PEDAGOGIAS DO MEDO DO OUTRO: MICROFASCISMOS, O … · como nos aponta Bauman (2008), no período...
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PEDAGOGIAS DO MEDO DO OUTRO: MICROFASCISMOS, O MAL E O MEDO
DA PERDA DO AMOR
Laerte Ferraz da Silva1
Aaron e Daryl observam o cavalo Buttons pastando em meio a uma clareira na floresta Cena do 13º episódio (Forget) da 5º temporada
Forget (esqueça) é o título do 13º episódio, da 5º Temporada, da série de TV The
Walking Dead. O nome deste capítulo, assim como o do anterior e dos três posteriores, desta
Temporada, está inspirado em frase do escritor estadunidense William Cuthbert Faulkner2,
que é citada pelo personagem Dale, no 4º episódio da 1º temporada, quando Dale comenta
um episódio da 1ª temporada em que um pai deu a seu filho um relógio que estava em sua
família há muitas gerações. Ele disse: “eu te dou o mausoléu de toda esperança e desejo,
que não irá se encaixar às suas necessidades pessoais melhor do que às minhas ou às do
meu pai, antes de mim. Eu dou isso a você não para que você possa lembrar3 do tempo,
1Autor: Mestrando do curso de Mestrado em Educação com ênfase em Estudos Culturais - PPGEDU/ULBRA – Bolsista CAPES/CNPq –
Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade Luterana do Brasil (2006), Pós-graduação no curso de Especialização
em Patrimônio Cultural e Identidades (2010) pela Universidade Luterana do Brasil. Atualmente é professor de História na rede de ensino
público estadual do Rio Grande do Sul e mestrando no curso de Mestrado em Educação com ênfase em Estudos Culturais na universidade
Luterana do Brasil. Email: [email protected] 2 William Cuthbert Faulkner (New Albany, 25 de setembro de 1897 — Byhalia, 6 de julho de 1962) é considerado um dos maiores escritores
estadunidenses do século XX. Recebeu o Nobel de Literatura de 1949. Posteriormente, ganhou o National Book Awards em 1951, por Collected
Stories e em 1955, pelo romance Uma Fábula. Foi vencedor de dois prémios Pulitzer de Ficção, o primeiro em 1955 por Uma Fábula e o segundo em 1962 por Os Desgarrados. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/William_Faulkner, acessado em 31/07/2016. 3 Título do 12º episódio da série de TV The Walking Dead, “Remember” (Lembre-se) The Walking Dead, Remember, 5º Temporada, ep.12.
AMC, 01 de março, 2015, dirigido por Greg Nicotero.
mas para que possa esquecê-lo4 por um momento agora e, em seguida, não gastar5 todo o
seu fôlego tentando6 conquista-lo7”8.
Neste episódio, o personagem Rick e seu grupo estavam se adaptando com dificuldade
ao ambiente de Alexandria, (especialmente os personagens Sasha e Daryl), decorrendo
disso, o título do referido episódio, que registra que é preciso “esquecer”, pelo menos por
algum tempo, a realidade do mundo apocalíptico, assim como as experiências e os traumas
vivenciados durante o período em que esses sobreviventes se submeteram e realizaram
atrocidades na luta pela sobrevivência.
Como se pode ver ao longo do episódio os personagens Daryl e Aaron são instados a
refletir sobre alguns dilemas sociais relacionados às relações humanas que incluem exclusão
e tolerância. Antes do apocalipse zumbi, o personagem Daryl sempre se sentiu excluído
pela sociedade por ser alternativo, “desleixado”, autossuficiente e antissocial. Após o surto
epidêmico, a comunidade de Alexandria é a que mais se aproxima da sociedade
culturalmente excludente na qual ele nasceu e cresceu. O personagem Aaron, assim como
Daryl, também se sentia discriminado em função de sua orientação sexual e de seu
relacionamento com Eric. Portanto, os dois personagens têm em comum o dilema da
exclusão, embora por motivos diferentes, do que decorre seus medos relacionados à
discriminação e supressão de suas liberdades individuais. Além disso, o cavalo (Buttons),
perseguido pelos dois personagens da cena, assim como seu derradeiro destino podem ser
entendidos como uma metáfora do sujeito que ainda não foi “domado” pela cultura
dominante, por isso, não suporta ser amarrado, estar preso ou ser controlado e em nome da
sua liberdade prefere optar pela fuga, mesmo que seja preciso enfrentar seus medos e
perigos do mundo (zumbis), mesmo que tenha que sacrificar a sua vida e que tal atitude
possa significar a sua morte.
