Peirano Etnografia Metodo

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 20, n. 42, p. 377-391, jul./dez. 2014

    Etnogra a no mtodo

    http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832014000200015

    ETNOGRAFIA NO MTODO*

    Mariza PeiranoUniversidade de Braslia Brasil

    Aproveitei a ltima semana de 2013 para fazer meu recadastramento eleitoral biomtrico, nesse perodo em que Braslia ca vazia e sem las. Fui logo atendida no posto e, com poucas pessoas presentes, passei por duas eta-pas. Na primeira mesa a que fui levada, apresentei os documentos exigidos: o antigo ttulo de eleitor, a carteira de identidade e o comprovante de residncia e, em troca, recebi uma folha impressa com os dados que estavam no sistema, inclusive meu histrico de votao em que constavam as duas vezes em que justi quei o voto por ausncia. Con rmei as informaes que estavam em dia, z as correes e introduzi telefones e e-mail, conforme solicitado. Enquanto isso, o funcionrio do TRE fazia uma cpia da minha carteira de motorista. Tudo certo, assinei meu nome num tablet depois de ser orientada de que a assinatura deveria ser igual da identidade.

    Conduzida outra mesa, constatei que as informaes fornecidas h poucos minutos j estavam disponveis online para este segundo funcion-rio, inclusive minha recente assinatura. Com um painel atrs de mim, e um leitor ptico para coletar as impresses digitais, percebi que havia tambm uma cmera um pouco distante; fui informada pelo jovem que me atendia, muito solcito, alis, que iria tirar uma fotogra a e que eu poderia sorrir, se quisesse.

    * Conferncia proferida nas comemoraes dos 40 Anos do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da UFRGS, em 12 de maro de 2014. Agradeo o honroso convite para participar desse momento com os colegas do PPGAS e, especialmente, a extrema gentileza de Cornelia Eckert, organizadora do evento, em todas as etapas da visita. A ideia de re etir sobre a etnogra a como mtodo foi primeiro testada na VI Jornada dos Alunos do PPGA/UFF em outubro de 2012, e agradeo o estmulo que ento recebi.

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    Mais uma vez, con rmei os dados apresentados impressos em outra fo-lha que me foi apresentada e, frente ao novo ttulo, assinei-o, de novo sob a orientao de que deveria faz-lo igual s outras assinaturas. Estranhei de imediato que o velho e o novo ttulo fossem idnticos, exceto pelos dizeres identi cao biomtrica no canto direito superior. Sem entender, perguntei pela foto que havia acabado de tirar. O funcionrio ento me explicou que ela no aparece no ttulo; ca armazenada no sistema e, quando houver uma eleio, ao me identi car pela digital, a foto aparecer no monitor para confe-rncia dos mesrios.

    Tudo simples. Mas sa do posto intrigada. A nal, depois de fornecer e con rmar um sem-nmero de informaes inclusive foto, telefone, e-mail tinha em mos um ttulo em tudo semelhante ao antigo (e que cou retido). nesse momento que o instinto etnogr co acionado.

    Tudo que nos surpreende, que nos intriga, tudo que estranhamos nos leva a re etir e a imediatamente nos conectar com outras situaes semelhantes que conhecemos ou vivemos (ou mesmo opostas), e a nos alertar para o fato de que muitas vezes a vida repete a teoria. Ao voltar para casa, dei-me conta de que o procedimento de recadastramento combinava dois momentos comple-mentares: o primeiro, para con rmao ou acrscimo de informaes (nome, estado civil, data de nascimento, nmero e tipo de identidade, nome dos pais, endereo, tempo de residncia, telefones, histrico de votaes), e assinatura. No segundo momento, coleta de imagens (foto e impresses digitais), depois de, por meio da mesma assinatura, atestar que eu era eu mesma, isto , a mesma pessoa. A assinatura sempre igual era a prova de que, nas diversas etapas, tratava-se da mesma pessoa. Ao m, uma nova assinatura no ttulo.

    Todos que l estvamos seguimos as instrues risca, sem contestao. A nal, era o que tnhamos ido fazer, embora, a mim, a quantidade de infor-maes solicitada tenha me surpreendido esperava apenas incluir minhas digitais e s.

