Pensamento Cigano Contra o Estado

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Figura e fundo no pensamento cigano contra o Estado Florencia Ferrari Universidade de São Paulo RESUMO: O artigo busca refletir sobre a atualidade e os sentidos da for- mulação da “sociedade contra o Estado”, de Pierre Clastres, no seio da etno- grafia que realizei com uma rede de parentes de ciganos Calon no estado de São Paulo. Para além das analogias mais evidentes entre o chefe calon e o líder indígena, e do imaginário de senso comum de uma vida nômade, “fora da lei”, livre das amarras da sociedade, é possível falar, com motivação etnográfica, de uma “socialidade contra o Estado” no contexto calon. Para tanto, é preciso adentrar a etnografia e conhecer categorias fundamentais do pensamento calon, especialmente aquelas que dizem respeito às suas rela- ções com os brasileiros, ou gadje [não ciganos]. Os Calon se pensam imersos no mundo dos brasileiros, a partir do qual se fazem calon. Noções como a de vergonha, ligada ao corpo feminino, e de sozinho, em contraste com a vida entre parentes, aliadas à onomástica e a concepções de tempo-espaço permi- tem ter acesso ao modo pelo qual os Calon se concebem como pessoas e como socialidade, contra um gadje-Estado. PALAVRAS-CHAVE: Ciganos, Brasil, etnografia, Pierre Clastres, Estado. Pensar com Clastres. 1 Essa foi a tônica do colóquio em homenagem a Pierre Clastres, no qual antropólogos e filósofos falaram e escreveram sobre a importância do pensamento do autor na atualidade, para o qual este texto foi inicialmente escrito. Para além de um debate sobre a obra

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  • Figura e fundo no pensamento ciganocontra o Estado

    Florencia Ferrari

    Universidade de So Paulo

    RESUMO: O artigo busca refletir sobre a atualidade e os sentidos da for-mulao da sociedade contra o Estado, de Pierre Clastres, no seio da etno-grafia que realizei com uma rede de parentes de ciganos Calon no estado deSo Paulo. Para alm das analogias mais evidentes entre o chefe calon e older indgena, e do imaginrio de senso comum de uma vida nmade, forada lei, livre das amarras da sociedade, possvel falar, com motivaoetnogrfica, de uma socialidade contra o Estado no contexto calon. Paratanto, preciso adentrar a etnografia e conhecer categorias fundamentais dopensamento calon, especialmente aquelas que dizem respeito s suas rela-es com os brasileiros, ou gadje [no ciganos]. Os Calon se pensam imersosno mundo dos brasileiros, a partir do qual se fazem calon. Noes como a devergonha, ligada ao corpo feminino, e de sozinho, em contraste com a vidaentre parentes, aliadas onomstica e a concepes de tempo-espao permi-tem ter acesso ao modo pelo qual os Calon se concebem como pessoas ecomo socialidade, contra um gadje-Estado.

    PALAVRAS-CHAVE: Ciganos, Brasil, etnografia, Pierre Clastres, Estado.

    Pensar com Clastres.1 Essa foi a tnica do colquio em homenagem aPierre Clastres, no qual antroplogos e filsofos falaram e escreveramsobre a importncia do pensamento do autor na atualidade, para o qualeste texto foi inicialmente escrito. Para alm de um debate sobre a obra

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    do autor,2 o terreno se abre para incorporar seu esprito e, nas palavrasde Sztutman, potencializar suas reflexes e seus problemas tendo emvista novos materiais empricos, novas discusses tericas, novas sadasconceituais (2011, no prelo).

    Essa potencialidade reside sobretudo no aforismo sociedade con-tra o Estado, urdido pelo autor (1974) a partir da etnografia de povosamerndios. Sem instaurar um grande divisor entre sociedades primiti-vas e a sociedade ocidental moderna e buscando esfacelar a ideia deuma dicotomia entre sociedades com e sem Estado por meio dessa no-o Clastres concebe um modo caracterstico do poltico, mas no ex-clusivo, das sociedades indgenas. No se trata tanto de refletir sobreuma poltica dos selvagens isto , uma forma de exerccio do polti-co prpria de sociedades primitivas (para usar sua anacrnica deno-minao), em oposio das sociedades civilizadas e sim sobre algocomo uma poltica selvagem, para usar um paralelo ao pensamentoselvagem de Lvi-Strauss.3 O selvagem nessas expresses no defineos proprietrios do pensamento e da poltica, mas antes certo modo,menor, de pensar e fazer poltica. Clastres desvenda que esse modode ser, selvagem, que caracteriza as sociedades indgenas no , entre-tanto, restrito a elas. A sociedade-contra-o-Estado como mquinadesejante encontra-se em toda e qualquer socialidade, notadamente nanossa, ainda que de modo latente. Ela se apresenta como um modo defuncionamento (e no uma morfologia fixa) contra uma instncia depoder separada, sobrecodificadora que se mostra, ou ameaa surgir, soba forma de Estado.4 a partir desse postulado de filosofia polticaclastriana que proponho tecer conexes entre a noo de contra o Es-tado e a etnografia cigana calon, oferecendo uma nova arena para ati-var o pensamento de Clastres.

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    Uma cigana diferente

    Eu sou uma cigana diferente, eu gosto de ficar sozinha. Renata acaula de uma famlia de oito irmos. Hoje,5 com 28 anos, viveamigada com seu segundo marido. No teve filhos prprios. Adotouuma menina brasileira e, alguns anos depois, a filha de sua irm.6 Cons-truiu uma casa grande em Amoreiras, alugada para gajons,7 e vive numabarraca entre os parentes do marido, cujo irmo o chefe da turma. Vai cidade com outras calins ler a mo, mas no participa do intenso fluxode visitao entre casas e barracas que caracteriza o cotidiano calon.

    Eu no penso como as outras. Nunca tive colega cigana, nem de ir pra

    cidade, nem de lavar roupa junto, nem de buscar gua. Eu me dou mais

    com as gajins, eu no me dou com as mulheres ciganas no. Eu gosto de

    viver sozinha. De fora. No meu grupo cigano no tem colegagem entre ns.

    Acho que o signo diferente, a gente no se d.8

    Renata fala de sua diferena como algo inerente sua pessoa, re-presentando-se sob um signo incompatvel, o qual ela no tem ins-trumentos para modificar. Em outras palavras, ela se v essencialmentediferente das outras calins. Essa percepo contrasta com a noo de pro-duo da pessoa difundida entre os Calon,9 baseada na ao. Ser dife-rente para os Calon est associado incompletude da performancecalon. A esterilidade de Renata, nesse sentido, pode bem ser uma chavepoderosa para explicar tanto o sentimento de que ela essencialmentediferente (estril) como a percepo de que sua performance como ca-lin incompleta. Em todo o caso, esse empecilho deve ter desempenha-do um papel importante na construo de sua subjetividade em relaoaos demais.

