Património Intervenção e Salvaguarda
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Património - Intervenção e Salvaguarda
Autor Hélder Tiago Monteiro Cardoso
DisciplinaHistória do Patrimínio Edificado
DataFevereiro 2006
CapaPousada de Santa Maria do Bouro
FotografiaBenedikt Saxler
Índice
Introdução
Património
Intervenção e Salvaguarda do património
Antecedentes das normas internacionais
Teorias de Intervenção
As principais Cartas Internacionais
Bibliografia
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3
5
7
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Introdução
Elaborado no âmbito da disciplina de história do Património edificado, no seio do Mes-
trado de Reabilitação do Património Edificado, este trabalho ambiciona abordar a questão
do Património, desde a sua definição, critérios de intervenção e a necessidade da sua
salvaguarda.
Inicialmente procurou-se definir o conceito abstracto de património, a sua importância,
o porquê de salvaguardá-lo, centrando-se essencialmente na referência antropomórfica
da memória e identidade como factores determinantes para a necessidade da sua salva-
guarda.
Como proteger, intervir, quais os critérios, que património deve ser salvaguardados.
Foram algumas das questões que procurei reflectir, compreendendo que no decor-
rer da história as respostas são voláteis. Desta forma enumeraram-se os diferentes
acontecimentos relacionados com o património que história retrata. As diferentes cor-
rentes de pensamento, muitas vezes antagónicas, permitiram compreender a evolução
dos critérios de intervenção, mesmo quando a intervenção é a não intervenção. No tér-
mino, reflecte-se sobre as cartas, bases doutrinárias de pensamento, não contendo em
si receitas, mas sim possibilidades de caminhos, pois em recuperação “considera-se que
cada caso é um caso, e que a teoria de intervenção nascerá de cada circunstância nunca
generalizável – circunstância de que fazem parte não só a expressão da individualidade
de cada autor, como a obrigação ética de um rigoroso e exaustivo reconhecimento históri-
co e arqueológico do edifício a transforma.”1
1 - Alexandre Alves CostaFig. 1 - Palácio do Freixo . Recuperação Fernando e Bernardo Távora
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Património
Património é qualidade e memória. Sem qualidade, intrínseca ou circunstancial, não
haverá fundamento para que um testemunho – memória – tenha de ser conservado.
Toda a comunidade humana, qualquer que ela seja, sempre teve e, antropologicamente
terá deter as suas referências de memória, isto é, os seus “monumentos”, mesmo que
estes sejam orais. Este seu património é a garantia da sua identidade.
Todas as comunidades têm, pois, os seus monumentos que são como âncoras onde se
afirma a memória de pessoas e a prosápia das comunidades, que são os indicadores
da sua classificação. Eles dão segurança às comunidades, servem-lhe de referência,
ajudam a axializar os seus itinerários e incitam a perspectivar o futuro.
Tanto assim é que muitas revoltas, mais fundamentalistas, destruíram os monumen-
tos porque lhes pareciam consagrar os tempos anteriores e dificultam os novos e dife-
rentes rumos pretendidos para o futuro. Mas fabricam de imediato os signos das suas
referências.
À semelhança das pessoas que, se não tiverem os seus sítios de memória, são/estão
alienados, têm uma vida sem sentido (o seu estatuto, a prosápia, a afirmação e o seu lugar
social), também as comunidades, como tais, necessitam de ancoradouros de memória,
de sítios, de valores e de padrões, isto é, de um património que seja o fundamento da sua
consciência e lhes garanta a perspectiva do futuro.
Como já se sentia outrora, o património não pode ser olhado apenas como uma reserva
e, menos ainda, como recordação ou nostalgia do passado mas, antes, como algo que
faz parte do nosso presente.
O património, para o ser, tem de estar, de algum modo, presente e vivo.
O património é, como tal, uma herança, um bem de valor indiscutível mas, na prática
todos sentimos um grande número de contradições a seu respeito.
Classificar para quê? O que se deverá classificar?
É importante classificar. O património, como tal, necessita de ser assumido. A tomada de
consciência sobre o valor patrimonial é fundamental e a sua “classificação legal” é uma
das vias para que isto aconteça.
Classificar bem é uma contínua chamada de atenção para a reflexão.
O património tem de ser aceite, estimado e não apenas protegido. Ele não é uma simples
reserva, mas deverá ser uma abraçável aceitação.