Ao longo da série The Walking Dead fica claro que a principal ameaça para a
sobrevivência das pessoas não é a epidemia ou os zumbis, mas o “outro”, “ o diferente”,
que é sempre marcado como imprevisível, frio, calculista, dissimulado, que não mede
4 Título do 13º episódio da série de TV The Walking Dead, “Forget” (Esqueça). The Walking Dead, Forget, 5º Temporada, ep.13. AMC, 08 de
março, 2015, dirigido por David Boyd. 5 Título do 14º episódio da série de TV The Walking Dead “Spend” (Gastar). The Walking Dead, Spend, 5º Temporada, ep.14. AMC, 15 de março, 2015, dirigido por Jennifer Lynch. 6 Título do 15º episódio da série de TV The Walking Dead “Try” (Tentar). The Walking Dead, Try, 5º Temporada, ep.15. AMC, 22 de março,
2015, dirigido por Michael Satrazemis. 7 Título do 16º episódio da série de TV The Walking Dead, “Conquer’ (Conquistar). The Walking Dead, Conquer, 5º Temporada, ep.16. AMC,
30 de março, 2015, dirigido por Greg Nicotero. 8 The Walking Dead, Vatos, 1º Temporada, ep.04. AMC, 21 de novembro, 2010, dirigido por Johan Renck.
esforços para atingir seus objetivos. A ausência da regularização, normatização e controle
exercidos pelas leis e pelo Estado passam a caracterizar o mundo apocalíptico,
potencializando os medos e os dilemas sociais, assim como a faceta mais perversa da
humanidade. Assim, a série expõe uma humanidade em crise, ao mesmo tempo em que
aponta para como os anseios e mazelas sociais instaurados são decorrentes de ações
promovidas pelos próprios seres humanos – a destruição do Estado decorre da disseminação
do apocalipse zumbi, que instaura o medo do contágio e da deflagração sempre eminente
da doença, mas, também, neste quadro os humanos se tornam capazes de ações atrozes.
Disso decorre o medo que sentem os grupos sobreviventes de agregarem “novos” sujeitos
a seus “bandos”, principalmente quando esses grupos conseguiram se estabelecer em locais
mais estáveis, fortificados e relativamente protegidos e seguros. Nesses casos, a formação
gregária começa novamente a envolver o estabelecimento de “novas” normas
caracterizando-se essas pelo seu fechamento a novos integrantes.
Entre esses grupos há uma comunidade canibal (a comunidade em que vive o
personagem Gareth), que se aproxima de outras pessoas apenas para utilizá-las como
alimento, ou agrupamentos como a comunidade de Alexandria, em que vivem os heróis da
série que antes de receberem um novo habitante indaga, por exemplo, ao recém-chegado:
Quantos zumbis você matou? Quantas pessoas você matou? E por quê? 9
Contudo, mesmo tendo conseguido inserir-se na comunidade, os personagens Daryl,
Aaron e Buttons nela são vistos como “um outro”, um estranho, um invasor, “um anormal”,
enfim, eles representam aqueles que estão fora dos padrões da cultura que se tornara
dominante naquela comunidade e que, portanto, poderiam se configurar como uma ameaça
à ordem e ao controle do grupo. Tal tipo de temor, como assinalou Zygmunt Bauman
(2008), decorre da necessidade de “compreensão [...] e da capacidade de manejo. Assim, o
que não somos capazes de administrar, o que nos é “desconhecido”, torna-se assustador.