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    No surpreende que, depois de ter se separado do primeiro marido,Renata tenha se amigado com Caco, o caula dos dez irmos que com-pem essa turma. No contexto desse grupo, Caco considerado o maisingnuo, inbil para negcios, os gadje o enganam, por isso mesmo visto como mais fraco, e est entre os mais pobres, em comparaoaos irmos mais velhos, espertos, com fora e alguns deles bastantericos. A prpria Renata fala dele com piedade: Voc sabe como ele ,meio bobo, daquele jeito, tem sempre que estar orientando.... Ele eRenata parecem sofrer do mesmo mal: realizam mal a performancecalon. Ambos tm de se contentar com um casamento incompleto(sem filhos prprios), uma existncia incompleta no contexto calon. Masem Renata o efeito peculiar, pois, certamente, mesmo que sua posiomarginal derive do sentimento de inferioridade no desempenho de umaimportante funo da calin, a reproduo, isso tambm encontra econuma subjetividade diferenciante.10 De fato, Renata uma das pou-cas calins que no se representam por meio de uma noo de pessoacoletiva, definida em relao a uma rede de pessoas, mas como quaseindivduo, separado dos demais, e por isso capaz de elaborar uma crticaao seu meio social.

    J sofri muito na minha vida cigana, eu no tive minha privacidade. Eu

    nunca soube o que sair, ir ao cabeleireiro, cuidar de mim, nunca partici-

    pei de uma festa de rico Ser mulher nessa vida, e cigana! Cigana, voc

    sabe, escrava dos homens. ! Ns, mulheres, somos escravas! No tem a

    hora de voc sair, de voc passear, divertir, pegar uma balada? [pergunta

    para Luciana] Ns ciganas no temos essa hora. A mulher cigana no tem

    valor. Na lei deles? No tem! Mulher cigana no aquela mandatria do

    mundo. Mulher cigana, voc sabe como , ela tem que viver ali [gesto com

    palma da mo virada para baixo].

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    Essa fala de Renata extremamente rica para se compreender umaperspectiva calon deslocada. Renata fala de sua vida de calin em oposi-o s ideias que ela tem do que seria uma vida de gajin. Sua vida comomulher calin descrita como ausncia: no tem privacidade, no temhora para sair, passear, se divertir, no tem valor, no tem manda-tria, no tem estudo (ver a seguir). Embora o contraste seja com umagajin, o que est em jogo em sua crtica no tanto o ser cigano, massim o ser mulher, e cigana!. Renata sintetiza aqui algo disseminado nopensamento calon, a saber, que a diferena entre os Calon e os gadje estintimamente associada ao gnero.11 O valor do homem depende daefetividade da performance de suas mulheres a esposa e as filhas esua ao foca-se no controle desta. No imaginrio calon, a mulher gajinconstituiria o extremo da indecncia e da impureza, enquanto a mulhercalin, o extremo da vergonha e da pureza. O controle do corpo femini-no aparece, aos olhos dos Calon, como o grande divisor entre duasmoralidades, a gadje e a calon. por meio de uma performance corpo-ral feminina efetiva que se constri o ethos calon.

    Renata sente-se aprisionada e controlada por esse universo calon: re-clama que no pode sair para tomar um refrigerante sozinha, pois ficatodo mundo de olho, pescoando a gente: No gosto de gente quejulga. Ela capaz de analisar de fora a moralidade calon, ainda quesubmetida a ela. Certamente a experincia entre gadje permitiu-lhe al-canar ou reforar esse distanciamento. Anos atrs ela teria abandonadoa sua turma para morar entre gajons, onde viveu como traficante de co-cana durante dois anos: Mandava numa bocada daqui at ali, essa ruainteira. No tenho informao a respeito das motivaes que a levarama tal situao, mas sabemos que ela pde sair e, nesse movimento deindividuao, jamais voltou a ser uma calin como as demais. Seu retor-no ao acampamento se deve a um resgate por parte dos irmos, que

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    no aceitaram esse desfecho. A rede de parentes entra em cena para asse-gurar a permanncia de seus membros. Renata explorou uma zona tran-sitvel entre os dois mundos e formulou ideias sobre eles que, se noserviram para mudar a sua prpria realidade para o que ela considerauma vida melhor, so elementos diferenciantes com os quais ela pre-tende mudar o futuro de suas filhas.

    No vou dar minha filha pra cigano no! Eu quero gajon pra todas as duas.

    Eu ponho ela no estudo e l ela escolhe. Ento ela se forma, que seja al-

    gum. No quero que ela seja que nem eu. Casar com cigano?... Voc no

    estuda, voc no ningum. Todo dia voc lendo a mo de porta em por-

    ta, uma vida sem fim. Eu j sou analfabeta, eu j no presto, ento eu no

    quero isso pras minhas filhas. Eu j dei os documentos na escola. E eu

    quero gajon, no quero cigano no. A vida que eu tive eu no quero pra

    elas. Agora entra sbado, domingo, voc t ali, s tem prazer quando

    festa cigana, e ainda assim tem muita gente olhando, uma vida sem futuro.

    Se casa com gajon, ningum probe, ningum olha feio, pode usar roupa

    que ela quer, a moda antiga j era.

    A histria de Renata torna sua perspectiva deslocada e ambgua namedida em que acumula pontos de vista de calin e de gadje, sem queum suplante o outro. Atravs de sua narrativa podemos divisar tanto omundo calon a relacionalidade dada e constantemente reforada quanto aquilo que contrasta com ele os valores gadje que ela almejaconquistar. Duas categorias fundamentais do pensamento calon sotensionadas em sua descrio: a noo de vergonha e a de sozinho.

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    Duas categorias do pensamento calon

    Vergonha como os Calon nomeiam o sentimento causado pela condu-ta incorreta alheia. Mas estsa definio, que serviria para descrever nossadefinio de vergonha, insuficiente para descrever o que eles queremdizer com o termo. Vergonha traduo da palavra laje, em chibi (re-pertrio lexical de origem romani), e se inscreve em um sistema de ideiasque separa o mundo entre categorias de limpo e sujo (puro e impuro),dentro e fora, interior e exterior.12 O baixo ventre feminino e o sanguemenstrual, em especial, so emblemticos do que se considera sujo nes-se sistema. Tudo o que envolve o rgo sexual feminino objeto de umasrie de tabus: por isso, o uso de diversas camadas de saia, em lugar decalas que mostram o corpo; por isso, evita-se dar a ver ou falar deabsorventes ntimos. Na realidade, uma srie de prticas, que vo demodos de cozinhar, de arrumar a barraca, de se vestir, de cumprimentar,de (no) olhar, de lidar com os mortos, englobada pela noo de ver-gonha. Ter vergonha , portanto, desejvel e positivo: A vergonha ovalor, o bom carter da pessoa, resumiu um calon.

    A vergonha tambm o que distingue calons e gadje. Eles dizem:Vocs brasileiros usam roupa simples, no assim enfeitada que nemroupa de calin; ns ciganas no usamos cala que nem brasileira, agente no namora que nem brasileira; dar beijo s depois de casado.Essas prticas em torno do corpo feminino esto todas ancoradas nouniverso da vergonha. Voltando ao caso de Renata, vemos como ela noatribui valor vergonha. Ela a sente como privao, como controle.Renata fala de maneiras de usar o corpo, de se vestir, de se comportarcomo mulher que contradizem as prticas calon. A vergonha deixa deser um valor para se tornar um mandato, ao qual Renata no quer quesuas filhas se submetam.