    De todo modo, nossa passividade me deixou alerta porque me lembrei da questo hoje candente nos Estados Unidos quanto exigncia de apresentao de um documento de identidade com foto para votar matria que pe em xeque tanto a ideia de direitos humanos e de privacidade quanto carrega em si signi cados polticos explcitos: democratas temem que seus eleitores mais pobres (que no tm carteira de motorista ou passaporte, j que no h car-teira de identidade nacional) saiam prejudicados em relao aos republicanos

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    que aprovaram a lei que exige identi cao com foto.1 Tambm comparei com o cadastramento em curso na ndia, que pretende identi car mais de um bilho de pessoas com dados biomtricos, especialmente pelas impresses di-gitais, escaneamento de ris e um nmero de 12 dgitos projeto que conta com a assessoria de vrios experts em tecnologia da informao, indianos e norte-americanos. Mais um pouco e cheguei aos historiadores que estudaram processos de identi cao (por exemplo, Fraenkel, 1992, sobre a histria da assinatura; Groebner, 2007, sobre a diferena entre identi cao e reconheci-mento na Idade Mdia), assim como a Marcel Mauss e a noo de pessoa, a Lvi-Strauss e as classi caes, e minhas prprias incurses sobre documen-tos de identidade.2

    A ideia de mtodo etnogr co complexa. O que eu estava fazendo no posto eleitoral? Simplesmente me recadastrando? Ou fazendo etnogra a? Ou as duas coisas? Desse episdio ca claro que a pesquisa de campo no tem momento certo para comear e acabar. Esses momentos so arbitrrios por de nio e dependem, hoje que abandonamos as grandes travessias para ilhas isoladas e exticas, da potencialidade de estranhamento, do inslito da experincia, da necessidade de examinar por que alguns eventos, vividos ou observados, nos surpreendem. E assim que nos tornamos agentes na etnogra- a, no apenas como investigadores, mas nativos/etngrafos.

    Essa dimenso incita ao questionamento da etnogra a como mtodo. A pergunta central se resume a esta: onde e quando aprendemos que estra-nhar uma ferramenta fundamental na pesquisa antropolgica?3 E o que signi ca, no fundo, esse estranhamento? Falarei, portanto, sobre algumas questes da prtica da nossa disciplina, antes de voltar, no nal, historieta do posto eleitoral.

    1 A exigncia de documentos para identi cao pode chegar insensatez, como sabemos. Na la para visitar um familiar internado na UTI, todos os dias precisava me identi car para receber um crach. Certo dia a la no andava: uma senhora idosa, aparentando pouca familiaridade com as coisas da ci-dade, acompanhada de uma segunda, no tinha identidade. O funcionrio do hospital perguntava: Mas nenhum documento? Nenhuma identi cao com foto? E a acompanhante explicando inutilmente por que no era possvel produzir um documento. Foi quando o funcionrio perguntou: E passaporte?

    2 Ver Peirano (2004, 2009). Certamente vivemos o momento tanto da privacidade quanto da espionagem: qualquer hacker que entrar no site do TRE, para no falar dos prprios funcionrios pblicos, ter disposio informaes atualizadas e detalhadas de todos os cidados brasileiros.

    3 Ver Lvi-Strauss (1976, p. 26) para a dvida antropolgica; Madan (1994, p. 128, 159) para o sentido de surpresa na pesquisa.

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    Etnografia e empiria

    Inicio por um lugar comum: como todos sabemos, a etnogra a a ideia--me da antropologia, ou seja, no h antropologia sem pesquisa emprica. A empiria eventos, acontecimentos, palavras, textos, cheiros, sabores, tudo que nos afeta os sentidos , o material que analisamos e que, para ns, no so apenas dados coletados, mas questionamentos, fonte de renovao. No so fatos sociais, mas fatos etnogr cos, como nos alertou Evans-Pritchard em 1950.4 Essa empiria que nos caracteriza, aos olhos de alguns cientistas sociais pode ser uma desvantagem, se no uma impropriedade; pen-so, especialmente, nos socilogos de ontem (e talvez nos de hoje tambm). Para os antroplogos, no entanto, nosso cho.

