades universais. Em Gutiérrez, o grotesco é direcionado para a aniquilação, o riso tem gosto amargo, e o apagamento de todo traço de humanização predomina.

Para o escritor cubano, “las palavras deben desnudar la realidad, no maquillarla” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 116). Ele parece não só problematizar certos aspectos da vida civil, como também dar sentido a ela, nascendo da urgência de fazer o silêncio brotar para libertar o artista da dor da espera constante por mudanças, da esperança sempre postergada. Mas essa impotência produz uma ficção contundente, mordaz, que faz o leitor estabelecer paralelos com a realidade de Cuba, principalmente porque o narrador situa a história no ano de 1990. Mesmo que de forma casual e breve, somos lembrados de acontecimentos históricos, como o colapso da União Soviética que leva a Ilha a uma severa crise econômica. As datas às quais o romance faz alusão e a data sobre estes

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fatos históricos coincidem. Sem o auxílio do bloco socialista, Cuba teve que lidar com a escassez de petróleo e de alimentos.

Elegendo a fome como um dos tópicos principais do livro que, somada a outras questões, torna o cenário romanesco desalentador, o escritor cubano nos permite estabelecer uma ponte entre ficção e realidade. Todos ao redor do personagem central passam fome, estão acostumados à fome, sentem a fome “rugir como um tigre no fundo de suas entranhas. Literalmente” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 116). A pobreza é, sem dúvida, um dos temas da literatura de Pedro Gutiérrez – ele mesmo comenta que passou fome em sua juventude. Para o autor, a pobreza é um círculo vicioso que “aplasta al ser humano [...] Te estoy hablando de la mescla de hambre com anemia y enfermedades [...]”, diz ele, “y luego hay que usar las mejores sensasiones del ser humano mezquinamente para buscar dinero porque todos los dias tienes que buscar um dólar, dos dolares, para sobrevivir” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 5).

Pensando sobre as circunstâncias sociais nos centros urbanos deteriorados e sua relação com a violência, Pires (2014, p. 5), de modo semelhante ao de Bauman (2007), mostra que certas funções da cidade contemporânea como lazer, habitação, trabalho e circulação são direitos que “definham, estertoram, e dão lugar à violência que oprime e aniquila a liberdade”, já que essas funções estariam fragmentadas e inoperantes pela “falta de habitação, moradia, de condição digna de um lar nas cidades, a escassez de instrumentos urbanos de lazer e entretenimento, o alto custo financeiro dos transportes públicos, ainda precários, e com reflexos à saúde e na qualidade de tempo no convívio familiar”.

Sem documento, sem escolaridade ou laços familiares, o protagonista vive de pequenos furtos, escondendo-se da polícia de dia e vagando à noite. Impotente contra o contexto circundante que o rechaça, ele vai sendo engolido, devorado pela fome, pela sujeira, pela degradação física e moral. A migração de Rey de um ponto da cidade a outro é seguida de descrições da paisagem urbana da cidade. O narrador vai tecendo comentários em relação aos lugares por onde o protagonista passa. Centro Habana, por exemplo, “continuava igual, bonita e maltratada, esperando ser maquiada” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 36). O parque Maceo, a avenida Del Puerto, Tallapiedra, Paseo del Prado, Varadero e muitos outros espaços geográficos de Cuba e de Havana vão surgindo no cenário ficcional. Em alguns lugares Rey não tem com o que se preocupar, são espaços pobres, sem vigilância; em outros, precisa ficar atento, pois os espaços urbanos frequentados por turistas contam com a presença da polícia, e indivíduos como ele não são bem-vindos. Indiretamente, o leitor é lembrado do marco divisório que separa a Havana dos turistas e a Habana dos habaneros.

Em O rei de Havana, título da obra em português, o contorno de uma cidade que não se encontra em folhetos turísticos e nem na propaganda do governo vai sendo desenhada: um espaço semelhante à descrição que se encontra no livro de Sanchez (2009), intitulado De Cuba, com carinho. Nele, a autora fala da tensão constante gerada por um regime “que borra os limites da vida pública e da vida privada de modo a fazer a política gotejar no interior das casas, das escolas, do trabalho a todo o instante” (SANCHEZ, 2009, p. 187).

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Assim, a caracterização que o personagem de Gutiérrez recebe convida o leitor a aproximá-lo de um extenso número de cidadãos cubanos sem recursos. Ao mesmo tempo, Rey também representa um crescente contingente humano – habitantes miseráveis de todo o planeta que, como ele, tornam-se invisíveis aos olhos de uma estrutura social e política que os considera descartáveis. Em sua caminhada, Rey vive apenas o agora:

Com fome e sem dinheiro, sua sorte ou desgraça era que vivia exatamente o minuto presente. Esquecia com precisão o minuto anterior e não se antecipava nem um segundo ao próximo minuto. Há quem viva cada dia; Rey vivia o minuto. Aquilo era decisivo para sobreviver e ao mesmo tempo o incapacitava de fazer qualquer projeto positivo. Vivia do mesmo modo que a água estancada num charco, imobilizada, contaminada, se evaporando em meio a uma podridão asquerosa. E desaparecendo. [...] A vida pulsando. E ele alheio a tudo. (GUTIÉRREZ, 2006, p. 163).

Como o fragmento ilustra, o protagonista desenvolve um mecanismo de esquecimento para não lembrar de sua existência maldita. Inexistente aos olhos da máquina do estado, observa-se seu afastamento da condição humana e sua aproximação ao mundo animal; no entanto, é um mundo animal concebido de forma negativa, que o leva à aniquilação. A configuração emocional e física do personagem de Gutierrez (2006) lembra a descrição de Bauman (2005, p. 44) em relação às formas de identificação ou à absoluta falta da mesma. O teórico considera que:

Num dos polos da hierarquia global estão aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as no leque extraordinariamente amplo de abrangência planetária. No outro polo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha de identidade, que não têm direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas ou impostas por outros [...] – identidades que não têm permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar. Identidades que estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam.