Se a classificação patrimonial, culturalmente, é benéfica sua multiplicação pode criar
estagnação. Tal prática poderia ser até contrária à qualidade de vida e ao dinamismo da
sociedade. Todas as gerações têm o direito a fazer de novo, a criar, não podend a história
matar a vida e o progresso.
O património é uma herança, é a “memória” da comunidade e é o que lhe padroniza a
qualidade de vida.
A ligação do património à comunidade é uma radicalidade, mas só o é, verdadeiramente,
quando esta o assume e toma consciência dele.
Fig. 2 - Canedo perto de Ribeira de Pena
Intervenção e Salvaguarda do património
Antecedentes das normas internacionais
A composição de normas internacionais sobre a salvaguarda do património arquitectónico
é um fenómeno recente na história da universal. No final do século XIX e princípio do
século XX, ocorreram tentativas ocasionais para estabelecer critérios de protecção de
monumentos, porém só após o término da 1.ª Guerra Mundial (1914-18) é que desponta-
ram as primeiras normas internacionais consagradas especificamente à salvaguarda do
património.
Ao longo da história universal, foram elaboradas diversas normas sobre a protecção
do património, contudo, estas eram de eficácia reduzida e o território abrangido era
manifestamente limitado. As primeiras normas conhecidas surgem na Antiguidade, no-
meadamente o decreto de cerca de 44 d.C. descoberto na cidade de Herculano e o Édipo
de 17 de Julho de 389, dos Imperadores Valentiniano, Teodósio e Arcádio.
Durante Idade Média o alcance da legislação continuava a ser restrito e ineficaz, podendo
referir-se, como exemplo o decreto promulgado pelo Senado de Roma em 1162, no qual
se protege a coluna de Trajano.
No Renascimento assiste-se ao progressivo retomar da preocupação legisladora, de
salientar as bulas e normas publicadas pelos diferentes Papas. Estes regulamentos visa-
vam a reparação do espaço público e a protecção do património edificado, não permitindo
a sua destruição e pilhagem para a edificação de novas construções. Por outro lado
resultante do crescente interesse pela antiguidade clássica, muitos visitantes afluem a
Roma, com o interesse de estudar e adquirir peças da antiguidade. Este facto originou a
publicação de decretos proibindo a exportação de antiguidades.
No final do século XVI e princípio do século XVIII, diversos países elaboram leis no
domínio do património, reflectindo o empenho do Estado no aprofundamento do conheci-
mento da História das respectivas nações.
Antiguidade
Idade Média
Renascença
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Durante a Revolução Francesa (1789-95), resultante das numerosas e violentas
destruições que o país assistia, consolidam-se uma série de princípios orientadores de
políticas de salvaguarda do património. Os monumentos passam a ser património cultural
da nação, sendo-lhes reconhecido valor educativo, competindo a toda a nação a sua
salvaguarda. A partir desta época cada estado irá progressivamente criar organismos que
inventariem sistematicamente os bens móveis e imóveis e sua classificação
No decorrer do século XIX e até ao eclodir da 1.ª Guerra Mundial a maioria dos países
europeus irá publicar legislação e criar organismos responsáveis pela protecção do seu
património arquitectónico. O Papa Pio VII promulga o Édito de 1 de Outubro de 1802, que
é considerado o mais completo instrumento legal em matéria de antiguidade de belas-
artes até então redigido.
Paralelamente, decorrem, em cada vez maior número, intervenções de restauro de monu-
mentos em diversos países. Com base na experiência prática destes restauros, começam
a definir-se as várias correntes teóricas de intervenção em monumentos, cujos princípios
irão influenciar decisivamente o conteúdo das normas internacionais adoptadas a partir
de 1930.
No próximo capítulo será aprofundado o conteúdo destas correntes teóricas,
podendo desde já enumerar cronologicamente as correntes e os seus expoentes máxi-
mos: o restauro arqueológico (Giuseppe Camporesi); o restauro estilístico (Viollet le
Duc); o restauro romântico (Jonh Ruskin); o restauro histórico (Luca Beltrami); o restauro
moderno (Camillo Boito); o restauro científico (Gustavo Giovannoni) e o restauro crítico
(Roberto Pane).
Fig. 3 - Forum de Trajano, Roma, Itália
Revolução Francesa
Século XIX até 1.ª Guerra Mundial
Intervenção e Salvaguarda do património
Teorias de Intervenção
A destruição dos edifícios antigos e as intenções para os proteger, não é um produto dos
séculos XIX e XX.
