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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE EDUCAÇÃO PLANO DE AÇÕES ARTICULADAS FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA - PARFOR PARFOR/LETRAS LOCAL: BAIÃO/PA PERÍODO: 20/01/2014 A 25/01/2014 PROFESSORA-FORMADORA: ROSI CLEIDE BAIA CORREA DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO

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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE EDUCAÇÃO

PLANO DE AÇÕES ARTICULADAS FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA

EDUCAÇÃO BÁSICA - PARFOR

PARFOR/LETRAS

LOCAL: BAIÃO/PA

PERÍODO: 20/01/2014 A 25/01/2014

PROFESSORA-FORMADORA: ROSI CLEIDE BAIA CORREA

DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO

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DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO CH:60h.

PROFESSORA-FORMADORA: ROSI CLEIDE BAIA CORREA

EMENTA FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO

Esta disciplina tem como objetivo ressaltar o que é a Educação, apresentar os seus

fundamentos e as ciências que fornecem conceitos essenciais para o campo educacional.

Serão apresentadas definições e finalidades das cinco ciências fundamentais à

Educação, quais sejam, Filosofia, Psicologia, Sociologia, Antropologia e História.

De cada uma, identificar-se-á os principais conceitos que são pertinentes e

indispensáveis para a compreensão dos fenômenos educativos.

Mostrar-se-á como o diálogo entre as ciências apresentadas, mais do que suas

contribuições isoladas, serve de suporte para a Educação num mundo em que a

interdisciplinaridade, isto é, a religação das ciências.

A educação como direito nas perspectivas filosófico-política.

Educação e sociedade.

O papel da educação na formação do cidadão.

Tendências Pedagógicas na educação.

Competências do educador: ética, política e técnica.

Reflexão sobre a relação dos fundamentos da Educação com a Educação a Distância e

sobre a importância das tecnologias, assinalando seu caráter indispensável nessa modalidade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, V. P. O que é história. 2. ed São Paulo: Ed. Brasiliense,1993. (Primeiros Passos).

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 1985

BRASIL, Leis, Decretos, Lei n. 9.394, de 23 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União,

Brasília, v. 134, n. 248, p. 27833-27841, 23 dez. 1987.

DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. 8 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1972.

CARPIGIANI, B. Psicologia: das raízes aos movimentos contemporâneos. São Paulo:

Pioneira, 2002.

CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática,1994.

CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.

FLICKINGER, M. G. Para que filosofia da educação? :1 teses. Perspectiva, v. 16, n. 29, p.

15-22, 1998.

GADOTI, Moacir. Educação e Poder. São Paulo: Cortez, 1985

______________. Organização do trabalho na escola. São Paulo: ática, 1993

GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In: ___.A

interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

GIDDENS, A. Sociologia: uma breve, porém critica introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1988.

MOORE, Michel G. Educação a distância: uma visão integradora. (trad. Roberto Galman) .

São Paulo: Cengage Learning, 2008.

NÓVOA, A. Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.

PETERS, O. Didática do ensino a distância. São Leopoldo: Unisinos, 2001.

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TURA, M. L. R. Sociologia para educadores. Rio de Janeiro: Quartet, 2001.

VISCA, J. Psicopedagogia: novas contribuições. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA COMPLEMENTAR

BORGES, Martha Kaschny. MACHADO, Soraya Tonelli. A Evasão em Cursos a Distância

Online: Estudo de um Programa de Educação Empresarial Continuada

Disponivel em:

<http://www.anped.org.br/app/webroot/34reuniao/images/trabalhos/GT16/GT16-

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<http://www.scielo.br/pdf/spp/v14n2/9782.pdf > Acesso em: 20/out/2013.

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comunidade-e-escola-5615979.html> Acesso em: 10/dez/2012.

PIAGET, Jean. Psicologia Genética e Educação. Disponivel em:

<http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/141/3/01d08t02.pdf>

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RAMOS, F. P. Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação: problematizações sobre

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<http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2011/03/fundamentos-historicos-e-filosoficos-

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STIGAR, Robson; SCHUCK, Neivor. Refletindo Sobre a História da Educação no Brasil.

Disponivel em: <http://www.opet.com.br/artigos/pdf-pg-

artigos/Refletindo%20sobre%20a%20historia%20da%20educacao%20no%20Brasil%20OPE

T.pdf> Acesso em: 03/ago/2013.

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DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO CH:60h.

PROFESSORA-FORMADORA: ROSI CLEIDE BAIA CORREA

ATIVIDADE À DISTÂNCIA

Caro aluno, nesse período de atividade à distância quero proporcionar-lhes uma leitura

de inicialização dessa disciplina.

Faça a leitura do texto Perspectivas Atuais da Educação de Moacir Gadotti,

disponivel em: <http://www.scielo.br/pdf/spp/v14n2/9782.pdf>. Acesso em: 20/out/2013.

Após a leitura do mesmo, peço que escreva um resumo explicitando as partes mais

importantes e pertinentes do texto. Deve ser um texto bastante sintético contemplando as

ideias principais que são abordadas pelo autor, permitindo que tenha uma visão sucinta do

todo, principalmente das questões de maior importância e das conclusões alcançadas.

Deverão utilizar as regras básicas da ABNT, sendo texto justificado, fonte times new

roman ou arial, número 12, margem superior e esquerda 3 cm, direita e inferior 2 cm. Com

pontuação correta, coesão, coerência e dentro das normas ortográficas. O título deve ser

centralizado, sem indicativo numérico e deve ser redigido em parágrafo único. As palavras-

chave devem estar logo abaixo do resumo.

BOM TRABALHO!

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PERSPECTIVAS ATUAIS DA EDUCAÇÃO

MOACIR GADOTTI1

Resumo: O conhecimento tem presença garantida em qualquer projeção que se faça do futuro.

Por isso há um consenso de que o desenvolvimento de um país está condicionado à qualidade

da sua educação. Nesse contexto, as perspectivas para a educação são otimistas. A pergunta

que se faz é: qual educação, qual escola, qual aluno, qual professor? Este artigo busca

compreender a educação no contexto da globalização e da era da informação, tira

conseqüências desse processo e aponta o que poderá permanecer da "velha" educação,

indicando algumas categorias fundantes da educação do futuro.

Palavras-chave: política educacional; globalização e ensino; educação e sociedade.

Nas últimas duas décadas do século XX assistiuse a grandes mudanças tanto no campo

socioeconômico e político quanto no da cultura, da ciência e da tecnologia. Ocorreram

grandes movimentos sociais, como aqueles no leste europeu, no final dos anos 80,

culminando com a queda do Muro de Berlim. Ainda não se tem idéia clara do que deverá

representar, para todos nós, a globalização capitalista da economia, das comunicações e da

cultura. As transformações tecnológicas tornaram possível o surgimento da era da

informação.

É um tempo de expectativas, de perplexidade e da crise de concepções e paradigmas

não apenas porque iniciase um novo milênio – época de balanço e de reflexão, época em que

o imaginário parece ter um peso maior. O ano 2000 exerceu um fascínio muito grande em

muitas pessoas. Paulo Freire dizia que queria chegar ao ano 2000 (acabou falecendo três anos

antes). É um momento novo e rico de possibilidades.

Por isso, não se pode falar do futuro da educação sem certa dose de cautela. É com

essa cautela que serão examinadas, neste artigo, algumas das perspectivas atuais da teoria e

da prática da educação, apoiando-se naqueles educadores e filósofos que tentaram, em meio a

essa perplexidade, apesar de tudo, apontar algum caminho para o futuro. A perplexidade e a

crise de paradigmas não podem se constituir num álibi para o imobilismo.

No início deste século, H. G. Wells dizia que ―a História da Humanidade é cada vez

mais a disputa de uma corrida entre a educação e a catástrofe‖. A julgar pelas duas grandes

guerras que marcaram a ―História da Humanidade‖, na primeira metade do século XX, a

catástrofe venceu.

1 Professor da Universidade de São Paulo e Diretor do Instituto Paulo Freire. Autor, dentre outras obras, de Perspectivas atuais da

educação.

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No início dos anos 50, dizia-se que só havia uma alternativa: ―socialismo ou barbárie‖

(Cornelius Castoriadis), mas chegou-se ao final do século com a derrocada do socialismo

burocrático de tipo soviético e enfraquecimento da ética socialista. E mais: pela primeira vez

na história da humanidade, não por efeito de armas nucleares, mas pelo descontrole da

produção industrial, pode-se destruir toda a vida do planeta. Mais do que a solidariedade,

estamos vendo crescer a competitividade. Venceu a barbárie, de novo? Qual o papel da

educação neste novo contexto político? Qual é o papel da educação na era da informação?

Que perspectivas podemos apontar para a educação nesse início do Terceiro Milênio? Para

onde vamos?

Para iniciar, verifica-se o significado da palavra ―perspectiva‖. A palavra

―perspectiva‖ vem do latim tardio ―perspectivus‖, que deriva de dois verbos: perspecto, que

significa ―olhar até o fim, examinar atentamente‖; e perspicio, que significa ―olhar através,

ver bem, olhar atentamente, examinar com cuidado, reconhecer claramente‖ (Dicionário

Escolar Latino-Português, de Ernesto Faria).

A palavra ―perspectiva‖ é rica de significações. Segundo o Dicionário de filosofia, do

filósofo italiano Nicola Abbagnano, perspectiva seria ―uma antecipação qualquer do futuro:

projeto, esperança, ideal, ilusão, utopia. O termo exprime o mesmo conceito de possibilidade

mas de um ponto de vista mais genérico e que menos compromete,dado que podem aparecer

como perspectivas coisas que não têm suficiente consistência para serem possibilidades

autênticas‖. Para o Dicionário Aurélio, muito conhecido entre nós, brasileiros, perspectiva é

a ―arte de representar os objetos sobre um plano tais como se apresentam à vista; pintura que

representa paisagens e edifícios a distância; aspecto dos objetos vistos de uma certa distância;

panorama; aparência, aspecto; aspecto sob o qual uma coisa se apresenta, ponto de vista;

expectativa, esperança‖. Perspectiva significa ao mesmo tempo enfoque, quando se fala, por

exemplo, em perspectiva política, e possibilidade, crença em acontecimentos considerados

prováveis e bons. Falar em perspectivas é falar de esperança no futuro.

Hoje muitos educadores, perplexos diante das rápidas mudanças na sociedade, na

tecnologia e na economia, perguntam-se sobre o futuro de sua profissão, alguns com medo de

perdê-la sem saber o que devem fazer. Então, aparecem, no pensamento educacional, todas as

palavras citadas por Abbagnano e Aurélio: ―projeto‖ político-pedagógico, pedagogia da

―esperança‖, ―ideal‖ pedagógico, ―ilusão‖ e ―utopia‖ pedagógica, o futuro como

―possibilidade‖.

Fala-se muito hoje em ―cenários‖ possíveispara a educação, portanto, em

―panoramas‖, representação de ―paisagens‖. Para se desenhar uma perspectiva é preciso

―distanciamento‖. É sempre um ―ponto de vista‖. Todas essas palavras entre aspas indicam

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uma certa direção ou, pelo menos, um horizonte em direção ao qual se caminha ou se pode

caminhar. Elas designam ―expectativas‖ e anseios que podem ser captados, capturados,

sistematizados e colocados em evidência.

UM PASSADO SEMPRE PRESENTE

A virada do milênio é razão oportuna para um balanço sobre práticas e teorias que

atravessaram os tempos. Falar de ―perspectivas atuais da educação‖ é também falar, discutir,

identificar o ―espírito‖ presente no campo das idéias, dos valores e das práticas educacionais

que as perpassa, marcando o passado, caracterizando o presente e abrindo possibilidades para

o futuro. Algumas perspectivas teóricas que orientaram muitas práticas poderão desaparecer, e

outras permanecerão em sua essência. Quais teorias e práticas fixaram-se no ethos

educacional, criaram raízes, atravessaram o milênio e estão presentes hoje? Para entender o

futuro é preciso revisitar o passado. No cenário da educação atual, podem ser destacados

alguns marcos, algumas pegadas, que persistem e poderão persistir na educação do futuro.

Educação Tradicional

Enraizada na sociedade de classes escravista da Idade Antiga, destinada a uma

pequena minoria, a educação tradicional iniciou seu declínio já no movimento renascentista,

mas ela sobrevive até hoje, apesar da extensão média da escolaridade trazida pela educação

burguesa. A educação nova, que surge de forma mais clara a partir da obra de Rousseau,

desenvolveu-se nesses últimos dois séculos e trouxe consigo numerosas conquistas, sobretudo

no campo das ciências da educação e das metodologias de ensino. O conceito de ―aprender

fazendo‖ de John Dewey e as técnicas Freinet, por exemplo, são aquisições definitivas na

história da pedagogia. Tanto a concepção tradicional de educação quanto a nova, amplamente

consolidadas,

terão um lugar garantido na educação do futuro.

A educação tradicional e a nova têm em comum a concepção da educação como

processo de desenvolvimento individual. Todavia, o traço mais original da educação desse

século é o deslocamento de enfoque do individual para o social, para o político e para o

ideológico. A pedagogia institucional é um exemplo disso. A experiência de mais de meio

século de educação nos países socialistas também o testemunha. A educação, no século XX,

tornou-se permanente e social. É verdade, existem ainda muitos desníveis entre regiões e

países, entre o Norte e o Sul, entre países periféricos e hegemônicos, entre países

globalizadores e globalizados. Entretanto, há idéias universalmente difundidas, entre elas a de

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que não há idade para se educar, de que a educação se estende pela vida e que ela não é

neutra.

Educação Internacionalizada

No início da segunda metade deste século, educadores e políticos imaginaram uma

educação internacionalizada, confiada a uma grande organização, a Unesco. Os países

altamente desenvolvidos já haviam universalizado o ensino fundamental e eliminado o

analfabetismo. Os sistemas nacionais de educação trouxeram um grande impulso, desde o

século passado, possibilitando numerosos planos de educação, que diminuíram custos e

elevaram os benefícios.

A tese de uma educação internacional já existia deste 1899, quando foi fundado, em

Bruxelas, o Bureau Internacional de Novas Escolas, por iniciativa do educador Adolphe

Ferrière. Como resultado, tem-se hoje uma grande uniformidade nos sistemas de ensino.

Pode-se dizer que

hoje todos os sistemas educacionais contam com uma estrutura básica muito parecida. No

final do século XX, o fenômeno da globalização deu novo impulso à idéia de uma educação

igual para todos, agora não como princípio de justiça social, mas apenas como parâmetro

curricular comum.

Novas Tecnologias

As conseqüências da evolução das novas tecnologias, centradas na comunicação de massa, na

difusão do conhecimento, ainda não se fizeram sentir plenamente no ensino – como previra

McLuhan já em 1969 –, pelo menos na maioria das nações, mas a aprendizagem a distância,

sobretudo a baseada na Internet, parece ser a grande novidade educacional neste início de

novo milênio. A educação opera com a linguagem escrita e a nossa cultura atual dominante

vive impregnada por uma nova linguagem, a da televisão e a da informática, particularmente

a linguagem da Internet. A cultura do papel representa talvez o maior obstáculo ao uso

intensivo da Internet, em particular da educação a distância com base na Internet.

Por isso, os jovens que ainda não internalizaram inteiramente essa cultura adaptam-se

com mais facilidade do que os adultos ao uso do computador. Eles já estão nascendo com essa

nova cultura, a cultura digital.

Os sistemas educacionais ainda não conseguiram avaliar suficientemente o impacto da

comunicação audiovisual e da informática, seja para informar, seja para bitolar ou controlar

as mentes. Ainda trabalha-se muito com recursos tradicionais que não têm apelo para as

crianças e jovens. Os que defendem a informatização da educação sustentam que é preciso

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mudar profundamente os métodos de ensino para reservar ao cérebro humano o que lhe é

peculiar, a capacidade de pensar, em vez de desenvolver a memória. Para ele, a função da

escola será, cada vez mais, a de ensinar a pensar criticamente. Para isso é preciso dominar

mais metodologias e linguagens, inclusive a linguagem eletrônica.

Paradigmas Holonômicos

Entre as novas teorias surgidas nesses últimos anos, despertaram interesse dos

educadores os chamados paradigmas holonômicos, ainda pouco consistentes. Complexidade e

holismo são palavras cada vez mais ouvidas nos debates educacionais. Nesta perspectiva,

pode-se incluir as reflexões de Edgar Morin, que critica a razão produtivista e a racionalização

modernas, propondo uma lógica do vivente. Esses paradigmas sustentam um princípio

unificador do saber, do conhecimento, em torno do ser humano, valorizando o seu cotidiano,

o seu vivido, o pessoal, a singularidade, o entorno, o acaso e outras categorias como: decisão,

projeto, ruído, ambigüidade, finitude, escolha, síntese, vínculo e totalidade.

Essas seriam algumas das categorias dos paradigmas chamados holonômicos.

Etimologicamente, holos, em grego, significa todo e os novos paradigmas procuram centrarse

na totalidade. Mais do que a ideologia, seria a utopia que teria essa força para resgatar a

totalidade do real, totalidade perdida. Para os defensores desses novos paradigmas, os

paradigmas clássicos – identificados no positivismo e no marxismo – seriam marcados pela

ideologia e lidariam com categorias redutoras da totalidade. Ao contrário, os paradigmas

holonômicos pretendem restaurar a totalidade do sujeito, valorizando a sua iniciativa e a sua

criatividade, valorizando o micro, a complementaridade, a convergência e a complexidade.

Para eles, os paradigmas clássicos sustentam o sonho milenarista de uma sociedade plena,

sem arestas, em que nada perturbaria um consenso sem fricções. Ao aceitar como fundamento

da educação uma antropologia que concebe o homem como um ser essencialmente

contraditorial, os paradigmas holonômicos pretendem manter, sem pretender superar, todos os

elementos da complexidade da vida.

Os holistas sustentam que o imaginário e a utopia são os grandes fatores instituintes da

sociedade e recusam uma ordem que aniquila o desejo, a paixão, o olhar e a escuta.

Os enfoques clássicos, segundo eles, banalizam essas dimensões da vida porque

sobrevalorizam o macro-estrutural, o sistema, em que tudo é função ou efeito das

superestruturas socioeconômicas ou epistêmicas, lingüísticas e psíquicas. Para os novos

paradigmas, a história é essencialmente possibilidade, em que o que vale é o imaginário

(Gilbert Durand, Cornelius Castoriadis), o projeto.

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Existem tantos mundos quanto nossa capacidade de imaginar. Para eles, ―a imaginação

está no poder‖, como queriam os estudantes em maio de 1968.

Na verdade, essas categorias não são novas na teoria da educação, mas hoje são lidas e

analisadas com mais simpatia do que no passado. Sob diversas formas e com diferentes

significados, essas categorias são encontradas em muitos intelectuais, filósofos e educadores,

de ontem e de hoje: o ―sentido do outro‖, a ―curiosidade‖ (Paulo Freire), a ―tolerância‖ (Karl

Jaspers), a ―estrutura de acolhida‖ (Paul Ricoeur), o ―diálogo‖ (Martin Buber), a ―autogestão‖

(Celestin Freinet, Michel Lobrot), a ―desordem‖ (Edgar Morin), a ―ação comunicativa‖, o

―mundo vivido‖ (Jürgen Habermas), a ―radicalidade‖ (Agnes Heller), a ―empatia‖ (Carl

Rogers), a ―questão de gênero‖ (Moema Viezzer, Nelly Stromquist), o―cuidado‖ (Leonardo

Boff), a ―esperança‖ (Ernest Bloch), a ―alegria‖ (Georges Snyders), a unidade do homem

contra as ―unidimensionalizações‖ (Herbert Marcuse), etc.

Evidentemente, nem todos esses autores aceitariam enquadrar-se nos paradigmas

holonômicos. Todas as classificações e tipologias, no campo das idéias, são necessariamente

reducionistas. Não se pode negar as divergências existentes entre eles. Contudo, as categorias

apontadas anteriormente indicam uma certa tendência, ou melhor, uma perspectiva da

educação. Os que sustentam os paradigmas holonômicos procuram buscar na unidade dos

contrários e na cultura contemporânea um sinal dos tempos, uma direção do futuro, que eles

chamam de pedagogia da unidade.

Educação Popular

O paradigma da educação popular, inspirado originalmente no trabalho de Paulo

Freire nos anos 60, encontrava na conscientização sua categoria fundamental. A prática e a

reflexão sobre a prática levaram a incorporar outra categoria não menos importante: a da

organização. Afinal, não basta estar consciente, é preciso organizar-se para poder

transformar. Nos últimos anos, os educadores que permaneceram fiéis aos princípios da

educação popular atuaram principalmente em duas direções: na educação pública popular –

no espaço conquistado no interior do Estado –; e na educação popular comunitária e na

educação ambiental ou sustentável, predominantemente não governamentais. Durante os

regimes autoritários da América Latina, a educação popular manteve sua unidade,

combatendo as ditaduras e apresentando projetos ―alternativos‖.

Com as conquistas democráticas, ocorreu com a educação popular uma grande

fragmentação em dois sentidos: de um lado ela ganhou uma nova vitalidade no interior do

Estado, diluindo-se em suas políticas públicas; e, de outro, continuou como educação não-

formal, dispersando- se em milhares de pequenas experiências. Perdeu em unidade, ganhou

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em diversidade e conseguiu atravessar numerosas fronteiras. Hoje ela incorporou-se ao

pensamento pedagógico universal e orienta a atuação de muitos educadores espalhados pelo

mundo, como o testemunha o Fórum Paulo Freire, que se realiza de dois em dois anos,

reunindo educadores de muitos países.

As práticas de educação popular também constituem-se em mecanismos de

democratização, em que se refletem os valores de solidariedade e de reciprocidade e novas

formas alternativas de produção e de consumo, sobretudo as práticas de educação popular

comunitária, muitas delas voluntárias. O Terceiro Setor está crescendo não apenas como

alternativa entre o Estado burocrático e o mercado insolidário, mas também como espaço de

novas vivências sociais e políticas hoje consolidadas com as organizações não-

governamentais (ONGs) e as organizações de base comunitária (OBCs). Este está sendo hoje

o campo mais fértil da educação popular.

Diante desse quadro, a educação popular, como modelo teórico reconceituado, tem

oferecido grandes alternativas.

Dentre elas, está a reforma dos sistemas de escolarização pública. A vinculação da

educação popular com o poder local e a economia popular abre, também, novas e inéditas

possibilidades para a prática da educação.

O modelo teórico da educação popular, elaborado na reflexão sobre a prática da

educação durante várias décadas, tornou-se, sem dúvida, uma das grandes contribuições da

América Latina à teoria e à prática educativa em âmbito internacional. A noção de aprender a

partir do conhecimento do sujeito, a noção de ensinar a partir de palavras e temas geradores, a

educação como ato de conhecimento e de transformação social e a politicidade da educação

são apenas alguns dos legados da educação popular à pedagogia crítica universal.

Universalização da Educação Básica e Novas Matrizes Teóricas

Neste começo de um novo milênio, a educação apresenta- se numa dupla

encruzilhada: de um lado, o desempenho do sistema escolar não tem dado conta da

universalização da educação básica de qualidade; de outro, as novas matrizes teóricas não

apresentam ainda a consistência global necessária para indicar caminhos realmente seguros

numa época de profundas e rápidas transformações. Essa é uma das preocupações do Instituto

Paulo Freire, buscando, a partir do legado de Paulo Freire, consolidar o seu ―Projeto da Escola

Cidadã‖, como resposta à crise de paradigmas.

A concepção teórica e as práticas desenvolvidas a partir do conceito de Escola Cidadã

podem constituir-se numa alternativa viável, de um lado, ao projeto neoliberal de educação,

amplamente hegemônico, baseado na ética do mercado, e, de outro lado, à teoria e à prática de

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uma educação burocrática, sustentada na ―estadolatria‖ (Antonio Gramsci). É uma escola que

busca fortalecer autonomamente o seu projeto político- pedagógico, relacionando-se

dialeticamente – não mecânica e subordinadamente – com o mercado, o Estado e a sociedade.

Ela visa formar o cidadão para controlar o mercado e o Estado, sendo, ao mesmo tempo,

pública quanto ao seu destino – isto é, para todos – estatal quanto ao financiamento e

democrática e comunitária quanto à sua gestão.

Seja qual for a perspectiva que a educação contemporânea tomar, uma educação

voltada para o futuro será sempre uma educação contestadora, superadora dos limites

impostos pelo Estado e pelo mercado, portanto, uma educação muito mais voltada para a

transformação social do que para a transmissão cultural. Por isso, acredita- se que a

pedagogia da práxis, como uma pedagogia transformadora, em suas várias manifestações,

pode oferecer um referencial geral mais seguro do que as pedagogias centradas na transmissão

cultural, neste momento de perplexidade.

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E EDUCAÇÃO

Costuma-se definir nossa era como a era do conhecimento. Se for pela importância

dada hoje ao conhecimento, em todos os setores, pode-se dizer que se vive mesmo na era do

conhecimento, na sociedade do conhecimento, sobretudo em conseqüência da informatização

e do processo de globalização das telecomunicações a ela associado.

Pode ser que, de fato, já se tenha ingressado na era do conhecimento, mesmo

admitindo que grandes massas da população estejam excluídas dele. Todavia, o que se

constata é a predominância da difusão de dados e informações e não de conhecimentos. Isso

está sendo possível graças às novas tecnologias que estocam o conhecimento, de forma

prática e acessível, em gigantescos volumes de informações, que são armazenadas

inteligentemente, permitindo a pesquisa e o acesso de maneira muito simples, amigável e

flexível. É o que já acontece com a Internet: para ser ―usuário‖, basta dispor de uma linha

telefônica e um computador. ―Usuário‖ não significa aqui apenas receptor de informações,

mas também emissor de informações. Pela Internet, a partir de qualquer sala de aula do

planeta, pode-se acessar inúmeras bibliotecas em muitas partes do mundo. As novas

tecnologias permitem acessar conhecimentos transmitidos não apenas por palavras, mas

também por imagens, sons, fotos, vídeos (hipermídia), etc. Nos últimos anos, a informação

deixou de ser uma área ou especialidade para se tornar uma dimensão de tudo, transformando

profundamente a forma como a sociedade se organiza. Pode-se dizer que está em andamento

uma Revolução da Informação, como ocorreram no passado a Revolução Agrícola e a

Revolução Industrial.

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Ladislau Dowbor (1998), após descrever as facilidades que as novas tecnologias

oferecem ao professor, se pergunta: o que eu tenho a ver com tudo isso, se na minha escola

não tem nem biblioteca e com o meu salário eu não posso comprar um computador? Ele

mesmo responde que será preciso trabalhar em dois tempos: o tempo do passado e o tempo do

futuro. Fazer tudo hoje para superar as condições do atraso e, ao mesmo tempo, criar as

condições para aproveitar amanhã as possibilidades das novas tecnologias. As novas

tecnologias criaram novos espaços do conhecimento. Agora, além da escola, também a

empresa, o espaço domiciliar e o espaço social tornaram-se educativos.

Cada dia mais pessoas estudam em casa, pois podem, de casa, acessar o ciberespaço

da formação e da aprendizagem a distância, buscar ―fora‖ – a informação disponível nas

redes de computadores interligados – serviços que respondem às suas demandas de

conhecimento. Por outro lado, a sociedade civil (ONGs, associações, sindicatos, igrejas, etc.)

está se fortalecendo não apenas como espaço de trabalho, em muitos casos, voluntário, mas

também como espaço de difusão de conhecimentos e de formação continuada.

É um espaço potencializado pelas novas tecnologias, inovando constantemente nas

metodologias. Novas oportunidades parecem abrir-se para os educadores. Esses espaços de

formação têm tudo para permitir maior democratização da informação e do conhecimento,

portanto, menos distorção e menos manipulação, menos controle e mais liberdade. É uma

questão de tempo, de políticas públicas adequadas e de iniciativa da sociedade. A tecnologia

não basta. É preciso a participação mais intensa e organizada da sociedade. O acesso à

informação não é apenas um direito. É um direito fundamental, um direito primário, o

primeiro de todos os direitos, pois sem ele não se tem acesso aos outros direitos.

Na formação continuada necessita-se de maior integração entre os espaços sociais

(domiciliar, escolar, empresarial, etc.), visando equipar o aluno para viver melhor na

sociedade do conhecimento. Como previa Herbert McLuhan, o planeta tornou-se a nossa sala

de aula e o nosso endereço. O ciberespaço não está em lugar nenhum, pois está em todo o

lugar o tempo todo. Estar num lugar significaria estar determinado pelo tempo (hoje, ontem,

amanhã). No ciberespaço, a informação está sempre e permanentemente presente e em

renovação constante. O ciberespaço rompeu com a idéia de tempo próprio para a

aprendizagem. Não há tempo e espaço próprios para a aprendizagem. Como ele está todo o

tempo em todo lugar, o espaço da aprendizagem é aqui – em qualquer lugar – e o tempo de

aprender é hoje e sempre. A sociedade do conhecimento se traduz por redes, ―teias‖ (Ivan

Illich), ―árvores do conhecimento‖ (Humberto Maturana), sem hierarquias,

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em unidades dinâmicas e criativas, favorecendo a conectividade, o intercâmbio, consultas

entre instituições e pessoas, articulação, contatos e vínculos, interatividade. A conectividade é

a principal característica da Internet.

O conhecimento é o grande capital da humanidade. Não é apenas o capital da

transnacional que precisa dele para a inovação tecnológica. Ele é básico para a sobrevivência

de todos e, por isso, não deve ser vendido ou comprado, mas sim disponibilizado a todos. Esta

é a função de instituições que se dedicam ao conhecimento apoiado nos avanços tecnológicos.

Espera-se que a educação do futuro seja mais democrática, menos excludente. Essa é ao

mesmo tempo nossa causa e nosso desafio. Infelizmente, diante da falta de políticas públicas

no setor, acabaram surgindo ―indústrias do conhecimento‖, prejudicando uma possível visão

humanista, tornando-o instrumento de lucro e de poder econômico.

A educação, em particular a educação a distância, é um bem coletivo e, por isso, não

deve ser regulada pelo jogo do mercado, nem pelos interesses políticos ou pelo furor

legiferante de regulamentar, credenciar, autorizar, reconhecer, avaliar, etc. de muitos

tecnoburocratas. Quem deve decidir sobre a qualidade dos seus certificados não é nem o

Estado e nem o mercado, mas sim a sociedade e o sujeito aprendente. Na era da informação

generalizada, existirá ainda necessidade de diplomas?

O que cabe à escola na sociedade informacional? Cabe a ela organizar um movimento

global de renovação cultural, aproveitando-se de toda essa riqueza de informações. Hoje é a

empresa que está assumindo esse papel inovador.

A escola não pode ficar a reboque das inovações tecnológicas. Ela precisa ser um

centro de inovação. Temos uma tradição de dar pouca importância à educação tecnológica, a

qual deveria começar já na educação infantil.

Na sociedade da informação, a escola deve servir de bússola para navegar nesse mar

do conhecimento, superando a visão utilitarista de só oferecer informações ―úteis‖ para a

competitividade, para obter resultados. Deve oferecer uma formação geral na direção de uma

educação integral. O que significa servir de bússola? Significa orientar criticamente,

sobretudo as crianças e jovens, na busca de uma informação que os faça crescer e não

embrutecer.

Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da ―reciclagem‖ e da atualização de

conhecimentos e muito mais além da ―assimilação‖ de conhecimentos. A sociedade do

conhecimento possui múltiplas oportunidades de aprendizagem: parcerias entre o público e o

privado (família, empresa, associações, etc.); avaliações permanentes; debate público;

autonomia da escola; generalização da inovação.

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As conseqüências para a escola e para a educação em geral são enormes: ensinar a

pensar; saber comunicar- se; saber pesquisar; ter raciocínio lógico; fazer sínteses e

elaborações teóricas; saber organizar o seu próprio trabalho; ter disciplina para o trabalho; ser

independente e autônomo; saber articular o conhecimento com a prática; ser aprendiz

autônomo e a distância.

Neste contexto de impregnação do conhecimento, cabe à escola: amar o conhecimento

como espaço de realização humana, de alegria e de contentamento cultural; selecionar e rever

criticamente a informação; formular hipóteses; ser criativa e inventiva (inovar); ser

provocadora

de mensagens e não pura receptora; produzir, construir e reconstruir conhecimento elaborado.

E mais: numa perspectiva emancipadora da educação, a escola tem que fazer tudo isso em

favor dos excluídos, não discriminando o pobre. Ela não pode distribuir poder, mas pode

construir e reconstruir conhecimentos, saber, que é poder.

Numa perspectiva emancipadora da educação, a tecnologia contribui muito pouco para

a emancipação dos excluídos se não for associada ao exercício da cidadania.

Como diz Ladislau Dowbor (1998:259), a escola deixará de ser ―lecionadora‖ para ser

―gestora do conhecimento‖. Segundo o autor, ―pela primeira vez a educação tem a

possibilidade de ser determinante sobre o desenvolvimento‖. A educação tornou-se

estratégica para o desenvolvimento, mas, para isso, não basta ―modernizá-la‖, como querem

alguns. Será preciso transformá-la profundamente.

A escola precisa ter projeto, precisa de dados, precisa fazer sua própria inovação,

planejar-se a médio e a longo prazos, fazer sua própria reestruturação curricular, elaborar seus

parâmetros curriculares, enfim, ser cidadã. As mudanças que vêm de dentro das escolas são

mais duradouras.

Da sua capacidade de inovar, registrar, sistematizar a sua prática/experiência,

dependerá o seu futuro. Nesse contexto, o educador é um mediador do conhecimento, diante

do aluno que é o sujeito da sua própria formação.

Ele precisa construir conhecimento a partir do que faz e, para isso, também precisa ser

curioso, buscar sentido para o que faz e apontar novos sentidos para o que fazer dos seus

alunos.

Em geral, temos a tendência de desvalorizar o que fazemos na escola e de buscar

receitas fora dela quando é ela mesma que deveria governar-se. É dever dela ser cidadã e

desenvolver na sociedade a capacidade de governar e controlar o desenvolvimento econômico

e o mercado.

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A cidadania precisa controlar o Estado e o mercado, verdadeira alternativa ao

capitalismo neoliberal e ao socialismo burocrático e autoritário. A escola precisa dar o

exemplo, ousar construir o futuro. Inovar é mais importante do que reproduzir com qualidade

o que existe. A matéria-prima da escola é sua visão do futuro.

A escola está desafiada a mudar a lógica da construção do conhecimento, pois

aprendizagem agora ocupa toda a nossa vida. E porque passamos todo o tempo de nossas

vidas na escola – não só nós, professores – devemos ser felizes nela. A felicidade na escola

não é uma questão de opção metodológica ou ideológica, mas sim uma obrigação essencial

dela. Como diz Georges Snyders (1998) no livro A alegria na escola, precisamos de uma

nova ―cultura da satisfação‖, precisamos da ―alegria cultural‖.

O mundo de hoje é ―favorável à satisfação‖ e a escola também pode sê-lo. O que é ser

professor hoje? Ser professor hoje é viver intensamente o seu tempo, conviver; é ter

consciência e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro para a humanidade sem

educadores, assim como não se pode pensar num futuro sem poetas e filósofos. Os

educadores, numa visão emancipadora, não só transformam a informação em conhecimento e

em consciência crítica, mas também formam pessoas. Diante dos falsos pregadores da

palavra, dos marketeiros, eles são os verdadeiros ―amantes da sabedoria‖, os filósofos de que

nos falava Sócrates. Eles fazem fluir o saber (não o dado, a informação e o puro

conhecimento), porque constróem sentido para a vida das pessoas e para a humanidade e

buscam, juntos, um mundo mais justo, mas produtivo e mais saudável para todos. Por isso

eles são imprescindíveis.

PARA PENSAR A EDUCAÇÃO DO FUTURO

Jacques Delors (1998), coordenador do ―Relatório para a Unesco da Comissão

Internacional Sobre Educação para o Século XXI‖, no livro Educação: um tesouro a

descobrir, aponta como principal conseqüência da sociedade do conhecimento a necessidade

de uma aprendizagem ao longo de toda a vida (Lifelong Learning) fundada em quatro pilares

que são ao mesmo tempo pilares do conhecimento e da formação continuada. Esses pilares

podem ser tomados também como bússola para nos orientar rumo ao futuro da educação.

Aprender a conhecer – Prazer de compreender, descobrir, construir e reconstruir o

conhecimento, curiosidade, autonomia, atenção. Inútil tentar conhecer tudo. Isso supõe uma

cultura geral, o que não prejudica o domínio de certos assuntos especializados. Aprender a

conhecer é mais do que aprender a aprender. Aprender mais linguagens e metodologias do

que conteúdos, pois estes envelhecem rapidamente. Não basta aprender a conhecer. É preciso

aprender a pensar, a pensar a realidade e não apenas ―pensar pensamentos‖, pensar o já dito, o

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já feito, reproduzir o pensamento. É preciso pensar também o novo, reinventar o pensar,

pensar e reinventar o futuro.

Aprender a fazer – É indissociável do aprender a conhecer. A substituição de certas

atividades humanas por máquinas acentuou o caráter cognitivo do fazer. O fazer deixou de ser

puramente instrumental. Nesse sentido, vale mais hoje a competência pessoal que torna a

pessoa apta a enfrentar novas situações de emprego, mas apta a trabalhar em equipe, do que a

pura qualificação profissional.

Hoje, o importante na formação do trabalhador, também do trabalhador em educação,

é saber trabalhar coletivamente, ter iniciativa, gostar do risco, ter intuição, saber comunicar-

se, saber resolver conflitos, ter estabilidade emocional. Essas são, acima de tudo, qualidades

humanas que se manifestam nas relações interpessoais mantidas no trabalho. A flexibilidade é

essencial. Existem hoje perto de 11 mil funções na sociedade contra aproximadamente 60

profissões oferecidas pelas universidades. Como as profissões evoluem muito rapidamente,

não basta preparar- se profissionalmente para um trabalho.

Aprender a viver juntos – a viver com os outros. Compreender o outro, desenvolver

a percepção da interdependência, da não-violência, administrar conflitos. Descobrir o outro,

participar em projetos comuns. Ter prazer no esforço comum. Participar de projetos de

cooperação. Essa é a tendência.

No Brasil, como exemplo desta tendência, pode-se citar a inclusão de temas/eixos

transversais (ética, ecologia, cidadania, saúde, diversidade cultural) nos Parâmetros

Curriculares

Nacionais, que exigem equipes interdisciplinares e trabalho em projetos comuns.

Aprender a ser – Desenvolvimento integral da pessoa: inteligência, sensibilidade,

sentido ético e estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade, pensamento autônomo e

crítico, imaginação, criatividade, iniciativa. Para isso não se deve negligenciar nenhuma das

potencialidades de cada indivíduo. A aprendizagem não pode ser apenas lógico-matemática e

lingüística. Precisa ser integral.

Iniciou-se este texto procurando situar o que significa ―perspectiva‖. Sem pretender

fazer qualquer exercício de futurologia e muito mais no sentido de estabelecer pontos para o

debate, serão apontados aqui algumas categorias em torno da educação do futuro, que

indicam o surgimento de temas com importantes conseqüências para a educação.

As categorias ―contradição‖, ―determinação‖, ―reprodução‖, ―mudança‖, ―trabalho‖,

―práxis‖, ―necessidade‖, ―possibilidade‖ aparecem freqüentemente na literatura pedagógica

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contemporânea, sinalizando já uma perspectiva da educação, a perspectiva da pedagogia da

práxis.

Essas categorias tornaram-se clássicas na explicação do fenômeno da educação,

principalmente a partir de Hegel e de Marx. A dialética constitui-se, até hoje, no paradigma

mais consistente para analisar o fenômeno da educação.

Pode-se e deve-se estudá-la e estudar todas as categorias anteriormente apontadas.

Elas não podem ser negadas, pois ajudarão muito na leitura do mundo da educação atual. Elas

não podem ser negadas ou desprezadas como categorias ―ultrapassadas‖. Porém, também

podemos nos ocupar mais especificamente de outras, ao pensar a educação do futuro,

categorias nascidas ao mesmo tempo da prática da educação e da reflexão sobre ela. Eis

algumas delas a título de exemplo.

Cidadania – O que implica também tratar do tema da autonomia da escola, de seu

projeto político-pedagógico, da questão da participação, da educação para a cidadania. Dentro

desta categoria, pode-se discutir particularmente o significado da concepção de escola cidadã

e de suas diferentes práticas. Educar para a cidadania ativa tornou-se hoje projeto e programa

de muitas escolas e de sistemas educacionais.

Planetaridade – A Terra é um ―novo paradigma‖ (Leonardo Boff). Que implicações

tem essa visão de mundo sobre a educação? O que seria uma ecopedagogia (Francisco

Gutiérrez) e uma ecoformação (Gaston Pineau)? O tema da cidadania planetária pode ser

discutido a partir desta categoria. Podemos nos perguntar como Milton Nascimento: ―para que

passaporte se fazemos parte de uma única nação?‖ Que conseqüências podemos tirar para

alunos, professores e currículos?

Sustentabilidade – O tema da sustentabilidade originou-se na economia

(―desenvolvimento sustentável‖) e na ecologia, para se inserir definitivamente no campo da

educação, sintetizada no lema ―uma educação sustentável para a sobrevivência do planeta‖. O

que seria uma cultura da sustentabilidade?

Esse tema deverá dominar muitos debates educativos das próximas décadas. O que

estamos estudando nas escolas? Não estaremos construindo uma ciência e uma cultura que

servem para a degradação/deterioração do planeta?

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Virtualidade – Esse tema implica toda a discussão atual sobre a educação a distância

e o uso dos computadores nas escolas (Internet). A informática, associada à telefonia, nos

inseriu definitivamente na era da informação.

Quais as conseqüências para a educação, para a escola, para a formação do professor e

para a aprendizagem? Conseqüências da obsolescência do conhecimento. Como fica a escola

diante da pluralidade dos meios de comunicação? Eles abrem os novos espaços da formação

ou irão substituir a escola?

Globalização – O processo da globalização está mudando a política, a economia, a

cultura, a história e, portanto, também a educação. É um tema que deve ser enfocado sob

vários prismas. A globalização remete também ao poder local e às conseqüências locais da

nossa dívida externa global (e dívida interna também, a ela associada). O global e o local se

fundem numa nova realidade: o ―glocal‖. O estudo desta categoria remete à necessária

discussão do papel dos municípios e do ―regime de colaboração‖ entre União, estados,

municípios e comunidade, nas perspectivas atuais da educação básica. Para pensar a educação

do futuro, é necessário refletir sobre o processo de globalização da economia, da cultura e das

comunicações.

Transdisciplinaridade – Embora com significados distintos, certas categorias como

transculturalidade transversalidade, multiculturalidade e outras como complexidade e

holismo também indicam uma nova tendência na educação que será preciso analisar. Como

construir interdisciplinarmente o projeto pedagógico da escola? Como relacionar

multiculturalidade e currículo? É necessário realizar o debate dos PCN. Como trabalhar com

os ―temas transversais‖? O desafio de uma educação sem discriminação étnica, cultural, de

gênero.

Dialogicidade, dialeticidade – Não se pode negar a atualidade de certas categorias

freireanas e marxistas, a validade de uma pedagogia dialógica ou da práxis. Marx, em O

capital, privilegiou as categorias hegelianas ―determinação‖, ―contradição‖, ―necessidade‖ e

―possibilidade‖.

A fenomenologia hegeliana continua inspirando nossa educação e deverá atravessar o

milênio. A educação popular e a pedagogia da práxis deverão continuar como paradigmas

válidos para além do ano 2000.

A análise dessas categorias e a identificação da sua presença na pedagogia

contemporânea podem constituir-se, sem dúvida, num grande programa a ser desenvolvido

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hoje em torno das ―perspectivas atuais da educação‖. Não se pretende aqui dar respostas

definitivas. Com esse pequeno texto introdutório, procurou-se apenas iniciar um debate sobre

as perspetivas atuais da educação, sem a intenção de, com isso, encerrá-lo. Existem muitos

outros desafios para a educação. A reflexão crítica não basta, como também não basta a

prática sem a reflexão sobre ela. Aqui, são indicadas apenas algumas pistas, dentro de uma

visão otimista e crítica – não pessimista e ingênua – para uma análise em profundidade

daqueles que se interessam por uma ―educação voltada para o futuro‖, como dizia o grande

educador polonês, o marxista Bogdan Suchodolski.

TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM:

<http://www.scielo.br/pdf/spp/v14n2/9782.pdf >

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Carlos Rodrigues Brandão

O Que é Educação

BRANDÃO, Carlos Rodrigues

O que é educação/ Carlos Rodrigues

Brandão

São Paulo: brasiliense, 2007 - -

(coleção primeiros passos; 20)

49ª reimpr.da 1 ed.de 1981

I. Educação I. titulo II. Série

07- 0589 CDD-370

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EDUCAÇÃO? EDUCAÇÕES: APRENDER COM O ÍNDIO

Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem

minha. Buriti quer todo o azul, e não se aparta de sua água — carece de

espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente

aprende.

João Guimarães Rosa/Grande Senão: Veredas

Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou

de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para

aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos

a vida com a educação. Com uma ou com várias: educação? Educações. E já que pelo menos

por isso sempre achamos que temos alguma coisa a dizer sobre a educação que nos invade a

vida, por que não começar a pensar sobre ela com o que uns índios uma vez escreveram?

Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz

com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação sempre

foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes

mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos.

Os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns

anos mais tarde Benjamin Franklin adotou o costume de divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que

nos interessa:

"...Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e

agradecemos de todo o coração.

Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções

diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa

idéia de educação não é a mesma que a nossa.

...Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e

aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus

corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não

sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa

língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros,

como caçadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta

e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres

senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que

sabemos e faremos, deles, homens."

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De tudo o que se discute hoje sobre a educação, algumas das questões entre as mais

importantes estão escritas nesta carta de índios. Não há uma forma única nem um único

modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o

melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único

praticante.

Em mundos diversos a educação existe diferente: em pequenas sociedades tribais de

povos caçadores, agricultores ou pastores nômades; em sociedades camponesas, em países

desenvolvidos e industrializados; em mundos sociais sem classes, de classes, com este ou

aquele tipo de conflito entre as suas classes; em tipos de sociedades e culturas sem Estado,

com um Estado em formação ou com ele consolidado entre e sobre as pessoas.

Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo,

ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que submetem e dominam outros povos,

usando a educação como um recurso a mais de sua dominância. Da família à comunidade, a

educação existe difusa em todos os mundos sociais, entre as incontáveis práticas dos mistérios

do aprender; primeiro, sem classes de alunos, sem livros e sem professores especialistas; mais

adiante com escolas, salas, professores e métodos pedagógicos.

A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas

criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário

como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir imposta por um sistema

centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a

desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos.

A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a

criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de

educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam-e-

aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras

do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer

povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos,

através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do

mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar — às vezes a

ocultar, às vezes a inculcar — de geração em geração, a necessidade da existência de sua

ordem.

Por isso mesmo — e os índios sabiam — a educação do colonizador, que contém o

saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de domínio,

na verdade não serve para ser a educação do colonizado. Não serve e existe contra uma

educação que ele, não obstante dominado, também possui como um dos seus recursos, em seu

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mundo, dentro de sua cultura.

Assim, quando são necessários guerreiros ou burocratas, a educação é um dos meios

de que os homens lançam mão para criar guerreiros ou burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de

homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através de passar de uns para os outros o saber

que os constitui e legitima. Mais ainda, a educação participa do processo de produção de

crenças e idéias, de qualificações e especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e

poderes que, em conjunto, constróem tipos de sociedades. E esta é a sua força.

No entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome de todos, o

educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar

servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu trabalho, para os usos

escusos que ocultam também na educação — nas suas agências, suas práticas e nas idéias que

ela professa — interesses políticos impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade

que habita. E esta é a sua fraqueza.

Aqui e ali será preciso voltar a estas idéias, e elas podem ser como que um roteiro

daqui para a frente. A educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos

sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz. para fora, que a sua missão é

transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens que se tem

de uns e outros: "...e deles faremos homens". Mas, na prática, a mesma educação que ensina

pode deseducar, e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que

inventa que pode fazer: "...eles eram, portanto, totalmente inúteis".

QUANDO A ESCOLA É A ALDEIA

A educação existe onde não há a escola e por toda parte podem haver redes e

estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra, onde ainda não foi sequer

criada a sombra de algum modelo de ensino formal e centralizado. Porque a educação aprende

com o homem a continuar o trabalho da vida. A vida que transporta de uma espécie para a

outra, dentro da história da natureza, e de uma geração a outra de viventes, dentro da história

da espécie, os princípios através dos quais a própria vida aprende e ensina a sobreviver e a

evoluir em cada tipo de ser.

Os bichos do mundo aprendem de dentro para fora com as armas naturais do instinto.

Mas a isto eles acrescentam maneiras de aprender de fora para dentro, convivendo com a

espécie, observando a conduta de outros iguais de seu mundo e experimentando repetir muitas

vezes essas condutas da espécie, por conta própria. Entre os que nos rodeiam de perto ou de

longe, não são raros os bichos cujos pais da prole criam e recriam situações, para que o treino

dos filhotes faça e repita os atos da aprendizagem que garante a vida, como a mãe que um dia

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expulsa com amor o filho do ninho, para que ele aprenda a arte e a coragem do primeiro vôo.

O homem que transforma, com o trabalho e a consciência, partes da natureza em

invenções de sua cultura, aprendeu com o tempo a transformar partes das trocas feitas no

interior desta cultura em situações sociais de aprender-ensinar-e-aprender: em educação. Na

espécie humana a educação não continua apenas o trabalho da vida. Ela se instala dentro de

um domínio propriamente humano de trocas: de símbolos, de intenções, de padrões de cultura

e de relações de poder. Mas, a seu modo, ela continua no homem o trabalho da natureza de

fazê-lo evoluir, de torná-lo mais humano. É esta a idéia que Werner Jaeger tem na cabeça

quando, num estudo sobre a educação do homem grego, procura explicar o que ela é,afinal:

"A natureza do homem, na sua dupla estrutura corpórea e espiritual, cria condições

especiais para a manutenção e transmissão da sua forma particular e exige organizações

físicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de educação. Na educação, como o

homem a pratica, atua a mesma força vital, criadora e plástica, que espontaneamente impele

todas as espécies vivas à conservação e à propagação de seu tipo. É nela, porém, que essa

força atinge o seu mais alto grau de intensidade, através do esforço consciente do conheci-

mento e da vontade, dirigida para a consecução de um fim."

Quando um povo alcança um estágio complexo de organização da sua sociedade e de

sua cultura; quando ele enfrenta, por exemplo, a questão da divisão social do trabalho e,

portanto, do poder, é que ele começa a viver e a pensar como problema as formas e os

processos de transmissão do saber. É a partir de então que a questão da educação emerge à

consciência e o trabalho de educar acrescenta à sociedade, passo a passo, os espaços,

sistemas, tempos, regras de prática, tipos de profissionais e categorias de educandos

envolvidos nos exercícios de maneiras cada vez menos corriqueiras e menos comunitárias do

ato, afinal tão simples, de ensinar-e-aprender.

No entanto, muito antes que isso aconteça, em qualquer lugar e a qualquer tempo —

entre dez índios remanescentes de alguma tribo do Brasil Central, no centro da cidade de São

Paulo — a educação existe sob tantas formas e é praticada em situações tão diferentes, que

algumas vezes parece ser invisível, a não ser nos lugares onde pendura alguma placa na porta

com o seu nome.

Quando os antropólogos do começo do século saíram pelo mundo pesquisando

"culturas primitivas" de sociedades tribais das Américas, da Ásia, da África e da Oceania, eles

aprenderam a descrever com rigor praticamente todos os recantos da vida destas sociedades e

culturas. No entanto, quase nenhum deles usa a palavra educação, embora quase todos, de

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uma forma ou de outra, descrevam relações cotidianas ou cerimônias rituais em que crianças

aprendem e jovens são solenemente admitidos no mundo dos adultos.

De vez em quando, aparece, perdido num mar de outros conceitos, o de educação,

como quando Radcliffe-Brown - um antropólogo inglês que participa da criação da moderna

Antropologia Social - lembra que, entre os andamaneses, um grupo tribal de ilhéus entre

Burma e Sumatra, para se ajustar a criança à sua comunidade "é preciso que ela seja

educada". Parte deste processo consiste em a criança e o adolescente aprenderem aos poucos a

caçar, a fabricar o arco e flecha e assim por diante. Outra parte envolve . a aquisição de

"sentimentos e disposições emocionais" que regulam a conduta dos membros da tribo e

constituem o corpo de suas regras sociais de moralidade.

Quando os antropólogos pouco falam em educação, eles pouco querem falar de

processos formalizados de ensino. Porque, onde os andamaneses, os maori, os apaches ou os

xavantes praticam, e os antropólogos identificam processos sociais de aprendizagem, não

existe ainda nenhuma situação propriamente escolar de transferência do saber tribal que vai

do fabrico do arco e flecha à recitação das rezas sagradas aos deuses da tribo. Ali, a sabedoria

acumulada do grupo social não "dá aulas" e os alunos, que são todos os que aprendem, "não

aprendem na escola". Tudo o que se sabe aos poucos se adquire por viver muitas e diferentes

situações de trocas entre pessoas, com o corpo, com a consciência, com o corpo-e-a-

consciência. As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de quem

sabe-e-faz, para quem não-sabe-e-aprende. Mesmo quando os adultos encorajam e guiam os

momentos e situações de aprender de crianças e adolescentes, são raros os tempos

especialmente reservados apenas para o ato de ensinar.

Nas aldeias dos grupos tribais mais simples, todas as relações entre a criança e a

natureza, guiadas de mais longe ou mais perto pela presença de "adultos conhecedores, são

situações de aprendizagem. A criança vê, entende, imita e aprende com a sabedoria que existe

no próprio gesto de fazer a coisa. São também situações de aprendizagem aquelas em que as

pessoas do grupo trocam bens materiais entre si ou trocam serviços e significados: a turma de

caçada, no barco de pesca, no canto da cozinha da palhoça, na lavoura familiar ou comunitária

de mandioca, nos grupos de brincadeiras de meninos e meninas, nas cerimônias religiosas.

Émile Durkheim, um dos principais sociólogos da educação, explica isto da seguinte

maneira:

"Sob regime tribal, a característica essencial da educação reside no fato de ser difusa

e administrada indistintamente por todos os elementos o clã. Não há mestres determinados,

nem inspetores especiais para a formação da juventude: esses papéis são desempenhados por

todos os anciãos e pelo conjunto das gerações anteriores."

