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PARTE I- PASSADO E FUTURO DA TEORIA DA MODERNIZAÇÃO Conforme vimos na introdução desta tese, argumenta-se aqui que as “novas” operações de paz da ONU vêm sendo informadas por uma velha lógica: a da teoria da modernização. Ainda que tal teoria tenha sido desacreditada no mundo acadêmico e político na década de 70, autores como Beate Jahn (2007a; 2007b) e Nehal Bhuta (2008) acreditam que a sua lógica ainda continua em vigor, por exemplo, nas operações de reconstrução de Estados levadas a cabo pela ONU no pós-Guerra Fria. Argumenta-se, por conseguinte, que, embora as teorias da modernização tenham perdido credibilidade nos círculos acadêmicos e políticos, elas ainda continuam presentes no imaginário ocidental, tendo inclusive projetado sua influência para o campo das Relações Internacionais, onde, até o fim da Guerra Fria, sua influência havia sido marginal. Neste sentido, argumenta-se, seguindo a linha aberta por Blaney; Inayatullah (2004), que as teorias da modernização vêm sendo reinventadas como teorias das Relações Internacionais, a exemplo da teoria da paz liberal. Para desenvolver este argumento, a primeira parte da tese vai dedicar uma atenção especial à recuperação do pensamento kantiano no nosso campo desde o fim da Guerra Fria. Sugere-se que tal recuperação não é acidental, mas está conectada à narrativa modernizadora presente nas Relações Internacionais.

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PARTE I- PASSADO E FUTURO DA TEORIA DA MODERNIZAÇÃO

Conforme vimos na introdução desta tese, argumenta-se aqui que as

“novas” operações de paz da ONU vêm sendo informadas por uma velha lógica: a

da teoria da modernização. Ainda que tal teoria tenha sido desacreditada no

mundo acadêmico e político na década de 70, autores como Beate Jahn (2007a;

2007b) e Nehal Bhuta (2008) acreditam que a sua lógica ainda continua em vigor,

por exemplo, nas operações de reconstrução de Estados levadas a cabo pela ONU

no pós-Guerra Fria.

Argumenta-se, por conseguinte, que, embora as teorias da modernização

tenham perdido credibilidade nos círculos acadêmicos e políticos, elas ainda

continuam presentes no imaginário ocidental, tendo inclusive projetado sua

influência para o campo das Relações Internacionais, onde, até o fim da Guerra

Fria, sua influência havia sido marginal. Neste sentido, argumenta-se, seguindo a

linha aberta por Blaney; Inayatullah (2004), que as teorias da modernização vêm

sendo reinventadas como teorias das Relações Internacionais, a exemplo da teoria

da paz liberal. Para desenvolver este argumento, a primeira parte da tese vai

dedicar uma atenção especial à recuperação do pensamento kantiano no nosso

campo desde o fim da Guerra Fria. Sugere-se que tal recuperação não é acidental,

mas está conectada à narrativa modernizadora presente nas Relações

Internacionais.

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1 Teorias da Modernização e Teoria das Relações Internacionais: Diferentes Caminhos, mas um Destino Comum

O objetivo deste capítulo inicial é o de (i) apresentar os percursos distintos,

ainda que complementares, da teoria da modernização e da teoria das Relações

Internacionais e o de (ii) mostrar como a teoria da modernização vem, ainda que

implicitamente, ocupando um lugar de destaque nas Relações Internacionais desde

o fim da Guerra Fria.

Em primeiro lugar, é importante frisar que ambos os grupos de teorias

estão dispostos num mesmo registro hegemônico uma vez que se desenvolvem

nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. Neste contexto, os Estados

Unidos passam a assumir uma liderança ativa nos domínios econômicos e

políticos internacionais, deixando de lado a posição isolacionista tradicionalmente

associada ao período do entre-guerras. Conforme veremos, o florescimento de

ambas as teorias está intimamente conectado com esse novo papel hegemônico

assumido pelos Estados Unidos e, sobretudo, com as dinâmicas estratégicas da

Guerra Fria. Deste modo, ambas as teorias surgem como ciências sociais norte-

americanas, ainda que reivindiquem a universalidade dos seus saberes.

Apesar de todas estas similaridades acima destacadas, as quais serão

aprofundadas neste capítulo, estas teorias percorreram caminhos acadêmicos

separados após a Segunda Guerra, ainda que tais percursos tenham convergido

para uma mesma visão de mundo e servido, por diferentes vias, aos mesmos

interesses hegemônicos. A seguir, começarei analisando brevemente o caminho

percorrido pela emergente disciplina das Relações Internacionais no pós-guerra,

para, depois, fazer o mesmo em relação à teoria da modernização, chamando a

atenção para a divisão de trabalho implicitamente estabelecida entre estas teorias.

Assim, ainda que a primeira cátedra universitária em Relações

Internacionais tenha surgido em 1919 na Universidade de Gales (Aberyswyth)

com um enfoque idealista, depois da Segunda Guerra a disciplina passou a ser

“colonizada”20 pelos Estados Unidos, onde o realismo se tornou o senso comum

no âmbito político e acadêmico. A colonização do saber em Relações

20 Esta expressão é usada por Phillip Darby (2008) para se referir ao caráter etnocêntrico assumido pelo pensamento em Relações Internacionais.

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Internacionais pelos Estados Unidos denota que este saber passou a refletir as

preocupações, sobretudo estratégicas, da superpotência; o que levou Stanley

Hoffman (1977) a denominar as Relações Internacionais como uma “ciência

social norte-americana”. Todavia, na medida em que tais preocupações de “alta

política” não eram compartilhadas pelo mundo pós-colonial, a disciplina, segundo

Steve Smith (1989), cresceu de uma forma provinciana; o que comprometeu seu

desenvolvimento cosmopolita.

A hegemonia alcançada pelo pensamento realista nos Estados Unidos e

pelo mundo afora, durante a Guerra Fria, foi possibilitada pelas fortes subvenções

dirigidas à pesquisa e ao ensino das Relações Internacionais por parte do governo

e de fundações privadas norte-americanas (Hoffman, 1977; Smith, 1989). O forte

interesse público em promover a área das Relações Internacionais explicava-se,

segundo Smith (1989), pela necessidade sentida pelos líderes políticos norte-

americanos de contarem com diretrizes intelectuais, doravante oferecidas pelo

realismo, que pudessem guiá-los na “guerra” contra a União Soviética. Esta

relação dependente entre o mundo político e o acadêmico foi favorecida pela

agenda de política externa dos Estados Unidos durante a Guerra Fria -cujo foco

recaiu sobre a busca dos interesses nacionais entendidos sob a forma de poder

e/ou segurança- espelhava de forma extremamente próxima a agenda teórica do

realismo (ver Hoffman, 1977; Smith, 1989). Todavia, como nos mostra Hoffman

(1997), esta relação de parceria entre a academia e a comunidade política

comprometeu a produção do conhecimento em Relações Internacionais, a qual foi

impelida por razões financeiras a se focar no presente e a se concentrar em

questões de natureza prática, de resolução de problemas, em razão da ansiedade e

do sentido de urgência gerados pelo mundo ameaçado de destruição. Deste modo,

os estudos de Relações Internacionais concentraram-se nas grandes potências e,

sobretudo, no equilíbrio bipolar do sistema internacional. Nesse contexto o então

denominado “Terceiro Mundo” era levado em consideração toda vez que pudesse

afetar o equilíbrio de poder, por exemplo, via proliferação nuclear. Darby (2008)

observa criticamente que, quando confrontados com ameaças advindas do

“Terceiro Mundo”, políticos e acadêmicos recorriam, em grande medida, a

pressupostos convencionais. Desde a perspectiva do Ocidente, prossegue Darby

(2008), o primado da Guerra Fria garantiu que qualquer repensar sobre o mundo

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outrora colonizado, no âmbito das Relações Internacionais, automaticamente se

subordinasse aos cálculos de poder voltados para a balança central.

Num artigo mais recente, “The Discipline of International Relations is Still

an American Science?” (2000), Steve Smith chama a atenção para a função

disciplinadora das Relações Internacionais, mostrando que aquelas abordagens

que não conferiram prioridade à guerra entre Estados correram o risco de se

tornarem irrelevantes e de serem colocadas fora do escopo da disciplina. Nesse

sentido, o autor ressalta que as mortes derivadas da economia e não da política21 e

os atores não-estatais tenderam a ser percebidos como temas “outsiders” à

disciplina. Podemos concluir, portanto, que os temas mais relacionados com as

preocupações dos países menos desenvolvidos tenderam a ser negligenciados pela

disciplina que focou os problemas de segurança que tanto afligiam as grandes

potências durante a Guerra Fria e, assim, como nos mostra Arlene Tickner

(2003:295), os acadêmicos do “Terceiro Mundo” se mantiveram “invisíveis” no

campo.

Uma forma, salientada por Smith (1989), pela qual o “Terceiro Mundo”

foi excluído da produção de conhecimento em Relações Internacionais diz

respeito à auto-representação das Relações Internacionais enquanto uma “ciência

social”. Numa situação na qual as outras comunidades acadêmicas fora dos

Estados Unidos não eram treinadas e abertas aos métodos das ciências sociais,

elas se mostravam incapazes de formular alternativas que desafiassem a ortodoxia

realista. E assim, prossegue o autor, a disciplina se revelou incapaz de se

desenvolver numa base transnacional. Como veremos neste capítulo, a teoria da

modernização, surgida nos Estados Unidos, também arrogava para si uma

autoridade científica que marginalizava outras fontes de conhecimento que

pudessem resistir à sua engenharia social (Krishna, 2009).

Por outro lado, Smith (2000) nos explica que o mito de origem da

disciplina das Relações Internacionais segundo o qual o realismo substituiu o

idealismo do pós-Primeira Guerra foi construído a partir de outro mito de

fundação, qual seja, o de que a teoria realista prosperou dada a sua capacidade de

captar as “realidades” da política internacional22 sendo a única apta a produzir um

21 Frase de Ken Booth (apud Smith, 2000:378). 22 Todavia, em 1996, no artigo “Positivism and Beyond”, Smith já nos alertava acerca do caráter bastante limitado das “realidades” que os realistas sugeriam conhecer. Conforme Smith (1996), as

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conhecimento científico sobre a dinâmica internacional, enquanto o idealismo,

percebido como influenciado por valores, não pôde ter lugar no cânon científico.

Além disso, o impacto do realismo na disciplina contribuiu para que as

Relações Internacionais se estabelecessem como um campo de estudos separado,

autônomo (Smith, 1989; Halliday, 2007). Ao construírem uma fronteira bem

demarcada entre a arena doméstica dos Estados onde a vida política ordenada e

ética poderia ter lugar e a arena internacional anárquica onde reinariam os jogos

de poder, os realistas definiam esta última arena como o seu objeto de estudo;

deixando os cientistas políticos a cargo da arena doméstica. Portanto, como nos

mostra Halliday (2007), as Relações Internacionais gozaram de uma longa fase

“protecionista” e, só recentemente, começaram a aprender e a contribuir de forma

explícita com as demais áreas das ciências sociais. A expressão “explícita” é

destacada, pois, alega-se nesta tese, que por mais que as Relações Internacionais

tenham buscado construir tal imagem de ciência autônoma, divorciada dos outros

domínios das ciências sociais, de fato, as Relações Internacionais sempre

interagiram com estes domínios, como o próprio Halliday (2007) reconhece.

Nesse sentido, como nos mostram Blaney; Inayatullah (2002:104): “Rather than

comprising a distinctive sphere of inquiry, International Relations theory emerges

and remains embedded within a matrix of disciplines and sub-fields”.

Nesta tese as Relações Internacionais não serão compreendidas como uma

ciência social autônoma, uma vez que aqui se compartilha da idéia apresentada

por Walker (1993) de que a separação doméstico/internacional, a qual cria as

condições de possibilidade para a autonomia das Relações Internacionais, é

artificialmente construída. Para Walker (1993), a soberania estatal é a articulação

política moderna mais crucial das relações espaço-temporais. Espacialmente, o

princípio da soberania fixa uma clara demarcação entre a vida dentro (inside) e

fora (outside) de uma comunidade política. Esse discurso da soberania,

espacialmente informado, constitui a distinção entre duas tradições de pensamento

teorias estabelecidas no senso comum tornam-se extremamente poderosas, tendo em vista que definem o que é passível de ser conhecido, sugerido ou dito. Nesse sentido, a definição do senso comum é um ato último de poder político, porquanto as teorias não explicam ou predizem meramente, mas nos dizem também quais as possibilidades que existem para as intervenções humanas, definindo nossos horizontes éticos e práticos. De acordo com Smith, a epistemologia empirista do positivismo determinou os tipos de coisas que existem nas relações internacionais, limitando, desse modo, o que pode ser aceito ontologicamente.

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sobre a vida política moderna: a do pensamento propriamente político (inside) e a

das Relações Internacionais (outside). O corolário desta clara delimitação de

fronteiras obrada pela disciplina das Relações Internacionais é o de circunscrever

a vida política nos espaços territorialmente limitados. Assim, o Estado soberano

funciona como um container onde as aspirações universais do que se considera

como belo, como bom e verdadeiro podem ser alcançadas. Walker nos mostra,

portanto, que a resolução espacial permite uma contrapartida temporal, uma vez

que o Estado incorpora a promessa, outrora confiada à ordem divina, de

atualização de tais aspirações universais através do tempo. Contudo, o

universalismo só se realiza no particular, uma vez que fora das fronteiras estatais

prevalece o espaço da anarquia, da repetição e da contingência. As relações entre

os Estados operam, portanto, num espaço despolitizado que impossibilita a

vigência da história como uma teleologia progressiva. Sem embargo, segundo

Walker, é a reivindicação positiva de comunidade e justiça dentro das fronteiras

estatais que possibilita a reivindicação negativa do espaço internacional como

marcado pela diferença, relativismo e violência. Enfim, Walker nos mostra como

o princípio da soberania ofereceu tanto a resolução temporal como espacial para a

questão sobre o caráter e localização do político. A despeito de ser uma resolução

historicamente situada, segundo Walker, é ela que continua informando nosso

entendimento sobre como e onde a prática política efetiva e progressiva pode ser

lograda. Neste sentido, as teorias das Relações Internacionais condicionam a

ontologia do político toda vez que, ao subscrever tal entendimento, nos

disciplinam a pensar sobre a realidade das relações entre os Estados como

contraposta a algo mais autêntico e político, a saber, a vida dentro dos Estados.

Fica claro, portanto, porque, para Walker, a tradição das Relações Internacionais é

formulada como uma negação da tradição sobre a comunidade política

estabelecida no âmbito do espaço soberano. Em vista disso, as Relações

Internacionais são pensadas pela negação; o que leva Walker a concluir que

qualquer referência com sentido a uma tradição das Relações Internacionais

requer uma especificação prévia do que se entende por uma tradição da teoria

política (Walker, 1993).

Com bases nos insights de Walker acima colocados, esta tese argumenta

que a possibilidade de pensar o progresso na arena doméstica em contraposição a

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um ambiente anárquico foi facilitada, em grande medida, pela influência da teoria

da modernização no âmbito das ciências sociais norte-americanas no pós-Segunda

Guerra. Como nos mostra Blaney; Inayatullah (2004), em contraste com o

desenho convencional das Relações Internacionais, construído como um domínio

de violência e de desordem, a teoria da modernização geralmente caracteriza seu

objeto de estudo como uma comunidade ordenada e progressiva e, nesse sentido,

ela assume as demarcações espaciais da política internacional. Para Sutton (2006),

nas suas formas iniciais, o desenvolvimento era voltado para o progresso e o bem

estar de Estado-nações e não primeiramente para a melhora da vida individual ou

para o combate à pobreza, como recentemente entendido. Deste modo, a teoria da

modernização não só não rivaliza com as dicotomias espaciais presentes nas

teorias mainstream das Relações Internacionais, mas as reificam.

Conforme vimos, o contexto histórico de surgimento das teorias da

modernização coincide com aquele da disciplina das “Relações Internacionais”, a

saber, os Estados Unidos saídos da Segunda Grande Guerra. E assim como as

Relações Internacionais receberam generosos financiamentos dos setores públicos

e privados, o mesmo aconteceu com a teoria da modernização. Ainda que a teoria

da modernização contasse com uma agenda aparentemente dispare em relação à

agenda das Relações Internacionais, ela recebeu extraordinários incentivos para se

desenvolver. Como colocado por Lummis (1991), milhões de dólares de fontes

como a Fundação Ford e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos foram

emitidos para a pesquisa sobre modernização e desenvolvimento. No pós-Segunda

Guerra, portanto, fundações privadas, agências governamentais e universidades

criaram arranjos institucionais para gerar teorias da modernização (Cullather,

2002). Uma importante iniciativa neste sentido foi a criação do CENIS (Center

for International Studies) em 1951, pelo economista Max Millikan, quem recrutou

uma equipe multidisciplinar composta pelos economistas Paul Rosenstein-Rodan

e Walt W. Rostow, pelo sociólogo Edward Shils, pelo antropólogo Clifford Geetz,

pelos cientistas políticos Lucian Pye e Ithiel Pool, e também por Daniel Lerner, da

área das comunicações. O CENIS contou com um generoso financiamento por

parte das fundações Ford e Rockefeller para desenvolver pesquisa sobre o

“Terceiro Mundo” e contribuiu para a criação de uma série de conceitos, a

exemplo do conceito de transferência de tecnologia, que informaram a política de

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ajuda nas décadas seguintes (Cullather, 2002; Hemant, 2010). Outra iniciativa

importante foi o estabelecimento do “Comitê de Política Comparada” pelo SSRC

(Social Science Research Council) em 1953 no marco do qual Gabriel Almond e

Lucian Pye fizeram contribuições significativas para a criação, sob a rubrica da

política comparada, do paradigma dominante da teoria da modernização

(Cullather, 2002; Shah, 2010). Nesse contexto, inúmeros jovens acadêmicos

promissores do “Terceiro Mundo” tiveram seus estudos financiados nos Estados

Unidos para serem treinados para funcionarem nos Estados pós-coloniais como

uma nova elite modernizadora (Lummis, 1991). Em suma, conforme observado

por Lummis (1991), justamente quando cientistas sociais norte-americanos

estavam afirmando a superioridade da sua metodologia neutra, isenta de valor, um

campo de conhecimento inteiramente novo nas ciências sociais foi erguido por

meio de um bem financiado projeto governamental (Lummis, 1991).

A seguir, portanto, cabe identificar as condições de surgimento da teoria

da modernização, pouco discutidas nas Relações Internacionais, em parte devido

ao caráter “protecionista” assumido pelo campo.

Do mesmo modo que a teoria realista das Relações Internacionais serviu

aos interesses dos círculos políticos norte-americanos durante a Guerra Fria, a

teoria da modernização também foi pensada como uma contribuição intelectual

funcional voltada para neutralização da ameaça soviética. As próprias condições

subjacentes à emergência da teoria são reveladoras neste sentido, conforme

veremos a seguir.

Como nos mostra Lummis (1991), o súbito interesse manifestado pelos

Estados Unidos após a Segunda Guerra em promover o desenvolvimento dos

países do “Terceiro Mundo” não pode ser entendido sem levar em conta a

percepção de que uma política similar estava sendo gestada pela União Soviética,

ainda que no marco das suas fronteiras nacionais. Segundo Lummis (1991), o

impulso para a formulação desta doutrina de ajuda ao mundo pós-colonial foi

dado, em 1947, por Christopher Hill que no seu hoje desconcertante Lenin and the

Russian Revolution ofereceu uma expressão clara à seguinte idéia que pairava no

ar:

[S]oviet experience in the bringing of modern civilization to backward peoples, and especially the developing and collective farms as a means of self-government for agrarian peoples –this is bound to have enormous influence in Eastern

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Europe, Asia, and perhaps ultimately in Africa and South America (Hill, apud Lummis, 1991: 43, grifo meu).

Tal como colocado por Lummis (1991), dois anos após Hill ter feito a

observação acima, mais especificamente, em 20 de janeiro de 1949, o então

presidente norte-americano, Harry Truman proferiu um discurso célebre

conhecido como “Point Four Speech” por meio do qual anunciava a nova missão

dos Estados Unidos no mundo doravante entendido como “subdesenvolvido”. Nas

palavras de Truman (1949, grifo meu):

Fourth, we must embark on a bold new program for making the benefits of our scientific advances and industrial progress available for the improvement and growth of underdeveloped areas. More than half the people of the world are living in conditions approaching misery. Their food is inadequate. They are victims of disease. Their economic life is primitive and stagnant. Their poverty is a handicap and a threat both to them and to more prosperous areas. For the first time in history, humanity possesses the knowledge and the skill to relieve the suffering of these people. (…) I believe that we should make available to peace-loving peoples the benefits of our store of technical knowledge in order to help them realize their aspirations for a better life. And, in cooperation with other nations, we should foster capital investment in areas needing development (…). [T]his program can greatly increase the industrial activity in other nations and can raise substantially their standards of living (…). The old imperialism--exploitation for foreign profit--has no place in our plans. What we envisage is a program of development based on the concepts of democratic fair-dealing. (…) Experience shows that our commerce with other countries expands as they progress industrially and economically. Greater production is the key to prosperity and peace. And the key to greater production is a wider and more vigorous application of modern scientific and technical knowledge.23

Por meio do discurso acima, Truman colocou o desenvolvimento no topo

da agenda nacional, tendo sido o primeiro líder político a aplicar o termo

“subdesenvolvido” para representar os sujeitos em processo de modernização

(Cullather, 2002).

Ao pensarmos o desenvolvimento como um discurso

historicamente produzido, entendemos o porquê da necessidade de construir a

condição de “subdesenvolvimento” de determinados países, os quais, por meio de

tal auto-representação, passaram a pautar suas ações pela busca do

desenvolvimento (ver Escobar, 1995). A problemática do desenvolvimento,

23 Disponível em http://odur.let.rug.nl/~usa/P/ht33/speeches/truman.htm

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contudo, não está dada, mas foi construída pelo Ocidente, se tornando a gramática

a partir da qual os “Outros” não-ocidentais foram, a partir de então, avaliados e

“medicados” (ver Escobar, 1995). No marco deste discurso desenvolvimentista, a

“pobreza” foi construída como característica essencial dos povos do “Terceiro

Mundo”. Por meio de tal construção, o crescimento econômico e o

desenvolvimento se tornam auto-evidentes, necessários e verdades universais

(Escobar, 1995). Como nos coloca Escobar (1995), na medida em que

especialistas e políticos passam a perceber certas condições da África, Ásia e

América Latina como um problema relacionado à pobreza e ao atraso destes

países, então emergiu um novo domínio de pensamento, o “desenvolvimento”,

prescrevendo novas estratégias para lidar com o problema diagnosticado. Nesse

sentido, para Escobar (1995), o desenvolvimento deve ser entendido como um

discurso, um mecanismo de saber/poder que produz conhecimento sobre o

“Terceiro Mundo”, conhecimento este que cria as condições de possibilidade para

o emprego de novas formas de controle/intervenção. Daí, para Escobar (1995:9), o

discurso do desenvolvimento, que veio a tona entre 1945-55, do mesmo modo que

havia ocorrido com o discurso colonial: “has created an extremely efficient

apparatus for producing knowledge about, and the exercise of power over, the

Third World”. O discurso do desenvolvimento se configura enquanto um discurso

colonial na medida em que é entendido por Escobar (1995) como uma estratégia

produzida pelos países ditos do “Primeiro Mundo” para manter o controle sobre

os países do “Terceiro Mundo” os quais passam a se auto-representarem como

incapazes de administrarem suas próprias vidas sem o conhecimento técnico e

científico moderno provido pelos países ditos “desenvolvidos”.

Podemos destacar no discurso proferido por Truman algumas expressões

usadas para se referir aos “Outros” tradicionais tais como “primitivos” e

“estagnados”. Além disso, podemos ver que tais povos são descritos em termos do

que lhes falta: comida, saúde, conhecimento, capital e tecnologia. Em oposição a

eles, encontram-se os países desenvolvidos ocidentais que dispõem justamente do

que lhes falta, por exemplo: capital para investimento, estoque de conhecimento

técnico e produção industrial. Nesse sentido, enquanto os “Outros” são

representados como um “falta”, os Estados Unidos são representados como um

país que pode se valer da sua “abundância” para ajudar aqueles “Outros” que se

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encontram estagnados na miséria. A intenção ambiciosa da teoria da

modernização era a de, segundo Escobar (1995), replicar no mundo as condições

características das sociedades “avançadas” de então, quais sejam: altos níveis de

industrialização e urbanização, difusão da adoção da educação e de valores

culturais modernos, tecnologia agrícola, rápido crescimento material e altos

padrões de vida. Na visão de Truman, capital, ciência e tecnologia eram vistos

como os principais ingredientes que tornariam a modernização possível (Escobar,

1995). De acordo com Lummis (1991:48), esse novo conceito

(“subdesenvolvimento”) introduzido por Truman: “[S]ucceds in placing the vast

majority of the world’s cultures into a single category the sole characteristic of

which is the absence of certain characteristics of the industrialized countries”.

