partir da jornada sacra dos Penitentes1 On the images path ... · sacred journey of the Penitents...
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Na trilha das imagens: ritual de sangue e poética cruel a
partir da jornada sacra dos Penitentes1
On the images path: blood rituals, cruel poetics, from the
sacred journey of the Penitents
Amanda Barros Melo2 (UEPA-PPGCR/PARÁ)
Resumo
O presente estudo é um inicio de jornada, possuindo como objeto de estudos o trabalho
poético e imagético do fotografo paraense Guy Veloso, com sua jornada junto aos
Penitentes, sendo que o fotografo constatou após mais de dez anos de captação de
imagens e pesquisa que esta manifestação cultural e religiosa, existe em todas as regiões
do país. O objetivo da pesquisa inicial é compreender como a face performática dos
Penitentes atua no momento do rito dinâmico. Problematizo a forma como os grupos de
penitentes se tornam performers a partir de suas jornadas sagradas e poéticas, criando
desse modo o que chamo de performance da memória. O método utilizado partirá do
uso de imagens para possibilitar a compreensão do trabalho imagético desenvolvido
pelo fotografo e além disso pesquisa bibliográfica que estará situada entre fronteiras,
partindo das dimensões do fenômeno religioso e estudos da performance. Os resultados
esperados são as confirmações do que se a priori é constatado sobre a dimensão
performática dos penitentes, para deste modo seguir investigando mais sobre esta
manifestação cultural e religiosa.
Palavras-chave: imagem, performance, sagrado.
Abstract
This study is a journey of initiation, having as object of study the poetic work and
imagery of photographer from Pará Guy Veloso, his journey along the Penitents, and
what the photographer found after more than ten years ok images and research that this
cultural and religious expression exist in all regions of the country. The purpose of the
initial research is to understand how the performative face of Penitents acts upon
dynamic rite. Problematize the way Penitents groups become performers from
theirsacred and poetc journeys, there by creating what i call memorey performance. The
method used departed the use of images to enble understanding of the photographer's
imagistic work and borders, based on the dimensions of the religious phenomenin and
studies of performance. The expected results are the confirmations of what firstly is
found on the performative dimension of penintents, there by to follow investigating
more about this cultural and religious expression.
Key-words: image, performance, sacred.
1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Latina, realizado entre os dias
25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA. 2 Mestra em ciências da Religião, no Programa de Pós-graduação da Universidade do Estado do Pará
(2014-2016). Vinculada ao grupo de pesquisa ARTEMI (arte, religião e memória). Graduada em
Licenciatura Plena m Ciências da Religião, na Universidade do Estado do Pará (2010-2014).
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Introdução
O ato de criação que provém da escrita que desenvolvo é gerado pela vontade de
conhecer que tenho, a partir disso meu contato com as ciências da religião e as artes e
seu cosmos poético.
A pesquisa encontra-se em fase de constante descobertas segue a passos
contidos, o estudo a que me proponho é possível graças a convite feito por Guy Veloso3,
para que sua jornada poética consiga chegar em outros lugares, além do cosmos
artístico, logo ao meio academico, me torno guardiã de caminhadas feitas pelo fotografo
há mais de uma década marcadas por registros imagéticos.
Ao me deparar com dimensão do mundo de ditos, escritos e narrativas visuais,
percebo a priori que assim como em outras manifestações culturais do país e do mundo,
a performance esta presente, está como meio para realizar a experiência em ação, a
partir disso inicio a localização deste ato, ação, ritual dinâmico como algo em estado de
performance, que ocorre nas cinco regiões do país, como já constatado pelo fotografo.
As passagens dos diversos grupos de penitentes registradas por Guy Veloso
demonstram como algo que depende do repasse do legado através da oralidade ligada ao
elo de confiança de quem fornece as informações e o respeito daquele que recebe as
mesmas, a jornada dos penitentes e mesmo existência desses grupos dependem
fortemente desse repasse de conhecimento de mestres para discípulos.