Como afirmou o mesmo autor (2008), o medo é o outro nome que damos à nossa
indefensabilidade” (p.125). Assim, o desconhecido, bem como quem estiver fora do alcance
e do controle dos integrantes do grupo que compartilha valores comuns, passa a ser
configurado como o “outro”. Nessa lógica, o diferente está mais próximo ao mal do que os
9 Durante o episódio de estreia (30 Days Without An Accident) da 4ª temporada de The Walking Dead, exibida no dia 13/10/2013, o personagem
Rick Grimes encontra uma mulher na floresta e lhe explica que ela e seu marido devem responder a essas perguntas antes de serem aceitos no grupo. No programa de entrevistas apresentado na TV após a exibição dos episódios da série, o ator Andrew Lincoln, que interpreta o
personagem Rick, ressaltou que respostas consideradas suspeitas ou dúbias a essas perguntas definiam a entrada na comunidade. Disponível
em http://www.thewalkingdead.com.br/the-walking-dead-4-temporada-tres-perguntas, acessado em 13/11/2016.
que estão integrados e sob controle do grupo dominante, tal como ressaltou Bauman (2008),
ao afirmar que “o medo e o mal são irmãos siameses” (ibid, p.74). Mas é difícil construir
uma definição precisa do que é o mal, pois, de acordo com Bauman (2008):
Tendemos a chamar de “mal” precisamente o tipo de iniquidade que não podemos
entender nem articular claramente, muito menos explicar sua presença de modo
totalmente satisfatório. Chamamos este tipo de iniquidade de “mal” pelo próprio fato
de ser ininteligível, inefável e inexplicável. O “mal” é aquilo que desafia e explode
essa inteligibilidade que torna o mundo suportável... (ibid., p.74).
O mal é incognoscível, incompreensível e irracional e sempre recorremos a ele para
tentar explicar o inexplicável. Mas para Freud (2011), o mal nem sempre é algo nocivo ou
perigoso ao ser humano, na realidade algo que é definido como “mal” só se torna mal pela
ação do próximo, ou seja, pela influência do outro, pois quem define o que é o mal e o que
é o bem são os integrantes dos grupos. A perda de alianças, o medo da perda do amor, tal
como indicou Freud (2011), conduziriam à prática do bem. Ao falar sobre como o ser
humano se sente dependente do outro, Freud (ibid.) assim se manifestou:
Podemos enxergá-lo [o humano] no desamparo e na dependência dos outros, e a
melhor designação para ele seria o medo da perda do amor, se perde o amor do outro,
do qual é dependente, deixa também de ser protegido contra os perigos diversos,
sobretudo expõe-se ao perigo de que esse alguém tão poderoso lhe demonstre a
superioridade em forma de castigo. Portanto, inicialmente o mal é aquilo devido ao
qual alguém é ameaçado com a perda do amor; por medo dessa perda é preciso evitá-
lo. Também por causa disso não importa se já fizemos o mal ou se ainda faremos; em
ambos os casos, o perigo só aparece quando a autoridade descobre a coisa, e ela se
comportaria do mesmo modo nos dois. Chamamos a esse estado de “má consciência”,
mas na realidade ele não merece esse nome, pois nesse estágio a consciência de culpa
não passa claramente de medo da perda do amor, medo “social” (Freud, 2011, p.70).
A má consciência é o medo da perda do amor do outro devido ao mal praticado pelo
sujeito, sendo a possibilidade de ser reconhecido como responsável por este mal que gera a
angústia e o medo denominados como “má consciência”. Portanto, o bem ou o mal, assim
como o seu reconhecimento, são construções culturais, sociais e históricas. Por exemplo,
como nos aponta Bauman (2008), no período medieval o mal existente no mundo era
relegado aos atos e pensamentos pecaminosos dos humanos, sendo, portanto, um problema
moral. Disso decorria tornar-se possível alcançar proteção contra o mal através da oração,
sendo, portanto, o arrependimento e a aflição os caminhos corretos a seguir. O mal também
poderia ser enfrentado e vencido por meio da punição. Já na modernidade, o mal passou a
ser atribuído a catástrofes naturais e às falhas humanas, que poderiam ser controladas
através da ciência e tecnologia, com muito estudo, esforço e dedicação. Mas quase três
séculos depois do auge do pensamento moderno, a humanidade se deu conta, principalmente
após os horrores da Segunda Guerra Mundial, que, apesar de todos os esforços para
controlar a natureza e os seres humanos com o intuito de reduzir e livrar a sociedade do mal,
“a humanidade se vê enfrentando males produzidos pelo homem que são tão cruéis,
insensíveis, empedernidos, aleatórios e impossíveis de prever (muito menos cortar pela
raiz), quanto o foram, anteriormente, os terremotos, os incêndios, os maremotos, etc”.
