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Parte 5 GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS. INTERFACES SETORIAIS

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GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS.INTERFACES SETORIAIS

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DESENVOLVIMENTO REGIONAL E GESTÃO DE RECURSOSHÍDRICOS. O CENÁRIO NA BACIA DO RIO TUBARÃO, SC

Héctor Raúl MuñozIsmael Pedro Bortoluzzi

1. Introdução

As experiências de intervenções visando o desenvolvimento regional,planejadas setorialmente e implementadas sem suficiente articulação entreos setores e atores envolvidos, têm deixado marcas preocupantes no cenáriodos recursos hídricos da Bacia do Rio Tubarão e Complexo Lagunar, no sulde Santa Catarina, com influência direta na qualidade de vida da população.O novo cenário, que haverá de emergir da implementação da Política Nacionalde Recursos Hídricos e do correspondente Sistema de Gerenciamento,constitui-se em uma esperança positiva pelos rebatimentos integradores sobreas atividades antrópicas que visam o desenvolvimento regional.

A Bacia do Rio Tubarão e Complexo Lagunar associado merece lugarde destaque no contexto catarinense. Identificada no sistema estadual como"Região Hidrográfica do Sul Catarinense - RH9", constitui-se num espaço deintegração entre os rios, o complexo lagunar do litoral centro-sul e o própriolitoral. De fato, hidraulicamente interligados, a Bacia do Rio Tubarão e oComplexo Lagunar - conjunto de 8 lagoas que possuem ligação com o oceanoe o sistema fluvial - constituem um só sistema flúvio-estuarino.

Com mais de 5.600 km2, abrigando 21 municípios, a região tem sidocenário de importantes atividades agrícolas, industriais e de mineração.Historicamente, a bacia tem sido fornecedora de recursos e riquezas. Emcontrapartida, tem sido receptora de despejos e resíduos, configurando hojeuma situação ambiental crítica, traduzida na degradação dos ecossistemasnaturais e no prejuízo à qualidade de vida de setores significativos dapopulação. Um dos indicadores mais expressivos desta situação é constituídopela degradação dos seus recursos hídricos.

A bacia apresenta conflitos de diversos tipos: atividades setoriaisexercidas predatoriamente; atividades setoriais em conflito com outras; e a

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disputa do mesmo recurso para fins diferentes. Consumidores urbanos,rizicultores, pescadores, mineradores e mineiros, além de suinocultores, entreoutros, representam interesses legítimos que devem ser compatibilizados nomarco das disponibilidades e capacidade de suporte dos ecossistemas naturais.

2. Síntese do cenário ambiental

Situada, parcialmente, na Bacia Carbonífera Catarinense, classificadacomo a 14ª área crítica nacional, no sentido de necessidade de controleambiental, a RH9 faz parte do sistema hidrográfico mais degradado de SantaCatarina, em decorrência dos impactos causados pela exploração do carvãomineral, agrotóxicos usados nas lavouras de arroz irrigado, emissões dasfecularias, ausência de sistemas de esgotos sanitários, dejetos da suinoculturae pesca predatória, entre outros fatores. Conseqüência da degradação temsido uma sensível diminuição da produtividade pesqueira, especialmente noconjunto das lagoas Imaruí, Mirim e Santo Antônio, da qual dependem maisde 10.000 famílias da região.

Figura 1 - SC - Região Hidrográfica RH9 do Rio Tubarão e Complexo Lagunar Sul

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Pescadores artesanais e população abastecida pelas águas do Rio D'Una,um dos afluentes ao sistema lagunar, têm sido protagonistas de acirradasdiscussões com os rizicultores, em virtude do rio estar sendo utilizado comoescoadouro de descargas poluentes, inviabilizando seu acesso a todos osusuários e prejudicando, na opinião dos pescadores, a produção pesqueira local.

"Historicamente, a bacia vem incorporando externalidades decorrentesdo processo de desenvolvimento regional. Esse, incorporando diferentesformas de atividades econômicas, engendrou estruturas que hojecomprometem, em escala sem precedentes, os próprios mecanismosde controle da qualidade de vida e ambiental desenhados após aConferência de Estocolmo, a partir dos princípios do desenvolvimentosustentável". (SDM/UNISUL, 1998)

A respeito do Complexo Lagunar, o “Diagnóstico Ambiental do Litoralde Santa Catarina” elaborado pelo Projeto de Gerenciamento Costeiro, registra:"O trecho que compreende os ambientes da borda leste das lagoas de SantoAntônio e do Mirim, incluindo as zonas urbanas de Imbituba e Laguna,apresentam-se com vulnerabilidade alta e crítica e usos de forte impactoambiental, com problemática socio-econômica desfavorável, sendoclassificada no seu conjunto em termos de Qualidade Ambiental como áreasRuim e Crítica. A borda oeste, entretanto, apresenta condições ambientaismais favoráveis com usos mais compatíveis com os sistemas naturais existentese remanescentes da cobertura vegetal original, mais preservados e de menordensidade populacional" (PROGERCO, 1997).

Boa parte dos conflitos assinalados são seqüelas das intervençõespassadas que visavam o desenvolvimento regional, na visão da época,planejadas e implementadas sob uma visão de ganhos setoriais eimediatistas, alheias ao conceito de gestão ecologicamente correta,baseado na ética da solidariedade.

3. Algumas experiências de planejamento na bacia

Diversas são as experiências de planejamento para o desenvolvimentoregional que têm atingido a região hidrográfica em pauta. As primeiras,historicamente registradas, corresponderam aos planos de colonização comimigrantes europeus, de diversas origens, e à construção da Estrada de FerroDona Teresa Cristina, iniciada em 1874 para dar escoamento à produção decarvão mineral (Piazza, 1982). Este recurso está na base do crescimentoeconômico regional. Diversas intervenções, em nível federal e estadual, fo-

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ram planejadas e implementadas tendo como eixo a questão da exploração docarvão. O decreto 20.089, de 9 de junho de 1931, que estabelecia aobrigatoriedade de consumo de carvão nacional em quantidade equivalente a10% do que era importado, percentual aumentado para 20% em 1940, éexemplo disto. Na década de 1940, como conseqüência da Segunda GrandeGuerra Mundial, estabeleceu-se um relacionamento especial com os EstadosUnidos, que teve rebatimentos no consumo de carvão através da implantaçãoda Companhia Siderúrgica Nacional - CSN. O início das atividades da CSNna Bacia do Tubarão ocorreu no ano de 1943, com a construção do Lavadorde Capivari. Em 1954 foi criada a Comissão Executiva do Plano do CarvãoNacional - CEPCAN, diretamente vinculada à Presidência da República, comfuncionamento estabelecido até 31.12.1960. Mas, a partir de 1961, as suasatividades foram continuadas pela Comissão do Plano de Carvão Nacional -CPCAN, até 31.12.1970. Estas entidades tiveram marcante atuação na região.Fruto desta atuação foram, entre muitos outros, o início da implantação doque hoje é o Complexo Termelétrico Jorge Lacerda e o Projeto da IndústriaCarboquímica Catarinense - ICC.

Em 1976, no âmbito do Processo de Planejamento do Sul de SantaCatarina, conduzido pelo Ministério do Interior, a Fundação Educacional doSul de Santa Catarina - FESSC elaborou Termos de Referência para um Planode Ações. A proposta incluía Programas Vertebradores ou Indutores, dentreos quais a industrialização a partir dos recursos minerais, a melhoria do nívelde produtividade do setor primário e a ativação do turismo. E Programas e ouProjetos Complementares, nas áreas econômica, social, de saúde, físico-territorial e institucional. Entre os programas econômicos, além dos referentesà exploração mineral e indústrias derivadas, registraram-se programas de:estímulo à fruticultura, abastecimento e ensilagem, florestamento ereflorestamento, estudo técnico e mercadológico para hortigranjeiros,desenvolvimento de gado leiteiro, estudo de criação de animais de pequenoporte, estudo de viabilidade técnico-econômica de projetos de desenvolvimentoagrícola e recuperação de terras da Bacia do Rio Tubarão. Interessante observara preocupação no resgate das atividades agropecuárias e florestais na região.Interessante é, também, registrar entre os programas físico-territoriais aregularização das bacias hidrográficas para uso múltiplo dos recursos hídricos;solução para o porto pesqueiro de Laguna e estudo das reais potencialidadesictiológicas da região; estudo de programa de preservação dos interessesturísticos face ao impacto da industrialização; e o estudo de preservação domeio ambiente e controle da poluição, entre outros programas.

Quase paralelamente, a Superintendência de Desenvolvimento daRegião Sul - SUDESUL (1975), mediante contrato com a empresa PLANISUL,

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desenvolveu o Plano Industrial do Sul de Santa Catarina, cujo principaldesdobramento foi o detalhamento da implantação da Indústria CarboquímicaCatarinense - ICC em Imbituba e a disponibilização da área onde hoje estápara ser implantada a Zona de Exportação.

Propostas de intervenção para o desenvolvimento ocorreram também porparte do Departamento Nacional de Obras de Saneamento - DNOS,especificamente após a grande enchente de 1974. Em 1976, o DNOS apresentouum Plano de Aproveitamento Múltiplo dos Recursos Hídricos da Bacia do RioTubarão. Este plano previa a dragagem do Rio Tubarão entre Laguna e a cidadede Tubarão, associada à construção de diques de contenção; a construção de trêsbarragens no Rio Tubarão, destinadas ao controle de enchentes, regularização devazões e irrigação das várzeas. Posteriormente, foi acrescentado ao plano o projetode uma barragem no Rio D'Una, para abastecimento da indústria siderúrgica que,na época - década de oitenta -, cogitava-se instalar em Imbituba.

A dragagem e os diques de contenção foram realizados entre 1978 e1981. As barragens no Rio Tubarão não foram priorizadas e deixaram de serconstruídas face à falta de recursos. A barragem do Rio D'Una chegou a serlicitada, mas, em definitivo, não foi construída devido à inviabilidadade doprojeto da Siderúrgica de Imbituba.

Os planos mencionados deram origem a diversas intervenções visandofirmar o desenvolvimento na bacia.

Mais recentemente, em 1991, o governo estadual, em articulação como governo federal, lançou um programa para retomada do desenvolvimentoda região sul de Santa Catarina, denominado Programa de Recuperação daQualidade de Vida da Região Sul de Santa Catarina - PROVIDA. O programavisava encontrar saídas para os complexos problemas apresentados pelocenário sócio-ambiental do momento. Este cenário era caracterizado pelaexistência de milhares de desempregados, decorrente da perda de mercadosdo carvão catarinense e, também, pelos efeitos evidentes e prejudiciais dagritante degradação ambiental provocada, principalmente, pela exploração,transporte e uso do carvão mineral. O programa prevê projetos de recuperaçãodas áreas degradadas e obras consideradas necessárias à retomada dodesenvolvimento da região sul do estado, entre as quais obras hidráulicas,marítimas e de saneamento; projetos viários; atividades de dragagem,drenagem, serviços e obras estruturais diversas; e a aquisição dos equipamentosnecessários. No seu conjunto, o programa implica investimentos de mais de380 milhões de dólares americanos (SC, PROVIDA, 1994). Na época do seulançamento gerou uma ampla expectativa. Mas a recessão econômica vivida

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pelo país nos últimos anos tem sido, entre outros, um fator limitante para aimplementação dos projetos e obras previstas

Em 1991, no âmbito de atividades do PROVIDA, o governo estadualcelebrou convênio com a companhia Docas do Rio de Janeiro, administradorado Instituto Nacional de Pesquisas Hidroviárias - INPH, que previa umconjunto de ações para o "Monitoramento Ambiental do Complexo Lagunarda Região Sul de Santa Catarina". O plano de trabalho do INPH incluía estudose levantamentos na orla marítima, nas bacias e no interior do complexo lagunar,contando para sua execução com a participação da Universidade Federal -UFSC e da Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. A partir dosdados hidráulico-sedimentológicos, meteorológicos, físico-químicos ebiológicos obtidos nos estudos, o INPH fez um conjunto de recomendações"para a melhoria da qualidade de vida no complexo lagunar Sul-Catarinense"(INPH, 1995). As recomendações foram agrupadas em três conjuntoscomplementares entre si: aspectos hidráulicos; defesa do Complexo Lagunarfrente às áreas já degradadas; e aspectos físico-químicos e biológicos. Porém,devido a restrições financeiras do Estado, os estudos não tiveram continuidadee as medidas recomendadas não têm sido implementadas. Há, entretanto, nopresente, sinais que apontam para a retomada destas ações, mediante umaação coordenada das entidades de governo e a sociedade civil organizada.

4. Comentários sobre algumas das intervenções para o desen-volvimento regional

4.1 Sobre a exploração do carvão

Conforme já salientado, a extração e beneficiamento do carvão mineralconfiguraram-se, desde o início deste século, como atividades econômicasprimordiais no sul de Santa Catarina. O carvão esteve na base do surgimentoe desenvolvimento de outros setores econômicos, tais como a geraçãotermelétrica e a indústria cerâmica (Santos, 1997). Do ponto de vistaeconômico o carvão representou crescimento e geração de riqueza.Culturalmente, representou a necessidade de construir colégios para os filhosdos funcionários das empresas estatais que se estabeleciam na região. Estescolégios foram bem aproveitados pelas populações locais. Muitaspersonalidades com destaque no mundo da cultura e da política regional e,inclusive, nacional, estudaram nestas instituições de ensino. O deslocamentoda cidade líder da região de Laguna para Tubarão iniciou-se por esse processode aproximação para obtenção de emprego nas estatais relacionadas com o

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carvão, Usina Termelétrica, Estrada de Ferro Dona Teresa Cristina e Lavadorde Capivari da CSN, e consolidou-se pela passagem da BR101 (SDM/UNISUL, 1998). A Universidade local na região - UNISUL - é fruto da visãoe liderança dos seus mentores e do apoio inconteste de pessoas ligadas àsestatais do carvão. Entretanto, simultaneamente a estes fatores de progresso,o setor carbonífero encontra-se na raiz dos sérios problemas de degradaçãoambiental que atingem a região. Estes problemas são causados, principalmente,pelos rejeitos piritosos resultantes da extração e beneficiamento do carvão.Acumulados a céu aberto, dão origem a uma paisagem de esterilidade "lunar",onde nada vive. Por outro lado, terminam acidificando e poluindo os corposde água, estendendo a degradação às áreas de jusante, com reflexos atémais de cem quilômetros de distância.

"A economia do carvão, sob a ótica da ciência econômica, gerouriquezas, empregou numerosa mão-de-obra, trouxe o progresso paraboa parte da região, porém, jamais criou um processo de desen-volvimento irreversível e autosustentado -

Mais ainda, boa parte das atividades (empresas estatais ligadas àextração, beneficiamento e ferrovia) apenas comprovaram umatendência universal, ao implantar atividades mineral exportadoras, emautêntico regime de economia de enclave, sem gerar um processo deuso racional do solo e de desenvolvimento regional" (SDM/AMREC/UNESC, 1997).

Os grandes problemas ambientais relacionados com o desenvolvimentoda exploração do carvão advêm, entre outros fatores, da desarticulação e daassimetria de poder no conjunto de forças intervenientes no processo. Essasforças estão constituídas por três categorias básicas. Por uma parte, ospescadores e pequenos agricultores, que tinham as suas águas contaminadassem que pudessem fazer qualquer questionamento, pela própria incapacidadecultural e técnica para avaliar a situação. Por outra, as Carboníferas ouEmpresas mineradoras de carvão que, com poder suficiente para definir osrumos políticos regionais, representavam a força predominante. Finalmente,as populações que não tinham envolvimento direto com a exploração do carvãomas que, indiretamente, beneficiavam-se economicamente com ela. Este grupopoderia ter servido de contrapeso à força das mineradoras. Mas muitos dosseus integrantes sonhavam em ser um dia funcionários de uma das estatais docarvão ou da Rede Ferroviária Federal. Assim, a grande maioria dapopulação nunca tomou realmente consciência das graves questões sócio-ambientais envolvidas na exploração do carvão na região e os pescadorese pequenos agricultores foram os prejudicados diretos. Com certeza estesatores nunca falaram a mesma linguagem ou sequer participaram unidos,

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através de seus representantes, de qualquer planejamento do desen-volvimento regional.

A relação das carboníferas com o poder central, tanto do Estado quantoda União, era tal que determinava a política local e regional. É sintomático,neste sentido, que a CELESC, a estatal de Santa Catarina no setor elétrico,não tenha se desenvolvido na área de geração de energia hidrelétrica, apesarda existência de potenciais hídricos que possibilitavam empreendimentos comcustos de geração de energia bem mais baratos que os correspondentes àgeração termelétrica.

A poluição passou como um mal necessário e, não havendo clima paraouvir as vozes que avisavam sobre as possibilidades de problemas, osagricultores, os pescadores e a própria população de Tubarão, Laguna eCapivari de Baixo não têm tido voz para impor as medidas de controle queseriam prudentes. O passivo ambiental regional está representado nadiminuição da pesca e na deterioração da saúde pública, prejudicada pelacontaminação do ar, das águas e dos solos.

As concentrações de metais nos sedimentos das lagoas evidenciam umadas origens da diminuição da qualidade e quantidade de pescado, que usa aslagoas da foz do Rio Tubarão em seu ciclo vital. É possível correlacionar asevidências de crescimento de metais pesados no sedimento das lagoas deSanto Antônio e Imaruí com a mineração de carvão e, pela sua vez, com oencarecimento do tratamento das águas pela CASAN. Com efeito, o pH baixoe a presença de metais como o ferro divalente e o manganês divalente, exigemoxidação prévia na Estação de Tratamento, antes de disponibilizá-las àpopulação, em Tubarão.

Figura 2 - Crescimento de metais pesados no Material de Fundo das Lagoas de Santo Antônio=LSA,Imaruí=LI e Miriam=LM*

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Por outra parte, o uso de água contaminada na irrigação de arroz, alongo prazo, pode criar dificuldades aos produtores daquela culturaimportante na planície próxima à foz do Rio Tubarão. A história mostraque os agricultores nem sempre puderam preservar suas propriedadesquando houve perda de qualidade nos córregos e rios onde seus animais sedessedentavam (SUDESUL/MAGNA, 1979).

4.2 Sobre o crescimento de empreendimentos agrícolas

Diversas têm sido as propostas de planejamento agrícola e dediversificação da produção regional. Entre as principais encontradas está aprodução de abacate e a implantação de uma fábrica de extração de óleo. Aproposta foi elaborada com auxílio da Associação de Crédito e AssistênciaRural do Estado de Santa Catarina - ACARESC, em 1975. Mas, entre o plantioe os procedimentos para implantação da fábrica, sofreu descontinuidade. Oresultado foram plantações de abacateiros sem mercado, nem para a extraçãode óleo, nem para o consumo direto. Nem a exportação foi incentivada, nema educação para o consumo ainda verde, como se faz na Europa, foi alvo deinteresse e preocupação. É difícil saber como ficaram os agricultores queacreditaram nesse empreendimento ou na Companhia Catarinense de Álcool- CCA, que conforme os seus idealizadores compraria aipim ou mandiocapara produzir álcool combustível. A fábrica foi construída com recursos doPró-álcool, mas funcionou como produtora de álcool por pouco tempo. Poucomais funcionou produzindo amido de mandioca, mas não teve sucesso.Entretanto, seria injusto apontar o conjunto destas iniciativas como fracassoabsoluto. Certamente, houve e há fabricantes de farinha de mandioca que sefortaleceram como empresários, que aumentaram sua produção e que semantiveram no mercado. Potencialmente poluidoras, essas indústrias têm sidocriticadas pela liberação de águas com cianeto, embora poucas vezes detectado,e pelo consumo de oxigênio dissolvido pelos seus efluentes (SUDESUL/MAGNA, 1979).

Outro setor que teve apoio institucional foi a suinocultura. Esta atividadefoi incentivada em uma ótica que não percebeu a magnitude do seu impactosobre os recursos hídricos. E se a percebeu foi omissa em relação a medidaspreventivas. A maioria das pocilgas foi instalada excessivamente próxima decursos de água, como aliás aconteceu com as fecularias, as já citadas fábricasde farinha e amido. O hábito de extrair água para manutenção e limpeza dasinstalações, devolvendo-a carregada de detritos diretamente aos cursos naturais,

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instalou-se de forma generalizada. Esta prática generalizou-se sem que,paralelamente, tivesse sido desenvolvida uma infra-estrutura para tratamento dosefluentes assim gerados; e sem contar com uma organização institucional emcondições de educar e fiscalizar os proprietários e empreendedores. O resultadose manifesta nos altos teores de nutrientes, matéria orgânica e contaminaçãobiológica de rios e lençóis de água (SDM/UNISUL, 1998).

A rizicultura é outra atividade agrícola de crescimento regional signi-ficativo. As obras de drenagem efetuadas nas planícies baixas da baciaenxugaram amplas áreas, que se tornaram aptas aos grandes empreendimentosagrícolas representados pelos plantadores de arroz. Paralelamente aos aspectospositivos que a atividade representa, ela também gera conflitos pelo menosem três frentes. Por uma parte, há as disputas pelos volumes de águadisponíveis, pois a cultura de arroz irrigado é voraz no consumo de água. Defato, no conjunto dos aproximadamente 13.400 hectares irrigados, o consumode água durante o ciclo da cultura - novembro a fevereiro - é da ordem de 1,17milhões de m3/dia (SC, 1997). Esta grande demanda é causa de sériasdisputas entre os próprios rizicultores e, por outra parte, conflitua com osinteresses de outros usuários. No município de Imaruí, por exemplo, ospescadores queixam-se de uma alegada diminuição de volume de água daLagoa Mirim como conseqüência do consumo das águas afluentes pelarizicultura (PROGERCO, 1997).

A segunda frente de conflito dos rizicultores está na relação com ospescadores, que os acusam de envenenar as águas com agrotóxicos, alterandoa quantidade e qualidade (sabor) dos peixes e interferindo na procriação docamarão. Porém, talvez não haja sequer pesquisa suficiente para afirmar quala origem real do problema. Alguns dos fatores a serem pesquisados são o usodestes agrotóxicos, o derrame de águas das quadras de plantio direto comexcesso de material em suspensão, o derrame de águas de fim de colheita,com contaminantes possivelmente relacionados com os ácidos húmicos dossolos orgânicos das vargens e com os adubos e águas utilizadas. De especialinteresse seria pesquisar a influência da composição dos efluentes das pilhasde óxido de ferro da ex-ICC, em Imbituba, transportados por veiculação hídricaaté o complexo lagunar.

A questão da salinização das lagoas é também um ponto que diferenciaclaramente as posturas de pescadores e rizicultores. Enquanto os primeirosbrigam para garantir a salinização de lagoas como Imaruí e Camacho/Garopabado Sul, os rizicultores temem pela salinização dos canais e de suas terrascomo conseqüência de qualquer ligação adicional das lagoas com o mar (SDM/UNISUL, 1998).

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4.3. Sobre o turismo

O fomento do turismo consta entre os programas vertebradores dodesenvolvimento regional nos Termos de Referência do Processo dePlanejamento do Sul de Santa Catarina, conduzido pelo Ministério do Inte-rior através da SUDESUL, já referenciado anteriormente. Entretanto, aexploração do turismo tem tido muito pouco planejamento territorial. De fato,as iniciativas neste campo não respondem a um plano diretor de ocupação doterritório, apresentando-se, em grande medida, como simples conseqüênciada implantação de infra-estruturas (acessos e energia elétrica) e dedisponibilização de lotes para construção de moradias.

Entre as situações de exploração turística e lazer de veraneio que exigemplanejamento urgente estão aquelas localizadas nas áreas de restinga, entre aslagoas e o Oceano Atlântico. Estas áreas são constituídas por areais entre doiscorpos de águas salgadas. Embora tenham boa capacidade de armazenamento deágua doce, apresentam sérias possibilidades de contaminação. Essa contaminaçãoadvém da prática de instalar, nas residências de beira de praia, um sumidouropara os esgotos num lado da casa e uma ponteira para puxar água do outro.Enquanto o número de residências de verão for pequeno e o período de usorestrito, os efeitos da contaminação do lençol freático não serão sentidos. Mas, alongo prazo, as conseqüências se manifestarão com intensidade proporcional aonível de agressão correspondente (SDM/UNISUL, 1998). Esse fenômeno poderárepetir-se nas questões das águas termais e em relação à instalação não planejadade vilas e povoações.

Por outro lado, alguns empreendimentos turísticos que exploram abeleza cênica de cursos de água com cascatas ou praias de água doce esbarramna qualidade das águas provenientes de áreas com intensa atividade de suino-cultura ou residencial. Acontece que essas atividades turísticas, representadaspor empreendimentos tipo Pesque-Pague e restaurantes próximos decachoeiras, são uma opção alternativa de lazer para o turista que busca aspraias e as termas. Mas, nas condições descritas, a sobrevivência deste tipode atividade depende da gestão ambientalmente correta das outras atividadesantrópicas praticadas nas redondezas e na bacia, à montante. É urgente, nestesentido, encontrar mecanismos de gestão participativa para o encaminhamentode soluções para este tipo de problema. Com maior razão ainda, quandoconstata-se que muitos dos freqüentadores e investidores na compra de terrenose construção de residências de praias são os mesmos que estão agindo rio acima.

Em síntese, as atividades turísticas desenvolvidas no litoral ou no inte-rior da bacia em questão, via de regra, vêm se desenvolvendo de forma rápida,desordenada e dissociada da preocupação ambiental (PROGERCO, 1997),

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gerando situações problemáticas, com reflexos na qualidade dos recursoshídricos ou provocadas pela falta de qualidade destes.

"As edificações, tanto de turismo convencional como de veraneio,privatizam orlas, ocupam ambientes frágeis (dunas, costões,promontórios) e provocam poluição ambiental generalizada"(PROGERCO, 1997)

5. Expectativas no cenário da Política Nacional de Recursos Hídricos

5.1 Os novos entendimentos

O propósito deste artigo não é o de apresentar uma relação completa detodas as intervenções resultantes de planos para o desenvolvimento regional,experimentadas na Bacia do Rio Tubarão e Complexo Lagunar. Tampouco osde comentá-los exaustivamente entrando no difícil caminho de esgotar aavaliação das suas contribuições efetivas para o desenvolvimento preconizado.O que tentamos salientar é a ausência de planejamento integrado e demecanismos indutores da coordenação e articulação de ações, tanto para avaliaros efeitos intersetoriais das intervenções pensadas, quanto para implementaraquelas já decididas em nivel institucional ou individual. Esta realidade sereflete negativamente nas disponibilidades quanti-qualitativas dos recursoshídricos da bacia que, por sua vez, constituem-se em indicadores indiretos daqualidade de vida da população. Neste sentido, a gestão de recursos hídricos,pautada nos princípios que norteiam a política nacional sobre o tema, tem opotencial de reverter as práticas usuais de gestão setorial até agora predomi-nantes na região. Potencial, este, que só poderá ser efetivado se a política for,de fato, implementada. Acontece, justamente, que o país vive um intensoprocesso de discussão que visa este objetivo. Discute-se a regulamentação dalei 9.433/97 para vê-la de fato implementada. A percepção da existência devontade política para que isso seja uma realidade gera expectativas pelosrebatimentos que a lei nacional haverá de ter na gestão dos recursos hídricosestaduais e, em conseqüência, na Bacia do Rio Tubarão e Complexo Lagunar.

Os planos experimentados na Bacia do Tubarão foram idealizados emuma ótica que identificava desenvolvimento com crescimento econômico ecuja implementação era efetivada no imaginário do infinito, em termos dedisponibilidade e capacidade de recuperação dos ecossistemas. Embora estaprática ainda continue, hoje os entendimentos são outros. A alarmantedegradação ambiental planetária tem-nos tornado mais conscientes que osrecursos naturais são limitados e que os ecossistemas - como os seres vivos -

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têm capacidade de suporte limitada. E que, portanto, os recursos naturaisrenováveis, além de finitos, são vulneráveis. Por outro lado, foram necessáriosanos de discussões e reflexões para concluir o óbvio: o atributo dasustentabilidade é inerente ao conceito de desenvolvimento. Só hádesenvolvimento real quando há eqüidade social, resultante de um processodistributivo de uma economia ativa, mas praticada com respeito à capacidadede suporte dos ecossistemas. É numa sociedade com este entendimento queaparece a lei da Política Nacional de Recursos Hídricos. Lei que incorporaprincípios básicos da Declaração de Dublin sobre Recursos Hídricos eDesenvolvimento Sustentável (1992) e cuja promulgação representa aculminação de um processo de discussões iniciadas em 1984, com as primeirasreuniões de Órgãos Gestores de Recursos Hídricos. A política assume que osrecursos hídricos se constituem em bens públicos, vulneráveis, finitos enecessários a múltiplos usos; dotados, por escassos, de valor econômico. Eproclama, entre os seus pilares básicos, o princípio da gestão descentralizadae participativa (Princípio da Subsidiaridade). Define a bacia hidrográfica comoa unidade básica de planejamento e gestão. Estabelece entre os seusinstrumentos de gestão as figuras dos planos de recursos hídricos, assim comoa outorga e a cobrança pelo uso destes recursos, a ser exercida pelo poderpúblico em concordância com este plano. Define um sistema de gestão acordecom o princípio da subsidiaridade; e registra, entre as diretrizes para suaimplementação, a necessidade de articulação com a gestão dos setores usuários,assim como com a gestão ambiental, do uso do solo e o gerenciamento costeiro.

5.2 O potencial dos instrumentos

Dentre os instrumentos da política nacional de recursos hídricos constaa figura - importantíssima, diga-se desde já - dos Planos de Recursos Hídricos,que deverão ser estabelecidos por bacia hidrográfica, por estado e para opaís. Trata-se de planos diretores, de longo prazo, com horizontes deplanejamento compatível com o período de implantação de seus programas eprojetos. Outro instrumento previsto é o da Outorga de direitos de uso dosrecursos hídricos. Mas este não é independente do anterior. De fato, conformea lei, toda outorga estará condicionada às prioridades de uso estabelecidas noreferidos planos. E como a cobrança pelo uso do recurso está atrelada,justamente, à obtenção da outorga do direito de uso, fica evidente, por efeitode vínculo, a tremenda força potencial do instrumento Plano de RecursosHídricos. Por outra parte, há uma outra dimensão de fundamental importânciaem relação a este instrumento. É que sua aprovação dá-se não em um gabinete

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de tecnocratas, mas no Comitê de Bacia, assembléia de participação das forçasvivas atuantes na respectiva bacia. O comitê é a célula básica da efetivaçãodo caráter participativo e descentralizador que permeia a nova política derecursos hídricos. Trata-se, portanto, de uma peça fundamental no arcabouçodo sistema de gestão dos recursos hídricos. Peça que se constitui em uminstrumento de democracia participativa, que haverá de complementar àquelespróprios da democracia representativa. Neste ponto, é oportuno citar um dosPrincípios mais importantes de Declaração de Dublin:

"O desenvolvimento e a gestão da água devem ser baseados naparticipação dos usuários, dos planejadores e dos que tomam decisõespolíticas, em todos os níveis" (Declaração de Dublin, 1992).

Em síntese, tanto pelo seu caráter vinculante com a Outorga de direitosde uso, como pela sua gênese através do Comitê de Bacia, o Planoconstitui-se numa peça chamada a ter grande relevância no gerenciamentodos recursos hídricos.

Os planos de recursos hídricos não devem ser confundidos com osplanos regionais de desenvolvimento social e econômico. Mas, certamente,constituem-se em elos de ligação entre os diversos planejamentos setoriais eelementos indutores da sustentabilidade nas práticas antrópicas.

Embora a lei seja explícita em limitar a competência dos comitês debacias aos assuntos referentes aos recursos hídricos, as interfaces destes comas atividades praticadas pelo homem são de tal magnitude que seriaingenuidade imaginá-los como instrumentos setoriais no sentido clássico. Narealidade, a gestão dos recursos hídricos é um dos temas ditos transdisciplinares,pois permeia praticamente todas as atividades humanas. Como estabelecerum plano de metas a respeito dos recursos hídricos, ignorando as atividadesantrópicas desenvolvidas na bacia? Como estabelecer um plano sem considerar,por exemplo, as relações intersetoriais da gestão de recursos hídricos com agestão do uso do solo e do saneamento ambiental?

Relacionado com o anterior, é importante salientar que a lei estabelece,também, o enquadramento dos corpos de água como instrumentos da política.Trata-se do enquadramento segundo os usos prioritários previstos para osrespectivos corpos de água. Na realidade, o enquadramento é uma ferramenta-chave para a definição do plano de recursos hídricos, pois a discussão de usospreponderantes para os diversos corpos de água e os custos, prazos ecompromissos associados, permite decidir qual o cenário que a sociedadedeseja atingir. Neste sentido, é importante enfatizar que o enquadramentodeve ser entendido como meta a ser alcançada e não, necessariamente, como

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situação presente dos corpos de água. Todavia, na realidade atual de diversosestados do país, "a aplicação do enquadramento está ocorrendo como se ocorpo de água estivesse na condição de classe em que foi enquadrado, e queessa classe deve ser mantida" (Barth, 1999). Em termos práticos, os efeitosdeste critério de aplicação têm-se constituído, em muitos casos, em entravesà melhoria ambiental, pela impossibilidade de obter licenciamento paraempreendimentos tais como estações de tratamento de esgotos urbanos, porqueos efluentes lançados, mesmo se constituindo em evidente melhoria para oscorpos receptores, "não podem conferir ao corpo de água receptorcaracterísticas em desacordo com o enquadramento do mesmo"(Barth, 1999).

Da mesma forma, cenários definidos como metas, sem tomada deconhecimento de sua viabilidade técnica e econômica, correm o risco de con-verter-se em simples declarações de propósitos, bem intencionados mas irreaise, pelo mesmo, podem comprometer o prestígio, o poder de influência e até aprópria vida do respectivo comitê. E, em conseqüência, a viabilidade dosplanos e programas por ele estabelecidos. Vale salientar, nesta linha deraciocínio, a preocupação a respeito do estabelecimento de metas realistas,adequadas às condições locais e baseadas na avaliação de custos e benefícios,registrada no relatório do Banco Mundial sobre a Gestão dos Problemas daPoluição no Brasil (1998), que de certa forma já delineia um propósito de nãofinanciar projetos atrelados a enquadramentos irrealistas.

Assim, para que o processo de enquadramento corresponda a umatomada de decisão consciente e realista, é imprescindível a função dos técnicos.A eles cabe subsidiar o comitê com propostas alternativas com os corres-pondentes custos econômicos e ambientais de cada uma delas, como tambémauxiliá-lo nas decisões de alternativas para definição de prazos para atingir asmetas pretendidas.

5.3 Interfaces da gestão

Todas as atividades econômicas, sejam do setor primário, secundárioou de serviços - como as de saneamento básico -, requerem água, seja comoinsumo, como meio de refrigeração ou como meio de descarte de resíduos. Ecomo todas precisam de outorga e esta é vinculada ao Plano, fica automatica-mente estabelecido um nexo entre a gestão de recursos hídricos e a gestão deatividades setoriais, intermediadas pelo Plano de recursos hídricos da bacia.De fato, definido participativamente o cenário final pretendido, as diversasatividades produtivas presentes na bacia - mineração, rizicultura, suinocultura,fecularias, como também as de saneamento básico - deverão ajustar suas

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atividades e procedimentos aos requerimentos do programa de metasestabelecido pelo Comitê de Bacia para atingir o objetivo final acordado.

Assinalamos já que no caso das Bacia do Rio Tubarão e ComplexoLagunar há um passivo ambiental muito significativo. Aqui, portanto, o comitêda bacia tem como assunto prioritário a definição de um programa de metasde despoluição, em cuja discussão e compromissos de implementação temque participar todos os usuários, agentes institucionais e população da bacia.Por outro lado, o comitê está chamado a ter papel preponderante noencaminhamento de soluções para os conflitos entre rizicultores e pescadores.

Os problemas produzidos pelo setor de mineração são, fundamentalmente,de degradação qualitativa dos corpos de água. Portanto, um programa de metasde despoluição e de medidas preventivas para o futuro, definidas segundo o cenárioreferencial (enquadramento) aprovado, participativamente, no Comitê Tubarão,deverá tender a resolver este problema. Há que prever, é claro, muita discussãopara estabelecer o plano de metas e, com certeza, haverá que dividir oscompromissos a serem assumidos pelos mineradores em dois grandes blocos.Aqueles que se referem a ações no presente e no futuro; e aquelas referentes aopassivo ambiental já existente. É conhecida a posição dos mineradores, no sentidode considerar que a responsabilidade da degradação é, em boa medida, da Uniãoe que, portanto, é a ela que corresponde financiar a recuperação. Se não houveracordo a respeito do financiamento dos programas de despoluição, será impossívelestabelecer um programa realista, pois a identificação clara das fontes definanciamento faz parte da viabilidade de qualquer projeto, programa ou planode metas.

Já a questão da rizicultura, como assinalado em item anterior, apresentatrês áreas de conflito. A questão da disputa pelo mesmo recurso com outrossetores que também implicam em uso consuntivo e, especialmente, entre osdiversos produtores do arroz, deverá ser resolvida através do instrumento daoutorga. É importante lembrar, neste sentido, que a outorga implica noconhecimento das disponibilidades naturais, por uma parte, e das parcelas jácomprometidas, por outra. Isto é, a entidade outorgante, para exercer estafunção com propriedade, tem que dispor de estudos que lhe permitam conheceras vazões nos diferentes cursos de água da bacia; e de um cadastro de usuáriosque permita saber onde, em que períodos do ano e quanto destas vazões estãojá sendo extraídas. Não pode outorgar-se direito de uso sem saber se ocorrespondente curso de água oferece, ou não, as quantias requeridas. E emcaso que as ofereça, saber quais as medidas ou as obras de engenharianecessárias para disponibilizar a água nos períodos que os usuários a requerem.É a partir deste conhecimento objetivo que deverão ser feitas as conversações

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e os acertos entre os diferentes usuários, para dirimir suas diferenças. E, nocaso de impossibilidade de atender todas as demandas na forma requeridapelas partes, é o comitê da bacia que terá que definir as atividades a seremprioridades, se não forem aquelas já priorizadas na lei (consumo humano,dessedentação de animais e vazão ecológica). Tudo isto não é tarefa fácilnem simples. Requer suporte técnico e negociação política. Mas, conforme oprincípio da subsidiaridade, tem que ser feito e decidido na própria bacia.

No caso do conflito pela deterioração qualitativa das águas, da qualsão acusados os rizicultores, suinocultores e fecularias, parece claro que umprograma de metas setoriais, acorde com o cenário referencial definido comoobjetivo final pelo comitê da bacia, deveria se constituir no caminho de soluçãodo problema. Tampouco esta é tarefa fácil ou simples. Por uma parte, pelosinteresses econômicos em jogo. E, por outra, porque boa parte deste problemaestá ligada à poluição difusa. Provavelmente haverá que estabelecercompromissos em nível de cooperativas de produtores, pois dificilmente serápossível estabelecer as contribuições individuais dos pequenos produtores.Além do mais, será necessário um mecanismo de fiscalização permanentepara verificação dos compromissos assumidos pelas partes. Mas, de qualquerforma, há aqui, nos instrumentos e mecanismos definidos na lei de recursoshídricos, um caminho para encontrar a solução do problema. Caminho queimplica num envolvimento da FATMA, EPAGRI, Núcleo de ApoioTécnico, cooperativas, sindicatos de produtores e demais participantesdiretos no assunto.