Ao viver uma situação limite esgotante, Rey representa o indivíduo que não tem a oportunidade de alterar seu destino, de rejeitar uma vida feita de dor e desamparo. É apenas no sexo que ele encontra um sentimento momentâneo de autoafirmação. O personagem do escritor cubano faz parte de um contingente de seres “exilados nas profundezas além dos limites da sociedade, cuja súplica não será aceita e cujos protestos não serão ouvidos” (BAUMAN, 2005, p. 45). A caracterização do personagem central deixa entrever o efeito de um sistema autoritário que não investe nos direitos humanos e empurra o indivíduo destituído a sua própria sorte. As descrições sobre Rey fazendo sexo com mulheres de todo tipo e idade são recorrentes. Utilizando uma linguagem sempre corrosiva e repleta de descrições picantes, os malabarismos sexuais do protagonista são ilustrados a todo o momento. Sem teto, alimento, roupa e higiene, tudo lhe falta, menos sexo; sexo violento, compulsivo. Observa-se que é apenas nesta esfera que Rey encontra algum sentido para sua existência miserável. A dinâmica deste corpo degradado e alienado recebe uma outra

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configuração apenas através do sexo. Nestes instantes, seu corpo abjeto toma a forma de um corpo erotizado de onde emerge uma força bruta e irracional.

Sabemos que a sociedade funciona como um mapa que orienta o comportamento dos indivíduos, equipando-os para desenvolver certas funções sociais que se caracterizam por níveis diferenciados de coerção. Leal (2007) argumenta que os sistemas de representação e sua lógica são introjetados nos indivíduos através da educação a fim de fixar e garantir uma certa homogeneidade à estrutura social. No caso do personagem central, não existe uma mediação favorável por parte do Estado ou por parte da sociedade que contribua para sua orientação. Fora das leis reguladoras do sistema político, vivendo sob a ameaça de extinção, ele migra de um espaço a outro, e de maneira pouco consciente, segue na contramão das normas impostas pelo sistema. Habitante de um território sem lei ou ordem, desgarrado, ele representa o grupo de cidadãos periféricos e analfabetos que sobrevivem de sobras do lixo, sem qualquer garantia ao direito à vida e à segurança: alguns dos princípios básicos que regem a carta dos Direitos Humanos.

Imagens de violência e caos se espraiam por toda a narrativa. Faminto, sujo e embriagado, Rey desentende-se com Magda, a única pessoa com quem mantém um convívio mais duradouro. É a imundíce e a sujeira que os atraía; “não vinham do pó e ao pó regressariam, vinham da merda e na merda continuariam” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 199). A voz ácida e direta do narrador traça um retrato repugnante dos dois que culmina em uma discussão, e o instinto animalesco toma forma mais uma vez. Enfurecido, Rey corta a face esquerda de Magda, expondo os seus ossos, tendões e dentes. Com outro golpe, acerta-lhe a carótida, matando-a em segundos. Sem saber o que fazer, ele permanece ao lado do corpo decomposto por um longo tempo. Ao tentar enterrar a mulher em um buraco perto do lixão, ratos enormes e selvagens o atacam, mordendo-o em várias partes do corpo:

Vinte. Trinta. Apareciam mais e mais. Quarenta. Muito mais. Morderam seus braços, as mãos, a cara. Os ratos chiavam e se atiravam contra ele. [...] Conseguiu jogar o cadáver no buraco. Os ratos continuaram mordendo, enlouquecidos com o presunto. Arrancavam pedaços do cadáver. E o mordiam, arrancando-lhe pedaços de pele. Dezenas de mordidas. Talvez cem. Eram ratos enormes, fortes, selvagens. Haviam arrancado pedaços de seus braços, das mãos, do rosto, do ventre, das pernas. Vomitou. As náuseas, o enjoo, a dor de cabeça, o delírio e a febre. Teve uma morte terrível. Sua agonia durou seis dias e seis noites. Até que perdeu a consciência. Finalmente, morreu. (GUTIÉRREZ, 2006, p. 217-218).

As úlceras feitas pelos ratos fazem o personagem agonizar dias e noites. Tudo se volta contra ele. Sem ninguém para ampará-lo, sozinho e equiparado à condição de inseto, Rey é “esmagado como se fosse uma barata” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 223), morrendo rodeado de urubus. Sua condição de lixo humano e sua coisificação reservam ao personagem um fim trágico e grotesco que vai sendo enunciado desde a cena de abertura do livro.

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É pertinente sinalizar que a obra do escritor cubano incorpora muito de suas próprias vivências. Em suas entrevistas, o escritor observou que ele, como o seu anti-herói Rey, também tomou muito rum, passou fome e conheceu o mundo baixo de Havana. Segundo Gutiérrez (1998), em entrevista ao jornal El País, sua recuperação só aconteceu porque resolveu mergulhar na vida literária que

hizo escapar su espíritu hacia los bajos fondos de La Habana Vieja, para explorar en la miseria y en las formas de hacer frente a la desesperación, para plasmarlas luego en sus cuentos y poemas[...] que define su literatura como realismo sucio, sin nada que ver con el realismo mágico o maravilloso. Trilogía sucia de La Habana, la primera obra del escritor cubano que se publica en España, reúne tres libros de cuentos de marcado carácter autobiográfico, en los que el sexo, la música y el ron son elementos omnipresentes. Con una prosa desgarrada, literal, el escritor revive situaciones de su vida y no esconde su huella con falsas pistas, puesto que muchos de los protagonistas de sus cuentos son él mismo.

Definindo sua ficção como um modo de exercer a reflexão e o pensamento, de exploração da vida e de sinceridade, o escritor diz que “estoy haciendo literatura, no estoy haciendo periodismo ni testimonio, pero com mucha sinceridad, tratando de decir lo que nadie se atreve a decir. Y a la editorial que no le guste, que no publique mi libro” (GUTIÉRREZ, 2010, p. 6).

Em sua análise sobre o realismo sujo, Birkenmaier (2014), ao se reportar a várias obras latino-americanas, enfatiza um outro aspecto comumente visível em todas elas; a ausência de laços familiares. Para a autora, este é o fator geralmente desencadeador de situações catastróficas. Em El rey de la Habana, a trajetória infeliz do protagonista toma corpo após a morte violenta da família. Ainda vivendo a fase da adolescência, analfabeto, faminto e sem família, o personagem é incapaz de promover um movimento de conjunção em direção ao contexto que o rodeia. Ao falar sobre o estilo de seu livro, Gutiérrez (2010, p. 6) concorda que ele está dentro de uma linha muito forte do realismo sujo; “entendido como una manera de llegar siempre al límite de la literatura, al límite de los personajes, no esconder”. A dinâmica que rege a existência de Rey é a da violência sem sentido, sem comprometimento algum com a sociedade, a ética, ou a política.

O universo ficcional do romance cria um desassossego no leitor que se vê diante de um contexto impiedoso, sem escapatória. O escritor admite que a construção do romance lhe causou muito sofrimento. Quando ele descobriu que não havia outra saída para seu personagem, a não ser a morte brutal, conta que não conseguiu conter o choro e ficou muito tocado emocionalmente. Resumindo as diferentes sensações que a escritura do livro trouxe, Gutiérrez (2010, p. 5) conclui:

Pero a fin de cuentas, la literatura es siempre un poco neurótica, um poço enfermiza. Por eso tantos escritores han terminado suicidas o locos o borrachos com delirium tremens. Porque la literatura de por si te neurotiza mucho. [...] Y tienes que ser curel, y com quién eres cruel ES contigo mismo y te vas neurotizando. Es terrible.