Assim, como destacou Bauman (2008, p.25) “os males produzidos por seres humanos
parecem agora tão inesperados quanto seus predecessores/companheiros/sucessores
naturais”.
É inegável que os grandes avanços científicos e tecnológicos ocorridos durante o século
XX, frente ao enorme poder destrutivo construído pela humanidade, não deram conta de
realizar um dos grandes sonhos iluministas - o de tornar o mundo mais seguro e previsível.
Somada a essa desilusão em relação à benevolência da ciência, está a revelação da face
humana, que se mostrou inescrupulosa, manipuladora, dissimulada e insensível, não
medindo esforços, nem limites ao produzir o horror para atingir seus objetivos, o que é
agravado, ainda mais, pela conscientização de que o inimigo é imprevisível e pela
impossibilidade de identificá-lo, pois esse pode ser nenhum, ou qualquer um, ao mesmo
tempo. Bauman (2008) assim se posiciona sobre isso:
Antes de Auschwitz (ou do Gulag, ou de Hiroshima...), não sabíamos como podia ser
espantosa e apavorante a variedade de mal produzida pelos seres humanos, (...). O que
também não sabíamos naquele “antes” agora distante e difícil de imaginar (...) é que
a lógica da vida moderna expande radicalmente, e numa escala sem precedentes, a
área da captação para o recrutamento de potenciais malfeitores. A lição mais
horripilante de Auschwitz, do Gulag, de Hiroshima é que, ao contrário da visão que
normalmente se sustenta, embora sempre de maneira tendenciosa, nem só os monstros
cometem crimes monstruosos, e se apenas monstros o fizessem, os crimes mais
monstruosos e horripilantes de que temos notícia não teriam acontecido (ibid, p.88-
89).
Assim, a lógica da modernidade, além de não controlar ou de não poder evitar o mal,
gerou, estimulou e potencializou a capacidade destrutiva dos malfeitores e produziu um
desencantamento em relação à humanidade por parte da própria humanidade. E foi essa
impotência em prever, sistematizar ou reconhecer a maldade dos indivíduos, que acabou
desencadeando o que Bauman (2008) chama de “crise de confiança”:
A consequência mais importante e comprovadamente mais terrível dessa descoberta
é a atual crise de confiança. A confiança está em dificuldades no momento em que
tomamos conhecimento de que o mal pode estar oculto em qualquer lugar, que ele não
se destaca na multidão, não porta marcas distintas nem carteira de identidade, e que
todos podem estar atualmente a seu serviço, ser seus reservistas em licença temporária
ou seus potenciais recrutas (ibid, p.91).
Assim, em “tempos líquidos” todos podem ser vítimas ou podem praticar o mal, basta
se apresentarem as “condições adequadas” para que o mal se manifeste. Por isso, não há
como apontar a capacidade de resistência de cada pessoa em aderir ao mal, quando for
necessário. Sendo assim, “o pressuposto de que todas as pessoas, sem exceção, se inclinam
a ser recrutadas para servir o mal parece ser uma aposta segura. Dessa forma, o sentimento
que se instaura, segundo Bauman, (2008), é de total vigilância e atenção: “Mantenha os
olhos bem abertos, sem jamais relaxar a vigilância (...) não confie em ninguém” (p.92).
Tais sensações foram acionadas na narrativa de The Walking Dead, na qual se encontram
inúmeras situações em que esta “crise de confiança” se manifesta em um mundo pós-
apocalíptico, no qual há escassez de água e alimentos, destruição do Estado, zumbis e um
surto epidêmico, etc.