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As meninas aprendem com as companheiras de idade, com as mães, as avós, as irmãs

mais velhas, as velhas sábias da tribo, com esta ou aquela especialista em algum tipo de magia

ou artesanato. Os meninos aprendem entre os jogos e brincadeiras de seus grupos de idade,

aprendem com os pais, os irmãos-da-mãe, os avós, os guerreiros, com algum xamã (mago,

feiticeiro), com os velhos em volta das fogueiras. Todos os agentes desta educação de aldeia

criam de parte a parte as situações que, direta ou indiretamente, forçam iniciativas de

aprendizagem e treinamento. Elas existem misturadas com a vida em momentos de trabalho,

de lazer, de camaradagem ou de mor. Quase sempre não são impostas e não é raro que sejam

os aprendizes os que tomam a seu cargo procurar pessoas e situações de troca que lhes

possam trazer algum aprendizado. Assim, entre os Wogeo, da Nova Guiné, de acordo com o

depoimento de um antropólogo:

"Onde é necessário aprender habilidades especiais as crianças estão, em regra geral,

ansiosas por saber o que os seus pais conhecem. O orgulho do trabalhador e o prestígio do

bom artesão ominam sua vida e elas necessitam de muito pouco estímulo para procurá-los

por si mesmas."

O saber da comunidade, aquilo que todos conhecem de algum modo; o saber próprio

dos homens e das mulheres, de crianças, adolescentes, jovens, adultos e velhos; o saber de

guerreiros e esposas; o saber que faz o artesão, o sacerdote, o feiticeiro, o navegador e outros

tantos especialistas, envolve portanto situações pedagógicas interpessoais, familiares e

comunitárias, onde ainda não surgiram técnicas pedagógicas escolares, acompanhadas de seus

profissionais de aplicação exclusiva. Os que sabem: fazem, ensinam, vigiam, incentivam,

demonstram, corrigem, punem e premiam. Os que não sabem espiam, na vida que há no

cotidiano, o saber que ali existe, vêem fazer e imitam, são instruídos com o exemplo,

incentivados, treinados, corrigidos, punidos, premiados e, enfim, aos poucos aceitos entre os

que sabem fazer e ensinar, com o próprio exercício vivo do fazer. Esparramadas pelos cantos

do cotidiano, todas as situações entre pessoas, e entre pessoas e a natureza — situações

sempre mediadas pelas regras, símbolos e valores da cultura do grupo — têm, em menor ou

maior escala a sua dimensão pedagógica. Ali, todos os que convivem aprendem, aprendem, da

sabedoria do grupo social e da força da norma dos costumes da tribo, o saber que torna todos

e cada um pessoalmente aptos e socialmente reconhecidos e legitimados para a convivência

social, o trabalho, as artes da guerra e os ofícios, do amor.

"Os meninos observam os homens quando fazem arcos e flechas; o homem os chama

para perto de si e eles se vêem obrigados a observá-lo. As mulheres, por outro lado, levam as

meninas para fora de casa, ensinando-as a conhecer as plantas boas para confeccionar cestos e

a argila que serve para fazer potes. E, em casa, as mulheres tecem os cestos, costuram os

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mocassins e curtem a pele de cabrito diante das meninas, dizendo-lhes, enquanto estão

trabalhando, que observem cuidadosamente, para que, quando forem grandes, ninguém as

possa chamar de preguiçosas e ignorantes. Ensinam-nas a cozinhar e aconselham-nas sobre a

busca de bagas e outros frutos, assim como sobre a colheita de alimentos."

Em todos os grupos humanos mais simples, os diversos tipos de treinamento através

das trocas sociais, que socializam crianças e adolescentes, incluem, entre outras, estas

situações pedagógicas:

treinamento direto de habilidades corporais, por meio da prática direta

dos atos que conduzem o corpo ao hábito;

a estimulação dirigida, para que o aprendiz faça e repita, até o acerto,

os atos de saber e habilidade que ignora;

a observação livre e dirigida, do educando, dos procedimentos

daqueles que sabem;

a correção interpessoal, familiar ou comunitária, das práticas ou das

condutas erradas, por meio do castigo, do ridículo ou da admoestação;

a assistência convocada para cerimônias rituais e, aos poucos (ou

depois de uma iniciação), o direito à participação nestas cerimônias (solenidades

religiosas, danças, rituais de passagem);

a inculcação dirigida em situações de quase-ensino, com o uso da

palavra e turmas de ouvintes, dos valores morais, dos mitos histórico-religiosos da

tribo, das regras dos códigos de conduta.

Assim, tudo o que é importante para a comunidade, e existe como algum tipo de saber,

existe também como algum modo de ensinar. Mesmo onde ainda não criaram a escola, ou nos

intervalos dos lugares onde ela existe, cada tipo de grupo humano cria e desenvolve situações,

recursos e métodos empregados para ensinar às crianças, aos adolescentes, e também aos

jovens e mesmo aos adultos, o saber, a crença e os gestos que os tornarão um dia o modelo de

homem ou de mulher que o imaginário de cada sociedade — ou mesmo de cada grupo mais

específico, dentro dela — idealiza, projeta e procura realizar. De duas tribos vizinhas de

pastores do deserto, é possível que se dê franca importância a um artifício pedagógico, em

uma delas, como o castigo corporal, por exemplo, ou a atemorização de crianças, e ele seja

simplesmente rejeitado na outra. Mas em uma e na outra, como em todas do mundo, nunca as

pessoas crescem a esmo e aprendem ao acaso.

O que vimos acontecer até aqui, formas vivas e comunitárias de ensinar-e-aprender,

tem sido chamado com vários nomes. Ao processo global que tudo envolve, é comum que se

dê o nome de socialização. Através dela, ao longo da vida, cada um de nós passa por etapas

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sucessivas de inculcação de tipos de categorias gerais, parciais ou especializadas de saber-e-

habilidade. Elas fazem, em conjunto, o contorno da identidade, da ideologia e do modo de

vida de um grupo social. Elas fazem, também, do ponto de vista de cada um de nós, aquilo

que aos poucos somos, sabemos, fazemos e amamos. A socialização realiza em sua esfera as

necessidades e projetos da sociedade, e realiza, em cada um de seus membros, grande parte

daquilo que eles precisam para serem reconhecidos como "seus" e para existirem dentro dela.

Ora, no interior de todos os contextos sociais coletivos de formação do adulto, o

processo de aquisição pessoal de saber-crença-e-hábito de uma cultura, que funciona sobre

educandos como uma situação pedagógica total, pode ser chamado (com algum susto) de

endoculturação. Dentro de sua cultura, em sua sociedade, aprender de maneira mais ou menos

intencional (alguns dirão: "mais ou menos consciente"), através do envolvimento direto do

corpo, da mente e da afetividade, entre as incontáveis situações de relação com a natureza e

de trocas entre os homens, é parte do processo pessoal de endoculturação, e é também parte

da aventura humana do "tornar-se pessoa".

Vista em seu vôo mais livre, a educação é uma fração da experiência endoculturativa.

Ela aparece sempre que há relações entre pessoas e intenções de ensinar-e-aprender.

Intenções, por exemplo, de aos poucos "modelar" a criança, para conduzi-la a ser o "modelo"

social de adolescente e, ao adolescente, para torná-lo mais adiante um jovem e, depois, um

adulto. Todos os povos sempre traduzem de alguma maneira esta lenta transformação que a

aquisição do saber deve operar. Ajudar a crescer, orientar a maturação, transformar em, tornar

capaz, trabalhar sobre, domar, polir, criar, como um sujeito social, a obra, de que o homem

natural é a matéria-prima.

Não é nada raro que tanto na cabeça de um índio quanto na de um de nossos

educadores ocidentais, a melhor imagem de como a educação se idealiza seja a do oleiro que

toma o barro e faz o pote. O trabalho cuidadoso do artesão que age com tempo e sabedoria

sobre a argila viva que é o educando. A argila que resiste às mãos do oleiro, mas que se deixa

conduzir por elas a se transformar na obra feita: o adulto educado. Quando o educador pensa a

educação, ele acredita que, entre homens, ela é o que dá a forma e o polimento. Mas ao fazer

isso na prática, tanto pode ser a mão do artista que guia e ajuda o barro a que se transforme,

quanto a forma que iguala e deforma.

É bom separar agora algumas palavras usadas até aqui e que serão ainda trabalhadas

mais adiante. Tudo o que existe transformado da natureza pelo trabalho do homem e

significado pela sua consciência é uma parte de sua cultura: o pote de barro, as palavras da

tribo, a tecnologia da agricultura, da caça ou da pesca, o estilo dos gestos do corpo nos atos do

amor, o sistema de crenças religiosas, as estórias da história que explica quem aquela gente é

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e de onde veio, as técnicas e situações de transmissão do saber. Tudo o que existe disponível e

criado em uma cultura como conhecimento que se adquire através da experiência pessoal com

o mundo ou com o outro; tudo o que se aprende de um modo ou de outro faz parte do

processo de endoculturação, através do qual um grupo social aos poucos socializa, em sua

cultura, os seus membros, como tipos de sujeitos sociais.

Ora, a educação é o território mais motivado deste mapa. Ela existe quando a mãe

corrige o filho para que ele fale direito a língua do grupo, ou quando fala à filha sobre as

normas sociais do modo de "ser mulher" ali. Existe também quando o pai ensina ao filho a

polir a ponta da flecha, ou quando os guerreiros saem com os jovens para ensiná-los a caçar.

A educação aparece sempre que surgem formas sociais de condução e controle da aventura de

ensinar-e-aprender. O ensino formal é o momento em que a educação se sujeita à pedagogia

(a teoria da educação), cria situações próprias para o seu exercício, produz os seus métodos,

estabelece suas regras e tempos, e constitui executores especializados. É quando aparecem a

escola, o aluno e o professor de quem começo a falar daqui para frente.

ENTÃO, SURGE A ESCOLA

Mesmo em algumas sociedades primitivas, quando o trabalho que produz os bens e

quando o poder que reproduz a ordem são divididos e começam a gerar hierarquias sociais,

também o saber comum da tribo se divide, começa a se distribuir desigualmente e pode passar

a servir ao uso político de reforçar a diferença, no lugar de um saber anterior, que afirmava a

comunidade.

Então é o começo de quando a sociedade separa e aos poucos opõe: o que faz, o que se

sabe com o que se faz e o que se faz com o que se sabe. Então é quando, entre outras

categorias de especialidades sociais, aparecem as de saber e de ensinar a saber. Este é o

começo do momento em que a educação vira o ensino, que inventa a pedagogia, reduz a

aldeia à escola e transforma "todos" no educador.

O que é que isto significa? Significa que, para além das fronteiras do saber comum de

todas as pessoas do grupo e transmitido entre todos livre e pessoalmente, para além do saber

dividido dentro do grupo entre categorias naturais de pessoas (homens e mulheres, crianças,

jovens, adultos e velhos) e transferido de uns aos outros segundo suas linhas de sexo ou de

idade, por exemplo, emergem tipos e graus de saber que correspondem desigualmente a

diferentes categorias de sujeitos (o rei, o sacerdote, o guerreiro, o professor, o lavrador), de

acordo com a sua posição social no sistema político de relações do grupo. Onde todos

aprendem para serem "gente", "adulto", "um dos nossos" e, meio a meio, alguns aprendem

para serem "homem" e outros para serem "mulher", outros ainda começam a aprender para

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serem "chefe", "feiticeiro", "artista", "professor", "escravo". A diferença que o grupo

reconhece neles por vocação ou por origem, a diferença do que espera de cada um deles como

trabalho social qualificado por um saber, gera o começo da desigualdade da educação de

"homem comum" ou de "iniciado", que cada um deles diferentemente começa a receber.

Uma divisão social do saber e dos agentes e usuários do saber como essa existe

mesmo em sociedades muito simples. Em seu primeiro plano de separação - o mais universal

— numa idade sempre próxima à da adolescência, meninos e meninas são isolados do resto da

tribo. Em alguns casos convivem entre iguais e com adultos por períodos de reclusão e

aprendizagem que envolvem situações de ensino forçado e duras provas de iniciação. Todo o

trabalho pedagógico da formação destes jovens é conduzido por categorias de educadores

escolhidos entre todos para este tipo de ofício, de que os meninos saem jovens-adultos e

guerreiros, por exemplo, e as meninas, moças prontas para a posse de um homem, uma casa e

alguns filhos.

Nas suas formas mais simples, estas situações pedagógicas de ensino especializado

que apressa o adulto que há no jovem podem ser muito breves. Podem envolver pouco mais

do que momentos provocados de convivência intensificada entre grupos de adolescentes e

grupos de adultos. Depressa eles são devolvidos ao grupo social e, quase sempre, depois de

cerimônias públicas de iniciação (os ritos de passagem), são reconhecidos, pela posição que o

grupo lhes atribui e pelo saber que lhes reconhece, como homens e mulheres aptos e legítimos

para a vida do adulto da tribo.

Outras vezes este período de aprendizagem separada é muito mais longo, muito mais

diversificado e, por certo, muito mais próximo dos modelos de agências e procedimentos de

ensino que temos na cabeça quando pensamos em educação. Em sociedades tribais da Libéria

e de Serra Leoa, na África, há tipos de escolas para os meninos (as escolas "Poro") e para as

meninas (as escolas "Sande"). De tribo para tribo os meninos estudam por períodos que vão

de ano e meio a oito anos. Estudam, convivem entre si e com seus mestres, e treinam.

Divididos de acordo com seus grupos de idade (como em nossas "séries"), eles aprendem as

crenças, as tradições e os costumes culturais da tribo, além do saber dos ofícios de guerra e

paz. A escola Poro leva em conta diferenças individuais e, com o trabalho docente de

diferentes professores-especialistas, forma novos especialistas. Se um menino demonstra

talentos para o trabalho do fabrico de tecidos, de couro, para o exercício da dança, ou para os

ofícios da medicina tribal, ele acrescenta estes treinos e estudos ao corpo comum do programa

por que passa com todos os outros companheiros de idade.

Entre grupos de pescadores da Nova Zelândia e do Arquipélago da Sociedade, existem

"casas de ensino", verdadeiras universidades em escala indígena, onde toda a sabedoria da

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cultura é ensinada aos jovens de ambos os sexos por professores-sacerdotes. Durante a metade

do ano estas "casas" permanecem abertas e, por todo o dia, oferecem cursos com alguma

teoria e muita prática sobre pelo menos os seguintes assuntos: genealogia, tradições e história,

princípios de crença e cultos religiosos, magia, artes da navegação, agricultura, dança,

literatura. O programa de ensino divide a "Mandíbula Superior", onde os jovens aprendem

com os sacerdotes os segredos do sagrado, da "Mandíbula Inferior", relacionada com os

assuntos terrenos.

Em um segundo plano, mais restrito e mais marcadamente político, diferentes

categorias de meninos e meninas recebem o saber especializado que há em uma "educação de

minorias privilegiadas", destinadas por herança aos cargos de chefia. Assim acontece, por

exemplo, entre quase todos os grupos originais do Havaí, onde os nobres e outros jovens

selecionados de antemão para postos futuros de poder sobre os outros passavam por

verdadeiros cursos superiores de estudos que lhes tomavam quase todo o tempo da

adolescência e da juventude. A tribo que mais adiante submeterá a eles a chefia comunitária

— o trabalho social de dirigir — atribuirá a eles como um direito, e exigirá deles como um

dever, o saber especializado do chefe. E o próprio tempo prolongado de estudo, treino e teste,

muito mais do que o de todos os outros meninos, vale como um atestado social de diferenças

entre o chefe e os outros, dado pela educação.

Mesmo os grupos que, como os nossos, dividem e hierarquizam tipos de saber, de

alunos e de usos do saber, não podem abandonar por inteiro as formas livres, familiares e/ou

comunitárias de educação. Em todos os cantos do mundo, primeiro a educação existe como

um inventário amplo de relações interpessoais diretas no âmbito familiar: mãe-filha, pai-filho,

sobrinho-irmão-da-mãe, irmão-mais-velho-irmão-caçula e assim por diante. Esta é a rede de

trocas de saber mais universal e mais persistente na sociedade humana. Depois, a educação

pode existir entre educadores-educandos não parentes — mas habitantes de uma mesma

aldeia, de uma mesma cidade, gente de uma mesma linguagem — semiespecializados ou

especialistas do saber de algum ofício mais amplo ou mais restrito: artesão-aprendiz,

sacerdote-iniciado, cavaleiro-escudeiro, e tantos outros.

Até aqui o espaço educacional não é escolar. Ele é o lugar da vida e do trabalho: a

casa, o templo, a oficina, o barco, o mato, o quintal. Espaço que apenas reúne pessoas e tipos

de atividade e onde viver o fazer faz o saber.

Em todo o tipo de comunidade humana onde ainda não há uma rigorosa divisão social

do trabalho entre classes desiguais, e onde o exercício social do poder ainda não foi

centralizado por uma classe como um Estado, existe a educação sem haver a escola e existe a

aprendizagem sem haver o ensino especializado e formal, como um tipo de prática social

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separada das outras. E da vida.

Mesmo nas grandes sociedades civilizadas do passado — como na Grécia e em Roma,

com que vamos nos encontrar um pouco mais adiante — um sistema pedagógico controlado

por um poder externo a ele, atribuído de fora para dentro a uma hierarquia de especialistas do

ensino, e destinado a reproduzir a desigualdade através da oferta desigual do saber, é uma

conquista tardia na história da cultura.

Em nome de quem os constitui educadores, estes especialistas do ensino aos poucos

tomam a seu cargo a tarefa de assumir, controlar e recodificar domínios, sistemas, modos e

usos do saber e das situações coletivas de distribuição do saber. Onde quer que apareça e em

nome de quem venha, todo o corpo profissional de especialistas do ensino tende a dividir e a

legitimar divisões do conhecimento comunitário, reservando para o seu próprio domínio tanto

alguns tipos e graus do saber da cultura, quanto algumas formas e recursos próprios de sua

difusão.

Assim, aos poucos acontece com a educação o que acontece com todas as outras

práticas sociais (a medicina, a religião, o bem-estar, o lazer) sobre as quais um dia surge um

interesse político de controle. Também no seu interior, sistemas antes comunitários de trocas

de bens, de serviços e de significados são em parte controlados por confrarias de especialistas,

mediadores entre o poder e o saber.

Os estudos mais recentes da História têm indicado que a palavra escrita parece ter

surgido em sociedades-estado enriquecidas e com um poder muito centralizado, como entre

os egípcios ou entre os astecas. Ela teria aparecido primeiro sendo usada pelos escribas, para

fazer a contabilidade dos bens dos reis e faraós. Só mais tarde é que foi usada também pelos

poetas para cantarem as coisas da aldeia e de sua gente. Assim também a educação. Por toda a

parte onde ela deixa de ser totalmente livre e comunitária (não escrita) e é presa na escola,

entre as mãos de educadores a serviço de senhores, ela tende a inverter as utilizações dos seus

frutos: o saber é a repartição do saber. A educação da comunidade de iguais que reproduzia

em um momento anterior a igualdade, ou a complementariedade social, por sobre diferenças

naturais, começa a reproduzir desigualdades sociais por sobre igualdades naturais, começa

desde quando aos poucos usa a escola, os sistemas pedagógicos e as "leis do ensino" para

servir ao poder de uns poucos sobre o trabalho e a vida de muitos. Onde um tipo de educação

pode tomar homens e mulheres, crianças e velhos, para torná-los todos sujeitos livres que por

igual repartem uma mesma vida comunitária; um outro tipo de educação pode tomar os

mesmos homens, das mesmas idades, para ensinar uns a serem senhores e outros, escravos,

ensinando-os a pensarem, dentro das mesmas idéias e com as mesmas palavras, uns como

senhores e outros, como escravos.

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Nas sociedades primitivas que nos acompanharam até aqui, a educação escolar que

ajuda a separar o nobre do plebeu parece ser um ponto terminal na escala de invenção dos

recursos humanos de transferência do saber de uma geração a outra. Também nas sociedades

ocidentais como a nossa — sociedades complexas, sociedades de classes, sociedades

capitalistas — a educação escolar é uma invenção recente na história de cada uma. Da

maneira como existe entre nós, a educação surge na Grécia e vai para Roma, ao longo de

muitos séculos da história de espartanos, atenienses e romanos. Deles deriva todo o nosso

sistema de ensino e, sobre a educação que havia em Atenas, até mesmo as sociedades

capitalistas mais tecnologicamente avançadas têm feito poucas inovações. Talvez estejam,

portanto, entre os seus inventos e escolas, algumas das respostas às nossas perguntas.

PEDAGOGOS, MESTRES-ESCOLA E SOFISTAS

Todas as grandes sociedades ocidentais que, como Atenas e Roma, emergiram de seus

bandos errantes, de suas primeiras tribos de clãs de pastores ou camponeses, aprenderam a

lidar com a educação do mesmo modo como qualquer outro grupo humano, em qualquer

outro tempo. Tal como entre os índios das Seis Nações, os primeiros assuntos e problemas da

educação grega foram os dos ofícios simples dos tempos de paz e de guerra. O que se ensina e

aprende entre os primeiros pastores, mesmo quando eles começaram rusticamente a

enobrecer, envolve o saber da agricultura e do pastoreio, do artesanato de subsistência

cotidiana e da arte. Tudo isso misturado, sem muitos mistérios, com os princípios de honra, de

solidariedade e, mais do que tudo, de fidelidade à polis, a cidade grega onde começa e acaba a

vida do cidadão livre e educado. Esta educação grega é, portanto, dupla, e carrega dentro dela

a oposição que até hoje a nossa educação não resolveu. Ali estão normas de trabalho que,

quando reproduzidas como um saber que se ensina para que se faça, os gregos acabaram

chamando de tecne e que, nas suas formas mais rústicas e menos enobrecidas, ficam relegadas

aos trabalhadores manuais, livres ou escravos. Ali estão normas de vida que, quando

reproduzidas como um saber que se ensina para que se viva e seja um tipo de homem livre e,

se possível, nobre, os gregos acabaram chamando de teoria. Este saber que busca no homem

livre o seu mais pleno desenvolvimento e uma plena participação na vida da polis é o próprio

ideal da cultura grega e é o que ali se tinha em mente quando se pensava na educação.

De tudo o que pode ser feito e transformado, nada é para o grego uma obra de arte tão

perfeita quanto o homem educado. A primeira educação que houve em Atenas e Esparta foi

praticada entre todos, nos exercícios coletivos da vida, em todos os cantos onde as pessoas

conviviam na comunidade. Quando a riqueza da polis grega criou na sociedade estruturas de

oposição entre livres e escravos, entre nobres e plebeus, aos meninos nobres da elite guerreira

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e, mais tarde, da elite togada é que a educação foi dirigida. Por alguns séculos, mesmo para

eles, ainda não havia a escola.

Das relações familiares diretas até a convivência entre jovens, segundo os seus grupos

de idade, ou entre grupos de meninos educandos e um velho educador, entre os gregos sempre

se conservou a idéia de que todo o saber que se transfere pela educação circula através de

trocas interpessoais, de relações física e simbolicamente afetivas entre as pessoas. Assim, a

pederastia acaba sendo considerada em Esparta como a forma mais pura e mais completa de

educação entre homens livres e iguais. Em toda a Grécia a formação do nobre guerreiro

apenas desenrola ao longo dos anos uma seqüência de trocas entre um mestre e seus

discípulos.

Aquilo que a cultura grega chama com pleno efeito de educação — paideia — dando à

palavra o sentido de formação harmônica do homem para a vida da polis, através do

desenvolvimento de todo o corpo e toda a consciência, começa de fato fora de casa, depois

dos sete anos. Até lá a criança convive com a sua criação, convivendo com a mãe e escravos

domésticos.

Para além ainda do que entre os sete e os catorze anos aprende com o mestre-escola, a

verdadeira educação do jovem aristocrata é o fruto do lento trabalho de um ou de poucos

mestres que acompanham o educando por muitos anos.

Em Atenas, por volta do VI século A.C., a educação deixa de ser uma prática coletiva,

de estilo militar, destinada apenas à formação do cidadão nobre. Até então, mesmo no apogeu

da democracia grega, a propriedade é restritamente comunal; pertence aos cidadãos ativos do

Estado. O poder pertence aos estratos mais nobres destes cidadãos ativos, e a vida e o trabalho

colocam de um lado os homens livres, senhores e, de outro, os escravos ou outros tipos de

trabalhadores manuais expulsos do direito do saber que existe na paideia.

Durante muitos séculos os "pobres" da Grécia aprenderam desde criança fora das

escolas: nas oficinas e nos campos de lavoura e pastoreio. Os meninos "ricos" inicialmente

aprenderam também fora da escola, em acampamentos ou ao redor de velhos mestres. Além

das agências estatais de educação, como a Efebia de Esparta, que educava o jovem nobre-

guerreiro, toda a educação fora do lar e da oficina é uma empresa particular, mesmo quando

não é paga. Particular e restrita a muito pouca gente.

Apenas quando a democratização da cultura e da participação na vida pública colocam

a necessidade da democratização do saber, é que surge a escola aberta a qualquer menino livre

da cidade-estado. A escola primária surge em Atenas por volta do ano 600 A.C. Antes dela

havia locais de ensino de metecos e rapsodistas que aos interessados ensinavam "a fixar em

símbolos os negócios e os cantos". Só depois da invenção da escola de primeiras letras é que o

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seu estudo é pouco a pouco incorporado à educação dos meninos nobres. Assim, surgem em

Atenas escolas de bairro, não raro "lojas de ensinar", abertas entre as outras no mercado. Ali

um humilde mestre-escola, "reduzido pela miséria a ensinar", leciona as primeiras letras e

contas. O menino escravo, que aprende com o trabalho a que o obrigam, não chega sequer a

esta escola. O menino livre e plebeu em geral pára nela. O menino livre e nobre passa por ela

depressa em direção aos lugares e aos graus onde a educação grega forma de fato o seu

modelo de "adulto educado". Citação de Sólon, legislador grego:

"As crianças devem, antes de tudo, aprender a nadar e a ler; em seguida, os pobres

devem exercitar-se na agricultura ou em uma indústria qualquer, ao passo que os ricos

devem se preocupar com a música e a equitação, e entregar-se à filosofia, à caça e à

freqüência aos ginásios."

Esta concepção Xenofonte, historiador, poeta, filósofo e militar grego, criticaria quase

dois séculos depois:

"Só os que podem criar os seus filhos para não fazerem nada é que os enviam à escola;

os que não podem, não enviam."

A educação do jovem livre vai em direção à teoria, que é o saber do nobre para

compreender e comandar, não para fazer, curar ou construir. Durante toda a antigüidade a

única disciplina técnica (entendida como a de uma formação que aponta para um ofício

determinado) é a medicina. Não há outras escolas coletivas de ensino técnico para o preparo

de arquitetos, engenheiros ou agrimensores, por exemplo. Tal como ferreiros ou tecelões, eles

aprendem de maneira simples e direta, na oficina e no trabalho, através do convívio com

algum velho artífice.

Diferenças de saber de classe dos educandos produziram diferenças curiosas entre os

tipos de educadores da Grécia antiga. De um lado, desprezíveis mestres-escola e artesãos-

professores; de outro, escravos pedagogos e educadores nobres, ou de nobres. De um lado, a

prática de instruir para o trabalho; de outro, a de educar para a vida e o poder que determina a

vida social.

De todos estes adultos transmissores de saber vale a pena falar do pedagogo. Pequenas

estatuetas de terracota guardam a memória dele. Artistas gregos representaram esses velhos

escravos — quase sempre cativos estrangeiros — conduzindo crianças a caminho da escola de

primeiras letras. E por que eles e não os mestres que nas escolas ensinavam? Porque os

escravos pedagogos — condutores de crianças — eram afinal seus educadores, muito mais do

que os mestres-escola. Eles conviviam com a criança e o adolescente e, mais do que os pais,

faziam a educação dos preceitos e das crenças da cultura da polis. O pedagogo era o educador

por cujas mãos a criança grega atravessava os anos a caminho da escola, por caminhos da

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vida.

Nos primeiros tempos, mais do que filósofos ou matemáticos, os gregos foram

guerreiros, músicos e ginastas. Assim, mais do que jurídica ou científica, a educação do

cidadão livre era ética e artística (no pleno sentido que estas duas palavras possuíam na

paideia grega), dentro de uma cultura pouco acostumada a separar a verdade da beleza. Mais

tarde, sob a influência de Sócrates e Epicuro (um sujeito feio e outro doentio) é que a

educação começa a ser pensada como formadora do espírito. Por muitos e muitos séculos ela

aponta para a harmonia que existe na beleza do corpo (e a destreza para a luta) ao lado da

clareza da mente (e a fidelidade à polis dos cidadãos livres). Mesmo no nível da cultura

letrada dos nobres, a civilização clássica não conservou sempre um único modelo ou estilo de

saber, logo, de educação. Ela oscilou entre duas formas de algum modo antagônicas: a

filosófica, cujo tipo dominante pode ser Platão, e a oratória (retórica), cujo tipo dominante

pode ser Isócrates.

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Depois de constituídas as classes de homens livres que regem a democracia dos gregos

sobre a divisão do trabalho e a instituição do regime escravagista, para os seus adolescentes a

educação coletiva não é uma atividade voluntária ou um direito de berço. É um dever imposto

pela polis ao livre. Porque o seu exercício modela não um homem abstrato, sonho de poetas,

mas o cidadão maduro para o serviço à comunidade, projeto do político. Assim, o ideal da

educação é reproduzir uma ordem social idealmente concebida como perfeita e necessária,

através da transmissão, de geração a geração, das crenças, valores e habilidades que tornavam

um homem tão mais perfeito quanto mais preparado para viver a cidade a que servia. E nada

poderia haver de mais precioso, a um homem livre e educado, do que o próprio saber e a

identidade de sábio que ele atribui ao homem.

Depois de haver conquistado a cidade onde vivia o filósofo Estilpão, Demétrio

Poliorceto pretendeu indenizá-lo pelos prejuízos materiais que sofrera por causa da pilhagem.

Quando pediu que fizesse o inventário do que lhe pertencera e fora destruído, Estilpão

respondeu que nada havia perdido do que era seu, porque não lhe haviam roubado a sua

cultura — — dado que ainda conservava a eloqüência e o saber.

O formador de jovens, o educador, o filósofo-mestre como Sócrates, Platão e

Aristóteles, reúnem à sua volta os seus alunos, em suas escolas superiores. A escola

filosófico-iniciática de Pitágoras, que interna educandos, cria regras próprias de conduta e

lhes absorve boa parte do tempo da juventude, antecede a Academia de Platão, o Liceu de

Aristóteles e a Escola de Epicuro. Mas são os filósofos sofistas os que democratizam o ensino

superior, tornando-o remunerado e, portanto, aberto a todos os que podem pagar. Após a

longa crise de tirania por volta do VI século A.C., a vida social de Atenas possibilita a

participação de todos os cidadãos livres, e isto recoloca a questão do preparo do homem para

o exercício da cidadania, a questão de aprender para legislar e para estar de algum modo

presente nas assembléias de representação política. Os sofistas transformam a educação

superior em um tempo de formação do orador, onde a qualidade da retórica tem mais valor do

que a busca desinteressada da verdade, exercício dos nobres dos períodos anteriores.

Aos poucos até Aristóteles e Alexandre Magno, muito depressa durante a Civilização

Helenística, a educação clássica passa por algumas mudanças:

1) ela vai do cultivo aristocrático do corpo e da mente, com vistas à formação do nobre

guerreiro e dirigente, à habilitação do cidadão livre, comum, para a carreira política;

2) ela vai de um domínio do "saber desinteressado", de fundo artístico-musical, para o

literário, daí para o retórico, o livresco e o escolar (de aprender a sabedoria para aprender a

informação);

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3) ela vai das agências de reprodução restrita do saber de nobres, entre nobres, para o

saber disponível, à venda em escolas pagas que educam da criança ao adulto.

Com o tempo a educação clássica deixa de ser um assunto privado, posse e questão da

comunidade dos nobres dirigentes, e passa a ser questão de Estado, pública. Aristóteles exige

do Imperador leis que regulem direitos e controlem o exercício da educação. Atrás das tropas

de conquista de Alexandre Magno, os gregos levam as suas escolas por todo o mundo. Elas

são, mais do que tudo, o meio de impedir que a distância da Pátria de origem ameace perder-

se a cultura do vencedor entre os costumes e o saber dos vencidos.

Como seria possível fazer uma síntese dos princípios que orientaram toda a educação

clássica criada pelos gregos? Ela foi sempre entendida como um longo processo pelo qual a

cultura da cidade é incorporada à pessoa do cidadão. Uma trajetória de amadurecimento e

formação (como a obra de arte que aos poucos se modela), cujo produto final é o adulto

educado, um sujeito perfeito segundo um modelo idealizado de homem livre e sábio, mas

ainda sempre aperfeiçoável. Assim, a educação grega não é dirigida à criança no sentido cada

vez mais dado a ela hoje em dia. De algum modo, é uma educação contra a criança, que não

leva em conta o que ela é, mas olha para o modelo do que pode ser, e que anseia torná-la

depressa o jovem perfeito (o guerreiro, o atleta, o artista de seu próprio corpo-e-mente) e o

adulto educado (o cidadão político a serviço da polis).

Esta educação humanista de uma sociedade que deixa ao escravo e ao artesão livre o

trabalho de fazer, desdenha a técnica e olha para "o homem todo", formado de aprender a

teoria e praticar o gesto que constróem o saber e o hábito do homem livre. Em seu pleno

sentido, é uma educação ética cujo saber conduz o sábio a viver, com a sua própria vida, o

modelo de um modo de ser idealizado, tradicional, que é missão da paideia conservar e

transmitir.

Finalmente, os gregos ensinam o que hoje esquecemos. A educação do homem existe

por toda parte e, muito mais do que a escola, é o resultado da ação de todo o meio

sociocultural sobre os seus participantes. É o exercício de viver e conviver o que educa. E a

escola de qualquer tipo é apenas um lugar e um momento provisórios onde isto pode

acontecer. Portanto, é a comunidade quem responde pelo trabalho de fazer com que tudo o

que pode ser vivido-e-aprendido da cultura seja ensinado com a vida — e também com a aula

— ao educando.

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A EDUCAÇÃO QUE ROMA FEZ, E O QUE ELA ENSINA

Os primeiros latinos foram camponeses aos poucos enriquecidos e, alguns, tornados

nobres na Península Itálica. Ali aconteceu como em tantas outras partes do mundo. Classes

sociais que com o tempo chegaram a ser "privilegiadas" e separaram a direção do trabalho do

próprio exercício do trabalho, separando com isso as forças produtivas mentais das físicas,

desempenharam antes funções úteis. Primeiro, entre os romanos, o trabalho é entre todos e o

saber é de todos. Os primeiros reis de Roma punham com os súditos as mãos no arado e

lavravam a terra.

Como entre os índios, como nos tempos de origem dos povos gregos, a educação dos

camponeses latinos é comunitária e existe difusa em todo o meio social. Muito mais do que na

Grécia, a educação da criança é uma tarefa doméstica. Na aurora da história do poder de

Roma, ela foi uma lenta iniciação da criança e do adolescente nas tradições consagradas da

cultura, e servia à consagração da tradicionalidade quase venerada de um modo camponês de

vida, simples e austero. A criança começava a aprender em casa, com os mais velhos, e quase

tudo o que aprendia era para saber e preservar os valores do mundo dos "mais velhos", dos

seus antepassados.

Essa educação doméstica busca a formação da consciência moral. O adulto educado

que ela quer criar é o homem capaz de renúncia de si próprio, de devotamento de sua pessoa à

comunidade. São as virtudes do campesinato de todos os tempos e lugares, o que dirige a

primitiva educação de Roma, que exalta em verso e prosa a austeridade, a vida simples, o

amor ao trabalho como supremo bem do homem, e o horror ao luxo e à ociosidade. Ao

contrário do que aconteceu cedo em Atenas, em Roma não há de início qualquer tipo de

cuidado com a pura formação física e intelectual do cidadão ocioso, ocupado com pensar,

governar e guerrear. A educação de uma comunidade dedicada ao trabalho com a terra foi

durante séculos uma formação do homem para o trabalho e a vida, para a cidadania da

comunidade igualada pelo trabalho.

Quando o mundo romano de camponeses enriquece com os excedentes da terra e das

pilhagens de outros povos, quando opõe classes sociais e inventa o Estado, ele ainda defende

a criança de ser entregue cedo a alguma forma de educação estatal, militarizada, fora do lar.

Entre os romanos os primeiros educadores de pobres e nobres são o pai e a mãe. Mesmo os

mais ricos, senhores de escravos, não entregam a um servo-pedagogo ou a uma governanta o

cuidado dos filhos. Quando o menino completa, aos 7 anos, o aprendizado cheio de afeição

que recebe da mãe, ele passa para o pai, que não divide sequer com o mestre-escola o direito

de educá-lo, ou seja, de formar a sua consciência segundo os preceitos das crenças e valores

da classe e da sociedade.

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Em Roma, portanto, ao contrário do que vimos acontecer em Atenas e principalmente

em Esparta, a família prolonga o poder de socializar o cidadão e, através dela, a sociedade

civil estende o alcance do seu modelo em toda uma primeira educação da criança. A partir de

Homero, no alvorecer da história grega, o ideal da paideia é o herói da polis. Na educação

romana o modelo ideal é o ancestral da família, depois o da comunidade.

Quando uma nobreza romana enriquecida com a agricultura e o saque abandona o

trabalho da terra pelo da política, e cria as regras do Império de que se serve, aquele primitivo

saber comunitário divide-se e força a separação de tipos, níveis e agências de educação.

Quando há livres e escravos, senhores e servos, começa a haver um modelo de educação para

cada um, e limites entre um modelo e outro.

Aos poucos a educação deixa de ser o ensino que forma o pastor, o artífice ou o

lavrador e, nas suas formas mais elaboradas, prepara o futuro guerreiro, o funcionário

imperial e os dirigentes do Império. O sistema comunitário de base pedagógica familiar

compete com outros. Aos poucos aparece a oposição entre o ensino de educar, dos pais, dos

mestres-pedagogos que convivem com os educandos e os acompanham, prolongando com

eles o saber que forma a consciência e que é a sabedoria; e o ensino de instruir, do mestre-

escola que monta no mercado a loja de ensino e vende o saber de ler-e-contar como uma

mercadoria.

O ensino elementar das primeiras letras apareceu em Roma antes do IV século A.C.

Um tipo de ensino que podemos identificar com o secundário surgiu na metade do século III

A.C. e o ensino que hoje em dia chamaríamos de superior, universitário, apareceu pelo século

I A.C. Mas, durante quase toda a sua história, o Estado Romano. não toma a seu cargo a tarefa

de educar, que ficou deixada à iniciativa particular, mas já não mais comunitária, como ao

tempo em que os reis aravam a terra. Só depois do advento do Cristianismo, por volta do

século IV D.C., é que surge e se espalha por todo o Império a schola publica, mantida pelos

cofres dos municípios.

Nos tempos do domínio de Augusto e de Tibério, a criança, educada em casa pelos

pais, aprendia depois dos 7 anos as primeiras letras na escola (loja de ensino) do ludimagister.

Aos 12 anos ela estava pronta para freqüentar a escola do grammaticus e, a partir dos 16, a do

lector. Na sua forma mais simples esta é a estrutura de educação que herdamos e conservamos

até hoje.

Do lado de fora das portas do lar, a educação latina enfim separa em duas vertentes o

que se pode aprender. Uma é a da oficina de trabalho, para onde vão os filhos dos escravos,

dos servos e dos trabalhadores artesãos. Outra é a escola livresca, para onde vão o futuro

senhor (o dirigente livre do trabalho e do Estado) e o seu mediador, o funcionário burocrata

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do Estado ou de negócios particulares.

Esta educação de escola, que os romanos criam em Roma copiando a forma e alguma

coisa do espírito dos gregos, espalham primeiro pela Península Itálica e depois por todo o

mundo que conquistam na Europa, na Ásia e no Norte da África. Do mesmo modo como o

sacerdote, o educador caminha atrás dos passos do general. A educação do conquistador

invade, com armas mais poderosas do que a espada, a vida e a cultura dos conquistados. A

educação que serve, longe da Pátria, aos filhos dos soldados e funcionários romanos sediados

entre os povos vencidos, serve também para impor sobre eles a vontade e a visão de mundo

do dominador.

Plutarco descreveu como Roma usou a educação para "domar" os espanhóis

dominados: "As armas não tinham conseguido submetê-los a não ser parcialmente; foi a

educação que os domou."

EDUCAÇÃO: ISTO E AQUILO, E O CONTRÁRIO DE TUDO

Ora, uma outra maneira de se compreender o que a educação é, ou poderia ser, é

procurar ver o que dizem sobre ela pessoas como legisladores, pedagogos, professores,

estudantes e outros sujeitos um tanto mais tradicionalmente difíceis de entender, como

filósofos e cientistas sociais.

Nos dois dicionários brasileiros mais conhecidos a educação aparece definida assim:

"Ação e efeito de educar, de desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais

da criança e, em geral, do ser humano; disciplinamento, instrução, ensino." (Dicionário

Contemporâneo da Língua Portuguesa, Caldas Aulete)

"Ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações jovens para adaptá-las à

vida social; trabalho sistematizado, seletivo, orientador, pelo qual nos ajustamos à vida, de

acordo com as necessidades ideais e propósitos dominantes; ato ou efeito de educar;

aperfeiçoamento integral de todas as faculdades humanas, polidez, cortesia." (Pequeno

Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa, Aurélio Buarque de Hollanda)

Um pouco mais adiante vamos ver que o miolo de cada uma destas definições de

dicionário pende para um dos lados em que se recortam as maneiras de explicar o que a

educação é e a que serve.

Na "letra da Lei" a coisa não muda muito. Ao pretenderem estabelecer quais os fins da

educação no país, os nossos legisladores, pelo menos em teoria, garantem para todos o melhor

a seu respeito. Eles falam sobre o que deve determinar e controlar o trabalho pedagógico em

todos os seus graus e modalidades. De certo modo, falam a respeito de uma educação

idealizada, ou falam da educação através de uma ideologia (ver O que é Ideologia – Marilena

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Chauí, nesta mesma coleção):

"Art. 19 — A educação nacional, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de

solidariedade humana, tem por fim:

a) a compreensão dos direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão, do Estado, da

família e dos demais grupos que compõem a comunidade;

b)o respeito a dignidade e às liberdades fundamentais do homem;

c) o fortalecimento da unidade nacional e da solidariedade internacional;

d) o desenvolvimento integral da personalidade humana e a sua participação na obra

do bem comum;

e) o preparo do indivíduo e da sociedade para o domínio dos recursos científicos e

tecnológicos que lhes permitam utilizar as possibilidades e vencer as dificuldades do meio;

f) a preservação do patrimônio cultural;

g) a condenação a qualquer tratamento desigual por motivo de convicção filosófica,

política ou religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe ou raça." (Lei 4024, de

20 de dezembro de 1961)

Mas, do outro lado do palco, intelectuais, educadores e estudantes fazem e refazem

todos os dias a crítica da prática da educação no Brasil. Eles levantam questões e afirmam

que, do Ministério â escolinha, a educação nega no cotidiano o que afirma na Lei. Não há

liberdade no país e a educação não tem tido papel algum nos últimos anos para a sua

conquista; não há igualdade entre os brasileiros e a educação consolida a estrutura classista

que pesa sobre nós; não há nela nem a consciência nem o fortalecimento dos nossos

verdadeiros valores culturais.

Um grupo de estudantes candidatos à direção da UNE resume parte desta crítica e

reclama para a luta estudantil itens que, com alguma variação de linguagem, quase poderiam

caber nas "leis do ensino".

"Os homens discriminados como negros, velhos, crianças, homossexuais, mulheres...

descobrem que, nestes anos todos de dominação, a força imensa que mexeu e transformou a

face do planeta nasce de cada oprimido, de cada explorado, de cada homem, de cada mulher.

Descobrem a origem e o fim de toda a atividade humana: o próprio homem.

"Corações e mentes se abrem para uma nova vida. Irrompe uma nova consciência.

"A percepção ampla e profunda das ações e relações entre os homens é inerente e

inseparável de qualquer trabalho de produção, veiculação ou discussão cultural.

"E buscar todos os meios para que todo esse trabalho floresça, para que toda essa

força contida venha à tona, é função nossa, das entidades estudantis.

"Criar condições para que, através da manifestação de todos, possamos perceber os

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anseios, as contradições de cada um, do homem e de toda a sociedade.

"Ampliar as idéias sobre o trabalho cultural. Abranger o homem, as suas relações, as

discriminações raciais, sexuais, etárias, a moral, o poder, a dominação.

"Romper os limites, soltar a cabeça, as mãos, os pés, o corpo para a realidade

inquieta, questionadora.

"Destruir as regras do jogo.

"Subir no palco e invadir os camarins do mundo. Assumir o papel de agentes da

História. Representar a vida." (Voz Ativa — Cultural)

Sem rodeios as "leis do ensino" no país garantem que:

"A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola... À família cabe escolher

o gênero de educação que deve dar a seus filhos... O direito à educação é assegurado: pela

obrigação do poder público e pela liberdade de iniciativa particular de ministrarem o ensino

em todos os graus, na forma da lei em vigor; pela obrigação do Estado de fornecer recursos

indispensáveis para que a família e, na falta desta, os demais membros da comunidade se

desobriguem dos encargos da educação, quando provada a insuficiência de meios, de modo

que sejam asseguradas iguais oportunidades a todos." (Artigos 29 e 39 da lei 4024)

Mas, se entre o pensado e o vivido há diferenças, as pessoas do país protestam e

cobram, de quem faz a lei, que pelo menos ela seja cumprida: que haja liberdade na educação

e, através dela, que a escola exista para todos e seja distribuída por igual entre todos. Assim,

os docentes universitários reunidos num Encontro Nacional de Associações escreveram o

seguinte no documento final:

"O regime político e o modelo socioeconômico impostos nos últimos anos à Nação

Brasileira produziram danos marcantes na qualidade do ensino de nossas escolas, seja pela

repressão político-ideológica que se abateu sobre toda a comunidade, seja pelo caráter

flagrantemente antidemocrático de suas leis e decretos, que se reflete na elaboração e

modificação ilegítimas de regimentos e estatutos das Universidades.

"A política educacional implantada levou à progressiva desobrigação do Estado com o

custeio da Educação, e à expansão do ensino privado. Assim, a educação está aberta à ação

dos empresários do ensino, sujeita às leis da iniciativa privada, sendo negociada como

mercadoria entre as partes interessadas em vender e comprar, o que revela o caráter elitista do

atual processo educacional no Brasil." (Boletim Nacional das Associações de Docentes, nº 3)

A fala do poder que constitui a educação no país propõe o exercício de uma prática

idealizada. A fala dos praticantes da educação, os educadores, faz então a crítica da distância

que há entre a promessa e a realidade. Faz mais, denuncia a alteração para pior das próprias

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leis que dizem o que é e como deve ser a Educação no Brasil.

Não há apenas idéias opostas ou idéias diferentes a respeito da Educação, sua essência

e seus fins. Há interesses econômicos, políticos que se projetam também sobre a Educação.

Não é raro que aqui, como em toda parte, a fala que idealiza a educação esconda, no silêncio

do que não diz, os interesses que pessoas e grupos têm para os seus usos. Pois, do ponto de

vista de quem a controla, muitas vezes definir a educação e legislar sobre ela implica

justamente ocultar a parcialidade destes interesses, ou seja, a realidade de que eles servem a

grupos, a classes sociais determinadas, e não tanto "a todos", "à Nação", "aos brasileiros". Do

ponto de vista de quem responde por fazer a educação funcionar, parte do trabalho de pensá-la

implica justamente em desvendar o que faz com que a educação, na realidade, negue e

renegue o que oficialmente se afirma dela na lei e na teoria.

Mas a razão de desavenças é anterior e, mesmo entre educadores, ela tem alguns

fundamentos na diferença entre modos de compreender o que o ato de ensinar afinal é, o que

o determina e, finalmente, a que e a quem ele serve.

PESSOAS "VERSUS" SOCIEDADE: UM DILEMA QUE OCULTA OUTROS

Quando alguém tenta explicar o que são estes nomes e o que eles misturam: educação,

escola, ensino, a fala que explica pode pender para um lado ou para o outro de uma velha

discussão. Uma discussão ontem quente, hoje em dia inútil; a não ser quando serve para

revelar o que se esconde por detrás de pensar a educação desta maneira ou daquela.

De acordo com as idéias de alguns filósofos e educadores, a educação é um meio pelo

qual o homem (a pessoa, o ser humano, o indivíduo, a criança, etc.) desenvolve

potencialidades biopsí-quicas inatas, mas que não atingiriam a sua perfeição (o seu

amadurecimento, o seu desenvolvimento, etc.) sem a aprendizagem realizada através da

educação. Pode até ser que haja formas próprias de auto-educação, mas é de suas práticas

interativas (interpessoais), coletivas, que se está falando quando se escreve um livro sobre

"Filosofia da Educação" por exemplo. Assim como a própria sociedade é um corpo coletivo

formado da individualidade das pessoas que a compõem, e assim como o seu fim é a

felicidade de seus membros a quem todas as suas instituições devem servir, assim também a

educação, como idéia (a definição, a "filosofia"), deve ser pensada em nome da pessoa e,

como instituição (a escola, o sistema pedagógico) ou como prática (o ato de educar), deve ser

realizada como um serviço coletivo que se presta a cada indivíduo, para que ele obtenha dela

tudo o que precisa para se desenvolver individualmente.

Muitas vezes, entre os que pensam assim, a dimensão subjetiva da educação é

ressaltada e, não raro, toma conta de todo o espaço em que o seu processo está sendo pensado.

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Não importa considerar sob que condições sociais e através de que recursos e procedimentos

externos a pessoa aprende, mas apenas a pensar o ato de aprender do ponto de vista do que

acontece do educando para dentro.

"A Educação não é mais do que o desenvolvimento consciente e livre das faculdades

inatas do homem." (Sciacca);

"A Educação é o processo externo de adaptação superior do ser humano, física e

mentalmente desenvolvido, livre e consciente, a Deus, tal como se manifesta no meio

intelectual, emocional e vo/itivo do homem".(Herman Horse);

"O fim da Educação é desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele seja

capaz." (Kant);

"É toda a espécie de formação que surge da influência espiritual." (Krieck).

Quando a Enciclopédia Brasileira de Moral e Civismo, editada pelo Ministério de

Educação e Cultura, define educação, pensando talvez expressar uma idéia consensual, ela de

fato repete o ponto de vista das definições anteriores. Vejamos:

"Educação. Do latim 'educere', que significa extrair, tirar, desenvolver. Consiste,

essencialmente, na formação do homem de caráter. A educação é um processo vital, para o

qual concorrem forças naturais e espirituais, conjugadas pela ação consciente do educador e

pela vontade livre do educando. Não pode, pois, ser confundida com o simples

desenvolvimento ou crescimento dos seres vivos, nem com a mera adaptação do indivíduo ao

meio. É atividade criadora, que visa a levar o ser humano a realizar as suas potencialidades

físicas, morais, espirituais e intelectuais. Não se reduz à preparação para fins exclusivamente

utilitários, como uma profissão, nem para desenvolvimento de características parciais da

personalidade, como um dom artístico, mas abrange o homem integral, em todos os aspectos

de seu corpo e de sua alma, ou seja, em toda a extensão de sua vida sensível, espiritual, inte-

lectual, moral, individual, doméstica e social, para elevá-la, regulá-la e aperfeiçoá-la. É

processo contínuo, que começa nas origens do ser humano e se estende até à morte."

Se voltarmos às duas definições de dicionários brasileiros de algumas páginas atrás,

veremos que a da Enciclopédia concorda mais com a primeira do que com a segunda. Uma

enfatiza o que acontece da pessoa para dentro; a outra o que acontece dela para fora, em

direção à sociedade onde vive e de que aprende.

A meio caminho entre um lado e outro, algumas propostas lembram que aquela

formação do ser humano, segundo as suas próprias potencialidades e através de seu próprio

esforço, é o resultado de um trabalho intencional, deliberado — aquilo que faz da educação a

parte mais motivada da endoculturação, como eu disse várias páginas atrás. Esta ação dirigida

ao educando procede de um educador, de uma agência de educação, ou do que existe de

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educativo no meio sociocultural.

"Educação é um sentido de valorização individual e organizado, variável em extensão

e profundidade para cada indivíduo e processado pelas riquezas culturais."

(Kerschensteiner);

"É a influência deliberada e consciente exercida sobre o ser maleável e inculto, com o

propósito de formá-lo." (Cohn).

Um pouco mais perto dos que nos esperam do outro lado desta aparente história de

"ovo-e-galinha", estão alguns estudiosos da educação que consideram que não só a pessoa,

individualmente, mas alguma coisa indicada como "a civilização", "o meio social" ou "a

sociedade" deve ser o destino do homem educado:

"Podemos agora definir de modo mais precioso o objeto da educação: é guiar o

homem no desenvolvimento dinâmico, no curso do qual se constituirá como pessoa humana

— dotada das armas do conhecimento, do poder de julgar e das virtudes morais —

transmitindo-lhe ao mesmo tempo o patrimônio espiritual da nação e da civilização às quais

pertence e conservando a herança secular das gerações." (Maritain);

"A Educação é a organização dos recursos biológicos individuais, e das capacidades

de comportamento que tornam o indivíduo adaptável ao seu meio físico ou social." (William

James).

Procuremos refletir um pouco sobre tudo isto. Ao discutir os ideais da educação entre

os gregos, Werner Jaeger lembra uma coisa muito importante. Não é sempre e não são todos

os povos e homens que consideram a educação apenas como o que vimos até aqui. Na

verdade, esta é uma maneira de "imaginar" característica da nobreza de todos os povos em

que ela existiu, em todos os tempos. É próprio de elites separadas do trabalho produtivo — ou

dos intelectuais que pensam o mundo por elas, e para elas — propor como educação a

formação da personalidade humana através do conselho sistemático e da direção espiritual.