A divergência de posições quanto ao tema da salinização implica nanecessidade urgente de estudos e levantamentos do comportamentohidrodinâmico do complexo lagunar. Estudos específicos, como os iniciadosem 1991 pelo INPH, que permitam tomar decisões sobre a base deconhecimentos objetivos. Certamente, é dever do Comitê da Bacia, no mínimo,pronunciar-se sobre a prioridade dos respectivos estudos. Ainda sem recursosfinanceiros próprios para administrar, o Comitê Tubarão não pode contratardiretamente estes estudos. Mas, certamente, pode pressionar politicamente emobilizar a opinião pública para que as entidades de governo responsáveispela área disponibilizem recursos para isso.

Problemas como os apontados ao comentar o estímulo à produçãoabacateira e da companhia do álcool, não são próprios do comitê de bacia.Mas a prática do planejamento participativo poderá de auxiliar indiretamente,para incentivar discussões mais abrangentes, visando o sucesso de iniciativassimilares no futuro.

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Mesmo a questão da construção ou não das barragens de controle deenchentes planejadas pelo ex-DNOS constitui-se em tema a ser discutido emnível do comitê. É através deste fórum que a comunidade regional deve pronunciar-se sobre a prioridade destes empreendimentos ou de suas alternativas.

É claro que sem disponibilidade de recursos próprios será muito difícilao Comitê Tubarão converter em realidade as medidas e obras por elepriorizadas. Muito deverá auxiliar neste sentido, a implementação doinstrumento da cobrança pelo uso dos recursos hídricos que, segundo a lei,deve reverter em recursos "carimbados" para financiamento do plano derecursos hídricos da própria bacia. Interessante é, também, observar nestesentido que o projeto de lei 1.617/99, de criação da Agência Nacional deÁguas - ANA, recentemente submetido à apreciação do Congresso Nacional,prevê que esta agência conte com recursos financeiros advindos da geraçãohidrelétrica, que serão destinados à implantação e fortalecimento do sistemanacional de gerenciamento dos recursos hídricos. Isto é, os comitês de baciaspoderão ter na ANA uma das possíveis fontes complementares definanciamento do correspondente plano da bacia. De qualquer forma, aimplementação da cobrança pelo uso da água, bem finito e com valoreconômico, requererá, previamente, estudos que deverão ser amplamentediscutidos no comitê e uma campanha de esclarecimentos a respeito do caráterdesta cobrança.

Saliente-se, por outra parte, que o instrumento da cobrança, pelos seusimpactos econômicos nas atividades dos usuários, deverá provocar atitudesmais prudentes quanto ao uso da água, tanto em termos de extração como deuso para lançamento e diluição de esgotos e outros resíduos.

5.4 Observação sobre o Comitê Tubarão

O Comitê Tubarão, aqui referenciado, foi criado em outubro de 1997,com base na lei estadual 9.748/94. Foi o resultado de um processo demobilização social liderado pela Associação de Municípios da Região de La-guna - AMUREL, com sede em Tubarão, ancorado na conscientização arespeito da poluição das águas na bacia. Em agosto de 1998 os participantesno I Seminário de Recursos Hídricos da Bacia do Rio Tubarão e ComplexoLagunar, representando mais de 50 associações e entidades regionais,assumiram, dentre outros, os seguintes compromissos:

• "Apoiar as ações do Comitê Tubarão para a preservação do meioambiente e o desenvolvimento da Região Hidrográfica RH9 - do Rio

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D'Una, Rio Tubarão e Complexo Lagunar, de modo a proporcionar egarantir a qualidade das águas.

• Cumprir com as decisões do Comitê, para que sejam executados osplanos de melhoria da qualidade das águas.

• Desenvolver esforços para despoluir rios e lagoas a fim de melhorar aprodução pesqueira e a qualidade das águas a disposição da população".

Lamentavelmente, após uma notória movimentação inicial, o ComitêTubarão não tem conseguido responder às expectativas que gerou. Uma dascausas que explica, parcialmente, esta situação, é a ausência de regulamentaçãoe conseqüente falta de implementação dos instrumentos de outorga e cobrançaprevistos na lei estadual. Sem o suporte do exercício do poder de outorga porparte do estado e sem recursos próprios para contratar estudos, o comitê temum poder de atuação muito limitado. Mas, para o futuro imediato, há aexpectativa de aproveitar a regulamentação da lei federal 9.433/97. Por ora,um subsídio de interesse às funções do comitê é constituído pelo estudo"Diagnóstico dos Recursos Hídricos e Organização dos Agentes da Bacia doRio Tubarão"(1998), coordenado pela UNISUL na condição de Núcleo deApoio Técnico do Comitê Tubarão, executado com recursos do MMA/SRH edo Estado de Santa Catarina através da Secretaria de Desenvolvimento Urbanoe Meio Ambiente - SDM.

Mesmo com as limitações apontadas, o Comitê Tubarão tem um vastoespaço de ação em nível de coordenação e mobilização. De fato, está sendopressionado por segmentos da população local para assumir efetivamente, nomínimo, a função de fórum de discussão e encaminhamento de soluções para osproblemas existentes com os recursos hídricos da bacia. Particularmente ativos têmsido os habitantes dos municípios diretamente vinculados ao complexo lagunar.

Conforme anteriormente apontado, o complexo lagunar em pauta éconstituído por um conjunto de 8 lagoas que possuem ligação com o oceano,sendo que as de Imaruí, Mirim e Santo Antônio, totalizando 183,9 Km2 são asmaiores delas. Como já dito inicialmente, o sistema é altamente degradadoem decorrência dos impactos causados pelas atividades mencionadas nos itensanteriores, pela ausência de sistemas de esgotos sanitários e pelas práticaspredatórias dos pescadores, entre outros fatores. Conseqüência da degradaçãotem sido uma sensível diminuição da produtividade pesqueira, especialmenteno conjunto das lagoas Imaruí, Mirim e Santo Antônio, da qual dependemmais de 10.000 famílias da região.

Debates sobre a situação enfrentada pelo complexo lagunar têm sidopromovidos pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembléia

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Legislativa de SC e pela Sociedade Amigos da Lagoa do Imaruí - SALISC. Ésintomático que os representantes da população atingida estejam reivindicandoo desmembramento do Comitê Tubarão para constituir um comitê separadoque, a juízo deles, os representaria melhor. Esta atitude deveria constituir-senum claro alerta aos dirigentes do Comitê Tubarão no sentido de retomaruma atitude dinâmica, pró-ativa, respondendo as expectativas daqueles quemobilizaram-se para criá-lo. Cabe salientar, por oportuno, que a situação atualdas lagoas decorre das atividades desenvolvidas em toda a bacia e que,dificilmente, portanto, a solução dos problemas poderá equacionar-se só noâmbito local.

Um aspecto a levar em conta, nos assuntos referentes especificamenteao complexo lagunar, é a existência do Plano Nacional de GerenciamentoCosteiro - PNGC, instituído mediante a lei 7.661/88. Entre outros objetivos,a lei estabelece que o plano "visa orientar a utilização racional da zona costeira,de forma a contribuir para elevar a qualidade de vida da população e a proteçãode seu patrimônio natural, histórico, étnico e cultural". No âmbito desteprograma nacional, o litoral catarinense foi motivo de levantamentos queconduziram a um diagnóstico ambiental (PROGERCO, 1997). Este diagnósticofornece subsídios para os zoneamentos que deverão ser detalhados em nívelde municípios e para a discussão do plano estadual de gerenciamento costeirocom os seus correspondentes instrumentos, dentre os quais o monitoramento.Ora, nos documentos que tratam do tema, o gerenciamento costeiro é entendidocomo sinônimo de planejamento e gestão integrada, descentralizada eparticipativa. Portanto, a participação da comunidade é peça básica. Por outrolado, seria absurdo imaginar um plano de gerenciamento costeiro no complexolagunar supondo que o seu comportamento independe do que acontece nabacia, a montante. A própria lei 9.433/97 estabelece, entre as diretrizes parasua implementação, "a integração da gestão das bacias hidrográficas com ados sistemas estuarinos e zonas costeiras" (art. 3, parágrafo VI). Neste sentido,seria interessante pensar num colegiado representativo da população docomplexo lagunar para gerir os assuntos referentes ao gerenciamento costeiroque, de alguma forma, fosse vinculado ao comitê de bacia. Iniciativas nestesentido poderiam ser exploradas pelo Comitê Tubarão.

6. Conclusões

A problemática hoje existente com os recursos hídricos da bacia doRio Tubarão e Complexo Lagunar constitui-se num claríssimo exemplo dasrelações de interdependência que existem entre a forma de praticar diversasatividades setoriais e a disponibilidade quanti-qualitativa dos recursos hídricos.

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Por outro lado, a gestão destes recursos, nos moldes propiciados pela políticanacional, haverá de produzir profundos impactos na gestão das ditas atividadessetoriais, seja em função do Plano de Recursos Hídricos, a ser aprovado nocomitê da bacia, seja em função dos rebatimentos causados pelo cobrança douso deste recurso natural, escasso, finito e vulnerável, até agora consideradocomo se infinito fosse.

Neste contexto, o Comitê Tubarão está chamado a ter um papel demáxima relevância no desenvolvimento regional na bacia. A adoção de umplano de despoluição dos recursos hídricos da bacia e do estabelecimento demetas setoriais para atingí-lo deverá ter rebatimentos praticamente em todasas atividades desenvolvidas na bacia. E o seu papel de fórum de negociaçõesentre usuários e agentes sociais da bacia haverá de servir para o enca-minhamento de soluções dos diversos conflitos hoje existentes.

Mesmo num cenário pessimista, sem um plano definido no curto prazo,a outorga e cobrança, se exercidas, de fato, pelo poder público, a partir de umsistema de informações adequado e atualizado, constituem-se em instrumentosde gestão com potencial para induzir mudanças nas práticas de gestão setoriais.

Em síntese, a expectativa de implementação efetiva da política nacionaldos recursos hídricos e seus efeitos indutores na política estadual de SantaCatarina configura-se numa injeção de ânimo, pelos rebatimentos integradoresque são previstos sobre as atividades desenvolvidas no sul do estado e, emparticular, na Bacia do Rio Tubarão e Complexo Lagunar.

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Perfil curricular dos autores

Héctor Raúl Muñoz Espinosa – [email protected] – é graduadoem Ciências Físicas (U. del Norte, Chile, 1962). Hidrólogo (CEH,Espanha, 1967). Mestre em Recursos Hídricos (IPH da UFRGS, 1972).Especialização em Geografia/Desenvolvimento Regional (UFSC, 1993).Exerceu funções técnicas e gerenciais nas áreas de recursos hídricos emeio ambiente da ELETROSUL (1976-99). Consultor da UNESCO ePNUD com missões em Brasil, Moçambique e Caribe. Foi diretor deGestão Ambiental e Recursos Naturais na SDM/SC e coordenador doprojeto “Administração das Bacias Hidrográficas de SC”. Atualmente éconsultor em gestão de recursos hídricos e professor na Universidadedo Sul de Santa Catarina - UNISUL.

Ismael Pedro Bortoluzzi – [email protected] - é licenciadoem Química (UFSM, 1971) com Especialização em Química Inorgânica(FURB, 1976) e Mestre em Metalurgia Extrativa (Programa de Pós-graduação em Engenharia da UFRGS, 1984). Atualmente em fase deconclusão do doutorado na Universidade de Santiago de Compostela.Professor e pesquisador na Universidade do Sul de Santa Catarina –UNISUL, desde 1975. Autor de diversos estudos e trabalhos referentesà qualidade das águas e ao meio ambiente do sul de SC. Foi coordenadordo “Diagnóstico dos recursos hídricos e organização dos agentes da baciado rio Tubarão, SC” (1998).

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RECURSOS HÍDRICOS E DESENVOLVIMENTO URBANO

Ricardo Toledo Silva

1. Introdução

Este trabalho explora as relações entre as políticas urbana e de recursoshídricos, com vistas à abertura de canais efetivos de cooperação e integraçãoentre os dois sistemas institucionais. Esta relação é particularmente importantenos casos de bacias intensamente urbanizadas, nas quais - como no caso deSão Paulo - a interação com processos específicos de uso e ocupação do solourbano é determinante da sustentabilidade dos sistemas hídricos. É feita umaanálise das possíveis causas que têm determinado o distanciamento entre osdiferentes sistemas setoriais de planejamento e gestão, tanto do ponto de vistaurbano / regional, como dos recursos hídricos. Explora-se a hipótese de queos agentes do desenvolvimento urbano e regional têm pouca motivação parauma atitude cooperativa com o uso sustentado dos recursos hídricos devido àdificuldade de visualização dos possíveis benefícios tangíveis que essa atitudepoderia trazer. O relacionamento de caráter estritamente normativo entre essessistemas institucionais não se tem mostrado eficaz, como fica claro pelosresultados das leis de proteção a mananciais. Hoje, porém, a organizaçãoinstitucional do Estado regulador pode trazer novas potencialidades para umcontrole mais democrático e participativo das políticas públicas a partir deum maior peso relativo do lado da demanda no processo decisório. Naconclusão são mostrados alguns caminhos para uma maior articulação entreesses sistemas, a partir de novas figuras institucionais abertas em ambos.

2. Antecedentes

A relação entre a estruturação urbana e as obras públicas de engenhariahidráulica sempre foi, no Brasil, muito importante. São marcantes dessaimportância os projetos de Saturnino de Brito para grandes cidades brasileirasnas primeiras décadas deste século, como por exemplo os planos de Santos,de Recife, de Curitiba e de várias cidades médias em diferentes estados. Brito(1918) enumerava como serviços próprios de melhoramentos municipais, emsus planos de conjunto, os seguintes:

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a) traçado da cidade, saneamento e aformoseamento;b) edifícios públicos e particulares;c) iluminação;d) força e tração elétrica;e) estradas municipais e intermunicipais;f) navegação interior, canais;g) exploração das quedas d'água;h) saneamento rural, proteção das águas;i) proteção e exploração das matas;j) obras contra as secas e inundações.

Fora esses, ele mencionava ainda os serviços de pontes e calçamentos,assistência pública e outros, em uma visão que remetia à competência local aquase totalidade das estruturas definidoras dos sistemas regionais e urbanos.Alguns dos planos de urbanismo sanitarista de início deste século exerceraminfluência decisiva na estruturação futura das cidades para onde foramconcebidos, como no caso de Santos e São Vicente, cujos traçados urbanísticosse desenvolveram a partir dos canais de drenagem. As arquiteturasinstitucionais da época contemplavam uma articulação equilibrada entre ospoderes públicos investidos de autoridade sobre a organização das cidades -os Municípios - e aqueles com responsabilidade sobre o desenvolvimento desistemas setoriais de infra-estrutura, em sua maioria representados por órgãosou entidades estaduais ou mesmo federais.

O caráter local que caracterizou a maior parte dos serviços públicos edos sistemas de infra-estrutura anteriores à década de 30 foi sendo rapidamentesuperado pela escala cada vez mais ampla da organização dos grandes sistemasde infra-estrutura, especialmente de energia elétrica. A expansão da basegeradora por aproveitamento hídrico teve como desdobramento a ampliaçãodas áreas de abrangência dos serviços, tanto no território como em suacomplexidade funcional. Os sistemas passavam a abranger não só ofornecimento de energia elétrica, mas vários serviços públicos direta ouindiretamente associados àquele pelo lado da demanda, como iluminaçãopública transporte público urbano (bondes elétricos) ,e pelo lado da oferta, comocontrole de inundações, abastecimento de água e esgotamento sanitário. Dessamaneira, a tecnologia e a gestão dos serviços evoluíam para uma escala regionalde organização e os sistemas públicos de controle deveriam fazer o mesmo.

O decreto 24.643, de 1934 - Código das Águas -, foi a primeira grandepeça reguladora dos usos da água no Brasil, com jurisdição nacional. Osestudos iniciais do Código remontam a 1907, quando o professor AlfredoValladão, a convite do Governo, apresentou à então Subcomissão do Código

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das Águas da Câmara dos Deputados seu primeiro projeto sobre o assunto(Valladão, 1933). A versão final aprovada em 1934 continha, além dedispositivos gerais e abrangentes sobre o uso das águas, uma última parte - oLivro III, de título Forças hidráulicas, regulamentação da indústriahidroelétrica - que definia em detalhe condições específicas para oaproveitamento energético das águas.

O Código das Águas constituiu um inegável avanço da regulação públicasobre o uso das águas, especialmente ao se levar em conta que, na época emque foi promulgado, flagrantes abusos vinham sendo praticados pelas grandesempresas estrangeiras que exploravam os serviços públicos no Brasil em re-gime de oligopólio. No entanto, ao aprofundar de maneira assimétrica odetalhamento da regulamentação para uso energético das águas, o Códigocontribuiu para que, na prática, a lógica energética viesse a preceder as demaisno processo decisório sobre o uso dos recursos. Dentro desse quadro, os usosurbanos das águas e as interferências marcantes que os grandes sistemasestruturais de aproveitamento hídrico tinham sobre as cidades tiveram umpeso cada vez menor no processo decisório real sobre as águas. Os conflitosmais notórios entre aproveitamento energético e irrigação tiveram, em quepese a hegemonia da lógica energética, maior destaque e importância naregulamentação posterior ao Código das Águas do que aquelesrelacionados às cidades.

A enorme autonomia de que gozavam os concessionários de energiaelétrica na definição das grandes estruturas hidráulicas para aproveitamentoenergético praticamente neutralizava a eficácia que pudessem ter os tímidosinstrumentos administrativos de política urbana com respeito à ordenação doterritório das cidades. Os Municípios sempre puderam, dentro de suascompetências, agir sobre licenciamento de edificações, uso do solo e serviçosurbanos de uso local. No entanto, os instrumentos legais de que se utilizavameram isolados e limitados. Por outro lado, os sistemas de aproveitamentoenergético das águas envolviam decisões marcantes sobre as estruturasregionais e urbanas, dentro das competências delegáveis aos concessionáriosnos termos do próprio Código das Águas, que em seu art. 151 estabeleciaque, "para executar os trabalhos definidos no contrato, bem como para explorara concessão", o concessionário teria os seguintes direitos:

a) utilizar os terrenos de domínio público e estabelecer as servidõesnos mesmos e através das estradas, caminhos e vias públicas, comsujeição aos regulamentos administrativos;

b) desapropriar nos prédios particulares e nas autorizações preexistentesos bens, inclusive as águas particulares sobre que verse a concessãoe os direitos que forem necessários, de acordo com a lei que regula

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a desapropriação por utilidade pública, ficando a seu cargo aliquidação e pagamento das indenizações;

c) estabelecer as servidões permanentes ou temporárias exigidas paraas obras hidráulicas e para o transporte em distribuição da energiaelétrica;

e) construir estradas de ferro, rodovias, linhas telefônicas ou telegráficas,sem prejuízo de terceiros, para uso exclusivo da exploração;

f) estabelecer linhas de transmissão e de distribuição. (decreto 26.643/34, art. 151).

O poder de fato encerrado nesses direitos derivados que se outorgavaàs concessionárias de energia elétrica, em nome do objetivo de exploração douso energético das águas, excedia em muito, no plano dos efeitos, suafinalidade específica.

No caso de São Paulo, até a década de 50, o poder do sistemainstitucional de energia elétrica estendeu-se a múltiplos serviços - em quepese alguns recuos importantes, como os transportes públicos urbanosmunicipalizados - e seu domínio sobre as grandes obras hidráulicas da regiãoda capital foi o principal definidor da estrutura urbana do que viria a maistarde constituir a Região Metropolitana de São Paulo. O primeiro grandereservatório de abastecimento de água de São Paulo - Guarapiranga, de 1906- foi de fato construído com o objetivo de regularizar a vazão do Rio Pinheiros,afluente do Tietê a montante da usina de Santana de Parnaíba. Secundariamenteteria também a finalidade de abastecimento urbano. Mais tarde, em 1927,seria construída a barragem da Billings, que inicialmente suplementava opapel de regularização do sistema Guarapiranga em direção à foz do Pinheiros.Um pouco depois, o reservatório Billings passaria a deixar de cumprir essepapel e a ter suas águas exportadas em conduto forçado para a vertente oceânicaem direção a Cubatão, aproveitando o desnível favorável ao aproveitamentoenergético serra abaixo. Conforme apontado por Nucci (1993), essa derivaçãode águas tornava mais agudo o problema de escassez na região de São Pauloe que mais tarde - já em fins da década de 40 - seria agravado com a reversãode toda a Bacia do Alto Tietê para a vertente oceânica, sempre privilegiandoo objetivo de aproveitamento energético em Cubatão. Completando essaconcepção, o Sistema Cantareira, que importa água derivada da Bacia doPiracicaba na Região de Campinas, passaria, a partir da década de 60, a suprirgrande parte das necessidades de água para abastecimento urbano dametrópole. Ainda que concebido para abastecimento urbano, a lógica doSistema Cantareira também era energética, pois as águas importadas da Baciado Piracicaba, depois de utilizadas no abastecimento urbano, seriam lançadasna Bacia do Alto Tietê e agregariam uma vazão próxima a 30 m3/s a ser

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canalizada através do Pinheiros em direção à vertente oceânica. A alternativaa esse sistema, para suprir as necessidades de abastecimento da metrópole,seria a captação no próprio Tietê a montante da Penha, já considerada porSaturnino de Brito em 1926 como sendo a mais econômica, a que maispreservava a qualidade das águas do Tietê e a mais adequada a um crescimentourbano ordenado (Nucci, 1993: 25).

São marcantes, ao longo desse predomínio da lógica energética naestruturação hídrica de São Paulo, as ações de desenvolvimento urbano quetiveram lugar nas faixas desapropriadas em nome da operação do Canal doPinheiros, dando origem aos bairros mais nobres e às zonas de expansãourbana mais disputadas da cidade. São também marcantes os conflitos dalógica energética de armazenar ao máximo os excedentes hídricos para supriras necessidades na estação seca, contra as crescentes demandas de capacidadede reserva para controle de inundações na cidade que se urbanizava rápida edesordenadamente. Esse processo gerou uma crescente assimetria de poder ede eficácia dos instrumentos utilizados em seu exercício quando comparados,por um lado, à gestão setorial dos recursos, e, por outro, à gestão de corteurbano ou regional do conjunto de seus efeitos. Essa assimetria só viria a serde alguma forma reconhecida no arcabouço institucional brasileiro a partirda instituição das regiões metropolitanas pela lei complementar 14, de 1973.As entidades metropolitanas seriam criadas para organizar as políticas e osserviços de interesse comum, para cuja harmonização os Municípios vinhamse mostrando incapazes.

É também importante registrar que, nessa época, a hegemonia da lógicaenergética na gestão dos recursos hídricos começaria a ser também questionadaem vários foros profissionais. Em São Paulo já se havia instituído, desdeinício da década de 50 o DAEE - Departamento de Águas e Energia Elétrica,com uma visão de aproveitamento múltiplo dos recursos. Os problemas deirrigação, drenagem e abastecimento urbano no Estado se agravam e a entidade,que em seus primeiros anos de funcionamento havia se concentrado em formarquadros, passaria a ter uma atitude cada vez mais pró-ativa. Na esfera federal,a criação do Plano Nacional de Saneamento Básico - Planasa, como principalprograma do Sistema Financeiro do Saneamento, promoveria a reestruturaçãodos serviços de água e esgoto em um sistema de grandes companhias estaduais,tornando-os interlocutores de peso no debate sobre o uso da água.

No plano da integração com as políticas urbanas, entretanto, essareestruturação dos serviços públicos em grandes sistemas nacionais lideradospor empresas estatais - modelo inspirado na reforma administrativa do decreto-lei 200 - não contribuiria para melhorar o quadro de descontrole. Ao contrário,a maximização da eficiência pela lógica de cada setor e a escala cada vez

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mais abrangente de suas organizações territoriais tornaram os interlocutoreslocais ainda mais desaparelhados para fazer valer seus planos específicosdiante das ambiciosas metas setoriais. As entidades metropolitanas criadaspela lei complementar 14, que teriam essa função coordenadora no âmbitodas principais concentrações urbanas, que então já se mostravam extremamentecomplexas, não conseguiriam de fato exercê-la.

Uma série de razões pode ser evocada para explicar a incapacidade dasentidades metropolitanas em exercer o papel de coordenação ampla para queforam criadas. Cada um dos casos tem particularidades próprias e seriaincorreto afirmar que as entidades metropolitanas implicaram em fracassocompleto. De maneira geral, os problemas das entidades metropolitanasreferem-se à sustentação política de suas ações, uma vez que da forma comocriadas ficaram identificadas muito mais como parte da estrutura do Governoestadual do que como entidades de ação administrativa cooperada entre opróprio estado e os Municípios integrantes da Região Metropolitana. Outroproblema comum a todas é sua instituição na forma de entidades pára-estataisde direito privado, incompetentes para assumir funções públicas inerentes aopoder concedente de serviços comuns para as quais, em teoria, estariamcapacitadas em nome de suas funções originais de coordenação. Não obstante,registraram-se avanços nas capacidades de documentação, mapeamento earticulação legal e operacional de políticas específicas e, no caso de São Paulo,na proposta de uma legislação pioneira de proteção aos mananciais. Esta,ainda que tenha tido problemas em sua aplicação, teve o mérito de estabeleceros princípios de uma gestão ambiental estratégica sobre diferentes políticasurbanas e setoriais, com vistas à sustentabilidade de longo prazo dos recursoshídricos para abastecimento metropolitano. Outras entidades metropolitanase o Governo do Distrito Federal também estabeleceram normas restritivas àexpansão urbana em áreas de proteção a mananciais de água, em que peseproblemas generalizados na aplicação das mesmas.

3. Aberturas institucionais atuais

Hoje, as figuras de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas emicro-regiões estabelecidas pela Constituição federal de 1988 e a instituiçãoda Política Nacional de Recursos Hídricos, acompanhada pela criação doSistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos nos termos da leifederal 9.433 de 1997, abrem novos caminhos institucionais para a articulaçãoentre as políticas de recursos hídricos e de desenvolvimento urbano, emprincípio mais adequados que as figuras autoritárias e fortemente setoriais domodelo precedente.

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No entanto, mais do que no modelo anterior, é necessária a organizaçãoativa da sociedade em torno dos objetivos de um desenvolvimento urbanosustentado, criando motivações reais a uma atitude cooperativa por parte dosdiferentes agentes envolvidos. O controle social das políticas públicas emgeral, no modelo de oferta estatal que hoje mostra-se superado, era quase queexclusivamente centrado na estrutura decisória da oferta, na qual o Estadoera automaticamente identificado como único e legítimo representante dointeresse público. Hoje esta identidade já não é automática e os vários interessesdos grupos sociais afetados pelas políticas públicas devem ser clara ediretamente representados nos foros de decisão. O Estado reguladorcontemporâneo, ao não dominar mais os movimentos da oferta pela via dofinanciamento estatal direto, cria um relativo enfraquecimento do lado daoferta diante do lado da demanda e isso abre, para o segundo, um maior espaçono processo decisório dessas políticas (ver Guy e Marvin, 1996).

No Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos previstona lei federal 9.433 de 1997, as figuras dos comitês de bacias hidrográficasrefletem essa abertura para um novo alinhamento dos agentes envolvidos naspolíticas públicas, com maior espaço relativo para o lado da demanda. Háque se recordar, porém, que dentro do próprio lado da demanda mantémassimetrias importantes no que respeita a força relativa dos agentesrepresentados - por exemplo, grandes consumidores x usuários de baixa renda- e que o espaço institucional aberto representa apenas um potencial departicipação. Se este potencial não for aproveitado e os agentes da sociedadecivil não assumirem uma atitude de participação ativa, o controle social nãoterá lugar e, nesse caso, o modelo contemporâneo poderá resultar mais excludenteque o anterior.

Do ponto de vista da organização da política urbana, não se verificouaté o momento o mesmo progresso institucional do sistema de recursoshídricos. A Constituição federal estabeleceu os princípios da política urbanae as figuras inovadoras de regionalização já citadas, ampliando as competênciasdos Estados federados e dos Municípios. No entanto, a legislaçãocomplementar federal relativa aos instrumentos da política urbana não foi atéhoje aprovada, em que pese o primeiro projeto de lei sobre a matéria ter sidoapresentado anteriormente à promulgação da Constituição federal, em 1983(o PL 775 da Câmara dos Deputados). Em que pese a ausência de um arcabouçonormativo nacional, várias iniciativas de Estados e Municípios já progrediramno sentido de criar entidades administrativas metropolitanas, de aglomeraçãourbana ou de micro-regiões, em muitos casos pautadas por dispositivos dasconstituições estaduais que prevêem estruturas decisórias mais democráticase equilibradas no que respeita a participação dos Municípios.

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No debate que se abre hoje acerca dos planos de bacia em áreasintensamente urbanizadas, é possível antever perspectivas concretas de umaarticulação entre os processos decisórios de política de recursos hídricos e dedesenvolvimento urbano.

4. Principais interações

A estruturação dos planos de bacia hidrográfica no Estado de São Paulotem evidenciado de forma crescente as interações entre os processos dedesenvolvimento urbano e de gestão dos recursos hídricos. Em estudo recentedesenvolvido por pesquisadores da Universidade de São Paulo para o Comitêda Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, várias interações importantes emergiram,a começar pela própria interpretação de informações demográficas. A seguirsão relatadas algumas delas, não tanto pelo interesse do caso em si mesmo,mas pela aproximação das lógicas de gestão urbana e de recursos hídricos.

É fato conhecido o declínio das taxas de crescimento demográfico naRegião Metropolitana de São Paulo a partir da década de 80. As taxas médiasde crescimento são relativamente baixas e em si mesmas sugeririam que osprincipais processos de degradação dos mananciais de superfície, na periferiageográfica da Região, estariam também em declínio. Uma análise maisdetalhada dos movimentos demográficos, entretanto, mostra que as taxasmédias relativamente baixas resultam da combinação de decréscimos absolutosde população em áreas centrais mais nobres com altas taxas de crescimentolocalizadas nos bairros periféricos de menor renda. Na Figura 1, observa-se alocalização relativa do crescimento.

A distribuição da renda é mostrada na Figura 2, evidenciando-se aconcentração de pobreza nos bairros periféricos. A distribuição do emprego -medido em postos de trabalho por 100 habitantes - segue tendência inversa àda renda, no sentido de que as oportunidades de emprego concentram-sepróximas aos locais de habitação das faixas de renda média e alta (Figura 3).

Uma série de elementos de dinâmica urbana pode ser detectada a partirda análise dessas informações. Primeiro, que o processo de expansão damancha urbana se dá a partir de um movimento centrífugo da população demenor renda, agravando as difíceis condições de expansão dos serviços urbanospara localizações cada vez mais distantes. Segundo, que o padrão delocalização relativa do emprego obriga a uma grande mobilidade da populaçãode menor renda em busca do trabalho, forçando uma necessidade de ampliaçãoda oferta do sistema viário e de transportes. Essas duas tendências combinadas

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Figura 1: Região Metropolitana de São Paulo. Crescimento demográfico 1991-96.

Fonte: IBGE. Contagem de População, 1996.

Fonte: Metrô - SP. Pesquisa de Origem e Destino, 1997.

Figura 2: Região Metropolitana de São Paulo. Distribuição de Renda.

Figura 3: Região Metropolitana de São Paulo. Distribuição do Emprego.

Fonte: Metrô - SP. Pesquisa de Origem e Destino, 1997.

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contrastam com o padrão de crescimento suburbano de grandes cidadesamericanas e de algumas européias, nas quais se observa a formação de novoscentros de localização periférica, com relativa autonomia no que respeita aoferta de empregos. O relativo decréscimo da população em áreas centrais,associado à localização predominantemente central dos novos empreendimentosimobiliários licenciados pela prefeitura, revela uma outra face perversa docrescimento metropolitano: as novas áreas construídas pelo mercadoimobiliário destinam-se basicamente à modernização e substituição do estoqueconstruído existente para os estratos de renda mais alta , enquanto a enormeexpansão periférica que ocorre sobre as áreas de proteção a mananciais se dáde forma espontânea, com construções que não atendem as posturasurbanísticas e de edificações válidas nas áreas centrais. À irregularidade daocupação de área protegida soma-se a precariedade dos padrões de ocupaçãourbana e de edificação, resultando em ocupações extremamente agressivas -do ponto de vista ambiental - aos mananciais metropolitanos.

Não se trata apenas da poluição concentrada devido às cargas de esgotolançadas aos mananciais, mas principalmente dos processos de poluição difusaassociados à exposição descontrolada de solos de alteração - tanto em obrasviárias como de edificações - e à expansão desordenada de um modelo detransporte sobre pneus que satura todo o sistema viário da metrópole ereproduz, para cada vez mais longe, o mesmo padrão caótico de expansão damalha urbana. Cabe questionar, diante dessas evidências, a eficácia dalegislação restritiva à ocupação de mananciais. A expansão periférica da cidadeocorre porque as áreas mais centrais são objeto de disputa acirrada entre osdiferentes segmentos do capital imobiliário, levando a uma escalada de preçosde terreno. É inviável para uma família pobre comprar ou alugar uma habitaçãonas maioria da áreas urbanas regulares da metrópole. Por outro lado, airregularidade da ocupação da zona protegida dá origem a uma série deprecariedades que ameaçam ainda mais o sistema ambiental. A saída estáprovavelmente na formulação de um novo pacto social urbano, dentro doqual se reconheçam formas adequadas de urbanização nas zonas protegidas ese criem estímulos à descompressão da demanda habitacional.

A nova legislação de proteção e recuperação dos mananciais do Estadode São Paulo (lei estadual 8.966/97) abre caminho para esse novo pacto e éconsentânea com a forma de organização do sistema institucional de recursoshídricos no que respeita a participação dos municípios e de entidades dasociedade civil no processo de gestão de cada sub-bacia. O sistema deplanejamento e gestão previsto naquela lei privilegia as Áreas de Proteção eRecuperação dos Mananciais - APRM como unidades de gestão e as vinculaao Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos - SIGRH, "...

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garantida a articulação com os Sistemas de Meio Ambiente e DesenvolvimentoRegional" (art. 5o).

Dentro desse arcabouço institucional é possível redirecionar e integrarpolíticas-chave como habitação, saneamento, sistema viário e transporteurbano, a partir de uma avaliação ambiental ampla de seus impactos,revalorizando o papel da gestão metropolitana. As interferências são muitase, para ficar nas mais evidentes, relacionamos as que seguem:

• Concentração de população (habitação informal) e poluiçãoconcentrada e difusa sobre os mananciais de superfície por força daexpulsão das áreas centrais mais nobres;• Padrões urbanísticos e normas de edificações voltados à absorção deáguas pluviais;• Avenidas de fundo de vale e aumento de áreas sujeitas a inundações;• Lixo e suas interferências sobre os serviços de drenagem e desaneamento básico;• Edificações (posturas) e padrões de consumo de água de abastecimentopúblico;• Transporte urbano de massa (sobre trilhos ou corredores fechados deônibus) com elementos estruturantes de acesso e expansão, emcontraposição à simples expansão da malha viária;• Inibição de obras viárias em áreas de expansão periférica, inclusivemediante oferta alternativa de braços de transporte de massa;• Incentivo ao adensamento de áreas centrais como descompressão dedemanda à expansão periférica;• Expansão descontrolada da mancha urbana e baixa pressão do sistemade abastecimento de água nas periferias, potencializando ocorrênciasde contaminação cruzada;• Legislação urbanística restritiva e expulsão da população pobre paraas periferias.

As interferências exemplificadas mostram casos de efeitos positivosou negativos, resultados de processos espontâneos ou induzidos. Não importamuito neste momento classificá-las, mas indicar que existem e que envolvemesferas de decisão diferenciadas. Muitas das ações de âmbito metropolitanoimplicam superposição com competências dos Municípios e por isso énecessário que se criem condições de cooperação ativa entre os agentes doprocesso. A simples imposição normativa de limites tem se mostrado poucoeficaz porque a fiscalização não é e nunca será suficiente para obrigar ocumprimento da lei quando os benefícios relativos ao custo da restrição nãoforem minimamente apropriáveis pelos que pagam esse custo.

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5. Conclusões. Perspectivas de uma nova cooperação

A evolução mais recente do sistema normativo em todo o mundo temacolhido novas formas de cooperação que incluem a participação direta deentidades representativas dos agentes envolvidos. O sistema de gestão dosrecursos hídricos, da forma como conceituado hoje no Brasil, já contemplaessa possibilidade e o sistema de gestão urbana poderá vir a fazê-lo.

Não se trata de reeditar o laissez-faire, como em muitas das formulaçõesinstitucionais pós-90, que enxergam no mercado virtudes redistributivas e dejustiça social jamais demonstradas. Trata-se de reconhecer claramente aexistência de interesses conflitantes e de abrir oportunidades para o debateaberto dos mesmos, com vistas a soluções de compromisso que todosrespeitem. A regulação ambiental baseada exclusivamente no jogo de mercadoé inviável porque, embora os efeitos conjuntos dos processos envolvidosafetem a cada membro da coletividade, não existe benefício individualmentetangível advindo da atitude de poupar o ambiente (ver Viscusi et al., 1995).Por outro lado, a simples negação da existência de interesses conflitantesmediante a imposição de normas pouco realistas de controle ambiental leva aum estado generalizado de desobediência, em alguns casos mais deletério aoambiente que se quer preservar do que a própria ausência de normas.

A experiência já acumulada no Brasil em gestão urbana e de recursoshídricos permite visualizar as perspectivas de uma nova cooperaçãoinstitucional que venha a capitalizar os acertos e a evitar os erros do passado.O excessivo formalismo e a dualidade das relações entre Estado federado eMunicípio acabaram por criar impasses de difícil resolução no manejo dossistemas ambientais em escala urbana. A existência da norma mais ampla épor si mesma indicadora de que o equilíbrio ótimo para preservação ouaproveitamento de recursos naturais, do ponto de vista do conjunto, não refletenecessariamente a soma dos ótimos de cada uma das partes - os Municípios.Como os processos decisórios são baseados em uma relação dual entre asesferas envolvidas, freqüentemente chega-se a impasses insolúveis.

Por exemplo, na definição de áreas de expansão urbana para ocupaçãohabitacional de baixa renda, é do maior interesse de cada Município promovera ocupação das áreas mais periféricas e de menor preço, a despeito de estaremou não contidas em zona de proteção ambiental de jurisdição metropolitanaou regional. Nesse sentido, não existe benefício internalizado pelo Municípiopara inibir a ocupação. A eventual imposição de penalidades aos Municípiosnão conformes é dificultada pela deficiência da fiscalização e apuração deresponsabilidades objetivas, a par de sua ineficácia quanto à possível reversãodos processos de ocupação não conforme.