Na antiguidade e Idade Média as questões da salvaguarda da herança cultural eram
temas abordados, e sobre os quais existiam diferentes regras de protecção, porém clara-
mente insuficientes e manifestamente limitadas no território.
No renascimento, começa-se a realizar estudos e análises dos monumentos clássicos
com o auxílio de escritos e desenhos, surgindo o que se pode considerar como a primei-
ra consciência arqueológica. Desta forma, fundamentada pela corrente do humanismo,
iniciada por poetas, filósofos, pintores, escultores e arquitectos, retoma-se o interesse
pelos edifícios da antiguidade. A descoberta, em 1415, dos escritos de Vitrúvio e a teoria
de Alberti, foram uma grande influência para a valorização da arquitectura clássica.
Porém, a renascença que se considerava fiel à antiguidade, foi na prática dos períodos
menos respeitosos dos monumentos do passado. Ao que Bruno Zevi diz: “O entusiasmo
pelos monumentos antigos não implicava o desejo de os conservar, eram amados porque
reflectiam o gosto artístico do momento. Eram parte do presente e como tal podiam ser
modificados, o mármore do coliseu usou-se para construir S. Pedro e sobre as ruínas do
teatro de Marcelo construí-se o palácio Savelli de Roma.”
O interesse sentimental e cultural pelos vestígios da antiguidade clássica, elevaram as
ruínas e monumentos gregos e romanos à categoria de exemplo de perfeição formal, nos
quais os arquitectos procuraram estabelecer as regras da composição. Contrariamente a
produção da idade média foi rejeitada, acentuando a sua rápida degradação.
A convicção de que a arte moderna era inquestionavelmente superior às anteriores,
gerou no período compreendido entre o barroco e o neoclássico a total transformação de
construções pré-romanas, romanas e góticas, proclamando estas profundas operações
de restauro. Noutras situações adoptaram um compromisso entre um restauro visando
devolver ao monumento o seu aspecto primitivo, e projectos que o melhoravam.
No século XVIII desenvolveu-se um gosto estético e intelectual pelas ruínas. Esta fase
de paixão pelos vestígios do passado associado ao desenvolvimento das escavações
arqueológicas, visando pôr a descoberto as riquezas do passado, atribuiu à ruína pro-
tagonismo, desempenhando um papel cenográfico.
Neste período desenvolve-se uma verdadeira consciência do valor artístico e histórico
dos monumentos, começando-se a implementar o tema da restauração como uma cienti-
fica (distinguindo as obras do passado com as do presente). A obras dos teóricos do neo-
clássico e do romantismo tiveram uma indiscutível importância na história da conservação
dos monumentos. As descobertas arqueológicas de Herculano (1711) e Pompeia (1748),
conjuntamente com as primeiras escavações da Vila Adriana e em Palatino promoveram
o interesse na vida e nos monumentos da antiguidade. A publicação e difusão dos trata-
dos, os achados arqueológicos, e a tomada de consciência do património artístico, intro-
duziram uma profunda alteração no início do século XIX, dando passos importantes para
a definição moderna de restauro. Os primeiros teóricos da ciência do restauro de monu-
mentos arquitectónicos expressaram-se em França e Inglaterra. Em Itália, realizaram de
forma pragmática, intervenções que respeitavam tanto o valor artístico como histórico.
Fig. 4 - Notre Dame de Paris, flecha criada por Viollet-le Duc
Antiguidade eIdade Média
Renascença
Século XVIII
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A distinção de materiais diferentes nas partes restauradas é um dos principais critérios de
intervenção desta corrente, da qual Giuseppe Valadier foi o seu expoente máximo. Alguns
dos trabalhos realizados dentro desta corrente são estritas anastiloses como por exemplo
a reconstrução do templo Nike na Acrópole de Atenas, demolido pelos turcos em 1687.
A consolidação do Coliseu de Roma e os primeiros trabalhos no Fórum Romano, foram
igualmente intervenções apoiadas nos critérios de intervenção desta teoria.
Impulsionado por Viollet-le-Duc, este restauro baseava-se em analogias e parentes-
cos tipológicos com outras obras, sendo a preocupação principal a unidade de estilo,
reconstruindo o ideal de um momento utópico.