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    Associada vergonha, os Calon tm tambm outra obsesso: a ideiade sozinho. Em diferentes situaes, calons e calins de idades variadasmostram-se atentos, preocupados ou mesmo incapazes de compreendera condio de estar/ficar sozinho. Desde minha chegada fizeram-melongos inquritos sobre como eu andava assim sozinha, como meumarido deixava que eu sasse sozinha, queriam saber sobre a proximi-dade das casas de meus parentes em relao minha. Em outras ocasi-es mostraram a abrangncia do uso dessa imagem. Numa viagem decarro, uma calin, olhando pela janela, rompe o silncio e diz: ogarronzinho, tadinho! Sozinho, andando na estrada!. Referia-se a ummendigo em andrajos na beira da rodovia. Mais frente, ela volta a apon-tar, agora uma mulher: a garrin parada no meio da estrada. Como que vive assim sozinha?. Comentrios desse tipo so muito frequentesentre os Calon e, na verdade, no se restringem aos gadje. Comentandoa hospitalidade de uma turma de calons com a famlia de seu tio, umacalin declara: Se no fosse essa turma, eles estavam jogados sozinhos.

    Em outro contexto, uma turma inteira mudou-se de um pouso nonorte da cidade de So Paulo para outro ao sul, junto a parentes de umadas calins. Apenas uma barraca ficou no enorme cemitrio de tbuas elixo deixado para trs. Ao chegarem ao novo pouso, explicam que a fula-na havia brigado com eles, e por isso no a chamaram para acompanh-los. A anfitri reage com inquietao: E ela vai ficar l sozinha? Como que pode viver assim, meu Deus?!. Uma mulher vivendo sozinha in-concebvel, essa condio sendo associada vergonha. Calons e calinstm horror a ficar sozinhos. Hospital e priso so lugares fantasmag-ricos. Por isso, cigano em hospital um alvoroo: toda a famlia fica nocorredor ou do lado de fora at ele sair.

    A ideia de sozinho est associada ao modo de vida do gadjo e contras-ta com a noo de pessoa calon, imersa numa rede de relacionalidade.

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    Um calon no nunca calon sozinho. Sua calonidade depende de umfazer-se calon, que envolve um modo particular de ser homem e deser mulher, e um fluxo de afetos que produz pessoas em relao. Estarfora dessa rede de pessoas, coisas e afetos estar fora da vida calon; , nolimite, ser gadjo. A pessoa que assume uma independncia, que se vlivre das expectativas dos seus, e que capaz de conduzir sua vida foradessa rede vista, em ltima anlise, como uma pessoa sozinha. Umcalon passando por uma favela, aponta: Aqui que o Coi mora. A garrinacabou com a vida dele!, referindo-se ao fato de o rapaz ter deixado avida calon para viver como gadjo. Tudo se passa como se nessa equaoo gadjo jogasse com a noo de indivduo, que interpretada pelocalon sob o signo negativo do sozinho.

    Essas dualidades ganham complexidade quando observadas do lugarmarginal de Renata, que se v como uma cigana meio diferente, quegosta de ficar sozinha. Renata se queixa de sua vida de mulher ciga-na, sem privacidade, com gente olhando, pescoando, julgan-do. Ela contrape uma vida cigana sufocante a uma vida gadje livre:Se [minha filha] casar com gajon, ningum probe, ningum olha feio,pode usar a roupa que ela quer. vida cigana sem futuro, todo diaali, lendo a mo de porta em porta, ela ope uma vida com estudo,para ser algum. O casamento o momento-chave para definir emque mundo se viver. A aliana com uma famlia calon implica a subor-dinao dinmica calon, que apoia e exerce forte controle da vergo-nha. Por outro lado, a aliana com um indivduo gadjo, ao mesmo tem-po em que a livra da coero dessa estrutura social, produz o estar sozinho.Renata, com seu ponto de vista de calin deslocada, contaminado pelanoo de pessoa gadje, no desvaloriza a situao de estar sozinho. Aocontrrio, se autorrepresenta como algum que gosta de viver sozinha.No lugar do sozinha, ela v um algum. Os Calon no estudam, no so

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    ningum, a gente no ningum nessa vida, chega delegacia, quemvoc ? Renata mesmo! [...] Sendo uma boa estudante, o nome gran-de..., a muda.

    A articulao de elementos de seu discurso riqussima. Ser al-gum/no ser ningum a oposio que ela oferece em substituioao equivalente calon ser sozinho/ser em famlia. Sua concepo deser algum implica um processo de individualizao. No por acaso, onome aparece como aquilo que confere valor ao indivduo. Renatamesmo insinua a insuficincia da forma calon de usar o nome, em con-traste com a forma gadje de um nome grande, nome e sobrenome emrelao metonmica com a pessoa que o porta. A preocupao de Rena-ta diante dos policiais mostra sua distncia em relao aos demais calon,que fazem questo de desdenhar a importncia do nome grande embenefcio do apelido, conhecido de todos. A anlise de Renata cria doismundos em que, de um lado, esto os ciganos, com sua lei, exercen-do controle sobre as mulheres, especialmente sobre seu corpo, em queno se vai escola, por isso no se ningum. De outro, os gadje, oumais particularmente as gajins, que vo a festas sozinhas, no sojulgadas, podem usar a roupa que quiserem, cuidam de sua aparnciafsica, so estudadas.

    Finalmente, Renata diz a Luciana: Olha a sua vida correndo poresse mundo a, livre, desimpedida. Voc no queria uma vida de ciga-no! Voc livre, vida livre a coisa melhor que tem!. A frase causouefeito imediato em Luciana-gajin, que de pronto ativa seu imaginriosobre o cigano: Mas a gente acha que cigano que livre!. E entoRenata d uma resposta reveladora da socialidade calon: Livre umapessoa que acompanhada, com a sua famlia. Ela no livre sozinha.Nunca cigana livre sozinha. Nunca. Todo mundo te vigiando, todomundo te olhando. Uma vida sem fim.

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    O discurso de Renata mostra como suas categorias calon foram afe-tadas pela viso de mundo gadje. Sua noo de liberdade est ligada deindivduo, a qual, ao contrrio dos outros calons, ela aprecia. Uma ciga-na nunca livre sozinha, porque uma cigana jamais ser calin sozinha,uma calin jamais ser um indivduo. Ao conceituar o sozinho positiva-mente, como uma forma de liberdade em relao ao corpo, Renata fazconvergir a noo de indivduo gadje, como sujeito de livre escolha, coma noo de sozinho calon, na qual subjaz o universo da vergonha. O gadjosozinho, mas especialmente a gajin sozinha, a forma prototpica daalteridade, pois a expresso mxima da falta de vergonha. Uma mulherque anda sozinha uma mulher toa, uma lubiin (em chibi, prostitu-ta), uma mulher que no conhece a vergonha, ou melhor, que enche osCalon de vergonha. O fato de viverem imersos numa rede de relaciona-lidade produzindo vergonha o que diferencia os Calon dos gadje, quevivem sozinhos e desconhecem o sentido da vergonha.

    O oficial e o oficioso

    A diferenciao em relao ao gadjo tema constante e se manifesta emtodos os planos da vida social. Quando Renata, em sua exegese sobre asdiferenas da vida cigana e da vida de brasileiro, contrape o nome Re-nata mesmo ao nome grande diante da polcia, ela observa com sen-sibilidade aguda as diferenas entre duas noes de pessoa reveladas pelaonomstica. Entre os Calon h uma prtica de distino do nome parao gadjo e o nome pelo qual as pessoas so efetivamente conhecidas, quecorrespondem largamente s categorias oferecidas por Martine Segalen(1980) de nome oficial, para se relacionar com o Estado, e nome ofi-cioso, de uso comunitrio. O nome oficial, no caso calon, seria aquele

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    dos documentos emitidos pelo Estado brasileiro, usado em relaes for-mais com gadje: polcia, rgos administrativos, servios de sade p-blica ou privada, escola. Renata reclama que precisa de documento:

    Eu no tenho identidade, eu no tenho documento nenhum! S esse pe-

    dao de folha rasgada [certido de nascimento]. Precisa ser uma pessoa

    documentada nesse mundo! Documento faz falta pra tudo. Pra viajar,

    quando a polcia vem, a bem dizer, quando se vai ler a mo, fazer trabalho

    pra fora. Talvez lugar que no conhece a gente quer os documentos; quan-

    do t com criana, precisa dos documentos; quando vai no mdico... Da

    minha filha eu tenho. Mdico, a primeira coisa que fala : Os documen-

    tos. Polcia, a primeira coisa que fala : Os documentos. Ento eu mos-

    tro este. Tem cigano que no tem nem este.