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Pouco a pouco, o personagem central de Gutiérrez (2006) vai se transformando em coisa. Ninguém se interessa por ele. Acossado por um sistema que promete cuidar do cidadão, mas age contra ele, a presença de Rey é perigosa ao funcionamento do Estado, pois ele representa a imagem viva de uma sociedade decadente cujo regime autoritário intervém em todas as instâncias da vida social. Na lógica da exclusão, o outro precisa ter sua diferença reduzida até deixar de ser diferente. Como Leal (2007, p. 181) postula, “o diferente deve passar a ser igual ou, então, ser eliminado, silenciado. Igual, não será notado. Sem voz não será ouvido”. Rey precisa ser destruído, pois enquanto outro, mesmo tendo pouca consciência do jogo das forças sociais e do poder, ele vive à margem da ordem que precisa ser controlada. Se a narrativa inicia com Rey habitando um edifício em ruínas, onde porcos, galinhas e seres humanos respiram o mesmo ar fétido, ao final a miséria, que no romance adquire um alto teor de violência, prevalece e a tudo domina, impedindo que o personagem adquira um mínimo de dignidade. E quando Rey morre, “ninguém jamais fica sabendo de nada” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 224).

Referências

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EL CUBANO Pedro Gutiérrez describe los bajos fondos de La Habana. El Pais, 25 nov. 1998. Dis¬ponível em: <http://www.elpais.com/diario/1998/11/25/cultura.htm>. Acesso em: 30 jun. 2015.

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GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas: Autores Associados, 2012.

GUTIÉRREZ, J. Pedro. O rei de Havana. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

______. Trilogia suja de Havana. São Paulo. Companhia das Letras, 2008.

______. Animal tropical. Barcelona: Anagrama, 2000.

LEAL, Bernardina. Entre ensinar e aprender, a alteridade da infância. In: TREVISAN, A. L.; TOMAZETTI, E. A. (Orgs.) Cultura e alteridade: confluências. Ijuí: Unijuí, 2006. p. 87-94.

PIRES, Luís M. F. Violência e liberdade nas cidades. Fórum municipal & gestão das cidades – FMGC, Belo Horizonte, ano 2, n. 6, jul./ago. 2014.

SANCHEZ, Yoani. De Cuba, com carinho. São Paulo: Contexto, 2009.

SARLO, Beatriz. Violencia en las ciudades. Una reflexión sobre el caso argentino. In: Moraña, Mabel (Org.) Espacio urbano, comunicación y violencia en América Latina. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, University of Pittsburgh, 2002.

THOMPSON, John. Ideology and modern culture. California: Stanford Press, 1992.

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Entre la letra y el espetáculo: versiones de lo femenino en Rosario Tijeras, de Jorge Franco

Rosane Cardoso

El sicario es el instrumento más feroz de la violencia y ésta la manifestación última de la barbarie.

(Camacho Delgado)

Mientras se conmemoran los doscientos años de la gradual independencia de los países de América, la violencia latinoamericana sigue como un tema constante, agudo y pa-radójico en la Historia y en la Literatura. Si, por un lado, varias dictaduras se rompieron, por otro, nuevas formas de tiranía se han organizado, principalmente en el ámbito urbano. Pese a que la violencia no sea un rasgo específico de la contemporaneidad, eventos como el terro-rismo, el narcotráfico, la delincuencia, la marginalidad económica y social solapan los deseos de paz. En Colombia, país enfocado en este artículo, los carteles de tráfico de drogas, entre los años de 1980 y 1990, impusieron inauditas formas de violación a los derechos humanos, con específicos códigos de conducta. En nada se puede simplificar este fenómeno. Los jefes del narco provocaban ensañamiento y, en simultáneo, una especie de justicia social, como un Robin Hood al revés, ya que centraban su poder entre las poblaciones más pobres, dándoles algún tipo de ventaja económica y de protección contra la violencia policial.1

Rápidamente, la guerra por el poder sobre el exitoso negocio de las drogas y de las armas creó un embate entre los traficantes por el control de los territorios, gene-rando guerrillas urbanas e, incluso, en el campo y en las montañas. En este contexto, los sicarios hallan su nido más propicio. El imperio levantado por Pablo Escobar (1949-1993) ha sido, a la vez, de gloria, desesperación y mítica. Para muchos, sobre todo los jóvenes, estar implicado con el fundador del cartel de Medellín era pertenecer a una élite fascinante. La vida era para ser vivida sin hesitaciones delante del peligro siempre inminente. Aunque la cárcel o la muerte estén rodeando al sicario, su rango social se cambia al estar asociado a un capo que, nacido de las mismas dificultades conocidas por el matón a sueldo, logra poder y respetabilidad. Según Mario Vargas Llosa:

1 Según se puede ver en deposiciones populares en el documental Pablo Escobar: ¿ángel o demonio? (2008)

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El sicario prototípico es un adolescente, a veces un niño de doce o trece años, naci-do y crecido en el submundo darwiniano de “las comunas”, barriadas de pobres, desplazados y marginales que han ido escalando las faldas de las montañas que cercan a Medellín. Vistas de lejos, desde el valle o las calles de la ciudad, las comu-nas parecen apacibles, y de noche bellísimas – un manto de luciérnagas – pero en verdad impera en ellas una indecible violencia, atizada por la miseria, el desem-pleo, la desesperanza, la droga, la corrupción y una criminalidad sin freno, cuyo emblema y epifenómeno es precisamente el sicario. (VARGAS LLOSA, 1999).

Llosa discurre largamente sobre esta especie de samurái japonés o cowboy del Oeste Norteamericano legitimado por la literatura, el cine, la música, el periodismo y por la fantasía popular (VARGAS LLOSA, 1999). El sicariato es la ratificación de la virilidad, o más bien, es un ritual de pasaje de niño a hombre. Llosa no deja de inferir las ramas del trabajo comenzado con el narco. Al principio han sido los seguidores de Escobar y de otros jefes, pero pronto el asesino pago pasa a ser visto como una solución a los adinerados con “problemas” a resolver, sea librarse de un socio incómodo o en-viudar lo más rápidamente posible (VARGAS LLOSA, 1999). Adondequiera que vaya, el sicario adquiere una temida autoridad generada por su eficacia letal.