Conforme veremos nas partes II, III e IV da tese, esta dicotomia da

falta/abundância continua tendo uma enorme força produtiva no contexto

discursivo contemporâneo assim como também se fez presente à época colonial.

Se na época dos encontros coloniais entre o europeu e o não europeu, este último

já era constituído pela sua falta (de roupas, de cultivo, de civilização), hoje ele

continua sendo definido dessa forma, mas agora, pela falta, por exemplo, de um

Estado centralizado, de uma economia moderna de mercado e da chamada “boa

governança” (ver Doty, 1996; Darby, 2008; Todorov, 1999; Bhuta, 2008).

Este pensamento constrói desta forma uma distância entre o Ocidente

“desenvolvido” e o “Outro” subdesenvolvido. A comparação entre estes dois

mundos, contudo, é feita desde algum lugar que não é neutro, mas definido desde

a perspectiva do dito “Primeiro Mundo”. Através do exame do discurso temporal

antropológico, Fabian Johanes (2002) mostra que na construção do “Outro” como

“selvagem”, “primitivo” e, nesse caso, como “subdesenvolvido”, o tempo é usado

de forma opressiva com o fito de temporalizar a diferença. De acordo com

Johanes (2002:1): “there is no knowledge of the other which is not also temporal,

historical, a political act”.

Esta diferença temporalizada, contudo, não é entendida como permanente,

mas, no marco do discurso do desenvolvimento, ela carrega consigo o potencial

para o progresso rumo a etapas mais avançadas de desenvolvimento. De acordo

com Blaney; Inayatullah (2004), a teoria da modernização projeta uma seqüência

de desenvolvimento natural e universal através da qual todas as culturas e

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sociedades têm de passar. A implicação desta teoria, segundo os autores, é que a

velocidade desta modernização pode ser aumentada através da “ajuda” conferida

àqueles povos cuja diferença os marcam como inferiores por parte daqueles que já

atravessaram tal caminho se situando, portanto, na fase final deste processo. Para

Jahn (2007), a filosofia da história liberal fornece a estrutura analítica subjacente

para o modelo de desenvolvimento das teorias da modernização, segundo o qual, a

humanidade se move através de etapas, desde a tradição passando pela fase

transitória da tradição/modernidade até a modernidade.

De acordo com a teoria da modernização, a sociedade moderna é

representada como sendo dotada de mobilidade e receptiva à mudança, secular,

cosmopolita, marcada por uma complexa divisão de trabalho e controladora em

relação ao meio ambiente (Gilman, 2003). A sociedade tradicional, por sua vez, é

construída em oposição à moderna e, daí, como inerte, temerosa em relação à

mudança, supersticiosa, voltada para dentro, economicamente simples e passiva

em relação ao meio ambiente (Gilman, 2003). A sociedade moderna, no marco da

teoria da modernização é identificada com o Ocidente e, sobretudo, com a

sociedade norte-americana (Jahn, 2007; Latham, 2000). Para Krishna (2009), a

teoria da modernização olha para o mundo desenvolvido ocidental do seu tempo a

procura das características dominantes dos indivíduos, sociedades e Estados. Estas

características são congeladas como marcas eternas destas sociedades e valiosas

de emulação para aqueles que desejam progredir.24

É importante salientar que a teoria da modernização toma a sociedade

individual como a sua unidade básica de análise, considerando-a como um todo

integrado (ver Jahn, 2007). Deste modo, tanto a tradição como a modernidade são

vistas como sistemas estáveis nos quais, o modo de produção, as formas de

organização política e os valores culturais são tidos como interdependentes, se 24 Nesta tese, contudo, não buscarei conferir qualquer conotação empírica àquela que é considerada a etapa final do processo de desenvolvimento, a modernidade. Assim, a etapa final do desenvolvimento, corresponderia, mais propriamente, a uma versão abstrata do que os teóricos norte-americanos desejavam que o país fosse (ver, por exemplo, Gilman, 2003). Não se pretende atribuir qualquer conteúdo positivo ou a priori à modernidade. A idéia de modernidade será vista, portanto, como contingente, sujeita a diferentes conotações ao logo do tempo e do espaço, bem como dependente do seu pólo oposto, a tradição, para se constituir. Deste modo, tradição e modernidade são aqui entendidas como construções discursivas que têm, todavia, fortes implicações práticas, posto que, como vimos, deram origem a um campo de conhecimento o qual prescreve estratégias voltadas para a aceleração do desenvolvimento daquelas áreas lidas a partir de um conjunto de legendas depreciativas tais como “subdesenvolvidas”, “tradicionais”, “primitivas”, “estagnadas”, etc.

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reforçando mutuamente (Jahn, 2007). De acordo com tal ótica, na medida em que

nações atrasadas progridem, uma forma moderna de vida englobando um pacote

total de elementos (incluindo: economia industrial, tecnologia científica, política

democrática liberal e visão de mundo secular) se universaliza (Ferguson, 2006). E,

assim, mais do que mero aumento material, a modernização implica numa

reorientação de todo um sistema social, político e econômico concebido como

uma totalidade integrada na direção das normas definidas pelo Ocidente (Gilman,

2003).25

Com o mundo entendido como uma coleção de sociedades nacionais, as

desigualdades são depreendidas da posição ocupada pelas diferentes nações no

trajeto temporal rumo ao telos universal e uniforme da modernidade (ver

Ferguson, 2006). E, assim, a seqüência do desenvolvimento era dirigida da

tradição para a modernidade e ambas as etapas entendidas como formas

sucessivas e incompatíveis de vida (Blaney; Inayatullah, 2004). Partindo de uma

assumida natureza progressiva do tempo, as nações que até então não eram

modernas tinham a esperança de se tornar com o tempo (Ferguson, 2006). Para

Ferguson (2006), as implicações desta poderosa narrativa seriam: (i) a de

transformar a hierarquia global espacializada em seqüência histórica

temporalizada, fazendo com que os países pobres não estivessem apenas na base

da hierarquia, mas também no começo dela e, assim, as nações pós-coloniais se

viam condenadas a viver como atrasadas numa modernidade eurocêntrica e (ii) a

de fornecer esperança de que a passagem do tempo desenvolvimentista fosse

conduzir os países pobres para o patamar dos ricos de tal sorte que a mensagem

para os pobres era: “Wait, have patience, your turn will come” (Ferguson, 2006:

178).

A fim de que diferentes nações pudessem ser localizadas neste espectro

temporal acima mencionado foi desenvolvida, no âmbito da teoria da

modernização, uma suposta ciência universal de comparação neutra. Para que tal

comparação se fizesse possível, os Estados foram construídos como “like-units”,

caracterizados pela uniformidade relativa dos seus sistemas políticos e seguindo

padrões comuns de desenvolvimento (Blaney; Inayatullah, 2004). Todavia, a 25 Gilman (2003) nos mostra que antes da Segunda Guerra, o termo modernização nunca havia sido usado para se referir à sociedade como um todo orgânico, mas se aplicava apenas a sistemas técnicos ou administrativos específicos, a exemplo da modernização de um porto.

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suposição de um espaço homogêneo de comparação só é possível a partir da

abstração das histórias contingentes e heterogêneas destas sociedades e da fixação

das mesmas em certas categorias ou estágios que, em nome de uma ciência

comparativa, acaba por simplificá-las e estereotipá-las. Conforme Blaney;

Inayatullah (2004:101), a política de comparação: “impoverish our political

imagination, locking us into the world of like-units and development sequences”.

Este método comparativo, associado, sobretudo, ao ex-professor de

Harvard, Talcott Parsons, é apresentado, como já destacado, como um método

científico, neutro, não etnocêntrico, capaz de conhecer a realidade de forma

objetiva (Latham, 2000; Blaney; Inayatullah, 2004). O perigo de tal aspiração

científica, contudo, é que ela universaliza um padrão particular de mudança social

e naturaliza a diferença em termos de inferioridade (Latham, 2000; Blaney;

Inayatullah, 2004). A modernidade neste esquema se torna uma categoria

universal abstraída do contexto onde ela foi gestada. Segundo colocado pelo

sociólogo Edward Shils (apud Gilman, 2003:12) em 1959: “‘Modern’ means

being western without the onus of following the West. It is the model of the west

detached in some way from its geographical origins and locus”. Nesta narrativa,

portanto, as características do desenvolvimento europeu e norte-americano são

abstraídas dos seus contextos de origem, e consideradas indicadores objetivos do

que se entende por ser “moderno” (Bhuta, 2008).

Por conseguinte, os teóricos da modernização como Parsons e Rostow

atribuíram qualidades especiais às sociedades dos Estados Unidos e da Europa

Ocidental em oposição às deficiências discernidas no mundo pós-colonial

(Latham, 2000).

Falar de teoria da modernização necessariamente implica falar de Walt

Rostow cujo trabalho amiúde citado The Stages of Economic Growth: A Non-

Comunist Manifesto de 1960 é considerado exemplar para os estudos de

modernização. Podemos ver neste trabalho a elaboração dos principais

pressupostos explícitos e implícitos da teoria da modernização.

Explicitamente, Rostow, que tinha fortes ligações com o Departamento de

Estado norte-americano (Hemant, 2010), argumentou que todas as nações do

mundo poderiam ser alocadas em um dos cinco estágios de desenvolvimento

econômico por ele proposto, sendo que o último deles, pioneiramente alcançado

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pelos Estados Unidos, correspondia à sociedade moderna caracterizada por um

alto nível de consumo (Rostow, 1965).

A seguir apresento resumidamente os cinco estágios popularizados por

Rostow. O primeiro deles é o da sociedade tradicional inserida num mundo pré-

newtoniano26 e, logo, caracterizada por funções de produção bastante limitadas.

Na medida em que a ciência e a tecnologia modernas não estão disponíveis ou não

são aplicadas de modo sistemático, estas sociedades têm de devotar uma alta

proporção de seus recursos para a agricultura de subsistência. Esta sociedade

agrária é descrita por Rostow como rígida e hierárquica com populações em larga

medida estáticas, à mercê da natureza e, daí, sujeitas a um fatalismo de longo

prazo. Nesta estrutura, as famílias e as conexões clânicas têm uma enorme

influência na organização social e os indivíduos ainda viveriam numa fase pré-

moderna, pois ainda não teriam se desenvolvido como seres racionais,

individualistas e capazes de adiar o prazer e o consumo imediatos.

O segundo estágio se refere ao desenvolvimento das pré-condições para o

arranco ou para o que Rostow denomina de “take-off”. Liderada pela Inglaterra no

final do século XVII e durante o século XVIII quando colocou a ciência moderna

a serviço da agricultura e da indústria gerando conseqüências extremamente

positivas em termos de produtividade, nesta fase, as sociedades tradicionais

experimentam transformações em todas as searas. Aqui, por exemplo, os valores

individualistas começam a emergir e, com isso, os indivíduos aumentam suas

expectativas, almejando lucros, tanto nas áreas urbanas como rurais. Com a

ascensão dos valores individualistas, os homens passam a ser valorizados na

sociedade não mais em razão das suas origens clânicas ou familiares, mas, sim,

devido às suas habilidades individuais de desempenhar determinadas funções

especializadas. É nesta fase que emerge, portanto, a percepção moderna da

natureza como um recurso exterior aos indivíduos a ser racionalmente explorado e

manipulado caso as sociedades queiram progredir. Segundo Rostow (1965:19):

[M]en must come to be valued in society not for their connection with clan or class (...) but for their individual ability to perform certain specific, increasingly specialized functions. An above all the concept must be spread that man need not regard his physical environment as virtually a factor given by nature and

26 Rostow explica que Newton é usado como um símbolo divisor de águas da história quando o homem passou amplamente a acreditar no mundo externo como sujeito a poucas leis conhecidas e à manipulação produtiva.

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providence, but as an ordered world which, if rationally understood, can be manipulated in ways which yield productive change and, in one dimension at least, progress

Nesta fase transitória, as sociedades se preparam ou, na maioria das vezes,

são preparadas por forças externas, a exemplo da guerra e da importação de idéias

de outras sociedades, para o crescimento sustentado. De acordo com Rostow

(1965:6):

The more general case in modern history (...) saw the stage of precoditions [to take-off] arise not endogenously but from some external intrusion by more advanced societies. These invasions (…) shocked the traditional society and began or hastened its undoing; but they also set in motion ideas and sentiments which initiated the process by which a modern alternative to the traditional society was constructed out of the older culture.

Para Rostow, o nacionalismo reativo contra a intrusão de nações mais

avançadas se traduziu numa força motora poderosa na transição das sociedades

tradicionais para modernas, tanto quanto a busca por lucro. O conceito de

nacionalidade, transcendendo os velhos laços clânicos ou regionais, se cristalizou,

segundo Rostow, em função do ressentimento acumulado contra o poder colonial

e, a partir daí, se expressou por meio de pressões políticas e militares pela retirada

do colonizador. O fato das sociedades tradicionais lutarem pela retirada do

colonizador e, por meio deste processo de luta, progredirem ao longo da escala

projetada por Rostow, não quer dizer que o autor não reconheça os efeitos

positivos oriundos da colonização, afinal, ela é responsável pela exportação da

própria idéia nacionalista. Para ele, como nos mostra Latham (2000), o contato

com o Ocidente normalmente produz um efeito demonstrativo por meio do qual

os valores e os métodos externos transformam as instituições indígenas e

conduzem as culturas tradicionais para o progresso. De acordo com Rostow

(1965:27):

Although imperial powers pursued policies which did not always optimize the development of the preconditions for take-off, they could not avoid bringing about transformation in thought, knowledge, institutions and the supply of social overhead capital which moved the colonial society along the transitional path; and they often included modernization of a sort as one explicit object of colonial policy.

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Deste modo, o colonialismo passa a fazer parte da seqüência natural de

desenvolvimento das sociedades rumo a fases eticamente mais avançadas. O

poder colonial é louvado pela habilidade de exportar a tecnologia e a ciência

modernas para as sociedades tradicionais alavancando, deste modo, o processo de

modernização.

Por outro lado, este segundo estágio é particularmente relevante para o

argumento aqui desenvolvido, pois fica claro que o Estado-nação que emerge

neste momento, é tido por Rostow como o único arranjo político onde a

modernização pode ter lugar. A construção de um Estado centralizado aparece

aqui como uma condição sine qua non para o processo de arranque das sociedades

tradicionais. Nas palavras de Rostow (1965:7), o Estado centralizado: “was,

almost universally, a necessary condition for take-off”. Este Estado deve ser

conduzido por uma nova elite incumbida de construir uma sociedade

industrializada moderna preparada para enfrentar os grupos sociais e políticos

tradicionais regionalmente organizados bem como as intervenções estrangeiras.

Se na fase tradicional, os arranjos econômicos, políticos e sociais eram

estruturados em torno de pequenas regiões, em sua maioria, auto-suficientes,

agora, eles deveriam ser orientados para a nação e a partir daí para o cenário

internacional.

No terceiro estágio, correspondente ao próprio arranque ou “take-off”, a

transição é finalizada e, a partir de então, a taxa estável de crescimento pode ser

sustentada pois conforme Rostow (1965:7): “the old blocks and resistances to

steady growth are finally overcome”.

No quarto estágio, chamado “the drive for maturity”, Rostow (1965:10)

define maturidade da seguinte forma:

Formally, we can define maturity as the stage in which an economy demonstrates the capacity to move beyond the original industries that powered its take-off and to absorb and to apply efficiently over a very wide range of resources –if not the whole range- the most advanced fruits of (then) modern technology. This is the stage in which an economy demonstrates that it has the technological and entrepreneurial skills to produce not everything, but anything that it chooses to produce.

E finalmente, o estágio final é definido como a era do alto consumo de

massa. Neste momento, os setores líderes se reorientam desde a produção de bens

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de consumo duráveis para o setor de serviços. Ainda que Rostow não exclua a

possibilidade de se ir além da quinta e última fase, o autor deixa claro que a sua

direção é impossível de prever.

Os pressupostos implícitos na teoria de Rostow são que o desenvolvimento

constitui, como nos mostra Krishna (2009), um processo amplamente nacional,

auto-contido e não histórico. A história é negligenciada na medida em que cada

país parece avançar em condições idênticas seja no século XVII ou na metade do

século XX. Neste sentido, poderíamos agregar, o desenvolvimento dos Estados

Unidos é tomado como modelo a partir do qual o resto do mundo vai ser avaliado

e posicionado na escala de progresso criada por Rostow. Por outro lado, é este

esquema, ao mesmo tempo universal, que abarca todos os Estados de todos os

tempos históricos, e hierárquico – visto que aloca os Estados em etapas discretas e

normativamente estruturadas -, o qual permite que se façam comparações entre os

Estados por parte de um observador supostamente neutro, situado fora da história.

Todavia, assim como veremos em relação ao universalismo kantiano, o

universalismo explícito nas teorias da modernização é, de fato, produzido por

autores que falam desde uma posição bastante confortável e privilegiada, a saber,

desde o último estágio rostowiano.

Apropriado pelos teóricos da modernização interessados em transformar as

sociedades tradicionais em modernas, o método comparativo lhes ajudou a

identificar os obstáculos a tal transformação fornecendo, desse modo, uma base

para a prescrição de políticas voltadas para uma mudança social abrangente

(Hemant, 2010). Para Rostow, os Estados Unidos deveriam se comprometer com

tal impulso transformador a fim de desfazer a imagem que aparece na passagem

de Hill de acordo com a qual somente o comunismo seria capaz de transformar as

sociedades subdesenvolvidas. O subtítulo do livro de Rostow “A Non-Communist

Manifesto” deixa clara a sua intenção declarada de substituir Marx como

referência intelectual para revolucionários. Para ele, o comunismo não era um

agente de modernização, mas, sim, uma degeneração do processo de transição, a

qual produziu uma modernidade disfuncional (Cullather, 2002). Por outro lado, os

custos de tal envolvimento norte-americano nas sociedades em vias de

modernização não seriam grandes, tendo em vista que ao focar apenas as nações

alcançado o “take-off”, os Estados Unidos poderiam exercer uma influência

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decisiva sobre as mesmas sem incorrer numa obrigação indefinida (Cullather,

2002).

Pelo que foi dito, a teoria da modernização parece sugerir uma ampliação

do escopo geográfico e temático vis-à-vis à ortodoxia das Relações Internacionais.

Fica claro que o foco prioritário da teoria da modernização não reside, pelo menos

aparentemente, nas superpotências27, mas, sim, no chamado “Terceiro Mundo” e

que ao invés de se concentrar nos assuntos de “alta política”, ela clama por

mudanças de ordem econômica, e daí, enfatiza aquilo que os teóricos realistas

denominam temas de “baixa política”. De acordo com Lummis (1991), é possível

identificar na teoria da modernização o mesmo tipo de determinismo econômico

encontrado nas teorias marxistas, mas apresentado por meio da terminologia

positivista de então. Citando a seguinte passagem do cientista político norte-

americano David Apter (apud Lummis, 1991:46): [I]n industrializing societies it

is the economic variable that is independent. The political system is the

dependent variable”, Lummis argumenta que a mensagem da teoria da

modernização era a de que se você controla a economia, você controla todo o

resto.

A teoria da modernização e a teoria das Relações Internacionais

estabelecem diferentes percursos: enquanto as Relações Internacionais focam no

plano externo, a teoria da modernização foca na dimensão interna dos Estados,

enquanto as Relações Internacionais focam nas grandes potências, a teoria da

modernização foca no “Terceiro Mundo”, enquanto as Relações Internacionais

foca nos temas estratégicos, a teoria da modernização foca nos temas econômicos

e sociais. Argumenta-se aqui que esta divisão de trabalho tem força produtiva,

pois reifica uma série de fronteiras: entre o plano internacional e o doméstico,

entre o “Primeiro” e o “Terceiro Mundo” bem como entre política e economia.

Enfim, a própria ilusão de que tais temáticas poderiam ser estudadas de forma

separada, acaba por produzir a fronteira entre as mesmas. Argumenta-se aqui que

a compartimentalização dos saberes, a separação entre o “Primeiro” e o

“Terceiro” mundos por barreiras disciplinares participou da separação ontológica

dos mesmos, dificultando, desse modo, a imaginação de qualquer implicação do

27 Como notamos acima, ainda que a teoria da modernização dirija sua atenção para o Terceiro Mundo, ela está intimamente conectada a crença de que a ajuda ao desenvolvimento pode vir a neutralizar a ameaça soviética, conforme foi mostrado acima.

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“mundo desenvolvido” no atraso do “mundo subdesenvolvido”, como foi

sugerido, por exemplo, pelos teóricos da dependência. Para os críticos da teoria da

modernização, o desenvolvimento deve sempre ser entendido como tendo lugar

numa economia mundial interconectada antes do que no marco dos Estados-

nações (Krishna, 2009). Deste modo, o internacional e o nacional se

interconectam.

A idéia de Rostow, já apresentada, é a de que cada país está posicionado

num ponto de uma corrida que opera em condições idênticas independente do

século em foco (Krishna, 2009). E, deste modo, Rostow não cogita a possibilidade

de que o desenvolvimento pioneiro de alguns países pode ter alterado de modo

irrevogável os prospectos do desenvolvimento daqueles que se encontram nas

últimas posições da corrida (Krishna, 2009). Nas palavras de Krishna (2009: 14):

“[H]e [Rostow] believes that when it comes to development you can steep into the

same river not merely twice but an endless number of times”. Ele não considera,

portanto, que o desenvolvimento inicial dos primeiros corredores possa ter

prejudicado decisivamente os esforços dos últimos para se equiparar aos primeiros

(Krishna, 2009). A abordagem pós-colonial, diferentemente, enfatiza o papel do

“Terceiro Mundo” na produção da Europa a qual não seria o que é sem as

interações materiais, sociais, intelectuais e culturais com o mundo colonial

durante os séculos passados (ver Krishna, 2009). Daí, Ocidente e o “Terceiro

Mundo” são vistos, pelos críticos da teoria da modernização, como entidades

mutuamente constituídas cujas características singulares emergiram desta

interação (Krishna, 2009).

E, assim, apesar de aparentemente rivalizar com o discurso realista

dominante nas Relações Internacionais durante a Guerra Fria, o discurso da teoria

da modernização funcionou apenas como o complemento doméstico do mesmo.

No marco dos Estados nacionais se fazia possível pensar em desenvolvimento e

progresso enquanto os temas estratégicos ficavam a cargo das Relações

Internacionais. 28

O fato da teoria da modernização focalizar o “Terceiro Mundo” não

significa, contudo, que ela falasse desde este lugar, uma vez que conforme vimos 28 É importante deixar claro, contudo, que a teoria da modernização está explicitamente voltada não apenas para o propósito de modernizar os países do Terceiro Mundo, mas também, asseverava, como objetivo secundário, a promoção da segurança do “Primeiro Mundo” (Jahn, 2007).

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o saber sobre o “Terceiro Mundo” continuava sendo produzido no “Primeiro”.

Conforme observado por Ferguson (2006:176): “Africa always seems to come to

the question of modernity from without”. Desse modo as complexas e singulares

genealogias dos países do “Terceiro Mundo” eram negligenciadas e suas

características eram produzidas à luz dos modelos ocidentais de modernidade. E,

assim, no momento em que o “Terceiro Mundo” se tornava independente e, daí, se

igualava juridicamente ao “Primeiro Mundo” passando a integrar a ordem espacial

moderna de Estados soberanos, a teoria da modernização inseria uma coordenada

temporal que continuava afastando o Ocidente do mundo “não-desenvolvido”.

Nesse sentido, a narrativa da Escola Inglesa das Relações Internacionais

que nos fala acerca da universalização da sociedade internacional resultante da

ampliação das normas e valores europeus para o resto do mundo, de fato, encobre

esta função opressora do tempo que conforme destacado por Johanes (2002)

continua afastando os europeus dos “Outros” primitivos. Logo, a universalização

da dicotomia espacial (anarquia internacional versus ordem doméstica), outrora

restrita à parte, ainda reduzida, de Estados independentes no mundo, passa a

ocultar uma outra fronteira, esta, temporalmente produzida, entre o mundo

“desenvolvido” e o mundo “não-desenvolvido”. Nesse sentido, ambas as teorias –

das Relações Internacionais e da modernização - estariam à frente de um mesmo

propósito hegemônico; o que explica o porquê de ambas terem recebido enormes

incentivos do governo norte-americano para se desenvolverem.