Os registros feitos por meio da linguagem visual é uma forma de eternizar as
caminhadas noturnas desses homens e mulheres sem rosto que seguem durante a noite e
pedem pela alma dos que se foram tragicamente a ação destes é o que move a pesquisa,
pois se a morte é um fator importante durante estes longos trajetos, logo a memória é
outro elemento de suma importância, seria a realização do que chamo de performance
da memória, que constantemente é realizada e atualizada por todos os grupos de
Penitentes. As pessoas ligadas a essa performance da memória seriam então performers
das noites que mantém seu rito através das ladainhas, da caminhada, do uso dos
instrumentos sacros, da organização do grupo, tudo é elemento a ser considerado como
parte da performance. Através dos ritos sazonais de seu altruísmo religioso é que
conseguem acionar a memória de inúmeros (des)conhecidos que fisicamente não
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habitam mais o cotidiano das cidades onde os Penitentes realizam suas ações, seus atos,
ou seja, suas performances.
A presente pesquisa é o primeiro fragmento de algo maior que através da
potencia ritual oriunda da performance, da estética advinda das imagens e das passagens
sacras feitas por penitentes, se tornará mais denso por meio da analise cientifica e
poética que tem seu inicio com este primeiro escrito. Um convite a caminhar junto de
algum modo com os Penitentes.
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Performance da memória: a morte como elemento sacro poético
De uns tempos para cá, parece que a morte anda sumida do
mundo. Estamos sempre tentando nos esquecer dela, correndo,
consumindo cada vez mais coisas e informações.
Ilan Brenman e Heidi Strecker
O moimento realizado por diversos grupos de Penitentes em todas as regiões do
país como já constatado por Guy Veloso, é um ato de fé e resistência, sendo estas
características fortemente ligadas ao catolicismo popular, onde mesmo que exista algo
de sistemático na organização dos atos ainda assim está separado das práxis habituais e
clássicas das instituições católicas em que tudo ocorre entre paredes, com hierarquias
duras e a circulação de conhecimento é cristalizada em demasia.
Os Penitentes são a micro esfera católica que utiliza a fé e o altruísmo religioso e
espiritual para rogar por almas do purgatório, somado a isso os registros fotográficos de
Guy Veloso que percorrem todas as regiões do país confirmando a existência destes
grupos em toda a extensão do Brasil é uma forma de expandir esse ato de resistência dos
grupos de Penitentes a meu ver, haja em vista que atualmente a tendência do movimento
de fé realizados por estes é que muitos grupos acabem por não haver sucessores, boa
parte dos registros feitos pelo fotografo são de grupos que resistem no coração do sertão
nordestino, em pequenas cidades. "A linguagem indica os seres que evoca" (BOSI,
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1983, p.22). Esta soma que há entre o ato e os registros são a fonte poética e religiosa
para que seja possível perceber como estes grupos se comportam, seus elementos
principais, repasse de conhecimento, ou seja, como suas performances sacras são
realizadas. "Desta forma a religião popular seria a expressão de uma resistência das
classes pobres culturalmente marginalizadas" (MESLIN,1992, p. 220). Vale ressaltar
elementos coletados por Guy Veloso no decorrer de sua caminhada junto aos vários
grupos de Penitentes no país, estes são: movimento em geral laico, altruísmo, uso do
corpo, Ritos secretos e oralidade. A soma destes da a base para os grupos existirem e
legitimar-se como mediador em relação as almas liminares (purgatório) e o divino
(transcendente), além disto, cada grupo carrega consigo a identidade de um determinado
povoado, grupo cultural, deste modo há diferenças entre os mesmos.