En los 90, el término “novela sicaresca” fue cuñado por Héctor Abad Faciolince, denominando el género narrativo que tematiza asesinos a sueldo como una estética en la literatura colombiana. Novela sicaresca – o narcorrealismo – es, pues, un abordaje de los efectos del narcotráfico y sus consecuencias en la juventud que busca ahí un rumbo para una vida sin altas expectativas. En las consideraciones que pretendemos encetar, veremos a la narrativa Rosario Tijeras, cuya protagonista ejerce el sicariato, primero, desde la perspectiva de la increíble violencia que sufre la heroína, inserida en el contexto social referido. En este sentido, la estética en que nos centramos es la del narcotremendismo (CAMACHO DELGADO, 2006). Tras eso, subrayamos la presencia de la violencia como representación mediática de la protagonista en el cine. Es nuestra hipótesis que la transposición de Rosario Tijeras para la gran pantalla está centrada en la exposición del cuerpo, mimetizando la violencia “realística” de la novela para la vio-lencia contra el cuerpo de la mujer, a través de la banalización de lo femenino.

Rosario Tijeras (1999) es un thriller dramático de gran éxito de público y de crí-tica. Su autor, Jorge Franco Ramos, nació en 1962, en Medellín, Colombia. Estudió Li-teratura en la Universidad Javeriana y cine en la London International Film School. Entre sus obras están Paraíso travel, de 2000, llevada al cine en 2008 por Simon Brand, y Me-lodrama, de 2006. Para escribir Rosario Tijeras, Ramos contó con una beca del Ministerio de Cultura de Colombia. La obra está traducida en varios idiomas. En 2000, recibió el “Premio Internacional de Novela Dashiell Hammett2” en Gijón, España.

Antonio, el narrador, presenta al lector Rosario Tijeras a quien él y su amigo Emilio han conocido en una discoteca. La atracción es inmediata aunque solo Emilio intenta conquistarla, lográndolo, al paso que Antonio, a lo largo de los años que van a

2 El Premio Dashiell Hammett es concedido a la mejor novela negra hispánica. Originado en un festival dedi-cado a promover la lectura del género, en Gijón, otorgó su primero premio a Paco Ignacio Taibo II por La vida misma, en 1988.

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pasar juntos, se dedica a amarla en silencio. El inicio del texto es un choque y, como la vida de la joven, no permite treguas para captarse de pronto qué ha pasado:

Como a Rosario le pegaron un tiro a quemarropa mientras le daban un beso, confundió el dolor del amor con el de la muerte.Pero salió de dudas cuando despegó los labios y vio la pistola.– Sentí un corrientazo por todo el cuerpo. Yo pensé que era un beso… – me dijo desfallecida camino al hospital. (FRANCO RAMOS, 2004, p. 5).

Antonio rememora a esta mujer al borde de la muerte, en todo distinta de los dos jóvenes pertenecientes a la clase alta de Bogotá. Sobre todo, Rosario tiene una pro-fesión que les asusta y fascina: es una sicaria, además de prostituta, y su apellido es un apodo que resiste como recuerdo de su primera víctima, un hombre que la violara. Ha-biendo sufrido abuso sexual a los ocho años, su cuerpo ha sido siempre razón de placer y de odio. El violador, amante de su madre, va a seguir buscándola en todas las partes, hasta que Johnefe, el hermano de Rosario, lo castra. Eso va a provocar otro conflicto para la joven. Su madre, D. Rubí, no acepta la acusación de la hija y sobre todo la acción de Johnefe, pues suele defender siempre a los hombres con quien se ha acostado. Eso la lleva a renegar Rosario. Así, desde pronto, en la novela, se establece también la vio-lencia psicológica, por encima de las que ya está sometida la protagonista: la promis-cuidad de la madre, la falta de seguridad en las calles, la delincuencia, el narcotráfico, las violaciones y, su dolor más sentido, el asesinato del hermano, su ángel protector.

El “ascenso” de Rosario a sicaria se da a través del sexo y de la pistola. Ella se torna amante del temido Ferney que le da coche, cuenta corriente, apartamento lujo-so. Rosario recibe a todo con desprecio aunque ve en este hombre un compañero fiel. Su vida sigue entre los periplos provocados por el arriesgado sicariato y el trabajo no menos peligroso de prostituta. Emilio y Antonio la sacan brevemente de este embrollo. Emilio por quererla, Antonio por amarla sinceramente y ser el único a quien Rosario se permite ser abierta en sentimientos y fragilidades. Cuando a final cede a este amor, un antiguo amante la hiere mortalmente, inconforme por haber sido preterido. Esta es-cena es significativa por dejar entrever cierta ingenuidad en la lista Rosario. Confiada, acepta un beso de su ex amante, pero en cambio recibe un balazo.

De prosa dinámica y repleta de idas y venidas, la narrativa provoca un aluvión de sensaciones, además de un cuadro abrumador sobre la violencia de los fines del siglo XX en Colombia. El argumento, ambientado en la Medellín de los 80, en pleno dominio de Escobar, mezcla realismo social y lirismo, principalmente a lo que dice respeto a la relación entre la pareja central. La narración, hecha de flashbacks desde la percepción de Antonio, enseña la situación vivida por Colombia en aquellos tiempos, algo que es, por sí, un enredo cinematográfico perfecto. La violencia está presentada sin tapujos en los dos principales ejes que interesan a este artículo: en un rango realístico – el narco y sus ramificaciones –, y en la concepción del personaje Rosario Tijeras, presentada entre tinieblas narrativas.

En Tijeras podemos reportarnos a lo que Camacho Delgado (2006) refiere como “narcotremendismo”. La corriente literaria tremendista surgió en España en los co-mienzos de los 40, tras el fin de la Guerra Civil española, cuando hubo un hueco en la

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producción artística debido a la falta de perspectiva en que se hallaba el país y a una protesta al ascenso de textos que enaltecían a la dictadura recién albergada firme en el propósito de aislar España de cualquier influencia cultural exterior. El tremendismo, representado principalmente por Camilo José Cela, llega a través del hiperrealismo grotesco, de la atmósfera pesada, próxima a las pesadillas:

Esa corriente, conocida desde el principio como “tremendismo”, fue posible en el contexto de un país habituado a la sangre fácil de sus numerosos encontrazos bélicos, habituado a las conquistas y reconquistas, un país en eran frecuentes la ejecuciones arbitrarias, la persecución implacable a los derrotados, las torturas indiscriminadas en calabozos. (CAMACHO DELGADO, 2006, p. 209).Esta impronta estética retrataba formas de existencia en carne viva, con personajes golpeados de forma inmisericorde, que trataban de sobrevivir en la intemperie política y económica de un país arrasado por las bombas. El tremendismo dibujó el desquiciamiento de la sociedad, la violencia gratuita gestada en el interior de los contendientes, favorecida pela situación política, el regusto por lo morboso, por lo repulsivo, por lo deforme. (CAMACHO DELGADO, 2006, p. 211).