Os resultados deste método eram paradoxais, consequentes do recuo da obra para um
momento da história do edifício inverosímil, sendo desta forma anti-histórico e utópico.
Viollet-le-Duc possuía um profundo conhecimento da história, das formas arquitectónicas
e dos sistemas construtivos da arquitectura medieval. Das suas intervenções de restauro
podem-se citar as igrejas de Santa Maria de Vezelay e Sainte Chapelle, e as catedrais
como Amiens, Chatres, EVreux e Notre Dame de Paris na qual alterou a sua silhueta e
colocou na sua fachada esculturas góticas retiradas de outros templos. As suas teorias
sobre a restauração estilística estão expressas no “Dictionnaire raisonné de l’architecture
française du XI au XVI siècle”
Em 1850 Viollet-le-Duc, iniciou a teoria de restauro utilizando novas técnicas e materi-
ais, pensando que desta forma poderia construir mais rapidamente, com custos mais
reduzidos e corrigindo erros estruturais. Algumas das suas teorias são criticáveis, como
defendem diferentes autores, porém, foram um êxito para revelar a história da construção
considerando-se um dos pioneiros da restauração moderna. Os seu princípios foram
tomados como axiomas durante todo o século XIX, prolongando-se em alguns países ao
século XX. Alguns dos seus sucessores levaram a sua teoria a extremos, exagerando nos
conceitos, ocasionando falsificações de documentos históricos não só em França como
em diferentes partes do Mundo.
Paralelamente ao desenvolvimento das teorias estilísticas de Viollet-le-Duc, iniciou-se em
Inglaterra a difusão de conceitos opostos, inspirados no movimento romântico. Para os
românticos qualquer restauro é uma falsificação, um meio de substituir o monumento por
um sósia artificial e sem expressão.
Jonh Ruskin foi um dos grandes impulsores desta forma de pensamento, para ele “…o
restauro é sempre uma mentira”, preferindo a sua morte.
“Há necessidade de destruição. Aceita isso, deite-se abaixo o edifício, ponham-se as
pedras a um canto, façam-se delas lastro ou cal, mas honestamente e não pondo uma
mentira no seu lugar”.1
A posição de Jonh Ruskin corresponde ao culto místico da natureza e da liberdade. O
monumento quando está em ruínas, escapa à sua imagem acabada para adquirir uma
figura infinita da natureza, e deve ter o direito a tornar-se fatalmente em pó. A ruína aos
olhos dos românticos é o estádio último e o mais exaltante de um monumento.
As teorias de Viollet-le-Duc e de Ruskin apesar de radicalmente opostas, foram impor-
tantes para a formação dos critérios do restauro moderno.
1 - Jonh RuskinFig. 5 - John Ruskin . View of MontreuxFig. 6 - John Ruskin . The Garden of San Miniato near Florence, 1845
Restauro arqueológico
Restauro estilístico
Restauro romântico
Considerado por alguns autores como o mais importante teórico do restauro moderno,
Camillo Boito busca uma dialéctica entre o antigo e o novo, a sua principal contribuição foi
o reconhecimento do duplo valor que o monumento arquitectónico tem como obra de arte
e documento histórico, ultrapassando as concepções de restauros anteriores – restauro
estilístico e romântico. O restauro histórico, sendo importante para o prelúdio de uma
nova concepção de monumento, como elemento essencial para a história dos costumes
e da civilização, a sua metodologia de intervenção era inoperante.
A actuação desta nova concepção de restauro assenta na conservação, sendo a
prioridade absoluta os trabalhos de consolidação e salvaguarda da antiguidade da obra.
A substituição de partes em falta ou deterioradas deve ser o acto final das intervenções
possíveis, não podendo alterar ou falsear a leitura do documento.
O reconhecimento de um edifício como documento histórico, e o respeito às suas
vicissitudes históricas e artísticas, oponha-se claramente com às teorias de harmonia de
estilo, enquanto dado fundamental do carácter do monumento.
O objecto da conservação passa a ser prolongar a vida do património arquitectónico
existente, e não fazê-lo evoluir para um hipotético estádio original, pondo em evidência e
esclarecer as mensagens artísticas intrínsecas, sem perda de autenticidade.
Em 1883, Camillo Boito estabelece alguns princípios que têm sido considerados por
vários críticos como a primeira carta do restauro.
“1. Quando for necessário intervir num monumento este deverá ser primeiro consolidado,
depois reparado e finalmente restaurado.