Por outro lado, na medida em que articulava o papel dos Estados Unidos

como garantidor da assistência àqueles Estados na pobreza, a teoria da

modernização participava da produção da identidade norte-americana como uma

nação progressiva e moralmente elevada. Como nos mostra Latham (2000), os

teóricos da modernização elaboraram uma identidade atraente para os Estados

Unidos ao lhe representarem como uma nação empenhada na luta contra a

pobreza, a opressão e o fatalismo debilitante. Todavia, conforme vimos, nas

Relações Internacionais, caracterizada como uma arena isenta de valores morais e

onde a luta por poder era tida como inevitável devido às pressões sistêmicas que

independiam da qualidade interna destes Estados, esta elevada moralidade não se

aplicava dada as exigências da balança de poder. Enfim, a combinação deste

conjunto de teorias durante a Guerra Fria, foi capaz de produzir os Estados Unidos

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como uma nação moralmente elevada que buscavam incluir os povos do “Terceiro

Mundo” em contraposição ao comportamento explorador dos colonialistas do

Velho Mundo (mas que, na verdade, continuava excluindo e oprimindo estes

povos por meio de uma fronteira temporal), e ao mesmo tempo como uma nação

que perseguia seus interesses nacionais estratégicos tidos como inevitáveis.

Enfim, a teoria da modernização contribuiu para a produção do semblante moral

norte-americano o qual, por sua vez, parecia não rivalizar com o semblante,

produzido pela ortodoxia realista das Relações Internacionais, de uma nação

impelida a buscar a sua segurança e a realização dos seus interesses nacionais,

dada as exigências da anarquia internacional.

Ambos os campos de conhecimento, contudo, enfrentam desafios na

década de 70. Nesse momento, o poder explanatório das teorias da modernização

pareceu crescentemente dúbio uma vez que poucas sociedades ditas “em

modernização” chegaram de forma bem sucedida, como previsto, na estação final

de democracia liberal e de desenvolvimento econômico (Bhuta, 2008). Como

colocado por Escobar (1995), a abundância prometida pela teoria da

modernização na década de 50 se revelou enganosa, pois o que se verifica a partir

da década de 70 é justamente o oposto: subdesenvolvimento massivo,

empobrecimento, exploração e opressão. Todavia, no momento em que as teorias

da modernização perdiam credibilidade para explicar o processo em curso na

arena doméstica dos Estados do “Terceiro Mundo”, elas pareciam se inserir de

modo crescente na arena internacional onde, até o momento, o pressuposto

realista acerca da imutabilidade do sistema internacional havia reinado de forma

hegemônica.

E, assim, no campo das Relações Internacionais, assistimos à emergência

de abordagens que questionavam a teoria realista, reconhecendo diferentes atores

e temas de relevância. Conforme nos mostra Ole Waever (1996), no final dos anos

60 e através dos anos 70, houve uma crítica crescente ao paradigma realista

dominante, sobretudo, à sua visão de mundo, a saber: ao seu alegado foco no

Estado, à sua preocupação com o poder e ao seu silêncio em relação (i) a vários

tipos de processos, domésticos e transnacionais e (ii) em relação a vários tipos de

temas para além dos político-militares. Os desafiantes não apenas formularam

críticas ao realismo, mas também tentaram apresentar concepções alternativas de

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sistema internacional em termos de integração regional, transnacionalismo,

interdependência e um sistema pluralista de numerosos atores sub e transnacionais

que constituíam uma visão de mundo mais complexa do que a realista, centrada

nos Estados (Waever, 1996).

Deste modo, na década de 70, os discursos das Relações Internacionais

pareciam sugerir que, em contraste com o sistema internacional anárquico, as

relações internacionais poderiam estar experimentando o mesmo processo de

modernização dos Estados nacionais (ver em Blaney; Inayatullah, 2004).

Neste contexto, Edward Morse (1976), por exemplo, sugere no livro

“Modernization and the transformation of international relations”, que as

relações internacionais estariam se modernizando e, desse modo, tornando

obsoleto o seu paradigma tradicional, o qual, centrado na visão de mundo

westphaliana, focalizava o Estado soberano, o primado da política externa e a

balança de poder. Para Morse (1976), a crescente interdependência econômica

entre as nações estaria minando a autonomia do Estado bem como sua

exclusividade enquanto ator das relações internacionais.

Todavia, no final da década de 70 e durante a década de 80, os principais

conceitos realistas voltam a ser afirmados por meio do neo-realismo que trata de

forjar ainda com mais intensidade a separação espacial entre um plano doméstico

de ordem e um plano internacional anárquico (ver Waltz, 1979). Segundo tal

imaginário neo-realista, enquanto o tempo internacional é congelado num tempo

primitivo desautorizando o desenvolvimento do sistema de Estados, o tempo

“doméstico” se desdobra teleologicamente em cada Estado-nação (Blaney;

Inayatullah, 2004). Sem embargo, segundo Walker (1993), é a reivindicação

positiva de comunidade e justiça dentro das fronteiras estatais que possibilita a

reivindicação negativa do espaço internacional como marcado pela diferença, pelo

relativismo e pela violência.

Esta tese argumenta que, desde o fim da Guerra Fria, este imaginário

realista vem sendo invertido, posto que, cada vez mais, o domínio internacional é

produzido discursivamente como uma arena de progresso, fruto da crescente

perspectiva societária vislumbrada para o espaço internacional; fenômeno este

percebido por Blaney; Inayatullah (2004). Segundo tais autores, desde o fim da

Guerra Fria, a modernização vem sendo crescentemente imaginada como um

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processo global. Nesse contexto, as teorias das Relações Internacionais, a

exemplo da teoria da paz liberal, vêm reproduzindo o imaginário das teorias da

modernização e, por isso, são cunhadas pelos autores de teorias de “neo-

modernização” (Blaney; Inayatullah, 2004). Conforme Blaney; Inayatullah

(2004), estas teorias se distanciam da visão tradicional do sistema internacional

como um estado de natureza perpétuo, para sempre primitivo, ao vislumbrarem a

possibilidade de transformação da anarquia internacional. Deste modo, os teóricos

da paz liberal se afastam da lógica neo-realista de auto-reprodução da anarquia

internacional e, passam a conceber a possibilidade de mudança do sistema

internacional desde um sujeito pré-moderno para um sujeito moderno. Isto

porque, diferentemente dos neo-realistas, tais teóricos sugerem que o processo de

modernização das sociedades nacionais transbordou para as relações

internacionais, pacificando-as. Tal reconhecimento, por sua vez, leva a erosão da

fronteira entre a comunidade “dentro” dos Estados e a anarquia “fora” dos

Estados, ao sugerir que o processo de modernização deixa de estar confinado ao

Estado-nação, minando, desta forma, a estrutura espaço-temporal da política

mundial (Blaney; Inayatullah, 2004). A expansão da modernização do

Internacional faz com que este espaço, tradicionalmente concebido como uma

ausência possa caminhar, pouco a pouco, na direção da justiça, da razão e da paz.

Todavia, neste processo de gradual inclusão, a subjetividade moderna necessita de

um “Outro” que lhe dê sentido, o qual é encontrado sob a forma dos espaços ainda

não modernizados da política mundial (Walker, 1995).

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2 As Origens Coloniais da Teoria da Modernização

O objetivo deste capítulo é o de rastrear os traços racistas e excludentes

presentes, ainda que negados, na teoria da modernização.

Conforme vimos no capítulo anterior, embora a teoria da modernização

tenha surgido num contexto histórico específico e tenha sido pensada como uma

estratégia para neutralizar a ameaça soviética durante a Guerra Fria, ela aspirou ao

status de uma ciência universal e, assim, se auto-representou como uma teoria

descolada do seu tempo e espaço. Se o capítulo anterior intentou conectar a teoria

da modernização ao contexto histórico norte-americano do pós-guerra, onde ela

foi institucionalmente impulsionada, esse capítulo pretende dar um passo

adicional: conectar esta teoria ao contexto imperialista europeu que lhe precedeu.

2.1 Antecedentes Excludentes da Teoria da Modernização

Conforme observa Latham (2000), a teoria da modernização usualmente

nega qualquer conexão com as filosofias da história prévias e apresentam seus

trabalhos como “científicos”. Apesar de tais alegações, para o autor, a teoria da

modernização guarda inúmeras coincidências com a teoria social européia que lhe

antecede, por exemplo, no uso dos estágios de progresso e na ênfase conferida à

habilidade das sociedades “desenvolvidas” de promoverem a modernização

daquelas mais “primitivas”. Latham (2000) prossegue argumentando que Parsons,

Rostow e os demais teóricos da modernização empregaram uma lógica

absurdamente similar àquela que guiou o Iluminismo e os modelos evolucionários

de mudança social. E assim mesmo que o mundo tenha se tornado formalmente

descolonizado, os modernizadores continuaram a (i) definir as virtudes das nações

“avançadas” em oposição às “deficiências” intrínsecas das mais pobres,

argumentando que o contato com o Ocidente só poderia produzir um efeito

benéfico, catalítico sobre as sociedades “atrasadas” e a (ii) asseverar que para

promover o desenvolvimento global fazia-se necessário encontrar as lições

corretas no próprio passado dos Estados Unidos (Latham, 2000).

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Nesta mesma linha, Bhuta (2008) mostra que embora os proponentes da

teoria da modernização negassem qualquer associação com os esquemas

evolucionistas explicitamente racistas do século XIX, eles, em última instância,

buscaram reabilitar um elemento básico deste período, a saber: “the attempt at a

systematic comparison of other political environments along axes defined by the

characteristics of the polítical development of the West” (Bhuta, 2008:530). Desse

modo, ainda que teoria da modernização evite o racismo dos discursos

colonialistas prévios, ela ainda define a modernidade em contraste com um

“Outro” tradicional, implicitamente inferior (Gilman, 2003).

Logo, a teoria da modernização não só negou seu caráter situado no

contexto hegemônico norte-americano do pós-Segunda Guerra, como também

negou suas raízes intelectuais nas teorias evolucionistas anteriores. Se voltarmos

ao discurso inaugural de Truman discutido no capítulo anterior, podemos notar

claramente o esforço do presidente no sentido de diferenciar o movimento

desenvolvimentista por ele introduzido na política externa norte-americana do

velho imperialismo europeu caracterizado, segundo ele, pela busca auto-

interessada de ganhos materiais. Todavia, é preciso lembrar que este empenho por

parte dos Estados Unidos de distinguir a sua política externa daquela perseguida

pelas potências coloniais européias já se fazia notar desde o início do século XX.

Afinal, quando o presidente Wilson optou pela entrada dos Estados Unidos na

Primeira Guerra, ele o fez argumentando que o seu país desejava uma paz justa

sem vencedores ou anexações numa tentativa de se opor às motivações egoístas

associadas às potências européias.29

Sem pretender discutir as motivações que inspiraram a teoria da

modernização no pós-Segunda Guerra, este capítulo parte do pressuposto de que a

tentativa sistemática de desconectar o novo campo de conhecimento (do

desenvolvimento) da velha práxis européia se explica em razão das inúmeras

sobreposições e similaridades entre os mesmos. O objetivo aqui, por conseguinte,

é o de evidenciar tais coincidências não como um mero exercício de história

intelectual, mas, na mesma linha avançada por McCarthy (2009): com o fito de

pensar criticamente o presente onde, argumento, várias formas de racismo e

exclusão continuam em voga. 29 Ver mais em Margaret MacMillan: Paz em Paris. A Conferência em Paris e seu Mister de Encerrar a Guerra, Editora Nova Fronteira, 2004.

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Por mais que os acadêmicos e políticos envolvidos com a teoria da

modernização tenham enfatizado o seu caráter inclusivo alegando que se suas

prescrições fossem observadas todos os povos poderiam vir a gozar dos mesmos

padrões de vida dos Estados Unidos, para os críticos da teoria da modernização,

esta era uma ilusão. Para estes últimos, a teoria da modernização era vista como

mais uma fórmula não para emancipar, mas, sim, para continuar mantendo a

subserviência do “Terceiro Mundo” aos velhos e novos poderes coloniais ainda

que sem recorrer aos clássicos métodos de controle direto e conquista territorial.30

Ademais, a subserviência do “Terceiro Mundo” ao “Primeiro”, agora, se exercia

através de um instrumento poderoso, a saber, por meio das próprias elites

nacionais dos Estados pós-coloniais treinadas no Ocidente. Conforme nos mostra

Krishna (2009), o acesso privilegiado por parte de tais elites às narrativas

dominantes da modernização serviram para legitimar seu domínio político e suas

reivindicações de superioridade cultural sobre os seus próprios compatriotas.

A seguir, portanto, pretendo mostrar como, a despeito do fim tanto do

projeto colonial formal como do explícito discurso racista que lhe foi subjacente,

a teoria da modernização garantiu a sobrevida da lógica colonial centrada na

superioridade ocidental, doravante, num mundo caracterizado pela igualdade

jurídica dos Estados consagrada na Carta da ONU.

A tese reconhece que no momento de emergência das teorias da

modernização, o elemento racista das teorias de desenvolvimento humano

desapareceu virtualmente, pelo menos, no marco acadêmico (Mazrui, 1968).

Argumenta-se, contudo, que o “racismo biológico” característico do imperialismo

europeu foi substituído no pós-Segunda Guerra por um racismo de tipo cultural

(ver Mazrui, 1968; Duffield, 1996, 2001; Hemant, 2010). E assim como colocado

por Mazrui (1968:75), nas teorias de modernização, o darwinismo foi

“desbiologizado”.

Um dos principais arautos do “racismo biológico” foi Arthur de Gobineau

(1816-1889) para quem o progresso e a degeneração estavam conectados com a

evidência racial (Bain, 2003). O progresso para Gobineau dependia da separação

das “raças” a fim de que cada uma pudesse desempenhar as funções que lhe foram

confiadas pela natureza. Enquanto, algumas “raças” estariam naturalmente 30 Ver, por exemplo, Samir Amin: Delinking: Towards a Polycentric World, London: Zed Books, 1985.

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destinadas a governar, outras não teriam o impulso suficiente para se direcionarem

rumo à civilização (Bain, 2003). No esquema de Gobineau, portanto, o problema

da degeneração estava ligado à adulteração do sangue por meio da mistura racial

e, não, à corrupção institucional e/ou moral de uma dada sociedade (ver em Bain,

2003). Como veremos no capítulo 3, esta idéia da separação racial e da

degeneração resultante da mistura racial, curiosamente, já estava presente em

Kant.

Depois da Segunda Guerra Mundial, contudo, o critério racial foi

desacreditado para determinar tanto a cidadania plena dentro dos Estados

ocidentais como o pertencimento à “sociedade internacional” (Jackson, 1996).

Segundo Jackson (1996), as descobertas de campos de concentração e de outras

violações massivas de direitos humanos na Alemanha nazista acabaram por

desacreditar leis e políticas de discriminação racial no Ocidente. Desse modo,

conforme observa Jackson, a França e a Grã-Bretanha não podiam, por um lado,

participar do Tribunal de Nuremberg e assinar a Declaração Universal dos

Direitos Humanos em 1948 e, por outro lado, continuar mantendo a distinção

racial entre eles e seus sujeitos coloniais na Ásia e na África sem parecerem

hipócritas. Por conseguinte, para Jackson (1996) existe um paralelo entre a

extensão da cidadania doméstica nos países ocidentais para além dos critérios

raciais e a extensão aos países não-ocidentais do direito de serem membros da

“sociedade internacional”.

Edward Keene (2002), por sua vez, argumenta que no contexto da

Segunda Guerra os europeus experimentaram, pela primeira vez, a desconfortável

sensação de serem, eles mesmos, alvos de discriminação racial por parte da

Alemanha nazista. Nesse contexto, como coloca Keene (2002) seria estranho

afirmar a supremacia da “raça” branca sobre as “raças” africanas ou asiáticas

enquanto simultaneamente se negava a validade dos esforços nazistas de

demonstrar a supremacia ariana. Assim, segundo este autor, ao projetar a

civilização contra o nazismo, seus defensores estavam inevitavelmente colocando

em questão os velhos pressupostos sobre as fronteiras raciais do dito mundo

“civilizado”. Do mesmo modo, nos Estados Unidos, os teóricos sociais

enfrentavam o desconforto causado pela contradição entre, de um lado, os ideais

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igualitários do país e, de outro lado, as práticas racistas contra afro-americanos

(Hemant, 2010).

A teoria da modernização surge justamente neste contexto acima

mencionado de desconforto, sentido tanto na Europa como nos Estados Unidos,

em relação às explicações biológicas para o racismo que haviam informado a

conquista imperial no século XIX e no começo do século XX. Logo, no rastro

desta tendência, a “nova” teoria da modernização se afastou da idéia de que os

povos do mundo pós-colonial seriam biologicamente e, daí, permanentemente

inferiores e passou a alegar que, de fato, eles eram, apenas, atrasados

culturalmente (Mazrui, 1968; Hemant, 2010). Enquanto o “racismo biológico” era

definido por critérios naturais fixos, imutáveis; não contemplando, portanto, a

possibilidade de mudança por parte dos não-brancos, o “racismo cultural”, por sua

vez, oferecia a expectativa de mobilidade aos não-brancos os quais poderiam vir a

alcançar os estágios supostamente mais avançados dos brancos desde que

assimilassem sua ciência e valores. Existe uma qualidade de imutabilidade quando

a falta de desenvolvimento é atribuída às características hereditárias raciais, mas

quando as idéias de evolução social se tornam mais próximas do determinismo

cultural, ganha credibilidade a noção de que povos “atrasados” podem vir a se

equiparar aos “avançados” com o tempo (Mazrui, 1968). Segundo Samir Amin,

esta nova lógica permitiu que acadêmicos norte-americanos substituíssem a

categoria racial “branco” pela categoria cultural “Europeu” e “Americano” (apud

Hemant, 2010). Nesse sentido, o “racismo cultural” permitiu que o Ocidente

mantivesse a sua superioridade sobre os não-ocidentais sem ter de recorrer às

teorias do “racismo biológico” em grande medida desacreditas (Hemant, 2010).

Enfim, o logocentrismo entre o Ocidente e o não-ocidente continuou em operação,

mas, agora, por meio de um racismo reinventado.

Este discurso racista metamorfoseado, por sua vez, se coadunava

perfeitamente com a ortodoxia modernizadora do pós-guerra. Isto porque, de

acordo com Hemant (2010), a teoria da modernização sugere que mesmo povos

pós-coloniais supostamente inferiores desde um ponto de vista cultural poderiam

alcançar a modernidade.

Esta tese sugere, todavia, que a idéia de que as formas culturais não

ocidentais corresponderiam a uma versão atrasada da identidade ocidental não é

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uma idéia completamente inédita no início do século XX, embora ela esteja em

oposição, de algum modo, à visão biológica da “raça” presente, por exemplo, no

pensamento de Gobineau no século XIX. Estas idéias, longe de serem novas,

deitam suas raízes nos primeiros encontros dos europeus com os povos não

europeus como bem argumentam Jahn (1999), Blaney, Inayatullah (2004) e Bock

(1978).

De acordo com Jahn (2007), a teoria da modernização teve suas origens na

teorização européia acerca das novas sociedades descobertas na América e

forneceu a justificativa para as políticas européias durante séculos. Segundo Jahn

(1999), a existência dos ameríndios forçou os europeus a lidarem com uma

questão ontológica acerca da natureza destes seres. Embora num primeiro

momento os europeus tenham tentado empregar o conceito aristotélico do escravo

natural destituído de razão, logo, este conceito se viu em contradição com um

princípio cultural central para eles, o do oikoumene cristão, isto é, a crença na

origem comum da humanidade e na vontade de Deus pela perfeição do ser

humano e do mundo natural. Desse modo, os ameríndios foram vistos como

potencialmente racionais, mas como inseridos na infância da humanidade. Para

construir o atraso dos ameríndios, a discurso europeu do estado de natureza se

revelou central. Para Jahn (1999), os ameríndios forneceram aos europeus a

evidência material do estado de natureza atestada pelo próprio Hobbes ao situar os

ameríndios nesta condição pré-contratual. Segundo Jahn (1999) a necessidade de

Hobbes apresentar uma evidência histórica para o estado de natureza teria sido de

ordem epistemológica uma vez que as evidências revelam-se cruciais para as

ciências sociais pensadas neste momento através das linhas das ciências naturais.

Jahn (1999: 417) mostra que: “the view of Amerindians as living in a state of

nature led to a redefinition of history along a linear scale providing a secular

telos as the basis of the historical process”.

A idéia do estado de natureza como uma condição universal a partir da

qual a humanidade começou seu desenvolvimento histórico, adotada por autores

europeus introduziu, de acordo com Jahn (1999), uma escala de tempo linear na

história da humanidade. Todavia, a concepção universalista do estado de natureza

teve um efeito paradoxal uma vez que trouxe com ela uma visão de mundo

baseada numa hierarquia de culturas que serviu de base para uma teoria de

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relações desiguais entre as comunidades políticas. Os ameríndios foram

localizados em tempos históricos diferentes dos europeus a despeito do fato de

que eles estavam de fato vivendo exatamente no mesmo tempo em que os seus

observadores europeus. Estas explicações, por sua vez, justificaram e

naturalizaram o caminho particular do desenvolvimento europeu (Jahn, 1999). E,

este caminho particular europeu, como nos mostra Walker (2006), é o do Estado

moderno. Segundo Walker (2006) a narrativa do contrato social de Hobbes

confere legitimidade ao Estado ao projetar os problemas do homem para outro

tempo e lugar, o estado de natureza. Esta narrativa nos mostra como os homens

podem se transformar em sujeitos modernos livres e maduros (Walker, 2006).

Para tal fim, basta que eles se organizem por meio das estruturas de autoridade

modernas. Na ausência destas últimas, o que lhes resta é um ambiente natural não

domesticado necessitando ser civilizado (Walker, 2006). Enfim, para Jahn (1999),

os contatos dos europeus com os não europeus forneceram uma filosofia linear da

história a qual, conforme já visto, informou a teoria da modernização no século

XX. Para Walker (2006) a fase final do caminho apontado por Hobbes era o

Estado moderno europeu, o qual foi legitimado pelo discurso do estado de

natureza.

Nesse contexto de “descobrimento”, Blaney e Inayatullah (2004)

consideram o teólogo dominicano Francisco de Vitória (On the American Indians,

1537) como o precursor das teorias de desenvolvimento e de modernização.

Vitória opôs-se à teoria aristotélica do escravo natural ao atribuir potencialidade

de razão aos ameríndios. Se por um lado esse reconhecimento de uma

humanidade comum entre os europeus e os ameríndios reduziu o espaço

ontológico entre eles – bem delimitado na teoria de Aristóteles -, por outro lado,

Vitória inseriu, no seu lugar, uma variante temporal que continuou demarcando a

diferença. Os índios aparecem, portanto, como uma visão atrasada do self

europeu, cujo potencial de razão dormente precisa ser ativado. Todavia, Vitória

nos mostra que os próprios esforços dos índios para realizarem tal potencial

falharam; o que significa que eles precisavam da intervenção de tutores para

salvá-los de uma educação bárbara. Neste processo, os índios saíram da condição

de escravos naturais; o que pressupunha incapacidade do uso da razão, para o

status de crianças ou alunos; o que demandava, por sua vez, que os europeus

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assumissem as funções de pais ou mestres. Fica claro, deste modo, que Vitória

concebe a possibilidade de progresso e de atualização da razão dos índios desde

que sujeitos à tutela dos espanhóis. Ao inserir uma distância temporal entre os

europeus (professores) e os índios (crianças), Vitória temporaliza a diferença,

apresentado-a como uma versão atrasada do self europeu. Deste modo, podemos

perceber o pensamento de Vitória como um precursor da teoria da modernização,

a qual divide a humanidade em diferentes estágios “civilizatórios”. De acordo

com tal raciocínio, a tutela européia é vista como uma agência de ordem e

progresso conduzida pelo pedagogo. Esse modo de pensar, de acordo Blaney,

Inayatullah (2004), autorizou e conferiu um ingrediente idealista à conquista

imperial européia orientada pelo “fardo do homem branco”.