A jornada noturna realizada por Penitentes é a ação primeira de sua
performance, penso que todo ato, ação em termos de ritual que vai desde a organização
até o ato consumado pode ser considerado performance, algo que pode ou não estar
ligado a questões de fé e religiosas, mas neste caso além de fé ocorre o altruísmo
religioso. "[...] o modelo teatral, em nossa cultura, representa toda poesia, na própria
complexidade de sua prática" (ZUMTHOR, 2014, p. 61), pensemos nesse modelo
teatral a qual Zumthor (2014) evoca como um principio básico para a ação performática,
que seria ter a percepção de que além de performático um ato pode ser considerado
cênico, mesmo por que ontologicamente o teatro deriva de práticas sagradas e
ritualísticas, logo seu braço contemporâneo a performance segue de forma mais direta
esse caminho, partindo do Eu para isto ocorrer. Levar a carga poética da performance
para os atos do catolicismo popular é fazer a soma de elementos de cunho anárquico em
meio contemporâneo, já que ambos são tentativas efetivamente de resistência e
chamamento para o novo. "A maior parte das definições de performance põe ênfase na
natureza do meio, oral e gestual" (ZUMTHOR, 2014, p. 47). A performance em termos
de ação pode estar condicionada a esses elementos como principais, porém orbitando
este espaço há o mundo dos símbolos que os Performers carregam consigo. Segundo
Grotowski (2015) o Performer e performance são:
O Performer,com letra maiúscula, é um homem de ação. Ele não é um
homem que faz o papel de outro. É o atuante, o sacerdote, o guerreiro: está
fora dos gêneros estéticos. O ritual é performance, uma ação realizada, um
ato (GROTOWSKI, 2015, p.2)
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O ato é a performance os atuantes são os Performers, logo o Penitentes que
através de suas ações de suas andanças noturnas realizam seus ritos, carregam seus
símbolos (cruzeiro, mortalhas, matracas etc.), sua fé expande-se por meio dessas vias
materiais que seriam os objetos usados, porém chegam a esfera do subjetivo quando
estas tornam-se símbolos de seus ritos. " Os personagens, homens e mulheres que em
determinadas épocas do ano, em especial na “quaresma” (quarenta dias antes da Sexta-
feira Santa), se transformam [...]" (TRECHO, PROJETO, 2010, p. 2), o catolicismo
popular em seu cerne como ato de resistência dá aos seus participantes a oportunidade
de transformação, onde homens e mulheres de vidas simples em pequenas cidades,com
baixa renda entre outras características, tornam-se mestres, guias, voz forte no grupo
que realiza algum ato, como no caso dos Penitentes. "A religião popular seria assim a
forma pela qual as classes inferiores da sociedade exprimem ao mesmo tempo sua
nostalgia de uma idade de ouro perdida para sempre e sua personalidade viva [...]"
(MESLIN, 1992, p. 220), é nesse ponto em que os participantes dos ritos dos Penitentes
tornam-se Performers e seguem caminhada.
A jornada poética e sagrada (ELIADE, 2010) dos Penitentes tem como cerne a
Morte,elemento fortemente atrelado a fragilidade da vida, através das fatalidades que
ocorrem por meio de acidentes, as ditas mortes prematuras, a estadia das almas no
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purgatório, objetiva-se através da performance feita por Penitentes ajudar as almas que
estão no purgatório a saírem deste e completarem sua passagem, haja em vista que o
purgatório é um lugar de fronteira, onde a alma não se encontra nem no inferno e nem
no paraíso isso ligado a questões ontológicas e míticas do meio cristão. "Todo espaço
sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado
destacar um território do meio cósmico que o envolve e o torna [...] diferente"
(ELIADE, 2010, p. 30)
O que chamo de performance da memória é realizada por grupos de Penitentes,
no momento em que se caminha ao lado da Morte isso é feito em memória das almas
que tragicamente estão estagnadas no purgatório, isso sem haver um tipo de voto
religioso feito, é apenas vontade e empatia, que juntos resultam nesse altruísmo
religioso já constatado por Guy Veloso. "Termo antropológico e não histórico, relativo,
por um lado, as condições de expressão, e da percepção, por outro, performance designa
um ato de comunicação como tal [...]" (ZUMTHOR, 2014, p. 51)
A Morte constantemente ligada ao ato dos Penitentes é o elemento de
chamamento a memória dessas almas, a poética desta performance reside em toda
estrutura sutil e de certo modo dramática criada por esses grupos, para deste modo
realizarem suas performances da memória, pois é nesta que ocorrem as hierofanias
vividas por todos os Penitentes. Os grupos de Penitentes vivem a hierofania por meio
de suas performances, que seria a experiência com o sagrado, isso somado ao seus ritos
reforçam a ideia de que sim é fato que a performance ocorre, logo há inúmeras ativações
de memórias. "Um espaço sagrado assenta a sua validade na permanência da hierofania
que, em dada altura, o consagrou" (ELIADE, 1977, p. 436), a hierofania é a experiência
em ação do grupo, legitima a ação como sagrada. "O lugar transforma-se, deste modo
em uma fonte inesgotável de força e sacralidade [...]" (ELIADE, 1977, p. 436).