2. Diferença de materiais nas diferentes construções.
3. Suspensão de molduras e decoração nas partes novas. Nos monumentos arqueológi-
cos, as partes de complemento devem deixar-se com superfícies lisas.
4. Serão considerados como monumentos, aqueles agregados que foram introduzidos
no edifício primitivo, excepto nos casos em que têm uma importância artística e histórica
menor que a do próprio edifício, e que ocultem alguma parte notável do mesmo, nestes
casos será aconselhável a remoção.
Restauro de moderno
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5. Durante a reparação deve-se fotografar o edifício antes, durante e no final.
6. Uma placa colocada no edifício recordará as principais obras.
7. Notoriedade visual das intervenções.”2
Um dos maiores ensinamentos de Camillo Boito foi a maior compreensão da autenti-
cidade no valor dos monumentos, influenciando diversos restauradores e críticos,
continuando presentes muitas das suas filosofias de intervenção.
Nos primeiros anos do século XX, levaram-se a cabo diferentes restauros que se opon-
ham aos princípios teóricos de Camillo Boito. Como exemplo a reconstrução da torre de
S. Marcos em Veneza, após o seu derrube. A sustentação teórica baseava-se nos concei-
tos do restauro histórico “para além do seu valor específico como monumento, formava
parte importante da composição da praça, por tanto, a sua perda alterava totalmente a
concepção do espaço sendo indispensável a sua reedificação”.2
Seguidor de Camillo Boito, Gustavo Giovannoni analisou e criticou as experiências de
numerosas obras de restauro em Itália e outros países europeus, formulando a sua
própria teoria – restauro científico.
Esta teoria estava fundamentada na valorização história e artística dos monumentos e
na sua absoluta necessidade de veracidade. A restauração deve estar baseada em da-
dos concretos conhecidos, nunca em hipóteses. Estabelecendo a conduta de interven-
ção mínima, a distinção conceptual entre edifícios vivos e mortos, o conceito do quadro
ambiental e a defesa dos centros históricos. Rejeita efectuar inovações, mas em caso de
ser necessário, estes devem estar claramente datados e utilizar materiais diferentes dos
originais.
2 - Camillo BoitoFig. 7 - Camillo Boito . palácio de debite Fig. 8 - Camillo Boito . Museu de Padova Fig. 9 - S. Marcos, Veneza
Restauro científico
As convenções, tratadosou pactos
As recomendações
As resoluções do Conselho da Europa
Cartas, orientações, princípios, conclusões de encontros e declarações
Carta Italiana de Restauro - 1931
Intervenção e Salvaguarda do património
As principais Cartas Internacionais
A crescente preocupação com a protecção e salvaguarda do património arquitectónico,
resultante das diversas correntes de pensamento iniciadas no século XIX, para além
da necessidade de clarificar princípios teóricos universais que estabeleçam critérios de
intervenção, originou após a 1.ª guerra mundial diversos teóricos de diferentes correntes
de pensamento a reunirem-se de forma a debater a questão do património. É neste con-
texto que surgem as primeiras normas internacionais sobre a intervenção e salvaguarda
do património.
As normas sobre a intervenção e salvaguarda do património arquitectónico são diversas,
podendo agrupar-se da seguinte forma:
Aprovados pelos Estados, que se obrigam a aplicar no seu território os princípios neles
expressos
Definem os princípios capazes de orientar as políticas de cada Estado, mas sem carácter
vinculativo
Resultantes de conferências de ministros ou seus representantes, não têm valor vincula-
tivo, mas podem ser de modelo para a adopção de recomendações e de convenções
Definem os princípios e os conceitos sobre determinada matéria, por forma a orientar a
acção dos intervenientes, mas não têm valor vinculativo
Na impossibilidade de descrever os fundamentos, metodologias e princípios de todos
os documentos que sucessivamente foram elaborados, apenas abordarei as principais
cartas internacionais, com a excepção da Carta Italiana de Restauro, que por considerar
ser um documento de transição, deve ser objecto de estudo.
A metodologia proposta pela Carta Italiana de Restauro, cria uma viragem importante
contendo um conceito revolucionário, a conservação integral dos diferentes estádios
históricos que marcaram uma obra.