Esta crítica, do mesmo modo como algumas feitas nos primeiros capítulos, aqui,

procura separar o que a educação é, de fato, do que as pessoas dizem dela. Jaeger não entra no

mérito da veracidade de algumas idéias sobre a educação. Afinal, quem poderia negar que a

educação deve servir ao homem, deve servir para educá-lo, torná-lo melhor, desenvolver nele

tudo o que tem, e tudo a que tem direito? Quero insistir em que muitas vezes o que se critica

em quem apresenta a educação, tal como ela apareceu até aqui, não é o que foi dito, mas o que

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ficou oculto:

a) ou porque quem disse não sabe de onde vem a educação, o que ela é em cada

mundo real e o que faz;

b) ou porque quem disse sabe, mas explica a educação justamente para negar a sua

origem, os seus mecanismos e os seus usos.

Como é possível compreender alguma coisa que se passa entre relações sociais de

categorias de homens, que educa transmitindo de uns a outros crenças e valores sociais, que

serve tanto a igualar quanto a diferenciar as pessoas de acordo com projetos de usos do saber

situados fora dos sonhos do educador, sem pensá-la dentro, dos mundos reais onde acontecem

as trocas também reais entre os homens, verdadeiros homens de carne e osso, situados de um

lado e do outro da educação?

Na verdade, quem descobriu que na prática o "fim da educação" são os interesses da

sociedade, ou de grupos sociais determinados, através do saber que forma a consciência que

pensa o mundo e qualifica o trabalho do homem educado, não foram filósofos do passado ou

cientistas sociais de hoje. Esta é a maneira natural dos povos primitivos, com quem estivemos

até há pouco, tratarem a educação de suas crianças, mesmo quando eles não sabem explicar

isto com teorias complicadas.

Os índios e os camponeses realizam, no modo como ensinam o que é importante para

alguém aprender, a consciência de que o saber que se transmite de um ao outro deve servir de

algum modo a todos. Mas o que Werner Jaeger diz é que justamente nas formações sociais

mais desenvolvidas, onde por sobre o trabalho de muitos aparece a elite dominante de uns

poucos, surge com o tempo a idéia de uma educação que deve servir a alguns homens

individualmente, desvinculada da idéia de que eles existem dentro de grupos ou mundos

sociais, e a seu serviço. Esta maneira de compreender para que serve a educação é decorrência

de um "esquecimento", ou de um ocultamento de que, afinal, por mais louvável que seja, a

educação é uma prática social entre outras.

Entre os gregos, vimos que a educação dos jovens nobres, que viviam do trabalho de

escravos estrangeiros e que, quando adultos, participavam da direção da cidade, procurava

desenvolver o corpo e a inteligência para formar homens fortes e sábios destinados à defesa e

à política da comunidade. O que à distância poderia parecer a formação do ocioso era, na

verdade, uma aprendizagem feita durante um longo período de ócio nobre (separação do

trabalho braçal), para a formação do homem político. A educação grega e, depois, a de Roma

preocupavam-se em formar o cidadão e eram, portanto, educações da e para a comunidade.

No mundo ocidental, é depois do advento e da difusão do Cristianismo que aparecem

idéias sobre a educação que isolam o saber da sociedade e o submetem ao destino individual

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do cristão. O homem que aprende busca na sabedoria a perfeição que ajuda à salvação da

alma. Mas não é o Cristianismo Primitivo quem sugere a "educação humanista", de que os

cursos de "humanidades" que houve no Brasil até há pouco tempo são o melhor exemplo. Foi

necessário que, a partir de Roma, o Estado cristianizado e as elites de sua sociedade tomassem

posse da mensagem cristã de militância e salvação, fazendo dela parte de sua ideologia.

Tornando-a o repertório de símbolos e valores pelos quais representavam o mundo,

representavam-se nele e, assim, legitimavam, com as palavras originalmente dirigidas a

pobres e deserdados, a sua posição de domínio econômico e de hegemonia política sobre eles.

Foi então preciso o advento de uma nobreza plenamente separada do trabalho

produtivo e, cada vez mais, até mesmo do trabalho político — entregue nas mãos de

intelectuais mediadores de seus interesses — para que surgisse uma classe de gente capaz de

representar o mundo quase fora dele. Esta elite ociosa e seus intelectuais sacerdotes, filósofos

e artistas puderam imaginar como "puras" a vida, a arte, a ciência e até mesmo a educação.

Ela começa a representar realmente alguma coisa (pensa, faz pensar, constrói sistemas

de pensamento) sem representar coisa alguma de real; sem conseguir explicar mais, para si

própria e para as outras classes, o que são de fato os homens, o mundo e as relações concretas

entre o mundo e os homens. Ora, é a partir deste universo de idéias puras que a educação

afinal é pensada como o exercício do educador sobre a alma do educando, com o propósito de

purificá-la do mal que existe na ignorância do saber que conduz à salvação.

Da Antigüidade decadente à Idade Média, da Idade Média ao Renascimento (um

tempo da História rico em redefinições da idéia de educação) e do Renascimento à Idade

Moderna, foi preciso esperar muitos séculos para que de novo os brancos civilizados

aprendessem a repensar a educação como os índios. E uma nova maneira de definir a

educação como uma prática social cuja origem e destino são a sociedade e a cultura foi

formulada com muita clareza pelo sociólogo francês Émile Durkheim.

Ele sacode a poeira de um assunto que só aos poucos foi recolocado na Europa de seu

tempo, nos últimos anos do século passado. Se o fim da educação é desenvolver no homem

toda a perfeição de que ele é capaz, que "perfeição" é esta? De onde é que ela procede? Quem

a define e a quem serve? Por que, afinal, ideais de perfeição são tão diversos de uma cultura

para outra? É falso imaginar uma educação que não parte da vida real: da vida tal como existe

e do homem tal como ele é. É falso pretender que a educação trabalhe o corpo e a inteligência

de sujeitos soltos, desancorados de seu contexto social na cabeça do filósofo e do educador, e

que os aperfeiçoe para "si próprios", desenvolvendo neles o saber de valores e qualidades

humanas tão idealmente universais que apenas existem como imaginação em toda parte e não

existem como realidade (como vida concreta, como trabalho produtivo, como compromisso,

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como relações sociais) em parte alguma.

O que existe de fato são exigências sociais de formação de tipos concretos de pessoas

na e para a sociedade. São, portanto, modos próprios de educar — por isso, diferentes de uma

cultura para outra — necessários à vida e à reprodução da ordem de cada tipo de sociedade,

em cada momento de sua história. Não se trata de dizer que a educação tem, também, de

modo abstrato e muito amplo, um compromisso com a "cultura", com a "civilização", ou que

ela tem um vago "fim social". O que ocorre é que ela é inevitavelmente uma prática social

que, por meio da inculcação de tipos de saber, reproduz tipos de sujeitos sociais.

"A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se

encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver na

criança certo número de estados físicos, intelectuais e morais reclamados pela sociedade

política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destina."

(Durkheim)

Entre muitas outras, esta é uma maneira sociológica de compreender a educação.

Depois de Durkheim (que, por sua vez, aprendeu isso com outros cientistas anteriores e, quem

sabe?, com alguns índios) inúmeros sociólogos, antropólogos, filósofos e educadores

começaram a formular pontos de vista semelhantes. Não é que eles tivessem a proposta de

uma "nova educação", menos abstrata e desancorada do que a "Educação Humanista" que

criticavam. O que eles buscaram fazer foi esclarecer mais e mais como a sociedade e a cultura

são e funcionam, na realidade. Como, portanto, a educação existe dentro delas e funciona sob

a determinação de exigências, princípios e controles sociais.

SOCIEDADE CONTRA ESTADO: CLASSE E EDUCAÇÃO

A idéia de que não existe coisa alguma de social na educação; de que, como a arte, ela

é "pura" e não deve ser corrompida por interesses e controles sociais, pode ocultar o interesse

político de usar a educação como uma arma de controle, e dizer que ela não tem nada a ver

com isso. Mas o desvendamento de que a educação é uma prática social pode ser também

feito numa direção ou noutra e, tal como vimos antes, pode se dividir em idéias opostas,

situadas de um lado ou do outro da questão.

Vamos por partes, portanto. Até aqui chegamos: a educação é uma prática social

(como a saúde pública, a comunicação social, o serviço militar) cujo fim é o desenvolvimento

do que na pessoa humana pode ser aprendido entre os tipos de saber existentes em uma

cultura, para a formação de tipos de sujeitos, de acordo com as necessidades e exigências de

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sua sociedade, em um momento da história de seu próprio desenvolvimento. Não procurei

inventar uma nova definição, porque delas acho que já há demais. Procurei reunir as idéias

correntes entre os que concebem a educação como Durkheim.

Assim, dos dois historiadores da educação de cujos livros aprendi quase tudo o que

disse sobre Grécia e Roma, um deles dirá o seguinte:

"Primeiro que tudo; a educação não é uma propriedade individual, mas pertence por

essência à comunidade. O caráter da comunidade imprime-se em cada um dos seus membros

e é no homem... muito mais que nos animais, fonte de toda a ação e de todo o

comportamento. Em nenhuma parte o influxo da comunidade nos seus membros tem maior

força que no esforço constante de educar, em conformidade com o seu próprio sentir, cada

nova geração." (Werner Jaeger).

Toda a estrutura da sociedade está fundada sobre códigos sociais de inter-relação entre

os seus membros e entre eles e os de outras sociedades. São costumes, princípios, regras de

modos de ser às vezes fixados em leis escritas ou não. "A educação é, assim, o resultado da

consciência viva duma norma que rege uma comunidade humana, quer se trate da família,

duma classe ou duma profissão, quer se trate dum agregado mais vasto, como um grupo

étnico ou um Estado." Como outras práticas sociais constitutivas, a educação atua sobre a vida

e o crescimento da sociedade em dois sentidos:

1) no desenvolvimento de suas forças produtivas;

2) no desenvolvimento de seus valores culturais. Por outro lado, o surgimento de tipos

de educação e a sua evolução dependem da presença de fatores sociais determinantes e do

desenvolvimento deles, de suas transformações.

A maneira como os homens se organizam para produzir os bens com que reproduzem

a vida, a forma de ordem social que constróem para conviver, o modo como tipos diferentes

de sujeitos ocupam diferentes posições sociais, tudo isso determina o repertório de idéias e o

conjunto de normas com que uma sociedade rege a sua vida. Determina também como e para

quê este ou aquele tipo de educação é pensado, criado e posto a funcionar.

Quando são transformados a "maneira", a "forma" e o "modo" de que falei acima,

tanto as idéias quanto as normas, os sistemas e os métodos de um tipo de educação são

modificados.

Ao fazer a sua crítica, Émile Durkheim perguntava a pensadores da educação que

considerava ilustres, mas ingênuos: que "perfeição" é essa? "Mas, que se deve entender pelo

termo perfeição?" Ele quer perguntar o seguinte: quem afinal estabelece os ideais e os

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princípios da educação? Uns e outros são universais? Existiram para todos os povos, em todos

os tempos, de uma mesma maneira, pelo fato de que é sempre a mesma a "essência do

homem"? Pode ou deve existir uma espécie de "educação universal"? Durkheim conclui que

não. E conclui que o ponto fraco das idéias pedagógicas que avaliou está na crença ilusória

(ilusória sempre, ou algumas vezes mal--intencionada?) de que há, ou deveria haver, uma

"educação ideal, perfeita, apropriada a todos os homens, indistintamente".

Até aí tudo bem. Assino embaixo. Mas será que não poderíamos fazer a Durkheim,

leitor, a pergunta que ele fez aos outros? Quando fala de sociedade e, mesmo, de sociedades

concretas, do que está falando? Que tipo de sociedades, regidas por que modos e mecanismos

internos de produção de bens, de serviços, de poder e de idéias entre os seus integrantes? Ele

responderia com segurança: "cada uma"; cada tipo de sociedade real, histórica, cria e impõe o

tipo de educação de que necessita. E arremataria:

"Na verdade, porém, cada sociedade, considerada em momento determinado de seu

desenvolvimento, possui um sistema de educação que se impõe aos indivíduos de modo

geralmente irresistível. É uma ilusão acreditar que podemos educar nossos filhos como

queremos... Há, pois, a cada momento, um tipo regulador de educação do qual não nos

podemos separar sem vivas resistências, e que restringem as velocidades dos dissidentes."

No entanto, o que é "cada sociedade considerada em um momento determinado de seu

desenvolvimento"? é preciso reforçar algumas perguntas e fazer outras. Afinal, "cada socie-

dade" existe e funciona como um todo orgânico e harmônico, fundado sobre a igualdade entre

todos e o consenso de todos? Dentro dela, em posições especiais de privilégio, de hegemonia

e de controle sobre outros, não existirão classes sociais capazes de impor uma educação que

fazem criar e existir? Para seu uso próprio e por sobre outras classes e grupos sociais (mais do

que "em nome deles"), não há, em determinadas sociedades concretas, classes e grupos, às

vezes muito minoritários, que resolvem por sua conta como será e para quê servirá a

"educação oficial"? Ou, perguntando de outra maneira, já que cada tipo de sociedade — a

"tribal" de índios Gê, do Brasil Central; a chinesa após a revolução socialista; a indiana do V

século A.C; a da Alemanha medieval ou mesmo a de uma aldeia de camponeses, dentro dela;

a portuguesa colonialista do século XVII; a do Brasil "pós-64" - inventa e faz a sua educação

ou as suas educações, nos sistemas mais oficiais, mais organizados em projetos e programas

pedagógicos, são pensados a partir das idéias fundamentais de todos os tipos de pessoas? As

mesmas escolas servem ao operário, ao engenheiro e ao capitalista imobiliário do mesmo

modo (como as leis brasileiras de ensino garantem que sim e os professores críticos garantem

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que não)? Uma educação ensina o saber da "comunidade nacional" a todos, para os mesmos

usos sociais, e segundo os mesmos direitos individuais de todas as categorias de seus "adultos

educados"?

Ora, entre os que colocam "sociedade e cultura" no meio da questão da educação,

alguns pesquisam e apenas reconhecem que ela é, na cultura, uma prática social de

reprodução de categorias de saber através da formação de tipos de sujeitos educados. Outros

projetam e defendem a necessidade deste ou daquele tipo de educação para este ou aquele tipo

de sociedade.

Entre estes últimos, um pensamento muito corrente hoje em dia é o de que a educação

é um dos principais meios de realização de mudança social ou, pelo menos, um dos recursos

de adaptação das pessoas a um "mundo em mudança". Este modo de imaginar tende a ser

dominante atualmente. Mas ele não fazia sentido para gregos e romanos e nem mesmo para os

portugueses e missionários que tentaram educar nossos antepassados durante a Colônia.

A idéia de que a educação não serve apenas à sociedade, ou à pessoa na sociedade,

mas à mudança social e à formação conseqüente de sujeitos e agentes na/da mudança social,

pode não estar escrita de maneira direta nas "leis do ensino". Afinal, as leis quase sempre são

escritas por quem pensa que nem elas nem o mundo vão mudar um dia. Mas as suas

conseqüências podem aparecer indiretamente. Por exemplo, na "Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Brasileira" (também conhecida como "5692", neste mundo onde tudo é numerado),

os fins da educação acrescentam a formação para o trabalho, ou enfatizam este objetivo do ato

de ensinar, mais do que as leis anteriores.

"O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a

formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-

realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da

cidadania."

Quando a idéia de educação vem associada à de adaptação para alguma coisa externa à

pessoa, e que se transforma, a proposta pode ser formulada assim: "Educação é preparação

da criança para uma civilização em mudança." (Kilpatrik) ou assim:

"Em uma sociedade dinâmica como a nossa, só pode ser eficaz uma educação para a

mudança. Esta (educação) consiste na formação do espírito isento de todo dogmatismo, que

capacite a pessoa para elevar-se acima da corrente dos acontecimentos, ao invés de arrastar-

se por eles." (Mannheim)

Um outro nome para a educação pode ser até mesmo sugerido, quando se constata, por

exemplo, que o rumo e a velocidade das transformações do mundo moderno exigem cada vez

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mais, de todos os homens, uma constante reciclagem de conhecimentos e uma contínua

readaptação a um mundo que, afinal, ainda é sempre o mesmo e já é sempre um outro.

"A Educação Permanente é uma concepção dialética da educação, como um duplo

processo de aprofundamento, tanto da experiência pessoal quanto da vida social, que se

traduz pela participação efetiva, ativa e responsável de cada sujeito envolvido, qualquer que

seja a etapa de existência que esteja vivendo... O primeiro imperativo que deve preencher a

Educação Permanente é a necessidade que todos nós temos de sempre aperfeiçoar a nossa

formação profissional. Num mundo como o nosso, em que progridem ciência e suas

aplicações tecnológicas cada dia mais, não se pode admitir que o homem se satisfaça durante

toda a vida com o que aprendeu durante uns poucos anos, numa época em que estava profun-

damente imaturo. Deve informar-se, documentar-se, aperfeiçoar a sua destreza, de maneira a

se tornar mestre da sua práxis. O domínio de uma profissão não exclui o seu

aperfeiçoamento. Ao contrário, será mestre quem continuar aprendendo. " (Pierre Furterj)

Não será estranho que, aqui e ali, a proposta de uma educação apareça armada do

poder de realizar, ela própria, o trabalho de transformar a sociedade. Quando este tipo de

proposta considera a educação como uma entre outras práticas sociais cujo efeito sobre as

pessoas cria condições necessárias para a realização de transformações indispensáveis, a

sugestão é aceitável e realista. Nada se faz entre os homens sem a consciência e o trabalho dos

homens, e tudo o que tem o poder de alterar a qualidade da consciência e do trabalho, tem o

poder de participar de sua práxis e de ser parte dela. No entanto, quando a educação é

imaginada — agora pelo utopista social — como o único ou principal instrumento de

qualquer tipo de transformação de estruturas políticas, econômicas ou culturais, sem que haja

a lembrança de que ela própria é determinada por estas estruturas, estamos diante de pequeno

acesso de "utopismo pedagógico".

"Se educação é transformação de uma realidade, de acordo com uma idéia melhor

que possuímos, e se a educação só pode ser de caráter social, resultará que pedagogia é a

ciência de transformar a sociedade." (Ortega y Gasset)

Associar "educação" a "mudança" não é novidade. Tem sido um costume desde pelo

menos as primeiras décadas do século. Mas só um pouco mais tarde, quando políticos e

cientistas começaram a chamar a "mudança" de "desenvolvimento" (desenvolvimento social,

socioeconômico, nacional, regional, de comunidades, etc), é que foi lembrado que a educação

deveria associar-se a ele também.

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Este foi o momento de uma transição importante. Antes de se difundirem pelo mundo

idéias de mudança e de necessidade de mudança social, a educação era pensada como alguma

coisa que preserva, que conserva, que resguarda justamente de se mudarem, de se perderem,

as tradições, os costumes e os valores de "um povo", "uma cultura" ou "uma civilização".

Antes de se inventarem políticas de desenvolvimento, a educação era prescrita como um

direito da pessoa, ou como uma exigência da sociedade, mas nunca como um investimento.

Um investimento como outros, como os de saúde, transporte e agricultura. A educação deixa

finalmente de ser vista como um privilégio, um direito apenas, e deixa também de ser

percebida como um meio apenas de adaptação da pessoa à mudança que se faz sem ela, e que

apenas a afeta depois de feita.

Pessoas educadas (qualificadas como "mão-de-obra" e motivadas enquanto "sujeitos

do processo") são agentes de mudança, promotores do desenvolvimento, e é para torná-los,

mais do que cultos, agentes, que a educação deve ser pensada e programada. Não é raro que

em alguns países se defenda então que as propostas básicas da educação venham quase

prontas do Ministério dó Planejamento para o da Educação.

"A Educação é hoje considerada como um fator de mudanças: um dos principais

instrumentos de intervenção na realidade social com vistas a garantir a evolução econômica e

a evolução social e dar continuidade à mudança no sentido desejado... "Salienta-se, no

entanto, um aspecto em que a educação representa investimento a curto prazo: é quando ela

desempenha função de formação de mão-de-obra. Ao lado da formação da personalidade, da

preparação necessária de cada cidadão para assumir as obrigações sociais e políticas, a

educação desempenha a tarefa de preparar para o trabalho, e influi substancialmente na

criação de novos quadros de mão-de-obra com capacidades técnicas adequadas aos novos

processos produtivos que o desenvolvimento introduz criando novos mercados de

trabalho."(SAGMACS — educação e planejamento)

"Investimento", "mão-de-obra", "preparação para o trabalho", "capacidades técnicas

adequadas"... são os nomes que denunciam o momento em que os interesses políticos de

emprego de uma força de trabalho "adequadamente qualificada" misturam a educação antiga

da oficina com a da escola, reduzem o seu compromisso aristocrata com a "pura" formação da

personalidade e inscrevem o ato de educar entre as práticas político-econômicas das

"arrancadas para o desenvolvimento". Arrancadas que, nas sociedades capitalistas são de

modo geral estratégias de reorganização de toda a vida social, de acordo com projetos e

interesses de reprodução do capital. De multiplicação dos ganhos das empresas capitalistas.

Esta é a crítica que tem sido feita por cientistas e educadores que, sem deixarem de

reconhecer com Durkheim que a educação existe na sociedade, dentro da cultura, procuram

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compreender como ela existe aí e sob que condições é praticada contra o homem ou a seu

favor.

Ora, às vezes mais útil do que comparar e discutir o conteúdo de estilos diferentes de

definições ou propostas de tipos de educação, é procurar ver de onde eles vêm. Quem diz, em

nome de quem e para quê?

A variação da maneira como o triângulo educação-ensino-escola tem sido formulado

no Brasil pelas pessoas que possuam o poder direto ou indireto de determinar como ele vai

existir, dá o que pensar. Até há alguns anos atrás o universo da educação estava dividido por

aqui tal como na Grécia e em Roma, há muitos séculos. As crianças filhas de pais "das boas

famílias" iam às escolas, mesmo que por poucos anos. As escolas eram particulares, "abertas"

por professores avulsos ou pelas ordens religiosas. Eram pagas, algumas custavam caro e as

poucas crianças pobres que aprendiam "de graça" aprendiam nos orfanatos ou nos anexos dos

colégios religiosos.

Os escravos e os filhos dos deserdados da fortuna — lavradores livres, artistas pobres,

artesãos — aprendiam "no ofício". Rara vez um deles alisava com o traseiro magro o banco

de madeira de alguma escola, razão por que o país tinha, até há poucos anos, um dos maiores

índices de analfabetismo em todo o mundo.

Havia, portanto, duas educações em curso. Uma era a da escola, destinada aos filhos

das "gentes de bem". Ali, fora o ensino de primeiras letras, havia cursos sempre não

profissionalizantes, que ensinavam Latim, Grego, Literatura e Música para os que chegavam

até depois dos estudos primários. Mesmo nas três primeiras décadas deste século, até entre os

mais ricos eram raras as pessoas que faziam algum curso superior. Havia poucas faculdades

isoladas e a nossa universidade mais antiga, a de São Paulo, não tem ainda 50 anos.

Outra era a da oficina, misturada com a da vida, destinada pelos ossos do ofício aos

filhos "da pobreza". Analfabetos "de pai e mãe", mas excelentes lavradores, mineradores,

pedreiros, carapinas, ourives, ferreiros, estes homens "rudes", porque "sem cultura", de acordo

com a visão das elites, mas sábios do saber que faz o trabalho produtivo, fizeram a riqueza e

as obras do país e de cada uma de suas cidades.

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"Mestre carapina, conhecido na história da cidade, queria dizer

carpinteiro, mas sua atividade não se circunscrevia apenas a este ofício.

Eram engenheiros práticos: estes escravos calculavam a construção de um

sobrado e o construíam. Isto ocorreu até a metade do século passado com

sobrados que chegam até nossos dias e foram construídos por estes

engenheiros (toda a parte de taipa, armação do telhado de grande dimen-

são), sendo que os engenheiros graduados só chegavam na fase final para

terminar a construção. A velha Igreja do Carmo foi feita só por 'mestres

carapinas', como muitos outros prédios cujos construtores podem ser

identificados ainda hoje." (Celso Maria de Mello Pupo, sobre a cidade de

Campinas, em São Paulo)

Nas primeiras décadas deste século, políticos e educadores liberais trouxeram idéias

novas para a educação no país. Entre outras coisas eles começaram a falar de uma escola mais

dirigida à vida de todo dia e mais estendida a todas as pessoas, ricas ou pobres. A "luta pela

democratização do ensino" resultou na escola pública. Resultou no reconhecimento político

do direito de estudar para todas as pessoas, através de escolas gratuitas, de ensino leigo,

oferecido pelo governo.

Há quem diga que isto foi o resultado de um confronto entre "liberais" e

"conservadores" na política, um confronto que invadiu a questão da educação. De um lado

ficaram os que falavam em nome das elites agrárias tradicionalistas e acostumadas a padrões

ultrapassados de domínio político. De outro lado ficaram os que falavam em nome das novas

elites capitalistas, atentas a novos tempos e problemas que batiam nas portas do mundo e do

Brasil. No entanto, o que eu quero ressaltar é que esses políticos e educadores liberais - alguns

deles sem dúvida lúcidos e bem-intencionados — ao pregarem idéias de uma educação

voltada para a vida, a mudança, o progresso, a democracia, traduziam ao mesmo tempo o

imaginário democrático de seu tempo e, por outro lado, o projeto político que servia aos

interesses de novos donos do poder e da economia. E, tal como aconteceu em outros setores

da sociedade brasileira, as inovações propostas para a educação propiciaram novos tipos de

usos políticos de todo o aparato pedagógico, adaptando-o à realidade de novos tempos e a

novos modelos de controle do exercício da cidadania e de preparação de "quadros"

qualificados para o trabalho das fábricas. Indústrias que primeiro o capital brasileiro e, depois,

o internacional, começaram a semear pelo país.

Como tipos de intelectuais (educadores, filósofos, legisladores, cientistas sociais)

constituídos e sustentados, direta ou indiretamente, pelos novos donos do poder, quase todos

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os militantes de uma nova educação souberam lutar com entusiasmo por torná-la mais aberta

e democrática por dentro e por fora, sem saber muitas vezes que as suas idéias apenas

consolidavam outros projetos políticos para a educação. Eles substituíam outros intelectuais,

aqueles cujas idéias pedagógicas serviram aos interesses políticos dominantes de outros

tempos, e que não tinham mais lugar nem poder, porque eram as idéias que traduziam os

interesses de preservação de um tipo de ordem social inadequada no Brasil, diante das

mudanças aos poucos havidas nas relações de produção de bens e de poder.

Por uma porta os filhos dos pobres começam a entrar nas escolas públicas. Por outra o

país ingressa enfim em tempos de transferência do capital da agricultura para a indústria, e de

poder e pessoas do campo para a cidade. Então políticos e educadores começam a chamar a

atenção para a evidência de que, mesmo nas escolas públicas, o ensino escolar era

inadequado. Não servia para preparar o cidadão para a vida nem para preparar o trabalhador

para o trabalho, em qualquer um dos seus níveis. Quando as exigências de ordem e trabalho

do capital redefiniram aos poucos a vida e o trabalho, a idéia de que, além de uma vaga

"personalidade do educando", a educação tinha compromissos para com a vida social e o

trabalho produtivo passou a figurar entre leis e projetos de escolarização no país.

Este progressivo ingresso da criança pobre nas salas das escolas, associado a uma

redefinição do ensino escolar em direção ao trabalho produtivo, não fez mais do que trazer

para dentro dos muros do colégio a divisão anterior entre o aprender-na-oficina para o

trabalho subalterno e o aprender-na-escola para o trabalho dominante.

Algumas pesquisas de sociólogos americanos, realizadas desde a década de 50,

confirmam que, mesmo nos Estados Unidos, o filho do operário estuda para ser o operário

que acaba sendo, e o filho do médico para ser médico ou engenheiro. Apesar de ser, também

lá, um projeto teórico de reprodução da igualdade, a educação da sociedade capitalista

avançada reproduz na moita e consagra a desigualdade social, sem esquecer de fazer alarde

em festa de formatura quando algum filho de operário consegue sair formado da Faculdade de

Engenharia.

Em um dos mais importantes estudos recentes sobre o assunto, dois franceses,

Christian Baudelot e Roger Establet, demonstram que a escola capitalista francesa superpõe,

sobre o sistema oficial de ensino — aquele que é proclamado como democraticamente aberto

a todos - uma divisão entre duas redes "heterogêneas... opostas... antagônicas". É claro que

esta oposição real, que existe sob uma unidade proclamada, não é oficialmente aceita. Não é

reconhecida como existente e determinante do sistema pedagógico francês pelos seus

ideólogos. Mas é através do que separa e de como separa quem entra e quem sai das escolas

que a educação capitalista cumpre a sua função de reproduzir e consagrar a desigualdade,

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afirmando que existe como um instrumento democrático de produção da igualdade social

através do acesso ao saber.

Uma rede é a de tipo PP, primario-profissional, limite dos estudos para os filhos do

povo destinados, também por ela, aos padrões do trabalho operário. Outra rede é a de tipo SS,

secundário-superior, destinada aos filhos dos ricos, enviados, também por ela, às pontes-de-

comando do trabalho "superior".

Então, esta educação que incorpora o povo ao ensino oficial, que arranca o menino

proletário da oficina e o deseja pelo menos por alguns anos na escola, será a educação que

serve a ele? Que serve pelo menos também a ele?

Este é o momento de voltarmos juntos, leitor, a algumas páginas do começo desta

conversa sobre ensinar-e-aprender. O tipo de formação social onde nós vivemos não é como o

de uma pequena aldeia tribal, embora haja muitas delas em nosso mundo. Não é sequer, como

na Grécia, de onde saiu o modelo de nossa educação, o lugar da polis, onde pelo menos nos

melhores tempos vigora a democracia de todos os cidadãos livres, mesmo que ela seja

sustentada pelo trabalho dos escravos. Vivemos aqui, hoje, dentro de uma ordem social regida

por um sistema amplo e muito complexo de relações de produção entre tipos de meios e

produtores, que se costuma chamar de modo de produção capitalista. Embora possa ser

fatigante e parecer agressivo, é muito pouco real pensar, seja a educação, seja quase tudo o

mais que acontece por aqui, sem levar em conta que são tipos de trocas regidos pela oposição

entre o capital e o trabalho.

Ora, por toda parte, em sociedades como a nossa, grupos nacionais ou estrangeiros,

que repartem entre si a propriedade e o controle direto dos meios de produção dos bens de que

se nutrem as pessoas e seu mundo, concentram entre si o poder de constituírem, em seu

proveito, o tipo de Estado que, por sua vez, reproduz serviços e normas de segurança, de

propriedade, de direito, de saúde e até de educação, serviços e normas que servem em

conjunto para manter coesa e, se possível, em relativa paz a ordem social de que se nutre o

capital, ou seja, aquela ordem em que ele se multiplica.

Esta é uma afirmação comum hoje em dia entre os que pensam sobre a educação sem

se iludirem com as condições de sua existência real. E também uma crítica que se confirma a

todo momento, inclusive por meio de dados estatísticos. Ela não vale só para um país de

economia pobre e dependente como o nosso, situado, como diriam os economistas, "na

periferia do sistema capitalista". Vale também para os países de economia desenvolvida, os da

"metrópole" do sistema.

Em um estudo sobre "a educação como processo social", o norte-americano Wilbur

Brookover concluiu que em seu país a educação: a) tem o seu controle situado em mãos "de

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elementos conservadores da sociedade"; b) é dirigida de modo a impedir mudanças

significativas, "exceto nas áreas em que os grupos dominantes desejam a mudança"; c) na

melhor das hipóteses, pode atuar como um agente interno de mudanças sociais, não como um

agente externo, ou seja, capaz de provocar por sua conta mudanças significativas; d) não é

acreditada como criadora de um possível "mundo melhor", a não ser quando "outras forças

também operam como agências de mudanças".

Dentro de um tipo de ordem social assim dividida, a educação (como tantas outras

coisas da vida e dos sonhos de todos os homens) perde a sua dimensão de um bem de uso e

ganha a de um bem de troca. Ela não vale mais pelo que é e pelo que representa para as

pessoas. Não é mais um dom do fazer que existe no ensinar o saber que é um outro dom de

todos e que a todos serve. A educação vale como um bem de mercado, e por isso é paga e às

vezes custa caro. Vale como um instrumento cujos segredos se programam nos gabinetes

onde estão os emissários dos intermediários dos interesses políticos postos sobre a educação.

Esta é a sua dupla dimensão de valor capitalista: a) valer como alguma coisa cuja posse se

detém para uso próprio ou de grupos reduzidos, que se vende e compra; b) valer como um

instrumento de controle das pessoas, das classes sociais subalternas, pelo poder de difusão das

idéias de quem controla o seu exercício.

Então, o que parece inacreditável faz parte da própria lógica do modo como a

educação existe na sociedade desigual. Quando pensada como uma "filosofia" ou uma

"política de educação", ela se apresenta juridicamente como um bem de todos, de que o estado

assume a responsabilidade de distribuição em nome de todos. Mas sequer as pessoas a quem a

educação serve, em princípio, são de algum modo consultadas sobre como ela deveria ser. A

educação que chega à favela, chega pronta na escola, no livro e na lição. Os pais favelados

dos alunos são convocados a matricular os seus filhos, como se aquilo fosse um posto de

recrutamento. Não são convocados, por exemplo, a debaterem com os professores como eles

pensam que a escola da favela poderia ser uma verdadeira agência de serviços à sua gente.

Mesmo que fossem, as suas idéias por certo não sairiam do caderno de anotações da diretoria.

Mas não são só os pais e as crianças faveladas os que não têm direitos de pensar na educação

da favela. Mesmo os cidadãos ricos e letrados não tem poder algum sobre as idéias que

determinam a educação de seus filhos, e a imensa massa dos próprio educadores da linha de

frente do trabalho pedagógico (professores, diretores de escola, orientadores, supervisores

educacionais) têm o poder do exercício da reprodução das idéias prontas sobre a educação e

dos conteúdos impostos à educação. Mas não têm nem o direito nem o poder de participarem

das decisões político-pedagógicas sobre a educação que praticam. Elas estão reservadas aos

donos do poder político e às pequenas confrarias de intelectuais constituídas como seus porta-

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vozes pedagógicos. Poucos espaços de trabalho social são hoje, tão pouco comunitários e

democratizados entre os seus diferentes praticantes, como a educação.

E, em qualquer tipo de ordem social, quanto mais a educação autoritária e classicista é

expressão de um poder autoritário de uma sociedade classista, tanto mais ela procura

apresentar-se como uma prática humanamente legítima, exercida em nome de leis legítimas e

"para o bem de todos". A ideologia que fala através das leis, decretos e projetos da educação

autoritária nega acima de tudo que ela seja uma pedagogia contra o homem — contra a

verdadeira liberdade do homem através do saber, liberdade que existe através da verdadeira

igualdade entre os homens.

Por isso há "leis do ensino" que afirmam com fé de ofício os valores de uma suposta

democracia feita através da educação, e que é a alma dos conteúdos de seu ensino. Estas

afirmações teóricas ocultam o fato real de que o exercício desta educação consagra a

desigualdade que deveria destruir. Afirmar como idéia o que nega como prática é o que move

o mecanismo da educação autoritária na sociedade desigual.

A ESPERANÇA NA EDUCAÇÃO

Se a educação é determinada fora do poder de controle comunitário dos seus

praticantes, educandos e educadores diretos, por que participar dela, da educação que existe

no sistema escolar criado e controlado por um sistema político dominante? Se na sociedade

desigual ela reproduz e consagra a desigualdade social, deixando no limite inferior de seu

mundo os que são para ficar no limite inferior do mundo do trabalho (os operários e filhos de

operários), e permitindo que minorias reduzidas cheguem ao seu limite superior, por que

acreditar ainda na educação? Se ela pensa e faz pensarem o oposto do que é, na prática do seu

dia a dia, por que não forçar o poder de pensar e colocar em prática uma outra educação?

A resposta mais simples é: "porque a educação é inevitável". Uma outra, melhor seria:

"porque a educação sobrevive aos sistemas e, se em um ela serve à reprodução da

desigualdade e à difusão de idéias que legitimam a opressão, em outro pode servir à criação

da igualdade entre os homens e à pregação da liberdade". Uma outra ainda poderia ser:

"porque a educação existe de mais modos do que se pensa e, aqui mesmo, alguns deles podem

servir ao trabalho de construir um outro tipo de mundo".

"Reinventar a educação" é uma expressão cara a Paulo Freire e aos seus companheiros

do Instituto de Desenvolvimento e Ação Cultural. De algum modo eles a aprenderam na

África, trabalhando como educadores junto a educadores de países como a Guiné-Bissau e as

ilhas de São Tome e Príncipe, que se haviam tornado independentes de Portugal e tratavam de

reinventar, mais do que só a educação, a sua própria vida social. O mais importante nesta

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palavra, "reinventar", é a idéia de que a educação é uma invenção humana e, se em algum

lugar foi feita um dia de um modo, pode ser mais adiante refeita de outro, diferente, diverso,

até oposto. Muitas vezes um dos esforços mais persistentes em Paulo Freire é um dos menos

lembrados. Ao fazer a crítica da educação capitalista, que ora chamou também de "educação

bancária", ora de "educação do opressor", ele sempre quis desarmá-la da idéia de que ela é

maior do que o homem. De que as pessoas são um produto da educação, sem que ela mesma

seja uma invenção das pessoas, em suas culturas, vivendo as suas vidas. Ele sempre quis

livrar a educação de ser um fetiche. De ser pensada como uma realidade supra-humana e, por

isso, sagrada, imutável e assim por diante. Ao contrário do que acontece com os deuses, para

se crer na educação é preciso primeiro dessacralizá-la. É preciso acreditar que, antes,

determinados tipos de homens criam determinados tipos de educação, para que, depois, ela

recrie determinados tipos de homens. Apenas os que se interessam por fazer da educação a

arma de seu poder autoritário tornam-na "sagrada" e o educador, "sacerdote". Para que

ninguém levante um gesto de crítica contra ela e, através dela, ao poder de onde procede.

Por isso, muitas páginas atrás comecei falando sobre ensinar-e-aprender como alguma

coisa que começa com os bichos (quem sabe com as plantas, com os seres "brutos" do

Universo?) e que, entre nós, homens, existe por toda parte. Procurei corrigir a visão estreita de

que a educação se confunde com a escolarização e se encontra só no que é "formal", "oficial",

"programado", "técnico", "tecnocrático". Se em algumas páginas falei dela como um entre

outros instrumentos de desigualdade e alienação, em outras imaginei-a como uma aventura

humana.

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A educação existe em toda parte e faz parte dela existir entre opostos. O que vimos

juntos, leitor, acontecer na Grécia, repete-se mil vezes em mil tempos de outros mundos

sociais. Entre sujeitos igualados pelo trabalho comum e o saber comunitário, também a

educação pertence do mesmo modo a todos e, se existe diferente para alguém, é para

especializar, para o uso de todos, o seu saber e o seu trabalho. Mais do que poder, portanto,

ela atribui compromissos entre as pessoas.

Quando o fruto do trabalho acumula os bens que dividem o trabalho, a sociedade

inventa a posse e o poder que separa os homens entre categorias de sujeitos socialmente

desiguais. A posse e o poder dividem também o saber entre os que sabem e os que não sabem.

Dividem o trabalho de ensinar tipos de saber a tipos de sujeitos e criam, para o seu uso,

categorias de trabalhadores do saber-e-do-ensino.

É a partir daí que a educação aparece como propriedade, como sistema e como escola.

O controle sobre o saber se faz em boa medida através do controle sobre o quê se ensina e a

quem se ensina; de modo que, através da educação erudita, da educação de elites ou da

educação "oficial", o saber oficialmente transforma-se em instrumento político de poder. Ele

abandona a communitas de que fez parte um dia e ingressa na estrutura dos aparatos de

controle. O "processo grego" se repete então: a educação da comunidade, a escola, a oposição

entre a educação-de-educar e a educação-de-instruir, a passagem da aprendizagem coletiva

para o ensino particular, o controle do Estado. Em primeiro lugar, em algum tempo ela existe

difusa no meio social de que todos participam e é ativamente exercida nos diferentes círculos

naturais da sociedade: a família, o clã, o grupo de idade, o grupo de socius. Mais adiante a

educação especializa-se sob a égide da escola, mas a escola particular do mestre avulso ainda

é uma extensão da sociedade civil. Mais tarde ainda, a própria educação escolar cai sob o

poder de decisão do Estado que, quando autoritário e classista, exerce a educação para o

controle da sociedade civil, da comunidade de todos.

Onde surgem interesses desiguais e, depois, antagônicos, o processo educativo, que

era unitário, torna-se partido, depois, imposto. Há educações desiguais para classes desiguais;

há interesses divergentes sobre a educação, há controladores. Grupos desiguais não só

participam desigualmente da educação — dos nobres, dos funcionários, dos artesãos — como

são também por ela destinados desigualmente ao trabalho: para dirigir, para executar, para

produzir.

Mas, assim como a vida é maior que a forma, a educação é maior que o controle

formal sobre a educação. Alguns pesquisadores têm descoberto hoje o que existe há milênios.

Por toda parte as classes subalternas aprenderam a criar e recriar uma cultura de classe —

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mesmo quando aproveitando muitos elementos dominantes que lhes foram impostos como

idéias ou como práticas — e também formas próprias de educação do povo. As oficinas de

que falei aqui e ali são um exemplo que vem da antigüidade até nossos dias. Mas podem não

ser o melhor exemplo.

O que existe na verdade nas comunidades de subalternos é a preservação de tipos de

saber comunitários e de meios comunitários de sua transferência de uma geração para outra.

Como sempre se faz a história da educação erudita e formal quando se discute o que é

educação, sempre se deixa de lado este seu outro lado. A margem da vida dos dominantes,

dos escravos aos bóias-frias de hoje, os subalternos souberam criar, dentro dos limites

estreitos em que sempre lhes foi permitido "criar" alguma coisa sua, os seus modos próprios

de saber, de viver e de saber. Eles inventaram os seus códigos de trocas no interior da classe e

entre classes.

Sempre que possível, criaram formas peculiares de solidariedade para dentro da classe,

e de resistência e manipulação para fora dela. Elaboraram as suas crenças e valores de

representação do mundo, mesmo quando observando a escrita da ideologia dos seus senhores.

Construíram estilos e tecnologias rústicas dirigidos aos seus usos do cotidiano. Inventaram

rituais sagrados e profanos. Tudo isso a que se dá o nome de "Cultura Popular", e que às

vezes se vê da academia como um amontoado de coisas pitorescas, faz parte de sistemas

populares de vida e de representação da vida, e tem uma lógica e densidade de que apenas

levantamos o primeiro véu, depois de tantas pesquisas.

Pois todo este trabalho tradicional de classe que sustenta um modo próprio de vida

subalterna é sustentado por formas próprias e muitas vezes popularmente muito complexas de

saber, é sustentado também por sistemas próprios de reprodução do saber popular, que

implicam não apenas em relações simples, como as de um pai lavrador com um filho

aprendiz, mas também em redes e estruturas pedagógicas de que desconhecemos, quase tudo.

Isto é evidente em muitas situações: na Capoeira da Bahia, nas confrarias populares de

Foliões de Santos Reis, numa quadrilha de pivetes ou numa equipe rústica de construtores de

casas.

Estes modos próprios de uma educação dos subalternos têm um teor político de que

pouco se suspeita. Assim como a educação do sistema dominante possui o valor político dos

serviços que presta aos que a controlam, enquanto ensina desigualmente aos que a recebem,

assim também as formas próprias de educação do povo servem a ele como redes de resistência

a uma plena invasão da educação e do saber "de fora da classe".

A própria maneira como uma população de favelados se relaciona com a escola pode

ser um bom exemplo disso. Quando há escola pública na favela, os pais mandam os filhos

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para ela. Quando não há, as "comissões de bairro" lutam para que haja. Mas quem envia os

filhos não se compromete com a escola. Os esforços de professores e diretores para que haja

um maior intercâmbio entre "a escola" e "a comunidade" resultam quase sempre em fracasso.

Quando em alguma favela a coisa dá resultado, às vezes o secretário da educação vai visitar e,

se possível, leva a TV Globo. O descompromisso dos adultos para com a escola pública não é

devido à falta de tempo. Muitos destes pais gastam o corpo, o tempo e o dinheiro por meses a

fio nos preparos do "bloco do bairro", ou da "escola de samba". Eles fazem "assim porque

tratam a escola "do governo" como tratam as suas outras agências: o posto de saúde, a

delegacia, a agência de bem-estar social. Tratam como locais para serviços de emergência e,

ao mesmo tempo, como postos invasores de um tipo de domínio de classe indesejável. Se

tratam a educação dos seus filhos como coisa que se passa "no mundo dos brancos", é porque

têm também as suas formas próprias, tradicionais, de reprodução do saber. Por isso tratam o

"bloco" e a "escola de samba" como coisa sua, de seu mundo. Sem o saber que existe na fala,

mas cheios do saber que existe na prática, os subalternos criam e recriam a sua própria

educação. E ela não existe só para difundir o saber, mas para reforçar o resistir. Alguns

estudos de antropólogos franceses na África, confirmados por outros feitos, por brasileiros,

aqui no Brasil, demonstram como existe uma sábia arma de resistência popular justamente

naquilo que nos acostumamos a desprezar, por ver como "tradicional", "atrasado",

"primitivo". A aparente "primitividade" do pobre contra a invasão sobre ele da "modernidade"

do senhor é um meio popular avançado de lutar por manter e recriar uma identidade própria

de subalterno (de índio, de negro, de colonizado, de escravo, de camponês), de manter o seu

próprio saber e as suas próprias redes de educação.

Quando em alguma parte setores populares da população começam a descobrir formas

novas de luta e resistência, eles redescobrem também " velhas e novas formas de "atualizar" o

seu saber, de torná-lo orgânico. Criam por sua conta e risco, ou com a ajuda de agentes-

educadores eruditos, outras formas de associação, como os sindicatos, os movimentos

populares, as associações de moradores. Estes grupos, que geram outros tipos de mestres entre

as pessoas do povo, geram também outras situações vivas de aprendizagem popular. Eu não

tenho dúvidas em afirmar que é entre as formas novas de participação popular, nas brechas da

luta política, que, hoje em dia, surgem as experiências mais inovadoras de educação no Brasil.

Os professores tradicionais e os tecnocratas da pedagogia são cegos para elas, mas é ali que as

propostas mais avançadas de "educação e vida", "educação na prática", etc, são criadas e

testadas.

Mais do que isso, em algumas partes do país comunidades populares tentam inventar

agora tipos de escolas comunitárias que antecipariam, em uma plena democracia, o exercício

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de uma "educação como prática da liberdade". Aquela que, sendo sustentada economicamente

pelo poder público, fosse política e pedagogicamente controlada pelas comunidades onde se

exercesse.

De outra parte, mesmo nos setores eruditos da educação oficial, é preciso compreender

que ela existe em muito mais situações do que dentro do sistema e na sala de aula. Ao lado

das inovações pedagógicas que provocam a reinvenção do trabalho escolar, a mesma relação

de opostos sobreexiste entre a formalidade da estrutura e a permanente oposição que fazem a

ela as inúmeras pequenas communitas de sujeitos envolvidos, de um modo ou de outro, com o

sistema de educação.

De um lado, os próprios professores que trabalham como educadores (como sujeitos

de suas diversas categorias de especialistas), nas escolas, colégios e universidades, aprendem

a se organizar também como categorias políticas e profissionais de trabalhadores da educação.

As associações de tipos de especialistas do ensino e, mais ainda, as associações de categorias

de docentes são o resultado do desenvolvimento da consciência política do educador.

De outro lado, os alunos criam e recriam as suas unidades de organização, os seus

grêmios, grupos de arte e cultura. Quem poderia esquecer que as experiências de Educação

Popular e de Cultura Popular no Brasil foram iniciadas dentro dos primitivos serviços de

Extensão Universitária, como o da Universidade Federal de Pernambuco, onde nasceu o

Método Paulo Freire de Alfabetização, ou como os Movimentos de Cultura Popular e os

Centros Populares de Cultura, vinculados ao movimento estudantil e às suas unidades de

mobilização?

Só os formalistas pedagógicos podem enxergar educação apenas dentro dos sistemas

restritos da pedagogia (que, aliás, até hoje não se sabe ao certo se é uma ciência, uma prática

especializada ou uma teoria de educação, ou, quem sabe, nada disso).

Somente eles poderiam discutir, como questões da educação, problemas de método, de

operacionalidade curricular, de programação sistemática e assim por diante. Instrumentos

úteis, sem dúvida, mas pequenas algemas de controle quando empregados sem a crítica do

lugar e do sentido de tudo isso. Só o educador "deseducado" do saber que existe no homem e

na vida poderia ver educação no ensino escolar, quando ela existe solta entre os homens e na

vida. Quando, mesmo ao redor da escola e da universidade, ela está no sistema e na oposição

a ele; na sala de aula em ordem, e no dia de greve estudantil; no trabalho rigoroso e

persistente do professor-e-pesquisador e, ao mesmo tempo, no trabalho político do professor-

militante.

Esta é a esperança que se pode ter na educação. Desesperar da ilusão de que todos os

seus avanços e melhoras dependem apenas de seu desenvolvimento tecnológico. Acreditar

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que o ato humano de educar existe tanto no trabalho pedagógico que ensina na escola quanto

no ato político que luta na rua por um outro tipo de escola, para um outro tipo de mundo.

E é bem possível que até mesmo neste "outro mundo", um reino de liberdade e

igualdade buscado pelo educador, a educação continue sendo movimento e ordem, sistema e

contestação. O saber que existe solto e a tentativa escolar de prendê-lo num tempo e num

lugar. A necessidade de preservar na consciência dos "imaturos" o que os "mais velhos"

consagraram e, ao mesmo tempo, o direito de sacudir e questionar tudo o que está consagrado,

em nome do que vem pelo caminho.

TEXTO DISPONÍVEL EM:

http://pt.scribd.com/doc/39369244/O-que-e-Educacao-BRANDAO-Carlos-Rodrigues

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REFLETINDO SOBRE A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL

Robson Stigar & Neivor Schuck2

Introdução

O presente texto tem por objetivo refletir sobre a história da educação no Brasil, tendo

em vista as suas varias concepções de ensino a longo da história, bem como entender a partir

do passado a educação da atualidade. Em primeiro momento será apresentado um pequeno

contexto histórico, no segundo momento pretende-se refletir sobre os conflitos entre as

diferentes posturas de ensino e por fim refletir sobre a teoria da complexidade e a sua relação

com a educação contemporânea.

Contexto Histórico

A formação do Brasil implica necessariamente na estruturação de nosso modelo de

ensino porque desde os primeiros anos de nossa descoberta sofremos da falta de estrutura e

investimento nessa área. Contudo, além do componente histórico que parece ser de comum

aceitação, aparece o problema do modelo pedagógico adotado. Neste aspecto ocorre uma

polarização e até uma divisão tripla se quisermos englobar a escola técnica (anos 70). Ou seja,

as posturas mais adotadas em nosso país são justamente a pedagogia tradicional (método

fonético) e a escola nova (construtivismo).

Segundo XAVIER

de um lado está a escola tradicional, aquela que dirige que modela, que é

‗comprometida‘; de outro está a escola nova, a verdadeira escola, a que não

dirige, mas abre ao humano todas as suas possibilidades de ser. É portanto,

‗descompromissada‘. É o produzir contra o deixar ser; é a escola

escravisadora contra a escola libertadora; é o compromisso dos

tradicionais que deve ceder lugar à neutalidade dos jovens educadores

esclarecidos (XAVIER, 1992: 13).

2 Robson Stigar: licenciado em Filosofia, especialista em Psicopedagogia, mestrando em Ciência da Religião –

[email protected] Neivor Schuck: licenciado em Filosofia, especialista em Psicopedagogia, mestrando em

Ciências da Religião - [email protected]

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Aparentemente temos a impressão de que o grande problema de nossa deficiência

educacional se resume ao problema da rigidez do modelo tradicional de ensino, mas ao

aprofundarmos nossa investigação constáramos que a péssima qualidade de ensino presente

nas escolas do Brasil acontece devido, em parte tanto a falta de estrutura educacional

adequada como pela desestruturação das poucas bases presentes na pedagogia tradicional,

causada pela critica dos escolanovistas, que acreditavam piamente que puramente pela crítica

se atingiria uma melhoria no aprendizado.

No entender de SAVIANI a escola tradicional procurava ensinar e transmitia

conhecimento, a escola nova estava preocupada em apenas considerara o aprender a aprender.

E posteriormente a escola técnica detinha-se em simplesmente considerar necessário o ensino

da técnica. Até o inicio do século XX a educação no Brasil esteve praticamente abandonada,

no entender de ROMANELLI:

a economia colonial brasileira fundada na grande propriedade e não na

mão de obra escrava teve implicações de ordem social e política bastante

profundas. Elafavorece o aparecimento da unidade básica do sistema de

produção, de vida social e do sistema de poder representado pela família

patriarcal (ROMANELLI, 2001: 33).

Assim, a educação no Brasil caminhou por veredas tortuosas desde o inicio, reservada

a uma elite dominante e totalmente exploradora, sempre esteve voltada a estratificação e

dominação social. Esteve arraigada por diversos séculos em nossa sociedade a concepção de

dominação cultural de uma parte minúscula da mesma, configurado-se na idéia básica de que

o ensino era apenas para alguns, e por isso os demais não precisariam aprender.

As oligarquias do período colonial e monárquico estavam profundamente

fundamentadas na dominação via controle do saber. Caracterizou-se nesse período colonial,

bem como no monárquico, um modelo de importação de pensamento, principalmente da

Europa e consequentemente a matriz de aprendizagem escolar fora introduzida no mesmo

momento. Nas palavras de ROMANELLI, foi a família patriarcal que favoreceu, pela natural

receptividade, a importação de formas de pensamento e idéias dominantes na cultura medieval

européia, feita através da obra dos Jesuítas‖ (ROMANELLI, 2001: 33).

Assim, a classe dominante tinha ser detentora dos meios de conhecimento e de ensino.

Isso implicou no modelo aristocrático de vida presente em nossa sociedade colonial e

posteriormente na corte de D. Pedro. Existiram dois fatores fundamentais na formação do

modelo educacional brasileiro, ou seja, ―a organização social (...) e o conteúdo cultural que foi

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transportado para a colônia, através da formação dos padres da companhia de Jesus‖

(ROMANELLI, 2001: 33).

No primeiro fator aparece com mais intensidade a predominância de uma minoria de

donos de terra e senhores de engenho sobre uma massa de agregados e escravos. Apenas

àqueles cabia o direito à educação e, mesmo assim, em número restrito, porquanto deveriam

estar excluídos dessa minoria as mulheres e os filho primogênitos. Limitava-se o ensino a

uma determinada classe da população, ou seja, apenas a classe dominante. Surge claramente

um dos fundamentos da baixa escolaridade de nossa população e da falta de recursos para a

eliminação das diferenças entre as classes.