A performance da forma com que é realizada por todos os Penitentes o marco de
um tempo maravilhoso em que cada individuo do grupo é de suma importância para o
ato, as almas do purgatório dependem disto, sendo assim, a performance da memória é a
ação do fazer e lembrar, onde a poética reside no caminhar do grupo. " São os
Penitentes, grupos religiosos laicos, que se sacrificam com o objetivo de livrar almas do
“purgatório” (segundo a Igreja Católica, o local onde os espíritos têm que espirar seus
pecados terrenos antes de alcançar o “céu”)" (TRECHO, PROJETO, 2010, p. 2).
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Há na caminhada dos Penitentes algo de poético e sacro, pensemos no sagrado
como algo oposto ao profano (ELIADE, 1977, p. 23 ), o sagrado e o poético estão
diretamente ligados, quando a performance da memória se inicia, desde o uso das vestes
brancas, das ladainhas, o uso de instrumentos, a formação da caminhada em uma ou
duas linhas possuindo a frente um cruzeiro que naquele momento seria um dos centros
de mundo (ELIADE, 1977, p. 23) dos grupos, os atos mais cruéis, os açoites feitos por
Penitentes homens, onde há desde o uso de cilício até a flagelação com laminas em
chicotes a repetição destes atos, deixam suas roupas brancas com tons de vermelho, um
sangue sacrificial feito pelo Penitente em seu momento de altruísmo religioso e
performático. "A performance, de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é
simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o marca" (ZUMTHOR,
2014, p. 35). A memória dos que se foram, é ativada por todos estes elementos, as
almas são colocadas no centro de tudo, a performance da memória é o ato de ativação
da memória, por meio da poética cruel dos Penitentes. "[...] a noção de religião popular
só adquiria sua real consistência quando abrangia um conjunto de crenças e de práticas
que se situava em oposição a um modelo religioso oficial [...]" (MESLIN, 1992, p. 223)
As práticas devocionais contidas no catolicismo popular trazem algo de familiar
e próximo ao praticante, tudo se torna mais empático levando ao próprio altruísmo
religioso. "O Performer é um estado do ser [...] O homem de conhecimento (czlowlek
poznanla) tem à sua disposição o fazer, o doing, e não apenas ideias ou teorias"
(GROTOWSKI, 2015, p. 2), o ato total dos Penitentes é onde resite o estado do ser,
citado pro Grotowski (2015), fazendo com que os Penitentes sejam Performers em ação,
na prática sacra da performance da memória. A empatia é o elemento metafísico que
move as práticas, logo tornando a performance da memória um fato, que vem através
das trocas simbólicas feitas entre os Penitentes e a Morte.
Ritual de sangue e poética cruel a partir da jornada sacra dos Penitentes
Agora que o sangue ainda aquece e que está pleno de vigor, devemos
tender às melhores. Encontrarás, neste tipo de vida, o entusiasmo das
ciências úteis, o amor e a prática da virtude, o esquecimento das
paixões, a arte de viver e de morrer uma calma inalterável.