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No novo arcabouço institucional que se venha a criar com participaçãoativa de entidades da sociedade civil, os impasses poderão ser resolvidosexatamente pela presença da terceira parte, que além de desempatar os conflitospoderá exercer, juntamente com a outra parte vencedora, a fiscalização sobrea efetiva observância do acordado por todos, inclusive os que foram votovencido. Isto não significa que cada uma das partes do sistema tripartite sejainternamente uniforme. Cada uma delas tende a refletir suas divergênciasinternas e estas tenderão a ser grandes entre as entidades que vierem a formara parte da sociedade civil. Longe de ser um inconveniente, esta pluralidade éa garantia de estabilidade para as políticas que venham a emergir desses foros.A abertura do sistema institucional de recursos hídricos a essa formação tri-partite é inovadora e alinhada com um novo papel das organizações dasociedade civil nas políticas públicas. O sistema institucional de política ur-bana no Brasil, ainda em muito influenciado pelos instrumentos deplanejamento e controle do Estado desenvolvimentista, poderá ganhar novavida em uma associação com o de recursos hídricos. Reciprocamente, este,ainda em fase de estruturação, poderá abeberar-se da experiência acumuladana aplicação dos instrumentos de política urbana, que, a despeito das muitasfrustrações sofridas em seu percurso, nem de longe correspondem ao fracassoabsoluto que os arautos da "desregulamentação" pretendem ter havido.

Bibliografia

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Perfil curricular do autor

Ricardo Toledo Silva – [email protected] – é arquiteto, Mestre, Doutore Livre Docente pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.Pós-graduado pelo Politecnico di Torino (Itália) e pelo Bouwcentrum(Holanda). Professor Associado da FAUUSP e Coordenador do Núcleode Pesquisa em Informações Urbanas da USP. Tem coordenado convêniosde pesquisa com a União federal na área de saneamento e assessoradoentidades federais, estaduais e municipais em política e serviços urbanos.Foi pesquisador da Divisão de Edificações do IPT (São Paulo), Secretáriode Desenvolvimento Urbano do Ministério da Habitação, Urbanismo eMeio Ambiente e Secretário-Geral Adjunto do Ministério da Habitaçãoe do Bem-Estar Social.

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GESTÃO DA DRENAGEM URBANA

Rubens Terra Barth

1. Introdução

Este artigo apresenta alguns conceitos de medidas de controle,planejamento e do estágio atual da drenagem, incluindo recentes avanços daárea, com o intuito de evidenciar formas de melhoria da gestão da drenagemurbana, entendendo-se gestão de uma forma ampla, envolvendo, além dosaspectos físicos, os legais, os institucionais e econômico-financeiros.

Apresentam-se, inicialmente, as características principais das medidasde controle usuais na drenagem urbana, identificando os mecanismos degerenciamento que podem orientar a aplicação de cada uma destas medidas.

Comentam-se, a seguir, algumas das características do estágio atual dadrenagem urbana em grandes cidades, tomando-se com exemplo o caso daRegião Metropolitana de São Paulo (RMSP), onde existem sérios problemasde inundações, identificando as principais deficiências encontradas. Osrecentes avanços no tratamento dos conceitos de macrodrenagem na RMSPtambém são apresentados, uma vez que representaram uma mudança na formade encarar os problema da drenagem.

São apresentados, então, os conceitos principais dos planos diretoresde drenagem urbana, que são mecanismos da gestão da drenagem, comotambém são apresentados os escopos de dois planos diretores recentes ecomentadas algumas de suas características nas áreas de elaboração eimplementação, com o intuito de identificar sugestões para medidas deaprimoramento das deficiências e limitações encontradas.

Ao final do artigo são apresentadas sugestões para a melhoria dodesempenho da drenagem urbana, em consonância com a gestão dos recursoshídricos prevista na lei 9.433/97 .

2. Medidas de controle na drenagem urbana

As medidas de controle das águas superficiais de uma bacia hidrográficana drenagem urbana são aquelas que pretendem conciliar as necessidades de

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expansão urbana com as funções que os dispositivos naturais de uma baciaexercem no ciclo hidrológico, ou seja, a capacidade de transporte earmazenamento dos canais, a capacidade de retenção das depressões, apermeabilidade do solo e a cobertura vegetal (infiltração e retenção), oarmazenamento das várzeas, etc.

São utilizadas nesse controle um sem-número de medidas para resolvere prevenir os problemas de qualidade e quantidade das águas superficiais. Odesafio principal é encontrar, para uma bacia hidrográfica em particular, amelhor opção do elenco de medidas ditas estruturais e não-estruturais.

As medidas estruturais são as que, tipicamente, envolvem a execuçãode estruturas públicas de grande e médio porte , dependendo de um trabalhode planejamento de extenso a médio prazo e necessitando de projeto eaprovação formal do Estado, Município e demais entidades envolvidas. Essasmedidas dependem da contratação de empreiteiras e requerem quantias demoderadas a grandes, além do estabelecimento de procedimentos demanutenção e a alocação de verbas para tal.

As medidas não-estruturais, usualmente, não envolvem grandesestruturas, podendo ser tomadas rapidamente, por indivíduos ou porassociações e entidades privadas e, por vezes, requerem pequenoinvestimento. Por outro lado, o controle do uso do solo, que é uma das medidasnão-estruturais mais importantes, depende de legislação e de fixação de normase critérios técnicos sobre construção de edificações, uso e parcelamento dosolo urbano.

Em geral, as medidas não-estruturais tendem a ser mais adequadas paraas áreas não desenvolvidas e as estruturais a áreas já urbanizadas. Ou seja, asnão-estruturais tendem a ser preventivas, enquanto as estruturais tendem aser mitigatórias.

Nas Tabelas 2.1 e 2.2, a seguir, são indicadas as principais medidasestruturais e não-estruturais a serem consideradas.

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Tabela 2.2 - Medidas não estruturais típicas. Conceitos adaptados de Walech (1986) e Maksimovic (1999)

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3. Macrodrenagem da RMSP

Em sua vivência profissional, o autor teve a oportunidade de constataro estado em que se encontram a maioria das bacias dos córregos urbanos naRegião Metropolitana de São Paulo (RMSP).

Na Tabela 3.1, a seguir, tem-se uma compilação dos problemas maisfreqüentemente encontrados em bacias urbanizadas e em desenvolvimento.

Permeia este quadro geral de falta de coordenação, de planejamento eaplicação de conceitos equivocados de tratamento da drenagem urbana, umafalta de investimentos crônica para planejamento, projeto e implantação demedidas estruturais e não estruturais.

Este quadro geral das sub-bacias dos afluentes dos principais cursosd’água conduziu a inundações sistemáticas na Região Metropolitana de SãoPaulo, em especial dos seus cursos d’água mais importantes.

De acordo com levantamentos da Emplasa, em 1983, por conta dessasdeficiências, ocorreram na cidade de São Paulo 420 pontos de inundação,atingindo uma área de 22,7 km2 e 76.400 habitantes. Em 1997, de acordo comlevantamentos do IPT, existiam disseminados na mancha urbana cerca de500 pontos de inundação.

Nos últimos anos tem-se disseminado no meio técnico a idéia de que énecessária uma nova mentalidade de combate as inundações.

Na Tabela 3.2, a seguir, são apresentadas as principais conclusões detrês documentos elaborados por entidades distintas, o que pode ser encaradocomo o culminar de um processo de amadurecimento no tratamento dadrenagem urbana na RMSP.

Tabela 3.1 - Problemas em bacias urbanas

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

O documento produzido sob os auspícios da Câmara Municipal de SãoPaulo foi elaborado no período de abril a setembro de 1995, a partir deseminários, para os quais foram convidados especialistas das áreas deUrbanismo, Drenagem Urbana, Legislação, Defesa Civil, o público emgeral e presidentes de associações de bairro. Esse documento tem umcaráter essencialmente informativo e apresenta o consenso entre osparticipantes acerca das causas, conseqüências e medidas mitigadorasnecessárias ao combate às inundações da RMSP.

Tabela 3.2 - Comparação dos Conceitos

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

O relatório da Prefeitura de São Paulo foi elaborado no período dedezembro de 1994 a fevereiro de 1996, por um grupo inter-secretarial,coordenado pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, a partir de umadecisão do prefeito em aderir aos conceitos de desenvolvimento sustentado,advindos da ECO 92, ocorrida no Fórum Global, realizado em Manchester,Inglaterra, em 1994. Esse documento aborda o Desenvolvimento Urbano eSocial, a Qualidade Ambiental e a Estrutura Econômica e Administrativa doMunicípio. A questão da Drenagem Urbana foi inserida no item da qualidadeambiental e o tratamento dado à questão foi no sentido de identificar as causas,os objetivos a serem alcançados e propor ações de combate às inundações.

Os documentos do DAEE analisados foram elaborados no período deoutubro de 1993 a dezembro de 1995 por um consórcio de empresas deconsultoria de engenharia e é mais geral, denominando-se: Plano Integradode Aproveitamento e Controle dos Recursos Hídricos das Bacias Alto Tietê,Piracicaba e Baixada Santista (HIDROPLAN). Esse plano teve por objetivoidentificar os usos da água, os conflitos existentes e propor uma série demedidas estruturais e não-estruturais para contornar os problemas e atenderas demandas. Um dos problemas apontados diz respeito às inundações daRMSP. Neste aspecto, constam do plano um diagnóstico das causas dasinundações, a proposição de obras mitigatórias e a consecução de uma sériede medidas não-estruturais.

Tem-se, a seguir, uma comparação dos aspectos considerados maisrelevantes desses trabalhos.

O conjunto de medidas propostas nos três documentos representa umamudança de ênfase, passando-se de um conjunto de medidas estruturais,mitigadoras, para um enfoque que considera um amplo leque de medidasestruturais e não-estruturais.

Algumas das medidas previstas são importantes na gestão dos recursoshídricos. São elas:

• controle do uso do solo na bacia hidrográfica como um todo, uma vezque os principais problemas da drenagem urbana estão associados àforma descontrolada com que foi feita a ocupação do solo, causando aserosões e conseqüente assoreamento das várzeas dos rios e córregosna RMSP, e os problemas graves de inundação nas suas várzeasinvadidas;

• a necessidade de modificar a forma de encarar a drenagem urbana,considerando um amplo leque de medidas não somente estruturais no

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

combate às inundações, o que significa que as medidas que vêm sendotomadas para o combate às inundações (em geral a simples canalização),têm sido, em alguma medida, ineficazes;

• a necessidade de realização de testes em bacias-piloto paraverificar a eficiência de medidas que preservem ou aumentem acapacidade de retenção, infiltração e armazenamento de águas pluviais,tais como poços filtrantes, reservatórios de retenção e cisternas, pisose pavimentos permeáveis, etc., o que contribuiria para o estabelecimentode critérios necessários à elaboração de dispositivos legais eregulamentos tais como desincentivos à impermeabilização do solo eincentivos tributários para manutenção de áreas permeáveis;

• a questão principal levantada com relação à legislação em vigor,no que concerne ao disciplinamento do uso e ocupação do solo epreservação das várzeas e das áreas de preservação permanente ao longodos cursos d’água, diz respeito à sua aplicabilidade devido àsimplicações sociais extremamente graves (além da modernização eadequação da legislação, para evitar ocupação desordenada e irracionaldas áreas sujeitas a inundação que hoje ocorre, são necessárias medidaspara resolver os problemas de habitação e a questão social associada àsinvasões das várzeas).

Uma última questão e talvez a mais importante diz respeito àenorme demanda por medidas de mitigação, requerendo grandes investimentos.Além das verbas obtidas através de financiamento, é necessário obter umafonte de receita que cubra os custos das medidas de mitigação. A cobrançapelo uso da drenagem urbana parece ser, portanto, uma medida necessária.

4. Planejamento. Planos de macrodrenagem

Como conseqüência natural do processo de conscientização descritono item anterior, conduziu-se um processo de planejamento da drenagem ur-bana, que é descrito a seguir.

Algumas observações correlacionando a inter-relação do planejamentourbano, dos recursos hídricos e da drenagem são oportunas. Segundo Krafta(1999), os modelos de decisão emergentes na gestão urbana indicam a direçãoda pluralidade de agentes decisórios, com o enfraquecimento do Estado comoagente condutor das políticas urbanas, tornando os planos elaborados peloEstado, com caráter normativo, mais ou menos rígidos, francamente incapazesem operar no contexto político atual.

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

Esta também é a visão do planejamento dos recursos hídricos presentena lei 9.433/97, que é fruto de um intenso debate e amadurecimento deprincípios de planejamento, que coincidem com tendências da práticainternacional, deixando a entender que estamos no caminho certo.

Na Tabela 4.1, a seguir, é traçado um paralelo entre os vários tipos deplanejamento.

Integrando a gestão da drenagem urbana, os seus planos diretoresdevem constituir-se em um conjunto abrangente de medidas estruturais enão-estruturais, com a finalidade de combater e mitigar os problemas causadospelas inundações em uma determinada área.

4.1 Princípios para a elaboração de planos diretores de drenagemurbana

Planos diretores de drenagem urbana devem ser necessariamenteelaborados sob medida para uma determinada bacia hidrográfica, mas aexperiência demonstrou que, se forem seguidos alguns princípiosfundamentais, as chances de sucesso aumentam significativamente. A seguir,são apresentados alguns dos pontos fundamentais para a elaboração de umplano diretor de drenagem urbana.

Tabela 4.1 - Comparação do Planejamento Sectorial

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A unidade de planejamento a ser adotada é a bacia hidrográfica, que éa unidade afetada pelo ciclo hidrológico. No caso de se ter uma baciaabrangendo vários Municípios, admite-se subdividi-la, desde que as medidasde planejamento não afetem a bacia do outro Município a jusante ou a montanteda área de interesse. Esse princípio está firmemente estabelecido na PolíticaNacional de Recursos Hídricos.

As condições de escoamento dos corpos d’água receptores, dos pontosde vista de quantidade e qualidade, dependem grandemente do uso do solo,já que, para uma dada precipitação, a taxa do escoamento superficial e acontribuição concentrada e difusa de poluentes estão intrinsecamente ligadasao seu uso. As condições de erosão também dependem grandemente dascondições do uso do solo, bem como a sua conseqüência, o assoreamento dasáreas baixas, em especial dos rios, córregos, canais, galerias, etc. Portanto, aconsideração das características atuais do uso do solo e a orientação para asua ocupação futura devem ser um princípio de fundamental importânciana elaboração de planos diretores de drenagem urbana.

Durante o processo de elaboração do plano, deve-se prever uma intensainteração com a comunidade para se obter apoio para a implementação dasmedidas propostas, pois a experiência tem demonstrado que um plano diretorque não prevê essa interação não obtém apoio para a sua implementação.Esse princípio, de participação de todos os atores interessados, estáconsubstanciado na formação dos Comitês de Bacia.

As soluções a serem adotadas nos planos diretores devem incorporaros recentes avanços da drenagem urbana moderna, considerando não só osaspectos quantitativos, mas também os de qualidade de água.

Para possibilitar a utilização de medidas não-estruturais e não-convencionais no Brasil, deve ser feita uma capacitação tecnológica séria e aadaptação das medidas às condições brasileiras. Essas medidas, apesar deconstarem de inúmeros textos técnicos e, mesmo, de planos, não têm sidoadotadas, por deficiências de comunicação e, fundamentalmente, por seremconsideradas medidas de segunda ordem, uma vez que existe uma enormedemanda reprimida das medidas estruturais.

É fundamental, portanto, que sejam alocados recursos necessários aodesenvolvimento de tecnologia autóctone, para adequar as medidas não-estruturais e não-usuais à realidade brasileira, identificando a sua eficiência ecustos de implantação e manutenção. Estes fatores constituem uma necessidadepara se passar, efetivamente, da teoria à pratica.

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4.2 Uma visão geral dos planos diretores de drenagem urbana

Um plano diretor é composto de duas etapas básicas, que são: o processoa ser seguido para se chegar com sucesso ao produto e o produto, isto é, oplano diretor. O plano diretor,propriamente dito, é compostode uma série de documentoscontendo recomendações para aadoção de medidas estru-turaise não-estruturais. Também devefazer parte um plano deimplementação, definindo quemsão os res-ponsáveis, como equando os elementos devem serimple-mentados.

Além de um produto úni-co, o plano diretor deve serencarado como um processo,que deve seguir uma meto-dologia apropriada para sechegar à consecução do planodesejado. Na Figura 4.1, tem-se indicado o processo deelaboração de um plano diretor.

A formulação de alter-nativas é o passo mais impor-tante na elaboração de um planodiretor. Essa fase é um esforçocriativo e sistemático, onde asalternativas são elaboradasconceitualmente, analisadas e,se promissoras, desenvolvidas.

As alternativas estudadasdevem ser: conceitualmenteconsistentes (atendem aosobjetivos); tecnicamente exe-qüíveis (deve ser efetuado ump r é - d i m e n s i o n a m e n t o ) ;economicamente viáveis (deve

Figura 4.1 - O Processo para a elaboração de um planodiretor, segundo Helveg e Grigg ( 1985 ) apud Walech( 1989 ).

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ser verificado se os benefícios superam os custos); ambientalmente aceitáveis(devem ser determinados os impactos negativos e positivos); viáveisfinanceiramente (deve ser verificado se a alternativa pode vir a serfinanciada); legalmente aceitáveis e adminis-trativamente possíveis (deve serverificado se existem barreiras legais ou administrativas intransponíveis);politicamente aceitáveis (deve ser avaliado o seu potencial de aceitabilidadepolítica).

Exemplos de critérios de julgamento das alternativas são: os custosde construção; o benefício econômico líquido; a razão benefício/ custo; ograu de prevenção dos danos; o grau de utilização da várzea; o grau deagressividade ao meio ambiente; o grau de atendimento à comunidade; o nívelde atendimento geral dos objetivos; etc..

Os custos e benefícios são quantificados monetariamente, através dovalor de mercado dos bens e serviços relacionados a cada um. Os custospodem ser facilmente obtidos através da quantificação das obras e serviçosenvolvidos. Para a definição dos benefícios do controle das inundações éfeita uma simulação do mercado do controle das inundações. A simulaçãoconsiste na verificação de quanto os indivíduos atingidos estariam dispostosa pagar para prevenir os danos que as inundações provocam. Essa quantiaseria, no máximo, igual ao dano esperável na área.

A correta avaliação dos danos de uma inundação é uma tarefa que seconstitui em uma das principais dificuldades para a utilização da análisebenefício-custo no planejamento de medidas de controle de inundações. Issodecorre do grande número de fatores que afetam os danos, cuja importância emagnitude variam para cada área afetada, dificultando uma avaliaçãoabrangente e precisa de todos os danos resultantes.

Diferentes abordagens e detalhes dessa metodologia são encontradasem James and Lee (1971), Tucci (1993) e Barth (1997). Deve-se ter emmente que esta metodologia carece de adaptação à realidade brasileira,sendo uma linha de pesquisa a ser desenvolvida.

Escolhida a alternativa mais apropriada, considerando entre outros oscustos e benefícios econômicos, no plano diretor deve ser indicado o quedeve ser feito, quando, quem tem a responsabilidade de o implantar e comoele deve ser implantado, incluindo o financiamento.

De todos os passos de um plano diretor, a sua implementação é a quetraz mais incertezas. Algumas características, dentre outras, do processo dedesenvolvimento do plano, colaboram para a sua implementação. São elas: aclareza nos objetivos e critérios; a sua qualidade técnica; o grau de

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envolvimento das diversas entidades e o público conseguido durante o processode elaboração do plano diretor; a coordenação entre o Governo e as entidadesenvolvidas, etc.

4.3 Exemplos de planos diretores de drenagem urbana

4.3.1 Plano do Município de Santo André

No Município de Santo André, o início do processo de mudança dagestão da drenagem urbana ocorreu devido à magnitude dos problemasexistentes, ao esgotamento da capacidade de investimento da administraçãodireta, à necessidade de uma maior eficiência na aplicação de recursos,integrando a drenagem ao sistema de saneamento da cidade e de criarinstrumentos e alternativas para a obtenção de recursos para implantação emanutenção dos sistemas de drenagem.

Para conseguir equacionar os problemas existentes, foi proposta umamudança institucional quedestinou ao SEMASA, órgãoresponsável pelo saneamentoambiental do Município, adrenagem urbana, através dalei 7.469, de 22/02/97 (Marcon,1999).

Com essa mudançainstitucional foram viabiliza-dos os recursos para a elabo-ração do Plano Municipal deDrenagem do Município deSanto André, que foi desen-volvido em um período de12 meses a um custo decerca de R$ 1 milhão, inclu-indo o cadastramento detodas as galerias, canais ecórregos do Município.

As atividades previs-tas no edital foram agluti-nadas nas etapas indicadas na

Figura 4.2 - Principais etapas de desenvolvimento do PlanoMunicipal de Santo André.

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

Figura 4.2, encontrando-se o plano atualmente em fase de implementação.Pode ser considerado que, em linhas gerais, o escopo proposto segue ascaracterísticas previstas na elaboração de planos desta natureza, lembrando-se ainda que foram feitas apresentações e consultas à comunidade para colhersubsídios e divulgar o plano, o que é uma das características mais importantespara viabilizar a sua implementação.

Verificou-se no processo de diagnóstico realizado que as demandaspor medidas estruturais eram significativas e que as medidas não-estruturais,que são medidas mais aplicáveis a áreas com desenvolvimento urbanoincipiente, teriam aplicação limitada, já que somente 15% da área das baciashidrográficas estudadas tem alguma área livre e várzeas desocupadas.

Para a avaliação econômica simplificada das alternativas de mitigaçãodas inundações consideradas utilizou-se a fórmula de James, apud Tucci (1993).Em vários dos casos analisados os danos evitados justificavam medidas de proteçãopara uma vazão de 10 anos de período de retorno, comparável com um planodesenvolvido para a região central da cidade de Fort Collins (1993), EUA.

Entre as atividades não-estruturais previstas no plano destacam-se: apreservação das várzeas ainda existentes dos córregos, o controle da erosãode encostas e assoreamento dos córregos e a educação ambiental.Com relaçãoa este último item, durante o ano de 1999, realizou-se um trabalho de educaçãoambiental nas escolas de segundo grau, com enfoque em drenagem ur-bana. (Vaz Jr., 1999).

Algumas características do Município e do Plano, baseadas em umseminário apresentado por Marcon (1999), são listados a seguir: extensão domunicípio - 174,38 km2; população - 662 mil habitantes; orçamento munici-pal de 1999 - R$ 524 milhões; orçamento do SEMASA em 1999 - R$ 89,8milhões (saneamento, drenagem e meio ambiente); investimentos anuais emoperação e manutenção da rede de drenagem - R$ 3,44 milhões; investimentosprevistos em drenagem urbana no período 1997-2000- R$ 26,0 milhões; totalde investimentos previstos no plano diretor - R$ 60,0 milhões.

Para viabilizar os investimentos em drenagem no Município estão sendofeitas as seguintes propostas de obtenção dos recursos: a cobrança decontribuição de melhoria; a utilização de recursos tributários e a obtenção definanciamentos.

Os recursos para a operação e manutenção da rede de drenagem estãosendo obtidos de uma taxa de drenagem, atribuída segundo o seguinte critério:a partir do total mensal gasto com operação e manutenção da rede de drenagemé cobrada do usuário do sistema uma taxa que é proporcional à contribuição

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volumétrica média mensal de cada imóvel ao sistema. A contribuiçãovolumétrica mensal do imóvel ao sistema é obtida através da chuva médiamensal, levando em conta as áreas permeáveis e impermeáveis do imóvel. Ovalor dessa taxa mensal para um imóvel típico é de cerca de R$ 1,00.

4.3.2 Plano de macrodrenagem da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê

A Região Metropolitana de São Paulo, RMSP, que pertence à BaciaHidrográfica do Alto Tietê, possui 38 Municípios, dos quais 19 são conurbados,correspondendo a uma área de 8.053 km2 , representando 3,2% da área do Estado,e é responsável por 25% da renda nacional e 65 % da Paulista.

Essa área é assolada por inundações, sistematicamente, devido a váriasquestões, entre outras: invasão das várzeas; capacidades inadequadas dascanalizações, galerias, bueiros; pontilhões sobre córregos com alturainsuficiente; critérios inadequados de projeto da drenagem superficial; uso eparcelamento do solo inadequados, causando erosões e assoreamentos;poluição dos córregos e rios.

Para solucionar estes problemas está sendo elaborado o Plano Diretor deMacrodrenagem da Bacia do Alto Tietê, cujas características foram definidas apartir de termos de referência elaborados pelo Departamento de Águas e EnergiaElétrica de São Paulo (DAEE), com a participação da Câmara Técnica deDrenagem do Comitê de Bacia do Alto Tietê. Trata-se de um conjunto de diretrizesque constituem o consenso da comunidade técnica, estando de acordo com ospreceitos das leis Estadual e Federal de recursos hídricos.

Na análise da Figura 4.3 verifica-se que o fluxograma das atividadesprincipais previstas nesse plano, cujo desenvolvimento está a cargo doconsórcio Enger-Promon-CKC, é bastante avançado e as expectativas dedesenvol-vimento do plano são promissoras.

Por iniciativa conjunta do DAEE, Comitê da Bacia da Alto Tietê eCâmara Técnica de Drenagem, para ajuste dos rumos do plano, levando emconta o interesse dos vários grupos sociais e instituições, têm sido feitasreuniões, seminários e workshops que têm contribuído para a coleta desubsídios e divulgação do plano, o que, segundo a prática internacional, sãoelementos importantes para conseguir apoio para a viabilização daimplementação de um plano de macrodrenagem.

Após 12 meses de trabalhos, foi efetuada a coleta e a análise de todasas informações disponíveis acerca do sistema de drenagem existente na RMSPe realizado o diagnóstico hidráulico-hidrológico do trecho do Rio Tietê

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Figura 4.3 - Plano de Macro Drenagem do Alto Tietê. Fluxograma das atividades principais. ( Canholi, 1999 )

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compreendido entre a barragem da Penha e barragem Edgard de Souza.Também foram estudados os rios Aricanduva e Pirajuçara, estando emandamento o diagnóstico hidráulico - hidrológico do Rio Tamanduateí.(Canholi 1999).

Dentre as ações recomendadas para a mitigação das inundações nasbacias estudadas, uma vez que as deficiências das drenagens existentes sãoimportantes, destacam-se as ações estruturais.

Além das medidas estruturais, foram previstas em cada baciaestudada a implementação de uma série de medidas não-estruturais, emespecial para a bacia do Rio Aricanduva, que foi eleita como baciaexperimental. Para o trecho em desenvolvimento dessa bacia, dentre outrasmedidas, estão sendo propostos: o controle da ocupação da várzea e ocontrole da impermeabilização de áreas acima de 1.000 m2.

O mecanismo que está sendo cogitado para implementar estas açõesé a necessidade de obtenção de outorga junto ao órgão responsável pelagestão dos recursos hídricos no Estado de São Paulo, o DAEE.

Importante medida não-estrutural em curso é a elaboração de um planode emergência para o combate às inundações no período de dez-1999/março-2000, que inclui sistema de alerta e demais medidas de convivência com asinundações. Esse plano, que conta com a participação de representantes doEstado, do DAEE e das prefeituras da RMSP, mais afetadas pelas inundações,deve colaborar para mitigar as conseqüências das inundações, além de colaborarpara dar um maior suporte para a elaboração e implementação do plano.

Como os investimentos a serem feitos para a mitigação das inundaçõessão vultosos, levando-se em conta que o Estado tem capacidade deinvestimento limitada, torna-se necessário o estudo de mecanismos para cobriro custos dessas obras.

5. Propostas de implementação de uma gestão eficaz, integrada àgestão dos recursos hídricos

Como pode ser visto nos capítulos anteriores, alguns dos problemasprincipais encontrados na drenagem urbana dizem respeito à questões ligadasà capacitação tecnológica, à falta de planejamento, à falta de padrões para aexecução de projetos e obras, aos problemas institucionais, à legislação efiscalização e, em especial, à questão de falta de verbas para a implementaçãode medidas de mitigação das inundações.

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

A seguir são feitas propostas, que representam o consenso havidoentre os técnicos acerca de possíveis formas de melhorar a gestão dadrenagem urbana, que vão ao encontro das diretrizes gerais de açãopropostas na lei 9.433/97.

5.1 Treinamento e capacitação tecnológica

De acordo com análise realizada, é primordial realizar uma reciclagemdos conceitos tradicionais da drenagem urbana, substituindo o conceito derápido escoamento das cheias para jusante pela contenção do escoamento nafonte, a regulamentação do uso do solo, a utilização da várzea para usoscompatíveis com a sua característica de área sujeita a inundações, etc.

Para viabilizar a adoção dos novos conceitos, já universalmente aceitospela comunidade técnica, é necessário ampliar-se a comunidade atingida,abrangendo também os fiscais das prefeituras, os responsáveis peloplanejamento, o projeto e as obras de drenagem; o ensino dos conceitosmais modernos da área na graduação das escolas de engenharia, arquitetura,etc., a instituição da educação ambiental nas escolas de 1o e 2o graus, arealização de campanhas de esclarecimento e conscientização ambiental.

Como as decisões finais são, em geral, tomadas por administradores epolíticos, é necessária a realização de seminários para a exposição e discussãodo problema.

5.2. Arranjo institucional e formas de financiamento

A instituição do Sistema Nacional de Gerenciamento de RecursosHídricos, prevista na Constituição Federal de 1988, ensejou a elaboração dossistemas Estaduais e Federal de gerenciamento de recursos hídricos, tendosido promulgadas as leis de vários Estados e da União. No caso da União, foidiscutida no Congresso Nacional e aprovada a lei no 9.433, de 8/01/97.

De acordo com a legislação em vigor no Estado de São Paulo, a unidadede planejamento e gerenciamento é a Bacia Hidrográfica e os Comitês deBacias Hidrográficas são o fórum tripartite Estado, Municípios e sociedadecivil, responsáveis pela aprovação dos planos de bacias hidrográficas. Deacordo com a legislação, haveria, então, a necessidade de articulação entreEstado, Municípios e comunidade para elaborar os planos e fazer cumprir assuas diretrizes, inclusive no que concerne às inundações. Havendo dificuldadeem uma articulação espontânea, seja por falta de vivência ou experiência

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nesse tipo de processo, seja por outras questões, o caminho para o acordo daforma de articulação mais adequada, para atender aos interesses de todos osparticipantes é a negociação política.

Para a RMSP, dentro de suas atribuições, o Comitê da Bacia doAlto Tietê propôs o estabelecimento da Câmara Técnica de Drenagem, daqual participariam todos os órgãos e entidades, estaduais, municipais eprivadas, que de alguma forma atuam na problemática das inundações naRegião Metropolitana e de outros Municípios.

Esse, na opinião do autor, parece ser o princípio correto para a questãoda gestão na drenagem urbana, que pode ser estendida a qualquer baciahidrográfica brasileira. Nessa Câmara Técnica deveria ser criado um órgãotécnico permanente, formado de profissionais experientes, para assessorar aCâmara Técnica na análise, estudo das alternativas e escolha das medidasmais indicadas ao tratamento da drenagem de uma área específica. NoBrasil, isso é particularmente importante, pois, com as mudanças deGoverno, existe a tendência de serem alterados os componentes dasCâmaras Técnicas, prejudicando a continuidade das medidas. Além disso,o horizonte de planejamento tende a ficar limitado à vigência do mandatodo Executivo e com a continuidade do trabalho dos assessores técnicosnão seria perdida a memória dos estudos anteriores, o que, em conjuntocom a experiência acumulada, contribuiria para direcionar o tratamentoda drenagem urbana da melhor forma.

A título de exemplo, a cidade de Denver, Colorado (EUA), criou o“Urban Drainage and Flood Control District”, que vem há mais de 20 anosadquirindo experiência e tecnologia e administrando a parte técnica dadrenagem urbana da cidade, com um sucesso considerável, tornando-se umexemplo de excelência a ser seguido.

Com os conceitos de cobrança do uso dos recursos hídricos e aplicação“preferencial” da receita obtida com essa cobrança na bacia de origem destareceita, a drenagem urbana consegue outra fonte para cobrir os custos deplanejamento, projeto , obras e operação.

Entretanto a aplicação do princípio Usuário Pagador, estabelecidopela lei federal 9.433/97 e pela lei 7.633, de 30/12/91, à drenagem urbananão é imediata, dependendo ainda de estudos técnicos e jurídicosaprofundados.

Em especial, no caso paulista, a cobrança ainda depende de lei emtramitação na Assembléia Legislativa. No texto em discussão consta que a

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fixação dos valores a serem cobrados pela utilização dos recursos hídricosconsiderará usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da águaexistente em um corpo d’água, semelhantemente ao que estabelece a lei 9.433/97. Estipula, ainda, que a fixação dos valores a serem cobrados terá por baseo volume captado, extraído, derivado, consumido, e a carga dos efluenteslançados nos corpos d’água. Embora isto abra caminho para a cobrança relativaà drenagem urbana, ainda há muito que avançar no campo institucional ejurídico, antes que isso se torne viável.

Outras fontes possíveis para o custeio dessas atividades seriam as quevêm sendo estudadas pelo Município de Santo André, que são: a cobrança decontribuição de melhoria; a utilização de recursos tributários, a obtenção definanciamentos e a instituição de uma taxa de drenagem para conseguir osrecursos para a operação e manutenção.

Os critérios para a cobrança dessas taxas e tarifas devem serdefinidos nos próximos anos e são uma linha de pesquisa importante naárea de drenagem urbana.

5.3 Elaboração de planos e projetos

O planejamento, projeto e execução de obras de drenagem urbana, emum passado recente, padeciam de uma certa falta de critérios e conceitossólidos para a o tratamento em alto nível tecnológico dessas atividades.

Nos últimos tempos, vêm sendo publicados livros em português,bastante atualizados, com elementos para planejamento e projeto dedispositivos de drenagem urbana. Importantes complementos desteslivros, no entender do autor, seriam manuais de drenagem urbana,elaborados nos moldes, por exemplo, dos manuais feitos para Fort Collinse Denver, EUA.

Um passo importante seria a normatização dos processos de projetoe execução de estruturas de drenagem urbana, de acordo com padrõesmínimos de qualidade.

A melhoria do padrão tecnológico no planejamento e projeto emdrenagem urbana depende do desenvolvimento de tecnologia autóctone. Paratal é necessário viabilizar recursos para pesquisa, entre outras, nas áreas dehidrologia urbana, de medidas de retenção na fonte e infiltração, incluindoos aspectos de eficiência e custos de construção e manutenção dessesdispositivos e na área de danos das inundações, procurando-se adaptar ametodologia existente à realidade brasileira.

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

Bibliografia

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CALHOLI A.P. - “Plano diretor de Macrodrenagem da Bacia doAltoTietê. Estruturação Geral e Resultados Iniciais”. Comitê da BaciaHidrográfica do Alto Tietê. Worhshop Urbanização e Inundações. Agostode 1999.

CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Comissão Especial deEstudos sobre Enchentes - “Relatório Final”. Setembro de 1995.

COPLAENGE - “Plano Municipal de Drenagem do Município de SantoAndré. Medidas Não-Estruturais”. 1999.

DAEE. Consórcio Hidroplan - “Plano Integrado de Aproveitamento eControle dos Recurvos Hídricos das Bacias do Alto Tietê, Piracicaba e BaixadaSantista. Ações não-estruturais”. Setembro de 1995.

JAMES; L.D. LEE; R.R. - Economics of Water Resources Planning.MacGraw Hill Book Co. 1971.

KRAFTA. R. - “Tendências da Expansão Urbana e Densificação deGrandes Centros Urbanos”. In: Seminário Soluções definitivas para área dedrenagem urbana. International Business Communications. São Paulo 1999.

MAKSIMOVIC. C. - International Workshop on non Structural Floodin Urban Areas. São Paulo, 1988.

MAKSIMOVIC. C. - Macro Drainage Master Plan For Upper TietêRiver Basin. Report On Visit To São Paulo. December 1998.

MARCON H. - “Viabilização de Projetos na Área de Drenagem Ur-bana”. In: Seminário Soluções definitivas para área de drenagem urbana.International Business Communications. São Paulo. 1999.

PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Secretaria do Verdee Meio Ambiente - Agenda 21 Local. Compromisso do Município de SãoPaulo. 1996.

RESOURCE CONSULTANTS & ENGINEERS. A KLH EnginneringGroup Company - Old Town Master Basin Plan for the City of Fort Collins. 1993.

SANTOS A . R. - “Erosão e Assoreamento”. In: Workshop Urbani-zação e Inundações. Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê. Agostode 1999.

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

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URBONAS, B. - Upper Tietê Watershed. Macro-Drainage MasterPlan Observation And Initial Recommendations. December 1998.

VAZ JR. S. N. - “Experiências práticas de Santo André”. In: WorkshopUrbanização e Inundações. Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê.Agosto de 1999.

WALECH. STUART. G. - Urban Surface Water Management. J. Willey& Sons Valparaiso. Indiana, EUA, 1989, 517p.

Perfil curricular do autor

Rubens Terra Barth – [email protected] – formado pelaEscola de Engenharia da Universidade Mackenzie em 1978. Doutoradona Escola Politécnica da Universidade de São Paulo em 1997. Trabalhanas áreas de estruturas hidráulicas, geração de energia hidrelétrica edrenagem urbana. Participou da elaboração do Plano Municipal deDrenagem do Município de Santo André. Participa da elaboração doPlano de Macrodrenagem da Bacia do Alto Tietê

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PROJETO “ÁGUA NAS ESCOLAS”

Neroaldo Pontes de Azevedo

1. Uma introdução óbvia

Tudo começou com algumas constatações óbvias: a seca é recorrenteno Nordeste, sem água não se pode viver, as escolas precisam de águapara o seu funcionamento, as escolas não podem fechar as suas portas,por falta de água.

Embora evidentes, talvez valha a pena, para situar a questão que nosocupa, retomar algumas observações conhecidas.

“O direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano:o direito à vida, tal qual é estipulado no art. 3º da Declaração Universaldos Direitos Humanos”. Esse é um trecho do art. 2º da DeclaraçãoUniversal dos Direitos da Água, que pode ser, aqui, complementadocom o art. 10: “O planejamento da gestão da água deve levar emconta a solidariedade e o consenso, em razão de uma distribuição desigualsobre a terra”. (Infran 1992)

A água, origem da vida, é condição básica para que a vida permaneça.Tal afirmação é tão verdadeira quanto a constatação de que a região do Brasilque detém o menor volume de água é o Nordeste, embora seja ela a segundaem termos de população.

A produção ficcional da nossa literatura tem tomado a seca como umdos seus temas preferidos, ora numa postura exótica, ora numa atitudedenunciante. Para ficar com a segunda, pode-se lembrar o relato de GracilianoRamos, em Vidas secas, do insucesso do sertanejo Fabiano e de sua família,numa luta solitária que os leva a um eterno recomeço, em seguidas fugasprovocadas pela seca.

Os estudos científicos têm se multiplicado, as propostas de soluçãopara a convivência com a seca não têm sido poucas, compromissos políticostêm sido anunciados, as soluções nem sempre têm sido as mais adequadas. Acada ano, quase a ironizar das providências adotadas, a estiagem aparececomo se fora uma surpresa.

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2. A água e a escola: uma visão preliminar

Se a seca atinge os indivíduos, ela não é menos ingrata com asinstituições. Em 1998, a União dos Dirigentes Municipais de Educação -UNDIME - entidade surgida há quase quinze anos, em Pernambuco, avaliouque a seca ameaçava 16 mil escolas localizadas nos nove estados do Nordeste,em Minas Gerais e Espírito Santo.

A avaliação tomava por base o conhecimento de que essas escolas nãotinham um sistema de captação e armazenamento de água. E as notíciascomeçaram a confirmar o fechamento de escolas, o crescimento dasdificuldades no processo ensino-aprendizagem, o aumento acelerado da evasãoescolar, motivado particularmente pelo êxodo rural. Sem água, como ficariaa merenda? Sem água, como saciar a sede de alunos que, em muitos casos,andavam quilômetros a pé para chegar à escola? Sem água, comoequacionar o problema da insalubridade? Sem água, como manter a escolaaberta? Era a constatação de mais uma ameaça à escola pública, elementoque se soma ao conjunto de indicadores de profundas desigualdades regionais.