A segunda contribuição para a formação de nosso sistema educacional deficitário é

justamente o conteúdo do ensino dos Jesuíta, ―caracterizado sobretudo por uma enérgica

reação contra o pensamento critico‖ (ROMANELLI, 2001: 34), contudo, a maneira como os

Jesuítas cultivavam as letras permitiu algum alvorecer em nossa literatura.

O conflito entre as diferentes posturas de ensino

A relação entre escola e democracia depende de diferentes aspectos presentes na

sociedade. Contudo, parece que o problema aparece realmente nas teorias de educação. Isso

se expressa pelo elevado índice de analfabetismo funcional, configurando uma marginalidade

desses indivíduos analfabetos. Por outro lado, ―no segundo grupo, estão as teorias que

entendem ser a educação um instrumento de discriminação social, logo, um fator de

marginalização‖ (SAVIANI, 2003: 04).

Deste modo, podemos constatar que ambos os grupos explicam a questão da

marginalidade a partir de uma determinada concepção da relação entre educação e sociedade.

Assim, ambos os grupos destoam partindo de um mesmo referencial, com isso, para os não-

críticos (primeiro grupo)

A sociedade é concebida como essencialmente harmoniosa, tendendo a

integração de seus membros. A marginalidade é, pois, um fenômeno

acidental que afeta individualmente um número maior ou menor de seus

membros, o que, no entanto, constitui um desvio, uma distorção que não

pode como deve ser corrigida (SAVIANI, 2003: 04).

A superação dessa distorção far-se-ia por intermédio da educação. Tendo por

função―reforçar os laços sociais, promover a coesão e garantir a integração de todos os

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indivíduos no corpo social‖ (SAVIANI, 2003: 04), permitindo a superação da marginalidade.

Por outro lado, os que defendem uma postura critica entendem que

a sociedade como sendo essencialmente marcada pela divisão entre grupos

ou classes antagônicas que se relacionam à base da força, a qual se

manifesta fundamentalmente nas condições de produção da vida material.

Nesse quadro a marginalidade é entendida como um fenômeno inerente à

própria estrutura da sociedade (SAVIANI, 2003: 04).

Assim, a educação assume um papel de produtora da marginalização, porque produz a

marginalidade cultural e de maneira especifica a escolar. No entender de SAVIANI existem

três modalidades diferentes de configurar os modelos educacionais expressos pelas duas

teorias expressas anteriormente, isto é, a tradicional, fundada na relação ensino aprendizagem

e na relação professor aluno; a escola nova, que entende como fundamental a necessidade de

aprender a aprender e na função de acompanhar o desenvolvimento individual do estudante

por parte do professor; e por último aparece a concepção técnica que se funda no fazer e

elimina totalmente a relação professor aluno.

Segundo SAVIANI a concepção critica não apresenta nenhuma proposta para

substituir a pedagogia tradicional e por isso não permite ser pensada como uma solução do

problema da relação entre escola e marginalidade social. Ao apresentar uma solução possível

para a questão SAVIANI aponta para a definição de prioridades políticas fundadas no

principio aristotelico de animal político, tudo englobaria o ato de educar.

Assim, a educação sempre possui uma dimensão política tenhamos ou não consciência

disso, portanto assume-se um caráter educativo e político para a educação e este só cumpre

seu papel quando permite a formação integral do indivíduo. Mas o desafio permanece, como

podemos falar em educação global se vivemos em uma sociedade fragmentada, imbuída de

diferentes conceitos de razão, educação, ética, política, marginalidade, sociedade e cultura?

No entender de SAVIANI existem onze teses acerca da educação que precisam ser

consideradas como fundamentais no engajamento político. Isto é , o agir educativo sempre

cumpre um papel fundamental na estruturação da sociedade. O modelo tortuoso e

desorganizado de nosso sistema educacional gera aberrações como as que vemos nas

instituições de ensino público superior. Ou seja, os que deveriam ter acesso a escola pública

superior não conseguem e os que podem pagar adentram as portas das universidades públicas.

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A teoria da complexidade e sua relação com a educação contemporânea Segundo

MORIN a sociedade contemporânea possui elementos diversificados e complexos, isto

significa que o ensino precisa estar atento a complexidade da vida contemporânea.

Desta forma, a incorporação dos sete saberes como fundamentos para desenvolver o

homem moderno. Dentro deste cenário a sociedade se preocupa cada vez mais com a

realidade escolar e com a formação dos indivíduos, sobretudo precisa-se de criatividade para

mudar a realidade brasileira. Contudo, ―O conhecimento disciplinar, e conseqüentemente a

educação, têm priorizado a defesa de saberes concluídos, inibindo a criação de novos saberes

e determinando um comportamento social a eles subordinado‖ (AMROSIO: 2007).

Por isso a interdisciplinaridade entre os diferentes saberes seria essencial para resolver

esse problema . MORIN entende que o conhecimento na complexidade

É a viagem em busca de um modo de pensamento capaz de respeitar a

multidimensionalidade, a riqueza, o mistério do real; e de saber que as

determinações – cerebral, cultural, social, histórica – que impõem a todo o

pensamento, co-determinam sempre o objecto de conhecimento. É isto que

eu designo por pensamento complexo. (MORIN 1980: 14).

Trata-se de um pensamento desprovido de certezas e verdades científicas, que

considera a diversidade e a incompatibilidade de idéias, crenças e percepções, integrandoas à

sua complementaridade. ―A consciência nunca tem a certeza de transpor a ambigüidade e a

incerteza‖ (MORIN, 1973: 134). Morin refere-se ao princípio da incerteza tal como

formulado por Werner Heisenberg, físico, um dos precursores da mecânica quântica. Esse

princípio baseia-se na falibilidade lógica, no surgimento da contradição presente na realidade

física e na indeterminabilidade da verdade científica. Assim, o conceito de lógica tradicional

fundado em Aristóteles não pode mais responder aos anseios da sociedade moderna, a lógica

da complexidade assume novas probabilidades e possibilidades.

Com efeito, promover, pois, a qualidade ética em educação, componente indispensável

da qualidade total, e reformular o modo de se relacionar de todos os atores na escola,

educadores e educandos, de acordo com as diferentes características do agir humano radicado

na liberdade e voltado para o bem. Portanto, a complexidade como teoria de ação precisa

levar em conta a ética na conduta pratica do profissional da educação.

Conclusão

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Esperamos de alguma forma ter contribuído para o debate acadêmico e cientifico do

tema proposto. Vale lembrar que consideramos este artigo como um ensaio, como uma breve

introdução ao tema e não como uma postura filosófica ou educacional determinista, ou seja,

fechada, acabada, pronta. O dialogo entre as posições diferentes enriquece a discussão e faz o

papel da dialética, tão importante e necessário pro desenvolvimento acadêmico, social,

político, cultural e educacional da sociedade.

TEXTO DISPONÍVEL EM:

http://www.opet.com.br/artigos/pdf-pg-artigos/Refletindo%20sobre%20a%20historia%20da%20educacao%20no%20Brasil%20OPET.pdf

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O ESTUDO DOS FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E SUA INFLUÊNCIA NA

RELAÇÃO ENTRE COMUNIDADE E ESCOLA3

ADRIANA FRANCISCA DE CARVALHO MIGUEL

O ESTUDO DOS FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E SUA INFLUÊNCIA NA

RELAÇÃO ENTRE COMUNIDADE E ESCOLA.

A disciplina Fundamentos da Educação tem servido de apoio à estrutura humana em

seu convívio social e produtivo. Pois, entende se assim, que a educação tem que adaptar a

criança ao meio social adulto, ou seja, transformar a constituição psicológica do indivíduo em

torno do conjunto de realidades coletivas as quais a consciência comum colabore com um

determinado valor.

Desta forma, é importante enfatizar, que a educação pode ser conceituada como um

processo contínuo sempre ligado à reconstrução da experiência, com o objetivo de ampliar e

aprofundar o seu conteúdo social, enquanto ao mesmo tempo, o indivíduo ganha o controle

dos métodos envolvidos.

De acordo com Piaget (1979), no caso do desenvolvimento da leitura e escrita, a

dificuldade para adotar o ponto de vista da criança foi tão grande que ignoramos

completamente as manifestações mais evidentes das tentativas infantis para compreender o

sistema da escrita. A necessidade do homem de se expressar através da leitura e da escrita,

algumas vezes, pode ser um processo doloroso e traumático, por isso devem ser repensadas as

atitudes dos educadores para com as crianças que não acompanham o ritmo de aprendizagem

imposto pelo modelo educacional.

É a partir desta problemática, que a disciplina Fundamentos da Educação é de grande

relevância ao profissional da educação por ministrar todo este conteúdo.

O educador, nos dias atuais, para conseguir bons resultados no ensino e aprendizado,

tem que estar por dentro de todos os meandros da formação e atuação do indivíduo, uma vez

que a sua atuação deve ser ampla e aberta em todos os aspectos que se encontram ao seu

redor.

Veremos nos subcapítulos a seguir como os grandes pensadores da educação

desenvolveram as teorias que são de grande discussão ainda nos dias atuais.

FUNDAMENTOS PSICOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO

3 Produção de Aprendizagem apresentada à UTA –Fundamentos da Educação, no Curso de Pedagogia à Distância da Faculdade Internacional de Curitiba.

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Os princípios fundamentais da teoria de Piaget é a teoria interacionista construtivista.

Para Piaget o desenvolvimento intelectual, assim como o da moral, esta relacionado à

interação ativa do sujeito com o meio físico e social. Nesse processo interativo, ele

desenvolve novas adaptações, envolvendo assimilações e acomodações, e as organiza. Essas

adaptações lhe permitem avanços no desenvolvimento das estruturas da inteligência e do

conhecimento do real.

Na educação, a teoria piagetiana, está voltada ao desenvolvimento do raciocínio

autônomo, tanto no plano intelectual como no plano moral. Nesse sentido é preciso, antes de

tudo dar voz ao aluno, discutir com ele objetos de conhecimento em pé de igualdade, mesmo

sabendo que há uma desigualdade em termos de conhecimento.

A teoria histórico-cultural desenvolvida por Vygotsky,afirma que, o desenvolvimento

propriamente humano é cultural e social na sua origem e denominado assim porque dependa

da mediação de sistemas simbólicos. Nesse processo, parte-se de uma regulação pelos outros,

no social, para uma autorregulação a partir das generalizações possibilitadas pela linguagem

conceitual.

O conceito de zona de desenvolvimento proximal ou potencial (ZDP) é um conceito

poderoso, que vem dar suporte à noção de aprendizagem gerando desenvolvimento. Ao

professor cabe atuar no ZDP do aluno para que este torne real oque primeiro é potencial. A

mediação na ZDP vem contribuir para o avanço no conhecimento. Se o investimento estiver

no nível de desenvolvimento real, não haverá evolução; se, por outro lado, for muito acima

deste, mesmo com ajuda não haverá avanço. Para investir na ZDP, é preciso investir em

problemas nem muito fáceis nem muito difíceis para o aluno, algo que ele, consiga resolver

com ajuda do professor ou de um colega mais experiente.

O objetivo dos estudos dos fundamentos psicológicos é compreender os processos de

desenvolvimento e aprendizagem do ser humano. Essa área da psicologia estuda as mudanças

no comportamento das pessoas que foram provocadas ou induzidas por situações educativas,

formais ou informais. Com o conhecimento psicológico o educador pode contribuir no

processo de construção do conhecimento do aluno, oferecendo vários objetos de

conhecimento e instigando o aluno a interagir com eles. Cabe a ele intervir para fazer os

alunos pensarem sobre suas próprias atividades e refletir sobre o processo que o levou ao

êxito ou ao fracasso no trabalho com diferentes áreas.

FUNDAMENTOS SÓCIO-ANTROPOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO

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No âmbito da sociologia das relações família-escola, o grupo familiar deixa de ser

visto como mero reflexo da classe social de pertencimento, passando a ser analisado em sua

especificidade, em sua dinâmica interna e sua forma peculiar de relação com o meio social.

Durkheim tinha como objetivo principal descobrir as leis de funcionamento da

sociedade. Por esse motivo é considerado um dos sistematizadores da corrente funcionalista.

Enfatiza a origem social da educação com a finalidade desuperar sua caracterização

predominantemente intelectualista e individualista. Esta teoria se preocupava principalmente

com a questão da escolarização; sobretudo, com a forma como se dava a integração entre os

indivíduos por meio da educação e o modo como se organizavam os espaços escolares.

Aspectos como a transformação social e os conflitos sociais eram negados por esta corrente, a

qual os percebia como uma doença.

Karl Marx desenvolveu uma concepção materialista da História, afirmando que o

modo pelo qual a produção material de uma sociedade é realizada constitui o fator

determinante da organização política e das representações intelectuais de uma época.

Assim, a base material ou econômica constitui a "infraestrutura" da sociedade, que

exerce influência direta na "superestrutura", ou seja, nas instituições jurídicas, políticas (as

leis, o Estado) e ideológicas (as artes, a religião, a moral) da época.

Segundo Marx, a base material é formada por forças produtivas e por relações de

produção. Marx utilizou o método dialético para explicar as mudanças importantes ocorridas

na história da humanidade através dos tempos. Ao estudar determinado fato histórico, ele

procurava seus elementos contraditórios, buscando encontrar aquele elemento responsável

pela sua transformação num novo fato, dando continuidade ao processo histórico.

Na concepção sociológica de Max Weber o ponto de partida esta justamente no

indivíduo, que passa a ser compreendido como o motor das relações sociais. O objetivo da

sociologia weberiana relaciona-se com o seu principal conceito, que é a ação social. Para o

autor, a sociologia é o estudo da ação social, levando em conta a necessidade de compreendê-

la em interpretá-la em suas complexas casualidades e efeitos. Outro conceito importante em

Weber é o de relação social, que se diferencia da ação social pelo fato de que aquela relação

demanda que os atores realizem a ação de modo recíproco.

Weber é também um dos grandes teóricos da burocracia, entendida esta como meio de

denominação racional legal típico da sociedade capitalista, possível em sua integridade a

partir da organização do Estado Moderno.

A Sociologia da Educação oportuniza aos seus pesquisadores e estudiosos

compreender que a educação se dá no contexto de uma sociedade que, por sua vez, é também

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resultante da educação. Também oportuniza compreender e caracterizar a inter-relação ser

humano/sociedade/educação à luz de diferentes teorias sociológicas.

Segundo Durkheim, a sociologia da educação serviria para os futuros professores para

uma nova moral laica e racionalista, sem influência religiosa.

A sociologia da educação começou a se consolidar por Marx e Engels, como o

pensamento sobre as sociedades de seu tempo, criando uma relação de educação e produção.

As concepções deles têm como início a revolução industrial, criando a educação politécnica,

que combina a instituição escolar com o trabalho produtivo, acreditando que dessa relação

nasceria um dos mais poderosos meios de transformação social.

FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÂO

A história da filosofia é a disciplina que se encarrega de estudar o pensamento

filosófico em seu desenvolvimento diacrônico, ou seja, a sucessão temporal das ideias

filosóficas e de suas relações. Ela é uma parte da ciência positiva da História, exigindo o

mesmo rigor nos métodos, a fim de reconstituir a sequência da filosofia.

Na teoria de Platão o homem resulta da união de dois elementos heterogêneos – a alma

inteligível e o corpo material. A alma humana, em virtude de sua imaterialidade, é da mesma

natureza das ideias e, portanto, tem uma predisposição natural para conhecê-las. Tal como

asa ideias, a alma é imortal: ela sempre existiu e sempre vai existir. A alma intelectiva é o que

há de mais nobre no ser humano, o qual se eleva à medida que desenvolve seu intelecto. Ao

contrário o homem se rebaixa quando sede aos impulsos corpóreos.

Para Aristóteles, corpo e alma estão unidos em um vínculo de dependência recíproca,

para existirem um depende do outro. Na filosofia aristotélica a vida virtuosa não é a recusa

dos prazeres corpóreos, como queria Platão, mas a moderação, a atitude daquele que evita

excessos.

A cultura medieval sofreu forte influência do cristianismo, uma religião cujos

princípios os gregos ignoravam. A religião cristã, em muitos aspectos, era um obstáculo à

livre reflexão filosófica. Para o cristianismo a verdade não era ―algo‖, mas ―alguém‖: Deus.

No inicio da Idade Moderna o cristianismo e a religião cristã, já não exercia um papel

tão acentuado na cultura do Ocidente. Em função disso, muitos filósofos voltaram a valorizar

a razão, considerando-a uma via de acesso segura ao conhecimento da verdade. Por isso é que

a filosofia moderna tomou como principal fundamento a questão do conhecimento.

Nesse sentido podemos identificar duas grandes correntes de pensamento: o

racionalismo e o empirismo:

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Para o racionalismo, todo conhecimento verdadeiro deriva da pura razão. René

Descartes, que viveu no século XVII, foi um dos mais influentes filósofos racionalistas. Para

ele as ideias são inatas e só vão se manifestando à medida que vamos desenvolvendo nosso

intelecto.

O filósofo empirista Francis Bacon enfatiza a necessidade de coletarmos informações

pela experiência para só então submetê-las à razão.

Para Immanuel Kantpensador alemão que se situa entre a passagem da idade moderna

à contemporânea afirma que o conhecimento provém da ação combinada entre o sujeito e o

objeto de conhecimento.

O naturalismo postula um retorno a nós mesmos, à nossa verdadeira essência,

entendendo que a civilização que construímos é um mundo artificial, representando a origem

dos males morais e até físicos. Jean-Jacques Rousseau é o mais influente filósofo da vertente

naturalista.

O iluminismo, cujo autor mais importante é Voltaire, afirma que a educação deveria

superar o modelo livresco adotado pela nobreza, colocando a razão acima da tradição.

O positivismo surgiu na primeira metade do século XIX e que propunha a aplicação do

método das ciências naturais- observação,experimentação e interferência- para o estudo das

ciências humanas. O grande pioneiro do pensamento positivista foi August Comte, que via a

sociedade em um processo evolutivo, passando necessariamente por três estágios- o religioso,

o metafísico, e o positivo- e sendo rígida basicamente por duas leis, a estática e a dinâmica

sociais. Outro pensador positivista importante foi Herbert Spence, mas diferente de Comte

para ele a os resultados aos qual o cientista chega não podem ter validade universal absoluta,

uma vez que participam de experiências particulares.

O materialismo dialético é uma filosofia baseada nos escritos de dois pensadores

alemães do século XIX, Karl Marx e FriedrichEngels. Para eles, a história se desenvolve de

forma dialética, isto é, em movimento de tese/antítese/síntese, configurada em uma contínua

luta de classes.

A fenomenologia surge a partir da crítica do filósofo alemão Edmund Husserl ao

psicologismo. Essa linha filosófica nega a possibilidade de um conhecimento objetivo, tendo

em vista que os atos mentais são sempre subjetivos.

O existencialismo se constitui como um desdobramento da fenomenologia. Para essa

linha filosófica, a existência humana precede a existência, o que equivale a dizer que o ser

humano está constantemente fazendo a si mesmo por meio de suas livres escolhas.

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O antropólogo estruturalista francês Lévi-Strauss, afirma que o pensamento humano é

determinado por estruturas inconscientes. Para o filósofo francês Foucault, o sujeito é um

efeito do discurso. A educação é vista em função das práticas sociais que a constituem.

O pragmatismo parte do pressuposto de que não é possível um aprofundamento

absoluto para a verdade, pois nossos juízes se encontram irremediavelmente comprometidos

com nossos valores, crenças, preconceitos. Nesse sentido, o único critério possível para

afirmamos à verdade são as consequências praticas do enunciado. Paralelamente ao

pragmatismo, a vertente da filosofia analítica inspirada pelo Tractatus logico-philosophicus

de Wittgenstein, procurava desenvolver uma concepção de linguagem adequada ao

pensamento científico, enquanto outra, inspirada pela obra de Investigações filosóficas, do

mesmo autor, interessava-se pela linguagem do cotidiano.

Diante da pluralidade encontrada em nossa sociedade nos dias atuais, educar tornou-se

uma tarefa nada fácil. As tendências pedagógicas sofrem críticas e superações dia após dia.

As concepções de ser humano ganham novas descobertas. A educação está fundada em

vertentes pedagógicas que divergem quanto a sua concepção de ser humano, que refletem

claramente na prática educativa, já que convergem para um ideal de educação em função de

metas e fins. Por isso, é que nos deparamos com o momento atual da educação em que

sentimos a necessidade de unir as formas de pensamento que já vigoraram, buscando

horizontes e novas perspectivas.

PESQUISA E PRÁTICA PROFISSIONAL – RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE

Na tradição sociológica, as relações comunitárias estariam vinculadas a um território

restrito e seriam marcadas por forte identidade afetiva. Em contrapartida, o conceito de

sociedade estaria associado à noção de regras racionais que procuram preservar a convivência

entre diferentes. Assim, as relações sociais nem sempre estariam vinculadas ao afeto entre os

indivíduos e seriam mais frequentes em agrupamentos sociais mais complexos e de grandes

dimensões.

Existe outra modalidadede comunidade naescola. A comunidade escolar: elacoexiste

com o colegiado escolar (grêmios estudantis e associações de pais entre outros), mas este

tenderia a superar os vícios corporativos (onde cada ator - pais ou alunos - defende seus

interesses específicos), constituindo um vínculo comunitário mais forte. A escola, então,

passaria a construir uma cultura comunitária a partir dos colegiados escolares, fundindo

interesses num agrupamento único.

Contudo, tanto na teoria quanto na prática, percebe-se que a construção da

comunidade escolar não estaria restrita ao interior da escola. Em outras palavras, nos

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colegiados escolares ou em qualquer outra instância comunitária da escola, permanecem

interesses que não nascem na escola e não se vinculam somente ao que ocorre no interior da

escola. São interesses que estão diretamente relacionados ao bairro onde a escola está

inserida, aos eventos políticos e culturais de uma determinada região ou município, aos

interesses de categorias e classes sociais, aos interesses de gerações e assim por diante.

Por isso, exercício da ação docente ou a sua prática pedagógica deve acontecer de

maneira encadeada com os fundamentos teóricos da educação.Já que os estudos filosóficos

podem contribuir de maneira significativa na vida do indivíduo, e demanda a formação

integral do ser humano. É a filosofia que reúne o pensamento fragmentado pelas ciências e as

outras formas do conhecer.

As metodologias de ensino e a leitura que se faz sobre a realidade vivida da escola, da

comunidade, do aluno e demais contexto relacionados para que se constitua uma prática

pedagógica coerente e consistente e que objetive o desenvolvimento de uma formação cidadã.

TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM: http://www.artigonal.com/ensino-superior-artigos/o-estudo-dos-fundamentos-da-educacao-e-sua-influencia-na-relacao-entre-comunidade-e-escola-5615979.html

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Piaget

Psicologia Genética e Educação

Marcus Vinícius Da Cunha4

Resumo: Este capítulo apresenta as concepções fundamentais da Epistemologia Genética de

Jean Piaget, tomando essa teoria como um paradigma. Focalizando temas relativos ao

desenvolvimento cognitivo e da sociabilidade, o capítulo expõe a visão de Piaget sobre a

educação, discutindo as possibilidades de transposição da teoria piagetiana para a prática

educacional.

Palavras-Chaves: Piaget. Psicologia Genética. Prática Educacional.

O suíço Jean Piaget nasceu em Neuchâtel em 1896 e morreu em Genebra em 1980.

Biólogo interessou-se desde jovem por Filosofia, particularmente pelo campo da

Epistemologia, em que são elaboradas e discutidas teorias do conhecimento.

Sua projeção nos meios acadêmicos deu-se como psicólogo e educador, mas as

indagações fundamentais que originaram seu paradigma e nortearam suas pesquisas sempre

estiveram prioritariamente vinculadas à compreensão do Sujeito Epistêmico e não do Sujeito

Psicológico. Embora tenha sido um homem preocupado com as graves questões de sua época,

entre elas a educação, o pesquisador genebrino não elaborou um método pedagógico, o que

muitos erroneamente julgam existir.

Um Problema Epistemológico

Um dos grandes temas da epistemologia é saber como se passa de um estado de menor

conhecimento para um estado de maior conhecimento, de um conhecimento de menor valor

para um conhecimento de maior valor. Esse problema, que seduziu o jovem Piaget como

seduz a todos os que se envolvem nessa área, pode ser compreendido com base nas

formulações do filósofo Immanuel Kant. Consideremos que alguns conhecimentos só podem

ser obtidos por meio do contato direto da pessoa com os dados do mundo empírico. Quando

dizemos ―está chovendo lá fora‖, esta é uma afirmação proveniente da experiência de ter ido

4 Professor Associado da Universidade de São Paulo (Ribeirão Preto).

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lá fora e constatado um fato por intermédio dos órgãos dos sentidos. Conhecimentos desse

tipo são chamados a posteriori, uma vez que resultam de constatações empíricas.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

Diferentemente, quando afirmamos que ―a linha reta é o caminho mais curto entre dois

pontos‖, expressamos um juízo a priori, pois nada está sendo dito sobre uma linha em

particular ou sobre dois pontos específicos. Não é preciso utilizar a experiência para

comprovar tal afirmação, uma vez que ela é universal e necessária: dados dois pontos

quaisquer, o caminho mais curto entre eles será sempre uma linha reta.

Os juízos a priori encontram-se tipicamente na geometria, como no exemplo acima

mencionado, e também nas linguagens da matemática e da lógica. Quando dizemos que 5 + 2

= 7, não estamos nos referindo a cinco laranjas mais duas laranjas ou a cinco casas mais duas

casas. Estamos estabelecendo, isto sim, que cinco unidades – de qualquer coisa que seja

somadas a duas unidades da mesma coisa resultam em sete. Ao dizer ―se A = B e B = C, então

A = C‖, expressamos uma regra de transitividade que se aplica independentemente do que

sejam A, B e C.Os juízos a priori são gerais, universais, necessários, não variam de acordo

com a subjetividade de quem os formula e nem conforme as condições do ambiente que cerca

os fenômenos empíricos.

Conhecimentos desse tipo são tidos como válidos justamente por serem aplicáveis a

quaisquer objetos, por serem normativos, por terem valor de regra para o pensamento.O

problema epistemológico que despertou a atenção de Piaget diz respeito a como se passa de

um tipo de conhecimento a outro, como se transita de um estado, em que a afirma-ção só é

possível mediante a manipulação de laranjas, casas etc., a outro estado, em que os enunciados

estão além disso. O pesquisador genebrino deixou, então, o terreno estritamente filosófico e

foi buscar resposta para essa indagação na experimentação científica, tornando-se um

pesquisador do desenvolvimento cognitivo da criança.Uma Psicologia da Inteligência.

Não é difícil perceber que o indivíduo humano transita, ao longo de sua vida, de um

estado de menor conhecimento para um estado de maior conhecimento. Pode-se levar uma

criança pequena a concluir que 5 + 2 = 7 e que o trajeto mais curto entre dois pontos é uma

linha reta, mas para isso será preciso, em um caso, permitir-lhe manipular objetos – paliti-

nhos de fósforos ou grãozinhos de milho – e, em outro caso, andar de uma cadeira a outra

experimentando vários trajetos, por exemplo. Anos mais tarde, esse mesmo indivíduo

trabalhará mentalmente com esses enunciados, da matemática e da geometria, como se fossem

realidades indiscutíveis, sem necessitar dos palitinhos e das cadeiras.O que Piaget percebeu é

que poderia responder àquele problema epistemológico se estudasse o progresso das

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categorias de conhecimento no decorrer da vida da pessoa, da in- 3. Esta afirmação é válida

para o universo concebido do ponto de vista da geome-tria euclidiana, pois outras geometrias,

como a elabo-rada por Riemann no século XIX, apresentam visões alternativas.

Infância à idade adulta.

A psicologia da criança tornou-se assim o seu campo de estudos. Suas pesquisas nessa

área consistiram em compreender as categorias cognitivas desde os seus estados iniciais até as

suas manifestações mais elaboradas, o que o levou a uma teoria sobre o desenvolvimento da

inteligência.Dizemos, então, que a Psicologia de Piaget foi elaborada tendo em vista a

construção de sua Epistemologia. O termo Genético, que adjetiva tanto sua Psicologia quanto

sua Epistemologia, não diz respeito à transmissão de caracteres hereditários, conotação que

possui no campo biológico. Genético, aqui, refere-se ao modo de abordagem do objeto de

estudo, desde seu estado elementar – sua origem, sua gênese – até seu estágio mais adiantado,

acompanhando cada uma das sucessivas etapas desse percurso. Por adotarem esse mesmo

enfoque, outros paradigmas também recebem essa adjetivação, sendo a Psicologia de Piaget

um deles. Os métodos piagetianos de investigação diferem daqueles que eram – e ainda são –

usualmente empregados por outras correntes de pesquisadores. Ao invés de medir a capaci-

dade intelectual das crianças por meio de testes padronizados, muito comuns na Psicologia,

Piaget recorreu a um procedimento que ficou conhecido como abordagem clínica; uma

entrevista livre em que o pesquisador busca averiguar os fundamentos e processos relativos à

capacidade cognitiva de seus sujeitos experimentais.

Os métodos tradicionais de mensuração da inteligência, geralmente, trazem questões

pré-elaboradas às quais a pessoa deve responder. Dependendo de seu desempenho, define-se o

seu nível intelectual, comparativamente à população para a qual o teste foi construído.

Costuma-se dizer que os testes de inteligência fornecem uma boa fotografia, um retrato ins-

tantâneo da capacidade do indivíduo, deixando a desejar no tocante à sua dinâmica.O que

Piaget pretendia, em última instância, era verificar os recursos – mais ou menos dependentes

da experiência – que o indivíduo necessita para elaborar seu pensamento. Os testes

padronizados mostraram-se inúteis nesse caso, porque de nada adianta saber o resulta-do, bom

ou ruim, obtido por uma criança em questões, digamos, de cálculo aritmético, se não for

possível detectar o que a levou a isso. O método piagetiano de pesquisa não consiste em

medir a competência intelectual, mas sim, em compreender como o indivíduo formula suas

concepções sobre o mundo que o cerca, como resolve problemas, como explica fenômenos

naturais. Esse método prevê a formulação de problemas abertos, chamados provas

operatórias, e a solicitação para que a criança os solucione, dando início a diálogos entre

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pesquisador e pes-quisado. Ao lidar com crianças muito pequenas, que não podem ser

interrogadas por meio da fala, recorre-se a observações, acompanhadas de meticulosos

registros, sobre o modo como elas solucionam problemas não-verbais. Por exemplo, observa-

se a atitude do bebê diante do brinquedo que cai de suas mãos e desaparece de seu campo

visual e analisa-se o fato como se fosse a proposição de um problema. A criança vai procurar

o brinquedo ou não? Caso o brinquedo seja escondido por um adulto em diversos lugares

sucessivamente, a criança é capaz de localizá-lo corretamente no último local em que viu o

objeto desaparecer ou vai procurá-lo no primeiro em que foi ocultado?

Uma Concepção de Educação

Quando falamos em método piagetiano, estamos nos referindo a uma abordagem de

pesquisa e não a uma estratégia de trabalho pedagógico, como acabamos de ver. Se quisermos

buscar alguma analogia nesse terreno, entretanto, não será difícil perceber que os

procedimentos da pesquisa piagetiana inspiram atitudes em sala de aula bastante diferentes

daquelas que seriam aprovadas por uma pedagogia tecnicista, voltada para a mensuração de

resultados.

Ao passo que o uso de testes psicológicos padronizados está mais de acordo com uma

visão tecnicista da aprendizagem, a perspectiva piagetiana vai ao encontro de processos

pedagógicos em que os alunos são tratados de acordo com suas particularidades cognitivas. O

que está em causa não é o binômio acerto-erro nas atividades escolares, mas sim, o potencial

dessas mesmas atividades para promover o progresso intelectual de cada um dos educandos.

Mas é realmente no âmbito das teorias do conhecimento que se encontra a maior

afinidade das idéias de Piaget com a educação escolar, mais precisamente com uma certa

pedagogia. Seus conceitos epistemológicos fundamentam-se em concepções da esfera

filosófica, originadas antes mesmo de sua época, que consistem em considerar o

conhecimento como possível somente quando o Sujeito, aquele que irá conhecer, e o Objeto,

aquilo que será conhecido, relacionam-se de uma determinada maneira: o Sujeito age sobre o

Objeto. Nessa perspectiva, temos, primeiramente, a existência de algo que impulsiona o

Sujeito Epistêmico em direção ao Objeto. Estando em níveis diferentes, como se houvesse um

desequilíbrio entre eles, o Sujeito é naturalmente atraído pelo Objeto, como que para superar

o desnível em que se encontram. O Objeto exerce pressão perturbadora sobre o Sujeito,

contribuindo para fornecer-lhe motivação interna e criar seu envolvimento pessoal com o

Objeto, do que resulta o impulso para a ação.

Em segundo lugar, temos a atividade do Sujeito, que se traduz propriamente em

atitudes de busca, desvendamento, pesquisa, enfim, ação sobre o Objeto a ser conhecido. Ao

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visualizar essa concepção epistemológica na sala de aula, compreendemos que o aluno deve

ser despertado para a relevância daquilo que vai ser ensinado. Relevância pessoal, imediata e

não simplesmente formal.

De nada adianta dizer a ele, como fazem muitos professores, que aquele assunto do

currículo é importante porque será útil mais tarde. Se não houver vínculos desafiadores entre

o indivíduo e a matéria de ensino, vínculos que ativem a percepção do desnível existente entre

o aprendiz e o conteúdo escolar, o educando não será impulsionado a estudar aquilo.

Não havendo motivação, o aluno deixa de se posicionar de modo ativo diante da

matéria. O mesmo acontece quando o professor privilegia a passividade da criança e a leva a

manter-se quieta, apenas ouvindo, como se o mundo pudesse escoar para dentro de seu

cérebro por meio da audição. Sem vontade e sem iniciativa para desvendar e descobrir, não há

conhecimento.

Observe-se que a esse último processo corresponde uma concepção epistemológica em

que o Objeto é inserido no Sujeito, como que depositado ou impresso em sua mente. O

professor dita a matéria, o aluno faz exercícios de fixação do conteúdo e reproduz os tópicos

solicitados na avaliação. O resultado disso não pode ser chamado de conhecimento, embora

seja possível verificar objetivamente que o Sujeito tem o Objeto retido em sua memória –

quando o estudante obtém uma boa nota na prova, por exemplo.

Dizemos que esse outro processo não resulta em conhecimento porque ele não produz

qualquer modificação no aprendiz. Para haver conhecimento, devemos conceber que o Sujeito

atue para superar o desequilíbrio existente entre ele e o Objeto, isto é, para colocar-se no nível

em que ainda não está. Por meio da ação que empreende para desvendar o Objeto, o Sujeito

sofre mudanças internas, sai do estado atual – de menor conhecimento – e passa ao estado

superior em que domina o Objeto. Essa mudança interna é conhecimento, algo que não pode

ser assegurado pelo processo em que o Objeto é simplesmente depositado na mente do aluno.

Essa concepção epistemológica aproxima as idéias de Piaget de todas as correntes pe-

dagógicas que enfatizam a atividade do educando e a estruturação de um ambiente escolar que

corresponda às características pessoais do aluno – seus interesses, sua personalidade, seu

conhecimento cotidiano. Historicamente, as pesquisas de Piaget vieram endossar os

movimentos educacionais renovadores, contrários ao chamado ensino tradicional verbalista,

impositor de restrições à participação do aluno, centrado no saber supremo do professor.

Voltaremos a esse tema logo mais, após analisarmos outros tópicos do paradigma piagetiano.

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Assimilação, Acomodação e Equilibração

Vejamos, então, os conceitos piagetianos que traduzem as categorias fundamentais da

concepção de conhecimento assumida por Piaget, em que o Sujeito age sobre o Objeto. Piaget

considerou que o processo de conhecer tem início com o desequilíbrio estabelecido entre

Sujeito e Objeto, porém suas pesquisas não contemplaram os fatores motivacionais, de

natureza emocional e afetiva, ali envolvidos. Isto não significa que Piaget os tivesse negado,

apenas que, como epistemólogo, concentrou sua atenção nos momentos seguintes do

processo.

Segundo ele, para conhecer é necessário que Sujeito e Objeto estabeleçam uma relação

que envolve, na verdade, dois processos complementares e, às vezes, simultâneos. O primeiro

ocorre quando o Sujeito age sobre o Objeto na tentativa de conhecê-lo por meio dos

referenciais cognitivos que já possui. O Sujeito procura desvendar o Objeto trazendo-o para

dentro desses referenciais, chamados esquemas cognitivos, ainda que estes sejam insuficientes

para dominar toda a complexidade do Objeto. A esse processo Piaget deu o nome de

assimilação.

Tomemos o caso em que uma criança já possui a capacidade de pegar alguma coisa,

em que os movimentos da mão e dos dedos foram estabelecidos com base em alguma

experiência anterior ou mesmo devido ao reflexo de preensão, com o qual todos os indivíduos

nascem. A criança dispõe de uma ferramenta cognitiva, ainda que mal desenvolvida, que a

capacita a agir sobre qualquer objeto passível de ser pego por intermédio da mão. Ela pode,

então, assimilar qualquer objeto novo. Esse objeto novo, ainda desconhecido, ultrapassa a

capacidade do esquema de pegar que a criança possui. Uma pequena bola, por exemplo,

imporá certas dificuldades, mas será assimilada, o que basta para dar início ao processo de

conhecer.

O segundo processo chama-se acomodação e consiste nas modificações sofridas pelo

Sujeito em função do exercício assimilador desencadeado. O Sujeito tem, então, seus esque-

mas cognitivos alterados por causa da relação que mantém com o Objeto, o que representa um

esforço adaptativo para superar o desnível existente entre um e outro. Feito isso, chega-se ao

estado de equilíbrio entre Sujeito e Objeto.

A criança de nosso exemplo terá que alterar seu esquema cognitivo de pegar, o que

envolve novos posicionamentos da musculatura da mão e dos dedos para acomodar-se às

características específicas da bola. Após algum tempo, dominará o objeto novo, chegando a

um ponto de equilíbrio com ele. A criança que atinge esse patamar não é a mesma que

começou o processo, pois seu conhecimento sobre o mundo é outro, maior e mais

desenvolvido do que quando ainda não tinha agido sobre a bola. O equilíbrio a que o

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indivíduo chega com os objetos que o cercam nunca é definitivo, uma vez que o mundo está

sempre em mudança, lembra Piaget. O equilíbrio, ainda que provisório, representa

conhecimento, mas é logo seguido por novas situações em que a pessoa é novamente

desafiada, o que dá início a sucessivas assimilações e acomodações, mais conhecimento,

outros desequilíbrios e assim por diante.

Biologia e Ambiente

Pensar a escola por meio dos conceitos piagetianos implica visualizar o trabalho do

professor como um conjunto de atividades que propiciem o desenvolvimento cognitivo. O

professor é responsável por apresentar situações desafiadoras que permitam ao aluno perceber

o desequilíbrio que há entre ele e os conteúdos das matérias escolares. Além disso, cabe

também ao professor organizar um ambiente de aprendizagem que favoreça a ação do

aprendiz sobre esses mesmos conteúdos. Mais adiante, veremos que essa formulação é ainda

muito geral, pois a transposição do paradigma piagetiano para a educação escolar pode dar

margem a diversas possibilidades de ação pedagógica, inclusive abolir a definição prévia do

que deva ser ensinado aos educandos. Por ora, analisemos uma outra questão tratada por

Piaget e que tanto preocupa os professores: Não seria a capacidade intelectual definida

hereditariamente? No trabalho cotidiano do professor, essa é uma pergunta que sempre vem à

tona, especialmente quando ele se depara com alunos que apresentam dificuldades de

aprendizagem. Será que um ambiente bem organizado – no lar ou na escola – é suficiente para

que a criança desenvolva competências cognitivas adequadas?

Trata-se, aqui, da antiga polêmica entre posturas teóricas pré-deterministas e ambien-

talistas. Os defensores das primeiras afirmam que a inteligência é um traço que herdamos

geneticamente, ao passo que os outros defendem que o ambiente exerce sempre o papel mais

importante, por maior que seja o peso dos fatores biológicos.

A descrição do processo de conhecer feita por Piaget traz em si a idéia de que todos os

indivíduos conhecem por intermédio dos mesmos processos – assimilação e acomodação.

Para que haja conhecimento é preciso que o indivíduo estabeleça contato íntimo com o

conteúdo a ser aprendido e que se posicione ativamente frente a esse mesmo conteúdo, o que

propiciará mudança em seus esquemas cognitivos. Esse processo ocorre em todos os

momentos da vida da pessoa, diferentemente em cada faixa etária, mas independentemente do

ambiente social e cultural em que o indivíduo esteja inserido.

Isso não significa que Piaget tenha aderido à tese pré-determinista. O que ele afirma é

que todos os seres humanos nascem com um potencial que os habilita a conhecer e que esse

potencial é o mesmo em todas as pessoas. Se há biologismo nessa afirmação, ela se deve ao

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fato de pertencermos todos à espécie humana. Desse modo, todos nascemos também em

condições de percorrer a mesma trajetória de desenvolvimento no tocante à capacidade

intelectual, do estado em que nosso conhecimento possui menor valor para o estado em que

nosso pensamento elabora formulações lógico-matemáticas de maior valor. Se determinados

indivíduos exercitam adequadamente suas potencialidades e percorrem, integralmente, a linha

de desenvolvimento cognitivo para a qual estão biologicamente capacitados, essa é uma

questão que diz respeito ao ambiente em que vive a pessoa. Condi-ções materiais e culturais

de vida poderão interferir, positiva ou negativamente, nessa trajetória.

Assim, Piaget posicionou suas idéias sobre o desenvolvimento cognitivo de maneira a

considerar tanto os aspectos biológicos quanto os ambientais. Sem cair no extremismo das

teses pré-deterministas, mostrou que o indivíduo é, de certo modo, programado para interagir

com o mundo que o cerca e percorrer o caminho que leva à competência para pensar

realidades situadas além dos dados empíricos imediatos. Sem aliar-se aos ambientalistas

radicais, Piaget afirmou que o meio pode ser um fator decisivo na determinação de como o

indivíduo realiza sua inclinação biológica. A escola é um ambiente entre muitos outros que

podem favorecer ou prejudicar o desenvolvimento intelectual. Por isso, cabe ao professor

acreditar na potencialidade de seus alunos e organizar experiências que lhes possibilitem

interagir com os saberes formalizados. A escola faz o papel de abrir caminhos para que a

criança e o jovem entrem em contato com o mundo, de modo participativo e construtivo.

A Teoria do Desenvolvimento Cognitivo

O desenvolvimento intelectual envolve a passagem do indivíduo por quatro grandes

períodos, vivenciados necessariamente em seqüência, conforme determinação biológica,

como já foi comentado. Cada período estabelece alicerces para o seguinte, de modo que as

aquisições ocorridas em um constituem pré-condições para o seguinte.

As pesquisas de Piaget o levaram a separar cada período por marcos cronológicos, mas

é preciso ressaltar que essas idades demarcatórias são meramente indicativas e não

categóricas, como muitas vezes se pensa. Assim, pode-se dizer, por exemplo, que as crianças,

em geral, passam do primeiro período para o segundo por volta dos 24 meses de vida, mas é

impossível afirmar, sem um exame acurado, quando essa transição está ocorrendo em um

determinado indivíduo.

O desenvolvimento, portanto, segue uma linha pré-definida, porém variável de

indivíduo a indivíduo no tocante ao ritmo em que ocorre. Variações qualitativas também

podem ocorrer, evidentemente, de uma pessoa a outra. No tocante à educação, em particular a

escolar, tais conceitos são relevantes porque impedem que o paradigma piagetiano seja

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tomado como um conjunto de formulações aplicáveis a todos os indivíduos,

indiscriminadamente.

Não se pode afirmar que determinado aluno já é capaz de compreender certos conteú-

dos apenas com base na informação de que ele já tem oito anos, ou que não adianta ensinar

certas coisas a outro, porque este ainda não tem 12 anos. A idade do aluno, como dado

isolado, não é indicador seguro de suas competências e limitações intelectuais.

Se a intenção do professor é a de adotar a teoria de desenvolvimento do paradigma

pia-getiano, deve saber que ela fornece um quadro da trajetória cognitiva percorrida pelos

seres humanos em geral – o Sujeito Epistêmico. Concluir alguma coisa sobre um aluno

específico – o Sujeito Psicológico – é tarefa que exige domínio das habilidades de pesquisa

prescritas pelo paradigma, o que implica treinamento especializado do professor, ambiente

escolar adequado e certas disposições administrativas favoráveis, o que nem sempre é fácil

encontrar.

Em que pese esta dificuldade, inerente à transposição da Psicologia Genética de Piaget

para a pedagogia, devemos observar que os obstáculos mencionados tornam-se menores e

superáveis quando pensamos nas contribuições trazidas por suas teses à prática educacional.

Se o professor tiver em mãos um quadro, ainda que meramente indicativo, do

desenvolvimento intelectual humano, poderá ajustar a metodologia de ensino e os conteúdos

das matérias escolares às características de seus alunos, o que trará grandes benefícios ao

processo de aprendizagem e ao próprio funcionamento da escola.

O Universo não Representado

A principal característica do primeiro período de desenvolvimento, chamado sensorial-

motor, é a inexistência de representações, imagens mentais dos objetos que cercam o

indivíduo. O conhecimento, nesse caso, é constituído por impressões que chegam ao

organismo por meio dos órgãos dos sentidos e do aparelho motor. Podemos dizer, então, que a

criança age sobre aquilo que alcança com as mãos, aquilo que ouve e vê, aquilo que chega à

sua boca, sem, contudo, formar imagens mentais desses objetos.Nesse período, predomina o

processo de assimilação que começa com o simples exercício dos reflexos, isto é, com o

acionamento de ferramentas inatas que possibilitam à criança manter os primeiros contatos

com os objetos e trazê-los para dentro de seus referenciais cognitivos, ainda toscos e mal

desenvolvidos. Assim, vão sendo formados esquemas cognitivos. Do reflexo de preensão, por

exemplo, forma-se um esquema de agarrar. Trata-se de uma mudança cognitiva ocasionada

pela experiência, o que significa já estar ocorrendo o processo de acomodação, além da

assimilação.

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Vale lembrar que a trajetória do desenvolvimento intelectual, aqui descrita, refere-se

àquela indagação de natureza epistemológica vista no início deste capítulo, traduzida pelo

percurso que leva o indivíduo do conhecimento empírico, de menor valor, ao conhecimento

abstrato, de maior valor. Assim, o período sensorial-motor corresponde ao momento inicial

em que a inteligência encontra-se presa ao plano da experiência imediata. Nesse caso, presa à

materialidade absoluta, à presença física dos objetos.

Os vários esquemas constituídos nesse período são, todos eles, esquemas de ação, pois

não envolvem representações. A criança desenvolve um esquema de olhar, de agarrar, de

morder e assim por diante. Com o tempo, esses esquemas vão sendo coordenados, o que

permite à criança integrá-los uns aos outros em determinadas seqüências – olhar um objeto,

segurá-lo com a mão, levá-lo à boca e mordê-lo.Um dos experimentos clássicos de Piaget

consiste em observar a atitude da criança quando um brinquedo cai de suas mãos e desaparece

de seu campo visual. Uma variação pode ser feita colocando-se um anteparo que oculta o

brinquedo. O que acontece nessa situação é que a criança não procura o objeto desaparecido,

mesmo tendo visto seu desaparecimento por trás de uma almofada, por exemplo.

A conclusão é que o brinquedo deixa de existir quando não é visto. Isso decorre,

obviamente, do ponto de vista da criança, para quem a realidade depende das impressões

sensoriais que recebe. Note-se que a inteligência, nesse período do desenvolvimento, sendo

limitada à experiência sensorial e motora, não é capaz de emitir juízos mais abrangentes sobre

o mundo, do tipo ―mesmo os objetos que não vejo existem‖.

A inteligência sensório-motora permite aplicar os esquemas, então coordenados, a

situações novas. Uma criança que tenha adquirido o esquema de agarrar e chacoalhar seu

travesseiro poderá experimentá-lo com um brinquedo que faz barulho, o que significa ape-nas

a repetição de uma conduta habitual em que os meios, que são os esquemas de agarrar e

chacoalhar, não têm relação com os fins – no caso, produzir um som.Um pouco mais tarde,

ainda durante o primeiro período, os esquemas cognitivos articulam-se dando mostras de

serem guiados por alguma intencionalidade. O fato de o universo da criança ser restrito às

impressões sensoriais e motoras, nesse momento, impede que ela anteveja o alcance pleno de

suas ações, mas já existe alguma distinção entre os meios em-pregados e os fins obtidos.

Trata-se daquilo que Piaget denominou reações circulares, procedimentos que se

repetem seguidas vezes. Inicialmente, apenas para fazer durar um espetáculo interessante para

a criança, como quando agarra um cordão que pende sobre seu berço e o puxa, fazendo

balançar um móbile que produz som. Caso seja colocada diante de uma situação nova e

desconhecida, a criança poderá aplicar esse procedimento aos objetos que ali se encontram

para tentar resolver um problema, ocasião em que novas condutas podem instalar-se.Um

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experimento interessante consiste em colocar uma almofada próxima à criança e sobre ela um

brinquedo, de modo que este fique inacessível às suas mãos. A criança aplica à almofada

esquemas que já possui, como agarrar e puxar, ocasionando a aproximação do brinquedo.

Desse modo, firma-se uma nova conduta, no caso, a chamada conduta do suporte, que

consiste em puxar uma plataforma para obter algo que esteja sobre ela. Isto significa que

houve acomodação dos esquemas cognitivos, provocada por experimentação ativa. Nas

próximas vezes em que estiver diante do mesmo problema, é provável que ela puxe a

almofada para alcançar o objeto distante.

Representação, Linguagem e Socialização

Imaginemos uma criança que ainda não domine a conduta do suporte e que, colocada

diante da almofada com o brinquedo, não aplique mecanicamente esquemas já conhecidos.

Essa criança tem uma atitude de meditação, como se raciocinasse para solucionar o problema

e, em seguida, apanha a almofada e a puxa para si, obtendo acesso ao brinquedo.

O resultado desse outro experimento indica que a criança desenvolveu uma conduta

complexa por meio da invenção. Ela inventou um meio totalmente novo para obter

determinado fim, sem precisar empregar a experimentação ativa. Inventar significa combinar

esquemas mentais, o que quer dizer que essa criança está na última fase do período sensorial-

motor, já ingressando no período seguinte.

A característica mais marcante do segundo período de desenvolvimento é a

representação, a transformação de esquemas – e esquemas combinados – de ação em

esquemas representativos. Aquelas competências intelectuais que, no primeiro período,

desenvolveram-se como ações, posteriormente, completam-se por meio de correspondentes

imagens mentais e simbólicas.

Nesse período, ocorre o progresso mais sensível da linguagem oral. Inicialmente, a

criança identifica certos objetos, pessoas e ações a palavras pertencentes a um universo muito

particular e específico. Seu cachorrinho é totó, sua mãe é mamã e tomar a mamadeira é mamá.

Com o passar do tempo, porém, começa a empregar palavras que designam categorias de

objetos, pessoas e ações. Todos os cachorrinhos são cachorros, todas as mamães são mães e

ingerir qualquer líquido é beber.

No decorrer do segundo período, dos dois aos sete anos de idade, aproximadamente, a

linguagem vai deixando de ser composta por expressões representativas muito particulares e

passa a empregar expressões socialmente convencionadas. Ao passo que totó pertence ao

universo do primeiro tipo, cachorro é o termo que se convencionou usar, nesta cultura, para

identificar uma categoria de objetos – os cães. A comunicação, não mais fundamentada no

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indivíduo, passa a ser baseada no grupo social. Essa transformação indica uma mudança nos

esquemas representativos, que se tornam cada vez mais adaptados ao meio social em que a

pessoa vive. Ao longo desse período, a criança desenvolve a capacidade para entabular

conversas, sempre mais inteligíveis, com outras pessoas, sendo possível trocar pontos de

vistas, opiniões e impressões de ambas as partes, o que é um avanço na socialização do

indivíduo. A linguagem por símbolos, expressão do vocabulário característico da criança,

torna-se uma linguagem por signos, composta por elementos representativos típicos de uma

cultura.

Além de revelar um significativo progresso na capacidade intelectual de representar o

mundo, o desenvolvimento da linguagem mostra também o início da transição do

egocentrismo para a socialização, um processo que, como veremos adiante, não se completa

ao término desse período, por volta de sete anos de idade.

O Universo Concreto

O período que acabamos de ver recebe o nome de pré-operatório, pois o que o

caracteriza é a impossibilidade de a criança utilizar seus esquemas representativos para

realizar operações mentais. Uma operação é constituída por várias propriedades, entre as

quais está a reversibilidade, muito mencionada por Piaget e demonstrada no experimento da

água colocada em recipientes de formatos diferentes.Imaginemos um tubo fino e alto, de um

lado, e uma vasilha larga e baixa, de outro. Se enchermos o tubo com água e em seguida

despejarmos seu conteúdo na vasilha, teremos obviamente a mesma quantidade de líquido nas

duas situações. Dizemos que o resultado dessa operação é óbvio não só porque vemos a água

saindo de um lugar e indo para outro, mas porque, ao vê-la no segundo recipiente, somos

capazes de fazer mentalmente a opera-ção inversa e compreender, assim, tratar-se da mesma

quantidade de líquido que há pouco ocupava o tubo.Nessa prova operatória, será bem

sucedida a pessoa cuja capacidade cognitiva dominar a reversibilidade.

A criança que se encontra no período pré-operatório confunde a quantidade de água,

que é a mesma nos dois momentos, com o formato dos recipientes. Ela pode res-ponder que

há mais líquido no tubo, porque ele é mais alto, ou que tem mais água na vasilha, por causa

das dimensões de sua superfície.Isto ocorre porque o pensamento da criança ainda não tem

suficiente mobilidade para reverter a operação realizada. Numa analogia, dizemos que seu

pensamento funciona como uma máquina fotográfica que registra duas situações distintas – a

água no tubo fino e alto, e a água na vasilha baixa e larga –, e não como uma filmadora que

permite reversão das cenas gravadas.Ao término do período pré-operatório, por volta de sete

anos de idade, a criança já intui operações. Ela é capaz de exibir reversibilidade de

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pensamento na prova operatória acima descrita, por exemplo, mas diante de outra prova, que

exige a mesma competência cognitiva, pode falhar. Isso significa que ela está em vias de

ingressar no terceiro período, cuja caracte-rística essencial é o desenvolvimento da capacidade

de realizar operações.Nesse novo período, que vai dos sete aos doze anos, aproximadamente,

o pensamento da criança ganha a maleabilidade que não possuía, sendo capaz de operar

mentalmente com esquemas de ação que até o momento eram apenas representados. Com

base nas aquisições sensoriais e motoras do primeiro período, a criança consegue percorrer

um trajeto dentro de sua casa. Mais tarde, descreve o trajeto percorrido, dada à capacidade de

formar a imagem mental de suas ações, capacidade esta adquirida no segundo período. Nesse

período, já con-segue elaborar, mentalmente, o trajeto inverso, do ponto final ao ponto de

início.Ao longo do tempo, as operações vão sendo articuladas como realidades necessárias.