Kenneth Bock (1978) concorda que a descoberta européia do mundo está

intimamente conectada com a formação da idéia de progresso a qual passou a ser

cada vez mais assumida como um dado. Uma solução simples para o problema da

diferença cultural e em concordância com o desenho cartesiano do mundo – de

constância e uniformidade - bem como com a Escritura – que colocava a origem

comum da humanidade - era asseverar a semelhança básica das pessoas em todas

as partes do mundo e atribuir as diferenças aparentes a diferentes estágios num

processo uniforme de desenvolvimento (Bock, 1978). Com nos mostra Bock

(1978), a maior parte dos acadêmicos europeus aceitou a crença segundo a qual a

Europa representava o ponto de maior avanço até aquele momento enquanto as

outras tribos e nações recém-descobertas representavam os primeiros passos de

uma trajetória progressiva por onde a Europa já havia passado.

Conforme consta acima, este contato europeu com os “Outros” moldou a

própria visão européia de si e da sua modernidade (Gilman, 2003). Os europeus se

definiam contrastando sua própria modernidade progressiva em oposição à

tradição atrasada dos povos recém-descobertos (ver Gilman, 2003). Os discursos

gerados pela produção de conhecimento sobre os povos não europeus reforçavam,

portanto, as ideologias emergentes de superioridade racial e cultural européia (ver

Gilman, 2003). Enfim, a construção categórica de uma modernidade iluminada

emergiu a partir da construção de um “Outro” não europeu e não ocidental

(Gilman, 2003).

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Se, como vimos acima, teóricos do estado de natureza como Hobbes e

teólogos como Francisco de Vitória já haviam, esporadicamente, concebido o

passado europeu inteligível no presente indígena, apresentando os índios como

estando situados numa condição de atraso em relação aos europeus, os primeiros

pensadores a de fato sistematizarem esta orientação temporal acerca da disposição

das diferentes culturas foram, de acordo com Bock (1978), dois representantes do

Iluminismo francês: Jacques Turgot (1727-1781) e Condorcet (1743-1794).

Numa série de ensaios escritos à época que estudou na Sorbonne, Turgot

desenvolveu a noção de que existe uma história universal da humanidade através

da qual o potencial comum da humanidade se atualiza (Bock, 1978). Para ele, a

humanidade na sua totalidade avança continuamente, passando por diferentes

estágios, em direção à perfeição. Partindo de uma natureza humana universal,

Turgot considera as diferenças entre as culturas do seu tempo de grau e não de

natureza (Bock, 1978). Em outras palavras, as diferenças encontradas não seriam

ontológicas, mas equivaleriam a diferentes níveis de atualização da potencialidade

humana e, assim, a condição histórica de um povo poderia ser usada para

documentar um estágio da história de outro ou da história universal (Bock, 1978).

Segundo Bock (1978), a teoria de progresso desenvolvida por Turgot incluiu a

idéia influente de que a humanidade avança como um todo orgânico e, assim,

religião, moral, artes, conhecimento e instituições políticas mudam ao mesmo

tempo e de acordo com o mesmo princípio. Nesse sentido, para Turgot, basta que

se preste atenção a apenas um aspecto da cena humana, por exemplo, ao

desenvolvimento da ciência ou a modificação da produção econômica a fim de

discernir a tendência norteadora de todo o processo. Conforme vimos, não só a

idéia de uma humanidade comum posicionada em diferentes temporalidades, mas

também a tendência de conceber o progresso de uma forma holística constituíram

pressupostos cruciais avançados pela teoria da modernização no século XX.

Já Condorcet, na sua teoria do progresso, vai além de Turgot, seu

contemporâneo e compatriota, ao especificar o conteúdo deste progresso, não

estranhamente em termos da ampliação da liberdade humana derivada do

aprofundamento da igualdade material, social e educacional entre todos os

homens, ou seja, em termos especificamente franceses (Bock, 1978). De fato, para

Condorcet, os franceses estariam na vanguarda desta marcha progressiva

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impulsionada, em grande medida, pela Revolução Francesa que teria removido as

forças retrógradas, como a Igreja e a Monarquia, as quais estariam obstaculizando

o progresso (Bock, 1978).

Já no século XIX e no começo do século XX, o padrão de civilização31,

implícito, por exemplo, em Condorcet, assumiu um caráter crescentemente

explícito ao ser positivado no direito a fim de diferenciar legalmente as sociedades

“civilizadas” daquelas “semi-civilizadas” e “não-civilizadas” (ver Gong, 1984).

Assim, no contexto do século XIX, a visão apresentada pelo antropólogo norte-

americano, Lewis Morgan de acordo com a qual a humanidade avança desde a

condição de “selvageria”, passando pela “barbárie” e chegando à “civilização” foi

popularizada e ganhou expressão jurídica (ver Bowden, 2002). O mais famoso dos

juristas internacionais de então, James Lorimer seguindo a linha aberta por

Morgan colocou: “as a political phenomenon, humanity, in its present condition,

divides itself into three concentric zones or spheres –that of civilized humanity,

that of barbarous humanity, and that of savage humanity” (apud Bowden, 2002).

Tipificando o pensamento convencional do seu tempo, Lorimer relegou os países

que não atendiam ao agora explícito padrão civilizatório a um status inferior no

direito internacional. Estes padrões destinavam-se a estabelecer a medida para

avaliar se os Estados não-europeus poderiam ou não ascender ao posto ocupado

pelas nações “civilizadas” (Bowden, 2002). De acordo com Gong (1984:14-5),

estes critérios eram os seguintes: (i) o Estado deveria garantir os direitos básicos

(vida, dignidade, propriedade, liberdade de viajar, de comercializar e de religião)

para os seus cidadãos, mas, especialmente, para os nacionais estrangeiros; (ii) o

Estado deveria contar com alguma burocracia organizada dotada de alguma

eficiência administrativa e de defesa; (iii) o Estado deveria aderir ao direito

internacional geralmente aceito, incluindo às leis de guerra, além de ser necessário

manter um sistema jurídico doméstico garantindo justiça para todos, nativos e

estrangeiros que estivessem na sua jurisdição; (iv) o Estado deveria manter

avenidas adequadas para o intercâmbio diplomático e de comunicação e,

31 Gong (1984:3), define um “padrão civilizatório” como sendo: “a standard of civilization is an expression of the assumptions, tacit and explicit, used to distinguish those that belong to a particular society from those that do not”. Gong continua: “by definition, those who fulfil the requirements of a particular society’s standard of civilization are brought inside its circle of “civilized” members, while those who do not so conform are left outside as “not civilized” or possibly “uncivilized””.

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finalmente, um critério mais subjetivo, a saber: (v) ele deveria se conformar às

normas e práticas da sociedade internacional civilizada de tal forma que práticas

como poligamia e escravidão seriam inaceitáveis.

E, assim, a partir de uma lógica circular, os Estados incapazes ou que não

quisessem atender a tais critérios, eram automaticamente excluídos da dita

“civilização” (Gong, 1984). Por outro lado, também fica claro a partir da leitura

dos critérios acima que, para um povo ser considerado civilizado no século XIX,

ele obrigatoriamente deveria se organizar na forma de um Estado entendido como

um governo efetivo organizado sobre um território definido. Como veremos nas

partes III e IV desta tese, este critério se mantém relevante para definir o status

dos povos no cenário do pós-Guerra Fria, ainda que a gramática civilizatória tenha

sido formalmente liquidada após a Segunda Guerra quando a Alemanha nazista,

um Estado até então inserido no mundo dos civilizados, violou de forma flagrante

vários dos critérios acima mencionados, incluindo o respeito às leis de guerra.

Neste ponto, esta tese compartilha do argumento de Keene (2002), segundo o qual

a noção de padrão de civilização que informou o domínio imperial no século XIX

não foi inteiramente banida no mundo do pós-Segunda Guerra.

Para Keene, a promoção da civilização que no passado ficou sob a

responsabilidade das potências coloniais se tornou crescentemente uma

preocupação das Organizações Internacionais. Keene desenvolveu seu argumento

explicando que no final do século XIX, os juristas internacionais consideraram

perfeitamente aceitável a existência de dois tipos distintos de ordem política e

legal, um deles para a “família das nações civilizadas” e outro para o “mundo não

civilizado”. Hoje, diferentemente, existe apenas um padrão de ordem política e

legal, o qual veio à tona a partir do abandono da forma discriminatória pela qual o

conceito de civilização foi usado no século XIX, quando os Estados europeus por

se considerarem racialmente superiores tiveram a responsabilidade especial de

civilizar pessoas vistas como racialmente inferiores. Todavia, na primeira metade

do século XX, como vimos, esta posição se tornou insustentável uma vez que tal

conceito passou a ser entendido em termos ideológicos, antes do que raciais na

luta civilizatória contra a Alemanha nazista. Desse modo, as Nações Unidas,

depois da Segunda Guerra, passaram a refletir, segundo Keene (2002), uma

atitude mais inclusiva e menos discriminatória em relação aos povos não-

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europeus. Contudo, Keene argumenta que o objetivo tradicional de promover a

civilização não foi descartado da nova ordem e continuou se expressando, por

exemplo, nos princípios relativos à promoção do progresso econômico e

tecnológico, a presença de um bom governo e o respeito aos direitos individuais

como evidenciado no artigo 55 da Carta da ONU. De acordo com tal artigo:

Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas promoverão: a) elevação dos níveis de vida, o pleno emprego e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, de saúde e conexos, bem como a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; c) o respeito universal e efetivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos (...).

Embora o termo “civilização” não tenha sido usado, tais objetivos

refletem, segundo Keene (2002), o velho entendimento de civilização, subtraindo

seu componente racial. Nesse sentido, o conceito de civilização teria se

reinventado como modernização. De fato, como coloca Gong (1984:10):

“[S]pecially from the non-European perspective, one cannot speak of

‘modernization’ or the ‘process of becoming modern’ in any kind of historical

perspective without referring to ‘civilization’ and the ‘process of becoming

civilized’. Deste modo, os países não europeus continuam sendo avaliados por um

padrão de “civilização” externo tal como ocorria à época da colonização (ver

Gong, 1984).

2.2 O Progresso da Teoria da Modernização: Natural, mas nem tanto

No âmago da teoria da modernização reside uma tensão, pois ao mesmo

em que o progresso rumo à modernidade é pensado como natural e inevitável, ele

é percebido como podendo ser acelerado e seus desvios minimizados por meio da

influência dos países desenvolvidos. Neste sentido, o programa teórico da

modernização é marcado, segundo Bhuta (2008), por uma ambivalência entre dois

entendimentos da modernização, o primeiro como um processo inexorável e o

segundo como um resultado planejado.

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Explorando tal tensão, Lummis (1991) recorre à etimologia do termo

“desenvolvimento”. Na sua origem, o termo não era oposto à idéia de declínio ou

estagnação, mas, sim, correspondia à idéia de desenrolar ou desembrulhar algo

onde esta coisa estivesse envolvida. No início, o termo foi usado metaforicamente

em dois sentidos: (i) para designar o desenvolvimento dos organismos vivos que

vão sendo revelados de dentro de um organismo imaturo e (ii) para se referir à

progressão de uma estória que, na medida em que vai se desenrolando, vai se

tornando evidente para o leitor ou ouvinte. Aos poucos o termo desenvolvimento

foi adquirindo um terceiro significado relativo a uma determinada estrutura de

mudança que, após vários estágios, atualiza, torna manifesto algo que é latente no

seu estágio inicial. Neste uso do termo a mudança era sempre pensada como um

processo endógeno. Logo, o uso do termo pelos teóricos da modernização traz

consigo, segundo Lummis (1991), uma poderosa metáfora escondida, a saber, o

desenvolvimento sugere processos naturais e inevitáveis que trazem a tona o

futuro predestinado e apropriado das entidades sendo desenvolvidas. O

desenvolvimento é representado como algo que vai naturalmente ocorrer tão logo

os obstáculos forem removidos. O uso da metáfora dá lugar, de acordo com

Lummis (1991), à noção quase mística encontrada tanto na teoria de

desenvolvimento marxista como liberal de que quando os líderes usam o seu

poder para reorganizar o mundo social e natural a fim de maximizar a

produtividade industrial, eles estariam agindo apenas como agentes de uma vasta

força histórica e, enquanto tais, não seriam moralmente responsáveis pelas suas

conseqüências. Esta metáfora fica clara, por exemplo, numa das passagens que

aparece na introdução à primeira edição germânica do Capital, onde Marx coloca:

“The country that is more developed industrially only shows, to the less

developed, the image of its own future” (apud Gilman, 2003: 28). Poderíamos

acrescentar que a lógica subjacente à teoria da modernização segundo a qual a

história estaria ao seu lado e os agentes modernizadores estariam apenas agindo

de acordo com as necessidades da natureza, é, de fato, despolitizante. Por um

lado, os agentes modernizadores se vêem isentos de qualquer responsabilidade já

que suas ações não nos são apresentadas como uma escolha, mas, sim, como algo

natural. Por outro lado, a resistência por parte das sociedades em

desenvolvimentos são despolitizadas porque, como nos mostra Latham (2000),

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elas são vistas como exemplos de xenofobia e irracionalidade, já que os desvios

do caminho desejado têm o efeito, nos marcos do discurso da modernização,

apenas de atrasar a transformação considerada necessária e vital. Deste modo, por

mais que o processo de modernização seja entendido como universal, os

catalisadores da mudança são ocidentais e, desse modo, o Ocidente é investido do

poder de acelerar este processo tido como inevitável e desejável (Latham, 2000).

A idéia da modernização como um processo inevitável aparece em 1937

no artigo do cientista social norte-americano, Hans Kohn, “The Europeanization

of the Orient”. Neste artigo, Kohn (1937: 259) argumenta que a “civilização

moderna” se espalhou dos países europeus, onde se originou, para o resto do

mundo de forma inevitável: “Wherever it penetrated, it destroyed the traditional

structure of society. This expansion was immanent in its very nature”. Segundo o

autor, a tentativa dos governos coloniais de tentarem reservar para si os benefícios

de pertencimento à civilização moderna está fadada ao fracasso já que vai contra

as tendências históricas naturais de universalizar o processo civilizatório. Nas

palavras de Kohn (1937: 259):

The countries and classes which had first experienced modern civilization wished to reserve its advantages for themselves and to base their strength and their claim of superiority upon the exclusive possession of those advantages, but by its appeal to reason, individuality and progress, instead of traditions and precedent, this civilization had from the beginning a universal scope and meaning for all classes and nations.

Deste modo, Kohn argumenta, mesmo antes da emergência da teoria da

modernização, que os países “orientais” estariam vivenciando estágios de

transição similares àqueles percorridos pela Europa no século XIX tais como: a

urbanização do campo, a difusão da educação moderna, a transformação da

religião devido aos impactos do nacionalismo e a emergência de um indivíduo

livre das restrições familiares e clânicas tradicionais. Por outro lado, Kohn

antecipa a tendência à generalização e à comparação da teoria da modernização ao

sugerir que bastaria olhar para um país para se ter uma noção geral do processo de

evolução dos demais países. Nas suas palavras: “An analysis of the process in one

country is valid, in its mains trends and conclusions, for all the other countries”

(Kohn, 1937:261).

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Na direção contrária à idéia exposta por Kohn (1937), a tese compartilha

da idéia de Lummis (1991), segundo a qual estes processos modernizadores não

são, de modo algum, dados ou pré-determinados pela natureza, mas são escolhas

humanas, políticas e enquanto tais são atividades que os seres humanos são livres

para não fazê-las. Para enfatizar este caráter deliberado e impositivo das

iniciativas modernizadoras, Lummis (1991:48) chama a atenção para os seus

efeitos:

Villages are driven out and dams are built; forests are cut down and replaced by plantations; whole cultures are smashed and people are recruited into quite different cultures; people’s local means of subsistence is taken away and they are placed under the power of the world market.

Assim, conforme a passagem acima, por meio do processo modernização,

a cultura e as instituições européias são impostas, comprometendo as culturas,

modos de produção e as estruturas políticas indígenas. O processo modernizador,

por conseguinte, clama pela completa reestruturação das sociedades

subdesenvolvidas (Escobar, 1995). Esta lógica de transformação radical do mundo

“subdesenvolvido” fica clara a partir da leitura de um dos documentos mais

influentes do período preparado por um grupo de especialistas convocado pela

ONU com o objetivo de desenhar medidas e políticas concretas para o

desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos. O grupo afirmou, por

exemplo:

There is a sense in which rapid economic progress is impossible without painful adjustments. Ancient philosophies have to be scrapped; old social institutions have to be disintegrated; bonds of cast, creed and race have to burst; and large number of persons who cannot keep up with progress have to have their expectations of a comfortable life frustrated. Very few communities are willing to pay the full price of economic progress (UN, Department of Social and Economic Affairs, 1951, apud em Escobar, 1995:4).

É importante frisar, como o faz Latham (2000), que este processo de

transformação das sociedades “tradicionais” ocorre com a cumplicidade de vários

atores locais, os quais tiravam vantagem da intrusão externa para avançar suas

posições econômicas e políticas.

Assim, apesar de informada por uma filosofia da história liberal que

conduz à idéia da naturalização do processo de mudança, a modernização levada a

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cabo pelos países “desenvolvidos” após a Segunda Guerra foi um projeto que

pôde, graças ao forte apoio público e privado, ser meticulosamente pensado,

calibrado, orquestrado e testado sobre as sociedades pós-coloniais. Nesse sentido,

a teoria da modernização, para Gilman (2003), representa: “[T]he most explicit

and systematic blueprint ever created by Americans for reshaping foreign

societies”. Os países pobres poderiam alcançar os países ricos em pouco tempo

desde que lhes fosse oferecida orientação técnica apropriada, auxílio financeiro,

educação política e instituições (Gilman, 2003). Deste modo, o modernismo da

teoria da modernização, para Gilman (2003:7), é um modernismo de “order, plan

and mastery”. Esta crença na habilidade dos agentes externos de orquestrarem o

progresso das sociedades pós-coloniais e de removerem os obstáculos do percurso

pressupõe, por sua vez, a crença na maleabilidade infinita do caráter do político

(Bhuta, 2008).

Bhuta (2008) nos mostra que a teoria da modernização retém o imaginário

político do Iluminismo, segundo o qual, a política é um mecanismo a ser

calibrado, medido, conhecido e, em última instância, inventando e desenhado. E,

assim, questões inerentemente políticas, são abordadas de forma técnica por

engenheiros políticos externos os quais tomam como um dado a idéia de que o

mundo social pode ser conhecido e manipulado do mesmo modo que o mundo da

natureza (ver em Bhuta, 2008). Logo, as sociedades pós-coloniais se tornam um

campo de conhecimento e, logo, de intervenção e teste. Nesse contexto, por

exemplo, os departamentos de ciência política da Universidade de Chicago,

influenciados pela “revolução behaviorista”, ganharam uma enorme estima ao

usarem as cidades como laboratórios para a observância do comportamento e das

relações humanas (Hemant, 2010). Conforme colocado por Lucian Pye (apud

Hemant, 2010): “Now other places and times could be used as the evidence for

comparative findings about the working of politics”. E, de fato, outras cidades do

mundo pós-colonial foram comparadas às experiências passadas do Ocidente bem

como aos comportamentos contemporâneos das minorias urbanas dos países

“desenvolvidos”. Nesse sentido, por exemplo, minorias urbanas dos Estados

Unidos eram comparadas aos residentes das novas nações pós-coloniais; o que

evidenciava a operação do racismo cultural voltado para estes dois grupos, os

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quais eram vistos como culturalmente inferiores, mas, ainda assim, como capazes

de progredirem (Hemant, 2010).

Pelo exposto acima, fica claro que o conhecimento sobre os povos pós-

coloniais produzido pela nova ciência da modernização ao mesmo tempo em que

os construíam como “subdesenvolvidos”, “estagnados”, “supersticiosos”, criava

as condições de possibilidade para a formulação de políticas voltadas para a

remodelação total destas sociedades. Enfim, vemos em operação neste contexto, a

relação poder/saber destacada por Foucault e apresentada na introdução desta tese.

Como nos mostra Latham (2000), os teóricos da modernização norte-americanos

produziram análises que reiteravam as velhas suposições que autorizaram a

expansão imperial dos séculos anteriores, sendo que, agora, os Estados Unidos

eram entendidos como o grande catalisador da mudança nas sociedades

estagnadas. E, assim, Latham (2000:65) conclui que embora aplaudindo o fim do

colonialismo oficial, os teóricos da modernização, em nome do progresso

científico e social, se basearam na mesma ideologia que havia justificado o

movimento imperialista prévio.

Conforme veremos na segunda e terceira partes dessa tese a Somália foi

sistematicamente e explicitamente, desde a colonização até as últimas operações

de paz da ONU, produzida como um “laboratório” para a experimentação de

políticas desenvolvidas no Ocidente. Por outro lado, a partir da sua experiência

pioneira como um campo de ação por parte das “novas” operações de paz da

ONU, foi extraída uma abundância de lições - que serão apresentadas no capítulo

8- para as operações subseqüentes. Estas lições derivadas do caso Somali foram,

por sua vez, generalizadas para diferentes contextos de crise. Argumenta-se na

tese que estas lições, quase exclusivamente de caráter técnico voltadas para o

aumento da eficiência das operações subseqüentes àquela levada a cabo na

Somália, trazem implicitamente a idéia de que as técnicas para lidar com estas

sociedades são generalizáveis. A generalização, por sua vez, pressupõe que tais

sociedades sejam entendidas de uma forma homogênea, o que negligencia a

especificidades das suas genealogias. Como veremos, portanto, o conhecimento

gerado sobre tais sociedades as produz como homogêneas e como um campo de

teste para políticas padronizadas formuladas no Ocidente. Nesse sentido,

conforme será mostrado, também mais adiante, a tese compartilha do argumento

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de Bhuta (2008) segundo o qual os projetos de peacebuilding (construção da paz)

do pós-Guerra Fria ainda continuam informados pela idéia de que sociedades

“inferiores” são entendidos como objetos de conhecimento e passíveis de serem

reformados por meio da intervenção, da fiscalização e do planejamento por parte

daquelas sociedades “superiores”. Enfim, continua em vigor, a idéia de que as

sociedades africanas podem ser, conforme colocado por Bhuta (2008),

conhecidas, medidas, calibradas e refeitas rumo ao telos de uma ordem normativa

consagrada.

2.3 Tutela: Um Corolário da Teoria da Modernização

Como já colocado, um dos argumentos desenvolvidos nesta tese é o de que

as “novas” operações de paz da ONU vêm sendo informadas pela velha teoria da

modernização. Nesse sentido, a influência da teoria da modernização nas Nações

Unidas não se restringe ao período do pós-Segunda Guerra quando a Organização

surgiu. Desde o momento de fundação da ONU, a teoria da modernização se fez

notar em grande medida na lógica subjacente ao Conselho de Tutela. De acordo

com o capítulo XI da Carta da ONU, a tutela destinava-se a promover o bem-estar

daqueles povos que não tinham ainda “atingido a plena capacidade de se

governarem a si mesmos”.

Bain (2003) argumenta que os Estados Unidos transformaram a tutela de

uma justificativa britânica para o imperialismo em uma alternativa para o

imperialismo, primeiro sob a forma do sistema de mandatos da Liga e,

posteriormente, do sistema de tutela da ONU. Argumenta-se nesta tese que as

demandas por tutela estiveram presentes, embora em diferentes versões, não só no

curso do sistema de tutela da ONU que as formalizaram, mas também, durante a

colonização e, hoje, no âmbito das operações de peacebuilding da ONU.

A tutela como justificativa para o imperialismo foi em grande medida uma

inovação britânica e se baseou na idéia de que os europeus poderiam melhorar a

vida dos povos mais destituídos e oprimidos por meio da intervenção direta (Bain,

2003). Informados por tal crença, foram enviados, para África, missionários para

iluminar o “Dark Continent” e abolicionistas para eliminar a escravidão e o tráfico

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de escravos (Bain, 2003). Todavia, os primeiros sinais da idéia da tutela se fazem

notar, antes disso, nos primeiros contatos dos europeus com os povos não

ocidentais (Bain, 2003; Blaney; Inayatullah, 2002). Ao invés de aceitarem a

legitimidade das práticas indígenas, os europeus, quando confrontados com a

diferença, responderam a partir da ética monista da civilização superior (Bain,

2003). E, assim, como nos mostra Bain (2003:14):

[R]elations on reciprocal recognition and mutual consent were impossible so long as some people were convinced of the superiority of their God, their science, and their virtue, and possessed the power to impose them on others”. A idéia de tutela se torna, portanto, inteligível no contexto de encontro

com a diferença que acompanhou a extensão do governo europeu para o mundo

extra-europeu. Neste contexto, o sentimento de superioridade do europeu sugeriu

um comportamento protetor, paternal e, assim, o domínio europeu sobre o resto

do mundo passou a ser entendido como uma missão para agraciar as pessoas

menos afortunadas do mundo com a benção da civilização européia (Bain, 2003;

Todorov, 1999). Bain (2003) argumenta que um arranjo de tutela sempre implica

numa perda de liberdade já que o protegido deve ser coagido do mesmo modo que

os pais coagem os filhos na direção do suposto bem e felicidade dos mesmos.