Como já venho apontando, as relações entre os grupos de sobreviventes, especialmente
naquele em que passou a viver o personagem Rick, são bastante conflituosas e, na tentativa
de interação com outros indivíduos o que impera é a desconfiança, pois eles aprenderam a
não confiar em ninguém: ninguém confia em ninguém, pois o germe da ruína do grupo pode
estar presente no próximo indivíduo contatado ou até mesmo em algum integrante do
próprio bando. Como é mostrado, por exemplo, no 11º episódio da 5º temporada (The
Distance), quando o personagem Aaron entra em contato com Rick e seu grupo, pela
primeira vez, com o objetivo de convidá-los a morar em Alexandria, apesar de ele estar
sozinho, desarmado e de explicar suas intenções, inclusive mostrando fotos do local, não
aparentando nenhuma ameaça, ele é rendido, imobilizado e tratado como um inimigo
ameaçador, diante do olhar desconfiado de Rick e seus companheiros. Nessa ocasião, o
próprio Aaron diz: “Eu sei... Se eu fosse vocês também não iria, pelo menos até saberem no
quê estão se metendo”10. Assim, evidencia-se na situação dos bandos, que a narrativa da
série focaliza o que foi apontado por Bauman (2008):
Os “outros” (aqui entendidos como estranhos, anônimos, os sem face com que
cruzamos diariamente ou que giram em torno das grandes cidades) são fontes de uma
10 The Walking Dead, The Distance, 5º Temporada, ep.11. AMC, 22 de fevereiro, 2015, dirigido por Larysa Kondracki.
ameaça vaga e difusa, em vez de proporcionarem um sentimento de segurança e
garantia contra o perigo. Não se espera nenhuma solidariedade deles, bem como vê-
los também não a desperta – e há até o medo de se romper a camada de proteção
superficial da “desatenção civil” de Erving Goffman. Manter-se a distância parece a
única forma razoável de proceder (ibid, p.92).
Caberia dizer, ainda, que a narrativa contém representações que maximizam
problemáticas indicadas como presentes nos tempos atuais, no qual homens e mulheres
estariam construindo bem mais parcerias internéticas, por vezes bastante frágeis, para
protegerem-se de um mal não localizado especificamente em um sujeito ou instituição que
estaria sempre pacientemente aguardando uma chance para se apresentar. Como temos
pressa, não há tempo para que se descubra até que ponto as suspeitas se justificam e muito
menos para que possamos deter o mal quando esse emerge de seu esconderijo. E são
sentimentos dessa ordem, que têm permeado as relações entre os sujeitos e nos levado a
educar para o medo, tal como indicou Lima (2009).
Disse ele (ibid):
Educar para o medo é por o signo da eterna, boa e inatingível origem. É tornar
experiência pela repetição sem diferença e pelo fundamento sem diferente. E educar
para o medo é educar para o fundamentalismo, para a repetição do mesmo que se
apresenta como o que basta. Mas paradoxalmente o fundamentalismo é uma
manifestação do medo, pois o apego a doutrinas simplistas e simplificadoras
manifesta uma segurança que apazigua a perda da identidade pela ameaça do diferente
e do estranho (ibid, p.15-16).
A obsessão por segurança presente na civilização contemporânea tem se direcionado a
dar sustentação àquilo que é tradicional, conservador e imutável – pois esses são vistos
como pilares de uma ordem que não deve ser abalada. Disso decorre que, para afastar-se o
medo, se recuse a diferença e o diferente. Cabe frisar, no entanto, que esse é uma modo
bastante simplificador de exercer controle social. Apesar de desde a antiguidade ser
cultivada a frase “ama teu próximo como a ti mesmo”, parece ser irracional amar o outro,
especialmente se ele for desconhecido, pois o amor é algo tão precioso que está imbuído
por responsabilidade, pois ele impõe deveres e sacrifícios, como Freud (2011) salientou:
Quando amo a outrem este deve merecê-lo de algum modo. (...) Ele o merece, se em
importantes aspectos se assemelha tanto a mim que posso amar a mim mesmo nele;
ele o merece, se é tão mais perfeito do que eu que posso amar nele o meu ideal de
mim; eu tenho que amá-lo se ele é filho do meu amigo, pois a dor do amigo, se algo
lhe acontece ao filho, seria também minha dor, eu teria de compartilhá-la. Mas se ele
me é desconhecido e não me pode atrair por nenhum valor próprio, nenhuma
significação que tenha adquirido em minha vida emocional, dificilmente o amarei. E
estaria sendo injusto se o fizesse, pois meu amor é estimado como um privilegio pelos
meus; seria injusto para com eles equipará-los a desconhecidos. Mas se devo amá-lo
com esse amor universal, apenas porque também vive nesta Terra, como um inseto,
uma minhoca, uma serpente, então receio que uma parte mínima de amor lhe caberá
– sem dúvida alguma menos do que, pelo julgamento da razão, estou autorizado a
guardar para mim mesmo. A que vem um preceito tão enunciado, se o seu
cumprimento não pode ser racionalmente indicado? (ibid, p.54-55).