Simultaneamente as exigências crescentes da crítica histórica, e o desenvolvimento
da sociologia agiram sobre a rápida evolução do conceito de monumento e sobre o
conceito de restauro. Este, deveria garantir a leitura do percurso histórico do edifício, não
excluindo nenhuma das fases que contribuíram para a sua edificação, nem falseando o
seu crescimento com acrescentos que induzam em erros os estudiosos, e não dispersar
o material que as investigações analíticas trouxeram à luz.
As premissas essenciais desta carta são as seguintes:
As obras de manutenção e consolidação são de máxima importância.
As reconstituições motivadas por razões de arte e de unidade arquitectónica, serão
baseadas unicamente em dados absolutamente certos.
Aos monumentos antigos, excluem-se ordinariamente todo o acabamento, apenas a
anastilose.
Os “monumentos vivos” admite utilização próxima da função primitiva, não introduzindo
alterações essenciais no edifício.
Conservar todos os elementos com carácter de arte ou de recordação histórica.
Respeito pelo monumento e pelas várias fases, tendo-se em conta as condições
ambientais e a envolvente.
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Nos acrescentos necessários, consolidação, reintegração e utilização prática do monu-
mento, os elementos novos serão reduzidos ao mínimo possível, carácter de simplicidade
nua e distintos do existente.
Aplicação de material diverso do primitivo nos elementos novos, não induzindo em erro os
estudiosos, transformando-se numa falsificação de um documento histórico.
No reforço do todo enfraquecido, todos os meios construtivos mais modernos podem
prestar auxílios modernos, devendo os processos empíricos ceder lugar aos rigorosos e
científicos.
Nas escavações e nas explorações que tragam à luz do dia obras antigas, o trabalho de
resgate deve ser metódico seguido de consolidação.
Nas escavações e restauro dos monumentos, os trabalhos devem ser acompanhados por
uma documentação precisa, constituída por relatórios analíticos recolhidos diariamente e
ilustrados com desenhos e fotografias.
Organizada pelo Office International des Musées, esta congresso sedimenta as preocu-
pações teóricas prévias às intervenções nos edifícios monumentais e alarga a reflexão
às áreas envolventes.
Os problemas debatidos são maioritariamente os mesmos que procuramos hoje resolver:
legislação de protecção e conservação; princípios gerais do restauro; Degradação dos
monumentos (problemas que os afectam, materiais a utilizar na reparação e reforço,
materiais novos e técnicas a utilizar).
Algumas conclusões desta conferência são extraordinariamente inovadoras, como a
noção de património de valor excepcional de interesse à comunidade dos povos, que
será o precursor do Património da Humanidade. Esta nova concepção de património,
associada ao apelo à Sociedade das Nações para a tolerância, a solicitude dos povos e
dos estados face aos vestígios do passado, qualquer que seja a civilização ou a época
a que pertençam, fomentando o espírito de solidariedade internacional. Originou o em-
penhamento dos estados, agindo no espírito do pacto da Sociedade das Nações, uma
colaboração cada vez mais alargada e mais concreta, com vista a assegurar a conser-
vação dos monumentos e obras de arte, e instruindo a infância e a juventude no respeito
pelos monumentos, qualquer que seja a civilização ou época, procurando associá-lo à
protecção dos testemunhos de toda a civilização.
Para além do apelo à Sociedade das Nações, esta conferência elaborou um documento
onde são expressos os princípios gerais das intervenções - Carta de Atenas – sendo tra-
duzidos em sete artigos, que seguidamente se enumeram:
Abandono das reconstituições integrais, e a sua substituição por uma manutenção regular
e permanente, sendo esta a melhor forma de assegurar a conservação dos edifícios.
No caso do restauro, respeito da obra história, sem que seja proscrito o estilo de qualquer
época.
A ocupação dos monumentos assegura a continuidade da sua vida
Recolha e um quadro comparativo das legislações em vigor nos diferentes estados e sua
constante actualização.
Respeito pelo carácter e pela fisionomia das cidades, “mesmo alguns conjuntos, algumas
perspectivas particularmente pitorescas, devem ser preservados”.
Conferência de Atenas - 1931
Doutrina princípios gerais
Legislação
A valorização do monumento
Emprego de todos os recursos da técnica moderna, devendo estes meios ser dissimula-
dos a fim de não alterar o aspecto e o carácter do edifício. Estes recursos são recomenda-
dos principalmente para evitar o desmonte e reconstrução dos elementos a conservar.
Colaboração dos conservadores e dos arquitectos com representantes das ciências.