    Mesmo assim, as concepes do que etnogra a variaram. Arte, para Evans-Pritchard, fonte de comparao, para Radcliffe-Brown, origem da te-oria etnogr ca, para Malinowski, hoje o mtodo genrico da antropologia o que a esvazia de signi cado, ou a condena por pouco terica.

    Alis, a separao entre teoria e empiria esteve bem presente no incio das nossas cincias sociais. Em plena reunio da ABA, em 1961, Florestan Fernandes, socilogo fundador, denunciou que a pesquisa de campo retardava o caminho da antropologia em direo ao status cient co.5 Teoria e pesquisa emprica correspondiam a momentos distintos; a cincia seria alcanada pela abstrao terica, e a antropologia no passava de um empreendimento emp-rico. Como a excelncia era avaliada por sua contribuio teoria, a sociolo-gia era mais so sticada que a antropologia.6

    Os tempos mudaram

    Mas os tempos mudaram, e hoje podemos dispensar a oposio teoria/empiria porque, revendo (e relendo) os clssicos j distantes, e hoje afastados

    4 Ver Evans-Pritchard (1962).5 Ver Fernandes (1961).6 A sociologia feita-no-Brasil, proposta por Florestan Fernandes, contudo, no admitia que hipteses

    fossem levantadas antes do incio da pesquisa. Ver relato de como Florestan Fernandes foi destitudo do projeto de Donald Peirson quando era estudante por no concordar com a orientao do professor. Ver Fernandes (1978).

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    das questes polticas da academia da poca, percebemos que a histria da an-tropologia representa nossa fonte terica por meio das monogra as que nos-sos antecessores deixaram.

    Esclareo. Exatamente porque os motivava a curiosidade de conhecer mais uma sociedade, mais um grupo desconhecido, os etngrafos de um scu-lo atrs iam a campo com um projeto aberto, sempre dispostos a recon gurar as questes originais e colocar outras, de forma criativa e ousada. Era o mo-mento da explorao (no duplo sentido). Mas aprendemos, daquele momento em diante, que o mtodo etnogr co implica a recusa a uma orientao de nida previamente. O re namento da disciplina, ento, no acontece em um espao virtual, abstrato e fechado. Ao contrrio, a prpria teoria se apri-mora pelo constante confronto com dados novos, com as novas experincias de campo, resultando em uma invarivel bricolagem intelectual.

    Todo antroplogo est, portanto, constantemente reinventando a antro-pologia; cada pesquisador, repensando a disciplina. E isso desde sempre: de Malinowski encontrando o kula entre os trobriandeses; Evans-Pritchard, a bruxaria entre os azande; Florestan, revendo a guerra tupinamb nos arquivos. Antroplogos hoje, assim como nossos antecessores, sempre tivemos/temos que conceber novas maneiras de pesquisar o que alguns gostam de nominar novos mtodos etnogr cos. Mtodos (etnogr cos) podem e sero sempre novos, mas sua natureza, derivada de quem e do que se deseja examinar, an-tiga. Somos todos inventores, inovadores. A antropologia resultado de uma permanente recombinao intelectual.

    A mudana dos tempos tambm nos fez alertas para os pecados e as virtudes da antropologia. Os pecados so fceis de identi car e resumir: as relaes de poder desigual entre pesquisadores e seus ento nativos, o su-posto exotismo dos no ocidentais, a fabricao dos especialistas regionais (africanistas, americanistas, oceanistas, etc.), o nanciamento politicamente direcionado.7

    J as virtudes se encontram no reconhecimento da diversidade das cultu-ras hoje um fato banal , na nfase na comparao que d sentido unidade psquica da humanidade, na combinao do universal e da diversidade (via fato social total), nas unidades de estudo (para alm, ou aqum, do Estado

    7 Ver Peirano (2004) para desdobramento desta argumentao.

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    nacional e, portanto, distantes dos perigos do nacionalismo metodolgico que preocupa os socilogos), nos constantes emprstimos que atravessam ou-tros modos de conhecimento (biologia, lingustica, loso a, psicanlise, etc.) e, mais importante, no resultado fundamental da pesquisa de campo: o desper-tar de realidades/agncias desconhecidas no senso comum, especialmente no senso comum acadmico. este contraste, estas surpresas sempre espreita dos pesquisadores, este destemor em explorar o mundo em que vivemos, o co-locar-se em perspectiva, a negao de demarcao de fronteiras intelectuais, a disposio a nos expor ao impondervel e a vulnerar nossa prpria cosmo-logia essas so posturas que estiveram sempre presentes, ontem e hoje. Elas tanto enriquecem a antropologia quanto permitem vislumbrar um futuro sem-pre criativo: enquanto as maneiras de ser ou de agir de certos homens forem problemas para outros, haver lugar para uma re exo sobre essas diferenas que, de forma sempre renovada, continuar a ser o domnio da antropologia, disse Lvi-Strauss (1962, p. 26) em um momento feliz.