Além da aparente irracionalidade que envolve o amor incondicional ao próximo, há
outros aspectos levados em conta, pois o desconhecido, aquele que representa o outro,
também é humano e, por isso, carrega consigo algo que é comum e familiar a qualquer
indivíduo. Nessa forma de pensar, se considera que o estigma da violência, assim como o
mal, está presente no íntimo humano, podendo ser desencadeado a qualquer momento. E
essa possibilidade eminente de liberação da violência é um dos maiores medos sociais, ao
mesmo tempo em que a familiaridade com a mesma aterroriza a sociedade, como Gallo
(2009) indicou:
Podemos dizer que estranhamos aquilo que nos é familiar, aquilo que já foi parte de
nós ou de que já fizemos parte. Não estranhamos o que nos é totalmente alheio, mas
aquilo que nos é estranhamente familiar. Daí tememos essa violência da qual fazemos
parte e que nos constitui como humanos. Tanto tememos aquilo que está próximo, que
nos é familiar, que tudo fazemos para afastá-lo de nós, para torna-lo estranho,
estrangeiro, outro. (...) Tememos o horror com todas as nossas forças, pois em nosso
íntimo sabemo-nos capazes de cometê-lo a qualquer momento. Em outras palavras,
aquilo que tememos no outro é o outro de nós mesmos (ibid, p.21-22).
Assim, precisamos proteger nossos semelhantes não apenas do outro, mas também de si
próprios, de nós mesmos, e das mazelas sociais criadas pelo homem, disso decorrendo que,
tal como indicou Sílvio Gallo (2009), busquemos enclausurar os jovens desde a mais tenra
infância em instituições de ensino, exercitando uma espécie de “microfascismo”, que faz,
segundo o mesmo autor (ibid), “que nos afastemos de nós e que busquemos afastar nossas
crianças do mundo e delas mesmas” (ibid, p.22).
Segundo Gallo (2009), “o homem é um animal segmentário e o vivido é segmentarizado
espacial e socialmente” (ibid, p.24); assim, o homem com o intuito de se proteger e de se
organizar para tornar a vida em sociedade algo possível, tem como hábito dividir, separar,
estratificar e segregar principalmente no âmbito social, econômico ou cultural.
Como o mesmo autor (ibid) salientou, a vida social se encaixa em inúmeras divisões e
subdivisões, sendo três as principais dimensões de segmentarização: a binária, que opera
como as oposições entre sexos, adultos e crianças, classes sociais, etc; a circular, que diz
respeito aos círculos sociais, à casa, bairro, cidade, país, etc; e a linear que se refere à
passagem de processos que envolvem, por exemplo, a transferência de responsabilidades
da família para a escola, da escola para o exército, da escola para atividade profissional, etc.
Nessas segmentarizações instauram-se as políticas das relações cotidianas (micropolíticas),
sendo que mesmo com a criação do Estado, com uma perspectiva macropolítica, as
micropolíticas não deixaram de existir, passando ambas a conviver e a “atravessar” os
sujeitos ao mesmo tempo. Gallo (2009) diz que a macropolítica é um segmento molar, duro
e tem relação com a classe, enquanto a micropolítica é um segmento molecular e flexível
que dialoga com a massa. Ele considera ser o fascismo11 um fenômeno de massa que se
desenvolve sob a forma de um microfacismo nas mais simples e corriqueiras relações
sociais cotidianas. Diz ele (ibid):
Fenômeno de massa, molecular, o fascismo estende rizomaticamente seus tentáculos
pela teia social. São os microfascismos, os fascismos do cotidiano, aqueles
cristalizados nas relações de casal, nas relações entre irmãos, entre pais e filhos, nos
locais de trabalho, nas relações pedagógicas, que tornam o fascismo um fenômeno
socialmente forte. São os fascismos moleculares que puderam, em alguns momentos
históricos, fazer emergir um fascismo molar, um Estado fascista (Gallo, 2009, p.27).