Así como Camacho Delgado aproxima el tremendismo de una de las principa-les novelas contemporáneas colombianas, La virgen de los sicarios, a nosotros parece que podemos buscar semejante planteamiento para la obra de Jorge Franco. El tremendis-mo está ubicado en efectos provocados en el lector, en lo hiperbólico de las situaciones extremas que, sin embargo, son cotidianas para Rosario. Incluso la velocidad de las ac-ciones narrativas permiten sentir el calor, la tensión, el miedo en las calles medellinen-ses. No parece posible que lo bueno salga de la trayectoria de Rosario y el lector sigue la jornada sin tomar aliento. Además, con la toma de consciencia que la religión no le da nada, Rosario se vuelve al satanismo, conocido aliado de los sicarios. Entonces, la atmósfera que involucra la trama adquiere trazos morbosos que acaban por subrayar aún más la tragedia que se insinúa constantemente en el horizonte.

Como si no fuera suficiente, Rosario Tijeras redimensiona la intensidad en la me-dida que la exaltación excesiva se alía al narco, produciendo, pues, el narcotremendismo. Camacho Delgado (2006) afirma que el mundo duro de las drogas, del exterminio y del asesinato se convierten en elementos regidores de la vida, la única forma posible de or-ganizar la realidad, en ese mundo infernal en el que se asesina para existir.

Rosario es una ola de energía. El modo como enfrenta a las violaciones, a la ma-dre y a los capos que están en su camino como jefes e incluso como clientes la eleva a otra categoría de complejidad. El deseo que despierta en los hombres puede advenir de este poder que, sin embargo, es proclamado en la apariencia sin que sea, de hecho, una realidad. A lo largo de la narrativa, se va percibiendo la falacia en que vive la chica. Su poder, de hecho, no existe. Son concesiones de una vida que le permite seguir viviendo mientras aguante, aunque Rosario no lo sepa: “desde que Rosario conoció la vida no ha dejado de pelear con ella. Unas veces gana Rosario, otras su rival, a veces empatan, pero si fuera a apostar a la contienda, con los ojos cerrados vería el final: Rosario va a perder.” (FRANCO RAMOS, 2004, p. 19). En este sentido, Franco es notable por dar a su protago-nista en espacio entre la potencialidad y el fracaso inevitable, en lo que podemos aliar la

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ponderación de Ariel Dorfman, al tratar de literatura y violencia en América:

Sobrevivir. La violencia es el modo habitual de defenderse, el método que está más a mano, el más fácil, a veces el único, para que a uno no lo maten. […] sufrir la violencia y contribuir a ella, tratando de no descansar en la irónica paz de la tumba, de seguir escuchando el peso de la propia respiración. (DORFMAN, 1970, p. 12).

Atento a los éxitos librescos, no tardó que el cine considerase la novela de Franco que, en 2005, estrenó en la gran pantalla repitiendo la alta recepción del libro. La cinta es copro-ducida entre México, Colombia y España, dirigida por Emilio Maillé, con guión de Marcelo Figueras. Jorge Franco estuvo presente en la supervisión de toda la producción. Forman parte del reparto Flora Martínez (Rosario), Manolo Cardona (Emilio), Unax Ugalde (Antonio), Ro-drigo Oviedo (Johnefe). El filme disputó en Cannes el premio de película extranjera3.

Hablar de Rosario Tijeras transpuesto al cine exige decir que Franco posee lar-ga experiencia con este vehículo y muchos de los rasgos presentes ya en la novela poseen un ritmo adecuado al cine. La velocidad de las escenas, los diálogos cortos, los flashbacks, incluso la manera como se ubican y se cortan los capítulos pasan la idea que estamos delante de un lenguaje cinematográfico. Esto no perjudica la novela para nada. Paradójicamente, la proximidad de técnicas parece no resultar potencialmente interesante en la narrativa fílmica.

Con el avance de técnicas cada vez más apuradas, obras literarias pasan a la filma-ción céleremente. No es difícil percibirse, en la construcción de algunas novelas, un guión perfectamente adaptable a la pantalla. Como en la literatura, la narrativa fílmica cuenta con recursos estructurales específicos. No se trata de uno buscar, simplemente, o imitar la apa-riencia del otro, sino desarrollar instrumentos suyos, manteniendo relación con la historia de la obra (AVELLAR, 2007). El texto literario es una base para creación de guiones y versiones para la pantalla. De hecho, la conexión entre los dos tipos de textos – literario y fílmico – está cimentada por el diálogo entre ambos, lo que queda mejor si el filme se propone a ser un lec-tor de la obra y no alguien que se prepara para ilustrarlo (AVELLAR, 2007).

Sobre la violencia y el cine, no son recientes los debates sobre los posibles daños que una u otra película puede imponer a sus espectadores. Wainberg (2005) asegura que el efecto de la imagen cinematográfica logra fascinar al que la ve por más que los detractores de este tipo de producción alerten sobre los peligros de tales imágenes. La violencia pasa a tener la vivacidad de la riqueza gráfica, presentando detalles de los ojos del victimario, el dolor de la víctima, las alteraciones físicas que sufre (WAINBERG, 2005, p. 28).

Wainberg aún analiza, bajo la perspectiva de Dolf Zillmann, lo atrayentes que son – y por consecuencia, taquilleros – filmes sobre tragedias en general. La razón para ello estaría en algunos aspectos de la psique humana. El horror llama la atención y despierta la curiosidad; produce sensaciones y estimulación, lo que hace que se quiera siempre más; los efectos de la pantalla son más aterradores que la simpleza del cotidia-

3 En 8 de febrero de 2008, la serie televisiva Rosario Tijeras: amar es más difícil que matar debutó en Colombia sin el éxito esperado por parte de la crítica de expertos. Está compuesta por 60 episodios y, en Brasil, puede ser vista a través del Netflix (www.netflix.com.br), canal online de cintas y series.

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no. El telón nos da todo, en variados ángulos. En este embate, la catarse es uno de los efectos más significativos. Aunque sea un posicionamiento polémico, experimentar la violencia, a través del cine, tendría un impacto terapéutico sobre los sujetos. También se incluye en la relación entre espectador y trama, la violencia en el sentido de justicia, en casos de castigo. O, más bien, la truculencia está justificada porque el mal ha sido sanado con la muerte dolorosa del victimario. (WAINBERG, 2005, p. 32).