Não há que se atribuir tudo que é insucesso à falta de água, é evidente.“Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o quecomer na terra de Canaã”, denunciava José Américo de Almeida, em 1928,no romance A bagaceira, apontando no brejo paraibano o papel da estruturasocial, de responsabilidade do homem no processo de desigualdades.

É bom ressaltar os avanços obtidos no Nordeste, na área da educaçãobásica. mas as disparidades persistem. Relatório produzido pela presidentedo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), MariaHe- lena Guimarães de Castro, constata: “O atual perfil do ensino fundamentalno Nordeste apresenta grande semelhança com o observado no Sul e Sudesteno final dos anos 80. Um atraso de pelo menos uma década no desenvolvimentoeducacional da região. Essa diferença, contudo, poderá ser superada numprazo mais curto, pois a dinâmica da mudança vem se dando de forma maisacelerada no Nordeste” (Castro, 1999).

3. Escola aberta: uma proposta

No estado berço da UNDIME, em Pernambuco, precisamente por umainiciativa da seção estadual da entidade, surge uma proposta de movimento,cujo objetivo era minimizar as conseqüências nefastas da seca na vida dasescolas. A campanha tinha no nome sua proposta: Escola aberta. Preconizava-

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se um estudo sobre as formas de convivência da escola com o clima semi-árido, levando-se essa questão para o interior das salas de aula, permeando opróprio desenvolvimento das estruturas curriculares. Solicitava-se aoMinistério da Educação um maior aporte de recursos para a merenda, com apossibilidade de se oferecer duas refeições ao dia para os alunos como formade mantê-los na escola. Sugeria-se a adoção de providências para que as escolasameaçadas pelas secas recebessem equipamentos capazes de captar água.

A UNDIME nacional juntou-se às propostas da UNDIME/PE, discutiu-as e a questão foi levada ao Ministério da Educação, por intermédio do entãoProjeto Nordeste, com o apoio expressivo do UNICEF. No documento que aUNDIME fez chegar ao Projeto Nordeste, lia-se, entre outras preocupações:“É comum verem-se escolas saqueadas pela população faminta ou fechadas,quando não funcionando com baixíssima freqüência ou sem alimentos paraalunos e professor.”

4. Algumas providências encaminhadas

O MEC ampliou de 0,13 centavos para 0,20 por aluno/dia o repassepara a merenda das escolas dos Municípios atingidos pela seca. A medidadurou um semestre, estendendo-se até o mês de dezembro de 1998. Rendeualguns dividendos.

Programou-se e foi realizado um seminário, com apoio do ProjetoNordeste e colaboração da UNDIME e do UNICEF, intitulado “Escola eConvivência com a Seca”, em Juazeiro, Bahia, entre os dias 9 e 11 de setembrode 1998. Foram apresentadas tecnologias e experiências desenvolvidas porinstituições públicas e organizações não-governamentais, que possibilitamencontrar soluções para minimizar os prejuízos causados pelo prolongadoperíodo de estiagem ao processo ensino-aprendizagem. Estão em curso,embora lentamente, estudos para produção de textos adequados à realidadedo semi-árido.

A iniciativa, a primeira do gênero, teve entre outros objetivos, o delevantar sugestões para facilitar a gestão escolar nas unidades localizadas naregião do semi-árido no período de estiagem, o de construir propostas deintercâmbio entre organizações não-governamentais, instituições públicas erede municipal de ensino, para introduzir no currículo escolar tecnologias deconvivência com a seca, bem como o de divulgar o conteúdo a todos osMunicípios atingidos pela seca. O seminário, que teve a coordenação técnicado professor Arlindo C. Queiroz, então vice-presidente da UNDIME regiãoNordeste e presidente da UNDIME/PE, contou com a presença de 57

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participantes inscritos. Estiveram presentes, entre outros, representantes daSUDENE, secretarias Estaduais dos Estados de Minas Gerais, Piauí e Bahia,UNDIMEs estaduais, ONGs e Universidades.

A UNDIME nacional esteve representada por seu presidente e o ProjetoNordeste, por seu diretor geral, o sr. Antônio Emílio Marques Sendim, que,junto com os representantes do UNICEF/PE, Jacques Schwarestein e MariaMirtes Cordeiro Rodrigues, acompanharam todos os trabalhos. A Secretariade Educação de Juazeiro, através de sua titular, a professora Estelita Diasde Souza Silva e sua equipe, ofereceu todas as condições para a realizaçãodo seminário.

Uma visita à Escola Municipal Rural de Massaroca, no Município deJuazeiro, permitiu verificar-se como a questão da convivência com o semi-árido é levada em consideração no dia-a-dia da escola, que mantém estreitorelacionamento com a comunidade.

A visita ao IRPAA (Instituto Regional da Pequena AgropecuáriaApropriada), também no Município de Juazeiro, proporcionou um contatocom tecnologias apropriadas para capacitação, armazenamento e usoadequados da água, numa região que tem, em média, oito meses sem chuva.

Paralelamente a tudo isso, acertou-se no Ministério da Educação que oProjeto Nordeste financiaria um programa que pudesse dotar as escolaspúblicas do Nordeste, atingidas pela seca, de um módulo básico para melhoriadas condições sanitárias locais e viesse a diminuir os problemas decorrentesda falta de água. Uma pesquisa, de responsabilidade do Exército, fez olevantamento das escolas, com mais de 20 alunos, que funcionavam em prédiopúblico. A elas se destinaria o programa

Para viabilizar o projeto, o MEC decidiu assinar convênio com aSUDENE, detentora de conhecimentos na área. Com o apoio do 1º Grupamentode Engenharia de Construção do Exército, foram definidas as dimensões doprograma, agora denominado “Água na Escola”. O módulo básico (19,30 m2)compunha-se de dois banheiros, uma cozinha, uma cisterna de 5.000 litros euma bomba manual, num valor orçado em R$ 5.460,00. Ficou prevista aimplantação de 2.133 módulos, em duas fases. Para a primeira fase, o MEC,pelo Projeto Nordeste, alocou R$ 2.643.000,00 para a compra de material e aSUDENE, R$ 2.167.674,07, correspondentes à mão-de-obra. A projeção paraa segunda fase foi de R$ 6.839.325,93. Na primeira fase seriam beneficiadas881 escolas. As frentes de trabalho colaborariam nesta tarefa.

Não foram definidas fontes de recursos para a segunda fase, temendo-se hoje pela continuidade do programa.

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

5. Uma avaliação?

Ainda é cedo para se avaliar a repercussão dessas medidas, seja porqueo programa ainda está em implantação, seja porque foi reduzida a amplitudedo atendimento, ou também porque só uma pesquisa específica poderá darconta da correção ou não das providências adotadas.

Também deve-se dizer que outras iniciativas, por intermédio deprefeituras, Estados, organizações não-governamentais vêm acontecendo,como soluções ou eventualmente como paliativos. Cisternas são construídas,carros-pipas são utilizados, a merenda é redimensionada. E em 1999 a estiagemse reapresenta, provocando o êxodo rural, o abandono de casas, a evasão dealunos das escolas. A experiência não deixa de provocar soluções. Segundoreportagem do jornal Correio da Paraíba, do dia 17 de outubro deste ano de1999, o Município de Santa Luzia, no sertão da Paraíba revive o problema daseca. A secretária de Educação, Maria Raimunda, apontando as dificuldadesdecorrentes da falta de chuva, diz que 10 das 24 escolas estão sendo abastecidascom água de cacimbas, que podem secar, se não chover. Ela afirma que “amerenda foi alterada em função da seca. Para não provocar fuga de alunos eaumentar a evasão, e ao mesmo tempo assegurar uma dieta nutritiva, asmerendeiras estão distribuindo frutas, biscoitos e comidas que não absorvammuita água no preparo e na limpeza dos utensílios”. Mas ela acrescenta, apropósito do processo ensino-aprendizagem, que “os conteúdos estão sendorepassados de uma forma contextualizada, ou seja, a seca é uma realidadepresente nas aulas, os assuntos são interligados de forma crítica, inserindo naaprendizagem toda a problemática social e econômica”.

Creio caber, aqui, uma reflexão de ordem pessoal. A presidência daUNDIME, o cargo de secretário municipal de Educação em João Pessoa oumesmo a minha formação profissional, como professor de literatura, não medão credenciamento para abordar, de um ângulo técnico, a questão da água.Mas, sem dúvida, minha consciência de cidadão e o exercício da tarefa deeducador me trazem sensibilidade para reconhecer os esforços que vêm sendorealizados e, sobretudo, me dão a certeza da necessidade de soluções maisadequadas para o problema da água, nas escolas do Nordeste.

A construção de uma escola no semi-árido não pode prescindir deequipamentos que levem em consideração a questão da água, sob pena decondená-la a dificuldades reais de funcionamento, quando não, ao própriofechamento.

As discussões sobre currículo precisam levar em consideração o espaçoem que a escola está inserida e têm que pensar na convivência com a seca

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como uma realidade da região Nordeste. Isso significa também que a escoladeve ter com a comunidade uma relação de compromisso, para não seapresentar como um elemento estranho à paisagem humana da região.

A formação de professores não pode esquecer as profundas diferençasregionais e, dentro das regiões, as diferenças entre a zona rural e a zona ur-bana. Não se trata, evidentemente, de oferecer formação de segunda categoria,senão de ofertar formação adequada. Assim, também, os procedimentosavaliatórios têm que ser repensados ou, deve-se dizer, reavaliados. A tendênciaatual de se proceder a avaliações genéricas, que não levam em conta a realidadeda região, os seus limites e as potencialidades, tende a induzir a generalidadesno processo de ensino-aprendizagem.

6. Um epílogo

Federico Mayor, diretor-geral da UNESCO, num artigo intitulado “Poruma ética da água” (Mayor, 1999), em que aborda o risco sério provenienteda escassez de água doce, em escala planetária, faz, entre outras, uma reflexãoimportante, que pode nos servir de conclusão desse texto: “A tecnologia sópode oferecer parte da resposta. É um aspecto, certamente capital, mas par-ticular, da crise global provocada pela adoção de um modelo dedesenvolvimento baseado no crescimento que esquece, na sua obsessãomacroeconômica e tecnológica, os fatores sociais, humanos e ambientais”.

Bibliografia

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CASTRO, Maria Helena Guimarães de. - “As desigualdades regionaisno sistema educacional brasileiro”. Brasília, INEP/MEC, 1999.

MAYOR, Federico - “Por uma ética da água”. Brasília, NotíciasUNESCO, nº 9, maio de 1999.

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Perfil curricular do autor

Neroaldo Pontes de Azevedo - [email protected] - nasceu emSão Caetano, Município do agreste pernambucano, em 1945. Licenciadoem Filosofia (Olinda) e Teologia (Roma). Mestre em Letras pelaUniversidade de Toulouse, França, onde também lecionou. Doutor emliteratura brasileira pela Universidade de São Paulo - USP, tem livros eartigos publicados no Brasil e Exterior. Professor da Universidade Federalda Paraíba, da qual foi reitor. É Secretário Municipal de Educação eCultura de João Pessoa e presidente da União Nacional dos DirigentesMunicipais de Educação – UNDIME.

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POLÍTICA DE RECURSOS HÍDRICOS: EFICIÊNCIA DEGERAÇÃO DO SETOR ELÉTRICO

Raquel Scalia Alves Ferreira

Carlos Alexandre Cernach Silveira

Lidia Mejia

Marcos Aurélio Vasconcelos Freitas

1. Introdução

As fontes hídricas são abundantes, mas freqüentemente mal distribuídasna superfície do planeta. Em alguma áreas, as retiradas são tão elevadas emcomparação com a oferta que a disponibilidade superficial desta água estásendo reduzida e os recursos subterrâneos rapidamente esgotados.

Tal situação tem causado sérias limitações para o desenvolvimento devárias regiões, restringindo o atendimento às necessidades humanas edegradando ecossistemas aquáticos. Levantamentos realizados pelaOrganização Mundial de Meteorologia indicam que um terço da populaçãomundial vive em regiões de moderado a alto stress hídrico, ou seja, com umnível de consumo superior a 20% da disponibilidade d'água. Exemplificando,tem-se o caso do Brasil, que possui em seu território 13,8% de toda a reservade água doce do mundo, mas 80% dessa água encontram-se na regiãoAmazônica, ficando os 20% restantes circunscritos ao abastecimento das áreasdo território onde se concentram 95% da população. Mesmo tendo grandepotencial hídrico, a água é objeto de conflitos em várias regiões do País.

Considerando o consumo mundial d'água, este cresceu mais de 6 vezesentre 1900 e 1995, mais do que o dobro da taxa de crescimento da população,e continua a crescer rapidamente com a elevação de consumo dos setoresagrícola, industrial e residencial (WMO, 1997).

Crescimento demográfico e desenvolvimento sócio-econômico sãofreqüentemente acompanhados de um rápido aumento na demanda de água,especialmente nos setores industrial e doméstico.

A progressão da demanda mundial de alimentos tem efeito direto noaumento do uso da água no setor agrícola. Atualmente, a agricultura é

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responsável por cerca de 70% do consumo mundial de água. O crescimentodas áreas de lavoura irrigada será responsável pela maior parcela de acréscimode consumo neste setor nos próximos 25 anos.

Muito do aumento projetado na demanda de água ocorrerá nospaíses em desenvolvimento, onde o crescimento populacional aliado àexpansão industrial e agrícola será ainda maior. Todavia, o consumo percapita continuará a ser muito mais elevado nos países industrializados(ver Tabela 2.1).

A situação é bem pior nos países em desenvolvimento. A escassez deágua tem sido intensificada e a saúde humana, gravemente afetada pelaaceleração da contaminação de recursos d'água potável, especialmente emregiões de urbanização intensa.

Desta forma, na mesma proporção que fontes d'água potável sãoreduzidas, a competição por elas tem aumentado, conseqüência imediata daexpansão de áreas urbanas e de novas demandas agroindustriais. Exemplosbem sucedidos, como nos lugares onde sistemas de cobrança e controle douso d'água ocorrem, mercados de recursos hídricos podem operar transferindorecursos entre compradores e vendedores; usuários e gestores; beneficiados eatingidos; agregando valor monetário ao bem "água" e, conseqüentemente,sinalizando a uma maior possibilidade de valorização e racionalidade emseu uso.

O aumento populacional interfere direta e indiretamente nodesenvolvimento do setor elétrico, pois desde a produção de alimentosaté a sua industrialização a energia elétrica está envolvida. Como o Brasilapresenta cerca de 62,5 GW de potência hidrelétrica instalada, e istoequivale a 97% da capacidade de geração de energia elétrica do País, adependência deste setor com os recursos hídrico é extremamen-te delicada, no sentido de sua gestão e sustentabilidade (Secretaria deEnergia, 1999).

Para atender o crescimento atual da demanda de energia elétrica, osetor elétrico necessita instalar a cada ano de 3 a 4 GW de potência, evitandoassim racionamentos futuros. Isto corresponde em média a 200.000 ha deárea inundada/ano.

Desta forma, o setor elétrico também se torna responsável pelamanutenção destes recursos, na tentativa de diminuir o impacto dos múltiplosusuários, bem como o impacto destes na geração hidrelétrica, diante da grandeaptidão que o País possui na hidreletricidade.

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2. Breve histórico do setor elétrico

Os primeiros registros da história da hidreletricidade no Brasil são dosúltimos anos do Império, quando o crescimento das exportações do País,principalmente de café e de borracha, culminaram com a modernização da infra-estrutura, tão necessária à produção e ao transporte de mercadorias.

A modernização dos serviços de infra-estrutura abrangiam, também,serviços públicos urbanos como linhas de bondes, água e esgoto, iluminaçãopública e a produção e distribuição de energia. Com o aumento das atividadesindustriais e da urbanização, o investimento na área de energia elétrica, aindamuito tímido, passou a ser bastante atrativo.

Nos primórdios, há relatos de pequenas usinas com pouca potênciadestinadas a usos privados em moinhos, serrarias e algumas tecelagens. Agrande concentração dessas usinas ocorreu em Minas Gerais, expandindo emdireção sudeste até chegar a São Paulo.

Em 7 de setembro de 1889, às véspera da Proclamação da República,foi inaugurada a primeira usina hidrelétrica de maior porte destinada ao serviçopúblico. A usina de Marmelo-0, com uma potência instalada de 250 KW, foiconstruída no Rio Paraibuna com o objetivo de fornecer eletricidade parailuminação pública da cidade de Juiz de Fora/MG.

O excedente da energia gerada pelas usinas hidrelétricas era aproveitadoem pequenas redes de distribuição implantadas por seus proprietários. Estaspequenas redes foram se expandindo pela regiões vizinhas, chegando a motivaro aumento de potência de muitas usinas.

A evolução do parque gerador instalado sempre esteve intimamenteatrelada aos ciclos de desenvolvimento nacional. Os períodos de maiorcrescimento econômico implicavam num aumento da demanda de energia e,conseqüentemente, na ampliação da potência instalada. Igualmente, as épocasrecessivas afetaram diretamente o ritmo de implantação de novosempreendimentos.

Em síntese, entre 1880 e 1900, o aparecimento de pequenas usinasgeradoras deveu-se basicamente à necessidade de fornecimento de energiaelétrica para serviços públicos de iluminação e para atividades econômicascomo mineração, beneficiamento de produtos agrícolas, fábricas de tecidos eserrarias. Neste mesmo período, a potência instalada aumentouconsideravelmente, com o afluxo de recursos financeiros e tecnológicos doexterior para o setor elétrico. Predominando o investimento hidrelétrico,multiplicaram-se as companhias de geração, transmissão e distribuição de

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energia elétrica nas pequenas localidades. As duas primeiras companhias deeletricidade sob controle de capital estrangeiro, que tiveram importância naevolução do serviço elétrico, são a Light e a AMFORP, instaladas nos doiscentros onde nasceram a industria nacional, São Paulo e Rio de Janeiro.

Até a virada do século predominou a geração de energia elétrica atravésde centrais termelétricas. Em 1901, com a entrada em operação daHydroelétrica de Parnahyba (atual Edgar de Souza), primeira usina hidrelétricada Companhia Light (com potência instalada inicialmente de 2.000 KW),este quadro mudou em favor da geração hidrelétrica. No ano de 1907, a Lightiniciou a produção de energia elétrica para a cidade do Rio de Janeiro com aentrada em operação da usina hidrelétrica de Fontes, no Ribeirão das Lajes,que, em 1909, era uma das maiores usinas do mundo em operação, com umapotência instalada de 24.000KW.

A partir da década de 20 se fez necessária a ampliação do parque geradorno intuito de atender aos constantes aumentos de consumo de energia elétricademandados pelo desenvolvimento do setor industrial. Durante essa década, acapacidade geradora instalada foi duplicada, sendo que em 1920, dos 475,7 MWinstalados, cerca de 77,8% já eram de origem hídrica. Na segunda metade dadécada de 20, as empresas AMFORP e Light assumem o controle acionário damaior parte da empresas de energia elétrica atuantes no país. Assim, em 1930,praticamente todas as áreas mais desenvolvidas do País e também aquelas queapresentaram maiores possibilidades de desenvolvimento, caíram sob o monopóliodessas duas empresas, restando, fora de seus alcances, apenas poucas áreas,inexpressivas, tais como os Estados das regiões Norte e Nordeste. No interiordestes Estados continuaram operando numerosas empresas de porte reduzido,muitas mantidas pelas prefeituras, as quais atendiam o pequeno consumo local.

A mudança de Governo na década de 30 trouxe uma nova forma deadministrar os recursos hídricos, que passaram a ser considerados como deinteresse nacional. O Estado passa a intervir neste setor diretamente, assumindoo poder concedente dos direitos de uso de qualquer curso ou queda d'águacom a assinatura do Código das Águas de 1934. Depois de 1934, com ainstituição do novo regime de concessão para exploração de energiahidrelétrica, o ritmo de implantação de aproveitamentos hidráulicos cresceuconsideravelmente. Também neste período foi criado o Conselho Nacionalde Águas e Energia Elétrica (CNAEE), órgão federal responsável pelatarifação, organização, controle das concessionárias, interligação entre asusinas e sistemas elétricos. Ainda na década de 30, os governos federal eestadual passam a ser acionistas e proprietários das empresas geradoras edistribuidoras.

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Ao final da década de 30, com a deflagração da Segunda Guerra Mundialem 1939, o País passa por uma crise no setor elétrico devido à falta deinvestimentos estrangeiros e à baixa produção de equipamentos para centraishidrelétricas. Assim, no período seguinte, de 1939 a 1947, há apenas umregistro de ampliação do parque gerador, o de Ribeirão das Lages. Ocrescimento da capacidade instalada só foi retomada após o término da GrandeGuerra, com a criação da CHESF em 1945, com a finalidade de promover oaproveitamento hidráulico do Rio São Francisco.

É importante salientar que, até o final da década de 50 início de 60, amaioria das barragens era constituída com a finalidade exclusiva de geraçãode energia hidrelétrica, não considerando os demais usos.

A década de 50 inaugura um longo período, caracterizado porempréstimos recebidos do Banco Mundial, que favoreceram a implantaçãode grandes empreendimentos nacionais e binacionais nas décadas seguintes.

Já a década de 60 é marcada pela reformulação dos órgãos federais,pela criação do Ministério das Minas e Energia (MME) e das Centrais ElétricasBrasileiras SA (ELETROBRÁS). O Grupo ELETROBRÁS era formado porquatro empresas controladas de âmbito regional: FURNAS, CHESF,ELETROSUL e ELETRONORTE e por duas empresas de âmbito estadualLIGHT e ESCELSA. A criação destes órgãos, aliada aos estudoshidroenergéticos desenvolvidos a partir de 1962, executados pelo grupo detrabalho CANAMBRA, consolidou a estruturação do setor elétrico.

Durante a década de 70, o setor elétrico sofreu uma certa resistênciapor parte dos setores usuários dos recursos hídricos, além das pressõesdesencadeadas a partir de 1972 em favor da preservação ambiental, tendocomo referência a Conferência Mundial do Meio Ambiente e do Bem EstarSocial, que contribuiu decisivamente para instalação de um novo setor degerenciamento de recurso hídricos do País.

2.1 Potencial hidrelétrico brasileiro

O Brasil possui a maior disponibilidade hídrica do planeta, ou seja:13,8% do deflúvio médio mundial. A produção hídrica em território nacionalé de 182.170 m3/s, o que equivale a um volume anual de cerca de 5.744 km3.Levando-se em consideração as vazões produzidas na área das baciasAmazônica, Paraná, Paraguai e Uruguai, que se encontram em territórioestrangeiro, estimadas em 76.580 m3/s, essa disponibilidade hídrica total atinge258.750 m3/s (WRI, 1998).

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O potencial hidrelétrico brasileiro conhecido, referente a janeiro de1998, é de aproximadamente 260 GW, dos quais encontram-se em operaçãocerca de 24%, existindo portanto ainda um percentual de potencial hidrelétricoa ser aproveitado. Hoje, o Brasil possui instalado cerca de 64,5GW, entrehidro e termeletricas (Eletrobrás, 1999).

Diante do grande potencial a ser explorado, e considerando a demandadevido ao crescimento populacional e desenvolvimento do País, que estácalcado nos setores agrícola e industrial (os maiores consumidores de água eenergia), o Brasil vem apresentando um quadro de crescimento de oferta deenergia, como é representado no Gráfico 2.2.

Tabela 2.1 - Informações básicos sobre bacias hidrográficas brasileiras

Gráfico 2.1 - Potencial hidrelétrico instalado e existente no Brasil

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Observa-se no Gráfico 2.2 o incremento de potência instaladatotal em hidrelétricas e termelétricas. Segundo o Plano Decenal 1999-2008,existe uma perspectiva de crescimento da participação da geração termelétrica.

Acompanhando o crescimento da economia brasileira das últimasdécadas, principalmente nos anos 80, os sistemas de geração e transmissãonacional tiveram que aumentar a oferta de energia com a qualidade e aconfiabilidade necessárias ao desenvolvimento do País.

Nos anos 80 e 90, houve uma redução acentuada no ritmo deconstrução, inclusive com a paralisação de diversas obras de hidrelétricas.Isso se deveu a um declínio na capacidade de endividamento externo do Paíse, consequentemente, das possibilidades de financiamento do Governo.

Observa-se no Gráfico 2.3 períodos em que não houve crescimentoexpressivo, como é o caso das décadas de 20 à 40. O maior crescimento do setorestá entre as décadas de 60 e 70, como demonstra a inclinação da reta desteperíodo. Cabe ressaltar que, durante as duas últimas décadas, a inclinação da retaé menor, consolidando uma queda na taxa de crescimento da potência hidrelétricainstalada e da área inundada. Isto provém do desenvolvimento de novas tecnologiasno setor hidrelétrico, recessão econômica, bem como da consolidação outrasfontes alternativas. Este decréscimo é reflexo da grande potência instalada nadécada de 70, que consolidou o setor hidrelétrico.

Apesar da elevada participação da fonte hidráulica no sistema elétriconacional, as enormes distâncias entre os diversos centros de consumoestimularam a geração térmica em áreas isoladas, com carência de bonspotenciais hidráulicos e distantes das redes de transmissão de energia. Somente

Gráfico 2.2 - Potência instalada atual e projeções futuras.

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a partir da interligação das regiões do País antes isoladas, e devido ao elevadopreço internacional do petróleo observado nas décadas de 70 e 80, ocrescimento na geração térmica passou a ser cada vez menor, até se tornarnegativo em 1984. As condições hídricas favoráveis do território brasileiro,juntamente com a escassez de recursos energéticos minerais fósseis, como ogás natural, o carvão e derivados do petróleo, levaram a investir maioresrecursos na implantação de usinas hidrelétricas, necessitando de barragensque ocasionam inundações de grandes áreas, como mostra o Gráfico 2.4. Noentanto, a concentração de esforços na construção de grandes hidro elétricaspermitiu a consolidação da tecnologia e da experiência nacional na engenhariade barragens reconhecida internacionalmente. Graças ao desenvolvimentodesta tecnologia, o Brasil promoveu a expansão da indústria pesada, o quelhe permitiu um elevado índice de nacionalização dos equipamentos utilizadospelo setor elétrico, possibilitando assim a redução nos custos de produção deenergia, tendo em vista que os equipamentos de centrais térmicas a carvão,gás e nucleares têm sido importado em sua maior parte.

Gráfico 2.3 - Crescimento, por década da potência instalada, área inundada e energia firme.

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

A partir da década de 80, a variável ambiental foi sendo introduzidanos novos termos e parâmetros do setor elétrico, devido a pressões do comérciointernacional e dos movimentos ambientalistas, que geraram regulamentaçõesambientais como a Política Nacional de Meio Ambiente (1981). Colocou-seem discussão um novo padrão técnico-científico, baseado na proposição dodesenvolvimento sustentável, onde a exploração dos recursos naturais exigianovos critérios de investimento e tecnologia, a fim de atender as necessidadesdas gerações presentes sem o comprometimento das gerações futuras.

Segundo o Plano Decenal 1999 a 2008, a participação das hidrelétricasno total da capacidade instalada no sistema brasileiro deverá diminuir,

passando de 97% em 1999 a somente 80,9% em 2008, o mesmo percentualpraticado em 1930. Esta taxa decrescente deve-se basicamente à manutençãode um programa nuclear e ao advento de gasodutos como o Bolívia-Brasil e oda Argentina-Brasil, permitindo um aumento na oferta de gás natural, ao longodo horizonte decenal de planejamento (Gráfico 2.2).

A carência de recursos financeiros, principal fator de desaceleração nataxa de crescimento do setor elétrico conforme o Gráfico 2.4, bem como aimplantação de novos instrumentos de controle social e ambiental presentesna Constituição Federal de 1988, trouxeram o grande desafio de resolver aquestão dos impactos sócio-ambientais dos empreendimentos, considerandoa necessidade de ampliação da matriz energética brasileira.

Gráfico 2.4 - Evolução da área inundada pelo setor elétrico

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

A partir de 1994, novas diretrizes do Governo federal foramestabelecidas, começando-se pela retomada das obras paralisadas, emassociação com a iniciativa privada.

Paralelamente, estabeleceu-se um novo arcabouço institucional do setorelétrico, voltado para a competitividade e para um setor essencialmenteprivatizado.

Em 1997, surgiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, comdispositivos inovadores, que ressalta a necessidade de integração de recursoshídricos com a gestão ambiental e a articulação com a gestão do uso do solo,bem como a articulação dos diferentes níveis de planejamento.

Consolidando a necessidade de viabilização dos usos múltiplos dosrecursos hídricos, está sendo considerado o projeto de lei da criação da AgênciaNacional de Águas. Esta agência será responsável pela outorga e cobrançados recursos hídricos, principais ferramentas para a sua gestão. Com esseintuito, o setor elétrico, de acordo com a lei 7.996 de 1989, que institui osroyalties e a compensação financeira, vem pagando pela utilização desterecurso para geração de energia elétrica.

Diante dos obstáculos existentes devido aos impactos ambientais, existeuma tendência de crescimento de centrais hidrelétricas até 30 MW, compequeno lago de até 3 km2 (PCH), uma vez que o licenciamento é mais simples,não há licitação e sim uma autorização. Além disso, estes empreendimentosrequerem menores investimentos em transmissão, por estarem próximos aomercado consumidor e pelo menor tempo de viabilização e implantação do projeto.

3. Eficiência de geração do setor elétrico

Para quantificar o real impacto do setor elétrico nos recursos hídricos,em relação à área de inundação, considerou-se dois índices, um de eficiênciade potência instalada, no qual dividiu-se a potência instalada pela áreainundada, numa escala decenal, conforme mostra o Gráfico 3.1.

O índice de eficiência demonstra quanto um quilômetro quadradoinundado pode gerar de potência (MW inslatado/km2), ou seja, quanto maioro índice, maior a eficiência de geração hidrelétrica da década.

Observa-se no Gráfico 3.1, 4 períodos distintos:

• Primeiro período: de 1900 a 1910. Caracterizado por um bom índice emfunção dos pequenos empreendimentos a fio d'água, sem reservatório.

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

• Segundo período: de 1920 a 1940. Caracterizado por um índice menorque os das décadas anteriores, em função do aumento dos reservatóriosdos empreendimentos hidrelétricos.

• Terceiro período: 1950. Caracterizado pela melhoria do índice, devidoà evolução dos equipamentos hidráulicos, reflexo dos investimentostecnológicos provenientes da Segunda Guerra Mundial e dosinventários realizados em todas as bacias hidrográficas. (Ex.:CANAMBRA).

• Quarto período: de 1960 até os dias atuais. Caracterizado pela reduçãodo índice, em relação à década de 50, em função dos empreendimentoshidrelétricos com grandes reservatórios de regularização.

No entanto, este período apresenta uma melhoria crescente no índicede eficiência de geração em função da evolução técnica dos equipamentos degeração, da repotenciação dos empreendimentos já existentes e dos estudosde aproveitamentos hidráulicos e ambientais.

O segundo índice seria o de eficiência de geração, no qual divide-se aenergia firme (GWh) pela área inundada, conforme o Gráfico 3.2.

Considerando que este índice depende da área inundada, da vazão e daaltura de queda, características intrínsecas às regiões brasileiras, algumasregiões podem apresentar uma aptidão maior para geração hidrelétrica.

Gráfico 3.1 -Índice de eficiência de potência instalada, no decorrer do século

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

Na Figura 3.1 representa-se a divisão do Brasil conforme a baciahidrográfica dos rios de maior porte encontrados em seu território.

Considerando esta divisão, o Gráfico 3.3 demonstra o índice deeficiência de potência instalada para cada bacia.

O Gráfico 3.3 apresenta um baixo índice de eficiência de potênciainstalada e de geração na Bacia Amazônica (1). Isto talvez indique uma baixaaptidão física da região, que apesar de possuir grande disponibilidade hídrica,apresenta um relevo pouco movimentado. Já as bacias Atlântico Leste (5) e

Gráfico 3.2 - Índice de eficiência de geração elétrica, no decorrer do século

Tabela 3.1 - Índice de eficiência de geração e de potência instalada, por décadas, e parâmetros utilizados

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

Atlântico Sul e Sudeste (8) apresentam altos índices devido às grandes quedas,características da região litorânea. Cabe ressaltar que a Bacia do Rio Paraná eParaguai (6) apresenta um índice acima da média nacional e é nesta região queestão localizados os principais reservatórios de regularização do sistema interligado.

A diferença existente entre os índices de eficiência de geração ede potência instalada, de cada bacia, deve-se às características do relevo, aspeculiaridades ambientais, sociais e culturais, bem como características decada empreendimento.

Figura 3.1 -Divisão geográfica das bacias brasileiras

Gráfico 3.3 -Índice de eficiência de potência instalada e de geração atual por cada bacia hidrográfica

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Em média, o Brasil apresenta um índice de eficiência de potênciainstalada da ordem de 1,7 MW/km2. Diante da necessidade de crescimentodo setor elétrico, demandada a partir do crescimento populacional e dodesenvolvimento industrial do País, seria necessário a construção de duashidrelétricas do tamanho de Itaparica, que possui uma área inundada deaproximadamente 830 km2, por ano. Desta forma seriam inundados cercade 166.000 ha. Em 3 anos teríamos que inundar o equivalente à área doDistrito Federal.

Estes valores podem melhorar se considerarmos a política derepotenciação de hidrelétricas, na qual os equipamentos são substituídos,favorecendo a geração, sem incremento na área de inundação. Isto mudará ocenário da Bacia Amazônica (1) a partir da implantação da segunda etapa deTucuruí, na qual não se modificará a área inundada e praticamente será geradoo dobro da energia atual, favorecendo o parque industrial da região.

Atualmente, os empreendimentos hidrelétricos inundam aproximada-mente 36.000 km2 considerando os leitos dos rios, o equivalente 80% da áreado Estado do Rio de Janeiro.

No mundo, existem hoje mais de 800.000 represas. Aproximadamente45.000 estão classificadas como grandes represas, com uma altura de diquede mais de 15 metros. Entre 1970 e 1979 foram construídas mais de 5.415represas em todo mundo, mais do que o construído até os anos 50. Mas, desdeentão, o ritmo de construção vem diminuindo, isto devido às exigências cadavez mais rigorosas em relação aos impactos sócio-ambientais, das agênciasde financiamento internacionais. Entre 1980 e 1989 foram construídas 4.427novas represas, o que representa um retrocesso no ritmo de construção .Esta é a tendência observada nos anos 90. (Comitê Internacional deBarragens, 1999)

Os cenários mundiais das décadas são coincidentes com o cenáriobrasileiro, que apresentou a maior implementação do setor hidrelétrico a partirda década de 50, com diminuição nos anos 80.

Não obstante os impactos ambientais que os reservatórios venham acausar, é importante destacar também as vantagens dos mesmos para aviabilidade do uso múltiplo, tais como:

• Regularização dos regimes hidrológicos;• Garantia dos volumes de espera para prevenção de cheias;• Criação de novas condições para exploração (pesca, irrigação,turismo).

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Apesar dos reservatórios do sistema hidrelétrico brasileiro terem sidoprojetados somente para geração de energia elétrica, o Código de Águas (1934)já estabelecia a harmonização com outros usos, através do artigo 143:

"Em todos os aproveitamentos de energia hidráulica serão satisfeitasexigências acauteladoras dos interesses gerais:

• Da alimentação e das necessidades das populações ribeirinhas;• Da salubridade pública;• Da navegação;• Da irrigação;• Da proteção contra as inundações;• Da conservação e livre circulação do peixe;• Do escoamento e rejeição das águas."

Entre os usos conflitantes dos reservatórios estão o abastecimento deágua, a irrigação, a recreação, a regularização de vazão mínima para o controleda poluição, a navegação e a geração de energia hidrelétrica, onde os benefíciosse maximizam com o armazenamento de volumes d'água, que garantam vazõese/ou níveis exigidos pelo uso, e o controle de cheias, que se beneficia com acriação de volumes vazios, objetivando laminar o volume de água afluente.

Estes conflitos seriam de menor importância se o uso do recurso hídricofosse mínimo, mas quando ele aproxima-se do máximo, como no caso dageração de energia hidrelétrica, os conflitos de uso podem adquirir grandesproporções (NEMEC, 1986).

4. Considerações finais

Diante destes aspectos, o setor elétrico, apesar de apresentar uma tendênciacrescente de utilização de termelétricas e outras fontes alternativas, continuarátendo um significativo investimento na geração hidrelétrica nos próximos anos.Isso vem a fortalecer a gestão do uso desta fonte renovável de energia, que é orecurso hídrico, no qual o Brasil é extraordinariamente privilegiado.

Para preservar e garantir o acesso a suas reservas e corpos hídricos,nos diversos pontos do território brasileiro, às gerações atuais e futuras, oBrasil deverá promover uma gestão eficiente, que busque implantar umaequalização interregional e inter-temporal da água. Um bom conhecimentodas necessidades de seus diversos usuários e da capacidade de oferta erenovação de suas fontes naturais é fundamental para a definição dos principaismarcos regulatórios e da capacidade de suporte (retirada) de cada baciahidrográfica.

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Bibliografia

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

Perfil curricular dos autores

Raquel Scalia Alves Ferreira - [email protected] - é bacharelem engenharia agronômica pela UnB (1997); mestranda em EngenhariaAgronômica, especialização em solos e recursos hídricos pela FAV/UnB.Consultora técnica pela OMM/ANEEL.

Carlos Alexandre Cernach Silveira – [email protected] - éengenheiro eletricista pela EFEI (1991) e mestre em engenharia, UFRGS(1996). Engenheiro da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL.

Lidia Mejia – [email protected] – é licenciada em estudos sociais(1993) e geografia pela UNICEUB (1999); pós-graduanda eminstrumentos jurídicos, econômicos e institucionais para gestão dosrecursos hídricos pela ABEAS, com finalização no segundo semestre de2000.Técnica em geoprocessamento na ANEEL.

Marcos Aurélio Vasconcelos Freitas – [email protected] – ébacharel em geografia pela UERJ (1983); mestre em Ciências emEngenharia Nuclear e Planificação Energética pela COPPE/UFRJ (1988)e doutor em Ciências em Economia do Desenvolvimento e do MeioAmbiente pela Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales – EHESS,Paris – França. Superintendente de Estudos e Informações Hidrológicasda ANEEL e professor do programa de pós-graduação de PlanejamentoEnergético da COPPE/URFJ.

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POLÍTICA DE RECURSOS HÍDRICOS E INDÚSTRIAS:A QUESTÃO DA COBRANÇA

- responsabilidade ambiental compartilhada e atendimento ainteresses patrimoniais individuais, coletivos e difusos -

Emilio Yooiti OnishiMaria Christina Napolitano

1. Considerações iniciais

No momento em que se trata da implantação da Agência Nacional deÁguas e em que se cogita a possibilidade de cobrança pelo uso da água, chama-se a atenção para a ausência de um enfoque gerencial e institucional, o quepoderá vir a comprometer os objetivos visados: a proteção dos recursos hídricos.

Da mesma forma, a falta de transparência pode vir a dificultar anegociação com os segmentos envolvidos, sobretudo, o setor industrial.