Sêneca - Sobre a brevidade da vida
O momento vivenciado durante a prática dos Penitentes é impar, um salto dos
ritos cotidianos para algo extra cotidiano, atemporal e não linear. "[...] performance, eu
diria que ela é o saber-ser" (ZUMTHOR, 2014, p. 34). A jornada implica da ativação
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do corpo memória dos Performers através das ladainhas, matracas, cruzeiro, vestes
brancas, açoitamentos, são corpos prontos para o momento do rito de vida morte, que
por meio da poética cruel trás as potências do sagrado o maravilhoso e o tremendo, isso
com a ação da performance da memória. "A palavra crueldade deve ser considerada
num sentido amplo e não no sentido material e rapace que normalmente lhe é
atribuído[...] do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor [...] " (ARTAUD,
1984, p. 131).
A potencia poética contida nos Penitentes mostra que estes de fato são
Performers em um ato, uma ação sacra, poética e cruel, a tríade criada por todos os
grupos no momento da caminhada altruísta realizada para as almas perdidas é o que
serve como constatação para se compreender o ato destes como Performance e além
disto, o chamamento do sagrado por meio destas práticas, o que legitima todo o ato
como sacro. "É assim que aparece a ideia estranha de uma ação desinteressada, mas que
é ação de todo modo e mais violenta por ladear a tentação do repouso" (ARTAUD,
1984, p. 20), nesse ato desinteressado é onde reside a crueldade poética, o que nutre o
espírito (ser). "equivocadamente se atribui à palavra crueldade um sentido de rigor
sangrento, de pesquisa gratuita e desinteressada do mal físico [...] a crueldade é antes de
mais nada lúcida [...]" (ARTAUD, 1984, p. 132).
Por meio do corpo, muitas vezes a crueldade ativada, como é o caso dos
Penitentes que açoitam-se, porém há algo de subjetivo neste que é ativado pela
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passagem do repouso para o acordar a si. "O corpo é o peso sentido na experiência
[...] Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que
determina minha relação com o mundo" (ZUMTHOR, 2014, p. 27), o corpo é o
primeiro elemento por onde a crueldade poética dos Penitentes passa, sendo esta, pelo
chicote usado na autoflagelação ou no corpo de homens e mulheres idosos que
caminham noite a dentro superando o cansaço. "Dotado de um significado
incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para
melhor e para pior" (ZUMTHOR, 2014, p. 27).
A estrutura ritualística criada por Penitentes, tende performática e cruel desde os
seus primórdios, guardam o sagrado maravilhoso e tremendo através de suas jornadas
noturnas. "Como vimos, o sagrado é o real por excelência, ao mesmo tempo poder,
eficiência, fonte de vida e fecundidade" (ELIADE, 2010, p. 31). Logo o rito concebido
como uma experiência do real em ação, é como o ato primordial de criação, que surge
com fins de mediação. "O importante é crer que todos podem fazê-lo e que para isso é
preciso uma preparação. [...] rejeição das limitações habituais do homem e dos poderes
do homem [...] é preciso acreditar num sentido da vida renovado [...]" (ARTAUD,
1984, p. 22), a crença na ação mostra deque forma se inicia a preparação para o rito, a
vivencia do real, sagrado (ELIADE, 2010), na essência do ritual há a crueldade, pois é a
potencia ativadora dos corpos e das memórias. "[...] são principalmente os rituais mais
elaborados e geralmente mais públicos que modelam a consciência espiritual de um
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povo" (GEERTZ, 1989, p. 129), legitimação por meio do ato e por meio da presença do
elemento sagrado chamado por meio da performance cruel dos Penitentes.