Diante de uma prova operatória como a do líquido que flui de um recipiente para outro, a

criança afirma com total certeza o seu resultado, chegando mesmo a suspeitar de que se trata

de alguma brincadeira – de mau gosto, aliás – que esteja sendo feita com ela. Mais ainda, a

criança torna-se capaz de compreender uma operação independentemente de esta ser realizada

na sua frente.Isto quer dizer que o desenvolvimento do indivíduo já está bastante adiantado, se

o compararmos com a incapacidade do bebê para ir além do universo empiricamente dado.

Entretanto, as operações mentais que podem ser realizadas nesse momento ainda

possuem um caráter concreto, isto é, precisam já ter feito parte da experiência empírica do

indivíduo. Advém disso, a denominação desse terceiro período de operatório-concreto.O

caráter concreto das operações significa que os esquemas cognitivos do indivíduo são

ferramentas de assimilação que, ainda, dependem de dados empíricos. Estes dados não

precisam estar imediatamente presentes, acessíveis aos órgãos dos sentidos, mas devem já ter

estado em algum momento anterior, possibilitando a formação de esquemas representativos.

Do ponto de vista epistemológico, as ferramentas cognitivas ainda não funcionam em níveis

tais que permitam conhecimentos de valor normativo.

A Psicologia Genética na Escola

Conforme já foi assinalado, sob a perspectiva do paradigma piagetiano a educação

deve contribuir para desenvolver as competências cognitivas do educando. Tendo em vista o

que cada período de desenvolvimento requer, a tarefa do professor inclui organizar atividades

que viabilizem o progresso intelectual de seus alunos nas diferentes etapas da escolarização.

Na condição de paradigma científico, a Psicologia Genética não se dedica a instruir os

educadores sobre a elaboração dessas atividades. Para serem tomadas como Psicologia da

Educação, as idéias de Piaget necessitam ser transpostas para o terreno da prática pedagógica,

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o que exige seu aproveitamento em estudos e pesquisas que elaborem metodologias

específicas a serem aplicadas à situação escolar – o que não é possível analisar detidamente

neste livro.

No plano mais geral, no entanto, podemos dizer que o paradigma piagetiano sugere,

para as etapas pré-escolares, que todo o empenho deva ser voltado para possibilitar o percurso

do pensamento pré-operatório ao pensamento operatório-concreto. O dilema entre alfabetizar

ou não a criança nessa fase, por exemplo, não deve ser resolvido de modo padronizado, quer

afirmativamente, quer negativamente, mas sim mediante avaliação de cada aluno, em

particular.

Alfabetizar, bem como ensinar operações aritméticas, é algo possível de ser feito com

crianças que já dominam certas habilidades cognitivas, conclusão a que não se chega

tomando-se, exclusivamente, a idade cronológica de cada uma. O mesmo princípio deve ser

seguido pelo professor que trabalha com crianças na faixa etária de sete a doze anos que,

geralmente, cursam o primeiro ciclo do ensino fundamental.

Nessa etapa da escolaridade, o que se requer é que o indivíduo progrida nas

habilidades operatório-concretas de pensamento. Um ensino que valorize excessivamente a

transmissão de conteúdos formalizados pode incorrer no equívoco de fazê-lo por meio de

formulações puramente verbais, algo que a criança, em geral, ainda não domina. Nesse

período operatório-concreto, como já foi dito, o indivíduo só opera mentalmente com dados

que já tenham feito parte de sua experiência e que possam ser mentalmente ma-nipulados.

Uma informação, como ―as caravelas de Cabral atravessaram o Oceano Atlântico em 1500‖,

pode perfeitamente ser compreendida se o professor tomar o cuidado de oferecer referenciais

concretos para a criança – uma gravura que represente a embarcação mencionada e outros

materiais que lhe permitam visualizar o que é um oceano e entender o marco cronológico

empregado na frase, por exemplo.

Caso contrário, o aluno pode decorar a informação e repetila quando solicitado, mas

isto não será conhecimento de fato se ele não tiver contato concreto com os vários

componentes da oração. Se o professor não empregar procedimentos didáticos adequados às

limitações do pensamento, o processo de ensinar e aprender restringe-se à verbalização, à

audição e à reprodução de conteúdos. Os limites são sempre dados pelo desenvolvimento da

criança, que nesse momento só é capaz de operar com realidades representadas desde que

estas estejam ancoradas em referenciais concretos.

Fazer abstrações, formular hipóteses, desenvolver raciocínios lógico matemáticos, por

exemplo, são habilidades ainda não adquiridas no período operatório-concreto. A criança é

capaz de entender uma formulação genérica como ―se A = B e B = C, então A = C‖ somente

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quando substituímos estes termos por objetos que ela conheça. Ela pode, a partir daí, passar

do concreto para o formal, evidentemente, mas isto não significa que seu pensamento já tenha

compreendido essa formulação lógica como necessária. As expressões lógico-matemáticas

ainda não constituem regras para o pensamento.

O Universo Formal

Entre os 12 e os 16 anos de idade, aproximadamente, o indivíduo vivencia o

desenvolvimento do quarto período, chamado operatório-formal. Sua principal característica é

a transformação dos esquemas cognitivos até então organizados, capazes de realizar

operações concretas, em esquemas que operam com base em realidades apenas imaginadas

como possíveis.

Observe-se que desde o início estamos tratando de ações do Sujeito sobre o Objeto,

ações em que os processos de assimilação, acomodação e equilibração acabam por tornar o

indivíduo mais adaptado ao mundo que o cerca. Trata-se de uma adaptação ativa, como já

vimos, pois na concepção piagetiana não existe o indivíduo como mero receptáculo de

influências ambientais. A trajetória do desenvolvimento elaborada por Piaget traduz o

percurso que capacita o indivíduo a compreender melhor a realidade que o cerca para poder

participar de sua transformação.

Essa capacidade de adaptação ativa atinge seu ápice no último período de

desenvolvimento cognitivo. Esse é o ponto mais alto da trajetória, pois a competência para

pensar na esfera de um universo formal – isto é, não limitado ao existente – dota o indivíduo

de maior competência para entender o mundo e contribuir para sua mudança.

De fato, na esfera do desenvolvimento intelectual do indivíduo, podemos verificar que

o pensamento formal permite uma compreensão superior da realidade. Sabemos que no

primeiro período o universo da criança limita-se às impressões sensoriais e motoras. Ela é

capaz de pegar um brinquedo, empurrá-lo para um determinado lugar e puxá-lo de volta, por

exemplo, mas disto não resulta nenhuma representação mental. Há progressos cognitivos

nesse período, evidentemente, mas eles traduzem uma interação ainda precária com o mundo,

mesmo no tocante aos fenômenos físicos.

No segundo período, como vimos, já há representação de ações, mas a pouca male-

abilidade do pensamento impede que o indivíduo compreenda, por exemplo, a reversibilidade

dessas mesmas ações, o que significa uma capacidade limitada de entender o mundo

circundante. As aquisições operatórias do terceiro período são significativas, porém nada se

compara ao momento em que a lógica torna-se uma regra para o pensamento e a experiência

empírica deixa de ser necessária para a resolução de problemas.

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O universo concreto, até então hegemônico, é finalmente superado no decorrer do

período operatório-formal. As operações assumem caráter proposicional, permitindo ao

indivíduo raciocinar de maneira totalmente abstrata e elaborar mentalmente hipóteses, ou seja,

possibilidades sobre eventos ainda não ocorridos. Integra suas possibilidades de pensamento

até mesmo aquilo que ele não acredita que possa existir. Nessa fase, é comum o jovem

imaginar sociedades alternativas, sistemas filosóficos perfeitos e caminhos profissionais ainda

não percorridos. Abre-se, para a pessoa, todo um horizonte novo de perspectivas de vida e de

transformação, de si mesmo e do mundo, realidades que ela começa a dominar por meio de

recursos intelectuais mais avançados.

Embora não tenha dedicado suas pesquisas à temática dos afetos, Piaget chegou a

dizer que as angústias desse momento, a chamada crise da adolescência, são determinadas

pelo futuro, ao contrário do que pensava Freud, para quem essa problemática era decorrente

do retorno de desejos reprimidos na infância – como já vimos no primeiro capítulo deste livro.

Ao visualizar o futuro, sem ter meios para realizá-lo, o jovem, muitas vezes, revolta-se contra

autoridades e situações estabelecidas.

Na escola, esse é o momento em que os conteúdos das matérias podem, finalmente, ser

apresentados de modo verbal, sem necessidade de parâmetros concretos para serem

compreedidos. As noções matemáticas podem ser vistas por meio de fórmulas abstratas,

demonstradas tão somente por intermédio de símbolos genéricos, como x, y, z. O raciocínio

hipotético dedutivo, necessário ao entendimento dos procedimentos científicos, torna-se

possível mesmo sem a demonstração empírica correspondente.

Se por um lado, o trabalho do professor parece assim facilitado, por outro, é preciso

ressaltar a necessidade de definir de que modo os conteúdos das matérias escolares devem ser

apresentados. A seqüência ideal dos conhecimentos formalizados, respeitadas as

peculiaridades do desenvolvimento de cada aluno no decorrer do período operatório-formal, é

um tema que abre inúmeras frentes de pesquisa para os estudiosos que buscam transportar o

paradigma piagetiano para a prática pedagógica.

Devemos ressaltar que os resultados dessas investigações não são importantes apenas

para o desenvolvimento intelectual dos educandos – expressão que adquire conotação muito

estreita para alguns pedagogos. O trabalho de adequação dos conteúdos escolares refere-se ao

desenvolvimento intelectual, sim, mas é preciso ver que, por seu intermédio, a escola auxilia

na construção de ferramentas cognitivas fundamentais para a inserção ativa do indivíduo na

sociedade em que vive, para que ele possa compreender os processos sociais e políticos em

que está envolvido e, assim, contribuir para seu aperfeiçoamento.

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Vale lembrar, ainda, que é no decorrer desse período, e não logo no início, que o indi-

víduo adquire as competências do pensamento formal. Trata-se de uma longa transição que,

idealmente, ocorre durante os anos da adolescência. Assim, entre a quinta série do ensino

fundamental e as primeiras do ensino médio, o professor deve atentar para a gradativa in-

serção de conteúdos que exigem tais competências, podendo trabalhar justamente para que a

mencionada transição aconteça da melhor maneira possível.

A Teoria da Sociabilidade

A trajetória do desenvolvimento intelectual, do pensamento sensorial-motor às

operações formais, é acompanhada pelo desenvolvimento da sociabilidade do indivíduo. Esse

tópico do paradigma, usualmente menos comentado que os demais, é fundamental porque

acrescenta relevantes contribuições a uma Psicologia da Educação inspirada na psicogênese

piagetiana. Por seu intermédio, podemos entender com maior clareza a visão educacional e

social de Piaget.

Segundo a concepção de Piaget, todas as crianças vivenciam uma fase inicial em que

são incapazes de distinguir o seu eu dos objetos e pessoas circundantes – algo semelhante ao

que vimos na teoria freudiana, no primeiro capítulo deste livro. Logo nos primeiros meses de

vida, entretanto, começa a formar-se a percepção do eu, o que dá início de fato ao processo de

socialização. O primeiro momento desse processo traz o predomínio absoluto do eu, quando

todo o universo – objetos, pessoas, fenômenos físicos etc. – é compreendido pela criança com

base em seu ponto de vista exclusivo, como se tudo girasse em torno dela, o que Piaget

denominou egocentrismo.

O percurso da sociabilidade é a passagem desse estado egocêntrico, em que o

indivíduo compreende o mundo exclusivamente com base em seus pontos de vista

particulares, a um estado de plena socialização, em que a pessoa interage com a realidade que

a cerca segundo categorias de julgamento elaboradas coletivamente. No início, as ações da

criança são conduzidas por esquemas sensório-motores e destinadas à satisfação unicamente

individual, ao passo que, mais tarde, são ações refletidas, pensadas e articuladas por meio de

parâmetros do grupo social.

Esse momento final é atingido no decorrer do período das operações formais,

teoricamente entre 12 e 16 anos, e consiste na aquisição da capacidade de cooperação com os

outros. Ao lembrar que esse é o período em que o pensamento torna-se capaz de elaborar

formulações abstratas sobre a realidade, compreendemos que tal progresso intelectual só se

torna possível por intermédio da descentração do indivíduo, isto é, pelo desenvolvimento da

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competência para enxergar as coisas por meio de vários e diversos ângulos, sob pontos de

vista que ultrapassam o eu.

Assim, Piaget mostrou que o desenvolvimento cognitivo e o da sociabilidade

constituem um mesmo processo, cujo ápice é a adaptação ativa do indivíduo ao mundo, o que

ocorre no estabelecimento de relações com a realidade material e social. A interação do

Sujeito com o Objeto e com outros Sujeitos é a única fonte do verdadeiro conhecimento e do

pleno desenvolvimento psicológico, o que quer dizer partilhar competências cognitivas, em

condições de igualdade com o grupo social, para compreender, objetivamente, a realidade.

O ponto mais alto do desenvolvimento da sociabilidade é também o da personalidade

– atributo usualmente visto como exclusivamente individual. A personalidade encontra-se

verdadeiramente estruturada quando se dá a plena integração do indivíduo à coletividade. Para

pensar, o indivíduo emprega parâmetros que superam a visão egocentrada, chegando ao

estado em que as normas construídas coletivamente norteiam seus julgamentos morais. Esse

estado chama-se autonomia e não traduz sujeição pura e simples do individual ao social,

como pode parecer. Logo mais, voltaremos a esse tópico quando analisarmos a concepção de

sociedade adotada por Piaget.

Egocentrismo, Coação e Justiça

Conforme assinalamos em seção anterior, entre dois e sete anos de idade, o

egocentrismo da criança vai sendo, aos poucos, superado. Os progressos da fala socializada

são indícios desse processo, mas o centramento no eu ainda prevalece até o final do período.

Para melhor compreender o processo de socialização, Piaget analisou o relacionamento da

criança com as normas vigentes no grupo social a que pertence e concluiu que, no decorrer

desse tempo, o indivíduo passa por dois estados marcantes.

No primeiro estado, a criança é incapaz de apreender as regras existentes, como se o

universo social fosse, para ela, um universo sem normas. Nesse estado de anomia, isto é, de

desconhecimento das regras, a participação da criança em uma brincadeira qualquer ou em

um jogo infantil, por exemplo, não é conduzida pela dinâmica própria da atividade,

socialmente elaborada, mas sim, pelo prazer individual. Enquanto está no período sensorial-

motor, esse prazer é exclusivamente físico, ao passo que, no período pré-operatório, a

satisfação advém do manejo dos instrumentos simbólicos que começam a ser adquiridos.

Quando em situação de grupo, a criança brinca para si, joga para si, sem se importar

com os companheiros, como se cada um estivesse praticando uma atividade diferente. O

diálogo entre crianças costuma ser um monólogo coletivo, uma pseudoconversa em que o

interlocutor parece ser o outro, mas realmente não é. O egocentrismo impede que o indivíduo

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estabeleça interações que permitam a troca de impressões sobre as coisas, devendo prevalecer,

exclusivamente, o seu ponto de vista.

No segundo estado, a criança enxerga as ordens dos mais velhos como leis imutáveis,

como obrigações morais, quadro que Piaget chamou de respeito unilateral e realismo moral.

Os conceitos morais, sobre o certo e o errado, são vistos pelo indivíduo como exteriores a ele,

ao que se dá o nome de heteronomia. Ao participar de uma brincadeira ou um jogo, a criança

submete-se às regras, sendo incapaz de questioná-las. As regras são imperativas, como se não

fossem o que realmente são, isto é, meras convenções estabelecidas por uma pessoa ou

comunidade em um certo momento histórico para um determinado fim.

As mesmas considerações feitas a propósito do desenvolvimento cognitivo valem para

a sociabilidade. O paradigma piagetiano concebe a existência de uma propensão biológica

para atingir o estágio final em que o indivíduo torna-se melhor adaptado à realidade, mas não

nega a influência das condições ambientais nesse processo. Assim, embora todas as pessoas

estejam aptas a atingir o ponto considerado mais elevado da socialização, as instituições

educacionais, notadamente a família e a escola, podem interferir ocasionando o insucesso de

algumas.

Vejamos o caso em que pais ou professores assumem atitudes de coação à criança,

imposições que, pela força da autoridade, exigem obediência cega. O resultado desse

procedimento tão comum é alimentar a tendência natural da criança ao respeito unilateral, o

que reforça o egocentrismo infantil e dificulta a socialização. Observe-se que a idéia

piagetiana de socialização diz respeito a um estado em que o indivíduo participa ativamente –

e percebe-se como participante – da elaboração das regras que comandam a vida social.

No caso em que há coação, a criança pode até mascarar seu comportamento para aten-

der às ordens adultas, mas não consegue internalizar noções sobre o certo e o errado, uma vez

que as normas são mantidas exteriores a ela. Seus julgamentos morais não avançam na

direção desejável, rumo à autonomia, o que dificulta o desenvolvimento da noção de justiça.

Tomemos o exemplo em que a seguinte questão é proposta a uma criança: quem mere-

ce maior castigo, a pessoa que disse uma mentira facilmente identificável – como ―vi um

cachorro do tamanho de um cavalo‖ – ou a pessoa que alega estar com dor de cabeça para não

ir à escola? Para nós, o primeiro caso é resultante, apenas, de uma analogia, não constituindo

propriamente uma mentira, ao passo que o segundo é, de fato, um artifício moralmente

condenável. A criança, no entanto, poderá considerar menos grave a alegação da dor de

cabeça, uma vez que a falsidade não pode ser ali descoberta.

Esse exemplo mostra que a ideia de justiça pode estar dominada pela exterioridade da

regra e pela noção de responsabilidade objetiva, por valores impostos arbitrariamente pelo

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adulto e não por uma moral internalizada. Para a criança, fica valendo a regra em si – ―é

errado mentir‖ – e não a intencionalidade da ação, o que a leva a compreender que só o ato

passível de ser desmentido merece castigo. Como conseqüência, atitudes delituosas podem ser

cometidas, desde que não sejam vistas pelo adulto, o que reflete a ausência de parâmetros

internos de julgamento.

A Cooperação na Escola

Nas relações cotidianas é praticamente impossível que o adulto não utilize o recurso

da imposição de sua vontade, seja no contexto familiar, seja escolar, mas a teoria de Piaget

chama a atenção para os cuidados a serem tomados quanto ao uso da autoridade. Estamos

falando aqui da autoridade empregada sem critério, como instrumento que impede a criança

de perceber as razões pelas quais deve proceder de uma maneira e não de outra.

Não se trata de advogar que a família e a escola devam abandonar o estabelecimento

de limites para as atitudes da criança. Ocorre que se os limites forem apresentados como

frutos da vontade inquestionável dos mais velhos, eles podem levar ao reforço da heteronomia

e do respeito unilateral, dificultando a percepção de que a escolha entre o certo e o errado não

deve submeter-se a julgamento externo, mas sim, a critérios internalizados pela pessoa. Mais

ainda, fica obscurecida a percepção de que as regras são convenções criadas para facilitar a

vida social em determinadas circunstâncias e que podem, assim, ser mudadas, dependendo da

vontade coletiva.

Somente em torno dos sete anos de idade, a criança começa a adquirir capacidade para

entender dessa maneira o mundo das normas, configurando-se, então, o segundo momento do

processo socializador. Dali por diante, já é possível incentivar cada vez mais as atividades de

trabalho cooperativo, razão pela qual Piaget foi partidário do trabalho em grupos na escola.

Para ele, é prejudicial o ambiente escolar em que a criança permaneça em atitude passiva e

solitária, como depositária dos saberes adultos, mera reprodutora daquilo que ouve, sem poder

exercitar o contato social com seus pares.

Além dos motivos já apontados em outra seção deste livro, compreende-se porque

Piaget posicionou-se contrariamente ao ensino tradicional. A aplicação dos velhos moldes

educacionais só é eficiente para produzir pessoas incapazes de compreender a realidade

segundo pontos de vista que não sejam os seus – pessoas egocêntricas e não cooperativas,

portanto, o que se reflete no tipo de sociedade que irão contribuir para formar. O marco dos

sete anos de idade não implica que as etapas pré-escolares abandonem o trabalho em equipes.

O professor deve sempre incentivar atitudes grupais cooperativas, mas precisa estar ciente de

que o egocentrismo então predominante impede que esse exercício alcance plenos resultados.

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Ao longo das primeiras séries do ensino fundamental, com crianças de idade por volta de 12

anos, essas práticas vão sendo cada vez mais efetivas, ajudando de-cisivamente o progresso

da sociabilidade infantil. Em geral, é após a quinta série e no ensino médio que temos o

período mais fértil da socialização.

Genericamente, pode-se dizer que a cooperação, como recurso pedagógico, coloca em

prática a tese piagetiana de que não é conhecimento aquilo que o educando adquire

passivamente e, mais ainda, que é impossível conhecer um objeto qualquer por meio de um

único ponto de vista. O trabalho em equipes permite que os alunos atuem sobre os saberes a

se-rem aprendidos, pesquisem, busquem novas fontes de informação, levantem dados sobre os

conteúdos escolares e, principalmente, façam tudo isso trocando idéias, uns com os outros,

trabalhando cooperativamente na construção do conhecimento.

Dilemas Construtivistas

Conforme já foi afirmado aqui, embora não tenha elaborado um método pedagógico,

Piaget vinculou sua Psicologia Genética a idéias de renovação educacional. A transposição de

seu paradigma para a educação escolar foi feita, em um primeiro momento, pelo próprio

Piaget e por vários autores, no corpo do movimento conhecido como Escola Nova, processo

que ocorreu também no Brasil a partir da década de 1930.

O que integra todas as iniciativas de apropriação desse paradigma pelos educadores é a

concepção de conhecimento inerente a ele. A epistemologia piagetiana permite que a escola

considere o educando como sujeito ativo e construtor de seu próprio saber, o que vai ao

encontro de todas as pedagogias que valorizam a autonomia, a liberdade e o autogoverno

como características a serem incentivadas no estudante.

As teses piagetianas, no entanto, têm contribuído para concepções educacionais muitas

vezes divergentes, embora reunidas sob os mesmos princípios gerais. Sabemos que,

atualmente, é o construtivismo a corrente pedagógica responsável pela grande projeção das

idéias de Piaget, mas sob essa denominação abrigam-se duas grandes vertentes de

pensamento, as quais originam, por sua vez, diversas possibilidades de práticas pedagógicas.

Essas vertentes são o ―construtivismo radical‖ e o ―desajuste ótimo‖, conforme denominação

do pesquisador espanhol César Coll.

A primeira considera que não cabe à escola planejar, antecipadamente, aquilo que a

criança vai aprender. Não deve haver currículo, portanto, pois todo conhecimento advém da

livre atividade do educando. Quem conduz o processo de ensino é o aluno, ficando o

professor incumbido de organizar condições para que essa atividade aconteça de modo

espontâneo. Nesse caso, o processo de avaliação incide exclusivamente sobre o

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desenvolvimento cognitivo da criança, podendo ser usadas as provas operatórias piagetianas

para isso.

Ao desprezar o valor dos conteúdos das matérias escolares, o construtivismo radical é

comumente criticado por colocar em plano secundário todo o saber desenvolvido pela huma-

nidade ao longo de sua história e, mais ainda, por acreditar que a criança pode elaborar,

espontaneamente, os conhecimentos – bem como conceitos e juízos morais – de que necessita

para integrar-se socialmente. Ao invés de ser um processo socializador destinado a integrar o

indivíduo na sociedade, a educação torna-se um procedimento psicologizante.

A segunda vertente, igualmente construtivista e inspirada em Piaget, busca escapar

dessa crítica tomando os saberes formalizados como instrumentos para promover o

desenvolvimento cognitivo da criança. Diferencia-se da anterior por empregar os tópicos da

programação de ensino como recursos para evidenciar o desequilíbrio – em termos

piagetianos – entre o aluno e o objeto a ser conhecido.

Um minucioso trabalho de seleção e ordenamento dos tópicos das matérias faz-se

necessário para que os conhecimentos a serem ensinados não estejam no mesmo nível das

aquisições já feitas pelo aluno, o que não despertaria sua motivação. Esses conhecimentos não

podem estar, também, em nível tão acima que superem as possibilidades inerentes às

estruturas cognitivas já adquiridas. Vem daí a denominação de desajuste ótimo dada a essa

tendência.

Ambas as vertentes são construtivistas por adotarem a concepção piagetiana de co-

nhecimento, mas pode-se notar que originam modos bastante diferentes de organização do

trabalho escolar. Se considerarmos as finalidades sociais e políticas que sempre fazem parte

da escola, verificamos que as duas situam-se em posições igualmente distintas. Ao passo que

a inclinação não diretivista do construtivismo radical impede a previsão de metas

educacionais, a vertente do desajuste ótimo contempla a possibilidade de planejar o tipo de

indivíduo que a educação escolar almeja obter. Não se trata, é claro, de um planejamento à

moda tecnicista – como vimos no capítulo anterior deste livro –, mas a opção por trabalhar

com os conteúdos permite certos norteamentos quanto aos fins sociais e políticos a serem

atingidos. O aprendiz, nesse caso, constrói seu próprio conhecimento, uma vez que se

relaciona livremente com os objetos dispostos no ambiente escolar, contudo o simples fato de

esses objetos serem definidos pelo professor já exibe a tendência, fraca porém reconhecível, a

um certo diretivismo – o que não acontece na vertente construtivista radical.

Essas vertentes apresentam, para o professor, um dilema que transcende o âmbito

estritamente científico, pois o paradigma piagetiano mostra-se suficientemente amplo para

conter modelos educacionais divergentes. O dilema em questão não diz respeito às

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concepções originárias do paradigma, propriamente ditas, mas ao modo como os educadores

as transportam para a realidade social e cultural, norteados pelos projetos, esperanças e

crenças que possuem nesse campo.

Educação e Sociedade

O professor interessado em utilizar a Psicologia Genética como ferramenta

profissional deve estar ciente não apenas das contribuições científicas desse paradigma. As

implicações e os dilemas trazidos pelas teses piagetianas manifestam-se claramente quando se

pretende utilizá-las na edificação de um sistema educacional comprometido com a obtenção

de uma nova ordem social.

Ao refletir sobre esses temas, Piaget posicionou-se firmemente a favor de uma socie-

dade em que pessoas iguais debatam livremente suas idéias e definam regras morais pela via

do consenso, o que exclui o emprego da coerção de uns sobre outros. O estágio mais

desenvolvido da sociabilidade individual reflete justamente essa concepção, conforme já

vimos, e não traduz submissão pura e simples da pessoa aos ditames do grupo. É assim

porque, para Piaget, indivíduo e coletividade constroem-se mutuamente em ambiente

democrático.

Como organizar o ambiente escolar para favorecer o máximo desenvolvimento inte-

lectual e social de todos, eis a questão a ser resolvida pelos educadores. A grande tarefa da

educação, atualmente, parece ser a de encontrar o equilíbrio ideal entre liberdade e controle.

Para tanto, o programa de ensino deve atuar como base na espontaneidade plena e absoluta do

espírito infantil ou por meio de conteúdos escolares que traduzam a experiência humana

acumulada, sem, no entanto, imprimir verdades prontas e acabadas na mente do estudante, à

moda do ensino tradicional. Os defensores da primeira via dizem que a construção do

indivíduo e da sociedade não pode ser limitada de forma alguma, ou não será uma construção

de fato. Nessa perspectiva, deve-se respeitar integralmente as decisões das crianças e dos

jovens, bem como a moral resultante de sua interação com a realidade. Nesse pensamento,

reside a crença em um senso de justiça inerente ao ser humano e na liberdade como método

para trazê-lo à tona.

Os que alinham com a segunda alternativa temem que a liberalidade sem regras possa

dar margem a caminhos indesejáveis e assumem o risco de nortear a relação entre a criança e

o mundo. Acreditam que ao organizar os conteúdos escolares com olhos críticos, o educador

pode evitar que erros cometidos pela humanidade no passado sejam repetidos. É preciso,

então, conduzir, ainda que de forma branda, o conhecimento a ser adquirido pelos estudantes.

Por fim, a visão piagetiana pode ser interpretada como ideologia, uma vez que apresenta um

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mundo cooperativo e consensual, enquanto a ordem social conhecida por nós caminha a

passos largos para o conflito generalizado entre os segmentos que a compõem. Visto desse

modo, Piaget não faz mais do que ocultar as mazelas do sistema excludente e autoritário em

que vivemos, o que serviria para perpetuá-lo. Ou talvez, sua concepção não passe de uma

ilusão sociológica, reflexo de um universo idealizado que jamais existiu, nem existirá. Mas

Piaget também pode ser compreendido como o epistemólogo que elaborou ins-trumentos

teóricos para incentivar a luta dos educadores, e de todos os cidadãos, por uma sociedade e

uma escola mais justas e igualitárias. Nesta direção, suas idéias tornam-se um legado para

todos os que acreditam na possibilidade de uma educação escolar transformadora, que

propicie liberdade de pensamento e ação para todas as crianças e jovens, e contribua para a

construção de um novo mundo no futuro.

TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM:

http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/141/3/01d08t02.pdf

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FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS DA

EDUCAÇÃO: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A AÇÃO

EDUCATIVA.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume mar., Série 26/03, 2011, p.01-10.

Quando pensamos em educação é inevitável discutir seu papel socializador e seu

aspecto representativo da cultura.

O que implica em analisar os fundamentos históricos e filosóficos, já que a educação,

em si, só é possível através da transmissão do conhecimento ao longo do tempo, por meio do

dialogo, do contato entre as pessoas.

Sem socialização, contextualizada no âmbito escolar, não existe educação.

Sendo necessário, portanto, discutir como e se a educação realmente sociabiliza e se

este deve ser o seu principal objetivo.

Uma questão amplamente debatida e ainda não esgotada que originou várias

tendências pedagógicas, além de inúmeras propostas de direcionamento educacional.

Antes de entrar nesta esfera, no entanto, é necessário debater o âmago do que torna a

educação possível, a socialização e sua relação com a educação.

Socialização e educação.

O que é socialização afinal?

A socialização pressupõe a interação social, a capacidade de integrar-se a um grupo,

assimilando padrões sociais.

O que interfere na maneira como o sujeito percebe o mundo, o outro e a si mesmo.

O processo de interação, a socialização, inicia-se no nascimento do sujeito e só se

encerra com a morte, fazendo uso da linguagem para interagir e integrar os indivíduos.

Um filme que conta um caso real ilustra bem isto, trata-se do Enigma de

KasperHauser.

Em sentido amplo, a linguagem, através da cultura, constrói significados, embora a

equação inversa também seja verdadeira.

Podemos afirmar que o ser humano, neste sentido, só se humaniza a partir da

socialização e da assimilação da cultura.

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O que conduz a perguntar o que é cultura?

Poderíamos definir a cultura como um conjunto de valores que une e dá identidade a

um grupo, espelhando o conhecimento acumulado por gerações.

Assim, sendo a educação a transmissão e assimilação de conhecimentos, cabe

perguntar qual é o papel da educação para que a integração entre as pessoas se efetive?

Responder esta questão conduz a outro tema correlato: o papel da educação em sentido

amplo e sua distinção dentro e fora do processo de escolarização institucionalizado.

Educação formal e informal.

Para entender o papel da educação na socialização é necessário discutir a transmissão

da cultura dentro e fora da escola.

A educação, a transmissão do saber acumulado pela humanidade, não se concretiza

somente na escola, acontece também de maneira informal (sem norma ou forma), não

possuindo critérios, horários, hierarquia ou sistema de avaliação.

Neste sentido, a educação informal é produzida a partir das necessidades imediatas da

vida, configurando o conhecimento conforme as exigências requeridas para a sobrevivência.

Pensando nesta concepção, o saber escolar muitas vezes se distancia da realidade,

impedindo a assimilação democrática do conhecimento e excluindo várias categorias sociais,

portanto, limitando o acesso ao saber que confere poder.

A escola é uma instituição, como tal possui normas e padrões, impostos por aqueles

que controlam o sistema educacional, visando organizar seu funcionamento.

Diferente da educação informal, o conhecimento escolar é sistematizado, transmitido a

partir de critérios e métodos, composto por um saber científico, dogmático.

Embora a ideia, teoricamente, seria a escola criar uma proximidade com a realidade

concreta, possibilitando uma flexibilidade de conteúdos.

O grande problema é que a educação formal, sendo hierarquizada, é fruto e reflexo do

fordismo, dividindo tarefas e limitando o processo de socialização.

O fordismo educacional transforma os professores em tarefeiros, semelhante ao que

ocorreu com operários em linhas de montagem, fazendo, por outro lado, o educando perder a

noção do conjunto.

No entanto, de certo modo, a educação formal contém em si a informal, já que o

educador não se limita a transmitir conteúdos.

Enquanto o professor exerce uma profissão eminentemente técnica, o educador

deveria ensinar e praticar a tolerância com o outro, a convivência pacifica, instigando a

curiosidade para conhecer as diferenças, ou seja, incentivando a socialização.

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O paradigma do consenso e do conflito.

A socialização é o centro de duas visões distintas do que se entende como função da

escola, configurando duas abordagens clássicas: o paradigma do consenso e do conflito.

A noção de paradigma envolve um modelo que serve de base a construção da ciência.

Ambos os paradigmas balizam a construção de teorias e tendências pedagógicas e

representam pontos de referência e lógicas de pensamento.

Representado por Durkheim, Comte e Spencer, para o paradigma do consenso os

valores em comum e a cooperação entre professores e alunos é essencial para que a escola

cumpra seu papel socializador, a palavra chave é integração.

Além de ensinar conteúdos, a escola deveria moralizar e, para tal, punir infrações as

normas.

Pressuposto que gerou o ―mito do controle coercitivo‖, segundo o qual, à medida que

as sanções coercitivas são usadas conscientemente e de forma rápida, contra os transgressores,

a ameaça por si só é suficiente para manter a ordem.

Inversamente, a impunidade gera desordem.

Segundo esta tendência, outros autores, tal como Parson, conceberam a sala de aula

como uma agência de socialização, por meio da qual as personalidades individuais são

preparadas para o desempenho de papeis sociais, conferindo status conforme os méritos

individuais.

Em resumo, o paradigma do consenso busca a conservação da sociedade, a reprodução

das estruturas existentes, principalmente a reprodução do sistema capitalista.

O grande defeito do paradigma do consenso é não enxergar os conflitos.

Tentando contornar este problema, representado por Marx, paradigma do conflito

enxerga a escola como uma instituição que impõem valores e que, portanto, gera conflitos

entre professores e alunos.

Estes conflitos seriam essenciais para mudar a estrutura da sociedade.

Dentro desta concepção, alguns autores, como Waller, descreveram a escola como um

centro de difusão dos padrões culturais dos grupos mais amplos, sobrepondo-se as

comunidades locais e gerando um conflito permanente entre professores e alunos.

O que aconteceria porque os professores representam a cultura dominante, ligada a

erudição, enquanto os educandos teriam domínio apenas sobre a cultura popular e de massa,

desmotivando a aprendizagem.

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Exatamente por isto, a escola necessita exercer controle sobre os jovens e crianças

para efetivar o processo cognitivo, mas este controle cria um conflito que ameaça a existência

da escola.

Este processo origina um circulo, pois, diante da ameaça de conflito permanente, a

escola acirra o controle para garantir sua existência.

Pensando na questão, dentro do âmbito do paradigma do conflito, Lery defendeu a tese

de que a escola educa para o fracasso e para a aceitação deste fato, gerando conflitos.

Assim, o paradigma do conflito é útil para revelar as tensões e oposições dentro da

escola.

Entretanto, tende a ver apenas oposições, esquecendo-se que existem também

concordâncias.

A escola é socialmente complexa, alunos e professores compartilham situações

conflituosas comuns, que terminando unindo ao invés de separar.

Em outras palavras, o professor molda sua classe, mas é também moldada por ela, o

que tanto gera conflito como consenso.

Pensando de forma mais ampla, caberia, inclusive, perguntar se o consenso ou conflito

é gerado a partir da relação professor/aluno ou pela natureza da estrutura do sistema

educacional, ou ainda pelo contexto social.

O paradigma do consenso no Brasil.

O paradigma do consenso influenciou intensamente a educação no Brasil, sobretudo a

partir de 1930, representado pelas ideias de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira.

Começou a penetrar no Brasil graças a crescente industrialização, iniciada em 1920,

quando a necessidade de preparar o desenvolvimento levou um grupo de intelectuais

brasileiros a se interessar pela educação, vista como elemento central para remodelar a

realidade.

Em 1932, durante o governo Vargas, um grupo de vinte e seis intelectuais se reuniu

para redigir O manifesto dos pioneiros da educação nova, o qual defendia a educação como

função essencialmente pública, gratuita, obrigatória, laica e única.

Isto, do jardim da infância a universidade, dos quatro aos dezoito anos de idade.

Dentro deste contexto, Fernando de Azevedo, o principal representante do pensamento

de Durkheim no Brasil, enxergava a escola como miniatura da sociedade.

A complexidade da sociedade exigiria coesão social, imposta por valores transmitidos

pela escola.

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Á medida que o individuo percorre o sistema educacional da base ao topo, passaria da

educação comum, de natureza coercitiva, até as experiências diversificadas, possibilitando a

manutenção da ordem capitalista.

Assim, deveria ser função da escola estabelecer uma articulação com o meio social,

coordenando, disciplinando e consolidando as experiências fragmentadas colhidas no

ambiente da criança, servindo de modelo para a sociedade.

No entanto, para Fernando de Azevedo, a escola teria um papel limitado diante do

poder coercitivo de outra instituição, a família, responsável pela formação de grande parte dos

padrões sociais.

A despeito desta característica, o educador deveria ser um agente social, servindo de

exemplo e elemento de ligação do educando com a realidade e a construção do conhecimento.

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Anísio Teixeira defendeu a reestruturação da

educação com o objetivo de propagar e aperfeiçoar a democracia, propondo trabalhar

conteúdos de forma a discutir benefícios para a coletividade.

Para realmente integrar e socializar, a escola deveria ser integral e municipalizada,

visando atender os interesses de cada comunidade, sendo por ele fiscalizada.

Os estudos de Althusser.

Althusser pertence a um conjunto teórico conhecido como neomarxismo, uma corrente

que mescla o marxismo com outras bases teóricas, como o estruturalismo, fazendo uso da

dialética e do materialismo histórico.

Cabe lembrar que o estruturalismo se propõe a analisar sistemas, portanto, estruturas.

A preocupação central de Althusser era tentar entender como as condições de

produção, no âmbito capitalista, conseguem se reproduzir; já que o sistema capitalista seria

injusto e prejudicial à maioria.

Pensando na questão, o autor chegou à conclusão que a dinâmica de trabalho,

assegurada pelo salário, seria o principal fator a reproduzir o sistema, comprando a lealdade

de indivíduos em favor da ideologia capitalista.

Para garantir a submissão dos indivíduos ao sistema capitalista, o Estado faria uso de

aparelhos de Estado:

1. Aparelhos de Estado: constituído pelo governo e a administração publica.

2. Aparelhos Ideológicos de Estado: o meio de exercer controle sobre o pensamento,

através de instituições como igreja, escola, sindicatos, meios de comunicação e até livros

didáticos, mascarando e vendendo o domínio das elites.

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3. Aparelhos Repressivos de Estado: instituições que exercem domínio por meio da

violência, da coerção, tal como policia, justiça, prisões, forças armadas, etc.

Segundo Althusser, a escola teria um papel primordial moldando mentalidades, mas

dentro deste aparelho ideológico também haveria aparelhos repressivos, representados por

mecanismos de punição e exclusão.

Caso a escola não consiga moldar as mentalidades, fazendo os indivíduos se

conformarem com sua posição modesta na sociedade, jogando o sujeito na marginalidade, os

aparelhos repressivos dariam conta de excluir o infrator da sociedade.

Uma visão em concordância coma teoria funcional, segundo a qual a sociedade

funciona como uma máquina, sendo as pessoas engrenagens.No caso de uma peça defeituosa,

que não se encaixa no que esperado dela, bastaria substituí-la.

Os estudos de Bourdieu e Passeron.

Também pertencentes ao conjunto teórico neomarxista, Bourdieu e Passeron

concentraram sua atenção sobre a mesma questão trabalhada por Althusser: o entendimento

da reprodução da estrutura social do sistema capitalista.

Para os autores, a escola é a principal estrutura objetiva que molda mentalidades e

comportamentos, garantindo a manutenção de privilégios através do status que confere.

Neste sentido, a escola manipula o educando, ocultando uma violência simbólica.

A violência está no fato da escola se revestir de uma aparência de neutralidade,

quando na verdade condiciona o educando de acordo com os interesses das elites que

controlam o sistema educacional.

É simbólica devido ao seu caráter não material, portanto, circunscrito a esfera mental.

Dentro deste contexto, insere-se o capital cultural, a competência cultural e linguística

herdade, sobretudo, da família, facilitador do bom desempenho escolar.

Usando uma linguagem e cultura pertencentes à elite, o padrão culto, a escola comete

uma violência ao impor, ao conjunto da sociedade, valores de um único grupo.

A educação legitima o domínio da elite, impedindo o acesso daqueles que não

possuem o necessário capital cultural a estamentos mais elevados, doutrinando para o

fracasso.

A proposta de Gramsci.

O italiano Antônio Gramsci criticou o sistema educacional capitalista, apontando

caminhos para democratizar o acesso ao conhecimento, buscando tornar a sociedade mais

justa.

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Os textos de Gramsci influenciaram o pensamento socialista na Europa, refletindo no

Brasil na década de 1970 e 1980, possibilitando o moderno conceito de educação voltada para

a formação da cidadania.

Para ele, toda relação social é necessariamente pedagógica, já que todo o processo de

interação é uma relação de aprendizagem.

Defendia a ideia de que a massa só poderia chegar ao poder através de uma mudança

de mentalidade e não pela violência, centralizando esta mudança, principalmente, no

instrumento escola, responsável pela construção da cidadania.

Por cidadania, Gramsci entendia a orientação voltada para a elevação da cultura das

massas, a libertação do senso comum e a aquisição de uma postura critica.

Para levar a termo esta intenção, ele propôs uma escola unitária, onde todos,

independente da classe social, tivessem acesso ao mesmo tipo de conhecimento, no caso a

cultura erudita, baseada nos clássicos.

Porém, considerava que a educação deveria seguir o modelo tradicional, para conduzir

o educando da heteronomia para a autonomia.

Concluindo.

A educação institucionalizada, a escola, possui muitos defeitos e vícios, muitos dos

quais advindos do sistema capitalista e estrutura social; porém, o professor, em sala de aula

pode contornar estas barreiras.

Cabe a cada professor realizar um trabalho de formiguinha, tornando-se um educador

e agente multiplicador.

Sozinhos somos nada, somos fracos; juntos seremos tudo, seremos fortes e poderemos

mudar o mundo através da educação.

Texto: Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

Doutor em História Social pela FFCLH/USP.

TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM: Ultimo acesso em 30/12/12.

http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2011/03/fundamentos-historicos-e-filosoficos-da.html

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MARILENA CHAUI

CONVITE À FILOSOFIA

Ed. Ática, São Paulo, 2000.

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Introdução

Para que Filosofia?

Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia? É uma pergunta

interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática

ou física? Para que geografia ou geologia? Para que história ou sociologia? Para que biologia

ou psicologia? Para que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou

dança? Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia?

Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos

estudantes de Filosofia: ―A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo

permanece tal e qual‖. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, se costuma chamar

de ―filósofo‖ alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando e dizendo

coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis.

Essa pergunta, ―Para que Filosofia?‖, tem a sua razão de ser.

Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só

tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade

imediata. Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a

utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade.

Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e

venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem

ser valorizados para o elogio da humanidade.

Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não

serve para coisa alguma.

Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito

bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos

rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objetos

técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.

Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência

da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como

aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos

e aperfeiçoados.

Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre

teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões

filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as

formula e busca respostas para elas.

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Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia,

mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos

sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada.

Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não

serviria para nada, se ―servir‖ fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos

produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles; consideram

também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica.

Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os

conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teorias (que ficam por

conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A Filosofia seria a arte do bem

viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a

capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando nos a

viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como

finalidade ensinarnos a virtude, que é o princípio do bem-viver.

Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma

arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntas

desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O

que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos

livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres

humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas? Assim,

mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o

conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da

Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica

permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como

permanecem.

Atitude filosófica: indagar

Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia se

ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas,

independentemente do conteúdo investigado.

Essas características são:

- perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idéia, é. A Filosofia pergunta qual é a

realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual;

- perguntar como a coisa, a idéia ou o valor, é. A Filosofia indaga qual é a estrutura e

quais são as relações que constituem uma coisa, uma idéia ou um valor;

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- perguntar por que a coisa, a idéia ou o valor, existe e é como é. A Filosofia pergunta

pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de um valor.

A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às

relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se

referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar.

Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento:

o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia torna-se, então, o pensamento

interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a

Filosofia se realiza como reflexão.

A reflexão filosófica

Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si

mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo,

interrogando a si mesmo.

A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre

si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento.

Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no

mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as

coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem

quanto por meio de gestos e ações. A reflexão filosófica também se volta para essas relações

que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que

realizamos nessas relações.

A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou

questões:

1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que

fazemos? Isto é, quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que pensamos,

dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?

2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o

que queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos,

dizemos ou fazemos?

3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que

fazemos? Isto é, qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?

Essas três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas

pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro,

um conhecimento?

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Como vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?,

dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se

relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de

todas as coisas.

Já a reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao

pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a

finalidade humanas para conhecer e agir.

Filosofia: um pensamento sistemático

Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e

opiniões de cada um de nós. A Filosofia não é um ―eu acho que‖ ou um ―eu gosto de‖. Não é

pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de

mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda.

As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático.

Que significa isso?

Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca

encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por

procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado

e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência

cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de

dizer ―eu acho que ‖, mas de poder afirmar ―eu penso que‖.

O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se

contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões

sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas

entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações,

sejam provadas e demonstradas racionalmente.

Quando o senso comum diz ―esta é minha filosofia‖ ou ―isso é a filosofia de fulana ou

de fulano‖, engana-se e não se engana. Engana-se porque imagina que para ―ter uma

filosofia‖ basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as

coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para

julgar as coisas e as pessoas. ―Minha filosofia‖ ou a ―filosofia de fulano‖ ficam no plano

de um ―eu acho‖ coerente.

Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que

muito confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer

que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o

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senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a

Filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado

em nossa experiência cotidiana.

Em busca de uma definição da Filosofia

Quando começamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela é.

Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da

Filosofia, mas várias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, além de várias, as

definições parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios de perplexidade, indagam:

afinal, o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela é?

Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que

seria a Filosofia:

1. Visão de mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura. Filosofia

corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de idéias, valores e práticas pelos quais uma

sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma, definindo para si o tempo e o

espaço, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o verdadeiro

e o falso, o possível e o impossível, o contingente e o necessário.

Qual o problema dessa definição? Ela é tão genérica e tão ampla que não permite, por

exemplo, distinguir a Filosofia e religião, Filosofia e arte, Filosofia e ciência. Na verdade,

essa definição identifica Filosofia e Cultura, pois esta é uma visão de mundo coletiva que se

exprime em idéias, valores e práticas de uma sociedade.

A definição, portanto, não consegue acercar-se da especificidade do trabalho filosófico

e por isso não podemos aceitá-la.

2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia é identificada com a definição e a ação de

algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se à contemplação do mundo

para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio.

A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma

vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos,

desejos e paixões. É nesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo.

Esta definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a

sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a Filosofia e, por isso, também não podemos

aceitá-la.

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3. Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada

e dotada de sentido.

Nesse caso, começa-se distinguindo entre Filosofia e religião e até mesmo opondo

uma à outra, pois ambas possuem o mesmo objeto (compreender o Universo), mas a primeira

o faz através do esforço racional, enquanto a segunda, por confiança (fé) numa revelação

divina. Ou seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da realidade,

enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionável, que é a

revelação divina indemonstrável.

Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem

ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia não admite

indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a consciência filosófica procura

explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável.

No entanto, esta definição também é problemática, porque dá à Filosofia a tarefa de

oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo, elaborando um sistema

universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível.

Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora: em primeiro

lugar, porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas ciências e pelas artes,

cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no caso das

ciências) e para a expressão (no caso das artes), já não sendo pensável uma única disciplina

que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a

própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça

uma única explicação para o todo da realidade. Por isso, esta definição também não pode ser

aceita.

4. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas.

A Filosofia, cada vez mais, ocupa-se com as condições e os princípios do

conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos

valores éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das formas da

ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformações históricas dos

conceitos, das idéias e dos valores.

A Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias

modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência,

reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões, procurando descrever as formas e os

conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo, do ser humano

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consigo mesmo e com os outros. Finalmente, a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de

idéias ou significações gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história,

subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança,

etc.

Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade, a Filosofia procura

diferenciar-se das ciências e das artes, dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o

mundo histórico (ou humano) num momento muito preciso: quando perdemos nossas certezas

cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir

as que perdemos.

Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade

natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens) tornam-se estranhas,

espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o senso comum já não sabe o que pensar

e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer.

Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise (das

condições da ciência, da religião, da arte, da moral), como reflexão (isto é, volta da

consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o

sentimento e a ação) e como crítica (das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos,

das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), essas três atividades (análise, reflexão e

crítica) estando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade

e os seres humanos. Além de análise, reflexão e crítica, a Filosofia é a busca do fundamento e

do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que são, qual sua permanência

e qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que é o ser e o aparecer-

desaparecer dos seres?

A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos

científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças

religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações

das obras de arte e do trabalho artístico.

Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos

e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e

reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do

sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio

tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humanos, conhecimento da transformação

temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento da mudança das formas do real ou

dos seres, a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história.

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O nascimento da Filosofia

Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do

século VII e início do século VI antes de Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor

(particularmente as que formavam uma região denominada Jônia), na cidade de Mileto. E o

primeiro filósofo foi Tales de Mileto.

Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia

também possui um conteúdo preciso ao nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é

composta de duas outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia, que

vem da palavra logos, que significa pensamento racional, discurso racional, conhecimento.

Assim, a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza,

donde, cosmologia.

Apesar da segurança desses dados, existe um problema que, durante séculos, vem

ocupando os historiadores da Filosofia: o de saber se a Filosofia - que é um fato

especificamente grego - nasceu por si mesma ou dependeu de contribuições da sabedoria

oriental (egípcios, assírios, persas, caldeus, babilônios) e da sabedoria de civilizações que

antecederam à grega, na região que, antes de ser a Grécia ou a Hélade, abrigara as civilizações

de Creta, Minos, Tirento e Micenas.

Durante muito tempo, considerou-se que a Filosofia nascera por transformações que os

gregos operaram na sabedoria oriental (egípcia, persa, caldéia e babilônica). Assim, filósofos

como Platão e Aristóteles afirmavam a origem oriental da Filosofia. Os gregos, diziam eles,

povo comerciante e navegante, descobriram, através das viagens, a agrimensura dos egípcios

(usada para medir as terras, após as cheias do Nilo), a astrologia dos caldeus e dos babilônios

(usada para prever grandes guerras, subida e queda de reis, catástrofes como peste, fome,

furacões), as genealogias dos persas (usadas para dar continuidade às linhagens e dinastias

dos governantes), os mistérios religiosos orientais referentes aos rituais de purificação da

alma (para livrá-la da reencarnação contínua e garantir-lhe o descanso eterno), etc. A Filosofia

teria nascido pelas transformações que os gregos impuseram a esses conhecimentos.

Dessa forma, da agrimensura, os gregos fizeram nascer duas ciências: a aritmética e a

geometria; da astrologia, fizeram surgir também duas ciências: a astronomia e a meteorologia;

das genealogias, fizeram surgir mais uma outra ciência: a história; dos mistérios religiosos de

purificação da alma, fizeram surgir as teorias filosóficas sobre a natureza e o destino da alma

humana.

Todos esses conhecimentos teriam propiciado o aparecimento da Filosofia, isto é, da

cosmologia, de sorte que a Filosofia só teria podido nascer graças as saber oriental. Essa idéia

de uma filiação oriental da Filosofia foi muito defendida oito séculos depois de seu

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nascimento (durante os séculos II e III depois de Cristo), no período do Império Romano.

Quem a defendia? Os pensadores judaicos, como Filo de Alexandria, e os Padres da Igreja,

como Eusébio de Cesaréia e Clemente de Alexandria. Por que defendiam a origem oriental da

Filosofia grega? Pelo seguinte motivo: a Filosofia grega tornara-se, em toda a Antigüidade

clássica, e para os poderosos da época, os romanos, a forma superior ou mais elevada do

pensamento e da moral.

Os judeus, para valorizar seu pensamento, desejavam que a Filosofia tivesse uma

origem oriental, dizendo que o pensamento de filósofos importantes, como Platão, tinha

surgido no Egito, onde se originara o pensamento de Moisés, de modo que havia uma ligação

entre a Filosofia grega e a Bíblia.

Os Padres da Igreja, por sua vez, queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram

elevados e perfeitos, não eram superstição, nem primitivos e incultos, e por isso mostravam

que os filósofos gregos estavam filiados a correntes de pensamento místico e oriental e, dessa

maneira, estariam próximos do cristianismo, que é uma religião oriental.

No entanto, nem todos aceitaram a tese chamada ―orientalista‖, e muitos, sobretudo no

século XIX da nossa era, passaram a falar na Filosofia como sendo o ―milagre grego‖.