    Luciana pega a certido de nascimento e l: Nascida em 31 de ju-nho de 1977 em Amoreiras, filha de Jeremias Galvo [Diazinho], natu-ral de Betim, MG, e Maria Garcia.... Voc tem 31 anos?, pergunta.Renata corrige: Minha me colocou dois anos a mais, eu tenho 28.Luciana continua: Voc nasceu no dia 31 de junho? Ento seu signo cncer. E Renata: Isso a? E minha me sabe l o dia que eu nasci? Eunasci em So Paulo, mas o registro em Amoreiras. Sou registrada nonome do Diazinho, esse Jeremias Galvo meu irmo, meu irmo maisvelho. E essa Garcia que voc fala minha cunhada eles eram casadosno civil. Da ficou eles como meus pais. O registro de Renata foi feitomuitos anos depois de seu nascimento. A data do nascimento, a cidade,bem como a filiao seriam entendidas pelo Estado como falsas, masevidentemente a oposio falso/verdadeiro em si mesma descabidaaqui, j que para os Calon uma identidade verdadeira no existe.

    A identidade para o Estado tem como fundamento a ideia de indi-vduo, numerado e insubstituvel, com um nome e um sobrenome, her-

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    dado, que o singulariza, e uma relao de identificao com um territ-rio (cidade e pas). A data de nascimento, por sua vez, se inscreve emum calendrio gadje cclico e acumulativo, com o qual a temporalidadecalon se relaciona apenas tangencialmente.13 As informaes que defi-nem a identidade so ilegveis para os Calon.14 A assinatura do Esta-do no objetifica a individualidade desses Calon para si mesmos. A suarelao com os documentos circunstancial e instrumental: em lugarde serem utilizados como expresso metonmica de uma individualida-de, so vistos como mera mediao necessria para lidar com determi-nados gadje. O Estado se apresenta aos Calon na figura pessoal de umgadjo que pede documentos.

    De modo geral, a obteno de certides de nascimento e documen-tos, como RG, ttulo de eleitor, carteira de motorista, so preocupaesmais recentes decorrentes de uma vida urbana e da crescente presenado Estado na proviso de servios e benefcios pblicos, em razo, so-bretudo, dos programas sociais do governo Lula. Houve uma corrida aregistros e a documentos para reivindicar bolsa famlia e aposentadoriarural. At uma ou duas dcadas atrs, mulheres no tinham documento.O pai e talvez o filho mais velho acumulavam o conjunto de documentosnecessrios para toda a famlia extensa: um RG, uma carteira de motoris-ta e uma conta no banco eram suficientes para um grupo de pessoas.

    obteno do documento de identidade associa-se a necessidade desaber assinar o nome, criando uma sinonmia entre o nome para gadje o nome oficial e o nome escrito, assinado, carregado de conheci-mento gadje. O uso do nome oficial se diferencia do uso do nome calon,ou oficioso. Se o primeiro se caracteriza pela fixao na escrita, o segun-do se beneficia do carter fluido da oralidade e opera em variao con-tnua: Mike-Marq-Michael (o nome oficial Pedro); Ramin-Ramiro;Rosildo-Roseira; Ronilda-Romilda-Ronirda; Sueli-Celi-Celita; Junio-Julio; Flavio-Fabio; Florena-Flora-Florinda. Os nomes oficiosos no se

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    inscrevem em um cdigo compartilhado de escrita e leitura, que alheio vasta maioria dos Calon, analfabeta.

    As crianas no so incentivadas pelos pais a ir escola, e mesmo asque vo acabam abandonando-a: saem para viajar por alguns meses eperdem a vaga; logo gerado um descompasso entre idade e ano esco-lar.15 No se deve tomar erroneamente a escola como ponto de inflexoassimilatrio.16 Do mesmo modo, a escola no exatamente proi-bida para os Calon, em especial, nas geraes mais novas. A maior par-te das crianas calon que conheci j havia frequentado a escola por al-gum tempo; algumas deixaram-na sem aprender a ler, outras chegaramat a 6 ou a 8 srie com um conhecimento gadje compatvel com aidade. Esse conhecimento gadje de um calon particular ser aproveita-do por todos os outros no acampamento, que solicitaro a ele que leiauma bula de remdio, que indique os preos mais baixos num super-mercado, que marque na agenda o telefone de algum conhecido ou ano-te os valores dos emprstimos feitos aos gadje. Esse conhecimento, noentanto, no o torna superior diante dos demais, pois no contribuinecessariamente para fazer dele um bom calon. Os Calon muitas ve-zes opem esse conhecimento gadje esperteza: Ler, fazer conta, a gen-te no sabe, mas a gente esperto pra gadje. Para ser esperto, outrasqualidades so necessrias.

    Conversa, igualdade e autonomia

    justamente nas ideias em torno do que seja um bom calon, umcalon de valor que ressoam as qualidades de um dos personagens daobra de Clastres, o chefe indgena. Normalmente, numa famlia, umentre os irmos, no necessariamente o mais velho, acaba se destacan-do como o mais conversado, e assume a posio de chefe da turma.17

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    Ele ser o chefe, o cacique, da liderana da turma.18 moda dolder clastriano, a autoridade do chefe calon no se define por seu poderde impor sua vontade aos demais, mas antes se deve sua capacidade deliderar e falar pelo grupo em situaes adversas. Eu sou chefe assim:pra conversar com uma prefeitura, pra arrumar um policiamento, umadelegacia, um local, eu vou prosear com ele. Decidiu [que seria chefe]porque eu sou mais conversado do que eles, eles so mais parados, diz older Mazinho Soares, assassinado anos depois da conversa. Ser conver-sado est ligado ao dom da oratria, capacidade de articulao verbalna comunicao com as pessoas, especialmente, mas no apenas, com ogadjo. A liderana do chefe se manifesta em sua ao (ser ativo) emoposio a uma atitude passiva (parado).19 Tem que ser ativo, meni-no!, repreende a tia em reao a uma conduta acanhada de seu sobri-nho numa negociao com um garron. Ser ativo uma condio parao sucesso de todos os calons, mas o lder deve se destacar nessa postura.A ao subentende ainda a ideia de que o lder precisa ser uma pessoade fora. Tenho muita fora pra ganhar, diz um velho lder calon.Para aposentar, precisa algum de fora, afirma um chefe sobre as difi-culdades encontradas no processo burocrtico de obteno de aposen-tadoria rural. A fama do chefe se baseia nos sucessos de suas aes, opon-do-se atitude parada, associada a um conceito difundido de vergonha:Eu no tinha dinheiro, mas eu no tenho vergonha, hoje, graas a Deus,eu tenho [dinheiro]. Um rapaz novo pode ser vergonhoso, mas de-pois desarma, fica mais conversado.