    Myanmar/Burma

    objeo quanto pertinncia histrica dos clssicos preciso conside-rar as caractersticas da leitura etnogr co-terica. Dou um exemplo:

    H um ano, o jornal The New York Times noticiou que o governo de Myanmar havia deslanchado uma ofensiva tnica contra a populao do norte e nordeste do pas. Esse fato mobilizou vrios grupos de direitos humanos internacionais, que denunciavam bombardeios, tortura e execuo de civis. Sobreviventes procuravam refgio na China. Numa regio rica em jade, ouro e madeira, essa populao era atacada pelo recente governo civil, que ainda sofria presso dos militares.

    Trata-se dos kachin, dos Sistemas polticos da Alta Birmnia (Leach, 1954). O con ito hoje to violento que uma pesquisa de campo como a realizada por Leach nos anos 1940 seria impossvel. Mas foi o prprio Leach que chamou a ateno, 30 anos depois, que as colinas de Kachin haviam sido convertidas em arena militar para tropas mercenrias. Leach se preocupou, ento, de alertar, como nas boas ces, que era mero acidente qualquer co-nexo entre a constituio poltica do livro e os fatos etnogr cos observveis empiricamente.

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    No era preciso. Monogra as nunca foram respeitveis pelo retrato el de uma realidade, tema que o prprio Leach se incumbiu de enfrentar quando insistiu que etnogra as so ces, que se traduzem como se fossem equili-bradas. Assim, continuamos a ler os Sistemas polticos no como documento histrico, mas por sua contribuio terico-etnogr ca. Isto :

    i) por contestar os sistemas de equilbrio ento in uentes na antropologia;ii) eliminar a ideia de sistemas fechados (tribo, aldeia, etc.);iii) propor que podem ser considerados rituais todos os aspectos comu-nicativos das relaes sociais;iv) indicar que sistemas polticos podem oscilar em uma s regio (en-tre gumsa/gumlao) e, nalmente,v) chamar a ateno para o fato de que os limites/fronteiras da socieda-de no so coincidentes com os da cultura lio que ainda vai contra o senso comum e , portanto, fundamental para entendermos o mundo de hoje, em que movimentos/ uxos transnacionais confrontam e parado-xalmente rea rmam nacionalidades.

    Se o mundo muda, boas monogra as continuam a nos inspirar porque no so retratos is, mas formulaes terico-etnogr cas. Political systems etnogra a, etnogra a que traz encravadas novas posturas tericas. O fato de as monogra as clssicas estarem distantes no tempo paradoxalmente nos aju-da a renunciar a uma avaliao presentista. Por outro lado, preenchem tambm um papel sociolgico importante o de embasar os dilogos alm fronteiras. Entre dois falantes sempre necessria uma conveno que d estabilidade ao dilogo. A histria terica serve a esse propsito: quais so os livros que, independentemente de origem, antroplogos temos em nossas bibliotecas?

    Uso esse exemplo conhecido para ressaltar mais uma vez o fato funda-mental de que monogra as no so resultado simplesmente de mtodos etno-gr cos; elas so formulaes terico-etnogr cas. Etnogra a no mtodo; toda etnogra a tambm teoria. Aos alunos sempre alerto para que descon em da a rmao de que um trabalho usou (ou usar) o mtodo etnogr co, por-que essa a rmao s vlida para os no iniciados. Se boa etnogra a, ser tambm contribuio terica; mas se for uma descrio jornalstica, ou uma curiosidade a mais no mundo de hoje, no trar nenhum aporte terico.