Em alguns Estados, como São Paulo, o Governo já se mobiliza, paratomar a dianteira na cobrança pelo uso da água. Mas, isto sem antes fazeruma revisão e atualização técnica, jurídica, administrativa das atuais normas,regulamentos e procedimentos para autorização de uso dos recursos hídricos,tanto para a derivação da água, como para a descarga de efluentes, não sóindustriais, mas urbanos e outros, levando em conta que os mecanismos deoutorga ou licenciamento devem tornar-se o principal instrumento denegociação periódica entre a autoridade hídrica regional e os usuários da água.

Será necessário fazer a revisão do cadastro de usuários, de modo quese documente a situação de direito e de responsabilidade de cada um, bemcomo a criação de uma fonte de dados primários, indispensáveis para oplanejamento e gestão, tanto da demanda, como da oferta de água, numadeterminada Bacia Hidrográfica.

Embora possa estar previsto que os usuários terão acesso aos cadastrosde contribuintes, não está assegurado nenhum canal de comunicação acessível,para dirimir dúvidas e dar informações técnicas aos interessados.

Há necessidade de se preverem termos de ajustes e de compromissos,além de consórcios de usuários.

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

Por todos estes motivos, somado o fato de que a água é essencial noprocesso produtivo e que sua cobrança irá onerar ainda mais este processo, osetor industrial paulista opõe-se a esta cobrança - e tem fortes razões para tal.

Independentemente de maior aprofundamento jurídico sobre o tema(desde incursões por dispositivos da Constituição Federal e ConstituiçõesEstaduais até dispositivos do Código de Defesa do Consumidor), impossívelo Governo cogitar a cobrança, sem a consideração prévia de uma série dequestões, da maior importância.

Entre os objetivos para a cobrança, não se têm discernido aqueles de maiorabrangência e significado, o que leva a crer que a imposição de umacontraprestação a ser paga - configurando a retribuição do uso de um bem público,visa, antes, maior arrecadação para equilíbrio dos cofres públicos, do que averdadeira proteção dos recursos hídricos para as presentes e futuras gerações.

É assim que a cobrança pelo uso da água só deveria ser implantada,depois que se obtivesse:

a) a cooperação para uma "gestão patrimonial negociada" de recursosnaturais;

b) envolvimento e participação de todos os atores e segmentos sociaisenvolvidos;

c) acesso a novas tecnologias e a interface entre as várias disciplinas,bem como entre as várias esferas e órgãos do Governo, com o povo,comunidades, empresas, centros de pesquisa e universidades e entreas presentes e as futuras gerações;

d) a visão de planejamento, no tempo e no espaço, para se alcançar aproteção das Bacias Hidrográficas contra impactos negativos.

Nas tramitações para se tratar do assunto, não ficam claros, nem oconsenso e a participação conjunta, nem a visão de escala espácio-temporal.

Assim, por exemplo, entre outros, deveriam ser previstos artigos queversassem sobre:

• Decisão, a critério do Comitê de Bacia Hidrográfica, a respeito dopercentual do valor arrecadado para aplicação em outra Bacia;

• Previsão de arbitragem, no caso de conflito de interesses entre osComitês envolvidos, tanto quanto à decisão de executar a obra, comode rateios entre bacias;

• Necessidade de os programas, projetos, serviços e obras hidráulicas ede saneamento serem submetidos à consideração pública;

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

• Direito à informação, direito este garantido a todos os atores esegmentos sociais, com previsão de prazo, para manifestação dacomunidade e outros setores envolvidos;

• Cálculo do quantum a ser cobrado, a ser conhecido e reconhecido portodos, segundo parâmetros iguais, devendo ser questionada seriamentea questão quanto ao "consumo segundo o tipo de utilização da água" e"a finalidade a que se destina", levando-se em conta, por exemplo, queo setor industrial, é gerador de empregos;

• Auditoria patrimonial da política pública sobre recursos hídricos, quesurgiria não só como uma operação "multi-atores", mas também comouma "comunidade de identificação e de resolução de problemas". Aoviabilizar-se uma auditoria contrastada (interna/externa; macro-sistêmica/micro-sistêmica) ficaria possibilitada a intervenção de"auditores patrimoniais", formados no campo das ciências exatas,considerados imprescindíveis à compreensão da realidade natural dosproblemas relacionados ao meio e aos recursos hídricos, bem comoaqueles formados no campo das ciências operacionais e gerenciais,necessários ao esforço de compreensão da realidade dos problemas deação, e à prática da própria auditoria patrimonial. Isto se dá através daaprendizagem de um protocolo exigente, visto como a garantia de umnível suficiente de "qualidade".

E assim por diante.

2. Implicações técnicas, gerenciais e jurídicas

Além das questões, acima levantadas, outras deverão ainda serabordadas na etapa de discussão prévia de leis sobre este tema, destacando-seas seguintes:

• Identificação dos bens e recursos naturais a serem protegidos (porexemplo, efeitos de ecotoxicidade, riscos à saúde que podem, ou não,causar moléstias e endemias, proteção do hábitat aquático e dos aspectosde bem-estar). Um dos pontos importantes é a manutenção de umacobertura vegetal, que é essencial para a conservação dos recursoshídricos, limitando a possibilidade de erosão do solo e minimizando apoluição dos cursos d'água por sedimentos. Assim, a recomposiçãodas matas ciliares faz parte integrante de qualquer projeto derecuperação de corpos d'água.

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• Superposição legislativa (por exemplo, verificação de qual legislaçãojá trata da proteção da água e de sua qualidade, nos níveis federais,estaduais e municipais), o que deverá ficar bem claro.

• Simultaneidade de: cobrança pelo uso da água X concessão oupermissão para explorar os recursos hídricos. Ou seja, atos adminis-trativos, através dos quais, são exercidos o controle e a fiscalizaçãosobre os referidos recursos, além da outorga do direito de uso, parafins de utilização no abastecimento urbano, industrial, agrícola, geraçãode energia elétrica e outros, além do lançamento de efluentes nos corposd'água. Em São Paulo, por exemplo, existem interfaces importantes, aserem consideradas: as da cobrança pelo uso da água e da privatizaçãode companhias, como a Companhia Energética de São Paulo - CESP.

• Lacuna entre os níveis de dotação de verbas e a execução de programasnacionais e estaduais de água limpa.

• Adequação do estabelecimento de prazos, em textos legais, com opropósito de assegurar o cumprimento de cronogramas, pelosrespectivos órgãos e setores, e de contribuir para a elaboração(igualmente adequada) de programas e regulamentos de controle daágua.

• Absorção do conceito de poluição causada por uma multiplicidade deagentes e usos (sinergia - fenômeno que ocorre quando a interação deduas causas provoca um efeito total maior do que a soma do efeito dasduas, agindo separadamente).

• Previsão de proteção do ecossistema como um todo, em vez de tãosomente da Bacia Hidrográfica.

• Cumprimento efetivo do pagamento pelo uso da água, por todos osusuários e setores, incluindo as empresas estatais, dentro do princípiodo usuário-pagador.

• Discussão e consenso sobre o critério para o cálculo do quantum e darelação custo X benefício.

• Possibilidade de participação dos setores envolvidos "pagantes", nocontrole da destinação das verbas arrecadadas e direito de informaçãodos contribuintes.

• Consideração do princípio poluidor-pagador (distinto do usuário-pagador), com caráter de sanção, para fase separada, com o objetivode fazer com que todos aqueles que deterioram as águas contribuampara sua recuperação.

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• Consideração da possibilidade de interface e de composição entre acobrança pelo uso da água e o reuso da água.

• Absorção de novas tecnologias já disponíveis, com perspectivas deconvênios com organismos e entidades nacionais e internacionais.

3. Gestão patrimonial negociada de recursos hídricos

Tendo em vista que os recursos hídricos são patrimônio comum, agestão dos mesmos constitui um domínio privilegiado de aprofundamento demétodos de mediação "patrimoniais".

O sucesso e desenvolvimento já alcançados em outros domínios, comoo administrativo-empresarial, autorizam a falar, atualmente, de um verdadeirogerenciamento do patrimônio natural.

Com seus defeitos e virtudes, a gestão da natureza tornou-se, de certomodo, uma "escola de gestão da qualidade", um campo privilegiado para aação realizada em comum, visando a busca de excelência.

A principal meta do enfoque patrimonial consiste em oferecer subsídiospara se resolver, positivamente, os problemas complexos envolvidos na gestãoda natureza, de forma satisfatória, tanto para o homem, individualmente,enquanto pessoa, como para a sociedade, enquanto comunidade de pessoasfísicas e jurídicas.

A experiência de alguns países mostra que a mudança é possível. Paraque isto ocorra, efetivamente, torna-se necessária a adoção de uma concepçãorenovada do processo de mudança, ao lado de novas démarches de intervenção,de novos papéis e de novas atividades e funções.

É certo que os riscos de fracasso existem.

Mas o empreendimento pesquisa-ação embutido, por exemplo, naauditoria, sugerida acima, e complementado pelo momento da apresentaçãode suas conclusões, surge como uma ocasião de ampliação, de aprofundamentoe de enriquecimento da ação.

O conceito de "soluções negociadas" e de "gestão patrimonialnegociada" desenvolveu-se, na França, a partir de meados da década de 70,através de uma corrente original de pensamento centrada na idéia de "gestãopatrimonial negociada de recursos naturais" (De Montgolfier & Natali, 1987).

A doutrina elaborada está baseada nos seguintes argumentos:

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a)A qualidade dos recursos naturais depende do processo de evoluçãode meio ambiente; e a gestão de alguns deles, como os recursoshídricos, depende da gestão de outros. Na medida em que estesrecursos estão submetidos aos mais diferentes tipos de reaçõesimprevisíveis, um dos principais critérios de absorção ou deadaptação reside na proteção da variedade de composição do meio.Paralelamente, a gestão dos recursos deve levar em conta amanutenção da variedade de potencialidades de uso, o que pressupõea existência de um fator de segurança a ser incorporado.

b) A preocupação de legar às gerações futuras um patrimônio natural,em processo dinâmico de evolução, na medida em que o mesmodeve evoluir justamente com seu(s) titular(es). Este constitui oobjetivo principal do trabalho de gestão, ao lado de outros objetivosmais clássicos. Cabe ao Estado representar os interesses das geraçõesfuturas, se outros atores não o fizerem de maneira espontânea.

c) De um modo geral, a solução institucional não pode ser encontradana tentativa de fazer com que a Administração assuma diretamenteo trabalho de gestão, pois, a qualidade do meio ambiente dependede comportamentos e de usos cotidianos de um número elevado depessoas, bem como de interdependências que se criam entre elas,nas diversas oportunidades. Muito freqüentemente, a Administraçãodireta pelo Estado consegue apenas provocar o desinteresse e a faltade responsabilização das populações locais, sem que o Estadodisponha de capacidade de informação e de resposta adequada àsolução de problemas marcados por especificidades, quecaracterizam o nível local. O objetivo da intervenção do Estadodever-se-ia traduzir, portanto, e prioritariamente, no estímulo ou nodesenvolvimento de uma consciência patrimonial, junto aos atoresimplicados na dinâmica de evolução do meio ambiente ou de umrecurso natural, mas respeitando a liberdade e a responsabilidadedestes atores.

d) Tipo de gestão exigido pelos problemas ligados à degradação domeio ambiente e dos recursos naturais, entre eles, os recursoshídricos, se bem que existam formas de gestão patrimonial quedecorrem da responsabilidade de um titular único (pessoa públicaou privada), constitui uma gestão patrimonial de "bens comuns",implicando uma pluralidade de atores que descobrem, cada um deles,um interesse patrimonial pelo mesmo recurso ou pelo mesmo espaço,

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para além dos recortes jurídicos estabelecidos através de direitosde propriedade. É a chamada "função social" da propriedade que,entre nós, consta da Constituição Federal (art. 5º, inciso XXIII).

e) Considera-se que o motor deste tipo de gestão reside na organizaçãode um processo de negociação entre os atores envolvidos. Estesúltimos irão definir, cada qual em função de seus próprios interessespatrimoniais e de forma consensuada, as regras e os instrumentosde gestão a serem acionados, bem como as regras de atualizaçãodestes regimes de gestão. O sucesso desta negociação, que não exclui- ao contrário - as fases de conflito, depende da elaboração de umalinguagem comum, da definição de um local e de procedimentos denegociação indutores de acordos. Um dos pontos de apoio para asuperação das fases conflitantes reside na invenção de soluçõespositivas susceptíveis de deslocar o quadro inicial de referência, noqual as oposições foram cristalizadas. Em caso de êxito, a negociaçãoproduz um benefício mútuo para todas as partes envolvidas: o reforçoda identidade e da autonomia dos diversos atores envolvidos, quedecorre do processo, constitui o critério último de uma boa gestão.

f) A adoção de um quadro de referência e de um procedimentoexplícitos de negociação; a mobilização de conhecimentos sobremeio ambiente, não só por parte de técnicos e experts no assunto,mas também, de atores locais; a elaboração de previsões e de cenárioscapazes de simular as evoluções possíveis; a implementação deabordagens "multicritério", levando em conta os diversos pontos devista representados pelos diferentes atores. É assim que este processode negociação reorganiza e racionaliza as formas tradicionais degestão, freqüentemente pouco claras e pouco coerentes.

g) Os meios a serem mobilizados para se assegurar a gestão e o controlesão diversificados: regulamentos, instrumentos financeiros,incentivos, meios de informação. Mas, sua eficácia depende,fundamentalmente, do fato de que eles resultem de uma negociaçãoque promova a associação das partes envolvidas, bem como damaneira pela qual se insiram num conjunto de comportamentosefetivos de gestão. Em conseqüência da ausência de uma tal adesãopreliminar, a abordagem regulamentar clássica tem sido, quasesempre, ineficaz. Ou seja, pouco apta a ser aplicada, tornando-serapidamente defasada relativamente à evolução das práticas e dastécnicas, mantendo-se confinada entre os extremos da impotência

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(caso se apresente como muito geral) e da paralisia (caso insista noexcesso de detalhes).

No fundo, esta nova abordagem destaca a idéia de atores autônomos eresponsáveis, cuja identidade e capacidade de adaptação resultam da gestãorefletida de relações patrimoniais estabelecidas com os recursos naturais ecom o habitat.

Ela destaca também a relação de negociação explícita entre estes atores,mas sob a perspectiva de uma gestão comum ou mesmo comunitária.

Ela não elimina, entretanto, o papel de administrações estatais,incumbidas não só de fazer valer seus interesses próprios, mas também,enquanto meta-atores, de organizar ou facilitar a instalação e o desenvolvimentodas negociações.

Torna-se surpreendente reconhecer que este modelo, longe de seconstituir em alavanca de um posicionamento do Estado, no sentido de assumirdiretamente a responsabilidade pelo patrimônio natural, procura viabilizar arelação de negociação simétrica entre diferentes atores, que se sentemcomprometidos, com a evolução de um lugar ou de um recurso natural.

Isto só se torna possível, se pressupormos que todos estes atores sejamportadores de uma visão e de interesses patrimoniais, mesmo se tais interessesforem diferenciados.

Esta hipótese fundadora permite integrar duas condições: umapreocupação patrimonial compartilhada, que deve permitir o reconhecimentomútuo; e uma diferença de interesses que legitima e alimenta a negociação.

Nesta figura, a hierarquização induzida pela noção de patrimônio,reputada como interiorizada por cada um dos atores, alicerça uma tendênciade desierarquização das relações sociais e o estabelecimento de relaçõescontratuais simétricas.

Existem, nesta descrição, numerosos indícios, que atestam que a "gestãopatrimonial negociada dos recursos naturais" representa uma figura de"compromisso" pela qual se busca estabelecer um novo princípio delegitimidade no espaço público: ativação, sobretudo, da "cidade doméstica"(ética da gestão e da transmissão patrimonial, utilização de saberes locaisinformais) e, secundariamente, da "cidade cívica" (reconhecimento, naqualidade de sujeitos legítimos em posição de igualdade, de todos aquelesque se vêem como portadores de um interesse patrimonial), e demarcaçãoformal da relação constitutiva da "cidade mercantil" (o acordo resulta de umprocesso de negociação mutuamente rentável), estando o conjunto consolidadoe enquadrado pela visão "industrial" (mobilização dos recursos da ciência

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para adquirir uma informação objetiva, produtora de previsibilidade e decontrole, e emprego de métodos racionais de aconselhamento de processosdecisórios, visando a valorização, bem como a proteção da potencialidadeem termos de recursos naturais).

Não deve surpreender, portanto, que possamos efetuar várias leiturasdeste tipo de gestão, e, sobretudo, que não possamos decidir de maneiracategórica entre elas.

Será que podemos vislumbrar potencialmente na gestão patrimonial danatureza um novo princípio fundador de uma ordem de justificação bemconstituída?

No estágio atual de formulação desta abordagem, nossa resposta énegativa, devido aos obstáculos práticos e teóricos relacionados, seja com aestrutura de argumentação, seja com as provas de justificação e o modo decoordenação propriamente dito.

No que diz respeito a este, podemos visualizar a organização de umanegociação entre atores, assumindo uma posição de importância central.

As condições de sua implementação são evidentes: locais físicos einstitucionais para encontros, um contexto organizado para o desenrolar danegociação que disponha da anuência das partes e, sobretudo, atores bemidentificados, reconhecendo-se mutuamente, como legítimos e capazes edispostos a se engajar num processo de gestão.

Podemos notar aqui duas fraquezas:

• Inicialmente, uma fraqueza de ordem prática. A sensibilidade difusada opinião pública, tal como ela se reflete nas sondagens, ou as práticasde envolvimento pessoal exercidas por usuários dispersos e nãoorganizados não configuram uma base suficiente; é ainda necessárioque surjam mediadores ou atores reconhecidos como representantesou porta-vozes de seus interesses, dispondo de um poder real de gestão;

• Em seguida, uma fraqueza de ordem teórica. Como identificar atores,que disponham de prerrogativas legítimas para tomar parte nosprocessos de negociação e de gestão, considerando-se que o discursopatrimonial pretende não se ater aos direitos de propriedade jáestabelecidos? Toda pessoa que descobrisse para si um interessepatrimonial, relativamente aos recursos e ao meio ambiente, esteinteresse teria que ser considerado. Esta visão pode certamente encontraralgum fundamento doutrinário nos princípios gerais do direito brasileiro

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(art. 225, da Constituição Federal: o meio ambiente é bem de uso comumdo povo; art. 2º, I e art. 3º, V, da lei 6.938/81). Mas ela carece, poroutro lado, de uma localização precisa no direito atual; quando se trata,por exemplo, de tornar reconhecidos os direitos de reparação de danosambientais, os critérios apresentam-se como extremamente restritivos,centrados na noção de propriedade (Martin, 1989). Os casos de aplicaçãoda démarche de gestão patrimonial faz pensar que seriam os atoresconcretamente envolvidos num processo conflitivo, tendo adquiridona prática o poder de bloquear uma decisão ou um projeto, aquelescom os quais conviria estabelecer a negociação. Mas, esta posição"realista" não nos parece justificável, o que nos conduz a um outroaspecto do problema.

Do ponto de vista da coerência do discurso de justificação, certasdificuldades podem surgir.

Estas dificuldades decorrem da assimetria radical das gerações presentese das gerações futuras, em nome das quais o patrimônio deveria ser gerido.

Se nos ativermos numa análise mais profunda, não se legitimaria umraciocínio, que implicasse um sacrifício das gerações presentes em benefíciode gerações futuras, na medida em que estas últimas não poderiam ofereceruma contrapartida equivalente.

Evocando a análise do famoso jurista, John Rawls (1978), sobre esteponto, parece que esta ausência de reciprocidade nas relações entre pessoasestaria em contradição com um dos axiomas constitutivos de uma "cidade"ou seja o axioma da "dignidade comum".

Todavia, o argumento do sacrifício ilegítimo poderia ser utilizado, nosentido oposto, em benefício das gerações futuras, desde que se trate não deconceder um capital indiferenciado e em expansão, mas de definir as regrasde uso de "bens" não substituíveis e não reprodutíveis pelo homem, se bemque potencialmente renováveis através de processos naturais (espécies,ecossistemas e, talvez, atualmente, climas). Ou seja, bens que as geraçõesatuais têm o poder de destruir de maneira irreversível, sendo que seria lícitoutilizá-los e geri-los, de maneira a transmiti-los às gerações seguintes.

Estas dificuldades não foram ainda solucionadas e se torna necessário,sem dúvida, que nos resignemos a ver a retórica do patrimônio natural e dodesenvolvimento sustentável permanecer ainda por um certo tempo no estágiode compromisso em formação.

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Podemos mesmo indagar se nos será possível algum dia construirmosuma "cidade de sustentabilidade ecológica".

Se não quisermos considerar como legítima apenas uma "ordem" emque a geração atual esteja voltada unicamente para a satisfação de seus própriosinteresses, talvez seja necessário tomar consciência da assimetria da relaçãointergeracional e questionar o modelo da "cidade", visto como modelo geralde legitimidade.

Também é necessário reconhecer, no âmbito de uma sociedade, doistipos legítimos de discurso: aquele que é pronunciado em nome dos direitoslegítimos de seu proponente; e aquele que é pronunciado por "porta-vozes"de interesses ou de direitos não presentes de forma direta na sociedade, querse trate daqueles associados às gerações futuras ou daqueles relativos a outrasespécies que não a espécie humana.

Esta maneira de ver a questão pode aliás se inscrever no movimentogeral de universalização, que constitui o motor da busca de legitimidade.

4. Obstáculos a serem vencidos antes da cobrança pelo uso da água

Desde a Conferência das Nações Unidas, sobre Águas, em 1977, já semencionavam várias recomendações, visando a eficiência de utilização daágua, defendendo-se a adoção de escalas de tarifas, que refletissem o custoeconômico real.

Neste sentido, também se pronunciou a Declaração de Dublin, emjaneiro de 1992.

A aceitação pelos Governos e pela sociedade como um todo de que aágua é um bem econômico, com um valor que reflita seu uso mais produtivo,é um pré-requisito para a administração sustentável dos mananciais.

Mas, é imprescindível que a adesão a este princípio seja acompanhadapor um compromisso público transparente de uma locação eqüitativa dosmananciais disponíveis.

Abaixo, transcreve-se, como doutrina, as considerações que Veiga daCunha e outros (in "A Gestão da Água - Princípios Fundamentais e suaAplicação em Portugal", Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, citadopor Maria Luiza Machado Granziera, in "Direito de Águas e Meio Ambiente",p. 32 e segs.) fazem acerca da questão da cobrança pelo uso da água, nasBacias Hidrográficas:

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• "as formas de intervenção das administrações de bacia hidrográfica,para condicionar o comportamento dos utilizadores com vista aconseguir uma efetiva gestão de recursos hídricos, correspondemfundamentalmente à aplicação de sistemas de normas e/ou taxas porrejeição de afluentes e à aplicação de taxas por consumo de água;

• na aplicação de sistemas de taxas, é muito importante que osrespectivos quantitativos unitários sejam corretamente fixados porforma a favorecer a interiorização de deseconomias internas e a nãointroduzir distorções econômicas;

• na prática, para controlar o lançamento de efluente, impõe-se,normalmente, um certo compromisso entre o sistema de taxas (em geralproporcionais à carga poluente lançada), mais adequado à maximizaçãodos benefícios que a coletividade pode recolher da utilização da água,e o sistema de normas (cuja violação é punida com multas) justificávelquando se pretendem fixar certos padrões mínimos de qualidadeimpostos, sobretudo, por razões de preservação da saúde pública ou doambiente;• os quantitativos unitários devem, em princípio, ser dependentes dotipo de efluente, do local de rejeição, e do caudal do cursos de águareceptor; como a aplicação de um sistema de taxas com estes requisitoslevanta problemas complexos, é necessário, na prática, procurar umcompromisso entre a solução teoricamente ideal e uma solução práticaque possa ser aplicável de forma eficiente;

• os quantitativos unitários devem ser sempre muito mais elevados queos das taxas, por forma a desencorajar radicalmente o desrespeito dasnormas;

• as taxas a pagar por consumo de água devem ser proporcionais àsquantidades consumidas, sendo de admitir, em certos casos, tarifasprogressivas ou regressivas; as tarifas progressivas têm lugar quandose pretende contrariar o desperdício de água e parecem corresponder auma fórmula que haverá cada vez mais tendência para utilizar; as tarifasregressivas podem ser utilizadas em casos excepcionais de regiões emque interesse estimular o aumento dos consumos, para permitireconomias de escala nas obras que seja necessário realizar;

• na definição dos sistemas de taxas, deve-se procurar ter em contatodos os custos e benefícios, mesmo os de avaliação difícil ou subjetiva,como sejam os ligados às utilizações recreativas ou aos valores doambiente;

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• para poder colocar em prática as disposições anteriormente referidas,as administrações de Bacia Hidrográfica devem promover a instalaçãode sistemas adequados de controle da utilização das águas e dispor deautonomia e de meios que lhes permitam tomar medidas imediatas parafazer respeitar as normas que estabelecem;

• as administrações de Bacia Hidrográfica devem empreender realizaçãode obras coletivas sempre que elas conduzam a economias em relaçãoa medidas tomadas isoladamente nos diversos locais de rejeição deefluentes ou de captação de águas."

A Agenda 21 recomenda que o recurso hídrico seja cobrado, levando-se em conta seu custo marginal, observando-se as realidades locais.

É assim que, em nosso entender, a definição dos instrumentos técnicos,jurídicos e gerenciais, necessários à implantação da cobrança, deve ater-se àrealidade brasileira, ainda que se inspire em exemplos de outros países, atéporque, felizmente, nosso maior problema não é a quantidade, mas a qualidadedos recursos hídricos.

Assim, modelos de outros países podem servir de inspiração, mas nãonecessariamente serem tomados como totalmente adequados à realidadebrasileira ou ao Estado de São Paulo.

De qualquer forma, a cobrança deve ser criteriosamente planejada enegociada para evitar distorções.

Existem critérios a serem reconhecidos e adotados para a cobrança.Para cobrança pelo uso ou derivação, serão considerados a disponibilidadehídrica local, o grau de regularização assegurado por obras hidráulicas, avazão captada em seu regime de variação, o consumo efetivo e a finalidade aque se destina. Para a cobrança pela diluição, transporte e assimilação deefluentes, serão considerados a classe de uso em que for enquadrado o corpod'água receptor, o grau de regularização assegurado por obras hidráulicas, acarga lançada e seu regime de variação, ponderando-se, entre outros, osparâmetros orgânico-físico-químicos dos efluentes e a natureza daatividade responsável por eles.

Como se nota, é muito importante, para a cobrança do uso da água, aclassificação das águas e dos efluentes (Maria Luiza Machado Granziera,ibidem, p. 34), como importante é a consideração da cobrança, dentro de umcontexto - o nosso contexto histórico, social e cultural - ainda que tenhamosque complementar nosso conhecimento com o de outros países.

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O que não é certo, é se descartar a realidade em que vivemos.

Até agora, os Projetos de Lei, pelo menos em São Paulo, sobre cobrançapelo uso da água, não têm permitido elaborar, adequadamente, a interseçãoentre seus conteúdos e os da Lei Federal e da Lei Estadual sobre Política deRecursos Hídricos, bem como não abarcam sequer os pontos técnicos egerenciais mais importantes da questão, quanto à organização do Sistema deGerenciamento de Recursos Hídricos.

Tudo isso, em nosso entender, comprometerá o sucesso do verdadeiroobjetivo: proteção dos recursos hídricos.

Outros aspectos merecem ênfase, como a adoção da Bacia Hidrográficacomo unidade econômica de gestão - de onde decorre a descentralização naadministração - o que é certo, mas não suficiente, pois, traz comoconseqüência não levar em consideração o ecossistema como um todo. Istosem contar as indagações sobre a competência de tributar.

Por se tratar de uma novidade, insiste-se sobre a necessidade deimplantação dos instrumentos jurídico-institucionais adequados, que darão oembasamento de sua implementação.

É digno de nota, ainda, o entendimento da água, considerando-se osaspectos quantidade/qualidade, além da consideração das águas subterrâneas.

Sua regulamentação deve levar em conta, basicamente, a necessidadede um processo de ajuste e de adaptação gradual ao novo modelo institucionalde gestão de águas, de forma que lei e regulamento possam ser aplicados coma tão necessária efetividade.

Outro ponto a considerar é a negociação nas decisões a serem tomadas,com a participação e representatividade do setor empresarial, junto ao Governo,centros de pesquisa, Universidades e comunidades locais, embora, muitasdelas, de pequenas localidades e pequenos empreendimentos agrícolas estariamdispensadas de "pagar" pelo uso da água, com o que o setor industrial, desdelogo, discorda.

A descentralização administrativa ocorrerá, de fato, com a criação deentidades para gestão local de recursos hídricos, nas quais participarãosegmentos das populações interessadas.

Isto pode propiciar a efetividade e legitimidade das decisões adotadas,com a certeza de que aqueles que seriam diretamente afetados por qualquerprojeto, no que se refere a águas, tenham participado e mesmo opinado sobreo mesmo, para que, na sua execução, os custos e benefícios estejam em

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equilíbrio, não só entre os participantes, mas em relação aos usos do recursocompartilhado, sem deixar de lado a proteção do meio ambiente.

No entanto, legislar parece ser o desafio menor.

O problema não é a falta de normas.

O processo legislativo é fundamental, mas só quando reflete umamadurecimento dos segmentos envolvidos.

Seu ajuste às realidades nacionais, regionais e locais, sob uma visão deescalas espácio-temporais, é de vital importância. Da mesma forma, umaestrutura institucional destinada a fazer cumprir a norma.

Não deve ficar descartado o princípio de que a água não tem fronteiras;é bem comum, que impõe cooperação internacional.

5. Considerações finais

Como se nota, é grande o papel que os recursos hídricos possuem devia de negociação política, entre países, entre Estados, entre Municípios esobretudo, entre Governo e empresários, com a finalidade de definir as formasde aproveitamento múltiplo e compartilhado das águas.

Este exercício parece-nos a forma mais adequada de proteger as águas,sem que estas deixem de cumprir a função vital de atender o homem em suasnecessidades e atividades.

A estrutura básica institucional deve fundamentar-se no planejamentoe gerenciamento ambiental, com base jurídica, com relação à propriedade eutilização dos recursos naturais, ou seja, solo, subsolo, água, vegetação eassim por diante.

A garantia constitucional dos direitos humanos básicos, a liberdade depensamento, de crença, de expressão e organização e as ordens básicas entreo poder do Estado, os direitos e responsabilidades individuais são essenciaisao processo social de busca de harmonia.

Reconhece-se que leis e regulamentos sobre a proteção dos recursoshídricos são indispensáveis.

Mas, é essencial a capacidade institucional e operacional deimplementação em nível local.

A autonomia local tem um forte e importante papel, do ponto de vistade interesses locais. Instituições legais para lidar com reclamações de

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comunidades e usuários locais, para ordenar as queixas sobre açõesadministrativas e para promover "arbitragens" para soluções de conflitos emrelação ao desenvolvimento e o meio ambiente devem ser estabelecidas.

A existência de leis impositivas e regulamentos estritos não garantenecessariamente sua efetiva implementação.

O planejamento e o processo de decisão política no desenvolvimentodo plano ecológico-econômico, em nível nacional, regional e local, são aschances mais importantes e efetivas para se buscar a harmonia entredesenvolvimento e meio ambiente.

Os estudos de impacto ambiental, o exercício de se ouvir o público e adivulgação de informações são efetivos instrumentos institucionais paraencorajar a participação e cooperação pública.

A divisão de recursos e a distribuição dos riscos/custos/benefícios en-tre os indivíduos, organizações, Estados e países interessados são fatores cruciaispara a harmonia apropriada entre o desenvolvimento e o meio ambiente.

A responsabilidade social das empresas, em termos de custos deadministração ambiental, relações com Governo, comunidade, relaçõesinternacionais e desenvolvimento econômico sustentável, em complementaçãoao serviço para os clientes e usuários, ocorrerá, naturalmente, com acontrapartida de uma gestão patrimonial negociada, entre todos estes segmentos.

A aproximação inter-setorial, inter-departamental, inter-ministerial entreo Governo Federal, Estadual e local é essencial na busca de harmonia entre odesenvolvimento e o meio ambiente.

A Administração ambiental é freqüentemente um setor pequeno e fracodentro do sistema administrativo tradicional, mantido por políticos e gruposde interesse.

Organizações de comunidade e organizações não-governamentais paraações internacionais relacionadas com o meio ambiente também têm umimportante papel no equilíbrio de interações de poder entre o público, oGoverno e a indústria, no processo de planejamento e decisão dodesenvolvimento e meio ambiente.

A comunicação de massa tem freqüentemente o papel decisivo deinfluenciar decisões políticas, assim como o de criar um público bem informado.

A ciência e a tecnologia desempenham um importante papel naidentificação dos problemas, na avaliação e determinação das inter-relaçõesentre o desenvolvimento e o meio ambiente e também na solução dasdificuldades para alcançar a harmonia entre eles.

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Entretanto, a ciência e a tecnologia têm os potenciais dos dois gumes daespada: "prós" e "contras" a harmonia, em várias situações sociais e políticas.

A diferenciação de papéis entre ciência, administração, política e ojudiciário deve ser apropriadamente orientada e observada.

Reconhece-se que a prevenção é bem menos onerosa que otratamento posterior.

Mas, a precaução, também, há de ser buscada, na medida em que sereconhece que a questão do desenvolvimento e meio ambiente não escapa devárias incertezas científicas.

Esta é a razão da grande diversidade de percepção, compreensão ejulgamento das mesmas matérias relacionadas ao desenvolvimento e meioambiente.

Além disso, há também políticas e interesses conflitantes, em relaçãoao desenvolvimento e ao meio ambiente, seja entre indivíduos, seja entreempresas e governos, particularmente, para lidar com a harmonia entre odesenvolvimento e o meio ambiente.

É importante reconhecer que matérias ambientais e de desenvolvimentoestão fortemente ligadas a assuntos sociais, culturais e políticos, no estágiode desenvolvimento histórico de nosso país.

Concluindo, a gestão dos recursos hídricos deverá efetivar-se, após umamplo processo de negociação entre as partes envolvidas, partes estaslegitimadas através de mediadores, de maneira a refletir não só osconhecimentos técnicos e científicos, como também, os princípios que onorteiam, as adaptações à realidade ambiental e à estrutura jurídico-institucional em vigor em nosso país e nos diversos Estados da Federação.

Existem sérias lacunas e descontinuidades a serem preenchidas, antesdas tomadas de decisão e antes de sermos empurrados, a esmo, para frente, sejaem nome da proteção dos recursos hídricos, seja em nome da sustentabilidade.

Se os recursos hídricos são importantes, outros recursos o são, igualmente,quais sejam, a manutenção de um sistema jurídico coerente, em que possamosdelinear com clareza as regras do jogo; a credibilidade de instituições às quaispossamos recorrer, quando nos sentirmos lesados; a abertura de canais deinformação; o controle sobre aquilo que é nosso, seja em termos de dinheiropúblico, seja em termos de riquezas naturais, sobretudo quando existem fortesperspectivas de investimentos estrangeiros, no setor de saneamento público.

Não tem sido esta a política cultural em nosso país.

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Perfil curricular dos autores

Emilio Yooiti Onishi – [email protected] – é engenheirometalurgista pela Escola Politécnica da USP, engenheiro sanitarista pelaFaculdade de Saúde Pública da USP e “Master of Science” em EngenhariaAmbiental pela University of Cincinnati – USA. Exerceu funções de:Gerente de Controle de Poluição Ambiental na CETESB; Assessor doDiretor Industrial na COSIPA; Gerente Corporativo de Meio Ambientena PHILIPS do Brasil; e Chefe do Departamento de Meio Ambiente naFIESP. Atualmente é Diretor da LANDMARK - Engenharia AmbientalLtda.

Maria Christina Napolitano - [email protected] – é formada emDireito pela USP. Mestre em Ciências Ambientais pela UniversidadeEstácio de Sá – UNESA/RJ. Pós-graduada em Direito Ambiental e emPerícia e Auditoria Ambiental pela UNESA/RJ. Doutoranda em Direitona Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP. Ex -Técnica em PesquisasAmbientais da Confederação Nacional da Indústria – CNI. Consultoratécnico-jurídica junto ao Departamento de Meio Ambiente eDesenvolvimento Sustentável da FIESP. Diretora da ECOGREEN –Assessoria Ambiental Ltda.

Ao contrário, tem havido uma cultura de rupturas, que não acompanhao processo dinâmico de evolução da sociedade e dos recursos naturais, nemharmoniza seus vários segmentos e interfaces.

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GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOSE A AGRICULTURA IRRIGADA

Josefa Salete Barbosa Cavalcanti

1. Introdução

“Mais do que antes, então, natureza é algo feito. Para alguns istorepresenta o fim da natureza (McKibben, 1989, in Braun e Castree,1998),uma resposta enraizada firmemente num moderno realismo no qual a naturezaé vista como externa à sociedade: a sua outra. Desta perspectiva a naturezadeve ser protegida contra sua destruição pelos humanos e as linhas de batalhadevem ser marcadas para preservar seu caráter puro. Para outros, orelacionamento da humanidade com a natureza, em todas as suas permutações,é inevitável e inerentemente subversivo do dualismo natureza-sociedade. Vistadesta perspectiva, a intervenção humana na natureza não é assim não naturalnem algo a temer ou criticar. Isto não descarta limitadas ações humanas emsituações específicas, mas dessa perspectiva o que está em jogo não é preservaros últimos vestígios da natureza pura, ou proteger a santidade do natural,mas construir perspectivas críticas que focalizem a atenção em como naturezassociais são transformadas, por quais atores, em benefício de quem, e comquais conseqüências sociais e ecológicas.” (Braun e Castree,1998 :4)

2. A gestão da água. Um espaço de contestação

Neste artigo estou estimulada a contribuir com o debate que seestabelece em torno do que prevê a lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997 queinstitui a Política Nacional e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento dosRecursos Hídricos, a partir de uma das suas interfaces, a irrigação. Para isto,examino casos nos quais a gestão desses recursos e as cobranças sobre osseus usos estão sendo objeto de contendas para que, ao apontar processossociais que emergem das interações entre a água e a agricultura, em situaçõesatuais, possa subsidiar a implementação dos instrumentos previstos na lei.Isto será feito com e a partir de referências empíricas sobre modos de

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apropriação e usos dos recursos hídricos na agricultura orientada paraexportação. Tal estratégia analítica me permite fazer uma associação entreprocessos sociais que são gerados nos contextos de irrigação em geral edelinear caminhos para novas formas de gestão que sejam capazes deimpedir, minimizar, prevenir e administrar tensões que venham a emergirna dinâmica da imple-mentação da lei.

É interessante ponderar que as tensões e conflitos que se desenvolvemnas áreas irrigadas têm origem no fato de que as populações que dependemda irrigação no Brasil são também dependentes da terra para a sua reprodução.Entretanto, ao contrário do que acontece nas suas relações com a terra, elasdesconhecem o valor econômico da água ou raramente o incluem nos cálculosdos custos de produção

Essa incapacidade de reconhecimento do valor dos recursos naturaisestá também presente nas análises sobre o desenvolvimento agrícola, as quaispouco têm realçado o valor e os custos dos recursos hídricos nas atividadesprodutivas. Nessas análises, o entendimento das relações entre capital etrabalho como aquelas capazes de gerar produtos para a subsistência e areprodução das populações e garantir a circulação de bens nos mercadosminimizam, pela ênfase sobre a terra, o lugar dos recursos hídricos nacomposição dos “recursos naturais” necessários aos empreendimentosdessa natureza.