Segundo Bain (2003), do mesmo modo que para Blaney; Inayatullah

(2002), a idéia de tutela surgiu no marco das reivindicações dos reis da Espanha

pelos títulos aos territórios recém descobertos nas Américas. Tal como já

mencionamos, foi Francisco de Vitória quem sugeriu que o príncipe europeu

poderia exercer autoridade sobre os índios do Novo Mundo desde que estes se

mostrassem incapazes de administrar um governo legítimo por seus próprios

esforços (Bain, 2003). Nesse sentido, Vitoria justifica o controle temporário dos

índios americanos pela Coroa Espanhola caso:

These barbarians, though not totally mad, as explained before, are nevertheless so close to being mad, that they are unsuited to setting up or administering a commonwealth both legitimate and ordered in human and civil terms (Vitória, 2002:240).

Os índios seriam como crianças sobre os quais seria inteiramente

apropriado para príncipes europeus exercerem autoridade, mas desde que tudo

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fosse feito para o benefício dos “bárbaros” e não apenas para o proveito dos

espanhóis (Bain, 2003). De acordo com Vitória:

It might therefore be argued that for their own benefit the princes of Spain might take over their administration, and set up urban officers and governors on their behalf, or even give them new masters, so long as this could be proved to be in their interest (Vitória, 2002: 240).

Nesse sentido, por mais que Vitória, conforme já visto, afaste os

“bárbaros” da noção aristotélica do escravo natural desprovido de razão, ele,

implicitamente, os aproxima da condição que a crianças gozam na polis

aristotélica. Tendo a faculdade de razão presente, mas subdesenvolvida, a criança

na polis aristotélica é excluída, temporariamente, de participar da vida política

(ver Bain, 2003). Deste modo, a tutela pressupõe uma relação na qual uma pessoa

natural ou legal se torna responsável pelo bem-estar geral de uma ou mais pessoas

incapazes de conduzir seus próprios assuntos.

A partir do pensamento de Vitória vários pressupostos que subjazem as

demandas por tutela vêm à tona. Estes pressupostos, por sua vez, são os mesmos

que informaram a teoria da modernização. Primeiramente, Vitória reconhece a

igualdade de todos os seres humanos, incluindo os índios americanos, em termos

de potencialidade racional. Ao fazê-lo Vitória rompe com a imobilidade presente

na idéia aristotélica do escravo natural que, ao ser incapaz de usar plenamente a

razão, precisa ser perpetuamente comandado por um senhor que contenha suas

paixões (Aristóteles, 1996). Conforme visto, a teoria da modernização também

rompe com os elementos de imobilidade do racismo biológico do século XIX,

partindo da idéia de igualdade entre todos os seres humanos possibilitada pelo

descrédito do discurso racista após a Segunda Guerra.

Embora os pensamentos da tutela e da teoria da modernização,

pressuponham a igualdade humana, ambos estabelecem hierarquias temporais na

humanidade. A diferença deixa de ser concebida de forma fixa e passa a ser

entendida como atraso comparativamente às formas ocidentais de vida. A idéia de

progresso é o que permite que, com o passar do tempo, a razão humana se atualize

com a ajuda daqueles que se encontram na vanguarda

civilizacional/modernizadora. Nesse sentido, em ambos os pensamentos, as

dicotomias, “bárbaro” vis-à-vis “civilizado” (no caso de Vitória) e “desenvolvido”

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vis-à-vis “subdesenvolvido” (no caso da teoria da modernização), desempoderam

os “atrasados” e criam as condições de possibilidade para as práticas da tutela e/ou

aconselhamento externo, vistas como necessárias para que estes progridam na

escala temporal.

Ainda que Vitória reconheça e condene a atitude abusiva dos espanhóis no

Novo Mundo, ele não vê qualquer contradição em demandar que estes mesmos

espanhóis estabeleçam uma tutela sobre os “bárbaros”. Do mesmo modo, por mais

que os teóricos da modernização não se identifiquem com o movimento

imperialista que lhe antecede, eles não vêem qualquer contradição em erguer, no

marco da ONU, um sistema tutelar o qual reifica as antigas dicotomias, mas,

agora, lida nos termos do “racismo cultural”, ou seja, do atraso cultural. Veremos,

no capítulo 5, por exemplo, como a mesma Itália que colonizou a Somália vai

adquirir a tutela sobre o território no pós-Segunda Guerra e como ela vai recorrer

à inúmeras metáforas que infantilizam e constroem o atraso dos somalis,

reproduzindo, desse modo, as dicotomias construídas no marco da colonização.

Assim, ao buscar os traços da teoria da modernização no contexto

colonialista, percebe-se que a explicação teleológica Vitória segundo a qual os

seres humanos deveriam ser obrigatoriamente solidários entre eles, como prescrito

pelo Evangelho, deu lugar a uma explicação moderna e secular por meio da qual

os homens continuavam tendo que atuar pelo bem dos demais, mas, agora, apenas

porque eles também são humanos, e por isso, merecem alcançar alguma condição

ideal de bem, ainda que não mais divinamente concebido (ver Bain, 2003).

2.4 Teoria da Modernização: Universalindo uma Temporalidade

Neste item, pretende-se mostrar que a teoria da modernização pressupõe

uma noção específica de temporalidade, a saber: a temporalidade uniforme e

progressiva. Para desnaturalizar tal visão, este item, busca chamar a atenção para

outras noções de temporalidade presentes na história.

Como nos mostra Boucher (1998), a mente medieval cristã herdou dos

gregos e estóicos a idéia de um cosmos ordenado onde tudo teria o seu lugar.

Deus estaria no top da hierarquia, seguido dos anjos, pessoas de outros planetas,

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seres humanos, animais e objetos inanimados. Todas estas formas de existência

estariam localizadas naquilo que Arthur Lovejoy denominou em 1936 como:

“Great Chain of Being” (Grande Cadeia do Ser). Este esquema de Lovejoy se

baseava em três princípios, a saber: (i) o da plenitude, isto é, a idéia de um mundo

perfeitamente criado por Deus que necessariamente conteria todos os tipos

possíveis de seres dentro dele; (ii) o da continuidade derivado dos estudos

biológicos de Aristóteles, segundo o qual, as espécies seriam tão próximas uma

das outras que não haveria lacuna no esquema de Lovejoy e, assim, a cadeia seria

contínua entre uma e outra forma de existência; (iii) o da gradação, isto é, os

vários tipos de seres desta cadeia poderiam ser dispostos hierarquicamente de

acordo com o grau de perfeição traçado por Aristóteles ou por teólogos cristãos

posteriores e, assim, por exemplo, os seres humanos seriam superiores aos

animais mas inferiores a outros seres de outros planetas (Boucher, 1989; Mazrui,

1968; Ferguson, 2006). Ainda dentro de cada uma destas categorias (seres

humanos e animais, por exemplo) existiam divisões hierárquicas e, assim, por

exemplo, o cavalo estava acima do rato bem como os cristãos estavam mais pertos

de Deus do que os adeptos a outras religiões (Ferguson, 2006). Este esquema, por

conseguinte, naturalizava as hierarquias, por exemplo, entre senhor/escravo,

esposa/marido ou filho/pai (ver Ferguson, 2006)

Na medida em que o pensamento racial emergiu na Europa dos séculos

XVIII e XIX, os tipos raciais de homo sapiens foram introduzidos na “Great

Chain of Being” e, deste modo, hierarquizados. Tão cedo como em 1713, os

naturalistas começaram a olhar para o vínculo que faltava entre os homens e os

macacos especulando sobre a possibilidade das tribos negras “selvagens” dos

Hottentots e o orangotango estarem lado a lado na escalada da vida, separados

apenas pelo fato dos últimos não poderem falar (Mazrui, 1968). Conforme

observou Mazrui (1968), a relação entre este esquema e o racismo/etnocentrismo

é facilmente perceptível já que havia um consenso sobre onde localizar o homem

branco nesta cadeia. De acordo com Philip D. Curtin (apud Mazrui, 1968:70-1):

Since there is no strictly scientific or biological justification for stating that one race is ‘higher’ than another, the criteria of ranking had to come from non-scientific assumptions. All of the biologists…began by putting the European variety at the top of the scale. This was natural enough if only as an un-thinking reflection of cultural chauvinism. It could be held to follow from the assessment of European achievements in art and science…It was taken for granted that

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historical achievements were intimately connected with physical form- in short, that race and culture were closely related.

Esta hierarquização, por sua vez, era ancorada pela doutrina da poligenia,

segundo a qual, as diferentes “raças” foram criadas separadamente por Deus e

tinham, por natureza e plano divino, diferentes posições no esquema geral das

coisas neste mundo ordenado (Ferguson, 2006). Os oponentes desta visão

geralmente sustentavam que as “raças” inferiores não eram uma criação divina

original, mas, antes, um resultado de uma queda da graça. De acordo com esta

visão alternativa, a diferença racial seria produto da história, mas uma história

entendida como uma queda desde um estado original de graça. Variações

posteriores deste tema introduziram a idéia de uma degeneração racial, um tipo de

versão biológica da queda (Ferguson, 2006). Como veremos no capítulo 4, esta

idéia da degeneração racial teve uma enorme influência nos discursos raciais

italianos. Tal degeneração seria visível, segundo tais discursos, sobretudo, nas

regiões do sul da Itália, onde a miscigenação entre os sujeitos romanos, africanos

e asiáticos do Império teria supostamente causado a degeneração da “raça” latina

e o colapso do Império Romano (De Donno, 2006).

Uma consideração importante a ser feita é que a cadeia de Lovejoi não

forma uma progressão histórica ou evolucionária, pois se a criação divina é

entendida como perfeita e completa, logo, a cadeia é eterna e imutável (Ferguson,

2006). Para usar a expressão inglesa, a cadeia é “time(less)”, posto que o tempo

não incide sobre ela. Nas palavras de Lovejoi (apud Ferguson, 2006:181) o

princípio de plenitude é:

[I]nconsistent with any belief in progress, or, indeed, in any sort of significant change in the universe as a whole. The chain of being, in so far as its continuity and completeness were affirmed on the customary grounds, was a perfect example of an absolutely rigid and absolutely rigid and static scheme of things.

Quando alguma temporalidade entrava no esquema, esta não era

progressiva, mas entendida no sentido da queda do estado de graça, por vezes

associada com a degeneração racial (Ferguson, 2006).

A grande inovação na Grande Cadeia do Ser, segundo Mazuri (1968)

ocorre com Darwin que vai inserir dinamismo na mesma, convertendo uma mera

classificação num processo. Agora, portanto, se introduzia algum grau de

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mobilidade na cadeia estanque na medida em que criaturas localizadas nos níveis

inferiores poderiam estar se movendo numa direção mais elevada e aqueles já

localizados em posições superiores poderiam estar avançando ainda mais (Mazrui,

1968). Na Origem das Espécies de 1859, Darwin expõe a convicção de uma

evolução progressiva em direção a uma maior complexidade e sofisticação na

estrutura dos seres. Existiria, para Darwin, uma lei geral conduzindo ao avanço de

todos os seres orgânicos rumo a uma maior flexibilidade para lidar com as

necessidades do ambiente. Aqueles que se revelam incapazes de lidar com estas

demandas, não sobrevivem. A introdução do elemento dinâmico nas teorias

etnocêntricas inevitavelmente conduziu a pressupostos sobre a liderança da “raça”

branca na condução do processo de mudança histórica e do direito dos brancos de

governarem os menos desenvolvidos (Mazrui, 1968).

Como vimos, parte-se, nesta tese, de um entendimento mais amplo da

teoria da modernização a qual reflete não apenas o momento na qual ela foi

gestada, mas também o momento dos primeiros encontros dos europeus com os

não europeus onde a diferença destes últimos foi lida como uma versão atrasada

do self europeu. Esta idéia que introduziu a desigualdade temporal entre os seres

humanos, nunca foi apagada desde então, mas, em diferentes momentos foi

enrijecida, por exemplo, com a introdução do racismo biológico no século XIX

inserido no esquema já constituído da Grande Cadeia do Ser. Todavia, mesmo

durante a colonização, o racismo biológico, coexistiu com o racismo cultural, o

qual previa a possibilidade de uma cultura inferior progredir por meio da “missão

civilizatória” européia. Esta missão, segundo Finnemore (1996), esteve imbuída

da tarefa de criar “humanidade”, até então inexistente na Ásia, na África e nas

Américas; o que só seria possível se os “bárbaros” adotassem os arranjos

políticos, sociais, econômicos e culturais europeus. Para Campbell (1992), as

características culturais tais como a presença de religião, artes ou ciências são

fatores sociais que podem vir a ser adquiridos, sugerindo, desse modo, a

mobilidade dos povos mais primitivos.

Campbell (1992) fornece uma interessante explicação para o esforço dos

europeus no século XIX de enrijecerem a separação entre eles e os africanos por

meio de teorias racistas. Segundo este autor, a crescente importância da

escravidão africana na economia política da nova sociedade colonial tornava os

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africanos, por um lado, parte da sociedade emergente, por outro lado, excluídos do

pertencimento pleno à mesma. A presença dos africanos no sistema social e

produtivo europeu ensejou nos europeus um esforço marcante para se

diferenciarem deste “Outro” que se infiltrava no seu espaço. Campbell (1992)

mostra que a localização dos perigos no mundo externo é importante na medida

em que o espaço de dentro também é atravessado por incertezas e ambigüidades

acerca dos seus fundamentos. Tais incertezas são agravadas no caso em questão

pela presença de elementos “estranhos” que se incorporam ao sistema social e

produtivo colonial. A resposta é um esforço ainda mais intenso de demarcação de

fronteiras entre o “Eu” e o “Outro” a fim de impedir a contaminação do espaço

europeu por tais elementos. Como parte de tal esforço, os escravos africanos eram

simplesmente denominados “negros” em contraposição aos nativos das Américas

denominados pagãos ou selvagens; termos que sugeririam a possibilidade de

mobilidade social (Campbell, 1992). O critério racial, ao contrário, observa

Campbell, imputa características biológicas que são fixas, negando, em ultima

instância, a possibilidade de progresso gradual.

Na parte II dessa tese, veremos como este argumento de Campbell se

aplica no caso da colonização italiana da Somália, quando a busca pela pureza

nacional durante o regime fascista vai impulsionar o enrijecimento das fronteiras

traçadas, por meio de teorias racistas, entre a metrópole e suas colônias africanas.

A presença de um sul agrícola tido como “atrasado” na Itália, confundia as

fronteiras entre o “civilizado” e o “selvagem” conduzindo, portanto, a um esforço

mais radical por parte da Itália no sentido de enrijecer as fronteiras entre estes dois

mundos.

2.5 O Fim da Guerra Fria: Fim do Telos ou Modernização Reinventada

A teoria da modernização teve a sua fase áurea nas décadas posteriores à

Segunda Guerra (Krishna, 2009). Para Escobar (1995), até o final da década de

70, o ato de se pensar fora da categoria “desenvolvimento” era um exercício

deveras complicado já que o desenvolvimento atingiu o status de certeza no

imaginário social. Como colocado pelo autor (1995: 5):

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Wherever one looked, one found the respective and omnipresent reality of development: governments designing and implementing ambitious developments plans, institutions carrying out developments programs in city and countryside alike, experts of all kinds studying underdevelopment and producing theories and nauseam.

Deste modo, a questão central nas discussões sobre a Ásia, a África e a

América Latina dizia respeito à natureza do desenvolvimento que deveria ser

perseguido para resolver os problemas sociais e econômicos nestas partes do

mundo e mesmo aqueles que se opunham às estratégias capitalistas prevalecentes

eram obrigados a formular suas críticas por meio da terminologia dominante,

como no caso das demandas por um “desenvolvimento socialista” ou por um

“desenvolvimento participativo” (Escobar, 1995). A realidade, segundo Escobar

(1995), foi colonizada pelo discurso do desenvolvimento, já que parecia

impossível conceituá-la de outra forma.

Embora as teorias e políticas da modernização tenham sido severamente

criticadas a partir da década de 70, sobretudo depois da experiência fracassada por

parte dos Estados Unidos de “modernizar” o Vietnã, argumenta-se nesta tese, que

os seus principais pressupostos ainda continuam em voga, entre eles, o da

hierarquização da humanidade por meio de uma filosofia liberal da história cujo

estágio final é representado pelo Ocidente (ver Jahn, 2007). Na terceira parte da

tese, esse argumento será explorado melhor através do caso das operações de paz

da ONU na Somália entre 1992 e 1995.

Este item final tem por objetivo apontar alguns indícios da sobrevida,

ainda que de uma forma modificada, da teoria da modernização no cenário do

pós-Guerra Fria. Esta discussão, contudo, será retomada e aprofundada no nas

partes III e IV desta tese.

Vimos no primeiro capítulo que durante a Guerra Fria se estabeleceu uma

divisão de tarefas, ainda que implícita, entre a teoria da modernização e as teorias

das Relações Internacionais. Se a teoria da modernização dirigia sua atenção para

o desenvolvimento dos Estados do “Terceiro Mundo”, o imaginário realista

dominante nas Relações Internacionais deste período focalizava os conflitos entre

Estados e negligenciava as ameaças “domésticas” à ordem internacional. Em

conformidade com tal imaginário, as operações de paz da ONU durante a Guerra

Fria, as missões clássicas de peacekeeping, envolviam forças multinacionais

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levemente armadas que ajudavam a observar e a manter os acordos de cessar-fogo

entre os antigos combatentes, mas não se envolviam com ações orientadas para a

arena “doméstica” dos Estados. Deste modo, durante a Guerra Fria, as operações

de paz da ONU, refletindo o consenso realista do período, foram orientadas para a

busca da paz negativa, ou seja, de uma paz caracterizada pelo mero cessar das

hostilidades físicas entre os combatentes e não se ocupavam, portanto, com a

promoção de qualquer modelo de governança doméstica para as partes em

conflito.

Com o fim da Guerra Fria, assistimos a uma reorientação das teorias das

Relações Internacionais bem como da natureza das operações de paz. Como já

visto, estas teorias, a exemplo da teoria da paz liberal, cada vez mais, miram para

a dimensão “doméstica” dos Estados prescrevendo padrões de governança nos

termos democráticos liberais ditados pelo mundo ocidental. Na contramão do

imaginário realista, a teoria da paz liberal explicitamente vincula um tipo

particular de ordem doméstica à paz internacional. No contexto da ONU, este

novo consenso se refletiu numa reconfiguração das operações de paz, a qual será

explicada a seguir.

No contexto de exagerado otimismo que caracterizou o fim da Guerra Fria

decorrente da superação das tensões ideológicas entre os Estados Unidos e a

União Soviética, as Nações Unidas experimentaram uma mudança na natureza das

suas operações de paz, as quais passaram a estar, cada vez mais, comprometidas

com a reconstrução de Estados fragmentados por guerras civis. Neste ambiente

triunfalista, o ex-Secretário Geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, lançou em

1992, a “Agenda para Paz”. Neste documento, Ghali propunha uma ampliação

considerável do papel que a ONU deveria assumir na resolução de conflitos no

pós-Guerra Fria, incluindo o conceito de peacebuilding, por ele definido como

“action to identify and support structures which will tend to strengthen and

solidify peace in order to avoid a relapse into conflict” (Ghali, 1992: par.21). As

atividades de reconstrução de Estados são abrangentes e variam de país para país,

mas geralmente envolvem: desmobilização e integração dos antigos combatentes

à sociedade civil, fornecimento de ajuda financeira, assistência humanitária,

organização e fiscalização de eleições, repatriamento de refugiados, reconstrução

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da estrutura física dos países, monitoramento dos direitos humanos, reestruturação

do sistema judiciário e reforma legislativa.

Pelo exposto, fica claro que o processo de peacebuilding não está voltado

apenas para a tarefa de impedir que os antigos combatentes reiniciem o conflito,

mas tem, também, a pretensão de lidar com as causas profundas do mesmo,

evitando sua retomada por meio da recriação das instituições centrais do Estado e

da sociedade (Call; Cook, 2003). Nesse sentido, a paz que o processo de

reconstrução de Estados se propõe a instaurar não é negativa, mas dirige a atenção

para a erradicação das novas fontes de insegurança econômica, social e ambiental

ao mesmo tempo em que ressalta a interdependência entre tais dimensões. Por

conseguinte, estas operações partem de um conceito ampliado de segurança não

mais vinculado exclusivamente à dimensão militar e não mais focado na dimensão

interestatal como ocorria durante a Guerra Fria. A ONU passa a refletir cada vez

mais a convicção de que para um Estado estar em paz com os seus vizinhos, ele

precisa estar em paz consigo mesmo (Barnett, 1995) e para tal fim revela-se

imprescindível, conforme o discurso que vem orientando a ONU desde o fim da

Guerra Fria, a adoção de um determinado modelo de governança doméstica.

O fim da Guerra Fria e o resultante ocaso do competidor geopolítico e

ideológico dos Estados Unidos dilataram os horizontes para a realização efetiva

dos ideais democráticos liberais de política doméstica (ver Bhuta, 2008). Parece

inegável que o fim da Guerra Fria criou as condições de possibilidade para que a

promoção de Estados democráticos se transformasse num objetivo multilateral,

doravante levado a cabo no âmbito das Nações Unidas. Roland Paris (2002) nos

lembra que durante a Guerra Fria a própria definição de democracia na ONU era

uma fonte de conflito ideológico entre os blocos soviético e ocidental; o que

obstruiu a existência de um consenso normativo na Organização que fosse além

do mero apoio à criação de Estados independentes. Nesta mesma linha, Peter

Jakobsen (2002) argumenta que, se por um lado, a posição dominante dos Estados

Unidos e da União Soviética durante a Guerra Fria estimulou a globalização do

sistema de Estados, por outro, a balança de poder impediu a globalização das

idéias e da economia mundial, tendo em vista que cada superpotência defendia sua

própria ideologia e modelo econômico. Deste modo, de acordo com Jakobsen

(2002), o corolário da vitória ocidental na Guerra Fria foi a aceleração do

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processo de globalização “cultural”, isto é, a difusão do modelo de governança

ocidental caracterizado pela economia de mercado, democracia e direitos

humanos.

Esta tese sugere que, se durante a Guerra Fria a responsabilidade pela

tarefa modernizadora recaiu, sobretudo, nas elites ocidentalizadas do “Terceiro

Mundo” sujeitas às sistemáticas ingerências econômicas e políticas por parte dos

Estados ocidentais, desde o fim da Guerra Fria, tal responsabilidade foi sendo

assumida, cada vez mais, pela suposta “comunidade internacional” atuante via

Organizações Internacionais. E, nesse sentido, a modernização migrou desde a

esfera dos Estados para a esfera do Internacional. Argumenta-se aqui que as

justificativas fornecidas pelo discurso dominante para a crise da teoria da

modernização na década de 70 nos ajudam a explicar a reestruturação da mesma

com o fim da Guerra Fria. A seguir, portanto, pretendo expor brevemente tais

justificativas.

Francis Sutton (2006) alega que os projetos modernizadores do pós-

Segunda Guerra falharam por terem sido demasiadamente otimistas quanto aos

prospectos de transformação das sociedades rumo às uniformidades da

modernidade e, desse modo, negligenciaram a resiliência dos particularismos dos

laços pessoais de parentesco, localidade e etnicidade os quais comprometeram a

eficiência dos Estados e de outras instituições. Segundo este autor, existia um

otimismo exagerado no ambiente pós-1945 de que o progresso e a prosperidade

para todos poderiam ser efetivamente planejados pelos governos e que tais

governos seriam de fato devotos aos interesses dos seus povos. Assim, na sua

forma inicial, o desenvolvimento foi direcionado primeiramente para o progresso

e o bem-estar dos Estados e não para a melhoria da vida individual ou para o

combate da pobreza como recentemente entendido (Sutton, 2006). A ajuda tinha

como alvo, portanto, os Estados-nações do “Terceiro Mundo” os quais, de acordo

com tal discurso, teriam se mostrado incapazes de, por meio de projetos

nacionalistas ligados a territórios domésticos particulares, promover a

modernização das suas sociedades, em grande medida, devido à corrupção dos

seus líderes e às disputas internas. A política de desenvolvimento neste período

inicial voltava-se, portanto, para a construção de governos viáveis e efetivos que,

acreditava-se, conduziriam seus povos na direção de uma nação única. Por outro

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lado, a ajuda concedida no pós-Segunda Guerra era descrita como culturalmente

neutra, livre das restrições culturais outrora impostas pelo colonialismo. Nas

palavras de Sutton (2006: 59):

I have depicted development in its classic and original form after the world war II as a process willed and guided by governments that were committed to the advancement of their peoples and were to be asserted by more advanced and influent nations in unintrusive and culturally neutral ways.