É interessante apontar para estas considerações de Gallo (2009), tendo em vista que ele
focaliza uma dimensão das interações sociais desenvolvidas no dia-dia que é perpassada
pelo desejo de reprimir a “anormalidade”, o descentramento, o diferente, bem como de
apontar para a ameaça do abandono do tradicional e para o medo do descontrole, que está
encoberto pelo véu da moralidade, da pureza e do controle social presentes, inclusive, nos
próprios atos daqueles que criticam ou se opõem ao fascismo molar. E práticas como essa
estão presentes no excerto que usei para iniciar esta seção, bem como em muitos outros
momentos da narrativa de The Walking Dead, no qual se pode ver que os próprios
moradores de Alexandria, que lutam para construir uma comunidade assentada em uma
macropolítica embasada na justiça, igualdade e solidariedade, mostram-se preconceituosos
ao se relacionarem com os personagens Daryl e Aaron: o motoqueiro representa o
descontrole, o desencaixe em relação aos valores tradicionais familiares e da sociedade em
11 É difícil definir o conceito de fascismo. Na historiografia “dá-se o nome de fascismo, ou nazi-fascismo, ao fenômeno histórico específico ocorrido no mundo europeu entre 1922 e 1945, o chamado período entre-guerras, caracterizado pela ascensão de regimes politicos totálitários
que se opuseram, ao mesmo tempo, às democracias liberais e ao regime soviético (também este de caráter totalitário) e cuja repercussão atingiu
numerosas Nações que adotaram regimes semelhantes” (Silva & Silva, 2005, p.141). Para o historiador Eric Hobsbawm no livro a Era dos Extremos, “exclui todas as formas não-europeias do fenômeno, como o caudilhismo latino-americano (...) os fascismos propriamente ditos,
nas formas italiana e alemã, cujas características essenciais seriam a mobilização das massas de baixo para cima, sua utilização como rastro de
poder, seu papel de contra-revolucionários, a ênfase em valores tradicionais em contraposição a modernidade e a recriação do passado e invenção de tradições. Uma das principais características do Estado fascista seria, assim, sua associação com a sociedade de massas” (ibid,
p.141-142), mas o fascismo ao qual Silvio Gallo (2009) se refere se apropria do termo e vai além do fascismo histórico de Hitler e Mussolini,
é o “fascismo que habita todos nós” (ibid, p.32-33).
(re)construção; já o recrutador representa o desvirtuamento da sexualidade tradicional. Ou
seja, mesmo convivendo em meio ao caos e com a inexistência do Estado, destruído pelo
apocalipse zumbi, os habitantes de Alexandria mantêm os receios que parecem perpetuar
preconceitos disseminados nas sociedades pré-apocalipse, tal como aponta Gallo (2009), ao
focalizar outras situações. Disse ele (ibid):
É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos
somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos com moléculas pessoais e
coletivas. (...) Em que medida não desejamos a repressão, não reprimimos o desejo do
novo, a curiosidade pelo diferente, em nome de amor e proteção (ibid, p.27).
Gallo (ibid) nos mostra, então, o quanto certas formas de aderir à repressão se integram
a práticas sociais corriqueiras - o fenômeno do fascismo “aloja-se no interior do Estado,
utiliza-se dele sem, no entanto, tornar-se estritamente estatal, nisso reside seu poder e sua
força” (ibid, p.28). Assim, para Gallo (2009), “há no fascismo um niilismo realizado. E essa
forma ética e política de fundamentalismo, que opera tanto em escala molecular, quanto em
escala molar depende da realização da negação dos pontos de apoio, dos fundamentos”
(ibid, p.30). Ou seja, o niilismo resultante da “morte de Deus” (metáfora de Nietzsche),
ocasionado pelo iluminismo e o cientificismo da modernidade, deixou o homem
desamparado em relação a sua crença espiritual, desencadeando uma crise nos alicerces da
fé, do que decorreria “a falta de ter em que se apoiar, a falta de fundamentos” (ibid, p.29)
Como Gallo (2009) afirmou ao referir-se à escola:
Frente a uma situação de errância em que não encontramos fundamentos para nossas
vidas, nos agarramos a qualquer ponto de apoio, por mais frágil que seja, como um
náufrago agarra-se a um pedaço de madeira, de modo a sentir um pouco de segurança.