Retirar obras do quadro em que foram criadas é, em princípio, indesejável.
Conservação dos originais, execução de moldes na sua impossibilidade.
Divulgação através de publicação dos trabalhos desenvolvidos.
Quando se trata de ruínas, impõe-se uma conservação escrupulosa com a reposição no
lugar dos elementos encontrados – anastilose
Quando a conservação de ruínas postas a descoberto no curso de uma escavação for
impossível, é aconselhável cobri-las de novo, depois de efectuado o levantamento rig-
oroso.
Análise das patologias do monumento antes de consolidação ou restauro.
Os estados, no espírito do pacto da Sociedade das Nações, colaborem entre si, manifes-
tando o seu interesse na salvaguarda de obras-primas ameaçadas.
Os materiais do restauro
A degradação do monumento
Técnica de conservação
A cooperação técnica e moral
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A garantia de conservação dos monumentos e das obras de arte deriva do respeito e
do apego dos povos, devendo este sentimento ser favorecido pela acção dos poderes
políticos.
Educar quaisquer que sejam, ensinando-lhes a interessarem-se pela protecção dos tes-
temunhos de qualquer civilização
As instituições criadas pelos estados ou reconhecidas competências, publiquem o inven-
tário nacional dos monumentos.
A metodologia do restauro dos monumentos vai continuar a suscitar reflexões doutrinais,
sendo um dos pontos mais delicados e sensíveis o reconhecimento de que as teorias do
passado continuavam a desempenhar um papel importante, manifestando que a teoria
avançava mais rapidamente que a prática.
Fig. 10 - Paço dos Duques de Bragança antes da intervenção de Rogério de Azevedo Fig. 11 Paço ods Duques de
Bragança durante a intervenção de Rogério de Azevedo
O papel da educação no respeito do monumento
Utilidade de uma documentação internacional
Sedimentação das novas
doutrinas
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Trinta anos após a elaboração da Carta de Atenas, a comunidade científica estava in-
teressada em encontrar consensos sobre os princípios da salvaguarda do património,
baseados na experiência acumulada.
Este conjunto de sinergias permitiu o encontro, com o apoio das UNESCO, de arquitectos
e técnicos de monumentos históricos em Veneza, com o objectivo de rever a Carta de
Atenas, produzindo um novo texto a “Carta Internacional sobre a Conservação e Restauro
do Monumentos e Sítios” – Carta de Veneza.
Deste encontro resultou também um dos organismos que mais tem contribuído para a
definição de princípios de intervenção em património – o Icomos.
O Icomos é uma organização não-governamental com estatuto de consultadoria e as-
sociação por parte da Unesco, tendo como objectivo primordial promover a conservação,
protecção, utilização e valorização dos monumentos, conjuntos e sítios.
Para além do seu importante papel na preparação da conservação do Património Mundi-
al, a sua contribuição, principalmente através de colóquios internacionais, permitiu alargar
o conceito de “património arquitectónico e urbano”, o relacionamento estreito entre orga-
nizações internacionais e profissionais, e fortalecer os encontros e as trocas de ideias e
de experiências, que permitem fazer a ponte sobre questões essenciais e orientar novas
investigações.
Após quarenta anos da aprovação da “Carta Internacional sobre a Conservação e Restau-
ro” – Carta de Veneza, esta ainda é considerada actual, na maioria dos seus princípios, e
tem sido o texto doutrinário mais citado para justificar as opções de restauro.
Ela não deve ser encarada como uma receita, nem define um processo único de inter-
venção, pelo contrário concentra-se numa dimensão fundamental do Homem – a sua
memória – com um profundo empenhamento, evitar a destruição dos suportes físicos
dessa memória.
A sua validade vem-lhe da própria universalidade das intenções, para além de situações
políticas, sociais ou económicas particulares de cada país ou região, configurando-se
desta forma como a maior área e entendimento estrategicamente possível, procurando
fazer compreender que há reflexos físicos no mundo, que o marcaram de forma excep-
cionalmente única.
Com a impossibilidade de salvaguardar tudo ela propõe a ponderação dos critérios de
escolha, tendo os valores estéticos, históricos, sociais e económicos um grande peso
conjunto, na investigação de uma metodologia para a conservação.
“Cada monumento antes de ser pedra, tijolo, argamassa ou vidro, é o sonho, reflexo da
alma do seu criador.”