A crueldade da flagelação existe, não há como negar isso, há a dor física, o
corpo violado e dilacerado, porém a superação da dor cotidiana é a chegada dessa
suspensão do tempo e do espaço em que a lucidez do Penitente mesmo que ligada a seu
ego, supera a crueldade cotidiana e a coloca em função do ato, ou seja, da performance
realizada. "Deixai as cavernas do ser. Vinde. O espírito sopra fora do espírito. É tempo
de abandonares vossas habitações [...] O maravilhoso está na raiz do espírito"
(ARTAUD, 1970, p. 253). O dito sobre o espírito é sobre a poética do ser, o momento
de libertar da ação mecânica do cotidiano regida pelas normas, Artaud (1970) nos trás a
ideia de vida ligada a linguagem, a vivencia desta por meio dos ritos cruéis, para fins de
libertar o espírito.
A rigidez do rito dá espaço para a prática cruel, sendo está dolorida e cruel
simbolicamente, quem observa as imagens de Guy Veloso percebe a potencia cruel da
jornada Penitente. Só por meio desta sequencia de atos realizado pelos Penitentes é que
se chega a poética cruel e sacra de sua performance da memória. Logo o ato é
legitimado como altruísta visando a harmonização espiritual das almas liminares.
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Considerações finais
O movimento laico realizado por inúmeros grupos de Penitentes e que foram
poeticamente captados através da fotografia de Guy Veloso é o marco no que diz
respeito a documentação, criação de acervo que marque as sutilezas de um ato que na
prática é forte, cruel e poeticamente performático.
Constato que o que chamo de performance da memória é possível, pode ser
expandido, mas que por agora já marca esse primeiro passo junto a crueldade Penitente.
A jornada dos grupos, o mistério envolvendo suas práticas, motivações para o
açoite de alguns já é um indicio de que ainda há muito a se explicar sobre estes grupos
que fazem parte de algo macro que é o catolicismo popular, fogem a regra atraves da
seus atos do que a igreja enquanto instituição soberana comummente realiza. Logo se
cria uma identidade de resistência espiritual, sendo assim seus ritos são formas de
legitimarem a si, seu altruísmo religioso.
A performance da memória está diretamente ligada a crueldade poética que
evidencio, estes elementos são constantemente ativados por estes grupos, que
caminhando e usando o elemento Morte, acionam histórias, vivencias de tempos outros,
dos que se foram, mas que na visão de mundo dos grupos não completaram a passagem,
a liminaridade incomoda de algum modo.
A crueldade artaudiana é chamada para dar base e suporte a forma com que os
ritos de sangue podem ser percebidos, de modo que, se pense sempre na superação da
dor cotidiana e lucidez espiritual em relação ao ato. Compreender que a crueldade pode
existir em ações mais sutis como a caminhada de homens e mulheres noite a dentro, já é
uma forma de superação da ideia comum que ligamos ao termo.
O ato da escrita que realizo é um modo de perpetuar a prática realizada por estes
diversos grupos, reforço por meio disso a preocupação do próprio Guy Veloso em
relação ao registro destes grupos e quando a continuidade destas atividades. Os eventos
são sazonais, seguem as caminhadas ano após ano, alguns grupos deixaram de existir,
outros ainda resistem e caminham.
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Referências
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ARTAUD, Antonin. Vida e Linguagem. São Paulo: Ed. Perspectiva. 1970.
BOSI, Alfredo. "Imagem e discurso" In: O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix,
1983.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: editora wmf Martins fontes,
2010.
ELIADE, Mircea. "O espaço sagrado: Templo,palácio, << centro de mundo>>". In:
Tratado de História das Religiões. Lisboa. Edições Cosmos. Livraria Martins Fontes.
1977.
GEERTZ, Clifford. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro. Editora da Guanabara.
1989.
GROTOWSKI, Jerzy. O performer. In: eRevista Performatus. Inhuma, ano 3, n. 14,
jul, 2015.
MESLIN, Michel. "Noção de religião Popular". In: A experiência Humana do Divino.
Petrópolis: Vozes, 1992
.ZUMTHOR, Paul. "O empenho do corpo" In: Performance, recepção, leitura.
Tradução: Jerusa Prires Ferreira e Suely Fenerich. 1. ed. cosac Naify portatil. São Paulo,
2014.