Com a palavra ―milagre‖ queriam dizer várias coisas:

que a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grécia, sem que

nada

anterior a preparasse;

que a Filosofia grega foi um acontecimento espontâneo, único e sem

par, como é próprio de um milagre;

que os gregos foram um povo excepcional, sem nenhum outro semelhante a

eles, nem antes e nem depois deles, e por isso somente eles poderiam ter sido capazes de criar

a Filosofia, como foram os únicos a criar as ciências e a dar às artes uma elevação que

nenhum outro povo conseguiu, nem antes e nem depois deles.

Nem oriental, nem milagre

Desde o final do século XIX da nossa era e durante o século XX, estudos históricos,

arqueológicos, lingüísticos, literários e artísticos corrigiram os exageros das duas teses, isto é,

tanto a redução da Filosofia à sua origem oriental, quanto o ―milagre grego ‖.

Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, de fato, a Filosofia tem dívidas

com a sabedoria dos orientais, não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com

os conhecimentos produzidos por outros povos (sobretudo os egípcios, persas, babilônios,

assírios e caldeus), mas também porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga,

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os poetas Homero e Hesíodo, encontraram nos mitos e nas religiões dos povos orientais, bem

como nas culturas que precederam a grega, os elementos para elaborar a mitologia grega, que,

depois, seria transformada racionalmente pelos filósofos.

Assim, os estudos recentes mostraram que mitos, cultos religiosos, instrumentos

musicais, dança, música, poesia, utensílios domésticos e de trabalho, formas de habitação,

formas de parentesco e formas de organização tribal dos gregos foram resultado de contatos

profundos com as culturas mais avançadas do Oriente e com a herança deixada pelas culturas

que antecederam a grega, nas regiões onde ela se implantou.

Esses mesmos estudos apontaram, porém, que, se nos afastarmos dos exageros da

idéia de um ―milagre grego‖, podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese. De fato,

os gregos imprimiram mudanças de qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e

das culturas precedentes, que até pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si

mesmos. Dessas mudanças, podemos mencionar quatro que nos darão uma idéia da

originalidade grega:

1. Com relação aos mitos: quando comparamos os mitos orientais, cretenses,

micênicos, minóicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesíodo, vemos que eles

retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do início do mundo;

humanizaram os deuses, divinizaram os homens; deram racionalidade a narrativas sobre as

origens das coisas, dos homens, das instituições humanas (como o trabalho, as leis, a moral);

2. Com relação aos conhecimentos: os gregos transformaram em ciência (isto é, num

conhecimento racional, abstrato e universal) aquilo que eram elementos de uma sabedoria

prática para o uso direto na vida. Assim, transformaram em matemática (aritmética,

geometria, harmonia) o que eram expedientes práticos para medir, contar e calcular;

transformaram em astronomia (conhecimento racional da natureza e do movimento dos

astros) aquilo que eram práticas de adivinhação e previsão do futuro; transformaram em

medicina (conhecimento racional sobre o corpo humano, a saúde e a doença) aquilo que eram

práticas de grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenças. E assim por diante;

3. Com relação à organização social e política: os gregos não inventaram apenas a

ciência ou a Filosofia, mas inventaram também a política. Todas as sociedades anteriores a

eles conheciam e praticavam a autoridade e o governo. Mas, por que não inventaram a política

propriamente dita?

Nas sociedades orientais e não-gregas, o poder e o governo eram exercidos como

autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo

de homens que decidiam sobre tudo, sem consultar a ninguém e sem justificar suas decisões

para ninguém.

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Os gregos inventaram a política (palavra que vem de polis, que, em grego, significa

cidade organizada por leis e instituições) porque instituíram práticas pelas quais as decisões

eram tomadas a partir de discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por

voto em assembléias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais,

assembléias, separação entre autoridade do chefe da família e autoridade pública, entre

autoridade políticomilitar e autoridade religiosa) e sobretudo porque criaram a idéia da lei e

da justiça como expressões da vontade coletiva pública e não como imposição da vontade de

um só ou de um grupo, em nome de divindades. Os gregos criaram a política porque

separaram o poder político e duas outras formas tradicionais de autoridade: a do chefe de

família e a do sacerdote ou mago;

4. Com relação ao pensamento: diante da herança recebida, os gregos inventaram a

idéia ocidental da razão como um pensamento sistemático que segue regras, normas e leis de

valor universal (isto é, válidas em todos os tempos e lugares. Assim, por exemplo, em

qualquer tempo e lugar 2 + 2 serão sempre 4; o triângulo sempre terá três lados; o Sol sempre

será maior do que a Terra, mesmo que ele pareça menor do que ela, etc.).

Mito e Filosofia

Resolvido esse problema, agora temos um outro que também tem ocupado muito os

estudiosos. O novo problema pode ser assim formulado: a Filosofia nasceu realizando uma

transformação gradual sobre os mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os

mitos?

O que é um mito?

Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra,

dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da

saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do

poder, etc.).

A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo

(contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar,

anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido

para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é

uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do

narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está

narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados.

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Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acredita-

se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e

permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa

transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o mito – é sagrada porque vem de uma revelação

divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável. Como o mito narra a origem do mundo

e de tudo o que nele existe?

De três maneiras principais:

1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre

de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os

titãs (seres semi-humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou

de uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades,

como quente-frio, seco-úmido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado,

etc.

A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres,

das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados.

Tomemos um exemplo da narrativa mítica.

Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de

plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzi-la e

também serem amadas, o mito narra a origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros (que

conhecemos mais com o nome de Cupido):

Houve uma grande festa entre os deuses. To dos foram convidados, menos a deusa

Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa acabou, Penúria veio, comeu os restos e

dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa relação sexual, nasceu Eros (ou

Cupido), que, como sua mãe, está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai,

tem mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado. Por isso, quando Eros fere alguém com

sua flecha, esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor, inventa

astúcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e semimorto, ora rico e cheio de

vida.

2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma

coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas, ou uma

aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens.

O poeta Homero, na Ilíada, que narra a guerra de Tróia, explica por que, em certas

batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses

estavam divididos, alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos

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deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliavase com um grupo e fazia um dos lados - ou

os troianos ou os gregos - vencer uma batalha.

A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho

para o príncipe troiano Paris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor,

Afrodite. As outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general

grego Menelau, e isso deu início à guerra entre os humanos.

3. Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece

ou a quem os obedece. Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os

homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a

cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem

fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra.

Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha

de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num

rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens

também. Qual foi o castigo dos homens?

Os deuses fizeram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa

que conteria coisas maravilhosas, mas nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos

humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela

saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a

origem dos males no mundo.

Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e

relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens.

Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e

teogonias.

A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar,

fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero,

espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do

parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a

cosmogonia é a arrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças

geradoras (pai e mãe) divinas.

Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós, que, em grego, significa: as coisas

divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses,

a partir de seus pais e antepassados.

Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: A Filosofia, ao nascer, é, como já

dissemos, uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as

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causas das transformações e repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma transformação

gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a

cosmogonia e a teogonia?

Duas foram as respostas dadas.

A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo do século XX, quando

reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem.

Dizia-se, então, que a Filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a

primeira explicação científica da realidade produzida pelo Ocidente.

A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX, quando os estudos dos

antropólogos e dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e

cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de

pensar e de sentir de uma sociedade.

Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus

mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como

uma racionalização deles.

Atualmente consideram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a Filosofia,

percebendo as contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e racionalizando as

narrativas míticas, transformando-as numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e

diferente.

Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais

importantes:

1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial,

longínquo e fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no

presente. A Filosofia, ao contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no

presente e no futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são;

2. O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre

forças divinas sobrenaturais e personalizadas, enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a

produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais.

O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito

narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos

pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres

por composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e frio,

ou água, terra, fogo e ar.

3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível,

não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a

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confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao

contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a

explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da

pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.

Condições históricas para o surgimento da Filosofia

Resolvido esse problema, temos ainda um último a solucionar: O que tornou possível

o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do século VI antes de

Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que

permitiram o surgimento da Filosofia? Podemos apontar como principais condições históricas

para o surgimento da Filosofia na Grécia:

? as viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os

mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres

humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres

fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o

desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação

sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;

? a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as

estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso,

uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não

como um poder divino incompreensível;

? a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através

das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca

abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando,

portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;

? o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando

desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da

aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso,

o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e

de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens

constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo

às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia

surgir;

? a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o

crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética

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ou fonética, diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os hieróglifos dos

egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma imagem da coisa

que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;

? a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o

nascimento da Filosofia:

1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide

por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto

legislado e regulado da cidade - da polis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto

legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.

2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou

de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poetavidente, que

recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o

poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais

eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer.

Agora, com a polis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada

cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma

decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana

compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e

exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. A política,

valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou

o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.

3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados

por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser

públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que

todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental

para a Filosofia.

Principais características da Filosofia nascente

O pensamento filosófico em seu nascimento tinha como traços principais:

? tendência à racionalidade, isto é, a razão e somente a razão, com seus princípios e

regras, é o critério da explicação de alguma coisa;

? tendência a oferecer respostas conclusivas para os problemas, isto é, colocado um

problema, sua solução é submetida à análise, à crítica, à discussão e à demonstração, nunca

sendo aceita como uma verdade, se não for provado racionalmente que é verdadeira;

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? exigência de que o pensamento apresente suas regras de funcionamento, isto é, o

filósofo é aquele que justifica suas idéias provando que segue regras universais do

pensamento. Para os gregos, é uma lei universal do pensamento que a contradição indica erro

ou falsidade. Uma contradição acontece quando afirmo e nego a mesma coisa sobre uma

mesma coisa (por exemplo: ―Pedro é um menino e não um menino‖, ―A noite é escura e

clara‖, ―O infinito não tem limites e é limitado‖). Assim, quando uma contradição aparecer

numa exposição filosófica, ela deve ser considerada falsa;

? recusa de explicações preestabelecidas e, portanto, exigência de que, para cada

problema, seja investigada e encontrada a solução própria exigida por ele;

? tendência à generalização, isto é, mostrar que uma explicação tem validade para

muitas coisas diferentes porque, sob a variação percebida pelos órgãos de nossos sentidos, o

pensamento descobre semelhanças e identidades. Por exemplo, para meus olhos, meu tato e

meu olfato, o gelo é diferente da neblina, que é diferente do vapor de uma chaleira, que é

diferente da chuva, que é diferente da correnteza de um rio. No entanto, o pensamento mostra

que se trata sempre de um mesmo elemento (a água), passando por diferentes estados e

formas (líquido, sólido, gasoso), por causas naturais diferentes (condensação, liquefação,

evaporação).

Reunindo semelhanças, o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que

aparece para nossos sentidos de maneiras diferentes, e como se fossem coisas diferentes. O

pensamento generaliza porque abstrai (isto é, separa e reúne os traços semelhantes), ou seja,

realiza uma síntese.

E o contrário também ocorre. Muitas vezes nossos órgãos dos sentidos nos fazem

perceber coisas diferentes como se fossem a mesma coisa, e o pensamento demonstrará que se

trata de uma coisa diferente sob a aparência da semelhança.

No ano de 1992, no Brasil, os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da

bandeira nacional e saíram às ruas para exigir o impedimento do presidente da República.

Logo depois, os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para aparecer

na televisão com a cara pintada, defendendo tais candidaturas. A seguir, as Forças Armadas

brasileiras, para persuadir jovens a servi -las, contrataram jovens caras-pintadas para aparecer

como soldados, marinheiros e aviadores. Ao mesmo tempo, várias empresas, pretendendo

vender seus produtos aos jovens, contrataram artistas jovens para, de cara pintada, fazer a

propaganda de seus produtos.

Aparentemente, teríamos sempre a mesma coisa - os jovens rebeldes e conscientes, de

cara pintada, símbolo da esperança do País. No entanto, o pensamento pode mostrar que, sob

a aparência da semelhança percebida, estão diferenças, pois os primeiros caras-pintadas

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fizeram um movimento político espontâneo, os segundos fizeram propaganda política para um

candidato (e receberam para isso), os terceiros tentaram ajudar as Forças Armadas a aparecer

como divertidas e juvenis, e os últimos, mediante remuneração, estavam transferindo para

produtos industriais (roupas, calçados, vídeos, margarinas, discos, iogurtes) um símbolo

político inteiramente despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem. Separando as

diferenças, o pensamento realiza, nesse caso, uma análise.

Capítulo 3

Campos de investigação da Filosofia

Os períodos da Filosofia grega

A Filosofia terá, no correr dos séculos, um conjunto de preocupações, indagações e

interesses que lhe vieram de seu nascimento na Grécia.

Assim, antes de vermos que campos são esses, examinemos brevemente os conteúdos

que a Filosofia possuía na Grécia. Para isso, de vemos, primeiro, conhecer os períodos

principais da Filosofia grega, pois tais períodos definiram os campos da investigação

filosófica na Antigüidade.

A história da Grécia costuma ser dividida pelos historiadores em quatro grandes fases

ou épocas:

1. a da Grécia homérica, correspondente aos 400 anos narrados pelo poeta Homero,

em seus dois grandes poemas, Ilíada e Odisséia;

2. a da Grécia arcaica ou dos sete sábios, do século VII ao século V antes de Cristo,

quando os gregos criam cidades como Atenas, Esparta, Tebas, Megara, Samos, etc., e

predomina a economia urbana, baseada no artesanato e no comércio;

3. a da Grécia clássica, nos séculos V e IV antes de Cristo, quando a democracia se

desenvolve, a vida intelectual e artística entra no apogeu e Atenas domina a Grécia com seu

império comercial e militar;

4. e, finalmente, a época helenística, a partir do final do século IV antes de Cristo,

quando a Grécia passa para o poderio do império de Alexandre da Macedônia, e, depois, para

as mãos do Império Romano, terminando a história de sua existência independente.

Os períodos da Filosofia não correspondem exatamente a essas épocas, já que ela não

existe na Grécia homérica e só aparece nos meados da Grécia arcaica.

Entretanto, o apogeu da Filosofia acontece durante o apogeu da cultura e da sociedade

gregas; portanto, durante a Grécia clássica.

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Os quatro grandes períodos da Filosofia grega, nos quais seu conteúdo muda e se

enriquece, são:

1. Período pré-socrático ou cosmológico, do final do século VII ao final do século V

a.C., quando a Filosofia se ocupa fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das

transformações na Natureza.

2. Período socrático ou antropológico, do final do século V e todo o século IV a.C.,

quando a Filosofia investiga as questões humanas, isto é, a ética, a política e as técnicas (em

grego, ântropos quer dizer homem; por isso o período recebeu o nome de antropológico).

3. Período sistemático, do final do século IV ao final do século III a.C., quando a

Filosofia busca reunir e sistematizar tudo quanto foi pensado sobre a cosmologia e a

antropologia, interessando-se sobretudo em mostrar que tudo pode ser objeto do

conhecimento filosófico, desde que as leis do pensamento e de suas demonstrações estejam

firmemente estabelecidas para oferecer os critérios da verdade e da ciência.

4. Período helenístico ou greco-romano, do final do século III a.C. até o século VI

depois de Cristo. Nesse longo período, que já alcança Roma e o pensamento dos primeiros

Padres da Igreja, a Filosofia se ocupa sobretudo com as questões da ética, do conhecimento

humano e das relações entre o homem e a Natureza e de ambos com Deus.

Filosofia Grega

Pode-se perceber que os dois primeiros períodos da Filosofia grega têm

comoreferência o filósofo Sócrates de Atenas, donde a divisão em Filosofia présocrática e

socrática.

Período pré-socrático ou cosmológico

Os principais filósofos pré-socráticos foram:

? filósofos da Escola Jônica: Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Anaximandro de

Mileto e Heráclito de Éfeso;

? filósofos da Escola Itálica: Pitágoras de Samos, Filolau de Crotona e Árquitas de

Tarento;

? filósofos da Escola Eleata: Parmênides de Eléia e Zenão de Eléia;

? filósofos da Escola da Pluralidade: Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de

Clazômena, Leucipo de Abdera e Demócrito de Abdera.

As principais características da cosmologia são:

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? É uma explicação racional e sistemática sobre a origem, ordem e transformação da

Natureza, da qual os seres humanos fazem parte, de modo que, ao explicar a Natureza, a

Filosofia também explica a origem e as mudanças dos seres humanos.

? Afirma que não existe criação do mundo, isto é, nega que o mundo tenha surgido do

nada (como é o caso, por exemplo, na religião judaico-cristã, na qual Deus cria o mundo do

nada). Por isso diz: ―Nada vem do nada e nada volta ao nada‖. Isto significa: a) que o mundo,

ou a Natureza, é eterno; b) que no mundo, ou na Natureza, tudo se transforma em outra coisa

sem jamais desaparecer, embora a forma particular que uma coisa possua desapareça com ela,

mas não sua matéria.

? O fundo eterno, perene, imortal, de onde tudo nasce e para onde tudo volta é

invisível para os olhos do corpo e visível somente para o olho do espírito, isto é, para o

pensamento.

? O fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo

retorna é o elemento primordial da Natureza e chama-se physis (em grego, physis vem de um

verbo que significa fazer surgir, fazer brotar, fazer nascer, produzir). A physis é a Natureza

eterna e em perene transformação.

? Afirma que, embora a physis (o elemento primordial eterno) seja imperecível, ela dá

origem a todos os seres infinitamente variados e diferentes do mundo, seres que, ao contrário

do princípio gerador, são perecíveis ou mortais.

? Afirma que todos os seres, além de serem gerados e de serem mortais, são seres em

contínua transformação, mudando de qualidade (por exemplo, o branco amarelece, acinzenta,

enegrece; o negro acinzenta, embranquece; o novo envelhece; o quente esfria; o frio esquenta;

o seco fica úmido; o úmido seca; o dia se torna noite; a noite se torna dia; a primavera cede

lugar ao verão, que cede lugar ao outono, que cede lugar ao inverno; o saudável adoece; o

doente se cura; a criança cresce; a árvore vem da semente e produz sementes, etc.) e mudando

de quantidade (o pequeno cresce e fica grande; o grande diminui e fica pequeno; o longe fica

perto se eu for até ele, ou se as coisas distantes chegarem até mim, um rio aumenta de volume

na cheia e diminui na seca, etc.). Portanto o mundo está em mudança contínua, sem por isso

perder sua forma, sua ordem e sua estabilidade.

A mudança - nascer, morrer, mudar de qualidade ou de quantidade - chama-se

movimento e o mundo está em movimento permanente.

O movimento do mundo chama-se devir e o devir segue leis rigorosas que o

pensamento conhece. Essas leis são as que mostram que toda mudança é passagem de um

estado ao seu contrário: dia-noite, claro-escuro, quente-frio, seco-úmido, novo-velho,

pequeno-grande, bom-mau, cheio-vazio, um-muitos, etc., e também no sentido inverso, noite-

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dia, escuro-claro, frio-quente, muitosum,etc. O devir é, portanto, a passagem contínua de uma

coisa ao seu estado contrário e essa passagem não é caótica, mas obedece a leis determinadas

pela physis ou pelo princípio fundamental do mundo.

Os diferentes filósofos escolheram diferentes physis, isto é, cada filósofo encontrou

motivos e razões para dizer qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da

Natureza e de suas transformações. Assim, Tales dizia que o princípio era a água ou o úmido;

Anaximandro considerava que era o ilimitado sem qualidades definidas; Anaxímenes, que era

o ar ou o frio; Heráclito afirmou que era o fogo; Leucipo e Demócrito disseram que eram os

átomos. E assim por diante.

Período socrático ou antropológico

Com o desenvolvimento das cidades, do comércio, do artesanato e das artes militares,

Atenas tornou-se o centro da vida social, política e cultural da Grécia, vivendo seu período de

esplendor, conhecido como o Século de Péricles.

É a época de maior florescimento da democracia. A democracia grega possuía, entre

outras, duas características de grande importância para o futuro da Filosofia.

Em primeiro lugar, a democracia afirmava a igualdade de todos os homens adultos

perante as leis e o direito de todos de participar diretamente do governo da cidade, da polis.

Em segundo lugar, e como conseqüência, a democracia, sendo direta e não por eleição

de representantes, garantia a todos a participação no governo, e os que dele participavam

tinham o direito de exprimir, discutir e defender em público suas opiniões sobre as decisões

que a cidade deveria tomar. Surgia, assim, a figura política do cidadão. (Nota: Devemos

observar que estavam excluídos da cidadania o que os gregos chamavam de dependentes:

mulheres, escravos, crianças e velhos. Também estavam excluídos os estrangeiros.)

Ora, para conseguir que a sua opinião fosse aceita nas assembléias, o cidadão

precisava saber falar e ser capaz de persuadir. Com isso, uma mudança profunda vai ocorrer

na educação grega.

Quando não havia democracia, mas dominavam as famílias aristocráticas, senhoras

das terras, o poder lhes pertencia. Essas famílias, valendo-se dos dois grandes poetas gregos,

Homero e Hesíodo, criaram um padrão de educação, próprio dos aristocratas. Esse padrão

afirmava que o homem ideal ou perfeito era o guerreiro belo e bom. Belo: seu corpo era

formado pela ginástica, pela dança e pelos jogos de guerra, imitando os heróis da guerra de

Tróia (Aquiles, Heitor, Ájax, Ulisses). Bom: seu espírito era formado escutando Homero e

Hesíodo, aprendendo as virtudes admiradas pelos deuses e praticadas pelos heróis, a principal

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delas sendo a coragem diante da morte, na guerra. A virtude era a Arete (excelência e

superioridade), própria dos melhores, os aristoi.

Quando, porém, a democracia se instala e o poder vai sendo retirado dos aristocratas,

esse ideal educativo ou pedagógico também vai sendo substituído por outro. O ideal da

educação do Século de Péricles é a formação do cidadão. A Arete é a virtude cívica.

Ora, qual é o momento em que o cidadão mais aparece e mais exerce sua cidadania?

Quando opina, discute, delibera e vota nas assembléias. Assim, a nova educação estabelece

como padrão ideal a formação do bom orador, isto é, aquele que saiba falar em público e

persuadir os outros na política.

Para dar aos jovens essa educação, substituindo a educação antiga dos poetas,

surgiram, na Grécia, os sofistas, que são os primeiros filósofos do período socrático. Os

sofistas mais importantes foram: Protágoras de Abdera, Górgias de Leontini e Isócrates de

Atenas.

Que diziam e faziam os sofistas? Diziam que os ensinamentos dos filósofos

cosmologistas estavam repletos de erros e contradições e que não tinham utilidade para a vida

da polis. Apresentavam-se como mestres de oratória ou de retórica, afirmando ser possível

ensinar aos jovens tal arte para que fossem bons cidadãos.

Que arte era esta? A arte da persuasão. Os sofistas ensinavam técnicas de persuasão

para os jovens, que aprendiam a defender a posição ou opinião A, depois a posição ou opinião

contrária, não-A, de modo que, numa assembléia, soubessem ter fortes argumentos a favor ou

contra uma opinião e ganhassem a discussão.

O filósofo Sócrates, considerado o patrono da Filosofia, rebelou-se contra os sofistas,

dizendo que não eram filósofos, pois não tinham amor pela sabedoria nem respeito pela

verdade, defendendo qualquer idéia, se isso fosse vantajoso. Corrompiam o espírito dos

jovens, pois faziam o erro e a mentira valer tanto quanto a verdade.

Como homem de seu tempo, Sócrates concordava com os sofistas em um ponto: por

um lado, a educação antiga do guerreiro belo e bom já não atendia às exigências da sociedade

grega, e, por outro lado, os filósofos cosmologistas defendiam idéias tão contrárias entre si

que também não eram uma fonte segura para o conhecimento verdadeiro. (Nota:

Historicamente, há dificuldade para conhecer o pensamento dos grandes sofistas porque não

possuímos seus textos.

Restaram fragmentos apenas. Por isso, nós os conhecemos pelo que deles disseram

seus adversários - Platão, Xenofonte, Aristóteles - e não temos como saber se estes foram

justos com aqueles. Os historiadores mais recentes consideram os sofistas verdadeiros

representantes do espírito democrático, isto é, da pluralidade conflituosa de opiniões e

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interesses, enquanto seus adversários seriam partidários de uma política aristocrática, na qual

somente algumas opiniões e interesses teriam o direito para valer para o restante da

sociedade.)

Discordando dos antigos poetas, dos antigos filósofos e dos sofistas, o que propunha

Sócrates?

Propunha que, antes de querer conhecer a Natureza e antes de querer persuadir os

outros, cada um deveria, primeiro e antes de tudo, conhecer-se a si mesmo. A expressão

―conhece-te a ti mesmo‖ que estava gravada no pórtico do templo deApolo, patrono grego da

sabedoria, tornou-se a divisa de Sócrates.

Por fazer do autoconhecimento ou do conhecimento que os homens têm de simesmos

a condição de todos os outros conhecimentos verdadeiros, é que se diz que o período socrático

é antropológico, isto é, voltado para o conhecimento do homem, particularmente de seu

espírito e de sua capacidade para conhecer a verdade.

O retrato que a história da Filosofia possui de Sócrates foi traçado por seu mais

importante aluno e discípulo, o filósofo ateniense Platão.

Que retrato Platão nos deixa de seu mestre, Sócrates?

O de um homem que andava pelas ruas e praças de Atenas, pelo mercado e pela

assembléia indagando a cada um: ―Você sabe o que é isso que você está dizendo?‖, ―Você

sabe o que é isso em que você acredita?‖, ―Você acha que está conhecendo realmente aquilo

em que acredita, aquilo em que está pensando, aquilo que está dizendo?‖, ―Você diz‖, falava

Sócrates, ―que a coragem é importante, mas: o que é a coragem? Você acredita que a justiça é

importante, mas: o que é a justiça? Você diz que ama as coisas e as pessoas belas, mas o que é

a beleza? Você crê que seus amigos são a melhor coisa que você tem, mas: o que é a

amizade?‖

Sócrates fazia perguntas sobre as idéias, sobre os valores nos quais os gregos

acreditavam e que julgavam conhecer. Suas perguntas deixavam os interlocutores

embaraçados, irritados, curiosos, pois, quando tentavam responder ao célebre ―o que é?‖,

descobriam, surpresos, que não sabiam responder e que nunca tinham pensado em suas

crenças, seus valores e suas idéias.

Mas o pior não era isso. O pior é que as pessoas esperavam que Sócrates respondesse

por elas ou para elas, que soubesse as respostas às perguntas, como os sofistas pareciam saber,

mas Sócrates, para desconcerto geral, dizia: ―Eu também não sei, por isso estou perguntando

‖. Donde a famosa expressão atribuída a ele: “Sei que nada sei”.

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A consciência da própria ignorância é o começo da Filosofia. O que procurava

Sócrates? Procurava a definição daquilo que uma coisa, uma idéia, um valor é

verdadeiramente. Procurava a essência verdadeira da coisa, da idéia, do valor.

Procurava o conceito e não a mera opinião que temos de nós mesmos, das coisas, das

idéias e dos valores.

Qual a diferença entre uma opinião e um conceito? A opinião varia de pessoa para

pessoa, de lugar para lugar, de época para época. É instável, mutável, depende de cada um, de

seus gostos e preferências. O conceito, ao contrário, é uma verdade intemporal, universal e

necessária que o pensamento descobre, mostrando que é a essência universal, intemporal e

necessária de alguma coisa.

Por isso, Sócrates não perguntava se tal ou qual coisa era bela - pois nossa opinião

sobre ela pode variar - e sim: O que é a beleza? Qual é a essência ou o conceito do belo? Do

justo? Do amor? Da amizade?

Sócrates perguntava: Que razões rigorosas você possui para dizer o que diz e para

pensar o que pensa? Qual é o fundamento racional daquilo que você fala e pensa?

Ora, as perguntas de Sócrates se referiam a idéias, valores, práticas e comportamentos

que os atenienses julgavam certos e verdadeiros em si mesmos e por si mesmos. Ao fazer suas

perguntas e suscitar dúvidas, Sócrates os fazia pensar não só sobre si mesmos, mas também

sobre a polis. Aquilo que parecia evidente acabava sendo percebido como duvidoso e incerto.

Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento, pois o poder é mais forte se

ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e

nos fazem acreditar que elas são. Para os poderosos de Atenas, Sócrates tornara-se um perigo,

pois fazia a juventude pensar. Por isso, eles o acusaram de desrespeitar os deuses, corromper

os jovens e violar as leis. Levado perante a assembléia, Sócrates não se defendeu e foi

condenado a tomar um veneno - a cicuta - e obrigado a suicidar-se.

Por que Sócrates não se defendeu? ―Porque ‖, dizia ele, ―se eu me defender, estarei

aceitando as acusações, e eu não as aceito. Se eu me defender, o que os juízes vão exigir de

mim? Que eu pare de filosofar. Mas eu prefiro a morte a ter que renunciar à Filosofia‖.

O julgamento e a morte de Sócrates são narrados por Platão numa obra intitulada

Apologia de Sócrates, isto é, a defesa de Sócrates, feita por seus discípulos, contra Atenas.

Sócrates nunca escreveu. O que sabemos de seus pensamentos encontra-se nas obras

de seus vários discípulos, e Platão foi o mais importante deles. Se reunirmos o que esse

filósofo escreveu sobre os sofistas e sobre Sócrates, além da exposição de suas próprias

idéias, poderemos apresentar como características gerais do período socrático:

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? A Filosofia se volta para as questões humanas no plano da ação, dos

comportamentos, das idéias, das crenças, dos valores e, portanto, se preocupa com as questões

morais e políticas.

? O ponto de partida da Filosofia é a confiança no pensamento ou no homem como um

ser racional, capaz de conhecer-se a si mesmo e, portanto, capaz de reflexão. Reflexão é a

volta que o pensamento faz sobre si mesmo para conhecerse; é a consciência conhecendo-se a

si mesma como capacidade para conhecer as coisas, alcançando o conceito ou a essência

delas.

? Como se trata de conhecer a capacidade de conhecimento do homem, a preocupação

se volta para estabelecer procedimentos que nos garantam que encontramos a verdade, isto é,

o pensamento deve oferecer a si mesmo caminhos próprios, critérios próprios e meios

próprios para saber o que é o verdadeiro e como alcançá-lo em tudo o que investiguemos.

? A Filosofia está voltada para a definição das virtudes morais e das virtudes políticas,

tendo como objeto central de suas investigações a moral e a política, isto é, as idéias e práticas

que norteiam os comportamentos dos seres humanos tanto como indivíduos quanto como

cidadãos.

? Cabe à Filosofia, portanto, encontrar a definição, o conceito ou a essência dessas

virtudes, para além da variedade das opiniões, para além da multiplicidade das opiniões

contrárias e diferentes. As perguntas filosóficas se referem, assim, a valores como a justiça, a

coragem, a amizade, a piedade, o amor, a beleza, a temperança, a prudência, etc., que

constituem os ideais do sábio e do verdadeiro cidadão.

? É feita, pela primeira vez, uma separação radical entre, de um lado a opinião e as

imagens das coisas, trazidas pelos nossos órgãos dos sentidos, nossos hábitos, pelas

tradições, pelos interesses, e, de outro lado, as idéias. As idéias se referem à essência íntima,

invisível, verdadeira das coisas e só podem ser alcançadas pelo pensamento puro, que afasta

os dados sensoriais, os hábitos recebidos, os preconceitos, as opiniões.

? A reflexão e o trabalho do pensamento são tomados como uma purificação

intelectual, que permite ao espírito humano conhecer a verdade invisível, imutável, universal

e necessária.

? A opinião, as percepções e imagens sensoriais são consideradas falsas, mentirosas,

mutáveis, inconsistentes, contraditórias, devendo ser abandonadas para que o pensamento siga

seu caminho próprio no conhecimento verdadeiro.

? A diferença entre os sofistas, de um lado, e Sócrates e Platão, de outro, é dada pelo

fato de que os sofistas aceitam a validade das opiniões e das percepções sensoriais e

trabalham com elas para produzir argumentos de persuasão, enquanto Sócrates e Platão

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consideram as opiniões e as percepções sensoriais, ou imagens das coisas, como fonte de erro,

mentira e falsidade, formas imperfeitas do conhecimento que nunca alcançam a verdade plena

da realidade.

O mito da caverna

Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração,

seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo

que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente, não

podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que

alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se

passa no interior.

A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Entre ela e os

prisioneiros - no exterior, portanto - há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida

uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes. Ao longo dessa

mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos,

animais e todas as coisas.

Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na

parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as

próprias estatuetas, nem os homens que as transportam.

Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as

próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são

imagens (estatuetas de coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna.

Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam

que toda luminosidade possível é a que reina na caverna.

Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria um

prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria os outros seres

humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade,

começaria a caminhar, dirigi ndo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho

ascendente, nele adentraria.

Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a

luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se com a

claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho,

enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras

de imagens (as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora

está contemplando a própria realidade.

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Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna, ficaria

desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los.

Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não

acreditariam em suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas,

tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os

convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo. Mas, quem sabe, alguns

poderiam ouvi-lo e, contra a vontade dos demais, também decidissem sair da caverna rumo à

realidade.

O que é a caverna? O mundo em que vivemos. Que são as sombras das estatuetas? As

coisas materiais e sensoriais que percebemos. Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da

caverna? O filósofo. O que é a luz exterior do sol? A luz da verdade. O que é o mundo

exterior? O mundo das idéias verdadeiras ou da verdadeira realidade. Qual o instrumento que

liberta o filósofo e com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros? A dialética. O que é a

visão do mundo real iluminado? A Filosofia. Por que os prisioneiros zombam, espancam e

matam o filósofo (Platão está se referindo à condenação de Sócrates à morte pela assembléia

ateniense)? Porque imaginam que o mundo sensível é o mundo real e o único verdadeiro.

A preocupação com o conhecimento

O conhecimento e os primeiros filósofos

Quando estudamos o nascimento da Filosofia na Grécia, vimos que os primeiros

filósofos – os pré-socráticos – dedicavam-se a um conjunto de indagações principais: Por que

e como as coisas existem? O que é o mundo? Qual a origem da Natureza e quais as causas de

sua transformação? Essas indagações colocavam no centro a pergunta: o que é o Ser?

Os primeiros filósofos ocupavam-se com a origem e a ordem do mundo, o kosmos, e a

filosofia nascente era uma cosmologia. Pouco a pouco, passou-se a indagar o que era o

próprio kosmos, qual era o fundo eterno e imutável que permanecia sob a multiplicidade e

transformação das coisas. Qual era e o que era o ser subjacente a todos os seres. Com isto, a

filosofia nascente tornou-se ontologia, isto é, conhecimento ou saber sobre o ser.

Por esse mesmo motivo, considera-se que os primeiros filósofos não tinham uma

preocupação principal com o conhecimento enquanto conhecimento, isto é, não indagavam se

podemos ou não conhecer o Ser, mas partiam da pressuposição de que o podemos conhecer,

pois a verdade, sendo aletheia, isto é, presença e manifestação das coisas para os nossos

sentidos e para o nosso pensamento, significa que o Ser está manifesto e presente para nós e,

portanto, nós o podemos conhecer.

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Todavia, a opinião de que os primeiros filósofos não se preocupavam com nossa

capacidade e possibilidade de conhecimento não é exata. Para tanto, basta levarmos em conta

o fato de afirmarem que a realidade (o Ser, a Natureza) é racional e que a podemos conhecer

porque também somos racionais; nossa razão é parte da racionalidade do mundo, dela

participando.

Heráclito, Parmênides e Demócrito

Alguns exemplos indicam a existência da preocupação dos primeiros filósofos com o

conhecimento e, aqui, tomaremos três: Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eléia e Demócrito

de Abdera.

Heráclito de Éfeso considerava a Natureza (o mundo, a realidade) como um ―fluxo

perpétuo ‖, o escoamento contínuo dos seres em mudança perpétua. Dizia: ―Não podemos

banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca

somos os mesmos‖. Comparava o mundo à chama de uma vela que queima sem cessar,

transformando a cera em fogo, o fogo em fumaça e a fumaça em ar. O dia se torna noite, o

verão se torna outono, o novo fica velho, o quente esfria, o úmido seca, tudo se transforma no

seu contrário.

A realidade, para Heráclito, é a harmonia dos contrários, que não cessam de se

transformar uns nos outros. Se tudo não cessa de se transformar perenemente, como explicar

que nossa percepção nos ofereça as coisas como se fossem estáveis, duradouras e

permanentes? Com essa pergunta o filósofo indicava a diferença entre o conhecimento que

nossos sentidos nos oferecem e o conhecimento que nosso pensamento alcança, pois nossos

sentidos nos oferecem a imagem da estabilidade e nosso pensamento alcança a verdade como

mudança contínua.

Parmênides de Eléia colocava-se na posição oposta à de Heráclito. Dizia que só

podemos pensar sobre aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, isto é, que o

pensamento não pode pensar sobre as coisas que são e não são, que ora são de um modo e ora

são de outro, que são contrárias a si mesmas e contraditórias.

Conhecer é alcançar o idêntico, imutável. Nossos sentidos nos oferecem a imagem de

um mundo em incessante mudança, num fluxo perpétuo, onde nada permanece idêntico a si

mesmo: o dia vira noite, o inverno vira primavera, o doce se torna amargo, o pequeno vira

grande, o grande diminui, o doce amarga, o quente esfria, o frio se aquece, o líquido vira

vapor ou vira sólido.

Como pensar o que é e o que não é ao mesmo tempo? Como pensar o instável? Como

pensar o que se torna oposto e contrário a si mesmo? Não é possível, dizia Parmênides. Pensar

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é dizer o que um ser é em sua identidade profunda e permanente. Com isso, afirmava o

mesmo que Heráclito – perceber e pensar são diferentes -, mas o dizia no sentido oposto ao de

Heráclito, isto é, percebemos mudanças impensáveis e devemos pensar identidades imutáveis.

Demócrito de Abdera desenvolveu uma teoria sobre o Ser ou sobre a Natureza

conhecida com o nome de atomismo: a realidade é constituída por átomos. Os seres surgem

por composição dos átomos, transformam-se por novos arranjos dos átomos e morrem por

separação dos átomos.

Os átomos, para Demócrito, possuem formas e consistências diferentes (redondos,

triangulares, lisos, duros, moles, rugosos, pontiagudos, etc.) e essas diferenças e os diferentes

modos de combinação entre eles produzem a variedade de seres, suas mudanças e

desaparições. Através de nossos órgãos dos sentidos, percebemos o quente e o frio, o doce e o

amargo, o seco e o úmido, o grande e o pequeno, o duro e o mole, sabores, odores, texturas, o

agradável e o desagradável, sentimos prazer e dor, porque percebemos os efeitos das

combinações dos átomos que, em si mesmos, não possuem tais qualidades.

Somente o pensamento pode conhecer os átomos, que são invisíveis para nossa

percepção sensorial. Dessa maneira, Demócrito concordava com Heráclito e Parmênides em

que há uma diferença entre o que conhecemos através de nossa percepção e o que

conhecemos apenas pelo pensamento; porém, diversamente dos outros dois filósofos, não

considerava a percepção ilusória, mas apenas um efeito da realidade sobre nós. O

conhecimento sensorial ou sensível é tão verdadeiro quanto aquilo que o pensamento puro

alcança, embora de uma verdade diferente e menos profunda ou menos relevante do que

aquela alcançada pelo puro pensamento.

Esses três exemplos nos mostram que, desde os seus começos, a Filosofia preocupou-

se com o problema do conhecimento, pois sempre esteve voltada para a questão do

verdadeiro. Desde o início, os filósofos se deram conta de que nosso pensamento parece

seguir certas leis ou regras para conhecer as coisas e que há uma diferença entre perceber e

pensar. Pensamos a partir do que percebemos ou pensamos negando o que percebemos? O

pensamento continua, nega ou corrige a percepção? O modo como os seres nos aparecem é o

modo como os seres realmente são?

Sócrates e os sofistas

Preocupações como essas levaram, na Grécia clássica, a duas atitudes filosóficas: a

dos sofistas e a de Sócrates – com eles, os problemas do conhecimento tornaram-se centrais.

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Os sofistas, diante da pluralidade e do antagonismo das filosofias anteriores, ou dos

conflitos entre as várias ontologias, concluíram que não podemos conhecer o Ser, mas só

podemos ter opiniões subjetivas sobre a realidade.

Por isso, para se relacionarem com o mundo e com os outros humanos, os homens

devem valer-se de um outro instrumento – a linguagem – para persuadir os outros de suas

próprias idéias e opiniões. A verdade é uma questão de opinião e de persuasão, e a linguagem

é mais importante do que a percepção e o pensamento.

Em contrapartida, Sócrates, distanciando-se dos primeiros filósofos e opondo-se aos

sofistas, afirmava que a verdade pode ser conhecida, mas primeiro devemos afastar as ilusões

dos sentidos e as das palavras ou das opiniões e alcançar a verdade apenas pelo pensamento.

Os sentidos nos dão as aparências das coisas e as palavras, meras opiniões sobre elas.

Conhecer é passar da aparência à essência, da opinião ao conceito, do ponto de vista

individual à idéia universal de cada um dos seres e de cada um dos valores da vida moral e

política.

Platão e Aristóteles

Sócrates fez a Filosofia preocupar-se com nossa possibilidade de conhecer e indagar

quais as causas das ilusões, dos erros e da mentira. No esforço para definir as formas de

conhecer e as diferenças entre o conhecimento verdadeiro e a ilusão, Platão e Aristóteles

introduziram na Filosofia a idéia de que existem diferentes maneiras de conhecer ou graus de

conhecimento e que esses graus se distinguem pela ausência ou presença do verdadeiro, pela

ausência ou presença do falso.

Platão distingue quatro formas ou graus de conhecimento, que vão do grau inferior ao

superior: crença, opinião, raciocínio e intuição intelectual. Para ele, os dois primeiros graus

devem ser afastados da Filosofia – são conhecimentos ilusórios ou das aparências, como os

dos prisioneiros da caverna – e somente os dois últimos devem ser considerados válidos. O

raciocínio treina e exercita nosso pensamento, preparando-o para uma purificação intelectual

que lhe permitirá alcançar uma intuição das idéias ou das essências que formam a realidade ou

que constituem o Ser.

Para Platão, o primeiro exemplo do conhecimento puramente intelectual e perfeito

encontra-se na matemática, cujas idéias nada devem aos órgãos dos sentidos e não se reduzem

a meras opiniões subjetivas. O conhecimento matemático seria a melhor preparação do

pensamento para chegar à intuição intelectual das idéias verdadeiras, que constituem a

verdadeira realidade.

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Platão diferencia e separa radicalmente duas formas de conhecimento: o conhecimento

sensível (crença e opinião) e o conhecimento intelectual (raciocínio e intuição) afirmando que

somente o segundo alcança o Ser e a verdade. O conhecimento sensível alcança a mera

aparência das coisas, o conhecimento intelectual alcança a essência das coisas, as idéias.

Aristóteles distingue sete formas ou graus de conhecimento: sensação, percepção,

imaginação, memória, raciocínio e intuição. Para ele, ao contrário de Platão, nosso

conhecimento vai sendo formado e enriquecido por acumulação das informações trazidas por

todos os graus, de modo que, em lugar de uma ruptura entre o conhecimento sensível e o

intelectual, Aristóteles estabelece uma continuidade entre eles.

A separação se dá entre os seis primeiros graus e o último, ou a intuição, que é

puramente intelectual ou um ato do pensamento puro. Essa separação, porém, não significa

que os outros graus ofereçam conhecimentos ilusórios ou falsos e sim que oferecem tipos de

conhecimentos diferentes, que vão de um grau menor a um grau maior de verdade.

Em cada um deles temos acesso a um aspecto do Ser ou da realidade e, na intuição

intelectual, temos o conhecimento pleno e total da realidade ou dos princípios da realidade

plena e total, aquilo que Aristóteles chamava de ―o Ser enquanto Ser‖.

A diferença entre os seis primeiros graus e o último decorre da diferença do objeto do

conhecimento, isto é, os seis primeiros graus conhecem objetos que se oferecem a nós na

sensação, na imaginação, no raciocínio, enquanto o sétimo lida com um objeto que só pode

ser alcançado pelo pensamento puro.

Princípios gerais

Com os filósofos gregos, estabeleceram-se alguns princípios gerais do conhecimento

verdadeiro:

? as fontes e as formas do conhecimento: sensação, percepção, imaginação, memória,

linguage m, raciocínio e intuição intelectual;

? a distinção entre o conhecimento sensível e o conhecimento intelectual;

? o papel da linguagem no conhecimento;

? a diferença entre opinião e saber;

? a diferença entre aparência e essência;

? a definição dos princípios do pensamento verdadeiro (identidade, não contradição,

terceiro excluído, causalidade), da forma do conhecimento verdadeiro (idéias, conceitos e

juízos) e dos procedimentos para alcançar o conhecimento verdadeiro (indução, dedução,

intuição);

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? a distinção dos campos do conhecimento verdadeiro, sistematizados por Aristóteles

em três ramos: teorético (referente aos seres que apenas podemos contemplar ou observar,

sem agir sobre eles ou neles interferir), prático (referente às ações humanas: ética, política e

economia) e técnico (referente à fabricação e ao trabalho humano, que pode interferir no

curso da Natureza, criar instrumentos ou artefatos: medicina, artesanato, arquitetura, poesia,

retórica, etc.).

Para os gregos, a realidade é a Natureza e dela fazem parte os humanos e as

instituições humanas. Por sua participação na Natureza, os humanos podem conhecê-la, pois

são feitos dos mesmos elementos que ela e participam da mesma inteligência que a habita e

dirige.

O poeta alemão Goethe criou estes versos, que exprimem como os antigos concebiam

o conhecimento:

Se os olhos não fossem solares

Jamais o Sol nós veríamos;

Se em nós não estivesse a própria força divina,

Como o divino sentiríamos?

O intelecto humano conhece a inteligibilidade do mundo, alcança a racionalidade do

real e pode pensar a realidade porque nós e ela somos feitos da mesma maneira, com os

mesmos elementos e com a mesma inteligência.

Os filósofos modernos e o nascimento da teoria do conhecimento

Quando se diz que a teoria do conhecimento tornou-se uma disciplina específica da

Filosofia somente com os filósofos modernos (a partir do século XVII) não se pretende dizer

que antes deles o problema do conhecimento não havia ocupado outros filósofos, e sim que,

para os modernos, a questão do conhecimento foi considerada anterior à da ontologia e pré-

condição ou pré-requisito para a Filosofia e as ciências.

Por que essa mudança de perspectiva dos gregos para os modernos? Porque entre eles

instala-se o cristianismo, trazendo problemas que os antigos filósofos desconheciam.

A perspectiva cristã introduziu algumas distinções que romperam com a idéia grega de

uma participação direta e harmoniosa entre o nosso intelecto e a verdade, nosso ser e o

mundo. O cristianismo fez distinção entre fé e razão, verdades reveladas e verdades racionais,

matéria e espírito, corpo e alma; afirmou que o erro e a ilusão são parte da natureza humana

em decorrência do caráter pervertido de nossa vontade, após o pecado original.

Em consequência, a Filosofia precisou enfrentar três problemas no vos:

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1. Como, sendo seres decaídos e pervertidos, podemos conhecer a verdade?

2. Sendo nossa natureza dupla (matéria e espírito), como nossa inteligência pode

conhecer o que é diferente dela? Isto é, como seres corporais podem conhecer o incorporal

(Deus) e como seres dotados de alma incorpórea podem conhecer o corpóreo (mundo)?

3. Os filósofos antigos consideravam que éramos entes participantes de todas as

formas de realidade: por nosso corpo, participamos da Natureza; por nossa alma, participamos

da Inteligência divina. O cristianismo, ao introduzir a noção de pecado original, introduziu a

separação radical entre os humanos (pervertidos e finitos) e a divindade (perfeita e infinita).

Com isso, fez surgir a pergunta: como o finito (humano) pode conhecer a verdade (infinita e

divina)?

Eis porque, durante toda a Idade Média, a fé tornou-se central para a Filosofia, pois era

através dela que essas perguntas eram respondidas. Auxiliada pela graça divina, a fé

iluminava nosso intelecto e guiava nossa vontade, permitindo à nossa razão o conhecimento

do que está ao seu alcance, ao mesmo tempo em que nossa alma recebia os mistérios da

revelação. A fé nos fazia saber (mesmo que não pudéssemos compreender como isso era

possível) que, pela vontade soberana de Deus, era concedido à nossa alma imaterial conhecer

as coisas materiais.

Os filósofos modernos, porém, não aceitaram essas respostas e por esse motivo a

questão do conhecimento tornou-se central para eles.

Os gregos se surpreendiam que pudesse haver erro, ilusão e mentira. Como a verdade

– aletheia – era concebida como presença e manifestação do verdadeiro aos nossos sentidos

ou ao nosso intelecto, isto é, como presença do Ser à nossa experiência sensível ou ao puro

pensamento, a pergunta filosófica só podia ser:

Como é possível o erro ou a ilusão? Ou seja, como é possível ver o que não é, dizer o

que não é, pensar o que não é?

Para os modernos, a situação é exatamente contrária. Se a verdade depende da

revelação e da vontade divinas, e se nosso intelecto foi pervertido pela nossa vontade

pecadora, como podemos conhecer a verdade? Se a verdade depender da fé e se depender da

fraqueza da nossa vontade, como nossa razão poderá conhecê-la?

O cristianismo, particularmente com santo Agostinho, trouxe a idéia de que cada ser

humano é uma pessoa. Essa idéia vem do Direito Romano, que define a pessoa como um

sujeito de direitos e de deveres. Se somos pessoas, somos responsáveis por nossos atos e

pensamentos. Nossa pessoa é nossa consciência, que é nossa alma dotada de vontade,

imaginação, memória e inteligência.

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A vontade é livre e, aprisionada num corpo passional e fraco, pode mergulhar nossa

alma na ilusão e no erro. Estar no erro ou na verdade dependerá, portanto, de nós mesmos e

por isso precisamos saber se podemos ou não conhecer a verdade e em que condições tal

conhecimento é possível. Os primeiros filósofos cristãos e os medievais afirmavam que

podemos conhecer a verdade, desde que a razão não contradiga a fé e se submeta a ela no

tocante às verdades últimas e principais.

A primeira tarefa que os modernos se deram foi a de separar fé de razão, considerando

cada uma delas destinada a conhecimentos diferentes e sem qualquer relação entre si. A

segunda tarefa foi a de explicar como a almaconsciência, embora diferente dos corpos, pode

conhecê-los. Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os representa

intelectualmente por meio das idéias e estas são imateriais como a própria alma.

A terceira tarefa foi a de explicar como a razão e o pensamento podem tornar-se mais

fortes do que a vontade e controlá-la para que evite o erro. O problema do conhecimento

torna-se, portanto, crucial e a Filosofia precisa começar pelo exame da capacidade humana de

conhecer, pelo entendimento ou sujeito do conhecimento. A teoria do conhecimento volta-se

para a relação entre o pensamento e as coisas, a consciência (interior) e a realidade (exterior),

o entendimento e a realidade; em suma, o sujeito e o objeto do conhecimento.

Os dois filósofos que iniciam o exame da capacidade humana para o erro e a verdade

são o inglês Francis Bacon e o francês René Descartes. O filósofo que propõe, pela primeira

vez, uma teoria do conhecimento propriamente dita é o inglês John Locke. A partir do século

XVII, portanto, a teoria do conhecimento torna-se uma disciplina central da Filosofia.

Bacon e Descartes

Os gregos indagavam: como o erro é possível? Os modernos perguntaram: como

a verdade é possível? Para os gregos, a verdade era aletheia, para os modernos,

veritas. Em outras palavras, para os modernos trata-se de compreender e explicar como os

relatos mentais – nossas idéias – correspondem ao que se passa verdadeiramente na realidade.

Apesar dessas diferenças, os filósofos retomaram o modo de trabalhar filosoficamente

proposto por Sócrates, Platão e Aristóteles, qual seja, começar pelo exame das opiniões

contrárias e ilusórias para ultrapassálas em direção à verdade.

Antes de abordar o conhecimento verdadeiro, Bacon e Descartes examinaram

exaustivamente as causas e as formas do erro, inaugurando um estilo filosófico que

permanecerá na Filosofia, isto é, a análise dos preconceitos e do senso comum.

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Bacon elaborou uma teoria conhecida como a crítica dos ídolos (a palavra ídolo vem

do grego eidolon e significa imagem). Descartes, como já mencionamos, elaborou um método

de análise conhecido como dúvida metódica.

De acordo com Bacon, existem quatro tipos de ídolos ou de imagens que formam

opiniões cristalizadas e preconceitos, que impedem o conhecimento da verdade:

1. ídolos da caverna: as opiniões que se formam em nós por erros e defeitos de nossos

órgãos dos sentidos. São os mais fáceis de corrigir por nosso intelecto;

2. ídolos do fórum: são as opiniões que se formam em nós como conseqüência da

linguagem e de nossas relações com os outros. São difíceis de vencer, mas o intelecto tem

poder sobre eles;

3. ídolos do teatro: são as opiniões formadas em nós em decorrência dos poderes das

autoridades que nos impõem seus pontos de vista e os transformam em decretos e leis

inquestionáveis. Só podem ser refeitos se houver uma mudança social e política;

4. ídolos da tribo: são as opiniões que se formam em nós em decorrência de nossa

natureza humana; esses ídolos são próprios da espécie humana e só podem ser vencidos se

houver uma reforma da própria natureza humana.

Bacon acreditava que o avanço dos conhecimentos e das técnicas, as mudanças sociais

e políticas e o desenvolvimento das ciências e da Filosofia propiciariam uma grande reforma

do conhecimento humano, que seria também uma grande reforma na vida humana. Tanto

assim que, ao lado de suas obras filosóficas, escreveu uma obra filosófico-política, a Nova

Atlântida, na qual descreve e narra uma sociedade ideal e perfeita, nascida do conhecimento

verdadeiro e do desenvolvimento das técnicas.

Descartes localizava a origem do erro em duas atitudes que chamou de atitudes

infantis:

1. a prevenção, que é a facilidade com que nosso espírito se deixa levar pelas opiniões

e idéias alheias, sem se preocupar em verificar se são ou não verdadeiras. São as opiniões que

se cristalizam em nós sob a forma de preconceitos (colocados em nós por pais, professores,

livros, autoridades) e que escravizam nosso pensamento, impedindo-nos de pensar e de

investigar;

2. a precipitação, que é a facilidade e a velocidade com que nossa vontade nos faz

emitir juízos sobre as coisas antes de verificarmos se nossas idéias são ou não são verdadeiras.