Deste modo, Sutton (2006) ecoa a crença de que os principais problemas

da ajuda ao desenvolvimento durante a Guerra Fria é que a mesma era provida

sem condicionalidades e de forma não intrusiva, confiando, demasiadamente, na

devoção genuína dos Estados do “Terceiro Mundo” em relação aos seus povos.

Argumenta-se aqui que este discurso acerca das causas do fracasso da

teoria modernização desde a década de 70 em diante teve uma série de

conseqüências para o discurso do peacebuilding. Em primeiro lugar, o processo

de modernização é retirado das mãos das elites do “Terceiro Mundo” que,

segundo tal discurso, teriam agido de forma irresponsável, e transferido para as

Organizações Internacionais que se tornam, via operações de paz, as principais

responsáveis pela reestruturação das sociedades do “Terceiro Mundo”. E, assim,

se antes as operações de paz não se envolviam na chamada dimensão empírica da

soberania, agora, elas passam a ser um novo campo de intervenção (ver Barnett,

1995).

Martha Finnemore (2000) argumenta que o nível de desempenho

requisitado de um Estado se tornou mais alto do que em qualquer outro momento

do passado na medida em que o escopo do escrutínio internacional se ampliou e

os padrões normativos se tornaram mais exigentes. Segundo a autora nos mostra,

uma característica relevante das atividades da ONU no pós-Guerra Fria é o seu

crescente envolvimento na articulação e observação de normas de comportamento

para a esfera doméstica dos Estados. A autora argumenta que os padrões

normativos que vêm incidindo sobre os Estados desde o final da Guerra Fria são

cada vez mais exigentes. Além de demandarem respeito aos direitos humanos

também reivindicam, como um requisito da “boa governança” que os governos

não sejam corruptos. Segundo Finnemore (2000), a tentativa de impor um padrão

anticorrupção sobre todos os governos não têm precedentes, já que antes tal tema

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pertencia à jurisdição doméstica dos Estados. Além desse padrão mínimo, os

Estados devem ser democráticos. De acordo com a autora, os Estados não

democráticos dificilmente conseguem convencer os demais Estados de que são

prestadores de contas, responsáveis e respeitadores dos direitos humanos.

Em abril de 2000, a Comissão de Direitos Humanos da ONU aprovou uma

resolução inovadora relativa à “boa governança” cujos componentes essenciais

são transparência, responsabilidade, prestação de contas, participação e

sensibilidade quanto às necessidades e aspirações da população. Ao mesmo

tempo, vincula um “bom governo” a um ambiente propício ao desfrute dos

direitos humanos e à promoção do crescimento e desenvolvimento sustentável

(Kofi Annan, 2000).

Nesse sentido, a ONU vem desenvolvendo técnicas para avaliar e corrigir

o comportamento dos Estados em campos que antes pertenciam à esfera interna

dos Estados. Conforme vimos acima, somente com o colapso da ordem bipolar é

que se tornaram possíveis o abandono do agnosticismo em relação às formas

preferíveis de governança e a articulação de uma visão radicalmente substantiva

de ordem doméstica (Bhuta, 2008). Bhuta chama a atenção para o perigo inerente

embutido na re-emergência de modelos substantivos de ordem doméstica como

preocupação apropriada da política internacional. Esse seria o caso, por exemplo,

do conjunto de prescrições institucionais estabelecido sob o rótulo da “boa

governança” que surge, inicialmente, como um termo descritivo e prescritivo

invocado pelo Banco Mundial para explicar porque os ajustes estruturais na

África falharam em alcançar os resultados previstos pelas teorias econômicas do

Banco (Bhuta, 2008). Para superar tal fracasso, o Banco Mundial recomenda

reforma institucional e política radicais; o que implica numa ampliação do

domínio de intervenção externa voltada para a reconfiguração de tais sociedades

do “Terceiro Mundo” (Bhuta, 2008).

O perigo vislumbrado por Bhuta (2008) é que, embora o conjunto de

prescrições alocadas sob a legenda da “boa governança” seja contingente, produto

de uma história particular, ele nos é apresentado como a única solução, ou seja,

como “o” modelo de política racional para reverter os resultados políticos

indesejados em todas as regiões do globo. Segundo Bhuta (2008), todo sistema

imperial articula e dissemina reivindicações de legitimação de autoridade sobre

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outros, seja em termos de monarquia universal, civilização universal ou direito

cosmopolita, tomando uma experiência paroquial e a transformando na medida de

todas as histórias e políticas. Assim, “boa governança” se torna, de acordo com

Bhuta (2008), o equivalente contemporâneo do velho padrão de civilização a

partir do qual as ordens políticas devem ser refeitas e devolvidas à comunidade

das “boas sociedades”.32 Assim como ocorria previamente tal critério de “boa

governança” estabelece uma hierarquia entre as diferentes ordens políticas e ao

fazê-lo legitima reivindicações de tutela (ver Bhuta, 2008).

A idéia de que hoje assistimos a um ressurgimento do velho padrão

civilizatório, mas agora sob a forma da democracia liberal, também é

compartilhada por Bowden (2002). Segundo o autor, hoje, aquele Estado que se

desvia do ideal democrático liberal está condenado a ser visto como mal

ordenado, pré-moderno, predatório ou quaisquer outras descrições que nos

remetem à velha idéia do não civilizado. Todavia, o sistema classificatório

erguido a partir da identificação de diferentes zonas ou níveis de civilização se

constitui tanto como uma explicação como uma justificativa para a manutenção de

uma zona de excluídos sujeita à tutela colonial (ver Bowden, 2002; Gong, 1984).

Por outro lado, presume-se que as instituições prescritas por tal modelo

possam ser facilmente produzidas, legitimadas e estabilizadas a partir da intenção

e do desenho dos seus planejadores ocidentais (Bhuta, 2008). Nas palavras de

Bhuta (2008:527):

[T]he governance agenda (...) provide[s] a simple post hoc explanations for ‘state-failure,’ and a convenient a priori policy framework that reinforces the palliative ideals of ‘democracy-as-peace-engineering’.

A “boa governança” fornece, por conseguinte, um guia abrangente de

tecnologias políticas, jurídicas e econômicas para os doadores encorajando-os a

antecipar intervenções mais amplas e técnicas a fim de recriar as instituições

nestes territórios (Bhuta, 2008). Bhuta (2008:527) conclui:

It is not overly polemical, I think, to suggest that in state-building, “good governance” has found its own project: a laboratory for the claims that

32 Com relação ao argumento da emergência de um novo padrão civilizatório no cenário do pós-Guerra Fria, ver também: David P Fidler, ‘A Kinder, Gentler System of Capitulation? International Law, Structural Adjustment Policies, and the Standard of Liberal, Globalized Civilization’, Texas International Law Journal, Vol., 35, No. 3, 2000.

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institutions and practices deemed pathological and conflict-inducing can through technical expertise be re-made, perhaps even made ab initio.

Assim, se como vimos, de acordo com o discurso dominante, a teoria da

modernização falhou durante a Guerra Fria pela sua ingenuidade expressa na

excessiva confiança depositada nas elites dos Estados pós-coloniais e na adoção

de um modelo de ajuda não intrusivo, (Sutton, 2006), a prática do peacebuilding

foi desenvolvida no pós-Guerra Fria buscando corrigir essas supostas falhas. E,

assim, a prática de peacebuilding foi se tornando cada vez mais intrusiva ao se

voltar não mais apenas para a reabilitação de Estados, mas, também, para a

construção dos indivíduos modernos, os quais iriam compor tais Estados.33 Nesse

sentido, esta tese argumenta que a teoria da modernização continua em voga nos

dias atuais sob uma nova roupagem.

A tese diverge do argumento de Ferguson (2006) para quem a África foi

destemporalizada. Segundo o autor, faz-se visível na ideologia popular, na mídia

ocidental bem como na própria auto-representação dos africanos uma imagem

desoladora sobre o futuro do continente. As recorrentes representações negativas

acerca dos africanos deixam de estar dependentes de um constructo temporal que,

à época da modernização, inseria seus problemas numa trajetória de

desenvolvimento progressiva. Na medida em que a modernidade deixa de ser

entendida como telos, a diferença de status no sistema social global perde a

promessa do desenvolvimento, ou nos termos de Ferguson, do “not yet”

(Ferguson, 2006). Hoje, para o autor, a esperança do progresso africano foi

substituída por uma resignação acerca da imutabilidade do estado de coisas no

continente. Quando a promessa de modernização das categorias de status é

rompida, estas categorias se assemelham com as categorias de status fixas da era

pré-independência quando a cor segmentou o mundo social entre o setor branco e

rico e o mundo pobre e negro dos nativos (ver Ferguson, 2006). Nesse contexto, a

idéia do Grande Cadeia do Ser ameaça ser reativada na medida em que as

condições difíceis enfrentadas pelas diferentes regiões do mundo aparecem como

dadas naturalmente ou divinamente e, deste modo, como uma ordem inalterável

(Ferguson, 2006). E, assim, nas palavras de Ferguson (2006:189-190): “Rather 33 Este argumento acerca da nova ênfase das operações de paz em disciplinar os indivíduos será discutida no terceiro capítulo da tese a partir de insights de Foucault.

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than the poorest countries being understood as behind the West - playing catch-

up, developing or emerging- they are increasingly understood as naturally,

perhaps even racially, beneath it”. Deste modo, continua existindo o eixo da

hierarquia de status, mas com o eixo da seqüência temporal removido. A

localização na hierarquia já não indexa um estágio de desenvolvimento, mas

apenas uma posição na economia política global. E, deste modo, se antes, os

africanos, estavam localizados num degrau que no futuro poderia conduzi-los ao

desenvolvimento almejado, hoje, diferentemente, eles estão separados dos Estados

desenvolvidos por muros de exclusão (Ferguson, 2006). Para o autor (2006: 189,

grifo meu):

Insofar as such ranks have lost any necessary relation to developmental time, they become not stages to be passed through, but non-serialized statuses that are separated from each other by exclusionary walls, not developmental stairways.

Todavia, se para Ferguson (2006) as narrativas de desenvolvimento

perderam sua credibilidade em certos lugares, como na África, ela continua válida

em outros, como na Ásia. Enfim, o autor ressalta que a perda da credibilidade em

direção às narrativas de desenvolvimento econômico e social não ocorreu

universalmente, mas em lugares específicos.

Esta tese sugere, diferentemente de Ferguson, que num mesmo espaço, na

África, podemos notar diferentes noções de temporalidade articuladas por

diferentes atores internacionais, todas elas baseadas numa visão depreciativa da

diferença34. O problema da abordagem de Ferguson é que o autor reifica a

associação do tempo com o espaço e não prevê a possibilidade de que num

mesmo espaço como, por exemplo, na África, possam coexistir diferentes noções

disputadas de temporalidade. Ferguson, portanto, trabalha com um espaço

culturalmente uniforme e não concebe a possibilidade de que num mesmo espaço

possam conviver múltiplas temporalidades, como bem reconhecem os autores

pós-coloniais. Bhabha (1991), por exemplo, nos mostra que se por um lado o

discurso colonial propunha uma teleologia segundo o qual o “nativo” se tornaria

reformável caso sujeito a determinadas condições de controle, por outro lado, os

testemunhos racistas da ciência desmentiam a capacidade do nativo de adquirir tal

34 Tal argumento será retomado nas partes III e IV dessa tese.

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autonomia (Bhabha, 1991). E, nesse sentido, a narrativa teleológica progressiva

coexistia com narrativas racistas, as quais sugeriam o imobilismo do “nativo”.

Essa tese argumenta ainda que as metáforas utilizadas por Ferguson para

diferenciar a temporalidade prevalecente na África de hoje daquelas dominantes

na África do pós-Segunda Guerra (muros excludentes versus escadarias

desenvolvimentistas, respectivamente), têm o efeito de produzir a lógica da

modernização do pós-Segunda Guerra como inclusiva, como escadas que levam

ao progresso, em contraposição a lógica excludente contemporânea. O objetivo

deste capítulo, diferentemente, foi justamente o de adotar uma visão abrangente da

teoria da modernização chamando a atenção para os seus traços excludentes e

racistas e, assim, o de mostrar as continuidades entre o discurso da colonização e

da modernização, ambos baseados numa leitura depreciativa da diferença, ainda

que em alguns momentos esta visão tenha assumido tons mais radicais e rígidos

do que em outros.

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3 O Cosmopolitismo Kantiano: Universalizando o Iluminismo

Conforme vimos, a tese sugere que as “novas” operações de paz da ONU

são informadas pela teoria da modernização (ver Jahn, 2007) hoje dita

ultrapassada. Ao mesmo tempo, nos discursos onusianos é possível identificar,

desde o fim da Guerra Fria, uma menção sistemática ao pensamento do filósofo

Immanuel Kant (1724-1804). Neste capítulo argumenta-se que a crescente

recordação do pensamento kantiano no contexto onusiano no pós-Guerra Fria está

intimamente conectada com o emprego de uma narrativa modernizadora por parte

das Nações Unidas; o que nos remete não apenas ao contexto do pós-Segunda

Guerra, mas também ao contexto imperialista e racista do século XIX.

3.1 A Apropriação de Kant pelo Discurso das Relações Internacionais no Pós-Guerra Fria

A autoridade kantiana é evocada cotidianamente, sobretudo, no contexto

da teoria da paz liberal. O vínculo, articulado com o auxílio de estatísticas, entre o

pensamento kantiano e a idéia de que as democracias não guerreiam entre si é

apresentado de forma pioneira no campo das Relações Internacionais por Michael

Doyle no artigo Liberalism and World Politics, publicado na American Political

Science Review em 1986. Desde então e, sobretudo, desde o fim da Guerra Fria e

o conseqüente aumento do número de democracias, a alegada “paz liberal” passou

a fazer parte não só do vocabulário político, mas também de iniciativas

acadêmicas voltadas para investigar a robustez da hipótese aventada por Doyle e

dos discursos das Organizações Internacionais.

A referência kantiana utilizada para o desenvolvimento da tese da paz

liberal é o ensaio, escrito sob a forma de um tratado: A Paz Perpétua: Um Projeto

Filosófico de 1795. No primeiro artigo definitivo deste “tratado”, Kant argumenta

que: “a constituição republicana, afora a pureza da sua origem, isto é, de ter

brotado da pura fonte da nação de direito, contém ainda uma perspectiva para a

conseqüência desejada, isto é, a paz perpétua; da qual é fundamento” (Kant, 2004:

42). Kant argumenta que a república é a melhor forma de governo, pois além de

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garantir liberdade na esfera doméstica, manifesta uma inclinação inerente rumo à

paz externamente. A república é considerada a forma de governo mais pacífica,

pois, de acordo com a sua constituição, o engajamento nos conflitos armados

requer o aval da população. E, para Kant, quando o consenso dos cidadãos é

requisitado para decidir se uma guerra deve ou não ser declarada, estes vão

naturalmente hesitar antes de iniciá-la, já que são eles que terão que arcar com os

custos humanos e econômicos decorrentes da guerra (Kant, 2004: 42).

No contexto onusiano, o ex-Secretário Geral Boutros Boutros-Ghali

enfatizou a relação entre democracia e paz internacional, argumentando que as

democracias são amantes da paz e não propensas a empreender guerras contra

outras democracias (ver Boutros-Ghali, 1995, 1996). Nesta mesma linha, o

sucessor de Ghali, o ex-Secretário Geral Kofi Annan recorre ao acima citado

ensaio kantiano para expor as conexões entre democracia e paz internacional.

Neste ensaio, Kant argumenta que as repúblicas, o que, segundo Annan,

corresponderia de modo geral ao que denominados hoje de “democracias

liberais”, seriam menos propensas a travarem guerras contra outras democracias.

A explicação mais convincente para tal fenômeno, segundo Annan, é a de que a

democracia liberal é um sistema aberto, transparente, incapaz de mobilizar seus

cidadãos para a guerra sem antes convencer a maioria deles de que a guerra é justa

e necessária. Annan argumenta que a promoção da democracia é uma tarefa

crucial não apenas porque afeta a relação entre Estados, mas também porque pode

facilitar a harmonia e o desenvolvimento dentro deles. Na ausência de instituições

democráticas genuínas, os interesses contendores revelam-se propensos a resolver

suas diferenças antes pelo conflito do que acomodação. Ainda segundo Annan, os

Estados democráticos que respeitam os direitos de todos os cidadãos permitindo

que tenham voz nas decisões que afetam suas vidas fornecem o ambiente

econômico e social capaz de atrair investidores e, desse modo, além de

promoverem a paz internacional, fomentam o desenvolvimento (Annan, 2002;

S/1998/318).

Por outro lado, a tese da paz liberal que vem permeando os discursos das

Nações Unidas desde o fim da Guerra Fria tem implicações para as práticas da

Organização. Uma vez que a tese da paz liberal se afasta do discurso neo-realista,

hegemônico durante a Guerra Fria, segundo o qual as características domésticas

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dos Estados são irrelevantes para a segurança internacional e passa a reconhecer a

influência crescente de tais características na pacificação do sistema internacional,

ela cria as condições de possibilidade para práticas cada vez mais

intervencionistas. Desse modo, como nos mostra Chandler (2004), a rubrica “paz

liberal” fornece o arcabouço por meio do qual a promoção da democracia e dos

direitos humanos tem sido perseguida, se preciso via meios intervencionistas. Nas

palavras de Chandler (2004):

Liberal peace theorists stress that international peace and individual rights are best advanced through cosmopolitan frameworks whereby democratic and peaceful states take a leading responsibility for ensuring the interests of common humanitY (Chandler, 2004:60).

Outro artigo do “tratado” kantiano sistematicamente aludido

contemporaneamente é o terceiro artigo definitivo no qual se lê: “o direito

cosmopolita deve restringir-se às condições da hospitalidade universal, isto é, o

direito de um estrangeiro de não ser tratado hostilmente em território alheio”

(Kant, 2004: 50-51, grifo meu). O tom restritivo deste artigo se torna inteligível

mais adiante quando Kant assevera que não cabe ao recém-chegado exigir o

direito de hóspede, mas simplesmente o direito de visita derivado do direito de

propriedade comum à superfície da terra. Para além do teor restritivo do artigo, ele

expressa um dever que, de acordo com David Held, transcende os interesses dos

Estados e abrange toda a comunidade universal de indivíduos (Held, 1995). A

existência de tal comunidade mundial de indivíduos, entendida por Kant como um

complemento para paz perpétua, revela-se na seguinte passagem do “tratado”:

Ora, como se chegou tão longe com o incremento em geral da comunidade (mais estreita ou mais ampla) entre os povos da Terra que a violação dos direitos de um só lugar da Terra é sentido em todos os outros: assim, a idéia de um direito cosmopolítico não é nenhuma espécie de representação fantástica e excêntrica do direito. (Kant, 2004:54).

De acordo com Wade L. Huntley, esta descrição de Kant acerca do direito

de cidadania mundial revela a consistência do seu pensamento com preocupações

recentes relativas à temática dos direitos humanos (Huntley, 1990). Também

Howard Williams e Ken Booth mostram a força das observações kantianas 200

anos após terem sido escritas por já expressarem “the strengthening view that

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duties do not stop at one’s borders and the development of global civil society as

represented by organizations such as Amnesty International and Médecins sans

Frontières” (Williams; Booth, 1996:91).

Como mostrado acima, o cosmopolitismo kantiano nos remete à idéia de

uma responsabilidade voltada para a humanidade que transcenderia os confins dos

Estados soberanos. Robert Jackson (1995) nos mostra que, de acordo com tal

critério cosmopolita de responsabilidade, fundado na existência de uma lei

universal da razão, os estadistas têm como obrigação fundamental não só

respeitar, mas também promover os direitos humanos universalmente. Esta ênfase

numa responsabilidade humanitária numa era onde, segundo Boutros-Ghali

(1992): “The time of absolute and exclusive sovereignty has passed”, vem

autorizando desde o fim da Guerra Fria práticas cada vez mais intervencionistas

em Estados cujas populações se encontram expostas a crises humanitárias.

3.2 Desestabilizando o Cosmopolitismo Kantiano

Esta introdução ao pensamento kantiano teve por objetivo mostrar

brevemente como a filosofia de Kant vem sendo apropriada, para muitos de forma

simplista35, na teoria das Relações Internacionais e no marco das Organizações

Internacionais no cenário do pós-Guerra Fria. Conforme vimos, esta apropriação

assenta-se quase exclusivamente no ensaio de Kant O Tratado da Paz Perpétua e

ressalta a faceta cosmopolita do autor. Na contramão desta tendência mainstream

das Relações Internacionais, o objetivo deste item é o de desestabilizar o suposto

universalismo kantiano com o auxílio dos seus escritos antropológicos e de

geografia física que, até o momento, foram negligenciados no nosso campo e até

recentemente, como nos mostra McCarthy (2009), no mundo anglo-saxônico de

forma geral. A atenção conferida a tais escritos por parte de autores como Tsenay

Serequeberhan (1996), Robert Bernasconi (2006), Andreas Behnke (2008)36 e de

Thomas McCarthy (2009) tem o mérito de trazer à tona as ambigüidades e as

35 Ver por exemplo: Beate Jahn: “Classical Smoke, classic mirror: Kant and Mill in liberal international theory” in Beate Jahn (org.) Classical Theory in International Relations, Cambridge Studies in International Relations, n. 103, 2006. 36 Agradeço à Naeem Inayatullah por ter me indicado a leitura desses textos.

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contradições do pensamento de Kant e, deste modo, de desestabilizar as fundações

do seu aclamado universalismo.

Argumenta-se aqui que a transposição das idéias desenvolvidas por Kant

no século XVIII para os debates contemporâneos das Relações Internacionais é

feita mediante a abstração do contexto histórico na qual elas foram inicialmente

formuladas e por meio de uma violência interpretativa que deixa para trás os

rastros racistas e particularistas das mesmas37. Tais silêncios criam as condições

de possibilidade para que Kant seja representado contemporaneamente de uma

forma coerente e imaculada, ou, como colocado criticamente por R. B. J. Walker

(2006:62), como “the nice guy, the apostle of possible peace among nations”. São

exatamente tais rastros e silêncios que serão aqui iluminados e vociferados com o

auxílio tanto de escritos kantianos como das interpretações de tais escritos feitas

pelos autores acima mencionados de forma a evidenciar os limites do

cosmopolitismo kantiano. Como colocado por Bernasconi (2002:161): “we should

beware doctoring the Kantian corpus so that racial disappears from it”. O autor

prossegue: “not sought to make the problem disappear by ignoring those passages

that do not fit with our image of him, as so many Kant scholars have chosen to

do”.

David Boucher (1998:32) nos mostra que a tradição universalista que

remonta aos pensamentos de Platão e Aristóteles sugere a existência de princípios

éticos cosmopolitas aplicáveis a todos embora, de fato, tenha excluído do seu

alcance certos grupos como, por exemplo, os bárbaros, as mulheres e os escravos.

Seguindo esta observação de Boucher, este item pretende desvelar os limites do

cosmopolitismo kantiano a partir da identificação dos “Outros” desumanizados

em seus escritos.

Inserido no contexto iluminista do século XVIII, a filosofia kantiana foi

desenvolvida quando já se manifestavam, segundo McCarthy (2009), as primeiras

oposições filosóficas e religiosas à escravidão racial tanto na Europa como na

América. Todavia, ao invés de posicionar o seu cosmopolitismo para rechaçar tal

prática se juntando ao espírito crítico da época, Kant vai construir uma teoria

37 Defendendo uma visão pluralista de Kant, Sankar Muthu, por exemplo, reconhece, numa nota de pé de página, que o filósofo nem sempre sustentou uma posição a favor da diversidade humana. Todavia, para construir uma imagem coerente do autor, Muthu deliberadamente apaga da sua análise o chamado período pré-crítico de Kant onde ele esboça seu conceito biológico e hereditário de raça (Muthu, 2000:43-44).

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racial num tempo em que o racismo científico, o qual viria a informar o

imperialismo europeu do século XIX, ainda estava na sua infância (Mc Carthy,

2009; Bernasconi, 2002). Nesse sentido, embora, em geral, Kant seja conhecido

por suas posturas combativas em relação ao imperialismo38, as quais serão

discutidas mais adiante, seus escritos antropológicos e de geografia física teriam

cumprido a função inversa, qual seja, a de legitimar o imperialismo. Isto porque,

segundo Bernasconi (2002), Kant forneceu a primeira definição clara de “raça”,

antecipando, desse modo, as teorias científicas racistas posteriores que

fundamentaram o imperialismo europeu.