As análises clássicas sobre o desenvolvimento agrícola se detiveramna repercussão sócio-econômica de tipos específicos de controle do capitalsobre o trabalho atentando, ora para o tamanho do empreendimento, ora parao tipo de exploração de uns sobre os outros, segundo a lógica das unidadesprodutivas. Nelas há questionamentos sobre os usos e abusos da terra, dotrabalho e do trabalhadores, mas pouco sobre o caráter limitado e perecívelda natureza. Geralmente, como afirma Goodman (1999), enfatiza-se a segundanatureza, uma de suas interfaces – a agricultura gerando, por conseguin-te, uma noção vaga do valor e vulnerabilidade de recursos que são, porrazões políticas ou epistemológicas, relegados a um plano inferior dereconhecimento social .

Essa tendência a desconsiderar a natureza e a sua construção social,enquanto valor econômico primordial, tornou-se uma ameaça para asustentabilidade de qualquer projeto de desenvolvimento. Em assim dizendonão estou, todavia, definindo a quem cabe arcar com os ônus dos seus usos;este é um tema para definição social de agentes e sociedades envolvidas.Estou, sim, tentando refletir sobre problemas que surgem a partir das práticase dessas formas particulares de apreensão da realidade.

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No Brasil, por exemplo, a terra tornou-se mercadoria de elevado valore fora do alcance da grande maioria da população, sendo, por isso, fontepermanente de conflitos. Já a água, embora tenha sido sempre objeto de disputanas áreas e regiões de seca, pela escassez e contestação da privatização dereservatórios construídos com recursos públicos, não foi regulamentada quantoaos usos e formas de acesso. Neste aspecto, a lei aqui em análise constitui umfato novo, embora requeira um redimensionamento quanto aos seus possíveisusuários, para que não sejam penalizados e excluídos dos seus benefícios asmesmas faixas de população, historicamente, privadas do acesso à água e aosoutros recursos .

3. Interesses locais e globais na gestão dos recursos hídricos

3.1 Irrigação e agricultura de exportação

No mundo contemporâneo os usos e controles dos recursos “naturais”são, simultaneamente, objetos de interesses locais e globais. Cavalcanti(1997)chama a atenção para o modo como a globalização dos sistemas agro-alimentares tem influenciado em regiões produtivas particulares, sublinhandoque a ênfase no atendimento aos padrões externos de consumo tem produzidoefeitos especiais sobre o desenvolvimento das áreas irrigadas. Para citar alguns:a irrigação contribui para acentuar as vantagens comparativas regionais pelapossibilidade que oferece à multiplicação dos tempos e formas de uso dosrecursos implicados, pelos quais as mercadorias chegam aos mercados segundoa demanda, mesmo fora dos tempos considerados “naturais” de produção.Entretanto, essa ênfase nos mercados deve ser monitorada para prevenir osdesgastes ambientais que provoca. Marsden, Cavalcanti e Ferreira Irmão (1996)chamam a atenção para a crescente vulnerabilidade dos terrenos irrigados,provocada pelo stress do incremento do trabalho e das inovações tecnológicas.

A literatura sobre a globalização dos alimentos (Goodman e Watts,1997; Bonanno, et al. 1994) tem analisado modos como a produção demercadorias passa a ser gerida por um padrão de qualidade externamentedefinido, por exigências de que devem conter referências sobre as condiçõeslocais e do modo como a qualidade dos vários meios de produção nelas seincluem. Mesmo assim, os controles sobre os usos da natureza são aindatênues.

A incorporação da natureza no conjunto das construções sociais é umfato recente. A natureza e a natureza da construção desses recursos vêmmerecendo, sob uma nova ótica, a atenção de distintos campos do

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conhecimento (Ver, Braun e Castree,1998). Igualmente é possível que asmudanças no consumo venham influenciando a diversificação dos usos danatureza e do consumo de produtos mais naturais, exóticos e saudáveis; domesmo modo, contribuem para a intensificação das relações entre regiões,via novas formas de lazer, criando situações de encantamento e de riscos paraos seus usuários e para as bases ambientais, como bem afirma Marsden (1997):

“As demandas externas sobre a qualidade dos produtos alimentícios, sematentar para as condições ambientais e do trabalho nas quais esses são produzidos,tendem a desvalorizar as condições ambientais e, assim, exacerbar a suavulnerabilidade. Os processos levam a novos padrões de desenvolvimentoambiental desigual, pelos quais diferentes regiões intensificam ou desintensi-ficam suas agriculturas e o uso e oferta de água.” (Marsden, 1997:322)

Mas é possível afirmar que os requerimentos quanto à qualidade dosprodutos e o reforço dos limites aos usos do meio ambiente e de condiçõessaudáveis de produção podem auxiliar os produtores na luta pela melhoria daqualidade nos usos dos recursos naturais, na qual a regulação dos recursoshídricos são da maior importância. Assim, as populações locais podemencontrar aliados em parcelas de exigentes consumidores globais de suasmercadorias. Na fruticultura de exportação, os locais de cultivo, de trabalho ede embalagem dos produtos são inspecionados pelos possíveis compradores.Igualmente, a crescente preocupação com a qualidade do meio ambiente estásendo incluída entre os requisitos de qualidade dos produtos.

Nas áreas recentes de irrigação1, é facilmente observável como,originalmente, o valor econômico dos recursos hídricos foram poucoreconhecidos nos custos dos meios de produção. Para os produtores do Valedo São Francisco, por exemplo, a água usada nas suas plantações seria umcomponente natural, próprio da irrigação, que não era incluída nos custos dasua produção. Apesar de pagarem uma taxa de utilização da irrigação, eles aesta se referiam como relativa “à eletricidade que proporcionava a chegadada irrigação aos seus campos”; como, numa das falas dos nossos informantes:“Por que pagar por um recurso que existe em abundância?”

Entretanto, desde 1997, pelo menos, a cobrança das taxas e aimplementação das penalidades respectivas pelo não pagamento das taxas de1 O Vale do São Francisco é aqui restrito à região formada pelo pólo de irrigação Petrolina(PE)/Juazeiro(BA).Com uma área irrigada de mais de 70.000 ha, com potencial para mais de 100.000 ha, a região destaca-sepela produção de frutas para exportação. Os dados aqui apresentados são resultados de uma pesquisarealizada a partir de 1993, com apoio do CNPq. A abordagem metodológica utilizada inclui trabalho decampo no qual, além do estudo de fontes secundárias, foram usadas técnicas qualitativas de entrevistascom informantes-chave, análise de histórias de vida e observação das atividades diárias de colonos,grandes produtores, trabalhadores e trabalhadoras foram utilizadas, juntamente com o uso de materialsecundário colhido junto às principais instituições da região.

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água, que na prática resultaram no corte da água, tornaram-se foco de disputas;isto porque, no mesmo período, foram também atualizadas as normas quedefiniam a titulação dos lotes sob controle dos colonos e de outros produtores,tornando visíveis dois aspectos inerentes à gestão da atividade irrigada: a) avinculação das taxas de água aos seus usos, implicando na atribuição de umpreço e b) a descentralização da administração das áreas irrigadas, antesrestrita ao Estado, através de suas agências governamentais.

Nesse momento dramático de tentativas de redução do apoio do governofederal à prática da agricultura irrigada, claramente evidenciada pela retiradada CODEVASF das ações diretas de assistência técnica aos produtores, viacriação de distritos de irrigação, aos quais caberia participar na gestão e nopagamento dos custos da assistência técnica, emergiram situações conflituosas.

Os confrontos entre agentes governamentais e produtores tornaramclaras, para os segundos, a necessidade de mediadores e de constituição deuma categoria para resolver os impasses criados quanto aos seus distintosobjetivos, contribuindo para a formação da categoria irrigantes, que, segundocomentaram os produtores da região, deveria defender os interesses dosusuários da irrigação. Este fato tornou-se relevante para o estabelecimentode alianças entre os setores públicos e privados na gestão dos recursos,mesmo porque, apesar de mais de 20 anos de irrigação, os produtores do Valenão haviam constituído uma categoria social identificada como usuária dairrigação e dos seus benefícios. Subsidiados ou endividados que ficaram pelasestratégias desenvolvimentistas adotadas para o setor agrícola, os colonos eoutros produtores do Vale somente se aperceberam de que não tinhamcapacidade organizada para lutar pelos seus interesses quando foram amea-çados do corte da água em seus lotes. A contestação ao modo como foramimplementadas as normas deu visibilidade a problemas que podem surgirna implementação das novas formas de gestão e controle da água nasregiões irrigadas. O detalhamento deste caso nos oferece caminhos paracompreensão do processo.

4. Os usos da água e a gestão ambiental

Planejada e desenvolvida através de ações do Estado brasileiro, sob oimpacto da modernização dos anos 1970, a região do Vale do São Franciscoapresenta, atualmente, condições excepcionais de produção geradas sobimpulso da irrigação e das novas demandas do mercado global (Cavalcanti,1997).O desenvolvimento recente da fruticultura e seus índices significativos decrescimento em quantidade e em qualidade, conforme avaliação dos seus

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principais compradores da Europa e dos Estados Unidos, tornaram, esta,uma região especial no contexto do semi-árido nordestino. A possibilidadede uso e controle das águas, criada com a construção das obras hidrelétricas- Sobradinho, por exemplo - e a expansão dos esquemas de irrigação, apoiadospor recursos públicos e financiamento de agências internacionais de fomento,dinamizaram a economia regional, com crescimento do emprego e deatividades que se destacaram enquanto elementos de atração de migrantes dedistintas origens. Os municípios de Petrolina(PE) e Juazeiro(BA) tornaram-se exemplares (UFPE-PIMES,1991) ao dobrar sua população no período de1960 a 1990 (FIBGE,1991, Cavalcanti, 1996a).

A expansão das atividades frutícolas para mercados e nichos demercados encontrou na irrigação o meio para garantir facetas de suacompetitividade. Movidos pela necessidade de oferecer mercadorias em tem-pos e espaços distintos, os produtores do Vale encontram na irrigação o recursopara potencializar as características edáficas e climáticas da região paracompetir com uma produção just in time, resguardados os limites do tempo edisponibilidade tecnológica.

Entretanto, a necessidade de produzir e os artifícios tecnológicos usadospara gerar produtos com padrão de qualidade, num tempo particular, temestimulado os agentes produtivos a interferir diretamente no meio ambiente,principalmente, nos recursos terra e água para melhorar a competitividade dosprodutos, face às vantagens comparativas da região, no que diz respeito àscondições climáticas e baixa remuneração da mão de-obra (quando comparadaa outras regiões produtoras mundiais). Essas ações podem, entretanto, pôr emrisco esses mesmos recursos e as suas populações. Um fato observado naprodução de mangas no Vale do São Francisco revela como, para aproveitar asoportunidades e janelas de mercados, os processos produtivos são induzidos ouretardados pelo uso de inovações tecnológicas, gerando resultados sociais eambientais contraditórios: por um lado, as quantidades e qualidades dosprodutos são atingidas e mercados são conquistados; por outro lado, crescemos riscos de contaminação da água e de salinização dos solos, porsuperexploração ou práticas e usos inadequados de esquemas de irrigação.

Nessa perspectiva, é possível afirmar que com a irrigação a produçãose expande, criam-se riqueza e trabalho, mas também acentua-se avulnerabilidade dos agentes produtivos, particularmente dos trabalhadores,que passam a conviver perigosamente com tóxicos e ambientes poluídos,gerados por práticas produtivas que deixam de calcular os riscos sócio-ambientais nos seus custos e benefícios.

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Essas questões são especialmente relevantes no momento em que ocontrole das áreas irrigadas e os gastos relativos à infra-estrutura, administraçãoe estratégias de comercialização dos produtos tendem a passar, gradualmente,do Estado aos produtores (colonos, empresários). Isto vem acontecendo noVale do São Francisco, em meio a tensões entre os agentes envolvidos. Comconsultorias próprias, os atuais Distritos de irrigação vêm experimentandoum lento e gradual processo de privatização, que ocorre, apesar das resis-tências e conflitos vividos pelos distintos atores sociais, na tentativa de darcontinuidade às suas atividades, num contexto em que o apoio do Estado ficareduzido ao financiamento das instituições gestoras desses empreendimentos,como também num tempo em que se ampliam as exigências dos mercadosquanto à qualidade e competitividade do setor.

Nesta situação é necessário esclarecer que, embora plenas de ambigüidade,o caráter dessas ações do Estado merece ser compreendido e talvez redefinido,para reduzir as incertezas do setor. De 1996 a 1997 surgiram rumores de que aprincipal agência de coordenação e planejamento do desenvolvimento do Valedo São Francisco, a CODEVASF, seria desativada. Esses rumores eramsustentados, também, pela implementação das estra-tégias de privatização dosperímetros, terceirização das tarefas próprias da assistência técnica e extensãorural. Os requisitos de titulação dos lotes e reforço à cobrança das taxas de águasurgiram como a gota d’água que faltava para a eclosão de um movimento deprotestos de atores sociais que reclamavam a manutenção de subsídios àsatividades do setor e a redução dos preços pagos pelos insumos, particularmenteaqueles relativos à energia e à água.

Dois movimentos sinalizaram os problemas vividos naquela área deirrigação: o movimento dos trabalhadores por salário, com uma paralisaçãode 3 dias que incluiu, também, em sua pauta, a reivindicação de se ausentaremdos locais de trabalho nas horas seguintes à pulverização dos campos, pormedo de intoxicação; o outro, dos irrigantes inadimplentes, mobilizados con-tra as penalidades que lhe seriam impostas pelo não pagamento da conta daágua dos seus lotes. Para os propósitos deste artigo, passo a analisar omovimento dos irrigantes.

5. O movimento dos irrigantes2

5.1 Um pequeno histórico

Inconformados quanto às respostas recebidas dos representantes daCODEVASF e da administração do distrito de Irrigação Nilo Coelho às suas

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demandas, os irrigantes, como se autodenominaram, organizaram umalista de reivindicações que, posteriormente, levaram a Brasília e ao CongressoNacional:

1) Titulação; 2) assistência técnica; 3) resolver o problema do paga-mentos das taxas K1 e K2 da água; 3) financiamento e subsídios na energia;4) formação do sindicato dos irrigantes.

Há que se reconhecer que os colonos irrigantes, embora tivessemconhecimento das exigências para titulação e privatização dos seus lotes,assustaram-se com os cálculos dos juros sobre o valor esperado. Além do que,não acreditavam na interferência direta do Estado no setor. Realmente, o papeldo Estado no desenvolvimento regional estava sendo revisto.

A nova proposta de desenvolvimento sustentável atribuiu à CODEVASFo principal papel na condução das novas políticas para o setor nos próximos30 anos. Face às novas ações, revitaliza-se, pois, a CODEVASF, que passa aassumir a liderança do novo projeto para a bacia do São Francisco, com obrasde incremento de vazão, com canais e reservatórios interligados, abastecidosa partir do rio nos três reservatórios existentesm - Sobradinho, Itaparica eXingó (Brasil, 1996:31) -, além de ter a responsabilidade sobre grande númerode projetos de irrigação (Brasil, 1996a:45).

Observa-se, pois, que ao lado de ações para reduzir a presença doEstado surgem, paradoxalmente, outras para legitimar a presença desse agente.Os mecanismos utilizados não diferem, praticamente, dos anteriores. Isto é,constituição de novos perímetros irrigados, embora com uma forte preocupaçãoambiental, que fez falta nas experiências prévias, e com um novo perfil deprodutores mais empreendedores, que são legitimados, já na proposta, paraatuar na região. É assim que o Estado assume sua proposta neoliberal, dedefinir o público alvo de suas ações, de acordo com as perspectivas de mercado,embora retenha algum espaço para produtores familiares. Anteriormente,privilegiavam-se lotes de colonos e de empresas, numa dicotomia que atribuíaa uns a diversidade de cultivos e a outros a sua especialização. O sucesso ouinsucesso de cada um desses empreendimentos dependia das suas trajetóriase interações com as políticas e práticas econômicas do setor (Cavalcanti,1999 a).

É também um fato que a realidade atual é diferente daquela do final dadécada de 60; as exigências dos mercados são outras e padrões de qualidadese impõem sobre a produção em suas diferentes fases, exigindo dos produtoresformas de gestão adequadas à busca de competitividade do setor. Produtores

2 Nesta parte do trabalho estamos usando parte da análise do material empírico incluído num outro artigo(Cavalcanti, 1999b).

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mais capacitados, tecnicamente, passam a ser incluídos entre os que terãoacesso aos novos lotes. Na prática, a nova proposta tenta acompanhar,refletir e interferir nos processos sociais em curso na região, como, por exe-mplo, uma diferenciação interna entre produtores (Cavalcanti, 1995), pelosquais ex-colonos passam os seus lotes a produtores com mais recursosfinanceiros, mais preparação educacional ou tecnicamente mais quali-ficados para atuar no setor.

5.2 As condições de produção e o caráter da mobilização

“As regiões frutícolas orientadas para exportação na América do Sulconvivem com ambientes sociais e produtivos diversos. Entretanto, é possívelafirmar que há uma certa complementaridade inicial de áreas de sequeirocom vales irrigados e produção extensiva/intensiva associada às necessidadesde colonização de áreas novas e emprego de mão-de-obra que não se mantêmporque a expansão das atividades mais dinâmicas aprofunda a heterogeneidadee assimetria nas formas de uso da tecnologia, trabalho e recursos naturais,distinguindo-se na sua relação com outros tipos de exploração econômica. Éassim que são delineados modelos de apropriação do espaço, do meio ambientee do trabalho que se baseiam num padrão de qualidade das mercadorias quese destinam ao mercado global.” (Cavalcanti e Bendini, 1999)

Desde o início dos projetos de irrigação do Vale do São Francisco, oscolonos e outros que tiveram acesso aos lotes desenvolveram as suas atividadesconsiderando sucessos ou fracassos como algo de competência individual.Eles conviviam num terreno para cujo cultivo a provisão do Estado garantiacampos irrigados e assistência técnica, pelo menos. Sabiam que os lotes quelhes foram atribuídos no início necessitariam ser regularizados por um processode titulação, num prazo de vinte anos. As normas que definiam as formas deacesso aos lotes e à irrigação estavam também indicadas. Alguns deles tiveramtambém acesso a financiamentos bancários, mas, sem sucesso noempreendimento agrícola, foram à bancarrota.

Apesar desses fracassos explicados pela ineficiência individuais nouso dos recursos conseguidos, havia entre todos a expectativa de que o quelhes havia sido aportado pelo Estado continuaria anos afora, de modo quenão acreditavam na implementação das normas a priori definidas. Foi somentequando a cobrança da taxa de água3 passou a ser usada como meio para definir osque permaneceriam nos lotes – e 72% dos usuários estavam inadimplentes–,3 A taxa de água é referente à energia paga para transportar a água aos canais de irrigação, e tambémadministração do distrito de irrigação.

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que eles decidiram se organizar para obter a liberação dos pagamentos devidos.Além do mais, a implementação das normas de controle dos pagamentosocorreu num ano complicado, como afirma um dos técnicos, em que “a pragada mosca branca acabou com grande parte da produção de tomate e de outrasculturas; também houve flutuação de preços das mercadorias”. Esse era oquadro geral da situação crítica dos colonos, pequenos produtores do Vale.Todos esses pontos contribuíram para unir os colonos na busca de uma soluçãopara os seus problemas mais imediatos. Pelas tentativas, sem sucesso, deencontrar um espaço comum, seja como produtores ou como trabalhadoresrurais, chegaram a se identificar como irrigantes.4

Em 1997 houve uma mobilização para criação do sindicato dosirrigantes. Tal movimento começou com um protesto dos colonos produtorescontra uma determinação dos administradores do projeto Nilo Coelho, queconsistia em cortar a água usada na irrigação dos lotes. O primeiro problemaa resolver foi o da identidade dos participantes. Inicialmente, tentaram seapoiar no sindicato dos trabalhadores, mas não puderam, como descreve umdos nossos informantes: “Porque o sindicato dos trabalhadores é só dostrabalhadores”. Depois, no sindicato patronal. Mas não se enquadravamtambém nessa categoria.

A idéia de usar o termo irrigantes objetivava agregar todos os membrosdo Distrito, que havia sido formado para possibilitar a transição do apoio daCODEVASF- Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco,instituição de planejamento e administração do Vale do São Francisco, àautogestão dos produtores locais. Uma das normas do seu regulamento eraaquela que definia sanções para os que não pagassem os débitos relativos aouso da água para irrigação e que, na primeira tentativa de implementação, foicontestada pelos produtores, dando origem ao movimento dos irrigantes.

5.3 A organização da resistência e das alianças. Formas de governançana gestão dos recursos hídricos

A expansão da agricultura do Vale foi estimulada pelos novos requisitose regulações dos mercados, pelos quais padrões de qualidade e competitividade

4 A literatura tem indicado como a produção e distribuição dos alimentos é, na atualidade, uma arena dedisputas no contexto da globalização. Numa rápida observação de grupos que se constituem no contextoda produção e consumo de alimentos, por exemplo, podemos apontar: grupos e associação de produtores(Cavalcanti, 1997), sindicatos e associações de trabalhadores (Bendini e Péscio, 1996, Bendini e Cavalcanti,1996), grupos e associações de consumidores (Marsden et al., 1998), além de representantes das modernascadeias de alimentos que se definem mais objetivamente nas ações pontuais de supermercados. Nestecaso, a constituição da categoria irrigantes objetivava reunir todos os que dependiam da irrigação fossemcolonos, pequenos, médios ou grandes empresários.

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passaram a ser as principais referências para produtores e trabalhadores. Essanova condição do mercado tem requerido mercadorias específicas em tempose formas definidas. São bem sucedidos aqueles que dominam o saber e opoder de oferecer ao mercado produtos de qualidade. Assim, o que poderiaser considerado um pequeno movimento de irrigantes passou a expressar outrosaspectos relevantes da exclusão dessa categoria social, que tem, inclusive,dificuldade de se fortalecer na busca de um projeto comum.

Nessa conjuntura, os irrigantes acham difícil reconhecer quem são osseus aliados ou os seus opositores. Sendo assim, dirigem a sua frustração e asua desesperança contra os que conhecem mais de perto, ou seja, as agênciasde planejamento estatal e o poder local. Eles protestaram, segundo seuentendimento, contra a sua exclusão dos benefícios do desenvolvimento daregião. A longa pauta de reivindicações indica uma questão que poderia serpouco notada, não fora o contexto de desenvolvimento do Vale: a necessidadede competir nos mercados, de se criar câmaras para a discussão dos problemasreferentes à produção destinada aos mercados locais e regionais, a exemplodas câmaras da manga e da uva, formadas pelos produtores que estãocompetindo nos mercados globais. A busca de um rótulo, de uma marcaprópria, sinaliza a necessidade de participar, numa situação em que eles deixamde compartilhar, plenamente, as vantagens comparativas oferecidas pelo Valedo São Francisco.

Entretanto, os distintos problemas que afligem os colonos e a percepçãoque cada um tem, segundo as características de sua unidade de produção,ciclo de vida familiar e recursos disponíveis, impediram a coesão domovimento, que não recebeu o apoio de todos. A pauta de reivindicaçõestentava incluir os vários problemas enfrentados pelos produtores, no sentidode formar uma agenda comum, entre esses:

• Revisão do valor dos lotes. O valor dos lotes, à época da titulação,considerado exorbitante por aqueles que não fizeram o pagamento notempo definido, foi acrescido de correção monetária. Como informaum dos participantes do movimento: “Um lote de R$ 18.000,00 chegoua uma dívida de R$ 60.000,00. Com o protesto, eles dilataram o prazopara pagamento em vinte vezes e eliminaram a correção monetária”.• Assistência técnica. Elemento muito importante, mas, segundo uminformante: “Quem não faz um projeto para o Banco não temassistência”.

• Fortalecimento das associações dos donos de lotes. Segundo uminformante: “Cada núcleo tinha uma associação que está quasemorrendo. Hoje as associações estão desativadas. Desse modo, pediu-

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se aos políticos que tudo o que viesse para o Distrito passasse pelaassociação”. É importante registrar que, na constituição da comissãode mobilização, participaram outras instituições que estão presentesna vida diária da região, como as Nações Unidas, através do PNUD –Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e SEBRAE –Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena Empresa. Sob a orientação dossindicatos dos trabalhadores e patronal, fez-se um estudo das condiçõessócio-econômicas gerais. Assim, constatou-se que 72% dos colonosestavam inadimplentes, sendo que alguns tinham mais de vinte contasatrasadas, com valores acima de R$ 15.000,00.

• Melhoria da estrada de acesso, porque “se há problema na entradado lote, a máquina (do Distrito) vai lá. A máquina sempre existiu e fazparte do custo fixo, desde o começo do Distrito. Antes o Distrito escoavao produto; este é um direito que já temos”. Há uma taxa deadministração, estradas etc. e a assistência técnica, parte de um convêniocom a CODEVASF.

• Criação das câmaras de produtos, a criação das câmaras de banana,goiaba, de outras frutas e do selo tudo para exportar. Um outro pontoacordado pelos participantes do movimento foi que aqueles que “nãotêm perfil para a agricultura deveriam ser retirados do lote, comindenização.

Segundo um dos membros da comissão, “aqui, agora, chegou a hora dotudo ou nada. Ou se organiza ou não ganha nada. Eu sou um dos sofredor; jáfui contribuinte de três anos depois o meu lote salinizou; quando fizeram odreno fiquei com 4,8 ha; produzo banana e côco; deu um vento, caiu 50% daprodução de banana”.

Para um dos técnicos do Nilo Coelho, o movimento visava impedir ocorte da água anunciado para aqueles que estavam inadimplentes há mais devinte meses. Por isso, eles fizeram até uma passeata para destituir o conselhode administração do Distrito. Realizaram a eleição, mas perderam.

Esse movimento contribuiu para afirmação de uma identidade – deirrigantes em confronto com os poderes constituídos, representados pelaCODEVASF e o poder local. Segundo um colono, 42 anos, colono proprietáriode 6 ha irrigados:

“Irrigantes, o grupo que se mobilizou para ver se adquiria maisinvestimentos e convívio melhor na sociedade. Eles estavam oprimidospor falta de investimento no projeto. Há os individualistas; osinadimplentes. Os inadimplentes se juntaram, formaram um. Só 25estavam em dia e não tinham condição de segurar”.

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“Primeiro foi um movimento para mexer com o Nilo Coelho completo.Fechamos a ponte por uma hora e meia. Tinha mais de trezentosirrigantes; tratores, máquinas, carros. Fizeram uma comissão para falarcom o presidente da CODEVASF, que marcou de cumprir com as tarefase não cumpriu. Nesse tempo, o ministro da Agricultura não deu cartazao movimento”.

O discurso desse informante delineia as estratégias usadas pelosprodutores para se constituírem enquanto categoria; nesse percurso, revelam-se os confrontos e oposições que expressam as marcas da diferença e adificuldade de constituição de novas formas de governança:

“Aí a gente começou; teve um movimento com a FETAG - Federaçãodos Trabalhadores na Agricultura, com a CONTAG - ConfederaçãoNacional dos Trabalhadores na Agricultura. Fizeram um movimentoque durou oito dias, com duas mil pessoas. Quando saímos do NiloCoelho com trezentas pessoas, o povo começou a acreditar. Teve asnegociações com a prefeitura; não resolvia nada por aqui. A gentecomeçou a arrecadar dinheiro para ir a Brasília.

Em Brasília, reunimos quatrocentas pessoas. Chegamos lá; fomos aoalojamento do SESI- Serviço Social da Indústria , com apoio da FETAGe CONTAG; invadimos a CODEVASF; antes tentamos negociar a pauta.”

Essa pauta incluía estas questões: 1) titulação; 2) assistência técnica;3) o problema do K1 e K25 da água; 4) financiamento e subsídio na energia;5) sindicato dos irrigantes. Ao falar da situação dos “irrigantes”, o nossoinformante comenta ainda:

“Nos bancos não somos vistos com valor. Hoje eles não têm cadastro;existe sempre um empecilho; o pequeno não tem vez, quem tem é oempresário. Queremos comprar a terra, mas que compre terra com preçojusto, que possa pagar.

Houve pressão da CODEVASF: ou os colonos faziam a assinatura dacompra do imóvel ou eram despejados. Queríamos que os bancosdessem condições de trabalho digno e justo. Por incrível que pareça, oBanco resolveu financiar os que estavam na miséria. Não soubemoscomo. Em Brasília, a CODEVASF [prometeu que] ia estudar os 130casos; caso por caso e dar parecer. Ainda [todavia] nesses trinta dias aCODEVASF não pôde fazer.

A terra é muito importante pela sobrevivência. É o meio de convíviopara mim; tenho amor à terra. Não troco por nenhuma metrópole. Aqui

5 K1 e K2 são índices incluídos na conta da água, que contempla o uso do bem e taxas administrativas.

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é o meu lazer. O trabalho é um lazer. O sindicato dos irrigantes não vaiprosseguir porque existe política infiltrada no perímetro parabeneficiar políticos.

No momento a gente está prestando atenção às atitudes do governopara se mobilizar. Pretendem se transformar num sindicato forte parase aliar à FETAG e à CONTAG, que são fortes. Sem eles não tem jeitonada em Brasília. Fomos considerados pela FETAG”.

Esse informante não estava inadimplente; não tinha débitos. Perguntadoporque se juntou aos outros, assim respondeu: “Porque existia cabeça quepensava coisas distintas, vandalismo. Como conselheiro, vi que não era poraí, que podia fazer as coisas, com reunião chegava a Brasília. Aqui não vaihaver mais vandalismo, aprenderam a construir”.

A mobilização dos irrigantes revela aspectos importantes dos processossociais em curso no contexto da agricultura de exportação. A formação dacategoria e da identidade de irrigante resultou da luta de pequenos produtorescontra as ameaças à sua sobrevivência: contra as formas de expropriação dosseus meios de produção e contra a sua exclusão dos mercados mais competitivos.

6. Considerações finais

Como analisados, os processos sociais em curso na região objeto deestudo indicam alguns pontos que merecem ser abordados :

a) Nas condições atuais, o reconhecimento do valor econômico dosrecursos hídricos é algo ainda problemático para as populações usuárias.

b) Que a gestão desses recursos deve ser precedida de uma análise dascondições sócio-econômico-ambientais, a produção agrícola e areprodução social das populações locais;

c) Que apesar das dificuldades de formação de alianças e de estratégiasusadas para se legitimarem, os movimentos atuais de resistência aoafastamento do Estado da provisão e gestão dos recursos hídricostêm um potencial político que deve ser considerado enquanto basepara as formas de governança a serem instituídas nos novos contextosde utilização da água e do meio ambiente. Do mesmo modo, as aliançasde produtores e consumidores longínquos podem ser estimulantes paraconstruir bases mais sustentáveis de desenvol-vimento, sob a mediaçãode instituições várias e, principalmente, das representações políticas eprofissionais dos agentes produtivos e do Estado.

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

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Perfil curricular da autora

Josefa Salete Barbosa Cavalcanti - [email protected] - éprofessora do Departamento de Ciências Sociais da UFPE, atuandojunto aos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e em Antropologia.Mestre em Antropologia Social, Museu Nacional- UFRJ; Ph.D. Facultyof Economic and Social Studies, Department of Sociology, Universityof Manchester; Pós-doutorado: Department of Rural Sociology. Uni-versity of Wisconsin-Madison, Estados Unidos, e no Department ofCity and Regional Planning da Cardiff University. Dedica-se ao estudosda Sociologia da Agricultura. Área de interesse de suas pesquisas epublicações: globalização e agricultura, mudanças sociais, processos detrabalho e relações de gênero na fruticultura.

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SANEAMENTO E RECURSOS HÍDRICOS: OS DESAFIOS DAINTEGRAÇÃO E A URGÊNCIA DA PRIORIDADE

Dilma Seli Pena PereiraLuiz Antonio de Andrade Baltar

1. Introdução

A interface entre as questões relacionadas ao meio ambiente - em espe-cial à gestão dos recursos hídricos - e os serviços de saneamento é temafreqüente de debate há mais de uma década. As reflexões apresentadas nesteartigo, no entanto, resultam sobretudo do processo de discussão desse tema,que se iniciou no âmbito do Governo federal em 1992, no contexto dapreparação do Programa de Modernização do Setor Saneamento e do ProgramaQualidade das Águas, ambos financiados pelo Banco Mundial. Os autoresdeste artigo participaram desse processo –Dilma Pereira desde o seu início eLuiz Baltar a partir de 1994 –, no qual estiveram envolvidos, num primeiromomento, profissionais como Francisco Lobato, Tobias Jerozolimski, RicardoAraújo, Bruno Pagnocheschi, Oscar Cordeiro, Carlos Velez e, posteriormente,Ricardo Toledo, Nelson Nucci, Emerson Emerenciano e Marcos ThadeuAbicalil, e outros. O debate estendeu-se a todo o Setor Saneamento, eminúmeras conferências, seminários, Workshops e reuniões de trabalho. Esteartigo procura sistematizar as discussões havidas no período de 1992 a 1998.Em relação a esse processo de discussão, os autores gostariam de fazer umamenção especial ao trabalho de Francisco Lobato, sobretudo no que se refereao esforço inicial de construção da base conceitual para o tratamento da gestãodos recursos hídricos e da sua interface com os serviços de saneamento básico.

2. Base conceitual

O saneamento, stritu-senso, compreende ações relacionadas com oabastecimento de água tratada, com esgotamento sanitário e com a coleta edisposição final de resíduos sólidos. Em sua conceituação mais ampla,abrange também o tratamento e a disposição de outros efluentes, adrenagem e a vigilância sanitária, integrando, portanto, ações e serviços

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necessários ao provimento de condições de salubridade ao meio físico e aobem-estar da população.

Os problemas ambientais causados pela ausência dos serviços desaneamento inserem-se, de modo complexo, nas relações entre as sociedadese seus respectivos espaços geográficos, incorporando aspectos culturais ehistóricos. Resultam do padrão de apropriação que o homem faz do meioambiente enquanto “recurso”, o que exige um conjunto de regras, no âmbitoda Política Ambiental do País, a qual deve incluir a explicitação de conflitose de estratégias de resolução em face das políticas de desenvolvimentoeconômico e social. As avaliações dos impactos dessas políticas sobre o meioambiente e a decisão política tempestiva quanto às medidas mitigadoras ounormativas necessárias, associadas à capacidade empreendedora do Estadode transformar as limitações do uso de recursos naturais em oportunidadesde investimentos sustentáveis, conformam o padrão de apropriação dorecurso ambiental.

Por outro lado, o estabelecimento de limites admissíveis às atividadeshumanas de apropriação de recursos ambientais requer o conhecimento/mapeamento destes recursos e o seu monitoramento constantes. Esses limitessão um reflexo do conceito e da estratégia da sociedade em relação ao meioambiente, assim como da disponibilidade dos recursos ambientais, emquantidade e qualidade. A disponibilidade, de acordo com Lobato (1993),pode ter como determinante de seu potencial ou como condição limitante: acapacidade de suporte do substrato natural; a dinâmica dos processos efenômenos do meio físico; a disponibilidade de recursos naturais finitos; e ascondições necessárias à reprodução dos processos biológicos próprios a cadaespaço territorial.

O conceito de limite relaciona-se, sobretudo, à perspectiva dodesenvolvimento econômico sustentável numa visão abrangente, assegurandono longo prazo a reprodução da sociedade. Sem dúvida, o estabelecimento delimites para o uso sustentado de cada recurso não é uma tarefa trivial,principalmente ao se considerar as inter-relações e sinergias nas cadeiasreprodutivas e as pressões antrópicas a que os recursos estão sujeitos. Dependeem grande medida da estrutura institucional de cada setor.

O conceito de limite do uso dos recursos ambientais, sobretudo dosrecursos hídricos, considerados sob o ponto de vista das ações de saneamento,remete o foco, com maior ênfase, para as características dos processos deurbanização, resultantes da dinâmica da industrialização e dos padrõesde exploração agrícola, inerentes ao modelo de desenvolvimentoeconômico adotado.

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De fato, quer na sua conceituação mais restrita – saneamento básico -,quer na exploração mais abrangente do termo, os problemas de saneamentosurgem relacionados com a dinâmica local dos recursos hídricos e semprecomo demandas ou como conseqüências da concentração continuada dapopulação sobre uma mesma porção de território - dinâmica das águas xdinâmica da urbanização - (Lobato, 1997).

Embora as limitações impostas pelos recursos ambientais sejam atébastante previsíveis, nem sempre se concretiza a conciliação do binômioapropriação/reprodução. Os processos de industrialização e urbanização sema definição e a observância desses limites acarretam uma série deconstrangimentos à própria reprodução social.

Nas grandes cidades, nas aglomerações urbanas e nas regiõesmetropolitanas, por exemplo, ocorrem problemas relativos à disponibilidadede recursos hídricos, em face da ausência de adequadas medidas degerenciamento desses recursos e de proteção de mananciais de abastecimento,muitas vezes comprometidos pela expansão de suas malhas urbanas e peladeficiência nos serviços de coleta e tratamento de resíduos líquidos e sólidos.

São recorrentes, também, os problemas relacionados com a ocupaçãode áreas de risco, sujeitas ao deslizamento de encostas ou a inundações,oriundas da urbanização de várzeas e fundos de vale. Grandes centros urbanos,com elevada freqüência, enfrentam problemas com loteamentos irregulares,num processo de contínuo avanço sobre áreas, muitas vezes impróprias àocupação e desprovidas de infra-estrutura adequada, entretanto ocupadas, comalta densidade populacional.

Os quadros ambientais de maior gravidade costumam ter comocaracterística a sobreposição de vários desses problemas, inter-relacionadosem seus fatores de origem. Esta observação encerra um elemento conceitualimportante: as questões ambientais vinculadas ao saneamento não seconfiguram, portanto, como uma tipologia de projetos setoriais, mas ocorremsobre espaços geográficos determinados, nos quais se observa uma conjugaçãocrítica de problemas interdependentes, cuja combinação obedece a uma grandevariedade de nuances, estabelecidas em função do histórico de ocupação,características geofísicas e dinâmica econômica, entre outros fatores.

As interfaces dos serviços de saneamento, sobretudo os deabastecimento de água e de esgotamento sanitário, com a dinâmica do recursoágua, sugerem a predominância lógica das bacias hidrográficas enquantounidades preferenciais de planejamento. Em conseqüência, os problemasrelacionados com a oferta de águas de boa qualidade e com a poluição hídrica

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constituem-se, muitas vezes, em vetores de organização e de priorização dasintervenções no saneamento ambiental urbano. Um dos fatores mais restritivosa essa abordagem tem sido a falta de instrumentos adequados de planejamentodo desenvolvimento urbano sustentável, cujo principal desafio é a integraçãodo conjunto das ações setoriais que se realizam no mesmo espaço.

O desenvolvimento da infra-estrutura urbana brasileira seguiu, sempre,a lógica “passiva” do atendimento às demandas emergentes. Deve-sereconhecer que mesmo esta tarefa tem representado um desafio relevante, emface da velocidade e característica do crescimento urbano do País.Conceitualmente, porém, importa considerar que, como conseqüência, sãomenores as experiências acumuladas no sentido de utilizar de modo “ativo” aoferta adequada e estratégica de equipamentos urbanos para induzir oordenamento espacial das atividades econômicas, das populações, das cidadese, portanto, do próprio território nacional.