São opiniões que emitimos em conseqüência de nossa vontade ser mais forte e poderosa do

que nosso intelecto. Originam-se no conhecimento sensível, na imaginação, na linguagem e

na memória.

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Como Bacon, Descartes também está convencido de que é possível vencer esses

efeitos, graças a uma reforma do entendimento e das ciências. (Descartes não pensa na

necessidade de mudanças sociais e políticas, diferindo de Bacon nesse aspecto.) Essa reforma

pode ser feita pelo sujeito do conhecimento, se este decidir e deliberar pela necessidade de

encontrar fundamentos seguros para o saber. Para isso Descartes criou um procedimento, a

dúvida metódica, pela qual o sujeito do conhecimento, analisando cada um de seus

conhecimentos, conhece e avalia as fontes e as causas de cada um, a forma e o conteúdo de

cada um, a falsidade e a verdade de cada um e encontra meios para livrar-se de tudo quanto

seja duvidoso perante o pensamento. Ao mesmo tempo, o pensamento oferece ao espírito um

conjunto de regras que deverão ser obedecidas para que um conhecimento seja considerado

verdadeiro.

Para Descartes, o conhecimento sensível (isto é, sensação, percepção, imaginação,

memória e linguagem) é a causa do erro e deve ser afastado. O conhecimento verdadeiro é

puramente intelectual, parte das idéias inatas e controla (por meio de regras) as investigações

filosóficas, científicas e técnicas.

Locke

Locke é o iniciador da teoria do conhecimento propriamente dita porque se propõe a

analisar cada uma das formas de conhecimento que possuímos, a origem de nossas idéias e

nossos discursos, a finalidade das teorias e as capacidades do sujeito cognoscente

relacionadas com os objetos que ele pode conhecer. Seguindo a trilha que fora aberta por

Aristóteles, Locke também distingue graus de conhecimento, começando pelas sensações até

chegar ao pensamento.

Comparemos o que escreveu Aristóteles, no início da Metafísica, e o que afirmou

Locke, no início do Ensaio sobre o entendimento humano.

Aristóteles escreveu:

Todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer. O prazer causado pelas sensações é a prova disso, pois, mesmo fora de qualquer utilidade, as

sensações nos agradam por si mesmas e, mais do que todas as outras, as

sensações visuais.

Locke afirmou:

Visto que o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis e

dá-lhe toda vantagem e todo domínio que tem sobre eles, seu estudo consiste certamente num tópico que, por sua nobreza, é merecedor de nosso trabalho

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de investigá-lo. O entendimento, como o olho, que nos faz ver e perceber

todas as outras coisas, não se observa a si mesmo; requer arte e esforço

situá-lo à distância e fazê-lo seu próprio objeto.

Assim como Aristóteles diferia de Platão, Locke difere de Descartes.

Platão e Descartes afastam a experiência sensível ou o conhecimento sensível do

conhecimento verdadeiro, que é puramente intelectual. Aristóteles e Locke consideram que o

conhecimento se realiza por graus contínuos, partindo da sensação até chegar às idéias.

Essa diferença de perspectiva estabelece as duas grandes orientações da teoria do

conhecimento, conhecidas como racionalismo e empirismo.

Para o racionalismo, a fonte do conhecimento verdadeiro é a razão operando por si

mesma, sem o auxílio da experiência sensível e controlando a própria experiência sensível.

Para o empirismo, a fonte de todo e qualquer conhecimento é a experiência sensível,

responsável pelas idéias da razão e controlando o trabalho da própria razão.

Essas diferenças, porém, não impedem que haja um elemento comum a todos os

filósofos a partir da modernidade, qual seja, tomar o entendimento humano como objeto da

investigação filosófica.

Tornar o entendimento objeto para si próprio, tornar o sujeito do conhecimento objeto

de conhecimento para si mesmo é a grande tarefa que a modernidade filosófica inaugura, ao

desenvolver a teoria do conhecimento. Como se trata da volta do conhecimento sobre si

mesmo para conhecer-se, ou do sujeito do conhecimento colocando-se como objeto para si

mesmo, a teoria do conhecimento é a reflexão filosófica.

TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM:

http://bahiapsicosocial.com.ar/biblioteca/Convite%20%20Filosofia%20-

%20Marilena%20Chaui.pdf

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ÉMILE DURKHEIM

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca)

Filloux, Jean-Claude.

Émile Durkheim / Jean-Claude Filloux; tradução:

Celso do Prado Ferraz de Carvalho, Miguel Henrique Russo. – Recife:

Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.

148 p.: il. – (Coleção Educadores)

Inclui bibliografia.

ISBN 978-85-7019-557-9

1. Durkheim, David Émile, 1858-1917. 2. Educação – Pensadores –

História. I. Título.

CDU 37

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Sistema social e subsistema escolar

Durkheim estudou essencialmente a ―socialização das jovens gerações‖ na escola,

dentro do ―sistema escolar‖ – que, às vezes, chama de ―a máquina‖. Trata-se de um órgão que

preenche uma função, mas que vai buscar sua significação nesse sistema global que é, por

exemplo, uma sociedade nacional. A originalidade de Durkheim foi a de mostrar que, apesar

desse ―subsistema‖ ser dependente do todo social, ele tem, mesmo assim, as características

estruturais próprias a todo sistema social, o que lhe dá uma ―autonomia relativa‖ e, como todo

sistema social, ele é simultaneamente submetido a forças de permanência e a forças de

mudança: forças de permanência que têm sua fonte no sistema de conjunto e forças de

mudança, em resposta às necessidades emergentes e que lhe são próprias.

A abordagem durkheimiana do subsistema escolar e de sua evolução, a seu ver

necessária, deve, portanto, ser compreendida em sua homologia com o modelo da dinâmica

social que elaborou. Convém lembrar as grandes linhas do modelo durkheimiano.

Neste, a noção de ―consciência coletiva‖ é central. Uma sociedade é feita de

indivíduos que ―conseguem viver‖ juntos porque têm em comum valores e regras,

parcialmente transmitidos pela escola. A sociedade, enquanto objeto construído pela

sociologia, não é nem transcendente, nem imanente aos indivíduos: ela tem uma

especificidade definida pelos parâmetros de integração (subordinação ao grupo) e de

regulação (reconhecimento de regras que controlam os comportamentos individuais).

Essa ―consciência coletiva‖ traduz-se em fenômenos coletivos, que vão do nível

propriamente psíquico das representaçõescoletivas ao das instituições e ao de um substrato

material (volume e densidade da população, vias de comunicação, edifícios etc.).

Durkheim recorre à metáfora da ―cristalização‖, para designar essa presença da

consciência coletiva em todos os setores da vida social. Aqui, é preciso particularizar dois

pontos: de uma parte, os ―patamares‖ das representações e das instituições comportam

aspectos tanto formalizados (ideologias constituídas, direito escrito), como não formalizados

(representações efervescentes, costumes); de outra parte, existem elos de causalidade, tanto no

sentido substrato-instituições-representações, como no sentido inverso: representações-

instituições-substrato.

É esse modelo de análise que permite a Durkheim colocar a problemática da mudança:

as representações coletivas novas que emergem tendem a traduzir-se em novas instituições,

bastando para tanto que essas representações correspondam a novas necessidades sociais.

Entra-se, então, em períodos nos quais devem ser resolvidos conflitos entre forças de

estagnação e forças de evolução. Assim, a intensificação da divisão do trabalho nas

sociedades modernas exige que se dê uma importância maior ao indivíduo, o que dá origem a

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ideologias ―individualistas‖, que, por sua vez, suscitam a emergência de instituições

protetoras dos ―direitos humanos‖.

Ora, segundo Durkheim, esse esquema geral vale também para o sistema escolar. O

sociólogo da educação poderá identificar, na constituição da escola e em um dado momento

da história, representações pedagógicas – algumas, formalizadas e outras, ―efervescentes‖ –,

instituições e, sem dúvida, um substrato (a organização da classe, a estrutura do colégio).

Essas três ―instâncias‖ estão evidentemente articuladas ao sistema da sociedade global,

porém, têm uma autonomia relativa, na medida em que todo sistema responde a necessidades

que lhe são próprias, – no caso, necessidades ―pedagógicas‖.

A esse respeito, um texto de 1905, que trata do ensino secundário, é bastante

significativo: ―Um sistema escolar, qualquer que seja, é formado por duas espécies de

elementos. De um lado, há todo um conjunto de disposições definidas e estáveis, de métodos

estabelecidos, ou seja, em uma palavra, de instituições; mas, ao mesmo tempo, dentro da

máquina assim constituída, há ideias que a trabalham e que a solicitam para que mude. Visto

do lado de fora, o ensino secundário apresenta-se a nós como um conjunto de

estabelecimentos, cuja organização material e moral está determinada; mas, de outro lado,

essa mesma organização abriga em si aspirações em busca de algo. Sob essa vida fixada,

consolidada, há uma vida em movimento que, por estar mais escondida, nem por isso deve ser

tratada com negligência.‖ (A Evolução e o Papel do Ensino Secundário na França, in

Educação e sociologia, 1905, p. 122).

Em seu curso, publicado com o título de A evolução pedagógica na França, Durkheim

utiliza uma grande análise que mostra como a história dos ensinos secundário e superior desde

a Idade Média está marcada por uma série de mudanças que correspondem, ao mesmo tempo,

a uma evolução política e econômica, ao aparecimento de mentalidades e de necessidades

novas e, na escala do sistema escolar afetado por essas mudanças, por novas aspirações

pedagógicas parcialmente autônomas. O panorama proposto por Durkheim nesse curso

mostra claramente que as ―renascenças pedagógicas‖ não refletem somente o contexto geral,

mas ilustram também a forma pela qual a escola assume as necessidades emergentes, ainda

não institucionalizadas, da sociedade política como um todo. É assim que os ―saberes

escolares‖, que constituem, numa dada época, o ―conteúdo‖ do ensino, podem dar origem a

―categorias de pensamento‖, que, por sua vez, influenciam a evolução das representações

coletivas de uma sociedade.

Dinâmica social e pedagógica

Se entendermos, com Durkheim, a pedagogia como sendo a teorização, implícita ou

explícita, da prática educativa, coloca-se, então, a questão de saber qual poderá ser a

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contribuição da ciência da educação para a pedagogia. Mais precisamente, em que aspecto a

sociologia da modernidade poderá influenciar não somente a análise do sistema educativo,

mas também as pedagogias que nele são praticadas?

O fato de que a sociedade moderna funda-se sobre uma industrialização e uma divisão

crescentes das tarefas traz como consequência uma diferenciação cada vez maior dos papéis

sociais, a especialização das funções sociais e, no fim, um risco de ruptura da ―solidariedade

social‖. Esse risco deve ser contrabalançado, diz Durkheim, pelo desenvolvimento dos valores

supremos, os que dizem respeito à legitimação dos direitos, à responsabilidade e à vocação

dos atores sociais.

Durkheim atual

Por outro lado, a abordagem sócio-histórica adotada por Durkheim em A evolução

pedagógica na França foi, de certa forma, retomada por historiadores, como Pierre Riché,

que considera que essa obra guarda ainda toda a sua atualidade13. Mas, pode-se falar, de uma

forma geral, da ―atualidade‖ de Durkheim, no duplo nível sociológico e pedagógico? Uma

leitura atual dos textos de Durkheim remete, com toda a evidência, a interrogações surgidas

no presente, particularmente as que se referem à educação moral. Sem dúvida, a confiança de

Durkheim no desenvolvimento inelutável dos valores humanistas nas sociedades modernas

pode, hoje, nos deixar perplexos,pois estamos confrontados a conflitos nos quais os

direitoshumanos são desacatados, porém, o próprio fato de que Durheim formulou –

implicitamente – o princípio de uma educação para os direitos humanos dá a seu pensamento

uma atualidade incontestável.

Num outro nível, poder-se-ia mostrar que ele orientou a pedagogia para uma tomada

de consciência da importância da classe, do meio escolar, das atitudes do mestre no processo

educativo: verdades ainda boas para serem ditas nos tempos atuais. Talvez também, as

contradições internas do pensamento durkheimiano sobre a educação, apontadas por nós (e

que Durkheim sabia assumir), notadamente no que se refere à problemática da ―autonomia da

vontade‖, nos ensinem que a educação não é uma coisa simples e não pode se submeter a

ideologias redutoras.

TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4657.pdf

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PEDAGOGIA DA AUTONOMIA Saberes Necessários à Prática Educativa

PAULO FREIRE

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Capítulo 1

1.3 - Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o

dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classes populares,

chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária - mas também, como

há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses

saberes em relação com o ensino dos conteúdos. Porque não aproveitar a experiência que tem

os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por

exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar das

populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Porque não há lixões no

coração dos bairros rios e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é

considerada em si demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz. É pergunta de

subversivo, dizem certos defensores da democracia.

Porque não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a

disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a

convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Porque não

estabelecer uma necessária "intimidade" entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos

e a experiência social que eles têm como indivíduos? Porque não discutir as implicações

políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes elas áreas pobres da cidade? A ética

de classe embutida neste descaso? Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a

escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os

conteúdos, transferí-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos.

1.4 - Ensinar exige criticidade

Não há para mim, na diferença e na "distancia" entre a ingenuidade e a criticidade,

entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente

rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em

que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser

curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade

epistemológica, metodicamente "rigorizando-se" na sua aproximação ao objeto, conota-se

seus achados de maior exatidão.

Na verdade, a curiosidade ingênua que, "desarmada", esta associada ao saber do senso

comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais

metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda de

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qualidade mas não de essência. A curiosidade de camponeses com quem tenho dialogado ao

longo de minha experiência político-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da violência

das injustiças, é a mesma curiosidade, enquanto abertura mais ou menos espantada diante de

"não-eus", com que cientistas ou filósofos acadêmicos, "admiram" o mundo. Os cientistas e

filósofos superam, porém, a ingenuidade da curiosidade do camponês e se tornam

epistemologicamente curiosos.

A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de

algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de

atenção que sugere e alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade

sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo

que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.

Como manifestação presente a experiência vital, a curiosidade humana vem sendo

histórica e socialmente construída e reconstruída. Precisamente por que a promoção da

ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da

prática educativa-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica,

insatisfeita, indócil. Curiosidade com que podemos nos defender "irracionalismos"

decorrentes do ou produzidos por certo excesso de "racionalidade" de nosso tempo altamente

tecnologizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de

negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrario é consideração de quem, de um lado, não

diviniza a tecnologia, mas, de outro, não há diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de

forma criticamente curiosa.

1.8 - Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática

O pensar certo sabe, por exemplo, que não é partir dele como um dado dado, que se

conforma a prática docente crítica, mas também que sem ele não se funda aquela. A prática

docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o

fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea,

"desarmada", indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a

que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito.

Este não é o saber que a rigorosidade do pensar certo procura. Por isso, é fundamental que, na

prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo

não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais

escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo

tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. É

preciso, por outro lado, reinsistir em que a matriz do pensar ingênuo como a do crítico é a

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curiosidade mesma, característica do fenômeno vital. Neste sentido, indubitavelmente, é tão

curioso o professor chamado leigo no interior de Pernambuco quanto o professor de Filosofia

da Educação na Universidade A ou B. o de que se precisa é possibilitar, que, voltando-se

sobre si mesma, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se

como tal, se vá tornando crítica.

Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o

da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que

se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica,

tem de ser tal modo concreto que quase se confunde com a prática. O seu "distanciamento"

epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise e maior comunicabilidade exercer

em torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, que quanto mais me

assumo como estou assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do

estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica. Não é possível a

assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para

mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente sujeito também.

Seria porém exagero idealista, afirma que a assunção, por exemplo, de que fumar

ameaça minha vida, já significa deixar de fumar. Mas deixar de fumar passa, em algum

sentido, pela assunção do risco que corro ao fumar. Por outro lado, a assunção se vai fazendo

cada vez mais assunção na medida em que ela engendra novas opções, por isso mesmo em

que ela provoca ruptura, decisão e novos compromissos. Quando assumo o mal ou os males

que o cigarro me pode causar, movo-me no sentido de evitar os males. Decido, rompo, opto.

Mas, é na prática de não fumar que a assunção do risco que corro por fumar se concretiza

materialmente.

Me parece que há ainda um elemento fundamental na assunção de que falo: o

emocional. Além do conhecimento que tenho do mal que o fumo me faz, tenho agora, na

assunção que dele faço, legítima raiva do fumo. E tenho também a alegria de ter tido a raiva

que, no fundo, ajudou que eu continuasse no mundo por mais tempo. Está errada a educação

que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as in justiças, contra a

deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente

formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em

raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade.

1.9 - Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural

É interessante estender mais um pouco a reflexão sobre a assunção. O verbo assumir é

um verbo transitivo e que pode ter como objeto que assim se assume. Eu tanto assumo risco

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que corro ao fumar quanto me assumo enquanto sujeito da própria assunção. Deixamos claro

que, quando digo ser fundamental para deixar de fumar a assunção de que fumar ameaça a

vida, com assunção eu quero sobretudo me referir ao conhecimento cabal que obtive do fumar

e de suas conseqüências. Outro sentido mais radical tem assunção ou assumir quando digo:

Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que

os educandos em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam

a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser

pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva

porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto.

A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a "outredade" do "não eu",

ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu.

A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de

classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa

progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a

assunção de nos por nós mesmos. É isso que o puro treinamento do professor não faz,

perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmática visão do processo.

A experiência histórica, política, cultural e social dos homens e das mulheres jamais

poder se dar "virgem" do conflito entre as forças que obstaculizam a busca da assunção de si

por parte dos indivíduos e dos grupos e das forças em favor daquela assunção. A formação

docente que se julgue superior a essas "intrigas" não faz outra coisa senão trabalhar em favor

dos obstáculos. A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade

menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem a formação

democrática ema prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é

incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam

donos da verdade e do saber articulado.

Às vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um

simples gesto do professor. O que pode um gesto aparentemente insignificante valer como

força formadora ou como contribuição à do educando por si mesmo. Nunca me esqueço, na

história já longa de minha memória, de um desses gestos de professor que tive na

adolescência remota. Gesto cuja significação mais profunda talvez tenha passado

despercebida por ele, o professor, e que teve importante influencia sobre mim. Estava sendo,

então, um adolescente inseguro, vendo-me como um corpo anguloso e feio, percebendo-me

menos capaz do que os outros, fortemente incerto de minhas possibilidades. Era muito mais

mal-humorado que apaziguado com a vida. Facilmente me eriçava. Qualquer consideração

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feita por um colega rico da classe já me parecia o chamamento à atenção de minhas

fragilidades, de minha insegurança.

O professor trouxera de casa os nossos trabalhos escolares e, chamando-nos um a um,

devolvia-os com o ser ajuizamento. Em certo momento me chama e, olhando ou re-olhando o

meu texto, sem dizer palavra, balança e cabeça numa demonstração de respeito e de

consideração. O gesto do professor valeu mais do que a própria nota dez que atribuiu à minha

redação. O gesto do professor me trazia uma confiança ainda obviamente desconfiada de que

era possível trabalhar e produzir. De que era possível confiar em mim mas que seria tão

errado confiar além dos limites quanto errado estava sendo não confiar.

Este saber, o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas tramas

do espaço escolar, é algo sobre que teríamos de refletir seriamente. É uma pena que o caráter

socializante da escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou

deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos,

ensino, lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber. Creio que uma

das razoes que explicam este caso em trono do que ocorre no espaço-tempo da escola, que não

seja a atividade ensinante, vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e do que é

aprender. No fundo, passa despercebido a nós que foi aprendendo socialmente que mulheres e

homens, historicamente, descobriram que é possível ensinar. Se tivesse claro para nós que foi

aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a

importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das

escolas nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo,

de pessoal docente se cruzam cheios de significação. Há uma natureza testemunhal nos

espaços tão lamentavelmente relegados das escolas. Em A Educação na cidade chamei a

atenção para esta importância quando discuti o estado em que a administração de Luiza

Erundina encontrou a rede escolar da cidade de São Paulo em 1989. O descaso pelas

condições materiais das escolas alcançava níveis impensáveis. Nas minhas primeiras visitas à

rede quase devastada eu me perguntava horrorizado: Como cobrar das crianças um mínimo de

respeito às carteiras escolares, à mesa, às paredes se o Poder Público revela absoluta

desconsideração à coisa publica? É incrível que não imaginemos a significação do "discurso"

formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloqüência do discurso

"pronunciado" na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas

flores que adornam. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço.

Pormenores assim da cotidianeidade do professor, portanto igualmente do aluno, a que

quase sempre pouca ou nenhuma atenção se dá, têm na verdade um peso significativo na

avaliação da experiência docente. O que importa, na formação docente, não é a repetição

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mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das

emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser

"educado", vai gerando a coragem.

Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do

exercício da criatividade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade

epistemológica, e do outro, sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da

afetividade, da intuição ou adivinhação. Conhecer não é, de fato, adivinhar, com intuir. O

importante, não resta dúvida, é não pararmos satisfeitos ao nível das intuições, mas submetê-

las à análise metodicamente rigorosa de nossa curiosidade epistemológica.

Capítulo 2

Ensinar não é transferir conhecimento

As considerações ou reflexões até agora vêm sendo desdobramentos de um primeiro

saber inicialmente apontado como necessário à formação docente, numa perspectiva

progressista. Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para

a sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar

sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições, um

ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho - a ele ensinar e não a de

transferir conhecimento.

É preciso insistir: este saber necessário ao professor - que ensinar não é transferir

conhecimento - não apenas precisa ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razoes

de ser - ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa ser

constantemente testemunhado, vivido.

Como professor num curso de formação docente não posso esgotar minha prática

discursando cobre a Teoria da não extensão do conhecimento. Não posso apenas falar bonito

sobre as razoes ontológicas, epistemológicas e políticas da Teoria. O meu discurso sobre a

Teoria deve ser o exemplo concreto, prático, da teoria. Sua encarnação. Ao falar da

construção do conhecimento, criticando a sua extensão, já devo estar envolvido nela, e nela, a

construção, estar envolvendo os alunos.

Fora disso, me emaranho na rede das contradições em que meu testemunho,

inautêntico, perde eficácia. Torno-me não falso quanto quem pretende estimular o clima

democrático na escola por meios e caminhos autoritários. Tão fingido quanto quem diz

combater o racismo mas, perguntando se conhece Madalena, diz: "Conheço-a é negra mas é

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competente e decente." Jamais ouvi ninguém dizer que conhece Célia, que ela é loura, de

olhos azuis, mas é competente e decente. No discurso perfilado de Madalena, negra, sabe a

conjunção adversativa mas, no que contorna Célia, loura de olhos azuis, a conjunção

adversativa é um não-senso. A compreensão do papel das conjunções que, ligando sentenças

entre si, impregnam a relação que estabelecem de certo sentido, o de causalidade, falo porque

recuso o silêncio, de adversidade, tentaram domina-lo mas não conseguiram, o de finalidade,

Pedro lutou para que ficasse clara a sua posição, o de integração, Pedro sabia que ela voltaria,

não é suficiente para explicar o uso da adversativa mas na relação entre a sentença Madalena

é negra e Madalena é competente e docente. A conjunção mas aí, implica um juízo falso,

ideológico: sendo negra, espera-se que Madalena nem seja competente nem decente. Ao

reconhecer-se, porém, sua decência e sua competência a conjunção mas se tornou

indispensável. No caso de Célia, é um disparate que, sendo loura de olhos azuis não seja

competente e decente. Daí o não-senso da adversativa. A razão é ideológica e não gramatical.

Pensar certo - e saber que ensinar não é transferir conhecimento é fundamentalmente

pensar certo - é uma postura exigente, difícil, às vezes penosa, que temos de assumir diante

dos outros e com os outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos. É difícil, não

porque pensar certo seja forma própria de pensar de santos e de anjos e a que nós

arrogantemente aspirássemos. É difícil, entre outras coisas, pela vigilância constante que

temos de exercer sobre nós próprios para evitar os simplismos, as facilidades, as incoerências

grosseiras. É difícil porque nem sempre temos o valor indispensável pêra não permitir que a

raiva que podemos ter de alguém vire raivosidade que gera um pensar errado e falso. Por mais

que me desagrade uma pessoa não posso menosprezá-la com um discurso em que, cheio de

mim mesmo, decreto sua incompetência absoluta. Discurso em que, cheio de mim mesmo,

trato-a com desdém, do alto de minha falsa superioridade. A mim não me dá raiva mas pena

quando pessoas assim raivosas, arvoradas em figuras de gênio, me minimizam e destratam.

É cansativo, por exemplo, viver a humildade, condição "sine qua" do pensar certo, que

nos faz proclamar o nosso próprio equívoco, que nos faz reconhecer e anunciar a superação

que sofremos.

O clima do pensar certo não tem nada que ver com o das formulas preestabelecidas,

mas seria a negação do pensar certo se pretendêssemos forja-lo na atmosfera da licenciosidade

ou do espontaneísmo. Sem rigorosidade metódica não há pensar certo.

2.1 - Ensinar exige consciência do inacabamento

Como professor crítico, sou um "aventureiro" responsável, predisposto à mudança, à

aceitação diferente. Nada do que experimentei em minha atividade docente deve

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necessariamente repetir-se. Repito, porém, como inevitável, a franquia de mim mesmo,

radical, diante dos outros e do mundo. Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo é a

maneira radical como me experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente

do inacabamento.

Aqui chegamos a ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do inacabamento de

ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência

vital. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se

tornou consciente. A invenção da existência a partir dos materiais que a vida oferecia levou

homens e mulheres a promover o suporte em que os outros animais continuam, em mundo.

Seu mundo, mundo dos homens e das mulheres. A experiência humana no mundo muda de

qualidade com relação à vida animal no suporte. O suporte é o espaço, restrito ou alongado, a

que o animal se prende "afetivamente" tanto quanto para resistir, é o espaço necessário a seu

crescimento e que delimita seu domínio. É o espaço em que, treinando, adestrado, "aprende" a

sobreviver, a caçar, a atacar, a defender-se num tempo de dependência dos adultos

imensamente menos do que é necessário ao ser humano para as mesmas coisas. Quanto mais

cultural é o ser maior a sua infância, sua dependência de cuidados especais. Faltam ao

"movimento" dos outros animais no suporte a linguagem conceitual, a inteligibilidade do

próprio suporte de que resultaria inevitavelmente a comunicabilidade do inteligido, o espanto

diante da vida mesma, do que há nela de mistério. No suporte, os comportamentos dos

indivíduos têm sua explicação muito mais na espécie a que pertencem os indivíduos do que

neles mesmos. Falta-lhes liberdade de opção. Por isso, não se fala em ética entre os elefantes.

A vida no suporte não implica a linguagem nem a postura ereta que permitiu a

liberação das mãos. Mãos que, em grande medida, nos fizeram. Quanto maior se foi tornando

a solidariedade entre mentes e mãos, tanto mais o suporte foi virando mundo e a vida,

existência. O suporte veio fazendo-se mundo e a vida, existência, na proporção que o corpo

humano vira corpo consciente, captador, apreendedor, transformador, criador de beleza e não

"espaço" vazio a ser enchido por conteúdos.

A invenção da existência envolve, repita-se, necessariamente, a linguagem, a cultura, a

comunicação em níveis mais profundos e complexos do que o que ocorria e ocorre no

domínio da vida, a "espiritualização" do mundo, a possibilidade de embelezar como enfear o

mundo e tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos. Capazes de intervir no

mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes ações,

de dignificantes testemunhos, mas capazes também de impensáveis exemplos de baixeza e de

indignidade. Só os seres que se tornam éticos podem romper com a ética. Não se sabe de

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tigres africanos que tenham jogado bombas altamente destruidoras em "cidades" de tigres

asiáticos.

No momento em que os seres humanos, intervindo no suporte, foram criando o

mundo, inventando a linguagem, com que passaram a dar nome às coisas que faziam com a

ação sobre o mundo, na medida em que se foram habilitando a inteligir o mundo e criaram por

conseqüência a necessária comunicabilidade do inteligido, já não foi possível existir a não ser

disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e indignidade,

decência e o despudor, entre boniteza e a feiúra do mundo. Quem dizer, já não foi possível

existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. E tudo

isso nos traz de novo à imperiosidade da prática formadora, de natureza eminentemente ética.

E tudo isso nos traz de novo à radicalidade de esperança. Sei que as coisas podem até piorar,

mas sei também que é possível intervir para melhorá-las.

Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco,

irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que

serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja

de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente,

porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que meu

"destino" não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso

me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja

feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto

na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade.

2.3 - Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educado

Outro saber necessário à prática educativa, e que se funde na mesma raiz que acabo de

discutir - a da inconclusão do ser que se sabe inconcluso -, é o que fala do respeito decido à

autonomia do ser educando. Do educando criança, jovem ou adulto. Como educador, devo

estar constantemente advertido com relação a este respeito que implica igualmente o que devo

ter por mim mesmo. Não faz mal repetir afirmação varias vezes feita neste texto - o

inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos.

O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um

favor que podemos ou não conceder uns aos outros. Precisamente porque éticos podemos

desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para a sua negação, por isso é imprescindível

deixar claro que a possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação senão a de

transgressão. O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a

sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o

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professor que ironiza o aluno, que minimiza, que manda que "ele se ponha em seu lugar" ao

mais tênue sinal de sua rebeldia legitima, tanto quanto o professor que se exige do

cumprimento de seu dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência

formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa

existência. É neste sentido que o professor autoritário, que por isso mesmo afoga a liberdade

do educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto. Tanto quanto o

professor licencioso rompe com a radicalidade do ser humano - a de sua inconclusão

assumida em que se enraíza a eticidade. É neste sentido também que a dialogicidade

verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no

respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados,

assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos.

É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista ou

entendida como virtude, mas como ruptura com a decência. O que quero dizer é o seguinte:

que alguém se torne machista, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma como transgressor

da natureza humana. Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas ou

filosóficas para explicar a superioridade da branquitude sobre negritude, dos homens sobre as

mulheres, dos patrões sobre os empregados. Qualquer discriminação é imoral e lutar contar

ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A

boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar.

Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática

em tudo coerente com este saber.

2.5 - Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores

Se há algo que os educandos brasileiros precisam saber, desde a mais tenra idade, é

que a luta em favor do respeito aos educadores e à educação inclui que a briga por salários

menos imorais é um dever irrecusável e não só um direito deles. A luta dos professores em

defesa de seus direitos e de sua dignidade deve ser entendida como um momento importante

de sua prática docente, enquanto prática ética. Não é algo que vem de fora da atividade

docente, mas algo que dela faz parte. O combate em favor da dignidade da prática docente é

tão parte dela mesma quanto dela faz o respeito que o professor deve ter à identidade do

educando, à sua pessoa, a seus direito de ser. Um dos piores males que o poder público vem

fazendo a nós, no Brasil, historicamente, desde que a sociedade brasileira foi criada, é o de

fazer muitos de nós correr o risco de, a custo de tanto descaso pela educação publica,

existencialmente cansados, cair no indiferentismo fatalistamente cínico que leva ao

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cruzamento dos braços. "Não há o que fazer" é o discurso acomodado que não podemos

aceitar.

O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez,

que não devo agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e

da tolerância. Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da

real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu

desconhecimento? Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem

aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se

não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me

comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que

faço sob pena de não fazê-lo bem. Desrespeitando como gente no desprezo a que é relegada a

prática pedagógica não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por que exerce-

la mal. A minha resposta à ofensa à educação é a luta política, consciente, crítica e organizada

contra os ofensores. Aceito até abandona-la, cansado, à procura de melhores dias. O que não é

possível é, ficando nela, avilta-la com o desdém de mim mesmo e dos educandos.

Uma das formas de luta contra o desrespeito dos poderes públicos pela educação, de

um lado, é a nossa recusa a transformar nossa atividade docente em puro bico, e de outro, a

nossa rejeição a entende-la e a exerce-la como prática afetiva de "tias e tios".

É como profissionais idôneos - na competência que se organiza politicamente está

talvez a maior força dos educadores - que eles e elas devem ver-se a si mesmos e a si mesmas.

É nesse sentido que os órgãos de classe deveriam priorizar o empenho de formação

permanente dos quadros do magistério como tarefa altamente política e repensar a eficácia das

greves. A questão que se coloca, obviamente, não é parar de lutar, mas reconhecendo-se que a

luta é uma categoria histórica, reinventar a forma também histórica de lutar.

2.6 - Ensinar exige apreensão da realidade

Outro saber fundamental à experiência educativa é o que se diz respeito à sua

natureza. Como professor preciso me mover com clareza na minha prática. Preciso conhecer

as diferentes dimensões que caracterizam a essência da prática, o que me pode tornar mais

seguro no meu próprio desempenho.

O melhor ponto de partida para estas reflexões é a inconclusão do ser humano de que

se tornou consciente. Como vimos, aí radica a nossa educabilidade bem como a nossa

inserção num permanente movimento de busca em que, curiosos e indagadores, não apenas

nos damos conta das coisas mas também delas podemos ter um conhecimento cabal. A

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capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar mas sobretudo para transformar a

realidade, para nela intervir, recriando-a, fala de nossa educabilidade e um nível distinto do

nível do adestramento dos outros animais ou do cultivo das plantas.

A nossa capacidade de aprender, de que decorre a de ensinar, sugere ou, mais do que

isso, implica a nossa habilidade de aprender a substantividade do objeto que nos é possível

reconstruir um mal aprendizado, o em que o aprendiz foi puro paciente da transferência do

conhecimento feita pelo educador.

Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos

capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em que aprender é uma aventura criadora,

algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para

nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à

aventura do espírito.

Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda prática educativa

demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina,

daí o seu cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e

aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu

caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a

prática educativa de ser política, de não poder ser neutra. Especificamente humana e educação

é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de meios, de técnicas,

envolve frustrações, medos, desejos. Exige de mim, como professor, uma competência geral,

um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à minha atividade docente.

Como professor, se minha opção é progressista e venho sendo coerente com ela, se

não me posso permitir a ingenuidade de pensar-me igual ao educando, de desconhecer a

especificidade da tarefa do professor, não posso, por outro lado, negar que o meu papel

fundamental é contribuir positivamente para que o educando vá sendo o artífice de sua

formação com a ajuda necessária do educador. Se trabalho com crianças, devo estar atento à

difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia, atento à responsabilidade de

minha presença que tanto pode ser auxiliadora como pode virar perturbadora da busca

inquieta dos educandos, se trabalho com jovens ou adultos, não menos atento devo estar com

relação a que o meu trabalho possa significar com estimulo ou não à ruptura necessária com

algo defeituosamente assentado e à espera de superação. Primordialmente, minha posição tem

de ser a de respeito à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar. Não posso negar-lhe ou

esconder-lhe minha postura mas não posso desconhecer o seu direito de rejeita-la. Em nome

do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir, por que ocultar a minha opção

política assumindo uma neutralidade que não existe. Esta, a omissão do professor em nome do

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respeito ao aluno, talvez seja a melhor maneira de desrespeita-lo. O meu papel, ao contrario, é

o de quem testemunha o direito de comparar, de escolher, de romper, de decidir e estimular a

assunção desde direito por parte dos educandos.

Recentemente, num encontro publico, um jovem recém-entrado na universidade me

disse cortesmente:

"Não entendo como o senhor defende os sem-terra, no fundo, uns baderneiros,

criadores de problemas".

"Pode haver baderneiros entre os sem-terra", disse, "mas sua luta é legitima e ética".

"Baderneira"é a resistência reacionária de quem se opõe a ferro e fogo à reforma

agrária. A moralidade e a desordem estão na manutenção de uma "ordem" injusta.

A conversa aparentemente morreu aí. O moço apertou minha mão em silêncio. Não sei

como terá "tratado" a questão depois, mas foi importante que tivesse dito o que pensava e que

tivesse ouvido de mim o que me parece justo que devesse ser dito.

É assim que venho tentando ser professor, assumindo minhas convicções, disponível

ao saber, sensível à boniteza da prática educativa, instigando por seus desafios que não lhe

permitem burocratizar-se, assumindo minhas limitações, acompanhadas sempre do esforço

por superá-las, limitações que não procuro esconder em nome mesmo do respeito que me

tenho e aos educandos.

2.8 - Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível

Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, chegando a favelas ou a realidades

marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se vá tornando

convivência, que seu estar no contexto vá virando estar com ele, é o saber do futuro como

problema e não como inexorabilidade. É o saber da História como possibilidade e não como

determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente,

interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não

é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de

ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da

História, da cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar. No próprio

mundo físico minha constatação não me leva à impotência.

O conhecimento sobre os terremotos desenvolveu toda uma engenharia que nos ajuda

a sobreviver a eles. Não podemos eliminá-los mas podemos diminuir os danos que nos

causam. Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa

incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de

nos adaptar a ela. É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição

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ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o

matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com

os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas.

A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha,

intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos

fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como

se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante

mundo, alheado de nós e nós dele.

Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?

Que sentido teria a atividade de Danilson no mundo que descortinávamos do pontilhão

se, para ele, estivesse decretado por um destino todo poderoso a impotência daquela gente

fustigada pela carência? Restaria a Danilson trabalhar apenas a possível melhora de

performance da população no processo irrecusável de sua adaptação à negação da vida. A

prática de Danilson seria assim o elogio da resignação. Porém na medida em que para ele,

como para mim, o futuro é problemático e não inexorável, outra tarefa se nos oferece. A de,

discutindo a problematicidade do amanhã, tornando-a tão óbvia quanto a carência de tudo na

favela, ir tornando igualmente óbvio que a adaptação à dor, à fome, ao desconforto, à falta de

higiene que o eu de cada um, como corpo e alma, experimenta é uma forma de resistência

física a que se vai juntando outra, a cultural. Resistência ao descaso ofensivo de que os

miseráveis são objetos. No fundo, as resistências - a orgânica e/ou a cultural dos oprimidos. O

sincretismo religioso afro-brasileiro expressa a resistência ou a manha com que a cultura

africana escrava se defendia do poder hegemônico do colonizador branco.

É preciso, porém, que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na

compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como expressão da

natureza humana em processo de estar sendo, fundamentos para a nossa resignação em face

das ofensas que nos destroem o ser. Não é na resignação mas na rebeldia em face das

injustiças que nos afirmamos.

Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas rebeldes

em posturas revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do

mundo. A rebeldia é ponto de partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é

suficiente. A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e

crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a

dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de superação, no fundo,

o nosso sonho.

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É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil mas é possível, que vamos

programar nossa ação político - pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos

comprometemos é de alfabetização de adultos ou de crianças, se de ação sanitária, se de

evangelização, se de formação de mão - de - obra técnica.

O êxito de educadores como Danilson está centralmente nesta certeza que jamais os

deixa de que é possível mudar, de que é preciso mudar, de que preservar situações concretas

de miséria é uma imoralidade. É assim que este saber que a História vem comprovando se

erige em princípio de ação e abre caminho à constituição, na prática, de outros saberes

indispensáveis.

Não se trata obviamente de impor à população expoliada e sofrida que se rebele, que

se mobilize, que se organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na

verdade - não importa se trabalhamos com alfabetização, com saúde, com evangelização ou

com todas elas - , de, simultaneamente com o trabalho específico de cada um desses campos,

desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda

injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais ainda, que sua situação concreta não é

destino certo ou vontade de Deus, algo que não pode ser mudado.

Não posso aceitar como tática do bom combate a política do quanto pior melhor, mas

não posso também aceitar, impassível, a política assistencialista que, anestesiando a

consciência oprimida, prorroga, "sine die", a necessária mudança da sociedade. Não posso

proibir que os oprimidos com quem trabalho numa favela votem em candidatos reacionários,

mas tenho o dever de adverti-los do erro que cometem, da contradição em que se emaranham.

Votar no político reacionário é ajudar a preservação do "status quo". Como posso votar, se

sou progressista e coerente com minha opção, num candidato em cujo discurso, faiscante de

desamor, anuncia seus projetos racistas?

Partindo de que a experiência da miséria é uma violência e não a expressão da

preguiça popular ou fruto da mestiçagem ou da vontade punitiva de Deus, violência contra

que devemos lutar, tenho, enquanto educador, de me ir tornando cada vez mais competente

sem o que a luta perderá eficácia. É que o saber de que falei - mudar é difícil mas é possível -,

que me empurra esperançoso à ação, não é suficiente para a eficácia necessária a que me

referi. Movendo-me enquanto nele fundado preciso ter e renovar saberes específicos em cujo

campo minha curiosidade se inquieta e minha prática se baseia. Como alfabetizar sem

conhecimentos precisos sobre a aquisição da linguagem, sobre linguagem e ideologia, sobre

técnicas e métodos do ensino da leitura e da escrita? Por outro lado, como trabalhar, não

importar em que campo, no da alfabetização, no da produção econômica em projetos

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cooperativos, no da evangelização ou no da saúde sem ir conhecendo as manhas com que os

grupos humanos produzem sua própria sobrevivência?

Como educador preciso de ri "lendo" cada vez melhor a leitura do mundo que os

grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu

é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações

políticos-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito.

Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo.

E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo "leitura do mundo" que

precede sempre a "leitura da palavra".

Se, de um lado, não posso me adaptar ou me "converter" ao saber ingênuo dos grupos

populares, de outro, não posso, se realmente progressista, impôr-lhes arrogantemente o meu

saber como o verdadeiro. O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua

história social como a experiência igualmente social de seus membros, vai revelando a

necessidade de superar certos saberes que, desnudados, vão mostrando sua "incompetência"

para explicar os fatos.

Um dos equívocos funestos de militantes políticos de prática messianicamente

autoritária foi sempre desconhecer totalmente a compreensão do mundo dos grupos populares.

Vendo-se como portadores da verdade salvadora, sua tarefa irrecusável não é propô-la mas

impô-la aos grupos populares.

Recentemente, ouvi de jovem operário num debate sobre a vida na favela que já se

fora o tempo em que ele tinha vergonha de ser favelado. "Agora", dizia, "me orgulho de nós

todos, companheiros e companheiras, do que temos feito através de nossa luta, de nossa

organização.. Não é o favelado que deve ter vergonha da condição de favelado mas quem,

vivendo bem e fácil, nada faz para mudar a realidade que causa a favela. Aprendi isso com a

luta". É possível que esse discurso do jovem operário não provocasse nada ou quase nada o

militante autoritariamente messiânico. É possível até que a reação do moço mais

revolucionarista do que revolucionário fosse negativa à fala do favelado, entendida como

expressão de quem se inclina mais para a acomodação do que para a luta. No fundo, o

discurso do jovem operário era a leitura nova que fazia de sua experiência social de favelado.

Se ontem se culpava, agora e tornava capaz de perceber que não era apenas responsabilidade

sua se achar naquela condição. Mas, sobretudo, se tornava capaz de perceber que a situação

de favelado não é irrevogável. Sua luta foi mais importante na constituição do seu novo saber

do que o discurso sectário do militante messianicamente autoritário.

É importante salientar que o novo momento na compreensão da vida social não é

exclusivo de uma pessoa. A experiência que possibilita o discurso novo é social. Uma pessoa

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ou, porém, se antecipa na explicitar da nova percepção da mesma realidade. Uma das tarefas

fundamentais do educador progressistas é, sensível à literatura e a releitura do grupo, provocá-

lo bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão do contexto.

É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a

inculcação nos dominados da responsabilidades por sua situação. Daí a culpa que sentem eles,

em determinado momento de suas relações com o seu contexto e com suas classes dominantes

por se acharem nesta ou naquela situação desvantajosa. É exemplar a resposta que recebi de

mulher sofrida, em São Francisco, Califórnia, numa instituição católica de assistência aos

pobres. Falava com dificuldade do problema que a afligia e eu, quase sem ter o que dizer,

afirmei indagando: Você é norte-americana, não é?

"Não. Sou pobre", respondeu como se estivesse pedindo desculpas à "norte-

americanidade" por seu insucesso na vida. Me lembro de seus olhos azuis marejados de

lágrimas expressando seu sofrimento e a assunção da cultura pelo seu "fracasso" no mundo.

Pessoas assim fazem parte das legiões de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua

dor na perversidade do sistema social, econômico, político em que vivem, mas na sua

incompetência. Enquanto sentirem assim, pensarem assim e agirem assim, reforçam o poder

do sistema. Se tornam coniventes da ordem desumanizante.

A alfabetização, por exemplo, numa área de miséria, só ganha sentido na dimensão

humana se, com ela, se realiza uma espécie de psicanálise histórico-político-social de que vá

resultando a extrojeção da culpa indevida. A isto corresponde a "expulsão" do opressor de

"dentro" do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa

de ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade. Saliente-se contudo que, não

obstante a relevância ética e política do esforço conscientizador que acabo de sublinhar, não

se pode parar nele, deixando-se relegado para um plano secundário o ensino da escrita e da

leitura da palavra. Não podemos, numa perspectiva democrática, transformar uma classe de

alfabetização num espaço em que se proíbe toda reflexão em torno da razão de ser dos fatos

nem tampouco num "comício libertador". A tarefa fundamental dos Danilson entre que me

situo é experimentar com intensidade a dialética entre "a leitura do mundo" e a "leitura da

palavra".

"Programados para aprender" e impossibilitados de viver sem a referência de um

amanhã, onde quer que haja mulheres e homens há sempre o que fazer, há sempre o que fazer,

há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender.

Nada disso, contudo, cobra sentido, para mim, se realizado contra a vocação para o

"ser mais", histórica e socialmente constituído-se, em que mulheres e homens nos achamos

inseridos.

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Capítulo 3

3.3 - Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo.

Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática

educativo-crítica é o de que, como experiência especificamente humana, a educação é uma

forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem

ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia

dominante quanto o seu esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu

desmascaramento. Dialética e contraditória, não poderia ser a educação só uma ou só a outra

dessas coisas. Nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia dominante.

Neutra, indiferente a qualquer destas hipóteses, a da reprodução da ideologia

dominante ou de sua contestação, a educação jamais foi, é, ou pode ser. È um erro decretá-la

como tarefa apenas reprodutora da ideologia dominante como erro é tomá-la como uma força

de desocultação da realidade, a atuar livremente, sem obstáculos e duras dificuldades. Erros

que implicam diretamente visões defeituosas da História e da consciência.

De um lado, a compreensão mecanicista da História, que reduz a consciência a puro

reflexo da materialidade, e de outro, o subjetivismo idealista, que hipertrofia o papel da

consciência no acontecer histórico. Nem somos, mulheres e homens, seres simplesmente

determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais,

históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e a que nos achamos referidos.

Do ponto de vista dos interesses dominantes, não há dúvida de que a educação deve

ser uma prática imobilizadora e ocultadora de verdades. Toda vez, porém, que a conjuntura o

exige, a educação dominante é progressista pela metade. As forças dominantes estimulam e

materializam avanços técnicos compreendidos e, tanto quanto possível, realizados de maneira

neutra. Seria demasiado ingênuo, até angelical de nossa parte, esperar que a bancada ruralista

aceitasse quieta e concordante a discussão, nas escolas rurais e mesmo urbanas do país, da

reforma agrária como projeto econômico, político e ético da maior importância para o próprio

desenvolvimento nacional. Isso é tarefa para educadoras e educadores progressistas cumprir,

dentro e fora das escolas. É tarefa para organizações não-governamentais, para sindicatos

democráticos realizar. Já não é ingênuo esperar, porém, que o empresariado que se moderniza,

progressista em face da truculência retrógrada dos ruralistas, se esvazia de humanismo quando

da confrontação entre o interesses humanos e os de mercado.

E é uma imoralidade, para mim, que se sobreponha, como se vem fazendo, aos

interesses radicalmente humanos, os do mercado.

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Continuo bem aberto à advertência de Marx, a da necessária radicalidade que me faz

sempre desperto a tudo o que diz respeito à defesa dos interesses humanos. Interesses

superiores aos de puros grupos ou de classes de gente.

Ao reconhecer que, precisamente porque nos tornamos seres capazes de observar, se

comparar, de avaliar, de escolher, de decidir, de intervir, de romper, de optar, nos fizemos

seres éticos e se abriu para nós a probabilidade de transgredir a ética, jamais poderia aceitar a

transgressão como direito mas como uma possibilidade. Possibilidade contra que devemos

lutar e não diante da qual cruzar os braços. Daí a minha recusa rigorosa aos fatalismos

quietistas que terminam por absorver as transgressões éticas em lugar de condená-las. Não

posso virar conivente de uma ordem perversa, irresponsabilizando-a por sua malvadez, ao

atribuir a força cegas e imponderáveis os danos por elas causados aos seres humanos.

A fome frente a frente à abastança e o desemprego no mundo são imoralidades e não

fatalidades como o reacionarismo apregoa com ares de quem sofre por nada poder fazer. O

que quero repetir, com força, e que nada justifica a minimização dos seres humanos, no caso

das maiorias compostas de minorias que não perceberam ainda que juntas seriam a maioria.

Nada, o avanço da ciência e/ou da tecnologia, pode legitimar uma ordem desordeira em que

só as minorias do poder esbanjam e gozam enquanto às maiorias em dificuldades até para

sobreviver se diz que a realidade é assim mesmo, que sua fome é uma fatalidade do fim do

século. Não junto a minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos

esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música.

Falo da resistência, da indignação, da justa ira dos traídos e dos enganados. Do seu direito e

do seu dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais

sofridas.

A ideologia fatalista do discurso e da política neoliberais de que venho falando é um

momento daquela desvalia acima referida dos interesses humanos em relação aos do mercado.

Dificilmente um empresário moderno concordaria com que seja direito de seu

operário, por exemplo, discutir durante o processo de sua alfabetização ou no

desenvolvimento de algum curso de aperfeiçoamento técnico, esta mesma ideologia a que me

venho referindo. Discutir, suponhamos, a afirmação: "O desemprego no mundo é uma

fatalidade do fim do século." E por que fazer a reforma agrária não é também um fatalidade?

E por que acabar com a fome e com a miséria não são igualmente fatalidades de que não se

pode fugir?

É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar o

máximo de sua eficácia técnica e não perder tempo com debates ideológicos que a nada

levam. O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se

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constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em favor da

recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana.

Naturalmente, reinsisto, o empresário moderno aceita, estimula e patrocina o treino

técnico de seu operário. O que ele necessariamente recusa é a sua formação que, envolvendo o

saber técnico e científico indispensável, fala de sua presença no mundo. Presença humana,

presença ética, aviltada toda vez que transformada em pura sombra.

Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra,

minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige

de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja

e a favor não importa o que. Não posso ser professor a favor simplesmente do homem ou da

humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática

educativa. Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o

autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de

direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de

discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou

professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura.

Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Sou professor contra o

desengano que me consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza de minha própria

prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este

saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado,

corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que

cansa mas não desiste. Boniteza que se esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo,

arrogante e desdenhoso dos alunos, não canso de me admirar.

Assim como não posso ser professor sem me achar capacitado para ensinar certo e

bem os conteúdos de minha disciplina não posso, por outro lado, reduzir minha prática

docente ao puro ensino daqueles conteúdos. Esse é um momento apenas de minha atividade

pedagógica. Tão importante quanto ele, o ensino dos conteúdos, é o meu testemunho ético ao

ensina-los. É a decência com que o faço. É a preparação científica revelada sem arrogância,

pelo contrário, com humildade. É o respeito jamais negado ao educando, a seu saber de

experiência feito que busco superar com ele. Tão importante quanto o ensino dos conteúdos é

a minha coerência entre o que digo, o que escrevo e o que faço.

É importante que os alunos percebam o esforço que faz o professor ou a professora

procurando sua coerência. É preciso também que este esforço seja de quando em vez

discutido na classe. Há situações em que a conduta da professora pode parecer aos alunos

contraditória. Isto se dá quase sempre quando o professor simplesmente exerce sua autoridade

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na coordenação das atividades na classe e parece seus alunos que ele, o professor, exorbitou

de seu poder. Às vezes, é o próprio professor que não está certo de ter realmente ultrapassado

o limite de sua autoridade ou não.

3.7 - Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica.

Saber igualmente fundamental à prática educativa do professor ou da professora é o

que diz respeito à força, às vezes maior do que pensamos. Da ideologia. É o que nos adverte

de suas manhas, das armadilhas em que nos faz cair. É que a ideologia tem que ver

diretamente com a ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar

ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna "míopes".

O poder da ideologia me faz pensar nessas manhãs orvalhadas de nevoeiro em que mal

vemos o perfil dos ciprestes como sombras que parecem muito mais manchas das sombras

mesmas. Sabemos que há algo metido na penumbra mais não o divisamos bem. A própria

"miopia" que nos acomete dificulta a percepção mais clara, mais nítida da sombra. Mais séria

ainda é a possibilidade que temos de docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos é o que

na verdade é, e não a verdade distorcida. A capacidade de penumbrar a realidade, de nos

"miopizar", de nos ensurdecer que tem a ideologia faz, por exemplo, a muitos de nós, aceitar

docilmente o discurso cinicamente fatalista neo-liberal que proclama ser o desemprego no

mundo uma desgraça do fim do século. Ou que os sonhos morreram e que o válido hoje é o

"pragmatismo" pedagógico, é o treino técnico-científico do educando e não sua formação de

que já não se fala. Formação que, incluindo a preparação técnico-científica, vai mais além

dela.

A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz às vezes mansamente aceitar

que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou de um destino que não

poderia se evitar, uma quase entidade metafísica e não um momento do desenvolvimento

econômico submetido, como toda produção econômica capitalista, a uma certa orientação

política ditada pelos interesses dos que detêm o poder. Fala-se, porém, em globalização da

economia como um momento necessário da economia mundial a que, por isso mesmo, não é

possível escapar. Universaliza-se um dado do sistema capitalista e um instante da vida

produtiva de certas economias capitalistas hegemônicas como se o Brasil, o México, a

Argentina devessem participar da globalização da economia da mesma forma que os Estados

Unidos, a Alemanha, o Japão. Pega-se o trem no meio do caminho e não se discutem as

condições anteriores e atuais das diferentes economias. Nivelam-se os patamares de deveres

entre as distintas economias sem se considerarem as distâncias que separam os "direitos" dos

fortes e o seu poder de usufruí-los e a fraqueza dos débeis para exercer os seus direitos. Se a

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globalização implica a superação de fronteiras, a abertura sem restrições ao livre comércio,

acabe-se então quem não puder resistir. Não se indaga, por exemplo, se em momentos

anteriores da produção capitalista nas sociedades que lideram a 'globalização hoje elas eram

radicais na abertura que consideram agora uma condição indispensável ao livre comércio.