Segue, portanto, a definição de “raça” apresentada por Kant:

Among the deviations, that is, among the hereditary dissimilarities that we find in animals that belong to a single line of descent are those called races. Races are deviations that are constantly preserved over many generations and come about as a consequence of migration (dislocation to other regions) or through interbreeding with other deviations of the same line of descent (Kant, apud Bernasconi, 2002:146).

A partir da definição supracitada, fica claro que Kant defende a

monogênese, isto é, a teoria de que todos os seres humanos derivam de uma única

célula. Ao enfatizar a origem comum da humanidade, o pensamento kantiano se

mostra em conformidade com a idéia cristã da irmandade humana oriunda de uma

origem comum (McCarthy, 2009). Todavia, para Kant, esta célula conteria quatro

“keimes” ou origens, relativos a quatro conjuntos de características raciais em

estado potencial, os quais teriam sido ativados, conforme consta na passagem

acima, por migrações que conduziram nossos ancestrais rumo a diferentes

condições geográficas, sobretudo climáticas (McCarthy, 2009). McCarthy

(2009:48) destaca que atribuir diferenças raciais às condições climáticas não era

incomum no período e daí o que era de fato inovador no pensamento kantiano era

a noção de “keime”, a qual conferia uma base biológica para as diferenças raciais.

Por outro lado, para Kant, uma vez que tais diferenças raciais tivessem sido

formadas em função da adaptação aos diferentes climas, elas já não estariam mais

abertas à modificação posterior, exceto por miscigenação racial (Bernasconi,

2002). O caminho da miscigenação, todavia, é proscrito pelo autor para quem o

congelamento do status quo racial no seu tempo estaria em conformidade com a 38 Para uma defesa do anti-imperialismo kantiano ver, sobretudo, Muthu (2000).

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natureza ou com o plano da Providência (Bernasconi, 2002). Seguindo sua lógica,

portanto, embora alguns descendentes dos ancestrais originais tenham tornado-se

negros ao migrarem para África, no seu tempo, os brancos conservariam sua cor

mesmo que permanecessem por sucessivas gerações neste continente e desde que

evitassem a mistura racial (Bernasconi, 2002). Por conseguinte, Kant naturaliza e

fossiliza a diferença racial por ele teoricamente construída.

Para entendermos a rejeição kantiana ao hibridismo racial, é necessário

destacar que a diferenciação racial para Kant está estruturada hierarquicamente,

tendo em vista que o critério racial determina talentos e disposições humanas

(McCarthy, 2009; Bernasconi, 2002). Uma das passagens kantianas onde, talvez,

tal hierarquização racial apareça de forma mais nítida encontra-se no ensaio

Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime de 1764 onde ele diz sobre

os negros:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha demonstrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião de fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. (...) Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispensá-los a pauladas (Kant, 1993:76).

Neste sentido, o perigo da miscigenação vislumbrado por Kant é o de se

nivelar por baixo a “raça” branca, tida como superior. Deste modo, quando

misturados com os “Outros” racialmente definidos, os brancos se degradariam,

perdendo parte dos seus talentos e disposições, conforme consta na seguinte

passagem: “Should one propose that the races be fused or not? They do not fuse

and it is also not desirable that they should. The Whites would be degraded. For

not every race adopts the morals and customs of the Europeans” (Kant, apud

Bernasconi, 2002:158, grifo meu).

A última frase destacada na passagem acima é interpretada por Bernasconi

(2002) como estabelecendo limites para a denominada “missão civilizatória”

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européia. Para Kant: “The Negro can be disciplined and cultivated, but it never

genuinely civilized. He falls of his own accord into savagery” (Kant, apud

Bernasconi, 2002:158). Fica claro, portanto, que para Kant, nem todas as “raças”

seriam capazes de assimilar os valores europeus e, desse modo, o resultado da

miscigenação surtiria efeitos (negativos) apenas na “raça” favorecida, enquanto a

outra parte permaneceria inalterada, imutável.

A implicação deste raciocínio racial kantiano é uma tendência,

divinamente predestinada, à separação das “raças”, ou, mais precisamente, a

segregação da “raça” branca em relação às “Outras”, sob a pena de comprometer

os avanços civilizatórios conduzidos pelos brancos. Na Antropologia desde um

Ponto de Vista Pragmático, Kant faz-se explícito neste ponto: “O que se pode

julgar com verossimilhança é somente que a mistura de estirpes (nas grandes

conquistas), que pouco a pouco extingue os caracteres, não é propícia ao gênero

humano, apesar de todo suposto filantropismo” (Kant, 1796/7:214).

O fato de Kant agregar uma explicação climática à biológica para a

questão racial, aliada ao fato dele se opor às futuras migrações, acaba por

espacializar a diferença em containeres continentais e estatais39. E assim, o

eurocentrismo kantiano, ou seja, a idéia de que a existência européia é

qualitativamente superior a todas as demais formas de vida (Serequeberhan,

1996), possui uma fundação racial, uma vez que é construído a partir da

superioridade da “raça” branca. Neste sentido, os europeus/brancos, para Kant,

estão localizados no topo da hierarquia humana (Behnke, 2008). E, assim, a

civilização européia se torna o padrão a partir do qual os demais povos vão ser

avaliados e comparados.

Os brancos são representados no discurso kantiano como detentores de

todas as inclinações e predisposições à cultura e à civilização, condutoras do

progresso rumo à perfeição (McCarthy, 2009). A partir daí, os demais povos são

julgados: os americanos nativos como muito fracos para o trabalho pesado e

resistentes à cultura, os africanos como aceitando a cultura dos escravos, mas não

a do homem livre, e ambos como incapazes de criarem por eles mesmos uma

sociedade civil ordenada (McCarthy, 2009). Tais representações (a dos europeus e

39 Ver, por exemplo, a quarta seção do ensaio kantiano “Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime” denominada: “Dos caracteres nacionais na medida em que residem no sentimento diferenciado do sublime e do belo”.

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a dos “Outros”), por sua vez, estão intimamente inter-relacionadas, pois, como

bem nos mostra Derrida, as hierarquias nunca são neutras, uma vez que os sujeitos

valorizados dependem da desvalorização dos “Outros” para se afirmarem como

civilizados e racionais (ver Derrida apud Devetak, 1995). Referindo ao

pensamento kantiano, Serequeberhan coloca (1996:339): “For it is only by

maligning the Otherness of the Other that Europe can elusively claim, for itself, a

higher historical (ontic) and philosophical (ontological) ‘pedestal’”.

Além de espacializar a diferença, uma segunda estratégia que pode ser

identificada no pensamento kantiano é a de temporalização. Para entender tal

estratégia faz-se relevante apresentar, ainda que brevemente, a filosofia da história

kantiana apresentada no ensaio Idéia de uma História Universal de um Ponto de

Vista Cosmopolita, de 1784.

Neste ensaio, Kant adota uma visão progressiva da história. Na quarta

proposição do ensaio Kant coloca os meios pelos quais tal progresso seria

efetivado:

The means, which nature employs to bring about the development of all the tendencies she has laid in man, is the antagonism of these tendencies in the social state –no farther however than to that point at which this antagonism becomes the cause of social arrangements founded in law (Kant, 1927:5).

Fica claro a partir da passagem acima que o progresso histórico é obrado

pela natureza, a qual criou os seres humanos com inclinações conflitantes. Para

Kant, ao mesmo tempo em que os seres humanos têm inclinações gregárias, eles

também têm propensões anti-sociais resultando naquilo por ele denominado de

“insociabilidade sociável”, isto é: “a tendency to enter the social state combined

with a perpetual resistance to that tendency which is continually threatening to

dissolve it” (Kant, 1927:6).

Também podemos depreender da quarta proposição que, para Kant, o

antagonismo inscrito na natureza humana é a causa de uma ordem social fundada

na lei e, portanto, cumpre uma função positiva e necessária para o

aperfeiçoamento moral da humanidade. Por mais esdrúxula que possa parecer tal

combinação, McCarthy (2009) nos recorda que muitos pensadores no século

XVIII, tais como Adam Smith, Jean Jacques-Rousseau e Jacques Turgot também

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reconheciam o envolvimento indissociável entre o bem e o mal no

desenvolvimento humano.

Uma observação adicional a ser feita acerca desta história progressiva é

que ela resulta de ações não intencionais por parte dos atores. O que vai conferir

sentido ao caráter contingente destas ações, segundo Kant, é o plano secreto da

natureza ou Providência (McCarthy, 2009). Ao atribuir à Providência o

desenvolvimento das potencialidades humanas através do tempo, podemos dizer

que Kant naturaliza e sacraliza o processo histórico. A filosofia kantiana reverbera

Aristóteles na medida em que pressupõe que a natureza não faz nada em vão. Nas

palavras de Kant (1927:5): “Nature does nothing superfluously: and in the use of

means to her ends does not play the prodigal”. A natureza revela-se, portanto, a

grande artífice da aproximação entre os homens. Ela lhes impõe adversidades e,

na medida em que os homens tentam superá-las, caminham rumo ao seu destino

moral. A natureza é sábia e sabe melhor que os próprios homens o que os move na

direção do desenvolvimento das suas naturezas racionais. Deste modo, observa

Kant:

Man, for his own sake as an individual, wishes for concord: but nature knows better what is good for man as species: and she ordains discord (…). The impulses that she has with this view laid in his moral constitution, the sources of that antisociablity and universal antagonism (…) all that to betray the adjusting hand of a wise creator (…) (Kant, 1927:6). O traço modernizador da natureza desenvolve gradativamente a

potencialidade racional humana em detrimento da animalidade predominante nos

primeiros estágios da história humana. De acordo com Kant, o homem é membro

de dois mundos: um mundo do desejo onde ele busca satisfação dos seus instintos

e um mundo de racionalidade na qual a razão determina os fins morais que ele tem

de perseguir (Linklater, 1982). Nesse sentido, o critério kantiano para julgar o

progresso da humanidade é o grau de desenvolvimento da razão que acompanha o

desenvolvimento da liberdade sobre a escravidão dos instintos e das paixões

(Bobbio, 1984). Ao ativar sua natureza racional e, assim, frear suas inclinações

animais, o homem estabelece o que é distintamente humano na sua natureza e

passa a agir de acordo com princípios universalizáveis, verdadeiros para todos os

homens (Linklater, 1982).

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Fica claro, portanto, que a razão humana, para Kant, se desenvolve na

medida em que o homem assevera sua independência face ao mundo natural e

percebe que ele é o verdadeiro fim da natureza. No fragmento Conjectural

Beginning of Human History (1786), Kant coloca:

The first time he ever said to the sheep, ‘nature has given you the skin you wear for my use, not yours’; the first time he ever took that skin and put it upon himself (...) –that time he became aware of the way in which his nature privileged and raised him above all animals (Kant, apud Serequeberhan, 1996:342).

Conforme nos mostra Serequeberhan (1996), para Kant, a razão separa o

homem do instinto e se expressa no domínio total por ele exercido sobre a

natureza. Novamente recorrendo a uma oportuna passagem de Kant,

Serequeberhan (1996:342) coloca:

[M]an’s departure from that paradise which his reason represents as the first adobe of his species was nothing but the transition from an uncultured, merely animal condition to the state of humanity, from bondage to instinct to rational control –in a word, from the tutelage of nature to the state of freedom” (Kant, apud Serequeberhan, 1996:342, grifo meu).

As passagens citadas claramente empregam uma noção de razão atrelada à

modernidade ocidental. De acordo com tal noção, a natureza é entendida em

oposição à cultura e à civilização (Dalby, 2008). Dalby (2008) mostra que a

modernidade é assentada na separação radical entre o homem e a natureza, esta

última percebida como um ambiente externo à humanidade destinado a ser

controlado e explorado pelos homens. Dalby (2008) deixa claro, por outro lado,

que tal entendimento não é de modo algum universal e para tal fim recorre a

cosmologias indígenas que adotam uma visão holística a partir da qual a

humanidade é parte da natureza; não se vendo, portanto, à parte dela.

Esta última observação de Dalby é importante para os nossos propósitos,

pois nos permite desestabilizar o cosmopolitismo kantiano, o qual universaliza

uma noção específica de razão que pode não se conformar às realidades não

ocidentais. Nesse sentido, o telos da história kantiana de desenvolvimento da

razão “humana”, de fato, é um telos que se confunde com a história européia na

medida em que, conforme colocado por Serequeberhan (1996), não é qualquer

noção de razão que se universaliza, mas uma noção instrumental de razão, a qual

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implica no crescente controle do ambiente natural como possibilidade para

liberdade. Nesse sentido, como muito bem observa Serequeberhan (1996), Kant

está ontologizando as manifestações factuais da racionalidade instrumental que

estavam começando a se manifestar nas relações burguesas de produção.

McCarthy (2009), Serequeberhan (1996) e Behnke (2008) concordam

acerca do caráter ilusório do cosmopolitismo kantiano que, de fato, seria

eurocentrado, oferecendo uma leitura do mundo nos moldes iluministas. Tais

visões, contudo, não são novas, uma vez que Antonio Gramsci já havia advertido

sobre o caráter situado de todo pensamento, incluindo o kantiano. Gramsci mostra

que Kant está teorizando desde algum lugar, a saber, aquele dos filósofos

intelectuais constituídos enquanto um estrato cosmopolita. Gramsci problematiza

a máxima kantiana “act in such a way that your conduct can become a norm for

all men in similar conditions” (Kant, apud Gramsci, 1971:373, grifo meu). Para

Gramsci, nenhuma conduta opera num vácuo, já que toda ação é culturalmente

determinada. As ditas “condições similares” refletem, portanto, as condições nas

quais Kant estava inserido, a saber, aquelas do iluminismo cosmopolita do século

XVIII, um cosmopolitismo datado, mas difundido como “o” modelo para toda a

humanidade. Ao pretender universalizar tal modelo para todos os homens, a

máxima kantina, segundo Gramsci: “pressupposes a single culture, a single

religion, a ‘world-wide’ conformism” (Gramsci, 1971: 374; esta passagem

também é citada em Serequeberhan, 1996:346).

A seguir pretendo mostrar, a partir de uma observação de Kant sobre os

taitianos, como o parâmetro kantiano para julgar os povos não europeus, é

eurocêntrico, o que inclui sua noção de razão. Ou seja, quando em contato com a

diferença (neste caso, a dos taitianos), Kant a desumaniza, privando-a de razão. A

naturalização kantiana do telos europeu validado pelos desígnios da Providência é

o que possibilita esta desumanização daqueles cujos modos de existência não têm

lugar na narrativa modernizadora européia.

A posição de Kant em relação aos taitianos aparece na crítica que o

filósofo dirige à Ideas on the Philosophy of the History of Mankind (1784-91) de

Herder. Vale a pena reproduzir o trecho kantiano:

Does the author really mean that, if the happy inhabitants of Tahiti, never visited by more civilised nations, were destined to live in their peaceful indolence for thousands of centuries, it would be possible to give a satisfactory answer to the

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question of why they should exist at all, and of whether it would not have been just as good if this islands had been occupied by happy sheep and cattle as by happy human beings who merely enjoy themselves? The above principle is therefore not as evil as the author believes –although it may well have been stated by an evil man (Kant, apud Behnke, 2008:527).

O que podemos depreender da passagem acima é, em primeiro lugar, que

Kant se pergunta sobre o porquê da existência dos taitianos. Esta pergunta

obviamente se relaciona com a idéia kantiana de que a Providência está por detrás

do curso dos eventos, conferindo um propósito aos mesmos. Neste contexto, o que

causa desconforto em Kant e o que ele tenta compreender é como a experiência

dos taitianos se encaixaria na sua filosofia da história.

Logo abaixo ele insinua que os taitianos são completamente dispensáveis,

já que não haveria qualquer distinção entre a existência deles e a do gado. Ao

compará-los a animais, Kant sugere que eles seriam seres não-racionais. Todavia,

além de não racionais, Kant não dá sinais de que os taitianos teriam as mesmas

inclinações anti-sociais dos europeus, as quais os teriam impulsionado adiante,

contribuindo para o seu desenvolvimento racional.

Nesse sentido, a condição dos taitianos não é representada pela situação de

guerra de todos contra todos, presente no estado de natureza hobbesiano e no

estado de imaturidade histórica kantiano, mas caracteriza-se, alternativamente, por

um estado de felicidade, pois, como consta na passagem selecionada, os taitianos

são representados como felizes gozadores da vida. Este estado de felicidade não é,

contudo, entendido no sentido que Rousseau confere ao estado natural de

felicidade. Enquanto Rousseau encarna o ideal romântico de volta ao passado,

tendo em vista que a sua concepção de estado original é valorativamente positiva

posto que baseada na liberdade do bom selvagem, para Kant, diferentemente, este

estágio primitivo de felicidade, fora da história, é desprezível. Para entendermos o

desprezo que Kant nutre por tal modo de existência convém que, seguindo o

conselho de McCarthy (2009), busquemos tal explicação na Idéia de uma História

Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. Na sexta proposição Kant coloca:

But for these anti-social propensities, so unamiable in themselves, which give birth to that resistance which every man meets with his own self-interested pretensions, an Arcadian life would arise of perfect harmony and mutual love such as must suffocate and stifle all talents in their very germs (Kant, 1927:6).

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Conforme vemos acima, a vida paradisíaca de harmonia perfeita é

desprezada por Kant na medida em que esta impossibilitaria o desenvolvimento

dos talentos humanos. Como nos mostra Behnke (2008), neste estado, os homens

ainda não teriam sido tocados pela razão e nem mesmo pela dinâmica pré-racional

de luta e competição que poderia impulsioná-los para o telos histórico. Enfim, é

como se os taitianos não compartilhassem da “insociabilidade social” européia,

isto é, da fagulha naturalmente implantada nos homens pela Providência para

guiá-los rumo à perfeição. Nesse sentido, para Serequeberhan (1996), esta falta de

agressividade nos povos não europeus deve ser vista como uma falha da natureza

humana, a qual impediria a marcha desses povos rumo ao progresso. Na crítica

kantiana à Herder fica claro que pelo fato dos taitianos não terem sido visitados

por nações civilizadas, esta situação de indolência pacífica na qual eles se

encontram inseridos perduraria eternamente. Por conseguinte, enquanto os

europeus são representados como naturalmente dinâmicos, os taitianos são

congelados no tempo, representados como incapazes de naturalmente se

aperfeiçoarem. Como veremos nas partes III e IV dessa tese, esta estratégia de

desempoderamento dos povos não ocidentais continua em vigor nos discursos

contemporâneos.

Behnke (2008) continua mostrando que é a própria felicidade que os

condena a um status inferior, eles ainda viveriam num estado paradisíaco

enquanto a razão se manifestaria justamente na ruptura representada pela expulsão

do paraíso e no progressivo domínio da natureza pelo homem. O valor da

existência aos olhos de Kant, como colocado por Serequeberhan (1996), não se

reflete numa vida de prazer, mas, sim, no controle racional da natureza. O autor

prossegue, colocando a interessante questão, de que, ao estabelecer uma analogia

entre os taitianos e o rebanho, Kant os percebe como um recurso passivo a ser

explorado. Nesse sentido, os taitianos são objetificados, ou, como bem notado por

Behnke (2008:528): “they are ontologically dead; they are not part of humanity,

and as such not an end in itself”. Ou seja, os taitianos são desumanizados,

excluídos da própria categoria humana capaz de racionalidade por meio deste

movimento retórico kantiano.

Como nos mostra Behnke (2008), na medida em que Kant encontra algum

valor moral nos selvagens, estes são construídos como semelhantes aos primeiros

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estágios da civilização européia, e, assim, por exemplo, os “selvagens

canadenses” são percebidos como os espartanos do Novo Mundo esperando por

Licurgo para lhes fornecer lei e forma política. A idéia de que a Europa estaria na

dianteira do desenvolvimento histórico e que, por isso, estaria destinada a legislar

para o “resto”, aparece de modo explícito na nona proposição da Idéia de uma

História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, quando Kant expõe:

For, if we take our beginning from the Grecian history –as the depository or at least the collateral voucher for all elder or synchronous history; if we pursue down to our times its influence upon the formation and malformation of the Roman people as a political body that swallowed up the Grecian state, and the influence of Rome upon the barbarians by whom Rome itself was destroyed; and if to all this we add, by way of episode, the political history of every other people so far as it has come to our knowledge through the records of the two enlightened nation above-mentioned; we shall then discover a regular gradation of improvement in civil polity as it has grown up in our quarter of the globe, which quarter is in all probability destined to give laws to all the rest (Kant, 1927:12-23, grifo meu).

Enfim, quando em contato com a diferença sob a forma dos “Outros não

ocidentais”, Kant adota duas estratégias: ou produzir sua “morte ontológica” (para

usar o termo de Behnke) ou “temporalizar” a diferença apresentando-a como uma

versão atrasada do self europeu (para usar o termo de Blaney; Inayatullah,

2004).40 Conforme veremos, tais estratégias ainda encontram-se em operação

cotidianamente combinadas à idéia de que a Europa (e os Estados Unidos) deve

assumir a função de legisladores para o “resto” da humanidade.

Pelo que foi visto, curiosamente, em Kant, os povos dos Estados em guerra

assumem um status de superioridade vis-à-vis os taitianos cuja existência feliz é

depreciada no pensamento kantiano. Aqueles que guerreiam, a partir da lógica 40 McCarthy (2009) mostra que Kant era um leitor ávido dos relatos de viagens de todos os tipos e advertiu sobre a não confiabilidade de tais fontes, mas, ironicamente, confiou nelas. Assim, apesar de Kant ter aconselhado leitores a exercerem grande cautela em relação aos relatos de viajantes, biografias, literaturas e afins que eram fontes padrões do seu dia para o conhecimento de outras culturas, ele deliberadamente se inspirou em tais fontes a fim de construir uma imagem desfavorável aos negros (McCarthy, 2009; Bernasconi, 2002). Nesse sentido, ele intencionalmente decidiu-se pela versão desumanizada dos negros em detrimento de outras versões encontradas à época, pois como colocado pelo próprio Kant: “One may prove that Americans and Negroes are races which have sunk below the level of other members of the species in terms of intellectual abilities –or, alternatively, on the evidence of no less plausible accounts, that they should be regarded as equal in natural ability to all the other inhabitants of the world. Thus, the philosopher is at liberty to choose whether he wishes to assume natural differences or to judge everything by the principle tout comme chez nous with the result that all the systems he constructs on such unstable foundations must take on the appearance of ramshackle hypotheses” (Kant, apud Behnke, 2008).

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kantiana, estariam inseridos na dinâmica histórica, ainda que numa fase inicial da

mesma, e tal percurso violento seria, portanto, inteligível por meio dos desígnios

da Providência. De acordo com Serequeberhan (1996), Kant exalta a natureza por

imprimir agressividade básica no homem e, desta forma, estabelece as bases

especulativas para a prática imperialista motivada, justamente, por este desejo

pela discórdia. Para Serequeberhan (1996:344): “He cannot on the one hand

impute to nature these expansionist drives and glorify her for making them

possible, and simultaneously condemn the result or effects of these very drives”.

Desse modo, para Serequeberhan (1996), a conquista e a expansão imperialista

são parte do desenho e da intenção da natureza no esquema kantiano. Para Kant,

portanto, o progresso em direção à paz perpétua contém em si o momento

imprescindível da guerra. Nas palavras de Kant:

Cada povo procura se fortalecer subjugando os vizinhos, e se não se antecipa a ele por mania de grandeza ou temor de ser absorvido por ele, a guerra externa ou interna da nossa espécie, por maior mal que se possa ser, é também o móbil que impele a sair do rude estado de natureza para o estado civil, como um mecanismo da Providência onde forças conflitantes causam danos umas às outras pelo atrito (...) (Kant, 2006:224).

Tal papel funcional da guerra na aceleração do progresso, contudo, não

pode nos fazer perder de vista que Kant reprova a guerra em termos morais.

McCarthy (2009) nos ajuda a elaborar esta tensão presente no pensamento

kantiano mostrando que existe uma incompatibilidade entre como as coisas

operam desde o ponto de vista funcional do progresso humano e desde o ponto de

vista moral e normativo. E desse modo: “what appears to teleological judgment

as crucial evolutionary vehicle may well stand condemned by morality and

justice” (McCarthy, 2009:62).