    O chefe no s quem melhor lida com as autoridades para negociarum pouso, um problema com a polcia etc., como tambm aquele maisesperto, mais talentoso na conversa com o gadjo nas transaes co-merciais, nos rolos, obtendo mais vantagem econmica. Se no con-versar, no faz rolo, confirma um calon. Da o fato de o chefe, maisconversado acumular riqueza e prestgio, e tambm de uma turma de-

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    marcar uma zona de negcios. Dois chefes evitaro coincidir sua rea deatuao, produzindo afastamentos espaciais estratgicos.

    O chefe calon s se mantm com poder na medida em que ele ca-paz de renovar continuamente seu prestgio, provendo o bem-estar daturma. O prestgio do chefe aumenta na medida em que mais pessoasbuscam se associar sua turma. Essa relao entre as pessoas da turma entendida como apoio, ficar apoiado. Assim, a escolha para associar-se a um lder depende de uma iniciativa individual, e s permanecervigente enquanto o lder oferecer condies favorveis a cada um. Olugar de autonomia de cada pessoa se reafirma a todo o momento e aaceitao de ser liderado por um chefe se deve exclusivamente ao fato dese reconhecer nele um valor que potencializa as vantagens que cada umalmeja alcanar nas transaes comerciais e no convvio entre parentes.Nesse sentido, parece que podemos estender aos Calon a descrio quefaz Eduardo Viveiros de Castro de sociedades do tipo contra o Estado,ao discutir a noo de Clastres:

    Qualquer antroplogo que j passou por uma sociedade desse tipo [con-

    tra-o-Estado] poder atestar que negociar o que quer que seja com as

    pessoas ali um trabalho diplomtico maravilhosamente exasperante. Pois

    cada um o representante de si mesmo, embaixador de sua prpria

    mnada; nada que foi acertado com algum pode ser considerado como

    vlido, indutiva ou dedutivamente, para o que se negociar com outrem.

    No final das contas, no ento que em uma sociedade-contra-o-Estado

    cada indivduo j seja um Estado em si mesmo, mas sim que cada um j

    , dividualmente, fractalmente, molecularmente, uma sociedade-contra-

    o-Estado part entire. A sociedade-contra-o-Estado se apresenta como

    um ente distributivo, ainda que possa ocasionalmente (ou deva ritualmen-

    te) se representar como um ente coletivo (2011, pp. 322-23).

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    A palavra do chefe no est acima da palavra dos demais, ela apenasser levada em conta enquanto se mostrar mais efetiva, e por isso mes-mo mais vantajosa para os demais, cada um embaixador de sua prpriamnada. O resultado das associaes em negcios est longe de se con-figurar como bem comunitrio ou distribuio coletiva de rendimen-tos.20 Autonomia individual e igualdade so os valores que regem essasrelaes (Fotta, 2011, manuscrito).

    A averso ideia de submisso evidencia-se etnograficamente nasconcepes calon de trabalho. Os Calon que conheci jamais se empre-gam. A ideia de se sujeitar a algum, ainda mais um gadjo, com cargahorria fixa, completamente alheia ao modo de vida do homem e damulher calon. Em Santa F do Sul, onde em 2001 vivia uma rede deparentes de cerca de 100 pessoas, morando em casas, uma velha calinusava a noo de trabalho para definir um no calon, em oposio noo de viagem, que definia o calon. Eu perguntava sobre agenealogia dos ciganos da cidade, procurando saber quem havia se casa-do com no ciganos: E fulano, cigano?, No. Fulano trabalha. Eleno viaja. O que define um calon como ele vive: se trabalha, no calon. Trabalhar, nesse contexto, no tem o sentido de uma atividadeque envolve esforo fsico e mental para obter um produto, significaespecificamente um emprego assalariado, ocupando uma posio su-bordinada, submetida a um horrio fixo etc. Esses Calon de Santa Fviajam sazonalmente, comprando e vendendo cobertas e toalhas, dor-mindo em barraca, entre parentes. Depois de fazer um dinheiro,retornam s suas casas na cidade. Isto o que fazem os Calon.

    Um rapaz brasileiro adotado por uma calin quando era criana traba-lhou como lixeiro durante um perodo, mas foi tirado pelos pais desseemprego: Ele no precisa sofrer, tem famlia, tem pai, me, no precisatrabalhar. A ao dos pais de extrair o filho da vida gadje encora-jando-o a abandonar o trabalho e oferecendo-lhe um modo de vida

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    alternativo significativo de como os Calon pensam a produo dapessoa. O modo de ser gadje deve ser evitado, enquanto a calonidadedeve ser produzida cotidianamente entre parentes (tem famlia, tem pai,tem me), fazendo rolo e levando vantagem nas transaes com o gadjo.

    Reconheo que a descrio da chefia calon que apresento aqui semostra uma analogia tpica com o chefe indgena clastriano21 e, por-tanto, no produz novidades conceituais, embora sirva para introduzira noo de poder nesse campo etnogrfico. De fato, no nessa compa-rao que se revela o verdadeiro potencial da obra de Clastres no que serefere teoria calon da poltica. De imediato, devemos seguir o autor naideia de que a socialidade ela prpria dotada de intencionalidade,22

    isto , de uma atitude ativa (e no reativa) contra o Estado enquantopoder coercitivo separado da sociedade. Como, ento, desdobrar umaformulao propriamente calon da socialidade contra o Estado? Qualseria o modo de ser da socialidade calon?

    O gadjo-indivduo

    Os Calon falam o tempo todo do garron da padaria, do gajon do merca-do, da garrin da escola. O mundo dividido entre ciganos e gadje. Cu-riosamente, como vimos, um sinnimo para gadjo brasileiro. O brasi-leiro um outro sem, no entanto, se traduzir como alteridade, emnossos termos. O brasileiro no configura uma identidade para osCalon; uma noo de brasilidade lhes alheia, at porque esta depen-de da relao com o fora, ao qual os Calon no tm acesso. nossaideia de nacionalidade (brasileiro), eles no contrapem outra naciona-lidade (outra identidade), como numa disputa esportiva; eles opemapenas a vida calon.23 Os brasileiros so os que tm as coisas tudo certi-nho, so acostumados a ficar fechados (em casas e apartamentos), no

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    sabem se virar, vivem sozinhos, as mulheres usam cala e beijam an-tes de casar, em oposio aos ciganos que tm uma vida bagunada,vivem em barraca aberta, com ar, so espertos e sabem se virar, vi-vem em famlia, e as mulheres no usam cala nem shorts, somente saiacomprida, e do beijo s depois de casar, ainda assim s escondidas.

    Os brasileiros so todos aqueles com quem fazem rolo ou de quemleem a mo na rua, de quem compram em lojas e mercados, com queminteragem na escola, no Poupatempo, na delegacia, no hospital. Enquan-to diferenciam, dentre eles, a madame, o malandro (bandido), o es-tudado, no h um termo que distinga marcadamente o garron do pos-to de sade ou da escola da garrin da padaria ou do mercadinho. Sotodos garrons e garrins.24 Embora no se estabelea uma distino claraentre representantes de instituies estatais e as demais pessoas, os Calontm a percepo de que alguns garrons pedem documento. No toaa polcia, que o garron que mais pede documento e se apresenta nafigura de uma pessoa armada, tenha um status diferente, sendo referidaem chibi como julinaro. Sabem que com ela que devem negociar.