En Colombia, la relación entre literatura, violencia y cine puede ser vista ejem-plarmente en la obra de García Márquez con El coronel no tiene quien le escriba, 1961, adaptada por Miguel Zacarías en 1999, Crónica de una muerte anunciada, 1981, trans-puesta al cine por Francesco Rossi y Torino Guerra en 1987, El amor en los tiempos del cólera, 1981, cuyo guión ha sido escrito por Mile Newell en 2007. Conforme apuntan Laverde Román et al (2010), en Márquez la violencia no está planteada necesariamente de forma directa. El autor es responsable por crear un ambiente donde pesa la tiranía como una fuerza invisible, aunque sentida, o donde los personajes están todavía su-friendo sus reflejos. En general, pocas obras han merecido atención o críticas elogiosas en la cinematografía colombiana. Curiosamente, Pablo Escobar: ángel o demonio, de 2007, es el documental más visto en toda la historia de Colombia.

Recientemente, la filmación de La virgen de los sicarios y de Rosario Tijeras tra-jo un acalorado debate en Colombia en el campo de la crítica. Una de las principales discusiones tiene que ver con el hecho de que las dos películas han sido filmadas por extranjeros, rompiendo con una perspectiva más personal a los textos y vinculada a los estereotipos sobre la violencia en el país. A este artículo, sin embargo, interesa la presencia del cuerpo femenino en la pantalla, considerando que la novela y la constitu-ción de la protagonista de Jorge Franco son banalizados por una actuación hartamente sexualizada que, más que la sicaria, exalta el cuerpo femenino como un escaparate mediático por donde belleza, peligro y poder banalizan, sustancialmente, la tremenda violencia física y psicológica sufrida por la protagonista.

La presencia del cuerpo femenino en el cine posee una historia que es, como mínimo, irregular. De banal a artística, está, frecuentemente, existiendo al bel placer de lo que es un atractivo para el espectáculo mediático. El cine, a pesar de las actrices que lograron sobreponerse a los estereotipos, estableció modelos que fueron largamente seguidos, desde el vampirismo de Theda Bara hasta el efecto bomb shell de Marilyn Mon-roe. Empero, esta no es una prerrogativa solo del cine norteamericano de entretenimien-to. Por otras tierras, incluso las mejores intenciones sobre el desnudamiento femenino sufrieron reveces. Pier Paolo Pasolini, con la Trilogía de la vida, compuesta por Los cuentos de Canterbury, Decamerón y Las miles y una noches, pretendía presentar un cuerpo libre y subversivo, principalmente en relación a la hipocresía social y a la política vigente.

Vieira Jr., que analiza Teorema, de 1968, comenta que, en aquella época, el cine comer-cial presentaba la desnudez femenina de manera plena, mientras Pasolini pensaba el erotismo como un arma a combatir la sociedad de consumo, como una instancia transgresiva (VIEIRA JR., 2008). Pronto percibió que el cuerpo está configurado como una de las más legitimadas y eficaces formas de alardear el consumo. Él vende y seduce porque estimula los avances esté-

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ticos, la estandarización de belleza femenina y masculina, el mercado de alimentos, de ropas, de perfumería y de un listado sin fin de ítems. Conforme Castejón Leorza (2004, p. 306):

La mujer en el cine ha sido únicamente un cuerpo en el que se ha proyectado la sexualidad masculina, un cuerpo a ser mirado, un objeto, un fetiche. La mujer se convierte así en escenario de la sexualidad, y no en sujeto, quedando su propia sexualidad anulada, impidiendo su libre desarrollo personal, y la construcción de su propia subjetividad. Para las feministas, este proceso no es sino el reflejo de la cultura patriarcal que se intenta imponer a la mujer; se busca una mujer sumisa y dominada por la mirada masculina […]. El cine no hace sino recoger la dicotomía cultural y social, por la cual la mujer, o es una santa, o es una puta.

A partir de los 80, pasamos a ver películas con protagonistas que asumen papeles an-tes considerados masculinos, como soldados, guerreras, mercenarias. Rosario se encaja en este perfil al tomarse el ropaje de sicaria. Pero, así como las demás actrices que actualmente asumen roles antes delegados a los hombres, la femineidad que conviene a la cultura masiva se le infiere sensualidad gratuita. Su “poder” inevitablemente sucumbirá a algún héroe que, al final de la trama, vendrá salvarla de las dificultades y devolverla a la condición de amada protegida.

El cine, en sus comienzos, y después la televisión con su impacto bastante más incisi-vo entre la población, pasa a infundir modelos que determinan lo que es ser hombre y lo que es ser mujer, lo que también vendrá a decirnos qué es la sensualidad y cuál es el cuerpo ideal. La mercancía oculta y mitifica lo que de hecho significa. Rosario, en la película, es una ima-gen fatua, un objeto que se toma vida a la vez que su persona se cosifica en algo a ser deseado como bien de consumo. El fetiche establecido por su cuerpo, fuerza y poder con el arma crea una potencia que seduce increíblemente. A pesar de eso, Rosario es desechable.

La protagonista está puesta para ser una femme fatale, representación que sería coherente con la novela negra. Pero la fatalidad de Rosario está en una idea plasmada por la contemporaneidad o, más bien, por la sociedad de consumo, y sobre el embuste de la libertad de la mujer. Ella parece decidir qué quiere hacer de su vida; parece no temer a nadie y definir quiénes serán sus amantes o cómo va a vivir. Porta una pistola y representa la mujer alejada de la idea disciplinar de esposa y ama de casa. Sin embargo, es obvia la falsedad de la situación de Tijeras.

Para Skar (2007), la adaptación de Maillé capta a perfección el espacio donde se encuentra Rosario y las calles de Medellín en el período de guerra. En este plan, el director logra captar el ambiente de desesperanza y dureza de aquella situación. Aún así, al empezar la película con la chica en la discoteca ejerciendo tanto la profesión de sicaria como de prostituta o cuando presenta los abusos sexuales sufridos como modos de subrayar “una mujer agresiva en lugar de la niña violada y atrapada en un ciclo de marginación femenina” (SKAR, 2007, p. 118). Estos y otros cambios definidos por la adaptación terminan por tratar a la protagonista como femme fatale y no como una víc-tima a defenderse, con los recursos que conoce, de los conflictos que la rodean.