(...) Frente à violência do mundo, frente ao desmanche das certezas, frente a toda essa
negação, no campo dos valores, no campo do conhecimento, no campo das crenças,
somos dominados pelo desejo de proteger os estudantes, de construir para eles uma
redoma de segurança, dentro da qual possam viver felizes, sem ser atingidos pelas
mazelas e pelos horrores do mundo. Desejo nobre, esse nosso, mas qual seu preço? A
morte do desejo do outro, a morte da liberdade do aluno, antes mesmo de seu
nascimento, o tolhimento de suas experiências. E tudo isso em nome de um
fundamentalismo: frente a demolição das certezas, construímos uma certeza
pedagógica, um fundamentalismo pedagógico que permita um processo educativo
“seguro” (ibid, p.30-31).
Busco estender as considerações feitas por Gallo (2009) a outras relações humanas e
sociais, buscando vê-las, também, nas interações narradas nos episódios de The Walking Dead.
Como Gallo (ibid) indicou, o ser humano com o intuito de proteger seus semelhantes das
mazelas do mundo acaba gerando exclusões, assim como a busca por segurança por vezes
motiva a discriminação e retroalimenta o preconceito, afirmando ainda o autor (ibid) existir a
possibilidade de criação de linhas de fuga que permitam a construção de “uma vida não
fascista”, tal como ele registra ao afirmar que:
Contra uma situação de apagamento das possibilidades, na emergência de um
fundamentalismo que brota do niilismo absoluto, podemos resistir e criar. (...)
podemos ser elementos de um estriamento de natureza fascista, (...) mas podemos
também ser focos de resistência, pontos de deslocamento, possibilidades de fuga. (...)
E, se o fascismo lida com os mecanismos de desejo fazendo-nos desejar o não desejar,
e incutindo o medo em relação ao outro, ao estranho, podemos ver nos
fundamentalismos de toda ordem – dos religiosos aos “pedagógicos” – uma forma
aprimorada de microfascismo, com toda sua potência e em tudo aquilo que nos deixa
impotentes. Nada mais atual, portanto, do que opormos resistências localizadas, do
que traçarmos linhas de fuga (ibid, p.32-33).
É importante registrar que narrativas impregnadas das visões comentadas por Gallo
(ibid) circulam em diferenciadas produções culturais. Suas considerações apontam,
igualmente, para aspectos que focalizei ao analisar esta série que, de tantas formas,
potencializa visões, temores, práticas, etc, assumidas no mundo contemporâneo.
REFERÊNCIAS:
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 12º ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2015.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: CIA das Letras, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
BAUMAN, Zygmunt. O Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
CAMOZZATO, Viviane Castro; COSTA, Marisa Vorraber. Da pedagogia como arte às artes
da pedagogia. Pro-Posições [online], vol.24, n3, pp. 161-182, 2013.
CAMOZZATO, Viviane Castro. Pedagogias do Presente. Educação e Realidade. v.39, n.2,
2014.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. 1º ed. São Paulo: Penguin Classics &
Companhia das Letras, 2011.
GALLO, Silvio. A Vila: Microfascismos, Fundamentalismo e Educação. In: VEIGA-NETO
& GALLO, Alfredo, Silvio (Orgs.) Fundamentalismo & Educação. Belo Horizonte, Autêntica
Editora, 2009, p. 17-35.
LIMA, Walter Matias. A Vila: O Medo nem sempre Ensandece – Uma pequena
Apresentação. In: VEIGA-NETO & GALLO, Alfredo, Silvio (Orgs.) Fundamentalismo &
Educação. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2009, p. 13-16.