    Diante disso, parece-me possvel argumentar que, do ponto de vistade um calon, o gadjo, ou o brasileiro, esteja em continuidade conceitualcom o Estado, que no percebido como uma organizao transcen-dente e abstrata; ele aparece unicamente na figura de pessoas concretas os gadje que pedem documentos, com os quais estabelecem contato.A relao dos calon com o Estado elaborada sob o signo da negao;fala-se dele como gadjo, uma categoria que engloba todos os no calons.Mais que isso, para o calon que opera num registro de poder no co-ercitivo, em que o chefe no impe sua autoridade e no se projeta aci-ma do corpo social; em que a socialidade tem a forma de uma multi-plicidade assubjetiva feita de singularidades (Deleuze & Guattari;Viveiros de Castro loc. cit.), e no se configura um todo feito de indiv-duos submetidos ao poder do Estado; cuja noo de pessoa depende de

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    estar imerso numa rede relacional para esse calon, a oposiodurkheimiana entre indivduo e Sociedade desprovida de sentido.

    Se isso assim, podemos ver no mal-estar causado pela imagem dosozinho um sintoma da averso mais ampla do pensamento calon no-o de indivduo como uma totalidade self made, cuja contrapartida aSociedade durkheimiana, coercitiva e variante sociolgica do Estado,para falar com Eduardo Viveiros de Castro, que ope a sociedade[socialidade] de Clastres Sociedade de Durkheim: A sociedade-con-tra-o-Estado efetivamente contra-o-indivduo, porque o indivduo,enquanto sujeito, um produto e um correlato do Estado (2011, pp.321-22). O indivduo, definido por sua subjetividade, por sua capaci-dade de ser nico, de se destacar de todos os pares, de ser winner ouloser (como se diz na Amrica), aparece aos olhos dos Calon como umgadjo sozinho, incompreensvel (como pode viver assim, meuDeus?!), e indiscernvel, feito da mesma matria que o Estado. comose os Calon no pudessem ver o Estado separado do corpo social for-mado por garrons e garrins pelo mesmo motivo que os ocidentais noconseguiam ver seno compra e venda nas trocas de mulheres naMelansia.

    Em que consiste ento a sociedade-contra-o-Estado nos termos calon?

    A dialtica do dado e do construdo

    Volto vergonha. A formulao de que os gadje so impuros e os Calon,puros, ou em termos calon, que uns no tm vergonha enquanto osoutros fazem da vergonha um mote de sua vida, no deve ser entendidacomo uma separao entre duas essncias. A diferena entre calons egadje da ordem da prtica, do que se faz, no do que se . Para umcalon no basta nascer calon ou ser filho de calons, preciso fazer-se

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    calon continuamente: vestir-se, comer, cantar, chorar, falar chibi, viverentre parentes, respeitar os mortos, todas estas aes englobadas pelanoo de vergonha. apenas por meio de um processo ininterrupto deproduo de vergonha que os Calon se diferenciam dos gadje. Esse pro-cesso deve aparecer. O excesso de cores, brilhos, limpeza, msica e siln-cio durante o luto o que d salincia agncia calon. Assim formula-do, tudo se passa como se os Calon concebessem um mundo impurogadje, dado, do qual preciso diferenciar-se para fazer-se calon. Nessefluxo de impureza, introduz-se uma descontinuidade de pureza (ver-gonha) que constitui a calonidade.

    Nesse modelo, o mundo dado o ambiente gadje, de onde os Calonextraem seus recursos. Uma calin, passando de carro por um bairro,apontou: Eu j morei aqui tambm! Ali era calado. As torneirasdgua, meu Deus! Davam inveja as torneiras, tudo dado!. Os Calon seservem da rede de gua e esgoto e das instalaes eltricas pagando oufazendo gatos. A primeira lngua, aquela que ser a base para a intro-duo do repertrio lexical chibi, a lngua portuguesa, dada pelo gadje.A comida brasileira, mas no se come como os brasileiros. Os nomesoficiais so tipicamente brasileiros, mas sobre estes atuam os apelidoscalon. A msica sertaneja local, mas no se escuta som como os bra-sileiros. A temporalidade pensada a partir de duas datas do calendriogadje, Natal e So Joo, criando um calendrio calon no cumulativo.A cidade, as estradas, as ruas em que circulam, o terreno para acampar,o mundo em que vivem so pensados como um mundo gadje dado, apartir do qual se cria um mundo calon.

    Minha sugesto que os Calon concebem a relao com os gadje emtermos da oposio entre dado e construdo, ou para usar as catego-rias de Roy Wagner, entre inato e artificial (1977). Como argumen-ta Wagner, para ns, ocidentais, essas categorias correspondem larga-mente oposio entre natureza e cultura. Para ns, gua, luz, terra,

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    tempo so dados naturais manipulados culturalmente pelo homem. Meuargumento que natureza e cultura no so uma dicotomia significa-tiva no pensamento calon. Em seu lugar, a oposio entre calons e gadjeparece definir sua lgica. Disto decorreria ento que o mundo gadje inventado como dado, um mundo sujo, impuro. Ao mascarar aconstruo do impuro, ele concebido como um fluxo contnuopreexistente do qual o Calon tem que se extrair, contrainventando avergonha como descontinuidade, como produto de sua ao. Vergonhaaparece para os Calon como trabalho diferencial por meio do qual sefazem Calon a partir de um gadje dado.

    Figura contra fundo

    Pierre Clastres afirmava, nos anos 1970, que as sociedades indgenas,diferentemente do que pregavam as abordagens evolucionistas, no sosociedades sem Estado, mas sociedades contra o Estado, na medida emque fazem agir mecanismos de inibio (a guerra, a chefia sem poder)de sua emergncia em seu interior. O modelo que proponho aqui, base-ado na etnografia calon, explora a pertinncia e os limites do aforismode Clastres para pensar o modo de ser cigano. O Estado, para os Calon,no um Estado ausente, na iminncia de aparecer como imaginaClastres para o caso indgena. Para os Calon, o Estado em continuida-de com os gadje tem uma existncia muito real: ele dado. Nessesentido, estamos mais prximos da leitura que Deleuze e Guattari fa-zem do antroplogo:

    preciso dizer que o Estado sempre existiu, e muito perfeito, muito for-

    mado. [...] O Estado ele mesmo sempre esteve em relao com um fora, e

    no pensvel independentemente dessa relao. A lei do Estado no a

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    do Tudo ou Nada (sociedades com ou contra o Estado), mas a do interior

    e do exterior (Id. ibid., p. 23).

    Se entendo bem o que dizem Deleuze e Guattari, o Estado existiudesde sempre como virtualidade imanente ao social, em todas as socie-dades, isto , como possibilidade de se atualizar sob a forma de domina-o de um sobre os demais. A sociedade-contra-o-Estado, nesse modelofilosfico, igualmente existiu desde sempre enquanto linha de fuga,como exterior imanente ao Estado, como multiplicidade no capturvel.Os Calon so nmades, mas no no sentido presumido por ns, oci-dentais, porque se movem em relao a ns, que nos fixamos. OsCalon so nmades no sentido dado por Deleuze e Guattari, no Trata-do de nomadologia, na medida em que so investidos de um movi-mento absoluto (no relativo), de desterritorializao como mododo ser. Esse nomadismo deleuziano que eu chamo de cosmolgicopara diferenci-lo do nomadismo de senso comum impregnado na bi-bliografia cigana demanda, no caso calon, uma reinterpretao da fra-se clastriana. Ao invs de imaginar uma sociedade que maneja mecanis-mos de inibio da emergncia do Estado em seu interior, precisopensar a socialidade-contra-o-Estado reconceitualizando a noo decontra a partir da ideia de imanncia de Deleuze e Guattari.