Además, la novela está cargada de matices, de medias palabras que erigen a la chica como un recuerdo. No se alcanza a Rosario. Así como Antonio la conoce y la desconoce, el lector permanece entre nubes de incertidumbre, no en relación al enredo, sino sobre quién

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es Tijeras, incluso porque ella miente y se oculta de cualquier inquisición. La película elude este espejismo, dejando al espectador a solas con los hechos que componen la trama y pilla-do por un rasguño de la protagonista. Queda claro que la transposición de una novela a una película exigirá cortes y un lenguaje específico, además de elementos técnicos de acuerdo con cada narrativa. Se trata de una intersección entre las artes, no de fidelidad total.

En la búsqueda por la venta de butacas, la cinta aplasta al personaje, dismi-nuyéndolo, y al público, machacándolo para que quepa en el padrón de audiencia deseada. Rosario es impuesta y de hecho agrada como protagonista porque es guapa e imbatible. Pero pronto la trampa se enseña a la luz. La chica no está solo muerta. Eso no sería un problema en la cultura sicaria. Ella está banalizada. Su trivialidad empieza en la publicidad para la cinta, se fortalece en el cuerpo que muestra constantemente en la pantalla y se calla porque ha estado sujetado a todo tipo de violación, física o moral.

No restan dudas sobre la violencia como una presencia efectiva en la novela his-panoamericana y como una forma de pensar los conflictos en los pueblos relacionándo-los al contexto literario. Sin embargo, lo que interesa no es aseverar el peso de la temática, “sino desentrañar las formas específicas, múltiples, contradictorias, y profundamente humanas, que esa temática presenta” (DORFMAN, 1970, p. 9). En los 80, Medellín, aba-tida por el narcoterrorismo, fue epicentro de la drogadicción, del sicariato y de la pros-titución. Su infraestructura clandestina permitió el desarrollo de actividades ilegales y debido a otros problemas sociales y económicos en el país, encontró un espacio de fruc-tificación entre la comunidad marginada. En la política del narcotráfico están todos los ingredientes hartamente utilizados por en cine de trama policíaca4. Infelizmente, la situa-ción antioqueña de aquella época no era una ficción de entretenimiento.

La narrativa fílmica de Rosario Tijeras se detiene, sobre todo, en elementos atrayentes al gran público, utilizándose de la violencia extrema a la cual añade sexo y una ligera historia amorosa. La obra de Franco no se exime de ninguno de estos ele-mentos. Aún así, lo hace a partir de enganches que podemos pensar como la naturali-dad de vivir la propia sexualidad y la complejidad de estar en un mundo inconmensu-rablemente más grande que la protagonista.

Tijeras presenta un antihéroe femenino – tal vez el único de la literatura colom-biana – alejada de idealismos, movida por el deseo elemental de medrar y sobrevivir en un ambiente truculento. El tremendismo que la involucra la pone en defensa constante contra todo y todos. No conocemos lo que piensa Rosario – la perspectiva narrativa es de Antonio – pero oímos su voz cargada de desilusión sobre la vida y los hombres. Rosario no habla o convive con mujeres, como si fuese única en el cerco donde se en-carcela. ¿Ha Tijeras amado alguna vez? A la pregunta de Antonio ella no contesta. Pero cuando él le pregunta si cree en Dios, la respuesta es rápida:

4 Incluso el cine extranjero se está apropiando de la temática. En 2011, fue lanzado Colombiana (título en inglés), cuyo enredo se basa en una joven que a los 9 años ve matar a sus padres. Huye a Estados Unidos donde se torna una asesina a sueldo. Sin embargo, sigue firme en el propósito de venganza contra el narcotraficante que eliminó su familia. La producción y el guión son de Luc Besson y la dirección está a cargo de Olivier Megaton. En Colom-bia, la cinta fue fuertemente criticada por relacionar una asesina a sueldo con la mujer y la sociedad colombianas.

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_ Dios y yo tenemos malas relaciones – dijo un día hablando de Dios._ ¿No crees en Él?_ No – dijo – No creo mucho en los hombres. (FRANCO RAMOS, 2004, p. 11.)

El escritor que busca la violencia como estética, esboza una realidad exaltada y truculenta, adoptando un ángulo pesimista desde el que engendra una visión que resalta lo que hay de más negativo en el cotidiano (CAMACHO DELGADO, 2006, p. 211). Des-menuza lo que está enclavado en una guerra de muchas caras. Camacho Delgado comenta que sicarios, paramilitares, narcotraficantes y delincuentes componen la base de una parte significativa de la literatura actual. Las novelas buscan el tema de la violencia además de parecer recrearse con ella, lo que es una indagación sobre las complejas formas del mal y sus máscaras (CAMACHO DELGADO, 2006, p. 214). Como efecto literario, resulta en im-poner una sensación de caos y, en el caso de Tijeras, de la misma inercia que a veces parece sentir la protagonista ante la inevitabilidad del mal. Volviéndose a lo que dice Wainberg (2005) sobre los efectos de la violencia sobre los espectadores, podemos ver en la cinta elementos que alimentan la catarse a través de la dinámica de las escenas, vivaces y angus-tiantes. A una violencia desproporcionada empareja un receptor pasmado por la intensi-dad que se le propone.

El cine se apropia intensamente de un fenómeno propicio a lo taquillero. Aun-que el hiperrealismo logra presentar el torbellino de emociones y de violencia, poco a poco disminuye Rosario que funciona como mercancía que atiende a distintas miradas. Pero, al fin y al cabo, ella no se sostiene como mujer fatal. Al menos si pensamos en el film noir – como la novela negra – donde la mujer seductora establece un estatuto de poder sobre los hombres: misteriosa, sagaz y generalmente mal intencionada, es un riesgo para el héroe. Rosario Tijeras no es realmente amenazadora. Su fuerza y logros son falacias fácilmente derrumbadas por el real poder de los hombres.

La película ha, en cierto sentido, traicionado a Tijeras como la traicionaron casi todos los tipos que la conocieron y como la propia vida. Si la gran pantalla dio la repercu-sión merecida a la obra de Ramos, a su vez vulgarizó a la persona de Rosario. De ambigua a simple sicaria; de mujer a prostituta sin matices; de una estética a un cuerpo. Todo sumado, Rosario, en el cine, se transforma en un cliché. Queda claro que su construcción en la nove-la ha dejado todas las huellas para que ella fuese justo un cuerpo de mujer doblemente vio-lado por la tragedia de su mundo. Sin embargo, la narrativa fílmica creó su propia versión del tremendismo, transformándolo en escenas estandarizadas, banalizando como telón de fondo problemas de un país que aún busca reconstruirse de aquellos tiempos y vaciando a un personaje cuya dualidad constituye la esencia de la novela de Jorge Franco.