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    O papel das monografias

    Mas, infelizmente, no o que hoje oferecemos na maioria dos programas de ps-graduao em antropologia. Uma pesquisa recente sobre as disciplinas obrigatrias nos cursos de ps-graduao mostrou que, quando entrevistados, professores re etiam detidamente e de forma so sticada sobre a histria da disciplina. Mas quando traduziam essa re exo na organizao das matrias obrigatrias, estas ainda mantinham o velho esquema de apresentao de escolas: evolucionismo, culturalismo (sic) norte-americano, antropologia social britnica, estruturalismo, hermenutica, antropologia ps-moderna geralmente apresentados pela via de historiadores ou comentadores.8

    A adoo dos rtulos, dos essencialismos, das caixinhas fechadas, das classi caes vai contra o fato bvio que escolas s existem a posteriori, ge-ralmente com uma conotao poltica de superao ou, quando apresentadas no momento em que so de nidas, como posio (poltica) da novidade. Se queremos formar antroplogos, e no meramente ensinar antropologia, pre-cisamos ser re exivos: no h uma histria da antropologia. Devemos deixar espao para que nossos antecessores possam nos falar sobre sua experincia, possam nos informar sobre os problemas (tericos ou existenciais) que en-frentaram, possam, en m, nos fazer re etir a partir do que zeram lem-brando que aprendemos pelos bons e pelos maus exemplos. O resultado que nossa histria ser sempre espiralada, nunca evolutiva nem unidirecional.9

    Ler monogra as tem benefcios que alcanamos:

    i) pelos dilogos tericos que elas nos proporcionam. Cada uma das mo-nogra as conversa, responde, contrape, reconsidera, expande outras que vieram antes. Isto , um autor no se segue a outro por uma razo cronolgica, tampouco porque faz parte de uma mesma escola, ou de outra, rival, mas porque quer debater (concordando ou, no mais das ve-zes, discordando total ou parcialmente) algumas ideias a partir de dados

    8 Ver Sanabria (2005).9 Se a boa formao dependesse apenas da histria da disciplina, George Stocking Jr. teria sido um dos

    mais respeitados antroplogos. Mas ele prprio se via como um marginal na pro sso e confessava ser apenas um historiador. Ver sua autobiogra a (Stocking Jr., 2010).

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    de sua prpria pesquisa ou experincia etnogr ca. Nenhum autor uma ilha, j reforava o antroplogo Triloki Madan, na ndia;10ii) a antropologia comparativa por de nio. Ao contrastar nossas con-cepes com outras (distantes no Pac co, ou prximas, como no posto eleitoral), o contraste revela dimenses inesperadas. Sem desconhecer as condies de explorao no passado (e no presente), chegada a hora de ver o lado positivo, explorando a surpresa constante, o inesperado, a diversidade, a curiosidade e, por que no, a humildade, que precisamos preservar, porque surpresas nos espreitam a cada momento;iii) ao ler monogra as, reforamos a percepo de que a etnogra a par-te do empreendimento terico da antropologia. No se trata de um deta-lhe metodolgico que antecede uma teoria; a indagao etnogr ca em si j tem um carter terico, porque somente (ou principalmente) ela nos permite questionar os pressupostos ento vigentes pelas novas associa-es ou novas perguntas que nos proporciona: como j dizia Malinowski, novas pesquisas levam transformao de um ponto de vista terico;iv) nalmente, monogra as revelam novas teorias porque no so to-talmente teorias dos etngrafos. Monogra as resultam do dilogo dos pesquisadores com os sujeitos, as pessoas: a teoria da linguagem de Malinowski no dele; , principalmente, dos trobriandeses, e che-gou a ns pelo talento do etngrafo, ampliando nossa percepo (terica) da linguagem. Assim, a etnogra a abala nossos estilos de vida e nossas ideias de existncia; abala nossa crena moderna na referencialidade dos sentidos e impe uma re exo sobre a multiplicidade de modos de vida.

    um privilgio continuar a ler as monogra as clssicas. Nas univer-sidades de centros metropolitanos, geralmente privadas e no pblicas, os cursos tm valor de mercado: seria verdadeiramente extico dispender recur-sos para ler monogra as escritas sob regime colonial sobre sociedades afri-canas ou melansias. Em contextos ps-coloniais recentes, por outro lado, a antropologia uma contradio em termos, a histria da disciplina ferindo os sentimentos mais bsicos de autoestima e pertencimento. Nesses casos,