    A formulao clastriana ganha assim uma nova forma. Contra, nocontexto calon, no significa resistncia ao Estado, pois no se quer im-pedir seu surgimento, nem reagir ao seu poder. Contra antes umaafirmao positiva que produz outra coisa a calonidade que emsi mesma contm a recusa do Estado. O Estado e seu exterior se formamsimultaneamente.25 A forma dessa relao entre ciganos e Estado no nem de exterioridade mtua como se fossem duas essncias indepen-dentes nem a de um todo fechado, dentro do qual surgiria o Estado.A forma dessa relao deve considerar uma indistino, uma confuso,

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    primeira entre Calons e gadje, e sua diferenciao como processo, comocontrainveno. A forma dessa dinmica pode ser representada pela re-lao entre figura e fundo: Os Calon contra um fundo de gadje-Estado.O contra no pensamento calon contraste entre figura e fundo.

    Entenda-se esse contraste no seio das teorias da psicologia da arte(Heinrich Wolfflin, 1864 [1845]), que tiveram como objeto de discus-so a relao entre figura e fundo. Deve-se imaginar uma figura que dei-xa de ser delimitada por uma linha, por um contorno, ou seja, que dei-xa de ser pensada como uma unidade autnoma, surgindo apenas emrelao, em contraste com um fundo. A figura s aparece como contraste,como diferena. O fundo escuro faz surgir a figura clara. Inversamente,ao diferenciar uma figura mais clara, cria-se a regio mais escura comofundo. Figura e fundo se criam simultaneamente, como nos desenhosde Escher.

    Quando argumento que os Calon inventam os gadje como dado,contrainventando os Calon como construdo, essa imagem de figurae fundo que tenho em mente. Figura e fundo a forma, a esttica, dadialtica de inveno e contra, que no podem ser pensadas separa-damente, pois se constituem mutuamente. O mundo dado o mundodos gadje que domina a escrita, que se organiza de forma hierrquica,que trabalha em regime de submisso (emprego), que mora (no via-ja), que anda sozinho, que no conhece a vergonha. Os Calon se fazemfigura contra esse fundo gadje. No estamos diante, porm, de uma aocontrastiva, no sentido desenvolvido pelas teorias da etnicidade(Fredrik Barth [1969], especialmente). No h aqui dois sistemas emconfronto, para os quais so escolhidos traos diacrticos para exacer-bar as diferenas, embora em alguns momentos essa situao se estabe-lea. O contraste aqui de outra ordem. A vergonha no um traocontrastivo, muito ao contrrio: um valor no percebido pelos gadje, saparente para os Calon que conhecem a vergonha.

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    Os Calon nos apresentam um modus operandi baseado no fazer-secalon como recusa ativa dos mecanismos do Estado. Esse fazer-se deveser vigiado continuamente, sob o risco de se perder para o dado. Essasituao de perda iminente para o Estado, uma circunstncia de eternoquase-Estado, requer que o contraste se reinvente continuamente, casocontrrio a figura se dilui no fundo do gadje-Estado como ocorre commuitos ciganos que foram escola, casaram-se com gadje, trabalham edeixaram a vida calon.

    Os Calon guardam um valioso segredo: sabem que, se o Estado condio de socialidade, a submisso a ele no mandatria. Ao criar,por contrainveno, um mundo de vergonha, os Calon garantem-secomo foras, afetos e emotividade, uma agncia difusa, em redede parentes, contra o Estado.

    Notas

    1 A primeira verso deste texto foi apresentada no colquio Pierre Clastres: pensar apoltica contracorrente, organizado em 2009 por Sergio Cardoso, BeatrizPerrone-Moiss e Renato Sztutman junto ao Sesc, em homenagem a Pierre Clastres.Agradeo aos organizadores pela oportunidade de elaborar esta reflexo. Em 2011,uma verso ampliada e um pouco diferente desta foi apresentada no grupoNaMargem, coordenado por Gabriel Feltran, professor doutor do Departamentode Sociologia da Universidade Federal de So Carlos. Nessas duas ocasies as dis-cusses foram fundamentais para a produo da verso final deste texto, embora oresultado seja de minha inteira responsabilidade. Quero agradecer a MarcioGoldman, Renato Sztutman, Gabriel Feltran, Piero Leirner e Luiz Henrique deToledo pelas crticas e sugestes. Finalmente, agradeo Fapesp e fundao Alban,cujo apoio foi fundamental para a realizao da pesquisa de doutorado.

    2 As apresentaes do colquio buscaram superar o debate sobre as deficincias daanlise de Clastres propondo diversas apropriaes das ideias do autor de modo aestender seu pensamento a novos materiais etnogrficos. Para uma anlise dos au-

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    tores crticos obra de Clastres, ver Sztutman, 2011, cap. 1 (no prelo). Uma leitu-ra mais cida dessa crtica pode ser encontrada no posfcio de Eduardo Viveiros deCastro 2a edio brasileira de Antropologia da violncia (2011).

    3 Lvi-Strauss (1962) adverte com clareza que no se deve tomar o pensamento sel-vagem como equivalente ao pensamento do selvagem, isto , no se trata de umpensamento exclusivo de uma parcela da humanidade. Pensamento selvagem oucientfico lgica de compreenso do mundo que opera de modos diferentes segundo categorias abstratas ou categorias sensveis comuns, embora com dife-rentes nfases, a toda a humanidade.

    4 A terminologia deleuzo-guattariana devedora da releitura alentada que EduardoViveiros de Castro (2011) faz da obra clastriana via Deleuze e Guattari.

    5 A datao se refere escrita da etnografia, em 2009.6 Sobre adoo entre os Calon, ver Ferrari, 2010.7 Gadje a categoria nativa para no ciganos, tal como aparece nos estudos ciga-

    nos. Essa palavra ganha grafias e sotaques diferentes segundo a localidade (em dis-tintos pases, e regies do Brasil): gadjo/gadji, gorgio, gaje, gaze, sendo on o sufixomasculino e in, o feminino. Os Calon com quem convivi usam predominante-mente as formas gajon/gajin, garron/garrin. Optei por usar como categorias analti-cas gadje para o atributo do no cigano e para a forma plural, e gadjo e gadji parasuas variaes masculina e feminina, diferenciando-as das categorias nativas, quecitarei conforme o contexto. Entre os Calon, por sua vez, homens so calons emulheres so calins.

    8 Os dilogos transcritos aqui foram extrados do material gravado pela fotgrafaLuciana Sampaio, que realizou um filme sobre um casamento calon em 2008 edesenvolve um longa-metragem baseado em mais de dez anos de convivncia coma mesma famlia calon com a qual convivi. Agradeo Luciana por ter me dadoacesso ao seu material bruto, com mais de cem horas de filmagem.

    9 Quando digo os Calon, refiro-me estritamente rede de pessoas que conheci,que se autodenomina Calons mineiros, uma rede de parentes espalhada na peri-feria da cidade e nos arredores do estado de So Paulo. Para uma crtica noo degrupo social associada aos Calon, ver Ferrari, 2010, cap. 3.