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SOBRE OS COLABORADORES/SOBRE LOS COLABORADORES

Arturo Gouveia de Araújo é professor titular de literatura na Universidade Federal da Paraíba. Sua tese de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo em 1998, aborda a literatura e a violência nos romances de Antônio Callado sobre a ditadura militar, estudo que veio a ser publicado em dois livros. Tem desenvolvido pesquisas sobre a violência do Estado, o conto brasileiro, a literatura brasileira pós-64 e a narrativa moderna. Suas pesquisas mais recentes discutem a noção da fraternidade em narrativas brasileiras.

David William Foster é doutor em Línguas Românicas e Literatura pela Univer-sidade de Washington. É professor regente de Espanhol e Estudos de Gênero e Mulhe-res na Universidade do Estado do Arizona (ASU –EUA). Em 2009, foi Pesquisador Emi-nente Ednagene e Jordan Davidson do Departamento de Humanidades da Universidade Internacional da Flórida. Seus interesses de pesquisa voltam-se para a cultura urbana na América Latina, com ênfase em questões de construção de gênero e identidade sexual, bem como de cultura judaica. Tem escrito extensivamente sobre narrativa e teatro argen-tino, tendo recebido bolsa Fullbright para a Argentina, Brasil e Uruguai.

Denise Almeida Silva é doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e realizou estágio pós-doutoral na área de Estudos Literários na Univer-sidade Federal Fluminense. É docente no departamento de Linguística, Letras e Artes da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). Integra o GT Relações Literárias Interamericanas da ANPOLL. Seus interesses de pesquisa incluem identidade, memória, violência, literaturas pós-coloniais de língua inglesa e literatura brasileira (especialmente a afro-brasileira).

Graça Graúna (registro indígena e literário de Maria das Graças Ferreira) é da

etnia potiguara (RN). É doutora em Letras - Teoria da Literatura, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e realizou estágio pós-doutoral em Literatura, educação e direitos indígenas pela UMESP. Coordena o Grupo de Estudos Comparados: literatura e interdisciplinaridade (GRUPEC), junto à UPE/CNPq. Coordenou o Projeto de Capa-citação em Literatura e Direitos Humanos, junto ao MEC/SEACD/UPE, e a Comissão Temática Literatura Infantil e Juvenil, no III Fórum Nacional do PROFLETRAS. É pes-quisadora e autora de livros (poemas, ensaios e literatura infanto-juvenil) voltados, sobretudo, ao universo indígena.

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Ignacio Martinez es escritor y dramaturgo uruguayo. Escribió más de 100 libros para niños y jóvenes, 14 para adultos y más de 40 obras teatrales. Actualmente es Consejero Secretario del Consejo de Derecho de Autor del Ministerio de Educación y Cultura de Uruguay, Presidente del Departamento de Cultura de la Central de Tra-bajadores, PIT-CNT y dirige la editorial “Primero de Mayo” de ese organismo sindical. Ha impartido conferencias en Argentina, Chile, Brasil, Cuba, México, España y Suécia. Hoy es un referente ineludible de la literatura del Rio de La Plata.

Lizandro Carlos Calegari possui doutorado e pós-doutorado em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS). Tem vários artigos publicados em periódicos especializados no Brasil e no exterior. Possui diversos capítulos de livros e livros organizados por diferentes editoras no Brasil. Desenvolveu pesquisas sobre a lírica de Carlos Drummond de Andrade e, mais recentemente, tem feito estudos sobre a ficção brasileira pós-64, literaturas marginais e teorias do trauma. Atualmente, é pro-fessor de Língua e Literatura na UFSM.

Luana Teixeira Porto é doutora em Letras - Área de Concentração em Litera-tura Comparada - pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Realizou está-gio de Pós-Doutoramento na Universidade Federal de Santa Maria. É professora na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, campus de Frederico Westphalen, onde atua como docente pesquisadora na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Letras, nível de Mestrado. É editora da revista Literatura em Debate e atualmente pesquisa narrativa literária e fílmica sobre a temática da violência.

Miriam Alves é poeta, dramaturga, contista, ensaísta e romancista, além de palestrante, atividade em que enfoca, especialmente, a história e a literatura negra bra-sileira. Tendo iniciado suas publicações há mais de 30 anos, participou em antologias nacionais e internacionais, além de ser autora de cinco livros individuais, sendo o mais recente Bará na trilha do vento (2015), seu primeiro romance.

Paula Daniela Bianchi presentó su tesis doctoral Cartografías ficcionales de lo político prostitucional en América Latina en la Facultad de Filosofía y Letras de la Univer-sidad de Buenos Aires (UBA),donde forma parte del Instituto Interdisciplinario de Es-tudios de Género. Es docente en la Universidad Nacional de Avellaneda. Ha publicado varios artículos relacionados con los Estudios de Género, sexualidades y violencias en el campo literario.

Roland Walter é professor titular do Departamento de Letras da UFPE e Pesquisador do CNPq. É doutor em Literatura Comparada pela Johannes Gutenberg Universität, Mainz, Alemanha (1992) e realizou pós-doutorado na University of Cali-fornia, Santa Cruz (2000). Roland Walter é autor de livros, além de inúmeros ensaios publicados em livros e revistas especializados. Atualmente desenvolve pesquisa so-

Pensando as Américas: narrativas e violência

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bre a literatura interamericana, focalizando identidades, culturas, espaços, tempos e (pós)colonialidade.

Rosane Maria Cardoso é doutora em Letras - Teoria da Literatura pela Pon-

tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; realizou estágio pós-doutoral na Universidade de Granada, na Espanha. Atualmente, é professora do Departamento de Letras e do Programa de Mestrado em Leitura e Cognição da Universidade de Santa Cruz e professora do Centro Universitário Univates. Como pesquisadora, investiga os temas: leitura, literatura infantil e juvenil, narrativa hispano-americana contemporâ-nea, sobre as quais tem publicado extensivamente.

Rosani Ketzer Umbach é professora do Departamento de Letras Estrangei-ras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pesquisadora do CNPq, integra a linha de pesquisa “Lite-ratura, comparatismo e crítica social”, atuando principalmente nos seguintes temas: ficção e história, cultura, memória e identidade, autoritarismo e repressão, narrati-vas (auto) biográficas.

Vera Lúcia Lenz Vianna é professora do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem experiência na área de Literatura Anglo-Americana e Brasi-leira. Integra a linha de pesquisa “Literatura, comparatismo e crítica social”, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura e figurações da alteridade, identidade cultural, ideologia.

Denise Almeida Silva e Luana Teixeira Porto

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