As organizações do Estado, para atender à lógica exposta, ocorrem,então, no sentido da melhor eficiência na instalação de infra-estrutura (umavez pressionadas pela demanda) e bastante menos na sua operação emanutenção ou na aferição da eficácia e da efetividade dos serviços.

De fato, constata-se que as instituições públicas têm se estruturadosem estímulos à internalização de conceitos como o de desenvolvimentosustentável, bem como à sua instrumentalização adequada.

Especificamente no que concerne ao setor de saneamento, aresponsabilidade pela oferta hídrica, centrada sempre na capacidade deinvestimento do “governo-construtor”, acabou por descaracterizar este recursoambiental enquanto insumo e fator de produção e reprodução social eeconômica. A maioria dos agentes privados, na medida em que contam com agarantia do fornecimento público de água, a preços (tarifas públicas) que, porvezes, não traduzem todos os custos operacionais, e/ou não recuperam aselevadas inversões necessárias à expansão física dos sistemas, relegam asegundo plano a sua importância na composição de seus custos industriais.

Desta forma, a oferta de água, limitada apenas a seu aspecto de bemindispensável para o consumo humano, descompromete a sociedade e osagentes econômicos com práticas conservacionistas, com preocupaçõesrelacionadas à economia de recursos naturais (finitos). Por outro lado, retirado Poder Público a faculdade de utilizar sua oferta como fator de indução dalocalização espacial das atividades e da população.

Não obstante, em alguns casos torna-se necessário a adoção de subsídioaos custos reais da oferta de água, por receitas fiscais do Estado, para fazer

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face a condições físicas adversas, muitas vezes associadas a um nível de rendainsuficiente. Nesses casos, é indispensável a administração rigorosa dessessubsídios e a sua utilização exclusiva para atendimento às populaçõescomprovadamente carentes de recursos e dentro dos limites das necessidadesde saúde pública.

3. O saneamento e a urbanização no Brasil

3.1 A concentração urbana

No Brasil, uma das conseqüências do crescimento urbano de formarápida e concentrada foi a emergência do fenômeno metropolitano. Na décadade 70, por meio de emendas constitucionais, foram criadas, pela União, noveRegiões Metropolitanas: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife,Salvador, Fortaleza, Belém, Curitiba e Porto Alegre. Após 1988, a competênciapara criar e institucionalizar as Regiões Metropolitanas passa aos Estados daFederação, de acordo com o que dispõe o artigo 25 da Constituição Federal.Foram então criadas, ou estão em processo de criação, dezoito regiões,integradas por 244 municípios que abrigavam, em 1996, aproximadamente54,5 milhões de pessoas, ou seja, cerca de 33% da população total do Brasil(conforme ilustra o Quadro 1).

As elevadas e crescentes taxas de urbanização observadas nas últimasdécadas1 promoveram o agravamento dos problemas urbanos, em função docrescimento desordenado e concentrado, da ausência ou carência deplanejamento, da demanda não atendida por recursos e serviços de toda ordem,da obsolescência da estrutura física existente, dos padrões ainda atrasados desua gestão e das agressões ao ambiente urbano.

De fato, todas as regiões metropolitanas, sem exceção, têm deficiêncianos serviços de coleta dos esgotos domésticos e, principalmente, em seustratamento e disposição final. No que tange aos resíduos sólidos, partesignificativa do lixo urbano acaba sendo depositada diretamente no meioambiente, à beira de rios e córregos. Mesmo nas cidades com sistemasadequados de coleta de lixo, são comuns os problemas de destinação final,decorrentes da oferta insuficiente de áreas e equipamentos. Comoconseqüência, essas áreas enfrentam problemas de preservação dos mananciaisde abastecimento de água.2

1Nas cidades brasileiras ocorreu um acréscimo absoluto de 82,6 milhões de habitantes urbanos, entre1940 (taxa de urbanização de 31,2%) e 1985 (taxa de urbanização de 72,7%). Esse crescimento foipotencializado, mais recentemente, por um incremento expressivo do produto industrial, da ordem de10,4% a. no período 1971/1987.2A esse respeito, ver o documento "Avaliação do Quadro Ambiental das Regiões Metropolitanas - Situação

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Atual e Recomendações para a Ação do Governo", elaborado pelo IPEA, sob a coordenação de PauloPitanga e realizado no âmbito do Programa de Modernização do Setor Saneamento - PMSS.

De outra parte, as transformações na dinâmica do desenvolvimentoeconômico promoveram mudanças no processo de urbanização e na localizaçãoespacial das cidades, ao mesmo tempo em que contribuíram para reforçar aheterogeneidade econômica e social dos espaços econômicos e das cidades,tornando ainda mais complexo o estabelecimento dos limites à apropriação e

Quadro 1 - Regiões Metropolitanas - Quantidade de Municípios e População

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reprodução dos recursos ambientais. Neste processo transformatório maisrecente destacam-se algumas características: i) saldo migratório negativo naspequenas cidades brasileiras em todas as regiões; ii) aumento do peso relativodas cidades não-metropolitanas com população entre 50 e 800 mil habitantesno total da população urbana, passando de 24,4% em 1970 para 29% em1996; e iii) aumento da participação da população metropolitana no conjuntoda população brasileira, de 29% em 1970 para 33,4% em 1996. Essas duascategorias de cidades representam mais de 60% da população urbana do País.

Esse processo de urbanização acelerada e concentrada ocorre em umquadro regulatório ambiental e de prestação de serviços essenciais urbanos,complexo ou inexistente, em especial no que se refere ao saneamento básico.Resulta daí, uma grave situação ambiental, da qual fazem parte:

• o comprometimento de mananciais com redução da disponibilidadehídrica para o abastecimento público;

• o constrangimento de atividades que utilizam a água como insumoprodutivo e mesmo de outras atividades tais como o turismo,desestimulado pela degradação dos ambientes naturais e construídos;

• a transformação de rios e córregos em ambientes agressivos do pontode vista estético e propícios à proliferação de vetores de transmissãode doenças - a qual ocorre também nas estruturas construídas para adrenagem urbana - em conseqüência de lançamentos concentrados deesgoto sanitário, sem qualquer tratamento;

• a recorrência de enchentes no meio urbano com elevado ônus social;

• a degradação de áreas de interesse para a manutenção de níveisadequados de qualidade do meio ambiente urbano em decorrência daremoção da cobertura vegetal.

2.2 O acesso a serviços de saneamento.

Indicadores nacionais

Considerando a totalidade da população nacional, os índices deatendimento dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitáriono Brasil estão ainda muito distantes da universalização pretendida enecessária. Em que pesem os incrementos verificados na oferta dos serviçosnas últimas décadas, persiste uma demanda não atendida, especialmente nosestratos sociais de mais baixa renda, nos menores Municípios, nas pequenaslocalidades e na área rural.

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

Os índices nacionais de atendimento pelos serviços de abastecimentode água alcançaram, segundo os dados da PNAD (Pesquisa Nacional porAmostragem Domiciliar) 1996, 77,6%, enquanto que os domicílios quedispunham de alguma solução para o destino de seus esgotos sanitáriosrepresentavam 63,7%. Desta forma, existiriam ainda no País mais de 8 milhõesde domicílios não atendidos por redes de abastecimento de água e mais de 14milhões sem solução adequada para os esgotos. Deve-se considerar que, nasáreas rurais, nas pequenas cidades e nas periferias de cidades médias em queos domicílios disponham de área para a infiltração de efluentes, as fossassépticas podem ser soluções adequadas à disposição final dos esgotos. Não sepode desprezar, no entanto, a imprecisão da informação do usuário sobre otipo de fossa disponível, nem sempre do tipo séptica, do que resulta,provavelmente, um déficit maior do que o indicado na pesquisa do IBGE.

Para a apresentação de uma visão panorâmica dos déficits, considerou-se na elaboração do Quadro 2, inserido adiante, para as áreas urbanas, osvalores correspondentes ao acesso a redes de coleta e, para as áreas rurais,tanto o acesso a essas redes quanto a fossas sépticas. Resulta, segundo essecritério, a necessidade de atendimento com serviços de esgotamento sanitárioa mais de 22 milhões de domicílios (aproximadamente 57% do total).

Déficit e renda familiar

A distribuição do atendimento guarda claros sinais de iniquidade so-cial, com os déficits concentrando-se nos segmentos populacionais de maisbaixa renda. Segundo os dados de 1996, dos 9,4 milhões de domicílios comrenda familiar mensal de até 2 salários mínimos, apenas 5,4 milhões estavamligados às redes públicas de abastecimento de água, ou seja, 42,5% dosdomicílios neste segmento de renda não estavam atendidos. Esses 4,0 milhõesde domicílios não atendidos representavam 45% do total dos domicíliosbrasileiros não ligados às redes públicas de abastecimento de água.

Nas áreas consideradas rurais a disparidade é ainda maior, pois apenas14,9% dos 3,5 milhões de domicílios com renda mensal até 2 salários mínimos

Quadro 2 - Défit dos Serviços de Água e Esgotos no Brasil - 1996.

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

estavam atendidos, representando um déficit, neste segmento de renda, decerca de 3,0 milhões de famílias. Embora em proporção inferior à médianacional, os índices de atendimento de água nas áreas urbanas tambémapresentam fortes desigualdades sociais. Cerca de 1,0 milhão de famílias comrenda mensal até 2 salários mínimos não estavam atendidas por redes deabastecimento de água, representando 17,4% das famílias neste segmento derenda e 35,7% de todas as famílias urbanas não atendidas.

Analisando o acesso aos serviços de abastecimento de água pelasfamílias com renda superior a 10 salários mínimos, em 1996, verifica-se queos índices de atendimento se aproximam da universalização, com o déficit deapenas 4,1%. Esses dados demonstram que o acesso aos serviços desaneamento não se relaciona somente à qualidade de vida e à saúde dapopulação, mas também serve para distinguir os pobres dos não-pobres.

Déficit, nível de urbanização e poluição hídrica

O déficit dos serviços é também diferenciado em função dascaracterísticas e grau de urbanização dos Municípios, sendo menor nas áreasconsideradas urbanas. Nestas áreas, o déficit dos serviços, registrado peloIBGE na PNAD 1996, é de 8,9% para abastecimento de água, representando 2,8milhões de domicílios não abastecidos. Em esgotamento sanitário há um índicede atendimento muito inferior, com um déficit urbano de coleta de esgotos daordem de 51%, ou seja, cerca de 16,4 milhões de domicílios nas cidades,considerando-se como padrão de atendimento o acesso a redes de coleta.

O percentual do volume de esgotos coletados que recebe algum tipo detratamento é estimado em pouco mais de 20%. A baixa cobertura emesgotamento sanitário, especialmente o tratamento dos efluentes, faz comque este déficit se constitua no maior problema ambiental dos grandes centrosurbanos do País. que abrigam aproximadamente 60 milhões de pessoas(representavam mais de 60% da população urbana em 1996). O impacto dessabaixa cobertura de esgoto sanitário reflete-se na poluição hídrica das baciassituadas nas regiões metropolitanas e aglomerados urbanos, conforme já referido.

Quadro 3 - Déficit em Abastecimento de Água Famílias com renda até 2 salários mínimos.

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

Nas áreas rurais – incluídos povoados e vilas - os índices de atendimentosão ainda menores, mesmo considerando que, muitas vezes, as soluçõesindividuais possam ser consideradas adequadas 3 . Os dados da PNAD 1996(ver Quadro 2) mostram índices de cobertura dos serviços nas áreas rurais deapenas 19,8% para abastecimento de água e 18,2% para esgotamento sanitário(neste caso, considerando redes coletoras e fossas sépticas). Estes percentuaisindicam que 6,0 milhões de domicílios rurais não estavam ligados às redes deabastecimento de água e 6,1 milhões não dispunham de redes coletoras deesgotos ou não contavam com fossas sépticas. Assim, o déficit de água nasáreas rurais representaria cerca de 68% do déficit total do País.

A relação do déficit de água com o tamanho das cidades está refletidano Quadro 4, abaixo, que foi elaborado considerando a população urbana daContagem de 1996 e as percentagens de atendimento do Censo de 1991.Estimados dessa forma e considerando três faixas de população, observa-seque as quantidades de pessoas não atendidas são da mesma ordem de grandezanas três faixas, mas o maior déficit em termos proporcionais concentra-se nosMunicípios com população urbana inferior a 20 mil habitantes – eram, em1996, mais de 4.138 municípios (83% do total) onde residiam cerca de 24milhões de pessoas (19% da população urbana). Nestes Municípios, segundodados do Censo do IBGE de 1991, 22% dos habitantes das áreas urbanas nãotinham acesso aos serviços de abastecimento de água, ou aproximadamente5,2 milhões de pessoas. Por outro lado, nas cidades maiores há uma quantidadesemelhante de não-atendidos (5,1 milhões) para um total de residentes decerca de 58 milhões de pessoas, ou seja, um déficit em termos percentuaisde apenas 8,8%.

3 Como exemplo, as soluções de abastecimento de água por poços ou pequenas nascentes, uma vez realizadaa desinfecção adequada, para atendimento domiciliar em áreas rurais, assim como a disposição dos esgotosem fossas sépticas, pode constituir uma alternativa apropriada de saneamento básico para essas localidades.

Quadro 4 - Déficit urbano de água segundo o tamanho dos municípios.

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

Déficit por regiões

As desigualdades regionais também estão caracterizadas nas carênciasdos serviços de saneamento básico. O déficit de atendimento das populaçõesurbanas pelos serviços de abastecimento de água, verificado nas regiões maispobres, especialmente o Norte e o Nordeste do País, mas também no Centro-Oeste, é muito maior do que o das regiões Sul e Sudeste. Em termos de coletade esgotos sanitários, os déficits são maiores e mais generalizados, sendotambém elevado na região Sul.

Quando computados os domicílios com fossa séptica, além daquelesligados a redes coletoras, a situação do déficit da região Sul é expressivamentemodificada, reduzindo-se o índice de 65,91% para cerca de 24% de domicíliosnão atendidos, enquanto que nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste osvalores do mesmo indicador mantém-se próximos de 50%. Na região Sudeste,incluídas as fossas sépticas, o déficit urbano de esgotamento sanitário seriada ordem de apenas 11%, segundo os dados da PNAD 1996

O Quadro 6 apresenta os indicadores de cobertura nas áreas consideradasrurais, onde se verifica que o déficit apresenta distribuição mais uniforme,sendo os índices de atendimento, em geral, baixos, tanto para o abastecimentode água quanto para esgotamento sanitário. Em relação aos serviços de água,e em termos de percentuais, os valores do déficit para todas as regiõesaproximam-se da média nacional, sendo o Sudeste a única região cujo valor émenor do que essa média.

Em esgotamento sanitário, ao contrário das áreas urbanas, o déficitnacional se aproxima daquele verificado em água, sendo que apenas as regiõesSudeste e Sul têm indicadores melhores do que a média nacional.Diferentemente do Quadro 5 - déficits urbanos –, estão indicados no Quadro6 os dados referentes aos domicílios ligados a redes de coleta e aos que dispõem

Quadro 5 - Distribuição Regional dos Déficits Urbanos em Saneamento - 1996

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

de fossas sépticas, uma vez que, nas áreas ditas rurais, soluções isoladas dotipo fossa séptica são, em geral, adequadas.

Em resumo, os dados e índices apresentados acima permitem afirmarque o acesso aos serviços essenciais de saneamento no Brasil caracteriza-sepela desigualdade - baixo nível de atendimento à população de menor renda,principalmente nas regiões menos desenvolvidas e nos menores Municípios -e por um nível de cobertura dos serviços de esgotamento sanitário,generalizadamente baixo. A necessária universalização dos serviços passa,forçosamente, pelo atendimento prioritário dessas demandas, sendo asuperação deste desafio uma tarefa complexa, dado o nível de renda dapopulação onde se concentra maior parte do déficit.

4. A gestão dos recursos hídricos e os serviços de saneamento

4.1 Aspectos legais e institucionais

A gestão dos recursos hídricos e a prestação de serviços públicos desaneamento envolvem responsabilidades do Poder Público Federal, Estaduale Municipal e, também, da sociedade.

Segundo a Constituição Federal, compete à União instituir o sistemanacional de gerenciamento de recursos hídricos (art. 21, XIX) e legislarprivativamente sobre águas (art.22). Mas, é competência executiva comum atodos os entes federados proteger o meio ambiente e combater a poluição(art.23, VI). O artigo 24 define competências legislativas concorrentesatribuídas à União, aos Estados e ao Distrito Federal, incluindo entre elas adefinição de responsabilidade por dano ao meio ambiente e, portanto, aos4 Dados referentes somente ao Estado do Tocantins; por isso não estão indicados déficits percentuais. Nãohá dados disponíveis relativos à cobertura dos serviços nas áreas rurais dos seguintes Estados: Roraima,Acre, Amazonas, Rondônia, Pará e Amapá.

Quadro 6 - Distribuição Regional dos Déficits Urbanos em Saneamento - 1996

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recursos hídricos. O inciso XIX do art. 21 está regulamentado pela lei 9.433,de 8 de janeiro de 1997.

No que se refere aos serviços públicos, a Carta Magna define comoresponsabilidade do poder público (art. 175) a sua prestação direta ou mediantedelegação, estabelecendo também, explicitamente, a competência do municípiopara a prestação dos serviços de interesse local (art. 30). O já referido processode urbanização que se verifica no País criou aglomerados de Municípios, porconurbação, envolvendo na maioria dos casos uma cidade pólo e váriasperiféricas, constituindo as regiões metropolitanas.

Nesses aglomerados, inevitavelmente, os serviços assumemcomplexidade tal que, na maioria das vezes, extrapolam os limites municipaisacrescentando à problemática da prestação dos serviços um novo conceito - odo interesse comum -, que não elimina o local mas a ele se acrescenta. Estaquestão é tratada no § 3º do art 25 da Constituição Federal, que atribui aosEstados Federados a competência para criar tais regiões, “para integrara organização, o planejamento e a execução das funções públicas deinteresse comum”.

Prestar serviços públicos que atendem integradamente a mais de umMunicípio significa executar uma função pública de interesse comum. Mas ofato da Carta Magna não ser tão explícita, no art. 25, no que tangeespecificamente à prestação de serviços públicos, como o é quando trata dointeresse local (art. 30), tem gerado uma longa polêmica acerca da titularidadesobre os serviços de interesse comum. Tanto assim que, desde 1996 está noCongresso Nacional projeto de lei que trata das diretrizes nacionais para aprestação dos serviços de saneamento, cuja tramitação enfrenta evidentesdificuldades relacionadas à titularidade sobre os serviços que atendem a maisde um Município.

Em que pesem os esforços que têm sido feitos na tentativa de definir atitularidade dos serviços de interesse comum, o fato é que a gestão dos recursoshídricos encontra-se em um estágio mais avançado do que a regulação dosserviços de saneamento, tanto no que se refere às responsabilidades, definidasna Constituição, quanto em relação à legislação regulamentadora. Agravaessa defasagem o fato de que existe toda uma cultura de supervalorização dasestruturas públicas que prestam os serviços, em detrimento daquelas que osdeveriam regulamentar e controlar.

No que se refere à participação da sociedade há, em relação ao meioambiente, uma consciência da sua importância, mais difundida do que emrelação ao controle sobre a prestação dos serviços públicos.

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4.2 Os aspectos físicos e o âmbito do planejamento

Não há dúvidas de que a unidade de planejamento e de atuação em seconsiderando o recurso natural água é a bacia hidrográfica. Também é certoque os serviços de abastecimento público de água potável e de esgotamentosanitário são usuários dos recursos hídricos e, portanto, devem submeter-se àregulamentação definida no sistema de gerenciamento desses recursos,incluindo o pagamento devido como contrapartida a esse uso, tanto paraconsumo, quanto para a diluição de efluentes.

É, portanto, no nível do usuário x gestor dos recursos que se dá a inter-face entre a gestão dos recursos hídricos e a prestação dos serviços de água eesgotos. Definida a quantidade passível de exploração, o serviço deabastecimento de água inicia-se com a captação do recurso natural (água bruta)para transformá-lo em produto (água tratada), que é transportado, viacanalizações, e distribuído a consumidores determinados, aos quais se cobraum preço (tarifa pública) que deve incluir o valor econômico do recurso e oscustos do processo industrial. Trata-se de serviço público do tipo uti singuliou individual, pois tem usuários determinados e utilização particular emensurável para cada destinatário (Meirelles, 1990).

Os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário,propriamente ditos, são do interesse de cada conjunto de pessoas ao qual ossistemas físicos correspondentes atendem, não tendo o funcionamento dessessistemas relação direta com outros segmentos da população, mesmo quehabitantes de uma mesma bacia hidrográfica. Na maioria dos casos caracteriza-se o interesse predominantemente local e, assim, a competência municipalem relação a esses serviços.

Portanto, diferentemente da gestão dos recursos hídricos, e respeitadasas suas regras e limitações, a prestação dos serviços de saneamento deve terpor unidade de planejamento não a bacia hidrográfica, mas a área deabrangência dos sistemas físicos capazes de resolver, de forma a maiseconômica possível, o problema do acesso de toda a população aos serviços.

Mesmo em relação aos serviços de esgotamento sanitário, de cujainexistência ou ineficácia podem resultar transtornos a populações de jusantenão servidas por eles, a definição de competências e a unidade de planejamentodeve ser a mesma do serviço de água. No entanto, o serviço deve tercaracterísticas e, por conseqüência, custos tais que o submetam às restriçõesdefinidas na gestão dos recursos hídricos, esta sim, responsável pela garantia deque as populações situadas águas abaixo sejam protegidas dos efeitos negativos

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de um serviço que atende outro segmento de população na mesma baciahidrográfica.

Por outro lado, uma circunstância comum a grandes cidades e regiõesmetropolitanas mostra a distinção entre os problemas de gestão do recursohídrico e da prestação de serviço de água, bem como a necessidade dearticulação para resolvê-los adequadamente. É o caso da utilização de águade diferentes bacias para atendimento de um mesmo serviço de abastecimentode água. Neste caso, qual seria a unidade de planejamento e decisão queresolveria isoladamente os problemas?

É evidente que a delimitação de todas as unidades de planejamentoaqui referidas ressalta a necessidade de articulação inter-setorial, regional enacional de toda a atividade de planejamento. Tal articulação deve consideraro princípio geral da precedência: do planejamento do uso do recurso naturalsobre o dos serviços (saneamento, energia, etc) e o do consumo humanosobre os demais usos.

Uma tal conformação física dos serviços de saneamento, associada àrealidade complexa da urbanização e à multiplicidade de atribuições decompetência, confere à regulamentação da prestação desses serviços umadependência da articulação e cooperação entre os entes federados ainda maiordo que em relação à gestão dos recursos hídricos. Não se deve desprezar,também, a dificuldade que resulta da falta de consenso entre as pessoas eentre as instituições envolvidas com os temas aqui referidos, e mesmo entredecisores políticos – governadores, prefeitos e legisladores - sobre a distinçãoexistente entre gestão de recursos hídricos e prestação de serviços desaneamento e, mais ainda, sobre a dependência desta em relação àquela.

Ainda no que se refere aos aspectos físicos, da interface entre os doissegmentos da política pública, é importante mencionar a relação entre aeficiência operacional dos prestadores de serviços e o consumo de água. Comefeito, segundo os dados do Sistema Nacional de Informações sobreSaneamento – SNIS, cujos diagnósticos vêm sendo editados pelo Programade Modernização do Setor Saneamento – PMSS, ocorrem perdas totais (águanão contabilizada ou perda de faturamento) de até 50%.

Uma parcela desse desperdício decorre efetivamente de perdas na redee de consumos acima do necessário, esses últimos, sobretudo, em face dodescontrole na medição e cobrança. O controle dessa parcela da perda poderepresentar uma redução importante do consumo do recurso natural – a águabruta. Não seria exagero admitir a possibilidade de que tal controle produzauma redução de consumo entre 10% e 20%.

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Tome-se, por exemplo, os dados do Diagnóstico dos Serviços de Águae Esgotos de 1997, do SNIS, onde se verifica que o volume produzido pordomicílio atendido no Estado do Rio de Janeiro é da ordem de 51m3 por mês,enquanto a média das companhias estaduais de saneamento da região Sudesteé de 37 m3 por mês e no nível nacional é de 31 m3 por mês. A redução do valorestadual para o correspondente a toda a região significaria uma economiaequivalente a cerca de 1,35 milhão de m3 por dia, ou seja, o necessário paraabastecer mais de 3 milhões de pessoas.

5. Regulamentação, regulação e controle

A gestão descentralizada dos recursos hídricos, com participação doPoder Público, dos usuários e das comunidades, está prevista na legislaçãopertinente (lei 9.433/97), da mesma forma que as diretrizes gerais, osinstrumentos e as estruturas para o seu exercício.

Mesmo antes da vigência dessa lei, esforços do Poder Público, deagentes econômicos e da sociedade em geral já vinham sendo empreendidos,no sentido de implementar, em determinadas bacias e em alguns Estados,sistemas de gestão de recursos hídricos. A despeito das dificuldades própriasdo que é novo, é necessário apoiar essas iniciativas e fortalecer os instrumentose estruturas que estão sendo gerados. E essa é a tarefa de todos.

É evidente que o Sistema de Gerenciamento dos Recursos Hídricos éparte importante da regulamentação da prestação dos serviços de saneamento,uma vez que trata do insumo fundamental da produção dos referidos serviços.Da mesma forma, a regulamentação dos direitos do consumidor, relativamentemais avançada do que a dos recursos hídricos, interessa à prestação dosserviços, pois a sociedade usuária é consumidora. No entanto, sob o ânguloda regulação econômica da atividade de prestação dos serviços, sobretudo osde saneamento, o País está, praticamente, na estaca zero.

Os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário sãoprestados em regime de monopólio, pois não tem sentido econômico duasredes competirem pelos usuários de uma mesma localidade. Assim, énecessário que existam instrumentos de regulação e controle para que ointeresse público, necessariamente envolvido na atividade, seja assegurado.

A exigência da regulação e controle públicos é reforçada pelapossibilidade de delegação da prestação dos serviços a agentes privados. Tal

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delegação não significa que o serviço seja privatizado, mas apenas a suaprestação o é. Quando delegado “o serviço continua sendo público ... e sempresujeito aos requisitos originários e sob regulamentação e controle do PoderPúblico que os descentralizou” (Meirelles, 1990)

A prestação dos serviços por ente privado torna mais nítida a existênciade três tipos de agentes que têm interesses conflitantes: (i) o usuário, quedeseja o melhor serviço pelo menor preço; (ii) o Governo, que pretende arealização de um bom serviço com o máximo de aprovação da populaçãousuária, inclusive no que se refere ao preço; (iii) e o prestador dos serviços,que tem por objetivo cumprir as suas obrigações contratuais, que devem incluira satisfação dos usuários, obtendo o maior lucro possível.

Uma vez que esses conflitos existem, objetivamente, é necessário quese viabilize a sua mediação, sobretudo para que se assegure o interesse dousuário, a parte mais fraca em termos de organização, entre os envolvidos.Sendo o Governo um dos agentes com interesse na atividade, carece dascondições necessárias para exercer o papel de árbitro. Por outro lado, aresponsabilidade pelos serviços, mesmo delegados a prestador privado, édo Poder Público e, portanto, o órgão responsável por tal mediação temque ser público.

Vista sob outro ângulo, a clareza e a estabilidade das regras e dosinstrumentos de mediação dos conflitos são fatores de segurança para osempreendedores privados que se habilitem para concorrer a concessões deserviços públicos. Por esta razão, a menos que conte com a possibilidade deobter vantagens por meio de procedimentos ilegítimos, o que não é admissível,interessa também ao agente privado a existência de instrumentos eficazes demediação de conflitos.

Havendo controle público que, de um lado, assegure o interesse dosusuários e, de outro, a atração de empreendedores particulares, a participaçãoprivada na prestação de serviços pode contribuir para ampliar a capacidadede investimento e mesmo para introduzir novos instrumentos de eficiênciaoperacional. No entanto, sem transparência e sem controle público – do PoderPúblico e da sociedade – tal participação envolve riscos, maiores para osusuários do que para os outros dois agentes envolvidos. Nesse sentido, éimportante referir que, em relação a serviços que já contam com prestadoresprivados no País – energia elétrica e telecomunicações, por exemplo -, emque pese o esforço realizado no âmbito da União para a sua regulação, aindahá muito o que evoluir em termos de controle público.

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6. Desafios da integração

No que tange às interfaces entre os sistemas de gestão de recursoshídricos e de prestação de serviços de saneamento, importa destacar que osserviços de água e esgotos, em termos nacionais e sob o prisma da quantidadede água demandada, são usuários relativamente discretos. No entanto, namedida em que a complexidade desses serviços é potencializada pelasconcentrações urbanas, eles constituem, localmente, grandes problemas paraa gestão dos recursos hídricos.

A legislação pertinente a esses recursos estabelece a prioridade para oconsumo humano - e não poderia ser de outra forma. Sendo finito o recurso ehavendo diversos usos possíveis e desejáveis, é necessário ordená-losutilizando, inclusive, a cobrança pelo seu uso, com base no valor econômicoque, por sua vez, incorpora-se ao preço do produto água tratada e ao do serviçode esgotamento sanitário. Assim, em termos de Política Pública, é necessárioestabelecer regras e critérios em relação ao uso do recurso natural água quesinalizem o seu valor econômico e desestimulem os desperdícios, mas nãoinviabilizem o pagamento, pelos usuários, dos custos dos serviços deabastecimento de água e de coleta e tratamento de esgotos sanitários.

É evidente que a cobrança pelo uso do recurso natural não é o únicoinstrumento de controle dos desperdícios, havendo outros, inerentes à própriaestrutura das tarifas a serem cobradas pela prestação dos serviços; mas a in-terface acima referenciada destaca a importância da articulação entre os doissistemas de regulação e gestão.

Por outro lado, a gravidade da situação ambiental de grandes centrosurbanos no Brasil e a velocidade com que prossegue a degradação exigemque se atribua prioridade à resolução dos problemas de esgotamento sanitárioe de destinação adequada do lixo urbano. A resolução desses problemascontribui para a preservação dos recursos hídricos, em especial os mananciaisque abastecem de água esses centros.

Esses serviços de coleta e tratamento de resíduos (líquidos e sólidos)têm externalidades ambientais que ultrapassam os limites das áreas de suainfluência direta. Por isso, é razoável que o financiamento dos investimentosnecessários para viabilizá-los, sobretudo no que se refere à implantação deestações de tratamento, conte com outros recursos além das tarifas - pordefinição, devidas pela prestação efetiva de um determinado serviço. Comefeito, uma parte desses custos pode e deve ser repartida com outros segmentos

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da população da mesma bacia hidrográfica, além dos usuários diretos doserviço, pois não são os seus únicos beneficiários.

Uma dessas fontes de financiamento é a cobrança pelo uso da água,cuja administração cabe ao sistema de gerenciamento de recursos hídricos.Portanto, também na definição da destinação dos recursos financeirosarrecadados com essa cobrança, é necessária a articulação entre os responsáveispela gestão dos recursos hídricos, cujo âmbito de atuação é, geralmente, re-gional, e os que respondem pelos serviços de saneamento, que envolveminteresses, via de regra, predominantemente locais.

No que se refere especificamente à regulação e controle da prestaçãodos serviços de saneamento, o primeiro grande desafio é definir regras clarase estáveis para o tratamento das questões relativas aos serviços públicos deinteresse comum que, como já visto, ocorrem em um número de situaçõesrelativamente pequeno, mas envolvem uma parcela expressiva dapopulação urbana nacional.

Por outro lado, é necessário construir uma nova forma de controle sobrea prestação de serviços, a qual deve ser transparente, estável e exercida porentidade pública, no entanto o mais independente possível do Governo, paraque possa efetivamente arbitrar os conflitos de interesses, legítimos einevitáveis.

A autonomia possível do ente responsável pelo controle sobre aprestação dos serviços, geralmente organizado sob a forma de agênciasreguladoras, não retira do governante a capacidade de definir políticas, nem aresponsabilidade do poder concedente em relação aos serviços. No entanto,as repercussões das decisões relativas à Política Pública sobre as condiçõesdefinidas para a prestação dos serviços devem ser analisadas pela agência,cabendo-lhe propor as devidas alterações nessas condições para manter oequilíbrio da atividade.

Para essa desejável autonomia e estabilidade, bem como para atransparência das ações da agência reguladora, são condições essenciais: (i) aparticipação organizada e institucionalizada da sociedade; (ii) mecanismosdemocráticos de designação dos dirigentes; e (iii) autonomia financeira,vinculada a receitas próprias, independentes do orçamento público.

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Perfil curricular dos autores

Dilma Seli Pena Pereira – [email protected] - Mestre emAdministração Pública - FGV/EAESP. Técnica em Planejamento ePesquisa do IPEA, desde 1977. Participou da elaboração e implantaçãoda Política Urbana executada pela CNPU/SEPLAN. Desde 1985 dedica-se ao planejamento e execução de Programas e Projetos Federais naárea de Saneamento Básico. Foi coordenadora, no IPEA, do Projeto deModernização do Setor Saneamento. Diretora de Saneamento daSEPURB/MPO (1995-1999). Atualmente é Diretora de InvestimentosEstratégicos do Ministério do Planejamento – SPI/MP.

Luiz Antonio de Andrade Baltar – [email protected] -engenheiro civil (UFPE, 1966). Foi engenheiro da Companhia de Águase Esgotos do Nordeste. Ex-Gerente de Projetos da Acqua-plan EstudosProjetos e Consultoria. Foi Diretor da Empresa de Obras de Pernambuco,vinculada à Secretaria de Saneamento e Obras do Estado. FoiCoordenador do Gerenciamento do Programa de Modernização do SetorSaneamento, da SEPURB/MPO (1995-97) e Assessor da Diretoria deSaneamento da SEPURB (Jul a Dez 1998). Consultor independente desdejaneiro de 1999.

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INTERFACES DA GESTÃO DE RECURSOSHÍDRICOS E SAÚDE PÚBLICA

Albertino Alexandre Maciel FilhoCícero Dédice Goes Júnior

Jacira Azevedo CâncioLéo Heller

Luiz Roberto Santos MoraesMara Lúcia Carneiro

Silvano Silvério da Costa

1. Introdução

Os recursos hídricos determinaram sempre a existência humana, ainstalação ou a migração das populações em áreas do planeta e o surgimentoou desaparecimento de civilizações. Portanto, a saúde humana estádefinitivamente relacionada à disponibilidade de recursos hídricos, que sãonecessários à sua relação positiva com o meio ambiente, sendo o homemproduto e produtor das condições ambientais.

O uso adequado dos recursos hídricos permitiu que civilizações seabastecessem de alimentos e exportassem o excedente, criando riqueza eassociando a água à boa qualidade de vida. Por outro lado, o uso inadequadodestes mesmos recursos com o aparecimento de doenças transmitidas porvetores fez declinar grupos humanos e tornar inabitável grandes áreaspotencialmente produtivas. Como caso histórico tivemos o abandono degrandes áreas produtivas no sul da Espanha, quando da expulsão da civilizaçãoárabe e seu domínio de técnicas de irrigação por inundação, em decorrênciade grandes epidemias de malária com a proliferação de mosquitostransmissores da doença.

A saúde sempre esteve relacionada às questões do uso da água, comobem e como risco. Observando a ocorrência de grande número de infecçõese mortes maternas associadas aos partos, Semmelweis, nos primórdios damedicina, recomenda que os médicos ou parteiras lavem as mãos antes decada atendimento, o que reduz brutalmente os indíces de morbidade emortalidade. Em Londres, Broad Street, em meados do século passado, Snowestuda a ocorrência de casos de Cólera, associa com a água de consumo da

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população local proveniente de poço e determina medidas de controle dadoença através do controle da água consumida. Quando da tentativa de aberturado Canal do Panamá, obra de engenharia rasgando um canal de navegaçãoligando o Atlântico ao Pacifico em áreas insalubres e infestadas de mosquitostransmissores de doenças, a saúde teve de intervir diretamente, prioritariamentee predominantemente no controle das condições ambientais adversas maisdo que no tratamento direto de tais enfermidades. Sem uma ação conjunta decontrole ambiental e da saúde das populações expostas aos riscos não teriasido possível realizar aquele grande empreendimento.

No Brasil do inicio do século, com a expansão das relações do comérciomundial, o Rio de Janeiro teve de adotar radicais medidas de controle ambientalpara manter viável o funcionamento da capital da República, no controle dedoenças com fortes e determinantes fatores ambientais: Febre Amarela eMalária, através de intervenções do sanitarista Osvaldo Cruz. Em determinadasocasiões, os navios mercantes que chegavam ao Rio de Janeiro não podiamprosseguir viagem ou retornar aos seus portos de origem em decorrência damorte de suas tripulações.

Hoje, com a expansão e as modificações dos processos produtivos, ocrescimento da população, a ocupação de todos os nichos ecológicos, asmigrações e urbanização descontrolada e desestabilizante, cresce a capacidadehumana de modificar e deteriorar o meio ambiente criando as condiçõespara que tenhamos graves riscos, doenças e agravos a saúde, convivendodoenças de períodos diferentes: aquelas ditas do mundo industrializado(cardiovasculares, stress etc) e aquelas do nosso passado, como homem(cólera, dengue, febre amarela etc).

2. Impactos do uso da água sobre a saúde

2.1 Generalidades

2.1.1 Usos múltiplos integrados

São muitos os usos da água: para o consumo humano, para adessedentação de animais, para a irrigação na agricultura, para os processosindustriais, para a geração de energia, para o lazer, para a navegação,além de outros.

O uso da água como produto fundamental e imprescindível à saúde daspopulações humanas deve ter prioridade sobre os demais, conforme garantidopela legislação em vigor.

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

O artigo 1º da lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997 (Lei das Águas) (1),inciso III considera que "em condições de escassez, o uso prioritário dosrecursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação dos animais".

O Código de Águas, de 1934 - decreto 24.643, de 10 de julho de 1934,e Legislação Complementar, através do TÏTULO II- artigo 36 - parágrafo 1º -já preconizava que "Quando este uso depender de derivação, será regulado,nos termos do Capítulo IV, do Título II, do Livro II, tendo, em qualquerhipótese, preferência a derivação para o abastecimento das populações.

2.1.2 Uso nobre da água - bem natural limitado e de valor econômico

A água doce e limpa é um recurso limitado. Mais de 97% da água daterra é salgada e encontra-se nos mares e oceanos. Aproximadamente doisterços da água disponível encontra-se distribuída em geleiras e calotas polares.A água doce representa menos de 1% do total da água da terra e distribui-sena atmosfera, lagos, rios, riachos, terras úmidas e água subterrânea (2).

Do ponto de vista econômico, o abastecimento de água visa, em primeirolugar, aumentar a vida média das populações através da redução damortalidade; aumentar a vida produtiva do indivíduo, quer pelo aumento davida média, quer pela redução do tempo perdido com doença. Visa tambémfacilitar a instalação de indústrias, inclusive as de turismo, e conseqüentementeo progresso das comunidades. Por último, facilita o combate a incêndios (3) .

Os outros usos (dessedentação de animais, agricultura através dairrigação, geração de energia, lazer, navegação, além de outros), por sua vez,agregam grande valor econômico à água pela natureza da lógica produtiva.