    10 O termo de Roy Wagner, que o define em A inveno da cultura: umasimbolizao diferenciante especifica e concretiza o mundo convencional ao tra-ar distines radicais e delinear suas individualidades (1981[1975], p. 44).

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    11 Essa formulao assemelha-se ao argumento de Paloma Gay y Blasco sobre osGitanos de Jarana, em que cabe mulher gitana a responsabilidade de demonstrara decncia dos Gitanos como um todo (1999, p. 68).

    12 Para uma discusso aprofundada sobre esse universo e a categoria vergonha nopensamento calon, ver Ferrari, 2010, especialmente captulos 2 e 4.

    13 Para concepes calon de tempo-espao, ver Ferrari, 2010, cap. 7.14 O conceito de ilegibilidade do Estado formulado por Veena Das (2007) no

    contexto de sua pesquisa em diferentes comunidades na ndia contempornea.15 A recusa da escolarizao um fato que se atesta no analfabetismo generalizado

    entre os Calon, mas no entre algumas famlias Rom, cujos membros frequentama escola regularmente e muitos se formam na faculdade. Os ciganos Rom proveni-entes do Leste europeu vieram para o Brasil a partir do final do sculo XIX, e sedistinguem por aspectos lingusticos e sociais dos Calon, oriundos da PennsulaIbrica e que aportaram junto com a colonizao portuguesa a partir do sculo XVI(ver Ferrari, 2010, cap. 3 para um resumo da bibliografia a esse respeito). Essadistino, vale lembrar, relacional.

    16 Michael Stewart, antroplogo ingls que realizou sua pesquisa entre os Rom naHungria, mostra, por exemplo, que mesmo nos contextos comunistas de maior pre-sena do Estado na educao, os ciganos continuaram sendo ciganos (1997, p. 7).

    17 Uma descrio mais detalhada e complexa dos componentes morais, emocionais eeconmicos na formao de uma turma encontra-se em Ferrari, 2010, cap. 6.

    18 No deixa de ser significativo o uso da palavra nativa cacique nesta comparaocom o chefe indgena.

    19 Essa oposio ativo/parado nesse cdigo poltico reaparece nas concepes calonde espao-tempo como base do que chamei de nomadismo cosmolgico (emoposio ao nomadismo que se atribui no senso comum aos ciganos, umnomadismo) (Ferrari, 2010, cap. 7). Ficar parado, morando em casa se ope vida de correria, ao viver pro mundo da barraca em viagem, e a esse par deoposio se associam concepes de ar abafado e doena, por um lado, e to-mar ar, tomar vento e de vida sadia, por outro. So relaes de oposio entrecategorias mais abstratas que permeiam o pensamento calon, que poderiam sersistematizadas em termos levistraussianos: calon ativo : calon parado :: vida decorreria : vida parada :: viajar : morar :: barraca : casa :: ar abafado : ar puro/vento:: sade : doena.

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    20 Os negcios individuais vo render riqueza pessoa que o realizou, a qual nodeve nada aos seus irmos ou parentes. Ao contrrio, a associao em um negciogarante distribuio equitativa. Disto resulta que jovens, ainda iniciantes na arteda negociao, queiram se associar a chefes para aprender e obter sua parte nonegcio, enquanto os mais velhos faro tanto negcios individuais como em asso-ciao. Dependendo da turma, os negcios variam: compra e venda de makitas,aparelho de som, DVD, televiso, cavalos, carros a isso se soma o emprstimo dedinheiro a juros.

    21 No caso de se levar a analogia ao limite, valeria a pena explorar algumas diferenasrelevantes entre as duas chefias, que eu deixo apenas indicadas: ao contrrio dochefe indgena, a condio de chefe calon no herdada, mas construda por suaao. a ao no presente que produz um chefe calon. Alm disso, ele no gozado privilgio da poliginia, um dos elementos apontados por Clastres como signifi-cativo da posio, ainda que etnograficamente contestvel (Beatriz Perrone-Moisscom. pess.). A analogia entre o fator da guerra no modelo clastriano e a vinganano caso calon um assunto que mereceria ateno to logo se tenha acesso a umcorpus etnogrfico mais extenso (p. ex., Fotta, man.). Finalmente, se quisssemosinsistir na analogia com o modelo clastriano, seria necessrio compreender as di-ferenas entre o imaginrio mtico da Terra sem Mal que fundamenta onomadismo guarani, e a negao calon de origem e de futuro em nome do presen-te, que fundamenta seu nomadismo cosmolgico (ver Ferrari, 2010, cap. 7).

    22 Stolze Lima e Goldman (2003, p. 7) retomam esse aspecto no incio do prefcio aSociedade contra o Estado, ao reconhecerem no modo de ser das sociedades indge-nas um desejo coletivo, a dimenso de intencionalidade, ou de agncia que asfaz serem contra o Estado.

    23 Em nossos termos, essa oposio se daria entre as ideias de nao e no nao, jque, nmades, os ciganos fogem a qualquer identificao com um territrio nacio-nal. No deixa de ser intrigante, no entanto, que os Calon usem atributos ligadosa regies nacionais para diferenciar redes de parentes: mineiros, paulistas, ca-riocas, baianos, sem que haja uma correspondncia necessria entre esses adje-tivos e o lugar de nascimento das pessoas.

    24 Paloma Gay y Blasco, em sua conferncia The Roma and the Anthropology ofthe State, proferida na Romani School, em Budapeste, em 2009, fez uma obser-vao similar acerca dos gitanos na Espanha: Os gitanos no tm uma categoria

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    para Estado, no diferenciam os agentes estatais como pertencentes a uma cama-da comum ligada a um poder estatal.

    25 A formulao que diferencia o exterior ao sistema do exterior do sistema foiproposta por Eduardo Viveiros de Castro a partir de uma ideia de Deleuze eGuattari, para tratar da afinidade na Amaznia, redefinindo a noo deenglobamento de Dumont: Dizer que o exterior engloba o interior no significadizer que o segundo est dentro do primeiro, [...] mas sim que o exterior imanenteao interior. [...] O corolrio dessa imanncia que qualquer ponto arbitrariamen-te escolhido do interior um limite entre um interior e um exterior: no existemeio absoluto de interioridade (2002b, p. 430). Para uma discusso sobre as di-ferenas do sistema de puro/impuro de Dumont na ndia e o sistema e o seuexterior calon, ver Ferrari, 2010, cap. 2 e concluso.

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    ABSTRACT: This article aims to explore the current relevance andmeanings of Pierre Clastress notion of society against the State for anethnographic account of a Calon Gypsy kinship network throughout thestate of So Paulo, in Brazil. It is indeed possible to argue, based on fieldworkdata, that the Calon context reveals a sociality against the State thatsurpasses both the most evident analogies between Calon and Amerindianchiefs, and the common sense imaginary of a nomadic, outlaw lifeliberated from societys rules. In order to access it, one has to deepenethnography and explore the fundamental categories of Calon thought,especially those concerning their relations with brasileiros [Brazilians], i.e.gadje [non-Gypsies]. The Calon think of themselves as living in a worldthat belongs to brasileiros, but in which they make themselves Calon.Categories such as vergonha [shame] regarding the feminine body andsozinho [lonely] as opposed to their life among their relatives in additionto onomastics and time-space conceptualizations, allow one to access theCalon notions of personhood and sociality against a gadje-State.

    KEY-WORDS: Gypsies, Brazil, Ethnography, Pierre Clastres, State.

    Recebido em fevereiro de 2011. Aceito em maio de 2011.