A Carta de Veneza aprofunda o conceito de monumento como toda a criação, tanto as
“grandes obras” como as “obras modestas”, pondo em relevo as suas várias funções,
não só no que se refere ao conhecimento do passado, mas também ao apoio que presta
a uma consciência do presente, realçando que este pertence a um contexto e é parte
integrante de uma sociedade.
No âmbito da Carta de Veneza, é imperativo salvaguardar a autenticidade do testemunho,
sendo necessário igualmente conservar uma envolvente à sua escala, pois compreende
que um monumento não pode ser lido como objecto isolado, formando um todo com a
sua envolvente.
Fig. 12 - Mosteiro de Santa Maria do Bouro . Eduardo Souto Moura
O congresso de Veneza 1964
ICOMOS
Carta de Veneza
A formulação de uma doutrina no domínio das cidades e dos quarteirões históricos é um problema antigo, já no século XIX se falava de cidade de arte e de história. No congresso de Atenas de 1931, os arquitectos restauradores formulam pela primeira vez a consideração dos conjuntos. Dois anos depois, na mesma cidade os arquitectos modernistas vão propor uma carta fortemente influenciada pelas ideias de Le Corbusier, onde a cidade antiga constituía o lugar do caos, tendo o pós guerra permitido a imple-mentação das duas teorias, reconstruindo-se cidades sob o ponto de vista modernista e do restauro.O congresso de Veneza (1964), apenas 20% das comunicações abordava a problemática da cidade histórica. Onze anos depois (1975), no ano europeu do património arquitectónico, desponta um novo termo – a conservação integrada, tal como vem explicado na Carta Europeia do Património Arquitectónico e na Declaração de Amesterdão. A possibilidade de revisão da Carta de Veneza é ponderada, sendo abandonada de imediato, por se considerar um documento de referência. Estes factores, após várias reuniões internacionais, despontaram em 1987 à elaboração da Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas, na assembleia-geral do Icomos em Washington.Esta carta define os princípios, os objectivos, os métodos e os instrumentos de acção próprios para salvaguardar a qualidade das cidades históricas, para valorizar a harmonia da vida individual, e colectiva e para perpetuar um conjunto de bens, mesmo os mais modestos, que constituem a memória da humanidade.Nesta carta entendem-se por “salvaguarda das cidades históricas”, todas as medidas ne-cessárias à sua protecção, conservação e restauro, bem como ao seu desenvolvimento coerente e à sua adaptação harmoniosa è vida contemporânea.
Após um longo trabalho, patrocinado pela União Europeia, UNESCO e Icomos foi aprovado na conferência internacional de “Cracóvia 2000”, subordinada ao tema con-servação de património cultural, um conjunto de recomendações, sobre a conservação e restauro do património construído, sob o título de Carta de Cracóvia.A maioria dos conceitos defendidos nesta carta têm as suas raízes na Carta de Vene-za, porém, aprofunda-se a noção de conservação e a exigência da investigação. Destacam-se as particularidades da variedade dos bens patrimoniais e acentua-se a ne-cessidade de participação dos cidadãos.
A análise das principais cartas, convenções e recomendações, produzidas desde 1931, mostra-nos a evolução da nossa percepção sobre o património arquitectónico.A rapidez das transformações urbanas, com um crescimento das cidades a um ritmo sem paralelo na história da humanidade, e as profundas alterações da paisagem rural, levam o homem a reagir e a tentar reequacionar o seu futuro.Já não é apenas o culto das velhas pedras que move as comunidades no interesse que vêm manifestando pelas políticas patrimoniais. É antes uma luta vital de procura de um novo equilíbrio com o meio envolvente, natural ou construído.Porém à rapidez da evolução das abordagens e conceitos sobre o património, corresponde uma mais lenta alteração das práticas e acções concretas. Os meios huma-nos, técnicos e financeiros não surgem com a rapidez da produção intelectual.Um tão vasto alargamento da noção de património só poderá ser enfrentado, na prática, com um correspondente alargamento da participação da sociedade na construção de modelos mais humanos e ecológicos de desenvolvimento.
Fig. 13 e Fig. 14. - Centro histórico de Guimarães
Dos monumentos aos conjuntos
Carta de Cracóvia
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Bibliografia
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Fig. 15 - Piodão
Contracapa
Museu Küppersmühle . Colecção Grothe . Herzog & de Meuron
FotografiaCristian Richters