    10 Ver Madan (1994).

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    como na ndia, por exemplo, antroplogos no exterior, muitas vezes, em casa, se autodenominam socilogos.11

    A boa etnografia

    Resta uma questo incmoda: toda etnogra a boa? Boas etnogra as cumprem, pelo menos, trs condies: i) consideram a comunicao no con-texto da situao (cf. Malinowski); ii) transformam, de maneira feliz, para a linguagem escrita o que foi vivo e intenso na pesquisa de campo, transforman-do experincia em texto; e iii) detectam a e ccia social das aes de forma analtica.

    A primeira e mais importante qualidade de uma boa etnogra a reside, ento, em ultrapassar o senso comum quanto aos usos da linguagem. Se o trabalho de campo se faz pelo dilogo vivido que, depois, revelado por meio da escrita, necessrio ultrapassar o senso comum ocidental que acredita que a linguagem basicamente referencial. Que ela apenas diz e descreve, com base na relao entre uma palavra e uma coisa. Ao contrrio, palavras fazem coisas, trazem consequncias, realizam tarefas, comunicam e produzem resultados. E palavras no so o nico meio de comunicao: silncios comu-nicam. Da mesma maneira, os outros sentidos (olfato, viso, espao, tato) tm implicaes que necessrio avaliar e analisar. Dito de outra forma, preciso colocar no texto em palavras sequenciais, em frases que se seguem umas s outras, em pargrafos e captulos o que foi ao vivida. Este talvez seja um dos maiores desa os da etnogra a e no h receitas preestabelecidas de como faz-lo.

    Os ttulos espirituosos ou evocativos dos trabalhos etnogr cos do sculo passado, tanto nos livros quanto nos artigos Virgin birth (Leach), Twins, birds and vegetables (Firth), Some muddles in the models (Schneider) talvez revelem o desejo do etngrafo de provocar o leitor, tanto quanto de insinuar o lado surpreendente da experincia da pesquisa. A persistncia at hoje do carter potico dos ttulos de artigos (ou monogra as) talvez indique o desejo de chamar a ateno, no para aquela contribuio que seja reconhe-cida como cient ca, mas, sim, para a complexidade da tarefa que comunicar

    11 Para uma maior discusso sobre esse tema ver Peirano (1998).

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    Etnogra a no mtodo

    uma nova descoberta que reavalia a teoria, alcanar novos voos, provocar novas dvidas, ampliar o leque de possibilidades interpretativas, e manter a tradio da eterna juventude das cincias sociais.12

    Antropologia da poltica

    Volto histria inicial. Meu interesse pelos documentos de identidade teve incio quando, em uma rpida pesquisa no interior para examinar o im-pacto do Programa de Desburocratizao no incio dos anos 1980, fui surpre-endida pelo fato de que l ningum considerava o programa necessrio, j que todos se [re]conheciam.13 No entanto, o ttulo eleitoral era o mais procurado no cartrio de Rio Paranaba (MG) e a carteira de identidade, considerada desnecessria.

    Essa tendncia ia contra meus hbitos urbanos.A questo da identi cao no mundo contemporneo continuou a me

    interessar. Esse interesse derivou de um ponto central que o seguinte: docu-mentos so as formas privilegiadas de provar que somos quem dizemos ser, j que o fato bsico do mundo moderno que nossa palavra no su ciente como prova. Eu s sou Mariza Peirano se provar, por meio de mecanismos externos a mim, e o cialmente vlidos, minha condio como tal.

    H apenas uma maneira de fugir regra: estar em meio conhecido, quan-do, ento, sou reconhecida , sem precisar me identi car. Quando estou com Ruben Oliven, Claudia Fonseca ou Cornelia Eckert, eles podem atestar que sou quem digo que sou porque j me conhecem. Mas se chego ao aero-porto, preciso apresentar um documento vlido, isto , de cunho o cial e com foto. Ou, se vou votar, preciso rmar minhas digitais.