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3.3 O Anti-Imperialismo Justificado: Disciplinando as Contradições Kantianos

Uma das grandes ambigüidades do pensamento de Kant reside justamente

na questão do imperialismo/anti-imperialismo do autor41. Aqueles que defendem o

anti-imperialismo kantiano se centram, sobretudo, em duas passagens do Tratado

da Paz Perpétua para corroborar seus argumentos. Primeiramente recorrem ao

quinto artigo preliminar do tratado, onde se lê: “Nenhum Estado deve Intrometer-

se pela Força na Constituição e no Governo de Outro Estado” (Kant, 2004:35,

grifo meu). Em segundo lugar, mostram que ao discorrer sobre o terceiro artigo

definitivo para a paz perpétua que, conforme já vimos, refere-se ao direito

cosmopolita, Kant deixa claro que “Não há nenhum direito de hóspede com base

no qual se possa fazer essa exigência (...), porém um direito de visita” (Kant,

2004:51). Esta limitação do direito de ingerência dos estrangeiros nos assuntos do

país onde eles estão recém-chegados representa, para muitos, uma clara

reprovação kantiana à atitude dos Estados europeus; uma proibição do direito de

conquistar ou de habitar terras não européias (ver, por exemplo, Muthu, 2000).

Por outro lado, como nos mostra Bernasconi (2002), no The Metaphysics of

Morals (1797), Kant expressamente rejeitou qualquer tentativa de justificar o

colonialismo em termos da sua possível contribuição para a defesa da civilização.

Kant negou que a civilização de um povo, ainda que este fosse considerado

“selvagem”, pudesse ser um pretexto para violar os seus direitos. Seria legítimo

colonizar, para Kant, apenas se as terras recém descobertas estivessem longe dos

assentamentos de um determinado povo. Todavia, Kant faz uma ressalva em

relação aos caçadores e pastores nômades que dependem para a sua subsistência

de grandes regiões. Para ele, neste caso, a colonização não poderia ser levada a

cabo pela via da força, mas, apenas, por contrato que não tirasse vantagem da

ignorância destes habitantes (ver Bernasconi, 2002; Muthu, 2000).

Em conformidade com o objetivo deste item, não se pretende defender

quaisquer dos lados deste debate, mas, apenas, desestabilizar a imagem

inequívoca de Kant que nos vem sendo apresentada pelos discursos mainstream 41 Uma outra ambigüidade que será bem trabalhada por Walker (2010) sem pretender resolvê-la refere-se ao pluralismo/cosmopolitismo de Kant.

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das Relações Internacionais. Nesse sentido, partindo de uma abordagem pós-

estruturalista que, segundo James Der Derian (1989), visa a perturbar os modos de

pensar e agir habituais nas relações internacionais, o item se propõe a

desestabilizar o discurso dominante nas Relações Internacionais que vêm

produzindo o pensamento kantiano como limpidamente cosmopolita e

progressista.

A perplexidade derivada das contradições detectadas no pensamento

kantiano é abordada por Serequeberhan (1996) quando ele recorda que o mesmo

Kant que nos fala da hospitalidade universal, emprega uma visão depreciativa

sobre os taitianos. O autor (1996:343) declara: “Indeed, Kant’s speculative

discourse justifies this very ‘inhospitable’ attitude, which he finds despicable in

the commercial dealings of civilized European states with non-European

peoples”. Bernasconi (2002:146) também mostra-se intrigado com tais

contradições quando coloca: “It remains something of a mystery how an articulate

racism can within a given society co-exist with ideas of ‘human brotherhood’ as

happened during the Enlightenment to an unprecedented degree” e indaga, na

mesma página: “Why were so many Enlightenment thinkers apparently unable to

articulate the new sense of humanity without at the same time drawing boundaries

within humanity more rigidly and explicitly than before ?”

Convém notar, portanto, que os autores que vêm resgatando os traços

racistas e imperialistas do pensamento kantiano, não negam que existam

passagens nos seus escritos que sugerem justamente o oposto, a saber, uma

postura kantiana anti-imperialista (Serequeberhan, 1996; Bernasconi 2002,

Behnke 2008; McCarthy, 2009). Mas enquanto Bernasconi (2002:160) reconhece

o conflituoso legado kantiano para posteridade ao dizer: “The fact that Kant did

not solve the problem of how, within a framework of a universal history,

cosmopolitanism can be reconciled with a view of white superiority meant that he

left to posterity a dangerous legacy”, todos os demais autores tentam solucionar

as contradições kantianas por diferentes vias. Todavia, ao buscarem conferir uma

explicação para tais contradições, estes autores terminam enredados na mesma

armadilha dos seus opositores, qual seja: a de tentar construir Kant como um autor

coerente e disciplinar suas ambigüidades, mas sem deixar de apontar para o seu

eurocentrismo disfarçado de cosmopolitismo. Aqui, entende-se que a tentativa de

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buscar solucionar as ambigüidades do pensamento kantiano, seja a partir de uma

leitura do autor como um anti-imperialista convicto ou a partir da interpretação

alternativa de um Kant imperialista, são motivadas por uma busca de certeza que

nem mesmo o autor compartilhava. Como bem observa R.B.J. Walker:

[I]t is difficult to read much of Kant without appreciating that he understood very well that all his attempts to reconcile the irreconcilable generated considerable difficulties. No one contemplating problems of human finitude, we might say, is going to feel entirely at ease with appeals to certainty, even if one has as much faith in the God-given (…) eternities and geometrical accounts of reason that Kant absorbed from the culture of his time (Walker, 2010:261/2):

Como os diferentes autores buscaram resolver as contradições kantianas

no que concerne às tendências contraditórias ora de um Kant anti-imperialista ora

de um Kant que defende a tutela de povos imaturos?

Behnke (2008) tenta resolver as contradições sugerindo que o problema da

colonização européia é que ela traria a Europa de volta para a guerra de forma

que, pela ótica kantiana, o envolvimento colonial dificultaria ou mesmo reverteria

o progresso moral. E, assim, conforme Behnke (2008:530): “Empirical

colonialism therefore violates the transcendental god of moral perfection”. Para o

autor, a dominação européia sobre o mundo não é colocada em questão, ainda que

esta dominação tenha de ocorrer, para Kant, pela via do direito e da constituição

cosmopolita e não pela via da força. Todavia, prossegue o autor, nada sugere que

não seriam os europeus que legislariam para os outros continentes. Daí, para

Behnke (2008), o terceiro artigo definitivo não cancela o eurocentrismo kantiano,

mas apenas estipula a natureza pacífica, orientada pela lei, do processo, enquanto

mantém a violência ontológica do projeto.

Já McCarthy (2009:62) faz um esforço para adaptar os comentários

racistas kantianos na sua filosofia da história, sugerindo que não causaria espanto

se a visão kantiana da opressão e exploração específicas das formas racialmente

estruturadas de injustiça fosse apenas outra dimensão da mesma dialética de

progresso, isto é: “as just another form of developmentally functional evil”.

Enfim, o autor sugere que por mais que Kant rejeite tais práticas com base na

moral e no direito, ele teria que contar com as mesmas para fins teleológicos, isto

é, como veículos para a difusão da cultura e civilização européias através do

mundo.

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Bernasconi (2002) sugere que Kant tem um argumento adicional contra a

colonização ainda que ele nunca o tenha articulado abertamente, a saber, a

tentativa kantiana de impedir migrações que pudessem conduzir as pessoas para

um clima ao qual elas não estivessem habituadas e que também acarretasse na tão

difamada mistura racial.

3.4 Paz versus Política

E qual é, afinal, o destino final da humanidade apregoado por Kant? Como

colocado por McCarthy (2009), uma consideração crucial é que o propósito da

natureza não é a felicidade humana, conforme vimos, gozada, segundo Kant, pelo

povo do Taiti, mas, sim, o desenvolvimento dos homens como seres racionais e

morais. Nesse sentido, ao se referir ao Estado ideal, Kant coloca:

[T]his welfare [of the state] must not be understood as synonymous with the well being and happiness of the citizens, for it may well be possible to attain these in a more convenient and desirable way within a state of nature (as Rousseau declares), or even under a despotic regime. On the contrary, the welfare of the state should be seen as the condition in which the constitution most closely approximates to the principles of right, by a categorical imperative, obliges us to strive for its realisation (Kant, 1970:142)

O desenvolvimento dos homens como seres racionais, para Kant, implica

que os mesmos se tornem autônomos, isto é, que passem a se autogovernar,

deixando de depender de qualquer direção externa. Nesse sentido, Foucault

(2005b) nos mostra que Kant define as Luzes como uma saída, um processo que

nos liberta do “estado de menoridade”, isto é, do estado de nossa vontade que nos

faz aceitar a autoridade de algum outro para nos conduzir em domínios em que

convém usar a razão. As Luzes, portanto, correspondem, para Kant, ao momento

no qual a humanidade fará uso da razão sem se submeter a qualquer autoridade

externa (Foucault, 2005b). Para atingir o iluminismo, por conseguinte, os homens

deveriam, por meio de uma atitude corajosa, escapar de uma condição auto-

imposta de imaturidade na qual se requer algum outro como guia e, ao invés disso,

passarem a usar o seu próprio entendimento. Nas suas palavras:

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Enlightenement is a man’s emergence from his self-incurred immaturity. Immaturity is the inability to use one’s own understanding without the guidance of another. This immaturity is self-incurred if its cause is not lack of understanding, but lack of resolution an courage to use it without the guidance of another (Kant, 2009:1, grifo meu).

Todavia, é importante frisar que ao atuarem a partir dos seus próprios

entendimentos os homens não estariam agindo a partir de diretrizes particularistas,

mas, sim, a partir de princípios universais derivados da racionalidade que lhes é

imanente. Para Kant, um princípio de ação moral é necessariamente

universalizável. Para Walker (2010), esta universalidade é trazida, por Kant, para

o sujeito moderno, que se transforma na morada da razão.

Segundo Robert Ashley (1989), o discurso empregado por Kant é o

discurso da modernidade, o qual parte da idéia de que, através da razão, o homem

pode alcançar autonomia total. Este discurso, de acordo com Ashley, investe a

figura soberana do homem com a vontade e a capacidade de transcender as

condições históricas, contingentes, que vão negar a sua plena liberdade. Esse

homem, proclamado por Kant, embora envolvido na história, é capaz de

discriminar na experiência histórica as limitações transcendentais que podem ser

obedecidas sem medo, pois não comprometem a sua autonomia, daquelas que são

contingentes e que, portanto, devem ser superadas (Ashley, 1989). Todavia, de

acordo com Foucault (2005b), aquilo que nos é apresentado como universal e

obrigatório no pensamento kantiano é contingente e fruto de imposições

arbitrárias. Nesse sentido, conforme vimos, as noções de razão e autonomia no

pensamento kantiano estão intimamente conectadas com a modernidade e se

constituem a partir da exclusão de outros tidos como não maduros e não

racionais42.

O reino dos fins kantiano não seria um projeto concluso, mas um projeto

em movimento; os contemporâneos de Kant não estariam numa “enlightened

era”, mas, antes, numa “age of enlightenment”, na qual a espécie humana estaria

pouco a pouco amadurecendo conforme consta na passagem abaixo:

If it is now asked whether we at present live in an enlightened age, the answer is: No, but we do live in an age of enlightenment. As things are at present, we still have a long way to go before men as a whole can be in a position (or can even be put in a position) of using their own understanding confidently and well in

42 Sobre este último ponto ver, por exemplo, Walker (2010).

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religious matters, without outside guidance. But we do have distinct indications that the way is now being cleared for them to work freely in this direction, and that the obstacles to universal enlightenment, to man’s emergence from his self-incurred immaturity, are gradually becoming fewer (Kant, 2009:8-9, grifo meu).

Kant prescreve três passos político-legais, correspondentes a três níveis de

análise, por meio dos quais os homens se aproximariam da paz perpétua,

doravante, paz “eterna” (“eternal peace”), já que como nos alerta Behnke (2008),

esta é a tradução apropriada do termo usado por Kant, uma vez que capta a

conotação religiosa e metafísica conferida pelo filósofo. Por conseguinte, o

arcabouço político-legal no marco do qual as potencialidades humanas seriam

plenamente desenvolvidas na direção da paz “eterna” são: o estabelecimento (i) de

governos republicanos, (ii) da República Federativa Mundial entre os Estados e

(iii) de uma sociedade civil mundial (cosmopolitismus) (Kant, 2004). É importante

salientar que estes passos, por mais que sejam teleologicamente entendidos por

alguns autores (ver Behnke, 2008), não se anulam. Nesse sentido, os Estados

continuariam existindo mesmo no âmbito de uma República Federativa Mundial e

a sociedade mundial não anularia as outras duas prescrições kantianas. Como nos

mostra Behnke (2008), as repúblicas cumprem dois papéis no pensamento

kantiano. Em primeiro lugar, elas funcionam como um ponto seminal, de partida

para a construção da Federação de Povos Livres, como bem frisado por Kant na

Paz “Eterna”: “esta [a república] proporciona um centro à união federativa para

outros Estados, a fim de assegurar o estado de liberdade desses Estados, conforme

a idéia do direito das gentes, e estender-se pouco a pouco cada vez mais por meio

de outras uniões desse gênero” (Kant, 2004:48/49). Em segundo lugar, a república

também cumpre um papel teleológico, derivado da sua caracterização no primeiro

artigo definitivo como a forma moralmente mais avançada de organização

política.

Nesse sentido, o estabelecimento da República Federativa Mundial

kantiana, ao mesmo tempo em que precisa dos Estados republicanos para se

estabelecer, não os suprime ou os funde quando estabelecida, mas, ao contrário,

contribui para o seu aperfeiçoamento ao assegurar-lhes liberdade. Nesse sentido, o

universalismo kantiano convive com o contratualismo sem parecer oferecer

qualquer contradição. Como para Kant agir moralmente implica agir a partir de

uma máxima que possa ser universalizada, os cidadãos que agem moralmente no

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marco das repúblicas soberanas estariam supostamente agindo com base num

princípio de aplicabilidade universal e, desse modo, estariam automaticamente

avançando os interesses da comunidade humana. Todavia, o universal teria de ser

avançado para Kant no âmbito particularista dos Estados.

Nesse sentido, Walker (2006) nos mostra o movimento kantiano de trazer

o universal para o particular e de, ao mesmo tempo, trazer para o moderno todas

as pessoas que possam alcançar maturidade. A ampliação da

maturidade/racionalidade humana orientaria as relações internacionais

gradativamente rumo à paz “eterna”. Esta, segundo Walker (2006), é a famosa

história linear teleológica que pode, eventualmente, conduzir à modernização da

dimensão internacional. Todavia, como mostramos ao longo deste capítulo, este

movimento não é tão inclusivo como sua lógica teleológica sugere, mas é operado

a partir de exclusões produzidas, segundo Walker (2006), nas margens do sistema

sob a forma de entes imaturos/não-racionais. Estes, como vimos, são assim

entendidos seja porque ainda não chegaram lá (no Internacional Moderno) ou

porque biologicamente estão fadados a não chegarem. Segundo Walker (2006),

estes “Outros” revelam-se imprescindíveis na constituição do “Internacional

Moderno” tendo em vista que a modernização do Internacional só pode ser

pensada em oposição ao que não é moderno e se mantém na promessa de brindá-

los com a modernidade. Afinal, na visão de Walker (2006), existe sempre um

outside assumido para a produção da subjetividade moderna, um outside que deve

ser excluído para que o self se conheça. Por conseguinte, a afirmação do

Iluminismo como um ideal universal necessita de um “Outro” sob a forma

daquelas entidades não inseridas na modernidade. Deste modo, o projeto kantiano

é excludente, visto que a alteridade é subsumida no seu esquema por meio de uma

filosofia da história que não reconhece o lugar do “Outro” como sujeito legítimo

(Walker, 2006). Por outro lado, na medida em que a condição de possibilidade

deste projeto é a existência de “Outros”, ele nunca pode ser consumado, sendo,

portanto, um projeto sempre inacabado.

E, assim, dentro da federação mesmo que se aceite inicialmente Estados

não democráticos, o telos é a identidade de todos os Estados constituídos

enquanto repúblicas definidas a partir de categorias burguesas européias (Behnke,

2008). O pluralismo, no sentido de abertura face aos regimes políticos

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alternativos, é, portanto, transitório. Diferentemente dos Estados, os quais

continuariam existindo na paz “eterna”, a multiplicidade de regimes políticos,

assim como a guerra, existiria apenas em etapas ainda imaturas do

desenvolvimento histórico e, por conseguinte, tenderia a desaparecer na medida

em que os homens se direcionassem rumo ao seu destino moral.

Behnke (2008) destaca o caráter despolitizante do projeto kantiano de paz

“eterna” ao situá-lo na esfera transcendental antes do que na política (a esfera das

práticas situadas e contingentes dos atores políticos). A paz “eterna” em Kant

apresenta-se, por conseqüência, sob uma forma descontextualizada e

transcendental ao ser inserida na narrativa do progresso necessário (naturalmente

dirigido) do iluminismo moral da humanidade (Behnke, 2008). Quaisquer

caminhos alternativos para se chegar à paz ou outros modelos de paz que aceitem,

por exemplo, formas de organização e regimes políticos alternativos são de

antemão afastados da imaginação política por meio de uma filosofia da história

disciplinadora da diferença. A diferença lida como um desvio (como no caso dos

taitianos) ou como um atraso (como no caso de regimes políticos ainda não

republicanos) face ao telos kantiano tem de ser domesticada ou subsumida para

que o projeto kantiano se sustente. Por isso, para Behnke (2008), o projeto

kantiano deve ser entendido não apenas como um guia para a criação de relações

pacíficas entre os Estados, uma interpretação comum refletida na tradução mal

feita do tratado kantiano, mas também como uma resposta filosófica para o

problema da diferença na política internacional e, assim, tal projeto busca, em

consonância com o registro liberal, estabelecer a paz via erradicação ontológica da

diferença. Deste modo, conclui Behnke (2008), a paz “eterna” depende da morte

antes do que da afirmação da política; conduzindo a uma concepção universalista

e monótona da “humanidade”.

Serequeberhan (1996) nos mostra que a pretensa universalidade kantiana

está alicerçada numa dupla negação. Em primeiro lugar, o caráter histórico e

culturalmente situado do observador, ou seja, do próprio Kant, é negado e elevado

ao status de universalidade e, em segundo lugar, a humanidade dos não europeus

é negada. Na medida em que o projeto do Iluminismo não é um projeto empírico,

mas especulativo, voltado para descobrir a “humanidade dos seres humanos”

tendo como referência o uso da razão autônoma e livre, os “Negros da África” e

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diferentes matizes do “resto da humanidade” encontram-se para além do projeto

de emancipação humana, vislumbrado e defendido por Kant (Serequeberhan,

1996). Deste modo, o que se apresenta como universal é de fato reflexo de uma

situação histórica particular, a Europa iluminista, e exclui todos aqueles povos não

europeus desumanizados no discurso kantiano.

3.5 Teoria da Paz Liberal e a Secularização do Projeto Kantiano

Argumenta-se aqui, no sentido colocado por Behnke (2008), que a

apropriação do pensamento kantiano pelas Relações Internacionais ocorre por

meio da secularização do projeto kantiano. Como vimos acima, o projeto kantiano

tem uma dimensão transcendental (Behnke, 2008; McCarthy, 2009)

sistematicamente negligenciada nas discussões contemporâneas sobre o autor nas

Relações Internacionais, em grande medida, devido à secularização da nossa visão

do mundo. O resultado de tal secularização aliada ao caráter excludente do

pensamento kantiano revela-se perigoso na medida em que o processo histórico

deixa de ser visto como um plano da Providência e coloca os Estados, obviamente

os de natureza democrática, a frente deste processo. Desta forma, o grau de

ingerência permitido por esta releitura secularizada do projeto kantiano passa a ser

mais intensivo.

Como nos mostra Behnke (2008), a agência política e moral agora recai

sobre os próprios Estados democrático-liberais que, informados pela teoria da paz

liberal, se auto-entendem como moralmente superiores aos Estados não-liberais e

se sentem no direito de excluí-los, se preciso pela via militar. Portanto, segundo

Behnke (2008), está sendo construída hoje uma bifurcação da ordem internacional

entre Estados liberais e não-liberais, a qual se sobrepõe ao princípio da igualdade

soberana dos Estados autorizando intervenções nos domínios dos Estados não-

liberais em nome de uma ordem mundial homogênea. Do mesmo modo, para

Inayatullah; Blaney (2004), a ordem passa a ser entendida em termos binários; o

que recicla o conteúdo da teoria da modernização sob uma nova roupagem. Agora

uma zona de paz se contrapõe a uma zona de tumulto e, assim, enquanto os

Estados liberais são vistos como razoáveis, previsíveis e confiáveis; os Estados

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não-liberais são vistos como não razoáveis, imprevisíveis e potencialmente

perigosos. Esse binarismo, por sua vez, se manifesta num jogo de moralidade de

pureza e poluição, tendo em vista que as concepções culturais do liberalismo

ocidental são construídas como normais ou naturais em contraposição a “Outros”,

construídos, pelo menos implicitamente, como atrasados, regressivos ou corruptos

(Inayatullah; Blaney, 2004).

Conforme salientado por Bhuta (2008), o compromisso com a idéia da

democracia como uma tecnologia de poder, de “peace-engineering”, vem sendo

aprofundada nos documentos políticos do Secretariado e agências da ONU. Cada

vez mais, processos e instituições não democráticos são percebidos como

patologias causadoras de desordem e violência interna e externa (Bhuta, 2008). De

acordo com Bhuta (2008), contudo, tais equiparações feitas pela teoria da paz

liberal simplificam as genealogias históricas dos conflitos ao mesmo tempo em

que superestimam a maleabilidade potencial das relações sócio-políticas através

de instituições e procedimentos formais.

Enfim, uma das conseqüências deste processo de secularização do projeto

kantiano foi, portanto, a ênfase contemporânea nas mudanças não mais

naturalmente condicionadas, mas humanamente controladas. Por outro lado, a

epistemologia especulativa que caracterizava a filosofia kantiana foi substituída

por uma epistemologia positivista baseada no empirismo e, desse modo, a

conexão entre “democracia” e paz passou a ser objeto de numerosas pesquisas

empíricas realizadas no marco da disciplina das Relações Internacionais.

Na sua discussão sobre as teorias do progresso, Kenneth Bock (1978)

conclui que Kant não pode ser considerado o teórico usual de progresso do século

XVIII justamente devido ao caráter especulativo da sua teoria. Segundo o autor,

Kant não está querendo nos dizer o que de fato ocorreu na história ou o que vai

ocorrer, já que não é o seu objetivo perseguir um estudo da história pelo método

da ciência natural e expor as leis de ferro do progresso. O que ele está dizendo,

segundo Bock (1978), é um pressuposto que não tem qualquer pretensão de ser

verificado em relação aos fatos históricos. De acordo com Bock (1978:56):

Kant hoped for some beneficent side effects from such a philosophy, but he had nothing of the prophet’s certainty, and he was very far from seeking to reveal the laws of history that men might grasp and use to control affairs to the enhancement of their wealth and happiness.

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Deste modo, o pensamento kantiano hoje é recuperado e lido a partir de

categorias epistemológicas positivistas que retiram da Providência e colocam na

ciência a chave para o progresso histórico. As leis da história uma vez

secularizadas podem ser conhecidas, controladas e manipuladas por aqueles povos

cujo status de superioridade é legitimado por esta mesma ciência.

O objetivo deste capítulo, portanto, foi o de recuperar os traços racistas e

eurocêntricos de Kant em relação aos povos não europeus e, por conseqüência, o

de revelar o caráter excludente da sua filosofia da história, de forma a expor a

fundação violenta do seu cosmopolitismo, o qual participa da produção e

essencialização da Europa como o lócus da razão.

Como nos mostra Behnke (2008), informado pelos insights de Blaney;

Inayatullah (2004), a diferença é primeiramente temporalizada no pensamento

kantiano em termos de estágios diferentes de uma história progressiva,

transcendental, aparentemente comum. Tal gesto inclusivo, contudo, é

imediatamente suspenso ao submeter tais estágios a um julgamento normativo

onde os primeiros estágios aparecem como precursores ontologicamente inferiores

aos estágios mais avançados, poderíamos agregar, protagonizados pela Europa

iluminista.

Nesse sentido, argumenta-se aqui, é possível detectar no pensamento

kantiano traços de uma filosofia progressiva da história que, mais tarde, se faria

presente na chamada “teoria da modernização”, a qual já foi discutida. Mais do

que isso, esta tese argumenta que a recuperação do pensamento kantiano no

cenário do pós-Guerra Fria está intimamente conectada à presença ainda sentida

nos discursos políticos e acadêmicos da teoria da modernização, ainda que esta

teoria tenha sido desacredita na década de 80.

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