O desafio de encontrar rumos para um desenvolvimento sustentadoforneceu o ímpeto - ou mesmo imperativo - de um maior empenho político depercepção de que a água, além de elemento essencial à vida, é um recursoeconômico valioso e exerce papel fundamental no equilíbrio dos ecossistemas.Foi percebido, também, que a solução de um problema local de abastecimentoou de uso e proteção do capital ecológico necessita estar apoiada numa visãoholística da bacia hidrográfica (4) .

2.2 Importância da água para a saúde

Informações importantes correlacionando algumas doenças e oabastecimento de água no país (5) . "Como exemplo do que se pode obter

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com a melhoria no abastecimento de água e destino adequado dos dejetos, naredução da morbidade, tem-se (6) :

• redução de 80% a 100% nos casos de febre tifóide e paratifóide;

• redução de 60% a 70% nos casos de tracoma e esquistossomose;

• redução de 40% a 50% dos casos de disenteria bacilar, amebíase,gastroenterites, infecções cutâneas, etc.

Algumas doenças infecciosas e parasitárias já representaram a princi-pal causa de mortalidade, mas a sua redução tem sido significativa. Taisresultados vêm sendo atribuídos a muitos fatores, entre eles a ampliação dosserviços de saneamento, principalmente o aumento do número de domicíliosabastecidos com água.

Com relação à morbidade verifica-se, também, que a diarréia não temmais um valor considerável entre as principais causas de internações. Elasrepresentavam 8,6% do total das internações em 1992 e 5,8% no total do país.Nas Regiões NO e NE correspondiam, em 1996, a 9,3% e 8,6%, respectivamente.

No entanto, quando se verifica que 14,2% das internações hospitalaresrealizadas em 1996, no sistema público de saúde, correspondem a criançasmenores de cinco anos, as doenças infecciosas e intestinais representaram,em 1996, 20,9% do total das internações no país. Na Região Norte, 31,4% e,no Nordeste, 26,4%. Em menores de um ano, as principais causas são a pneu-monia (28,2%), a diarréia (21,8%) e as afecções perinatais (16,4%).

Também registra-se que as diarréias, doenças tipicamente relacionadasà falta de saneamento, têm estado sempre entre as principais causas deinternações, considerando todas as idades, como demonstra o Gráfico 1referente ao período de 1986 a 1996.

No Brasil, a principal endemia transmitida por vetores, que têm a águacomo criadouro, é hoje a malária, com cerca de 450 mil casos registrados em1996, dos quais 99,4% na Amazônia, onde residem aproximadamente 19milhões de pessoas, 12, 3% da população brasileira (7) .

Embora a mortalidade por malária tenha decrescido 60% entre 1988 e1995, com os coeficientes específicos reduzidos de seis para um caso por 100mil habitantes, as principais razões que determinam o aparecimento e apersistência do problema no Brasil são:

• as características da região, com seus criadouros naturais, como asflorestas alagadas, as lagoas marginais próximas aos rios principais;

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

• a migração desordenada de populações para as áreas urbanas, rurais ede atividades extrativas, tais como mineração;

• a abertura de estradas;

• o desmatamento e a construção de barragens, represas e perímetrosirrigados que levam muitas vezes ao armazenamento inadequado deáguas paradas, principais criadouros do vetor.

Outra endemia que merece destaque é a esquistossomose, cuja áreaendêmica abrange 17 Estados da Federação, do Pará até Santa Catarina, pois,além de ser endêmica em todo o Nordeste e em dois Estados da Região Sudeste(ES e MG), encontra focos nos Estados do PA, PR, SC e no DF. Em1997foram contabilizados 7.300 exames positivos, com 25 milhões de pessoasexpostas ao risco de adoecer. Apesar do trabalho intenso de diagnóstico etratamento dos casos, as ações de prevenção e controle, que incluem,principalmente, o levantamento das condições das moradias e o modo como apopulação elimina seus dejetos, as ações educativas, e a implantação desoluções para o destino adequado dos dejetos, através de melhorias sanitáriasdomiciliares e manejo ambiental, ainda não puderam ser estendidas a todaárea endêmica (8) .

Gráfico 1 - Principais causas de internação hospitalar, Brasil, 1986-1996

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A incidência de dengue tem, nos últimos anos, aumentado no país. Em1998 foram registrados 536.507 casos da doença. Em 1999, 154.655 casosforam registrados até o mês de Setembro.

O mosquito Aedes aegypti, principal vetor da doença, está totalmenteadaptado ao ambiente doméstico, industrial e comercial, encontrando aí todasas condições para o seu desenvolvimento. Parte deste desenvolvimento ocorrena água acumulada em recipientes utilizados para armazenamento nodomicílio, como caixas d'água, barris, pneus usados, calhas entupidas, vasose pratos para plantas e vidros, latas e potes descartáveis que podem reter águarelativamente limpa (9) .

Não apenas o dengue, como as demais arboviroses, são doenças cujaeliminação do vetor ou a diminuição do contato entre o ser humano, o vetor eo patógeno depende das condições ambientais.

Com relação à cólera, desde sua introdução, em 1991, até 1998, foramregistrados no Brasil 163.099 casos e 1.922 óbitos. Foram confirmados 4.133casos em 1999 e, até setembro do ano em curso, praticamente o agravo jáchegou a todos os municípios onde predominam as precárias condições desaneamento (10) .

As condições sanitárias precárias aliadas à não disponibilidade de ofertade água (quantidade e qualidade) são fatores que contribuem de forma marcantepara a permanência da cólera e outras doenças entéricas na Região NE, quesempre concentra o maior número de casos anualmente.

Pode-se afirmar, também, que a maioria das infeções causadas porbactérias é decorrente da contaminação da água pelos dejetos. A contaminaçãodas águas dos sistemas de abastecimento por esgotos sanitários tem sidodemonstrada epidemiologicamente na literatura especializada, com aocorrência de epidemias, muitas vezes de grandes proporções (11) .

A leptospirose, no Brasil, ocorre todos os meses do ano, atingindo níveisepidêmicos nos meses em que se registram índices pluviométricos elevados.Além do contato urina do roedor/homem, vários fatores interagem entre sipara que ocorra o caso humano da doença. Dentre eles, a ocorrência deenchentes, ligadas às aglomerações urbanas de baixa renda, à precariedadedas condições de moradia, saneamento, educação e higiene que contribuempara o aparecimento de casos de leptospirose humana.

No período de 1985 a 1997, foram notificados no Brasil 35.403 casosda doença. A letalidade variou de 6,7% (1996) a 20,7% (1987), numa médiade 11,1%. O coeficiente de incidência no país variou de 1,1% (1993) a 3,5%(1996) no mesmo período. A Região Sudeste notificou 39,5% dos casos

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observados de leptospirose humana, a Região Nordeste 34,4%, a Região Norte15,2%, a Região Sul 9,9% e a Região Centro-Oeste, um dos casos.

Apesar de ocorrer tanto em áreas rurais como urbanas, é no meio urbanoque a leptospirose ocorre de forma mais severa, devido principalmente àpresença de Rattus norvegicus, portador clássico da Leptospira icterohaemorraghiae,que é a mais patogênica ao homem, habitando os esgotos e galerias edisseminando a bactéria através de sua urina.

A hepatite tipo E, tem o seu mecanismo de transmissão através dovírus que, em muitos aspectos, tem comportamento semelhante ao vírus dahepatite tipo A (Modo de transmissão fecal-oral, período de transmissibilidade,e está presente em áreas com deficiência de saneamento básico) (12).

No Brasil, a média de notificação de casos de hepatites nos últimosquatro anos é de 50.000 casos, dos quais a maior porcentagem se refere àhepatite do tipo A, seguida da hepatite dos tipos B e C."

As informações sobre a situação do saneamento e algumas relativas acontaminantes no Brasil (5), merecem ser também relembradas.

"A oferta de serviços públicos de saneamento está restrita ao atendimentoda população urbana. Dados de 1997(13) indicam que 77,7% dos domicíliosexistentes no país estavam conectados à rede de abastecimento de água.

Quando se verifica a cobertura nos domicílios urbanos, encontra-seum percentual de 91,2% e apenas 19,5% nas áreas rurais. A distribuição porregiões mostra coberturas de domicílios urbanos elevadas nas Regiões Sudeste(95,5%) e Sul (94,4%) e percentuais inferiores nas demais, sendo 86,0% noNordeste, 82,7% no Centro-Oeste e 69,6 % no Norte.

Com relação à qualidade de água de abastecimento, a informação maisrecente é da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico - PNSB, realizadapelo IBGE em 1989(14), onde se verifica que 83,4% do total das cidadesservidas por sistemas públicos de abastecimento de água apresentavam algumaforma de tratamento, desde o convencional até a simples desinfecção.

Do total dos domicílios incluídos na PNAD - Pesquisa Nacional porAmostra de Domicílios (13) realizada em 1997, 40,7% eram providos derede coletora de esgoto e 21,7% de fossa séptica. A fossa séptica é consideradatambém uma solução adequada para o destino dos dejetos, onde a rede coletoranão tenha sido uma alternativa técnica viável.

Em números absolutos, significa dizer que temos 37,1 milhões depessoas sem abastecimento de água de boa qualidade, 62,2 milhões depessoas sem rede de esgotamento sanitário e 52,1 milhões de pessoassem uma coleta regular de lixo.

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Estudos sobre poluentes químicos específicos, tais como agrotóxicosnos ambientes domésticos e atividades agrícolas e mercúrio nas atividades demineração, revelam uma contaminação do homem e do meio ambiente emque ele vive e trabalha. Situação similar se verifica em áreas industriais, ondeos poluentes e efluentes contaminam o ar, o solo e águas ampliando seu riscopara além de seus ambientes de trabalho, tal como o problema do benzeno.Nas regiões sujeitas a queimadas, além da poluição atmosférica, o solo perdesua fertilidade exigindo o uso intensivo de agroquímicos que, por sua vez,poluem as águas e contaminam a cadeia alimentar.

As ocorrências de desastres naturais no Brasil são caracterizadaspor eventos tais como inundações, desmoronamento, incêndios e secas,que afetam principalmente populações de baixa renda, habitando áreasde urbanização precária.

É importante ressaltar que, em relação aos acidentes envolvendosubstâncias químicas (incêndios, explosões e vazamentos), cerca de 90% dasvítimas imediatas são os trabalhadores e cerca de 90% dos acidentes ligadosàs emissões ambientais atingem corpos de água, solo e ar.

Ainda em relação a acidentes ambientais, dados referentes ao Estadode São Paulo (15) indicam aumento progressivo do número de ocorrênciasdesde 1978, com 215 registros em 1995, e 398, em 1996. A maioria dosacidentes notificados no período 1978-96 teve origem durante transporterodoviário (39%) e marítimo (12%), seguindo-se as localizações em postosde abastecimento de combustíveis (8%), domicílios (8%) e indústrias (6%).As classes de produtos químicos mais envolvidas nesses acidentes foram oslíquidos inflamáveis (41%), corrosivos (14%) e gases (11%).

Os agravos relacionados a acidentes e outras formas de contaminaçãoda água, estão associados aos mananciais utilizados, podendo comprometera qualidade da água consumida."

Muitas atividades e empreendimentos têm sido desenvolvidos e têmgerado, posteriormente, efeitos secundários indesejáveis à saúde daspopulações envolvidas ou circunvizinhas a esses empreendimentos e ao meioambiente, criando em algumas ocasiões problemas sanitários novos e, emoutras, agravando a incidência de enfermidades existentes (16) .

O Setor Ambiental tem usado instrumentos como os Estudos de ImpactoAmbiental (EIA) para avaliar os efeitos e conseqüências de atividades queimportem impacto ao meio ambiente. A Resolução CONAMA 001/86 dispõe

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sobre diretrizes desses estudos e relaciona o impacto na saúde decorrente dediversas atividades. O artigo 1º define o impacto ambiental como "qualqueralteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente,causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividadeshumanas que, direta ou indiretamente, afetam a saúde, a segurança e o bem-estar da população; as atividades sociais e econômicas; a biota; as condiçõesestéticas e sanitárias do meio ambiente; e a qualidade dos recursos ambientais".

Entretanto, tem-se detectado a ausência das análises de impacto à saúde,nas avaliações e estudos realizados nas diferentes atividades potencialmentedegradadoras do meio ambiente, sendo necessário uma ação do setor saúdeno sentido de complementar essas análises de impacto ambiental com estudosde impacto à saúde (16) .

2.2.1 Abastecimento de água

Para manter boa saúde, é necessário consumir aproximadamente 2,5litros de água (16) por dia. Além de água para ingestão, necessitamos delapara a preparação de alimentos, para a higiene pessoal e dos domicílios, paralavagem de roupas e utensílios, para descarga de aparelhos sanitários, pararega de jardins e para lavagem de veículos (3). A água não é somente essencialpara nossa saúde física, é também vital para o nosso bem-estar mental e so-cial, ajuda-nos a relaxar e a alegrar a vida (17).

A quantidade de água consumida por uma população varia conforme aexistência ou não de abastecimento coletivo, a proximidade de água dodomicílio, o clima e os hábitos da população. O consumo per capita daspopulações abastecidas com ligações domiciliares varia, com as faixas dapopulação, de 100 a 300 l/hab./dia (3).

Segundo Heller (1997) (18), o reconhecimento da importância dosaneamento e de sua associação com a saúde do homem remonta às maisantigas culturas. Ainda de acordo com Heller, existem relatos, do ano 2000a.c., de tradições médicas, na Índia, recomendando que a "água impura deveser purificada, pela fervura sobre um fogo, pelo aquecimento no sol,mergulhando um ferro em brasa dentro dela, ou pode ainda ser purificada porfiltração em areia ou cascalho, e então resfriada." (USEPA, 1990) (20) E citaSnow (1990) (21), que em sua histórica pesquisa concluída em 1854comprovava cientificamente a associação entre a fonte de água consumidapela população de Londres e a incidência de cólera .

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São várias as maneiras do homem adoecer através do uso da água: daingestão direta, da preparação de alimentos, da higiene pessoal, da agricultura,da higiene do ambiente, dos processos industriais e das atividades de lazer,que podem ser distribuídos em duas categorias de riscos (3), quais sejam:

• riscos relacionados com a ingestão de água contaminada por agentesbiológicos (bactérias, vírus e parasitos), através de contato direto ou pormeio de insetos vetores que necessitam da água em seu ciclo biológico;

• riscos derivados de poluentes químicos e radioativos, geralmenteefluentes de esgotos industriais ou causados por acidentes ambientais.

O Quadro 1 (22) apresenta a relação das doenças relacionadas com oabastecimento de água, os agentes patogênicos e as medidas de correçãonecessárias.

Em resumo, as medidas para controlar a transmissão de enfermidadesatravés da água incluem as seguintes (23) :

Abastecimento de água:

• Seleção de fontes não contaminadas, como por exemplo, poçosprofundos;

• Tratamento de água bruta, especialmente cloração;

• Adequação de ambientes contaminados por outros mais adequados,confiáveis e seguros.

• Proteção de fontes;

• Controle da qualidade da água.

Disposição sanitária de excretas:

• Proteção dos sistemas de abastecimento de água;

• Proteção do meio ambiente;

• Apoio às atividades de controle dos sistemas de abastecimento deágua e da disposição de excretas;

• Destruição, disposição, isolamento ou diluição dos resíduos fecais;

Educação sanitária:

• Higiene pessoal;

• Proteção do meio ambiente;

• Apoio às atividades de controle de sistemas de abastecimento deágua e da disposição de excretas.

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2.2.2 Uso nos processos produtivos

As indústrias vêm colocando em riscos cada vez mais crescentes a saúdedas populações situadas próximas a elas ou que utilizem as águas situadas àjusante das mesmas. Tais riscos e exposições resultam do impacto causado pelautilização dos recursos hídricos como corpos receptores de efluentes lançados innatura e pela captação de água que visa o abastecimento de populações e osuprimento de processos produtivos.

É importante citar a contaminação de cursos d'água através de garimpos,sobretudo na região Amazônica, que acaba afetando a saúde das populaçõesatravés da ingestão, principalmente de peixe contaminado. Ao atingir ambientesaquáticos, as espécies inorgânicas do mercúrio podem sofrer reações mediadasprincipalmente por microorganismos que alteram o seu estado inicial, resultandoem compostos organomercuriais, como o metilmercúrio, mais tóxico que asespécies inorgânicas. O metilmercúrio é facilmente absorvido por peixes e outrosanimais aquáticos (24).

2.2.3 Construção de barragens

Devem ser aqui considerados não só o grupo das barragens para geraçãode energia elétrica, como também para armazenamento de água, visando autilização por sistemas de abastecimento de água.

Tanto são impactantes tais empreendimentos que a Resolução CONAMA001/86 exige a realização prévia de EIAs/RIMAs para: "obras hidráulicas paraexploração de recursos hídricos, tais como barragens para fins hidrelétricos, acimade 10MW, de saneamento ou de irrigação, abertura de canais para navegação,drenagem e irrigação, retificação de cursos d'água, abertura de barras eembocaduras, transposição de bacias, diques;” (obras como Tucuruí, Itaipu eBalbina teriam seus efeitos ambientais analisados a priori e o debate, portanto,teria ocorrido antes da localização e construção).

São muitos os impactos à saúde humana, decorrentes do enchimento de umreservatório de acumulação. Dentre eles seriam dignos de nota os problemas diretos,como os acidentes com animais peçonhentos, a migração de animais silvestrespara áreas urbanas, a proliferação de vetores, além de outros. Vale enumerar tambémalguns problemas de saúde indiretos que advêm da interrupção do fluxo de águados rios barrados, como a interrupção do fornecimento de água a populações decidades, a criação de acúmulos de água nos leitos irregulares dos rios que tiveramo seu fluxo cortado, criando a possibilidade de proliferação de vetores.

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2.2.4 Uso para irrigação

No Brasil, pouco ou quase nada se tem registrado sobre reuso deefluentes, tratados ou não. O que não quer dizer que não ocorra de formaindiscriminada e sem controle (25) , sendo prática corrente o reuso indireto,pois somente 10% do volume total de esgotos coletados no país sãosubmetidos a algum tipo de tratamento (26) e o restante é lançadodiretamente nos curso d'água.

São vários os estudos sobre a qualidade de águas de irrigação ou dehortaliças comercializadas em diversas regiões do país, reforçando os indíciosda prática disseminada de irrigação com esgotos, ao menos de forma indireta;e o enorme déficit de tratamento de esgotos no país exigirá um esforçoplanejado para a superação deste quadro de sérios danos ambientais e deriscos de saúde pública (25) .

O impacto da irrigação na saúde pode ser sintetizado pelo que sedenomina de "Evidências Epidemiológicas", nas quais destacam-se quatrogrupos possíveis de classificação de risco: a) consumidores de vegetaiscontaminados; b) consumidores de produtos de animais que pastam em áreasirrigadas com efluentes; c) trabalhadores rurais expostos; e d) público residentenas proximidades de áreas irrigadas com efluentes.

A contaminação de alimentos irrigados não se dá somente através demicroorganismos patogênicos, mas também através dos agrotóxicos utilizadosna agricultura, e no combate a vetores pelo próprio setor saúde. A agriculturacontribui significativamente para a deterioração da qualidade da água, atravésda utilização de fertilizantes e agrotóxicos na irrigação (27) .

A propósito, a Resolução CONAMA 20, de 18 de junho de 1986,estabelece a classificação das águas doces, salobras e salinas do TerritórioNacional, segundo seus usos preponderantes, em 9 (nove) classes. Nessaclassificação estão definidos os corpos receptores passíveis de serem utilizadospara a irrigação.

2.2.5 Lazer

As enfermidades originadas por contato com a água transmitem-semediante o contato da pele com a água infestada por patógenos ou toxinas,sendo a mais importante a esquistossomose (23) .

Além disso, a relação de enfermidades transmitidas por contato com aágua, são: Enfermidades Entéricas, Infeções Granulosas da Pele, Ictiotoxismo,

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Hirundiases, Leptospirose, Otite, Febre Faringiconjuntival, MeningoencefaliteAmébica primaria, Rinosporidiose, Sinusite, Sarna de Nadadores,Esquistossomose, Tuberculose, Tularemia, Tripanossomíase Africana (23) .

Da mesma forma que na Irrigação, a Resolução CONAMA 20,de 18 de junho de 1986, define aqueles corpos receptores passíveis deserem utilizados para a recreação de contato primário (natação, esquiaquático e mergulho).

O homem também pode, através de práticas recreacionais, contaminara água destinada ao consumo humano.

Existe muita controvérsia, em nível técnico, sobre a conveniência ounão da permissão de atividades recreativas em lagos ou represas destinadasao abastecimento de água potável (28). Um estudo realizado pela CETESBem 1971-1972, a partir do monitoramento de 3 (três) pontos na represa deGuarapiranga, um dos mais importantes mananciais supridores do SistemaAdutor Metropolitano de São Paulo, mostrou que não houve qualquercomprometimento das concentrações de oxigênio, elevação da demandaquímica de oxigênio ou mesmo do número de coliformes fecais. O únicofator que sofreu alteração em relação às condições de montante foi o teor deóleos e graxas , possivelmente provenientes de barcos a motor e de estaleiros.

2.2.6 Ocupação territorial

Um fator importante que contribui para a poluição e contaminação doscursos d'água e que, conseqüentemente, confere risco de agravo à saúdehumana pela água, diz respeito à ocupação dos espaços rurais e urbanos quesão realizadas sem um adequado planejamento visando o equilíbrio entre oambiente e a sua utilização.

Como conseqüência de tal ocupação desordenada tem-se a eliminaçãoda cobertura vegetal, adensando e impermeabilizando o solo, o que impede ainfiltração e recarga dos cursos d'água.Tem-se também a produção ecarreamento de resíduos para os rios, comprometendo a conservação da águaem termos de quantidade e qualidade.

3. O Sistema Único de Saúde - SUS. A gestão da saúde no Brasil

Os princípios gerais que orientam as ações de saúde no Brasil são os dauniversalidade de acesso aos serviços em todos os níveis, integralidade dasações, eqüidade no atendimento e solidariedade no financiamento. Esses

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princípios são previstos na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080, de 1990), queestabelece a Política Nacional de Saúde e considera que a saúde tem comofatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia,o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, otransporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

A Organização Mundial da Saúde - OMS define saúde como "um estadode completo de bem-estar físico, mental, social e não apenas a ausência dedoença ou enfermidade". E a saúde ambiental é definida por esta Organizaçãocomo o campo de atuação da saúde pública que se ocupa das formas de vida,das substâncias e das condições em torno do ser humano, que podem exerceralguma influência sobre a sua saúde e o seu bem-estar. Ou seja, este é ocampo que trata da inter-relação entre saúde e ambiente.

A gestão da saúde no Brasil é realizada pelo Sistema Único de Saúde(SUS), definido como o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados porórgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administraçãodireta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, e, de modocomplementar, pela iniciativa privada, mediante contrato de direito público.

A organização da estrutura do SUS e as principais diretrizes de controlee gestão do Setor Saúde estão previstos na Constituição Federal de 1988 e emleis, decretos, resoluções e portarias que compõem o seu arcabouço legal.

Além dos instrumentos legais, existem diversos mecanismos deintegração entre saúde e ambiente, como o registro de produtos e aregulamentação de padrões de qualidade da água para consumo humano. Emmuitos casos, a própria realidade exige a integração intersetorial, uma vezque, por exemplo, o custo elevado da remoção de poluentes da água paraconsumo requer que os mananciais sejam protegidos; a qualidade do ar dependede controle de emissões; e o controle de criadouros de vetores de doençastransmissíveis requer manejo ambiental (29).

4. Aspectos legais e compromissos institucionais

O desafio da gestão dos recursos hídricos e da saúde constituem-se numacomplexa e intrincada construção de inter-relações entre diferentes setores doconhecimento, da administração pública, dos diferentes setores produ-tivos e dascomunidades e populações, trabalhando com um enfoque sistêmico e holístico,em todas as áreas do desenvolvimento, no uso do progresso alcança-do pelaciência e tecnologia, como instrumento de bem-estar e equilíbrio ambiental.

As diferentes áreas do desenvolvimento - educação, ciências, políticas,legislação, tecnologia - devem atuar de forma integral para possibilitar a

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

reversão da tendência entrópica das condições de vida que tendem a limitar einviabilizar o desenvolvimento humano, nas diferentes localidades e regiões.

A legislação nas áreas de saúde e meio ambiente, ou particularmentede recursos hídricos, tem evoluído com o desenvolvimento humano, com anecessidade de acompanhar os novos paradigmas estabelecidos no mundomoderno, incorporando em seu arcabouço legal princípios, definições esalvaguardas, que procuram equilibrar o desenvolvimento humano, aconservação desses recursos ambientais e da saúde, representados pelo bem-estar individual e coletivo.

A Constituição Federal de 1988 (CF/88) traz em seu texto princípiosfundamentais e necessários para construção de uma sociedade justa eharmônica e para integração dos diferentes setores da administração pública,do setor privado e da coletividade, atribuindo e distribuindo responsabilidadese competências, direitos e deveres, bem como atribuindo à coletividade umpapel ativo no controle e de co-responsabilidade nas ações que visem apreservação da qualidade de vida e do meio em que vivemos.

Princípios como o da participação comunitária, organização, prevençãoe proteção ambiental, eqüidade, integralidade, diversidade e descentralizaçãoestão previstos no texto constitucional, aplicados ao Setor Saúde, aos RecursosHídricos e à coletividade.

O art. 225 da CF/88 contém princípios fundamentais, tais como o deco-responsabilidade entre os setores públicos e a coletividade; eqüidade esustentabilidade, essenciais à manutenção de um ambiente em que o homemviva em condições saudáveis e harmônicas. (30)

Os princípios descritos são, também, contemplados na seção do textoconstitucional referente à saúde, que dispõe no art. 196 que a saúde é umdireito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais eeconômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e aoacesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteçãoe recuperação; e no art. 198, que dispõe que as ações do serviço público desaúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, organizada de formadescentralizada, priorizando as atividades preventivas e com a participaçãoda comunidade, sendo que esta participação é feita em nível municipal, estaduale federal, institucionalizada através da criação dos Conselhos Municipais deSaúde, Conselhos Estaduais de Saúde e Conselho Federal de Saúde, comparticipação dos órgãos dos governos e comunidades.

A participação do Setor Saúde nas ações de defesa do meio ambiente eda saúde também foi contemplada no art. 200, no qual dispõe que ao Sistema

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

Único de Saúde compete: inciso IV - participar da formulação da política e daexecução das ações de saneamento básico; inciso VI - fiscalizar e inspecionar,entre outras atividade, a água de consumo humano; e no inciso VIII - colaborarna proteção do meio ambiente.

A CF/88, de forma abrangente, dispõe no art. 23 que é competência daUnião, Estados e Municípios: inciso II - cuidar da saúde; inciso VI - protegero meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; e noparágrafo único dispõe que lei complementar fixará normas para a cooperaçãoentre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista oequilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

No art. 30, a CF/88 estabelece como competência dos municípios:prestar, em cooperação técnica e financeira da União e dos Estados, serviçosde atendimento à saúde da população.

A Constituição também apregoa que o desenvolvimento urbano temque ser executado pelo Poder Público municipal, tendo como objetivo o plenodesenvolvimento das funções sociais e a garantia do bem-estar de seushabitantes (art. 182 - Caput).

Os preceitos constitucionais descritos anteriormente servem comonorteadores das leis ordinárias, que estabelecem normas gerais (art. 24, §1º),prevêem a peculiaridade da norma estadual (art. 24, §3º) e prevêem o inte-resse local da norma municipal (art. 30, inciso I).

Portanto, as normas de caráter geral, direcionadas ao setor saúde e aosetor ambiental, nelas compreendidas os recursos hídricos, com previsãoconstitucional, estabelecem assim as diretrizes para que todos os setores e apopulação do país caminhem no sentido da busca do desenvolvimentosustentável e de uma vida saudável para sua população.

Baseadas nestes princípios e diretrizes, as leis ordinárias, lei 8080/90 -Lei Orgânica da Saúde, lei 6938/81 - de Política Nacional do Meio Ambiente,lei 9433/97 - Lei de Política Nacional de Recursos Hídricos têm avançadoadotando os princípios de gestão integrada, descentralizada e participativadas unidades básicas de gestão, tanto no setor saúde, que é o município, comonos recursos hídricos, que são as bacias hidrográficas, utilizadas como unidadesbásicas para o planejamento.

A legislação brasileira tem acompanhado a tendência mundial nodesenvolvimento de princípios e diretrizes que propiciem ações eficientes eeficazes no combate à destruição ambiental, usada nos modelos tradicionaisde desenvolvimento, onde os recursos naturais são explorados até seuesgotamento, inviabilizando a coexistência do homem com o meio.

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:Interfaces Setoriais

Essa situação e os problemas dela advinda têm sido motivo depreocupação para os governos em todo o mundo e têm como desdobramentoa realização de reuniões, assembléias, congressos de cúpulas mundiaisiniciadas em 1972, na Suécia, com a Conferência da Nações Unidas sobreMeio Ambiente Urbano. Esses eventos estabeleceram recomendações depolíticas de controle desses problemas e da promoção de um desenvolvimentoque harmonize o crescimento dos povos com a manutenção dos recursosambientais e da saúde, tendo sido mais importantes o encontro de cúpula doRio/92, que produziu a Agenda 21, que trata do desenvolvimento sustentável,e mais recentemente a Conferência Pan-Americana sobre Saúde Ambientalno Desenvolvimento Sustentável, Washington 1995, onde foi assinada a CartaPan-Americana sobre Saúde e Ambiente no Desenvolvimento Humano, quefixou os princípios de política e estratégias para a participação dos indivíduose das comunidades nas ações de Saúde e Ambiente.

A legislação brasileira incorporou em seus preceitos legais essaspreocupações mundiais de proteção e defesa da saúde e do meio ambiente,buscando instrumentalizar o Poder Público, as instituições privadas e asociedade, para que possam promover ações capazes de diminuir os riscos àsaúde, intervir nos problemas sanitários decorrentes de fatores ambientais,contribuir na proteção e recuperação do meio ambiente e da qualidade devida e, sobretudo, agir de forma integrada, quer entre os diferentes setorespúblicos, quer com as instituições civis da população.

Vale destacar algumas portarias e resoluções no âmbito dos Ministériosda Saúde e Meio Ambiente, como a Portaria 036/MS, de 16 de janeiro de1990, na qual são fixadas normas e padrões de potabilidade da água a serdestinada ao consumo humano, a ser observada em todo território nacional; aPortaria 635/BSB, de 26 de dezembro de 1975, que define normas e padrõesa serem seguidos sobre a fluoretação da água dos sistemas públicos deabastecimento de água, destinada ao consumo humano; e a ResoluçãoCONAMA 20, de 18 de junho de 1986 que estabelece a classificação daságuas, doces, salobras e salinas do Território Nacional.

5. Interfaces da gestão de recursos hídricos com a saúde

5.1 A gestão de recursos hídricos e a disponibilidade de água emqualidade e quantidade ao ser humano

Existe uma preocupação que se relaciona com a questão dos usosmúltiplos, conforme abordado no item 2.1.1, e a necessidade da água para

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garantia da saúde, também abordado no item 2.2, em função da necessidadede disponibilidade de água, em qualidade e quantidade, à população.

A gestão dos recursos hídricos, à luz da nova Lei das Águas (lei 9.433,de 8/1/97), dos princípios básicos dos países que avançaram na gestão deseus recursos hídricos (2), onde se destacam a eqüidade no acesso aos recursoshídricos; a indução ao uso racional da água; a gestão descentralizada eparticipativa, onde o que puder ser tratado no âmbito dos governos regionaise mesmo locais não será tratado em Brasília ou nas capitais dos estados; emais, que os usuários, a sociedade civil organizada, as ONGs e outrosorganismos possam influenciar no processo da tomada de decisão; tem tudopara garantir o que o Código de Águas de 1934 já preconizava, que é apreferência pelo abastecimento das populações.

Ademais, um dos principais instrumentos da lei 9.433, que é oenquadramento dos corpos d'águas em classes de uso, pode ser um instrumentode inter-relação entre a gestão da quantidade e da qualidade da água.

Outra preocupação que também surge, quanto à disponibilização daágua de forma adequada à população, tem a ver com o repasse do valor, a sercobrado pelo uso da água, ao consumidor final. Parte da população, sobretudoaquela com baixo poder aquisitivo, em função do eventual aumento das contasd'água, pode ser impossibilitada de pagar tal conta e, conseqüentemente, vir ater o acesso à água impedido.

Essas preocupações devem ser discutidas e consideradas na Gestãodos Recursos Hídricos, pela importância que se tentou demonstrar nestecapítulo para a saúde da população.

5.2 A gestão do setor saúde e sua inserção na gestão de recursoshídricos

A lei 9.433, criou alguns instrumentos e organismos que precisam sercompartilhados pelo Setor Saúde na sua implementação e gestão.

Vale a pena citar o Plano Nacional de Recursos Hídricos e o SistemaNacional de Informações sobre os Recursos Hídricos, como instrumentos. Eo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, os Comitês de BaciasHidrográficas e as Agência de Bacias.

O Ministério da Saúde já se encontra representado junto ao ConselhoNacional de Recursos Hídricos e institucionalmente, o setor deverá estarrepresentado também nos Comitês de Bacias e nas câmaras técnicas dasfuturas Agências de Bacia.

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A participação do Setor Saúde nos organismos de gestão de recursoshídricos deverá ser conquistada através da busca da sua representação nessesorganismos, com vistas a interferir na definição de investimentos, a partir deindicadores de Vigilância Epidemiológica e Ambiental, que evidenciemprioridades para a prevenção, o combate a doenças e a promoção da saúdedaquela população exposta a riscos ambientais e que demande recursos paraa sua solução.

Já se tem notícia da participação de representantes do Setor Saúde emComitês de Bacia no Estado de São Paulo. Todavia, o setor ainda necessitaavançar no sentido de contribuir com tais indicadores, de forma dinâmica,oportuna e sistemática.

5.3 O Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos e aquestão da territorialidade e a temporalidade

O Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos de quetrata a lei 9.433, de 8/1/97, deve ter na sua concepção duas dimensõesfundamentais, que deverão ser bem avaliadas. São as questões da territo-rialidade e temporalidade.

É preciso considerar sempre a necessidade de harmonização entresistemas que já existem e que estão em fase de detalhamento, e nesse particu-lar é razoável que se considerem as dimensões adotadas pelos sistemas deinformação no âmbito do SUS e também do Sistema Nacional de MeioAmbiente (SISNAMA), além de outros.

Essas precauções parecem primordiais para a utilização de basesgeo-referenciáveis e passíveis de cruzamentos de informações ambientais eepidemiológicas.

5.4 A Vigilância em Saúde contribuindo para a melhoria da saúde dapopulação

Encontra-se em fase de discussão no Ministério da Saúde o novoenfoque da Vigilância em Saúde, com a visão de integralidade entre aVigilância Epidemiológica (populações), Vigilância Ambiental (fatoresambientais) e Vigilância Sanitária (produtos e serviços). As duas primeirassendo estruturadas no âmbito do Centro Nacional de Epidemiologia daFundação Nacional de Saúde, FUNASA/CENEPI e a outra a cargo daAgência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVS.

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Quadro 2 - Indicadores de Vigilância da Qualidade da Água de Consumo Humano

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Se, por um lado, a Vigilância Epidemiológica compreende um conjuntode ações que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção dequalquer mudança em fatores determinantes e condicionantes de saúde indi-vidual ou coletiva, e tem por finalidade recomendar e adotar as medidas deprevenção e controle das doenças e agravos, por outro, a Vigilância Ambientalcompreende as mesmas ações, só que em fatores determinantes econdicionantes do meio ambiente que interferem na saúde do homem.

O Sistema de Informação em Vigilância Ambiental deverá utilizar dadose informações de todos os sistemas do SUS , como também de outros setores,como o de recursos hídricos e meio ambiente, e ser alimentado de formasistemática pelo nível local, municipal, estadual e federal.

Para a organização desse Sistema de Informação é fundamental a definiçãode indicadores. Através da discussão de vários setores, incluindo a saúde e omeio ambiente, dentre outros, a partir da metodologia adaptada pela OMS(Organização Mundial de Saúde) (32) para construção de matrizes de causa,efeito e ações, conseguiu-se identificar alguns indicadores que serão utilizadosna prática da Vigilância Ambiental. Estes indicadores, em última análise, cruzadoscom dados dos sistemas do SUS e combinados com outras informações de forado Setor Saúde, serão fundamentais para a munição dos representantes do setornos organismos criados a partir da nova Lei das Águas.

6. Conclusão

A partir da constatada correlação e importância entre a Gestão deRecursos Hídricos e a Saúde Pública; dos vínculos institucionais e legais queo advento da Constituição de 1988 oportunizou; e da necessidade do trabalhoarticulado entre os setores de Meio Ambiente/Recursos Hídricos e Saúde,resta a ambos buscar, de forma sistemática e permanente, tais articulações.

O planejamento das ações de saúde, meio ambiente, saneamento erecursos hídricos atinentes às bacias hidrográficas deve ser orientado peloscritérios de salubridade ambiental e epidemiológicos, numa lógica em que oprimeiro é a causa e o segundo, o seu efeito direto.

O movimento em torno da estruturação da Vigilância em Saúde, noâmbito do SUS, será primordial para a disponibilização e análise deinformações e indicadores que possam balizar tais ações, ao passo que agestão participativa e descentralizada dos recursos hídricos propiciará aoportunidade de o setor saúde participar, contribuindo de forma consistentena melhoria da saúde das populações residentes nas diversas bacias hidrográficas.

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Cabe aos representantes governamentais e não-governamentais do SetorSaúde buscar participar efetivamente dos organismos de gestão que a lei9.433/97 institui, nas suas áreas geográficas correspondentes.

Oportuna também é a busca da participação dos representantes dossetores de saneamento e meio ambiente nos órgãos colegiados, das esferascorrespondentes, do Sistema Único de Saúde.

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Perfil curricular dos autores

Albertino Alexandre Maciel Filho – [email protected] – éengenheiro civil (UFPE, 1973); especializado em Saúde Pública,Epidemiologia e Arquitetura Hospitalar. Atualmente é Coordenador deVigilância Ambiental do CENEPI / FUNASA e representante doMinistério da Saúde no Conselho Nacional de Recursos Hídricos.

Cícero Dédice Goes Júnior - [email protected] - é engenheiroagrônomo, com mestrado em Ecologia e Consultor da Coordenação deVigilância Ambiental /CNEPI/FUNASA.

Jacira Azevedo Câncio – [email protected] - é engenheiracivil e sanitarista, com especialização em Saúde Pública e Assessora deSaúde e Ambiente da OPAS/OMS – Representação no Brasil.

Léo Heller - [email protected] - é engenheiro civil, comdoutorado em Epidemiologia, Diretor e Professor Pesquisador da Escolade Engenharia da UFMG.

Luiz Roberto Santos Moraes - [email protected] - é engenheirocivil, com doutorado em Epidemiologia e Professor Pesquisador daUniversidade Federal da Bahia.

Mara Lúcia Carneiro Oliveira – [email protected] - éengenheira civil, com especialização em Engenharia Sanitária eEspecialista da Coordenação de Vigilância Ambiental /CNEPI/FUNASA.

Silvano Silvério da Costa - [email protected] - é engenheiro civile especialista da Coordenação de Vigilância Ambiental /CNEPI/FUNASA.