    Reconhecer e identi car so, portanto, dois procedimentos diversos: um depende do contexto, o outro, no. Se h familiaridade, possvel o reco-nhecimento (como em Rio Paranaba). Se h formalidade, aplica-se a iden-ti cao impessoal. H, ainda, uma terceira forma de procedimento: quando percebo, mesmo de longe, por algum trao (andar, formato do rosto ou corpo,

    12 A eterna juventude das cincias , naturalmente, uma referncia a Max Weber. Percebo uma tendncia recente na criao de ttulos de artigos, de dissertaes e de teses no Brasil pela utilizao de uma frase nativa acompanhada de um subttulo explicativo no jargo antropolgico.

    13 Ver Peirano (1986).

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    idade, roupa), que um jovem, por exemplo, provavelmente um estudante e no um professor. Poderamos chamar este terceiro modo de pro ling.

    No mundo moderno, importante enfatizar que utilizamos sempre os trs mecanismos que correspondem, no por acaso, aos modos que Charles Peirce chamou de Primeiro/First (pro ling, baseado no sentido), Segundo/Second (reconhecimento, dependendo do contexto) e Terceiro/Third (identi- cao, derivada de conveno).14 Mesmo o funcionrio da imigrao que confere os documentos dos passageiros, olha para estes com sentido de pro- le; se se trata de uma celebridade, o reconhecimento s vezes dispensa a identi cao; j em um posto eleitoral, necessria uma identi cao formal para todos.

    Essas so algumas concluses a que cheguei aps analisar eventos no Brasil, nos Estados Unidos e na ndia, comparando-os com a minha experin-cia de pessoa socializada no Brasil. Mas na verdade, foi a primeira surpresa em Rio Paranaba nos idos de 1980, quanto pouca importncia da carteira de identidade que, junto aos ensinamentos de Mauss, Durkheim, Dumont e Lvi-Strauss me zeram retornar s questes como a noo de pessoa (Mauss), o papel dos amuletos (Durkheim), a ideologia da individualidade (Dumont) e o fundamento das classi caes (Lvi-Strauss). Consciente ou inconsciente-mente, eles produziram a surpresa.

    O tema dos documentos me fez ciente de que estava deixando para trs em de nitivo as divises clssicas da nossa cosmologia ocidental: cincia, religio, poltica, famlia, etc. Estava, na verdade, olhando a poltica nos in-terstcios, nas brechas entre o que concebemos como poltica designada no senso comum e na academia (as ideias de Estado-nao, cidadania, pblico e privado, partidos polticos) e o que so simples medidas administrativas concebidas para regular a vida cotidiana. Este tem sido meu principal tema no projeto Antropologia da Poltica.15

    14 Ver Peirano (2011). Esta anlise do evento que resultou na priso de Henry Gates Junior, professor da Universidade de Harvard, contempla os trs mecanismos revelados por Charles Peirce.

    15 Peo emprestada a formulao dos interstcios da poltica de Groebner (2007, p. 257). O proje-to Antropologia da Poltica est abrigado no Ncleo de Antropologia da Poltica (NuAP), sediado no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ver www.nuap.etc.br.

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    Concluo

    Etngrafos fomos/somos vidos em conhecer o mundo em que vivemos, nunca nos conformamos com prede nies, estamos sempre dispostos a nos expor ao imprevisvel, a questionar certezas e verdades estabelecidas e a nos vulnerar por novas surpresas. Repito, se aqueles que nos antecederam privi-legiaram a explorao no duplo sentido do termo do extico, hoje reava-liamos e ampliamos o universo pesquisado com o propsito de expandir o empreendimento terico/etnogr co, contribuindo para desvendar novos ca-minhos que nos ajudem a entender o mundo em que vivemos.

    O contexto social em que produzimos certamente estabelece os par-metros dentro dos quais maior ou menor validade reconhecida, mas no a determina:

    Os homens podem formular o seu conhecimento de acordo com o que perce-bem como seus interesses imediatos, mas tambm podem formular o que perce-bem como seus interesses imediatos de acordo com o seu conhecimento. (Elias, 1971, p. 366, traduo minha).

    A emergncia de novas pesquisas, sendo uma constante, deve nos levar a uma igualmente constante recomposio da antropologia, de quem somos, e do mundo como o entendemos. Se essa lio da antropologia for mais par-tilhada, teremos menos certezas, mais dvidas e, com sorte, mais liberdade.

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