Exigem, no momento, dos outros, o que não fizeram consigo mesmas. Uma das eficácias de

sua ideologia fatalista é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a

realidade é assim mesmo, de que não há nada a fazer mas a seguir a ordem natural dos fatos.

Pois é como algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se esforça por nos fazer

entender a globalização e não como uma produção histórica.

O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do

mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se

optarmos, na verdade, por um mundo de gente. O discurso da globalização astutamente oculta

ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, de

medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso ideológico da

globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e

verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no

neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca.

Espero, convencido de que chegará o tempo em que, passada a estupefação em face da

queda do muro de Berlim, o mundo se refará e recusará a ditadura do mercado, fundada na

perversidade de sua ética do lucro.

Não creio que as mulheres e os homens do mundo, independentemente até de suas

opções políticas, mas sabendo-se e assumindo-se como mulheres e homens, como gente, não

aprofundem o que hoje já existe como uma espécie de mal-estar que se generaliza em face da

maldade neoliberal. Mal-estar que determinará por consolidar-se numa rebeldia nova em que

a palavra crítica, o discurso humanista, o compromisso solidário, a denúncia veemente da

negação do homem e da mulher e o anúncio de um mundo "genteficado" serão armas de

incalculável alcance.

Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes

trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e

a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a dos à "fereza" da ética do mercado.

É neste sentido que jamais abandonei a minha preocupação primeira, que sempre me

acompanhou, desde os começos de minha experiência educativa. A preocupação com a

natureza humana a que devo a minha lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de ler Marx

já fazia minhas as palavras: já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses

humanos. Nenhuma teoria da transformação político-social do mundo me comove, sequer, se

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não parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da história e

por ela feitos, seres da decisão , da ruptura, da opção. Seres éticos, mesmo capazes de

transgredir a ética indispensável, algo de que tenho insistentemente "falado" neste texto.

Tenho afirmado e reafirmado o quanto realmente me alegra saber-me um ser condicionado

mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento. A grande força sobre que alicerçar-se a

nova rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo

das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana.

Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a

aposta no ser humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas

agressivas e injustas de que transgride a própria ética. A liberdade do comércio não pode

acima da liberdade do ser humano. A liberdade de comércio sem limite é licenciosidade do

lucro. Vira privilégio de uns poucos que, em condições favoráveis, robustece seu poder contra

os direitos de muitos, inclusive o direito de sobreviver. Uma fábrica de tecido que fecha por

não poder concorrer com os preços da produção asiática, por exemplo, significa não apenas o

colapso econômico financeiro de seu proprietário que pode ter sido ou não um transgressor da

ética universal humana, mas também a expulsão de centenas de trabalhadores e trabalhadoras

do processo de produção. E suas famílias? Insisto, com a força que tenho e que posso juntar

na minha veemente recusa a determinismos que reduzem a nossa presença na realidade

histórico-social à pura adaptação a ela. O desemprego no mundo não é,como disse e tenho

repetido, uma fatalidade. É antes o resultado de uma globalização da economia e de avanços

tecnológicos a que vem faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e

não do lucro e da gulodice irrefreada das minorias que comandam o mundo.

O progresso cientifico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos

interesses humanos, ás necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação.

A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a

qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um

avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho

deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das

vítimas do progresso anterior. Como se vê, esta é uma questão ética e política e não

tecnológica. O problema me parece muito claro. Assim como não posso usar minha liberdade

de fazer coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade dos

outros para usar os avanços científicos e poderia ser livre para usar os avanços científicos e

tecnológicos que levam milhares de pessoas à desesperança. Não se trata, acrescentemos, de

inibir a pesquisa e frear os avanços mas de pô-los a serviço dos seres humanos. A aplicação

de avanços tecnológicos com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de

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quanto podemos ser transgressores da ética universal do ser humano e o fazemos em favor de

uma ética pequena, a do mercado, a do lucro.

Entre as transgressões à ética universal do ser humano, sujeitos à penalidade, deveria

estar a que implicasse a falta de trabalho a um sem-número de gentes, a sua desesperação e a

sua morte em vida.

A preocupação, por isso mesmo, com a formação técnico-profissional capaz de

reorientar a atividade prática dos que foram postos entre parênteses, teria de multiplicar-se.

Gostaria de deixar bem claro que não apenas imagino mas sei quão difícil é a

aplicação de uma política do desenvolvimento humano que, assim, privilegie

fundamentalmente o homem e a mulher e não apenas o lucro. Mas sei também que, se

pretendemos realmente superar a crise em que nos achamos, o caminho ético se impõe. Não

creio em nada sem ele ou fora dele. Se, de um lado, não pode haver desenvolvimento sem

lucro este não pode ser, por outro, o objetivo do desenvolvimento, de que o fim último seria o

gozo imoral do investidor.

De nada vale, a não ser enganosamente para uma minoria que terminaria fenecendo

também, uma sociedade eficazmente operada por máquinas altamente "inteligentes",

substituindo mulheres e homens em atividades as mais variadas, e milhões de Marias e Pedros

sem ter o que fazer, e este é um risco muito concreto que corremos.

Não creio também que a política a dar carne a este espírito ético possa jamais ser a

ditatorial, contraditoriamente de esquerda ou coerentemente de direita. O caminho autoritário

já é em si uma contravenção à natureza inquietamente indagadora, buscadora, de homens e de

mulheres que se perdem ao perderem a liberdade.

É exatamente por causa de tudo isso que como professor, devo estar advertido do

poder do discurso ideológico, começando pelo que proclama a morte das ideologias. Na

verdade, só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a

natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de

persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir,

das coisas, dos acontecimentos. Não podemos escutar, sem um mínimo de reação crítica,

discursos como estes:

"O negro é geneticamente inferior ao branco. É uma pena, mas é isso o que a ciência

nos diz."

"Em defesa de sua honra, o marido matou a mulher."

"Que poderíamos esperar deles, uns baderneiros, invasores de terra?"

"Essa gente é sempre assim: damos-lhe os pés e logo quer as mãos."

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"Nós já sabemos o que o povo quer e do que precisa. Perguntar-lhe seria uma perda de

tempo."

"O saber erudito a ser entregue às massas incultas é a sua salvação."

"Maria é negra, mas é bondosa e competente."

"Esse sujeito é um bom cara. É nordestino, mas é sério e prestimoso".

"Você sabe com quem está falando?"

"Que vergonha, homem se casar com homem, mulher se casar com mulher."

"É isso, você vai se meter com gentinha, é o que dá."

"Quando negro não suja na entrada, suja na saída."

"O governo tem que investir mesmo é nas áreas onde mora gente que paga imposto."

"Você não precisa pensar. Vote em fulano, que pensa por você."

"Você, desempregado, seja grato. Vote em quem ajudou você. Vote em fulano de tal."

"Está se vendo, pela cara, que se trata de gente fina, de trato, que tomou chá em

pequeno e não de um pé-rapado qualquer."

"O professor falou sobre a Inconfidência Mineira."

"O Brasil foi descoberto por Cabral."

No exercício crítico de minha resistência ao poder manhoso da ideologia, vou gerando

certas qualidades que vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente. A

necessidade desta resistência crítica, por exemplo, me predispõe, de um lado, a uma atitude

sempre aberta aos demais, aos dados da realidade; de outro, a uma desconfiança metódica que

me defende de tornar-me absolutamente certo de certezas. Para me resguardar das artimanhas

da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem tampouco me enclausurar no

ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para guardar viva e desperta a

minha capacidade de pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de

forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me

admita como proprietário da verdade. No fundo, a atitude correta de quem não se sente dono

da verdade nem tampouco objeto acomodado do discurso alheio que lhe é autoritariamente

feito. Atitude correta de quem se encontra em permanente disponibilidade a tocar e a ser

tocado, a perguntar e a responder, a concordar e a discordar. Disponibilidade á vida e a seus

contratempos. Estar disponível é estar sensível aos chamamentos que nos chegam, aos sinais

mais diversos que nos apelam, ao canto do pássaro, à chuva que cai ou que se anuncia na

nuvem escura, ao risco manso da inocência, à cara carrancuda da desaprovação, aos braços

que se abrem para acolher ou ao corpo que se fecha na recusa. É na minha disponibilidade

permanente á vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade,

desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E

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quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças,

tanto melhor me conheço e construo meu perfil.

TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM:

http://plataforma.redesan.ufrgs.br/biblioteca/pdf_bib.php?COD_ARQUIVO=17338

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TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM:

http://professoradalton.blogspot.com.br/2011/05/clifford-geertz-capitulo-2-o-impacto-

do.html

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DIÁLOGO, PARTICIPAÇÃO E AUTONOMIA NA EDUCAÇÃO A

DISTÂNCIA –

APROXIMAÇÕES ENTRE PAULO FREIRE E OTTO PETERS

Melita Hickel

Instituto Ecumênico de Pós-Graduação/Escola Superior de Teologia - IEPG/EST

[email protected]

Ninguém educa ninguém,

ninguém educa a si mesmo,

os homens se educam entre si,

mediatizados pelo mundo.

Paulo Freire

A participação em eventos regionais, nacionais e internacionais, tanto no Brasil quanto

no Exterior, que abordam o tema da Educação a Distância (EAD) e a pesquisa que vem sendo

desenvolvida pela autora, pesquisa esta que culminará em sua tese de doutorado, tem

confirmado uma resposta positiva a um questionamento posto há alguns anos, quando do

início de sua trajetória na Pós-Graduação Stricto Sensu em Teologia - Área de Concentração:

Religião e Educação - no IEPG/EST, em São Leopoldo/RS.

A pergunta feita é: É possível afirmar que a "pedagogia" de Paulo Freire pode

contribuir para o entendimento e para o desenvolvimento da Educação a Distância?

E a resposta objetiva é: SIM.

Sim, é possível verificar traços do que Paulo Freire nos ensinou (e seus escritos

continuam a nos ensinar!!!) nesta modalidade de ensino que, a cada dia que passa, mais e

mais merece destaque nas manchetes dos jornais, nas Instituições de Ensino de todos os níveis

e nas vidas das pessoas das mais diversas esferas sociais.

Se é possível responder com apenas uma palavra e sermos enfáticos ao afirmar que os

ensinamentos de Paulo Freire contribuem para esta modalidade de ensino, a justificativa para

isso exige uma reflexão um pouco mais aprofundada, para que a leviandade de uma resposta

rápida e curta não possa ser imputada a este tema tão sério e de tão grande relevância para a

área da educação em todo o mundo.

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Num país com tantas desigualdades sociais como o Brasil, em que tantas pessoas são

analfabetas de fato e há outros tantos cidadãos analfabetos funcionais, quem trabalha com

educação tem um vasto campo para atuar.

Além disso, sabe-se que, cada vez mais, temos que continuar aprendendo... é o

aprender a aprender que tem que ser ensinado.

O bom mestre não apenas faz com que seus alunos decorem regras e mais regras, para

reproduzi-las em provas e trabalhos, mas ensiná-os a procurar e, o mais importante, a

encontrar respostas a perguntas que a eles sejam feitas em qualquer época, local ou situação.

A Educação a Distância atualmente tem recebido grande destaque e popularidade,

porém, não é uma modalidade de ensino que tenha surgido recentemente, nem é um modismo.

Ela apenas ressurgiu com muita força devido aos grandes avanços tecnológicos ocorridos nas

últimas décadas.

Além disso, o uso da tecnologia é um imperativo ético tanto para o professor, para que

esse possa continuar a sua própria capacitação, como para o aluno, para que esse não seja

excluído. A tecnologia pode derrubar muros, transformar as aulas em comunidades de

trabalho e construir uma nova sociedade.

No Século XXI, temos vida e trabalho mediados pela tecnologia. Devemos, portanto,

aprender a usá-la crítica e criativamente.

Mesmo aqueles que só trabalham com a modalidade de ensino presencial deverão

dominar a tecnologia de Educação a Distância, pois essa servirá de enriquecimento àquela.

A Educação a Distância é vista como uma solução viável às restrições em atender a

crescente demanda por educação dos atuais sistemas de ensino presencial, além de ter uma

grande importância como agente democratizador da educação na nova era, a chamada

sociedade do conhecimento.

Mas voltando ao ―SIM‖, escolhemos três categorias de análise para justificar a

resposta dada, são elas: diálogo, participação e autonomia.

Estas três categorias estão presentes tanto na obra de Paulo Freire, como nos

ensinamentos do Prof. Dr. Otto Peters, fundador e primeiro reitor da FernUniversität de

Hagen, Alemanha.

A Educação a Distância é pensada como uma modalidade que precisa romper com as

lógicas que permeiam a aprendizagem no ensino presencial, por meio da incorporação de uma

característica comunicacional chave para esse processo: a interatividade e esta interatividade

pode, também, ser chamada de diálogo: diálogo entre todos os atores envolvidos nos cursos a

distância (aluno, professor, tutor, monitor).

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O diálogo acontece, também, nos inúmeros eventos e reuniões que abordam este tema

e que têm contado com pesquisadores de diversas regiões do Brasil e do mundo. Nestas

ocasiões, as pessoas têm espaço para expressar seus pensamentos e opiniões, seus anseios e

projetos.

Além disso, há o diálogo também na construção da legislação brasileira de educação a

distância. O mais recente exemplo é a trajetória do Decreto 5622 de 2005, que, antes de ser

publicado, circulou pelas caixas postais da comunidade interessada no assunto e recebeu

sugestões antes de ser aprovado e entrar em vigor.

Com a concepção Diálogo, PETERS (2001) refere-se à interação linguística direta e

indireta entre docentes e discentes, portanto, refere-se ao diálogo que de fato acontece.

Para MOORE (1993), apud PETERS (2001)

Um diálogo é direcionado, construtivo e é apreciado pelos participantes. Cada uma das

partes presta respeitosa e interessada atenção ao que o outro tem a dizer. Cada uma das partes

contribui com algo para seu desenvolvimento e se refere às contribuições do outro partido.

Podem ocorrer interações negativas e neutras. O termo diálogo, no entanto, sempre se reporta

a interações positivas. Dá-se importância a uma solução conjunta do problema discutido,

desejando chegar a uma compreensão mais profunda dos estudantes.

Dessa forma, essa concepção está comprometida com a pedagogia humanista, onde o

diálogo de pessoa para pessoa tem importância central, desde que transcorra sem estruturas e

sem fim predeterminados.

A aprendizagem dialogal exige dos estudantes parceria, respeito, calor humano,

consideração, compreensão empática, sinceridade e autenticidade.

O diálogo tem uma importância muito grande no ensino e na aprendizagem na

Educação a Distância.

Destacando tal relevância, PETERS detém-se no estudo detalhado dessa concepção,

fazendo análises dos seguintes aspectos: didático-científico, didático-universitário, didático-

teleducativo, pedagógico, filosófico, antropológico, sociológico, e faz um balanço

intermediário sobre o diálogo.

Este diálogo faz com que a segunda categoria apareça, isto é, a participação. É

através do diálogo entre os diversos atores envolvidos com a Educação a Distância e entre os

participantes de cursos nesta modalidade de ensino que a participação acontece.

E esta participação ocorre em função da terceira categoria de análise, que é a

autonomia, isto é, em curso a distância, ninguém obriga ninguém a nada. Se o estudante não

tem iniciativa e autonomia de estudo, ele não acessa as páginas do curso que escolheu, aliás,

ele nem escolhe o curso.

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Segundo PETERS, (2001),

O conceito ―autonomia‖ desempenhou papel importante na pedagogia alemã, porque

foi relacionada tradicionalmente à questão da pedagogia em sua fase de emancipação em

relação às demais ciências.

Peters, assim como faz na primeira concepção apresentada, a saber, diálogo, detém-se

nessa concepção apresentando o termo autonomia nas dimensões filosófica, pedagógica e

didática, devido a sua profundidade, abrangência e por o mesmo ―estar ancorado

multidimensionalmente em nosso pensamento‖.

Para PETERS (2001), ―o estudo autônomo desempenha papel importante na educação

de adultos e nas educações complementares‖.

A autonomia contrapõe-se ao ensino programado, por este ser totalmente estruturado e

não admitir obviamente a autonomia do estudante.

Certo é que a valorização ou o emprego de uma categoria em detrimento das outras

traz resultados negativos, ou seja, o ideal é haver o equilíbrio no uso delas.

TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM:

http://www.cead.ifmg.edu.br/site/downloads/dialogo_participacao_autonomia_em_ead.pdf

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CIBERCULTURA:

O QUE MUDA NA

EDUCAÇÃO

Ano XXI Boletim 03 - Abril 2011

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CIBERCULTURA: O QUE MUDA NA EDUCAÇÃO

APRESENTAÇÃO DA SÉRIE

Rosa Helena Mendonça5

Na virtualidade, termo novo e, também, tão pouco conhecido para a maioria, vamos

nos educando por processos que aproximam fatos, lugares e histórias que antes, em geral,

eram tão distantes de nós e que hoje tomam espaço tempo em nossa cotidianidade. Nela,

vários autores têm ressaltado o fracionamento e a velocidade, mas também as possibilidades

de mudanças ainda não pensadas e os processos pedagógicos que estão sendo acrescentados

aos nossos processos educativos cotidianos.

Para Pierre Lévy, autor de Cibercultura2, o ciberespaço é a virtualização da comunica-

ção. O uso das tecnologias em diferentes esferas da sociedade contemporânea favorece a ideia

de redes de conhecimento. E o que muda na educação presencial e a distância na emergência

da cibercultura?

Buscando resposta para esta e outras questões, a TV Escola, por meio do programa

Salto para o Futuro, apresenta mais uma série voltada para as reflexões sobre tecnologias e

redes.

A série Cibercultura: o que muda na educação, com a consultoria de Edméa Santos

(PROPED-UERJ), a partir das noções de currículo, didática e docência problematiza a

questão, discutindo três eixos temáticos: a Educação a Distância na cibercultura; a docência

online; o currículo multirreferencial.

Nos textos que compõem esta publicação, professores, professoras, gestores e comu-

nidade escolar em geral encontrarão subsídios para ampliar a reflexão sobre a temática. Nos

programas televisivos que compõem a série, diferentes práticas comunicacionais e

pedagógicas serão apresentadas e discutidas por meio de reportagens e entrevistas com

pesquisadores, professores e alunos.

Esperamos, dessa forma, contribuir para aprendizagens colaborativas, em conexão

com diferentes mídias, considerando que os ‗espaços tempos‘ da educação na contempo-

raneidade são assumidamente mais amplos do que escolas e universidade. Na verdade, sempre

foi assim, primeiro porque houve um tempo em que essas instituições nem existiam.

Tendemos a nos esquecer disso! Depois, porque mesmo quando se procurava entre por muros

5 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA (MEC).

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separando as escolas do mundo lá fora, isso nunca foi de todo realizável, uma vez que

instituições são feitas por pessoas que transitam por essas fronteiras. Hoje, com a

popularização do acesso às tecnologias da informação e da comunicação e a ampliação das

chamadas redes sociais, muito menos podemos pensar que essas vivências estejam excluídas

dos currículos. E o futuro não para por aí!

Cada vez mais, no entanto, a mediação de professores e professoras se mostra

imprescindível, no sentido de, junto aos estudantes, refletir sobre o impacto das tecnologias

no cotidiano, as questões éticas que envolvem a sua utilização e a necessidade de esforço no

sentido de transformar informações em conhecimentos que possibilitem um mundo mais

equânime para todos.

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CIBERCULTURA: O QUE MUDA NA EDUCAÇÃO

INTRODUÇÃO

Edméa Santos6

A cibercultura é a cultura contemporânea estruturada pelo uso das tecnologias digitais

em rede nas esferas do ciberespaço e das cidades. Compreendemos tais esferas como campos

legítimos de pesquisa e formação, atribuindo-lhes o status de redes educativas. Atualmente, a

cibercultura vem se caracterizando pela emergência da Web 2.0 com seus softwares e redes

sociais mediadas pelas interfaces digitais em rede, pela mobilidade e convergência de mídias,

dos computadores e dispositivos portáteis e da telefonia móvel. Nesta série para o programa

Salto para o Futuro/TV Escola, interessa-nos compreender quais são as mudanças que

ocorrem e/ou poderão ocorrer nas práticas curriculares, da educação presencial e a distância,

em conexão com a cibercultura.

As pesquisas nos/dos/com os cotidianos sobre a formação de professores, cuja aborda-

gem teórico-epistemológico-metodológica considera a ideia de redes de conhecimentos e

significações tecidas pelos praticantes em diversas redes educativas, indicam que a formação

se dá em múltiplos contextos. Entre eles, o das ‗práticasteorias‘ da formação acadêmica, o das

‗práticasteorias‘ pedagógicas cotidianas; o das ‗práticasteorias‘ das pesquisas em educação e o

das ‗práticasteorias‘ de produção e ‗usos‘ de mídias (Alves, 2010).

Nesse sentido, essa tendência em pesquisa pauta-se na relação complexa e interativa

entre as aprendizagens tecidas não apenas ao longo da formação acadêmica e do exercício da

profissão, mas também nas vivências nos diversos ‗espaçostempos‘ das cidades, considerando

que o docente interage e aprende com seus estudantes, seus pares, gestores, comunidade

escolar, com as mídias, com e em redes educativas multirreferenciais e com a sociedade mais

ampla.

Nesta série abordaremos as especificidades do tema “Cibercultura: o que muda na

Educação”. Ao longo de cinco programas, vamos discutir as práticas educativas mediadas

por tecnologias digitais em rede e pela produção cultural gerada pelo uso de interfaces, mídias

e redes no ciberespaço e nas cidades, e está organizada em três eixos temáticos:

6 Mestre e Doutora em Educação (FACED/UFBA). Professora adjunto da Faculdade de Educação da UERJ, atua

no PROPED - Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, na Linha de Pesquisa: Cotidiano, Redes

Educativas e Processos Culturais. Líder do GPDOC - Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura. Consultora da

série.

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1) EAD: antes e depois da cibercultura;

2) A pesquisa e a cibercultura como fundamentos para a docência online;

3) O currículo multirreferencial: outros espaçostempos para a educação online.

Estes três eixos estão explicitados nas sinopses de cada texto da publicação eletrônica.

Com esses eixos temáticos, discutiremos as atuais práticas de educação mediadas pelas

tecnologias digitais de informação e comunicação, em especial as interfaces síncronas e

assíncronas encontradas no ciberespaço e nos ambientes virtuais de aprendizagem, que são

práticas quase sempre de EAD – Educação a Distância. Estas práticas vêm recuperando

noções de Currículo, Didática e Docência baseadas em teorias e práticas da EAD tradicionais

estruturadas pela razão instrumental, pelas mídias de massa e por pedagogias da transmissão

travestidas de ―tutoria‖. Aqui se tem como objetivos denunciar tais processos e apresentar a

Educação Online como um fenômeno da cibercultura (Santos, 2005, 2006, 2010).

A noção de Educação Online trazida por nós não separa mais as práticas da

modalidade de educação presencial das práticas de educação a distância, uma vez que, de

acordo com o que acreditamos, estar geograficamente dispersos não é estar distantes, es-

pecialmente quando tecnologias digitais em rede vêm proporcionando encontros e diálogos

síncronos e assíncronos e instituindo novas possibilidades de presencialidade em redes

educativas variadas.

Nesse contexto, é preciso compreender como se dá a formação de professores para a

docência online e alargar essas possibilidades, pois praticamente não contamos, ou contamos

muito pouco, com processos de formação inicial específicos em cursos de graduação. Os

processos de formação continuada vêm se instituindo em práticas e projetos pontuais e

contextualizados, de acordo com os modelos curriculares específicos de instituições –

públicas ou privadas – e de alguns docentes que vêm construindo e atuando na e pela internet

com seus desenhos curriculares autorais.

O desenho curricular de uma atividade online requer não só a preocupação com o

material voltado para os estudos ligados aos conteúdos a serem ministrados, mas também – e

sobretudo – com a forma como este material de estudos é disponibilizado no contexto de um

ambiente virtual de aprendizagem. Um ambiente virtual de aprendizagem é um conjunto de

interfaces digitais, que hospeda conteúdos e permite a comunicação, propiciando a expressão

e a autoria dos participantes que habitam tais interfaces. Forma-se um híbrido entre objetos

técnicos e seres humanos em processo de construção do conhecimento. Cada vez que um

novo participante habita, com sua autoria criadora, uma das interfaces de um ambiente virtual

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de aprendizagem, o mesmo se auto-organiza, modificando não só o ambiente fisicamente,

como também, em potência, a aprendizagem de todos os praticantes da comunidade.

Não é o ambiente online que define e educação online. Ele condiciona, mas não a

determina. Tudo dependerá do movimento comunicacional e pedagógico dos sujeitos

envolvidos (SANTOS, 2005). Além de acreditarmos que só aprendemos porque o outro

colabora com sua experiência, sua inteligência e sua provocação, sabemos que temos

interfaces que favorecem a nossa comunicação de forma livre e plural. Neste contexto,

precisamos repensar o trabalho docente. É deste lugar que conceituamos educação online

como um fenômeno da cibercultura.

Assim, entendemos as práticas de Educação Online como um processo complexo (de

desterritorialização e reterritorialização de saberes e conhecimentos) que se institui a partir de

uma série de ações e situações de ensino-aprendizagem, ou atos de currículo (MACEDO,

2000), mediadas por interfaces digitais que potencializam práticas comunicacionais e

pedagógicas.

TEXTOS DA SÉRIE CIBERCULTURA: O QUE MUDA NA EDUCAÇÃO 7

A série visa analisar as mudanças que ocorrem e/ou poderão ocorrer nas práticas

curriculares em conexão com a cibercultura. Ao longo dos programas, serão discutidas as

práticas de Educação a Distância mediadas por tecnologias digitais em rede e pela produção

cultural gerada por estas interfaces no ciberespaço e nas cidades.

TEXTO 1

EAD: ANTES E DEPOIS DA CIBERCULTURA

Lucila Pesce8

No primeiro texto da série é apresentada uma retrospectiva histórica (não linear) sobre

as práticas e processos curriculares da Educação a Distância, ressaltando-se que só com a

chegada da Internet foi possível começar a se pensar em desenhos didáticos que pudessem

contemplar processos interativos entre formandos e formadores, via fóruns e listas de

7 Estes textos são complementares à série Cibercultura: o que muda na Educação, com veiculação no programa

Salto para o Futuro/TV Escola de 25/04/2011 a 29/04/2011

8 Mestre e doutora em Educação: Currículo pela PUC/SP, com pós-doutorado em Filosofia e História da

Educação pela UNICAMP. Professora da UNIFESP

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discussão. O texto destaca, ainda, os potenciais comunicacionais, pedagógicos, tecnológicos e

políticos das tecnologias digitais em rede.

O presente texto advoga a ideia de que o advento da cibercultura traz vastas

possibilidades para se repensar as hegemônicas práticas de Educação a Distância (EAD).

Inicia-se com uma brevíssima retomada histórica das principais mídias utilizadas na EAD, no

Brasil, e prossegue com considerações sobre a cibercultura, com o intuito de destacar sua

contribuição para a elaboração de cursos mais intertextuais, hipermidiáticos, dialógicos e

coautorais.

Estudos sobre a história da EAD no Brasil (BARROS, 1994; GIUSTA, 2002)

evidenciam que essa modalidade iniciou-se nas proximidades da década de 1940. A Fundação

do Instituto Rádio-Monitor, o Instituto Universal Brasileiro e o Projeto Minerva configuram-

se como os marcos históricos daquela época. Pautada notadamente em material impresso, a

primeira geração da EAD no Brasil cumpriu os fins a que se destinava: promover acesso ao

conhecimento socialmente legitimado a segmentos sociais menos favorecidos, mediante ações

de educação formal e não formal. Além do material impresso, o rádio também se situou como

importante difusor dos cursos oferecidos na EAD da época.

Com a chegada das fitas e vídeos cassete, a EAD incorporou estes dispositivos ao

desenho didático de seus cursos, com materiais instrucionais que, a partir de então, também

faziam uso destas mídias, em complemento ao rádio e ao material impresso. Anos mais tarde,

o CD e o DVD viriam a cumprir, respectivamente, as funções da fita e do vídeo cassete.

Entretanto, apesar da chegada desses dispositivos midiáticos, a lógica da mídia de massa

predominava nos cursos desenvolvidos em EAD, pois eles ainda eram pensados a partir de

uma abordagem instrucionista, em que o aluno seguia seu percurso de formação, com o apoio

dos materiais autoinstrucionais e, eventualmente, contava com algum tipo de interação com a

equipe de formação, por carta ou telefone.

Somente com a chegada da Internet é que foi possível começar a se pensar em

desenhos didáticos que pudessem contemplar processos interativos entre formandos e

formadores, via fóruns e listas de discussão. Contudo, a primeira geração da Internet ainda

não permitia a vivência plena da dialogia digital e da mediação partilhada (PESCE &

BRUNO, 2007) entre professores e alunos, pois aos estudantes cabia acessar as informações

do curso e, no melhor dos casos, interagir com o professor e com seus colegas de modo as-

síncrono, via fóruns e listas de discussão. A vivência do conceito de coautoria ainda não se

pronunciava.

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Com a segunda geração da Internet, a chamada Web 2.0, é que a cibercultura se

consolida. Com a chegada da Web 2.0, a arquitetura intertextual, hipermidiática, dialógica e

coautoral da cibercultura pôde ser pensada com mais propriedade no âmbito educacional,

conforme veremos a seguir, a partir de apontamentos em publicação anterior (PESCE, 2010).

Na cibercultura veiculada na Web 2.0, o usuário insere-se como produtor e desen-

volvedor de conteúdo e não somente como receptor de mensagem e/ou conteúdo de

aprendizagem postado por outrem. A cibercultura, ao conjugar texto, áudio, imagem,

animação e vídeo, assume uma natureza hipermidiática, que potencializa as formas de

publicação, compartilhamento e organização de informações e amplia os espaços de interação

(PRIMO, 2008).

Para Pierre Lévy (1997), analogamente à escrita e à imprensa, as Tecnologias da Infor-

mação e Comunicação (TIC) trazem consigo um novo modo de pensar o mundo e de conceber

as relações com o conhecimento. Nesse cenário, a simulação levanta-se como modo de

conhecimento próprio da cibercultura. Os games e ambientes imersivos, como Second Life,

ratificam a oportuna observação de Lévy e podem ser levados em conta na elaboração de de-

senhos didáticos de cursos em EAD.

Lucia Santaella (2004) salienta que a interação insere-se na medula dos processos

cognitivos, nos ambientes de rede. Ao destacar que o dialogismo traz nova luz para se

compreender a interatividade e seu papel no desenvolvimento do perfil cognitivo do leitor

imersivo, a pesquisadora declara: ―(...) assim como as operações realizadas no ciberespaço

externalizam as operações da mente, as interatividades nas redes externalizam a essência mais

profunda do dialogismo‖ (SANTAELLA, 2004, p. 172).

No contexto coautoral e criativo das ―linguagens líquidas‖ da cibercultura

(SANTAELLA, 2007) formam-se as redes sociais: fenômeno que tanto impacto vem

causando às atuais organizações societárias, por se opor diametralmente à indústria cultural

(ADORNO & HORKHEIMER, 1985). Para Antoun (2008), em contraposição à mídia

irradiada, as redes sociais da cibercultura promovem comunidades de atividade ou interesse,

graças à democratização não só do acesso à informação, mas também da publicação de

produções e da ‗vigilância participativa‘ – termo por ele designado para se referir ao conjunto

das expressões de opinião postadas como comentários, nos ambientes digitais.

Costa (2008) sinaliza o sentimento de confiança mútua como um dos aspectos

basilares da consolidação das redes sociais na cibercultura. Em concordância com Lévy

(2002), o pesquisador salienta a relevância das redes sociais, pela capacidade de ação e

potencialidade cooperativa. Em nosso entendimento, tais atributos materializam-se, por

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exemplo, quando cidadãos de Estados totalitários utilizam os dispositivos da cibercultura para

―burlar‖ a censura e mostrar ao mundo os despotismos de seu país. O estudioso finaliza ad-

vertindo que o fenômeno social da Web 2.0 nos força a pensar em outras formas de nos

organizarmos em comunidades. Parafraseando Costa (ibid), salientamos que a cibercultura

demanda da educação novos modos de organização.

Ao pensar a Educação a partir do advento da cibercultura, trazemos Valente (1999),

que distingue três abordagens na EAD. Na abordagem broadcast, o professor transmite a in-

formação, via aparato tecnológico; daí sua proximidade com a concepção instrucionista.

Esta abordagem consagra-se pelo apelo econômico; ou seja, pela possibilidade de se

promover cursos financeiramente convidativos. Na ―virtualização da sala de aula presencial‖,

o professor transfere para o espaço virtual a mesma dinâmica da aula presencial. Esta

abordagem é muito comum, pela tendência dos formadores a transpor a dinâmica dos cursos

presenciais para o contexto digital, sem as devidas readequações. Por sua vez, a abordagem

―estar junto virtual‖ contempla a dinâmica comunicacional, que privilegia a mediação do

professor junto ao aluno, por meio da tecnologia, para que se realize o ciclo construcionista

―descrição-execução-reflexão-depuração-descrição‖.

Tecnicamente, os dispositivos e interfaces da Cibercultura ampliam a possibilidade de

se pensar em cursos mais dialógicos em EAD. Entretanto, para que isso ocorra é preciso

vontade política. Vontade essa que se revela, por exemplo, na concepção de cursos

economicamente não tão convidativos, que preveem uma relação adequada entre formador e

alunos (por volta de 1 para 30), por apostarem na importância da formação dialógica (PESCE

2008). Aí incide um exemplo de vontade política de primar pela qualidade educacional, a

despeito das possibilidades tecnológicas de se promover cursos em larga escala.

• A partir dos aspectos teóricos até então anunciados, sintetizamos nossa reflexão

sobre a contribuição da cibercultura para o avanço qualitativo da EAD:

• A cibercultura acena outra lógica para a EAD, que não a instrumental, pragmática

e prescritiva.

• A cibercultura possibilita a ampliação da perspectiva de alteridade, ao promover

vínculos entre sujeitos sociais de distintas culturas, que vivem circunstâncias sócio-

históricas semelhantes (por exemplo: vínculos entre professores da Educação Básica de

distintos países). Essa condição é profícua ao enfrentamento esclarecido dos desafios que se

lhes apresentam no cotidiano.

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• As redes sociais da cibercultura configuram-se como elemento importante para se

subverter o status quo (como exemplo, o uso que tem sido feito pelos cidadãos de alguns

países do Oriente Médio para enfrentar os regimes ditatoriais).

• A cibercultura oferece a possibilidade de se trabalhar com diferentes dimensões da

linguagem (textual, imagética, sonora...), em respeito aos distintos estilos de aprendizagem.

Nesse cenário, destacamos o papel da simulação aos processos cognitivos.

• O registro das interações no ciberespaço traz uma importante contribuição para a

metarreflexão do aluno, do professor e do grupo como um todo, sobre o processo de

construção do conhecimento, na interface entre as dimensões intra e intersubjetiva.

• As características coautorais dos dispositivos e interfaces da cibercultura oportu-

nizam a vivência plena da dialogia digital e da mediação partilhada: elementos fundantes da

formação de comunidades de aprendizagem, para além dos tempos e espaços da sala de

aula.

Conforme dito no início do presente texto, a cibercultura traz vastas possibilidades

para se repensar as hegemônicas práticas de EAD. Contudo, além da condição técnica, é

preciso vontade política para se imprimir uma racionalidade mais dialógica, capaz de auferir

um avanço de fato qualitativo a essa modalidade de educação.

TEXTO 2

A DOCÊNCIA ONLINE

O segundo texto da série discute, entre outros temas, o fato de que a educação online

tem demandado novas relações com os saberes e como estes são mobilizados, mediados e

tecidos com e por sujeitos imersos na cultura digital. Para tanto, torna-se necessário

repensarmos o trabalho docente, estruturado pelas clássicas práticas de EAD. O professor

como aquele que produz o conteúdo e o tutor como aquele que ―tira-dúvidas‖ dos alunos

sobre o conteúdo elaborado pelo professor são papéis que precisam ser questionados. A

docência online é mostrada como prática e como política de formação.

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Apesquisa e a cibercultura como fundamentos para a docência online

Marco Silva9

Não há retorno quanto ao crescimento da educação via internet no Brasil e no mundo.

A educação a distância, antes cheia de limitações específicas porque baseada em meios

unidirecionais (impressos, rádio e TV), agora cresce muito com as potencialidades cada vez

mais interativas da internet e das redes sociais online. A adesão social se amplia es-

pantosamente. As instituições de ensino superior (IES) particulares saíram na frente e não se

decepcionaram com a modalidade de cursos via internet. As universidades públicas, a partir

da Universidade Aberta do Brasil (UAB), estão correndo atrás do prejuízo causado por

décadas de resistências empedernidas. Nesse contexto, o desafio maior é a inclusão dos

professores no cenário sociotécnico e comunicacional da cibercultura para nele operarem e

educarem.

Doravante, teremos mais do que a força da crítica já enfatizada por clássicos teóricos

da educação à pedagogia da transmissão. Teremos a exigência cognitiva e comunicacional das

gerações que emergem com a cibercultura, isto é, com a ambiência de conhecimento, de

crenças, de artes, de éticas, de leis, de costumes, de hábitos e de aptidões desenvolvidos pelas

sociedades na era digital em rede mundial de computadores (LEMOS e LEVY, 2010).

O DESAFIO COMUNICACIONAL DA EDUCAÇÃO VIA INTERNET

Dados estatísticos do INEP em 2009 revelam que mais de 50% dos professores de

Ensino Fundamental passaram a ser formados na modalidade a distância. Isso assusta muita

gente, que pergunta: ―como a formação para docência presencial pode ser realizada a

distância?‖. Não bastasse essa preocupação, muitos ficarão ainda mais assustados se

verificarem que a formação a distância ocorre sem mediação docente. Muitas vezes o que se

tem é o autoestudo baseado em conteúdos massivos preempacotados. O velho modelo da

distribuição de pacotes de informação, ditos ―conhecimentos‖, agora na internet,

subutilizando as potencialidades interativas. Os chamados ―tutores‖, que são na verdade

nossos conhecidos monitores, foram colocados no lugar dos professores e os sindicatos de

9 Sociólogo, doutor em educação, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade

Estácio de Sá e professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Membro da diretoria da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura. Autor dos livros Sala de aula

interativa e Educación interactiva presencial y on-line. Organizou os livros Educação online: cenário, formação e

questões didático-metodológicas, Educação online: teorias, práticas, legislação e formação corporativa e

Avaliação da aprendizagem em educação online. www.saladeaulainterativa.pro.br

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professores não os reconhecem na categoria profissional. Sem autoridade para professorar e

sem formação específica para realizar mediação docente, eles acabam se limitando a

administrar o feedback dos cursistas ou ao mero ―tira-dúvidas‖. Em suma, se não temos

mediação docente efetiva na sala de aula presencial ou online, pergunto se nela haverá

educação autêntica.

Muitas pesquisas investigam a oferta de educação a distância no país. Algumas trazem

resultados eloquentes e sugestões significativas para a superação de problemas recorrentes.

Mas há muito que pesquisar e publicar. Não faltam novos campos de pesquisa em franco

crescimento. Há a Universidade Aberta do Brasil (UAB), oferecendo graduação a distância

com a chancela do MEC. No Rio de Janeiro há o CEDERJ, que atende às universidades

públicas do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ, UERJ, UNIRIO, UFRRJ e UENF). Em São

Paulo, há a UNIVESP, universidade a distância baseada na USP, UNESP e UNICAMP. Em

geral, a tendência é ainda ensino massivo, subutilizando as interfaces interativas da internet e

feito à base de tutoria reativa. Diversas universidades particulares estão se dedicando a esta

modalidade de ensino, considerada bastante lucrativa. Os problemas, no entanto se avolumam

e essa é a hora de aprofundar ou ampliar as pesquisas.

Destaco o enorme desafio que a cibercultura traz para os cursos via internet. Trata-se

do desafio comunicacional. Na cibercultura, os atores da comunicação tendem à interatividade

e não mais à separação da emissão e recepção própria da mídia unidirecional de massa. Para

posicionar-se nesse contexto e aí educar, os professores precisarão operar com o hipertexto,

isto é, trabalhar com o contexto não-sequencial, com a montagem de conexões em rede, o que

permite uma multiplicidade de recorrências entendidas como conectividade, diálogo e

participação colaborativa. Eles precisarão compreender que de meros disparadores de lições-

padrão deverão se converter em formuladores de interrogações, coordenadores de equipes de

trabalhos e sistematizadores de experiências em interfaces online desenvolvidas para

contemplar a interatividade e não a unidirecionalidade.

EAD E EOL: UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA NO CENÁRIO

SOCIOTÉCNICO DA CIBERCULTURA

A formação de professores para a docência via internet precisará distinguir educação a

distância (EAD) e educação online (EOL), sem simplificar ou dicotomizar a ação docente.

Precisará trabalhar com ambas as modalidades, inclusive, articuladas com o presencial. O

cenário sociotécnico da cibercultura favorece compartilhamento e colaboração, expressões de

uma ambiência comunicacional que favorece a educação autêntica.

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Social Tecnológico

Há um novo espectador menos

passivo diante da mensagem mais aberta à

sua intervenção. Ele aprendeu com o

controle remoto da TV, com o joystick do

videogame e agora aprende como o mouse e

com a tela tátil. Ele migra da tela da TV

para a tela do computador conectado à

Internet. É mais consciente das tentativas de

programá-lo e mais capaz de esquivar-se

delas. Evita acompanhar argumentos

lineares que não permitem a sua in-

terferência e lida facilmente com ambientes

midiáticos que dependem do seu gesto ins-

taurador que cria e alimenta a sua experiên-

cia comunicacional.

O computador conectado à Internet

permite ao internauta-interator criação e

controle dos processos de informação e

comunicação mediante ferramentas e

interfaces de gestão, informação e

comunicação. Diferindo essencialmente da

TV como máquina restritiva e

centralizadora, porque baseada na transmis-

são de informações elaboradas por um

centro de produção (sistema broadcast), o

computador online apresenta-se como

sistema aberto aos usuários, permitindo

autoria e colaboração num ambiente de

compartilhamento, de troca de informações

e de construção do conhecimento.

Entretanto, o professor precisará compreender esse cenário para nele atuar. Precisará

repensar a mediação da aprendizagem que vem realizando na sala de aula presencial e na

EAD unidirecional. Ao mesmo tempo, precisará de inclusão digital e cibercultural capaz de

prepará-lo para ir mais além do uso instrumental da infotecnologia de informação e

comunicação na formação de jovens e adultos.

EAD

Docência unidirecional

(mediação um-todos)

EOL

Docência interativa

(mediação todos-todos)

Desenho didático

dos conteúdos e das

atividades de aprendizagem

Predefinido, fechado,

linear, controlado por uma

fonte emissora. Textos,

audiovisuais e multimídia

unidirecionais.

Predefinido e

redefinido de forma

colaborativa, corregulada.

Hipertextos, multi e hi-

permídia multidirecional, em

rede.

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Tecnologias de informação

e comunicação (TIC)

Tecnologias

unidirecionais e reativas

(impressos, rádio, TV, DVD

e até o computador online,

quando subutilizado em suas

potencialidades comu-

nicacionais e hipertextuais).

Modelo um-todos.

Tecnologias

interativas online

(computador, celular, internet

em múltiplas interfaces

(chats, fóruns, wikis, blogs,

fotos, Twitter, Facebook,

Orkut, videologs, etc.) para

expressão uni, bi e mul-

tidirecional em rede. Modelo

todos-todos.

Pedagogia

Instrucionista,

transmissiva, tarefista,

aprendizagem solitária,

autoinstrução.

Construcionista, com

base no interacionismo, na

dialógica, colaboração e

interatividade.

Mediação da aprendizagem

Relações assimétricas,

verticais: autor/emissor

separado de

aprendiz/receptor. Cursista

não interage com cursista

Relações horizontais:

hibridização e coautoria. Os

cursistas se encontram com o

docente e constroem a comu-

nicação e o conhecimento.

Avaliação da aprendizagem

Avaliação

unidirecional: professor

avalia alunos. Pontual e

somativa. Trabalhos e testes

individuais durante e no final

do curso.

Autoavaliação,

coavaliação e

heteroavaliação. Somativa e

formativa. Definição coletiva

de critérios e rubricas de

avaliação. Uso de múltiplas

interfaces para avaliação da

participação (wikis, fóruns,

mapas colaborativos, web-

quests, blogs, chat,

podcasting, etc.).

Fonte. Apropriação livre de um quadro apresentado por Leonel Tractenberg na palestra “Avaliação de professores na educação online” no I Encontro de Tutores da UFJF, 20/11/2010, Juiz de Fora, MG.

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A modalidade ―a distância‖, via meios unidirecionais, separa emissão e recepção no

tempo e no espaço. A modalidade online conecta professores e alunos nos tempos síncrono e

assíncrono, dispensa o espaço físico, favorece a convergência de mídias e contempla

bidirecionalidade, multidirecionalidade, estar-junto ―virtual‖ em rede e colaboração todos-

todos. Por sua vez, enquanto a modalidade ―a distância‖ é operada por meios de transmissão

em sua natureza, a modalidade online lança mão das disposições favoráveis à interatividade

cada vez mais presentes no cenário sociotécnico da cibercultura.

Na docência online, o professor dispõe da infotecnologia em rede favorável à pro-

posição do conhecimento à maneira do hipertexto. Aí ele pode redimensionar a sua autoria:

não mais a prevalência da distribuição de informação para recepção solitária e em massa, mas

a perspectiva da proposição complexa do conhecimento, da participação colaborativa dos

participantes, dos atores da comunicação e da aprendizagem em redes que conectam textos, de

áudios, vídeos, gráficos e imagens em links na tela tátil.

Computadores, laptops, celulares e tablets conectados em rede mundial favorecem e

potencializam a mediação docente interativa inspirada nas sugestões (SILVA, 2010):

(a) propiciar oportunidades de múltiplas experimentações, múltiplas expressões;

(b) disponibilizar uma montagem de conexões em rede que permita múltiplas

ocorrências;

(c) provocar situações de inquietação criadora;

(d) arquitetar colaborativamente percursos hipertextuais e

(e) mobilizar a experiência do conhecimento.

Operar com estas cinco sugestões para docência interativa requer que o professor

garanta atitudes comunicacionais específicas (SILVA, 2005, 2006, 2010, 2011):

(a) acionar a participação-intervenção do receptor, sabendo que participar é muito

mais que responder ―sim‖ ou ―não‖, é muito mais que escolher uma opção dada; participar é

modificar, é interferir na mensagem;

(b) garantir a bidirecionalidade da emissão e recepção, sabendo que a comunicação é

produção conjunta da emissão e da recepção; o emissor é receptor em potencial e o receptor é

emissor em potencial; os dois polos codificam e decodificam;

(c) disponibilizar múltiplas redes articulatórias, sabendo que não se propõe uma

mensagem fechada, ao contrário, oferecem-se informações em redes de conexões, permitindo

ao receptor ampla liberdade de associações, de significações;

(d) engendrar a cooperação, sabendo que a comunicação e o conhecimento se

constroem entre alunos e professor, como cocriação;

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(e) suscitar a expressão e a confrontação das subjetividades no presencial e nas

interfaces fórum, e-mail, chat, blog, wiki e portfólio, sabendo que a fala livre e plural supõe

lidar com as diferenças na construção da tolerância e da democracia;

(f) garantir no ambiente online de aprendizagem uma riqueza de funcionalidades

específicas, tais como: intertextualidade (conexões com outros sites ou documentos), intra-

textualidade (conexões no mesmo documento), multivocalidade (multiplicidade de pontos de

vista), usabilidade (percursos de fácil navegabilidade intuitiva), integração de várias

linguagens (som, texto, imagens dinâmicas e estáticas, gráficos, mapas), hipermídia

(convergência de vários suportes midiáticos abertos a novos links e agregações) (SANTOS,

2003);

(g) estimular a autoria cooperativa de formas, instrumentos e critérios de avaliação,

criar e assegurar a ambiência favorável à avaliação formativa e promover a avaliação

contínua.

No ambiente comunicacional assim definido, esses princípios da docência interativa

são linhas de agenciamentos que podem potencializar a autoria do professor, presencial e

online. A partir de agenciamentos de comunicação capazes de contemplar o perfil

comunicacional da geração digital que emerge com a cibercultura, o docente pode promover

uma modificação paradigmática e qualitativa na sua docência e na pragmática da aprendi-

zagem e, assim, reinventar a sala de aula em nosso tempo. Todavia, para isso se faz necessário

a pesquisa implicada com a efetiva formação de professores.

A PESQUISA INTEGRADA À FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA DOCÊNCIA

ONLINE

A formação de professores ganhará muito se adotar metodologias que favoreçam a

formação na ação. Pesquisa e formação poderão estar integradas como ―pesquisa-formação‖

(NÓVOA, 2004; SANTOS, 2005). Esta modalidade de investigação-atuação contempla a

possibilidade de mudança das práticas e dos sujeitos em ação. Cada pessoa, cada equipe é,

simultaneamente, objeto e sujeito da formação. A coletividade de pesquisadores também é o

sujeito de ocorrências. Todo o conjunto de conteúdos e estratégias da e na ação docente deve

emergir a partir dos problemas, temas e necessidades de todos os sujeitos pesquisadores. A

pesquisa-formação não dicotomiza a ação de conhecer da ação de atuar, própria das pesquisas

ditas ―aplicadas‖. O pesquisador é coletivo, não se limita a aplicar saberes existentes. As

estratégias de aprendizagem e os saberes emergem da troca e da partilha de sentidos de todos

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os envolvidos. Experiências de pesquisa-formação costumam criar ambiências e dispositivos

de pesquisa que fazem emergir o registro e a expressão de narrativas. Os sujeitos são

incentivados a expressar suas itinerâncias formativas, promovendo, muitas vezes, a troca e o

compartilhamento com outros sujeitos envolvidos no processo. São exemplos de dispositivos:

o diário de bordo ou itinerância, os memoriais de pesquisa, entrevistas abertas, entre outros.

Assim definida, a pesquisa requer o registro rigoroso e metódico dos dados. Adotará o

registro em ―diário de bordo‖ – ou fórum geral online aberto à atuação de todos os envolvidos

– como um instrumento necessário para consignar os dados recolhidos durante todo processo

de pesquisa. Os registros diários e cotidianos precisarão atentar para o vivido na usabilidade

do AVA, no desenho didático e na mediação docente. Aí está o tripé que gera evasão e

banalização da educação ou inclusão e formação cidadã na cibercultura.

Em suma, as pesquisas sobre EAD e sobre EOL no país precisam contribuir mais sig-

nificativamente para a formação de professores para docência na cibercultura. Os docentes

precisarão se preparar para lidar com a atualidade sociotécnica informacional e

comunicacional definida pela codificação digital (bits) que garante o caráter plástico,

hipertextual, interativo do conteúdo de aprendizagem tratável em tempo síncrono e

assíncrono. A codificação digital permite manipulação de documentos, criação e estruturação

de elementos de informação, simulações e formatações evolutivas nos ―ambientes virtuais de

aprendizagem‖, concebidos para criar, gerir, organizar e movimentar uma documentação e

para expressar, compartilhar, colaborar, comunicar e conhecer.

O professor precisará lançar mão dessa disposição do digital para potencializar a

construção da comunicação e do conhecimento em sua sala de aula online ou semipresencial.

Ao fazê-lo, contemplará atitudes cognitivas e modos de pensamento que se desenvolvem

juntamente com o crescimento da cibercultura. Contemplará o novo espectador, a geração

digital e o espírito do tempo favorável à qualidade em educação autêntica, cidadã, que supõe

participação, compartilhamento e colaboração.

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TEXTO 3:

CURRÍCULO MULTIRREFERENCIAL

No terceiro texto da série é discutida a noção de currículo multirreferencial. Esta

noção questiona a dimensão do currículo ―programa-grande‖ e a ideia de espaços formais de

aprendizagem como únicos lócus legítimos de formação. Os espaços multirreferenciais são

todos os espaços onde seres humanos ensinam e aprendem com ou sem mediações formais ou

centradas na lógica moderna das instituições escola-universidade. O ciberespaço e as cidades

em conexão com as mídias digitais móveis e em rede serão tratados como potencializadores

de novos arranjos espaço-temporais para a instituição de outras práticas curriculares em

educação online.

O currículo multirreferencial: outros espaços tempos para a educação online

Edméa Santos10

Como já foi dito no texto introdutório desta série e nos dois textos anteriores, as tecno-

logias digitais em rede no ciberespaço e nas cidades vêm ampliando a nossa capacidade de

memória, armazenamento, processamento e, sobretudo, de comunicação. A comunicação

caracterizada pela liberação do polo da emissão torna a rede digital uma rede social, um

espaço cultural onde a cibercultura se desenvolve.

Segundo Santaella (2008) não podemos tratar as tecnologias digitais com o mesmo

referencial que tratamos as mídias de massa. São tecnologias diferenciadas e, por isso,

instituem outros processos cognitivos. A geração da TV é bem diferente da geração digital. A

primeira geração da cibercultura foi condicionada pelo uso do computador conectado via

desktop. O corpo preso e a mente em movimento. A segunda fase da cibercultura vem agre-

gando novas potencialidades ao processo de construção de conhecimento, principalmente por

conta da mobilidade.

Mobilidade é uma das palavras-chave da cibercultura atual. Com os computadores e

celulares móveis que se comunicam em rede e a convergência de mídias, o cérebro

movimenta-se juntamente com a atividade corporal em movimento. Santaella (2008) destaca

10

Mestre e Doutora em Educação (FACED/UFBA). Professora adjunto da Faculdade de Educação da UERJ,

atua no PROPED - Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, na Linha de Pesquisa: Cotidiano,

Redes Educativas e Processos Culturais. Líder do GPDOC - Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura.

Consultora da série.

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que no futuro próximo haverá total hibridação corpo humano, tecnologias e redes. O interesse

acadêmico aumenta com o crescente desenvolvimento tecnológico e o acesso a essas

tecnologias por um número cada vez maior de indivíduos.

Além do desenvolvimento tecnológico e do acesso de boa parte da população a esses

recursos, vivenciamos um crescente movimento de ―redes horizontais de colaboração”.

Segundo Pretto e Bonilla (2008), novas redes começam a se configurar no cenário nacional.

Políticas governamentais no âmbito de projetos nas áreas da ciência, tecnologia e cultura, a

exemplo dos ―pontos de cultura‖ implementados pelo Ministério da Cultura; projetos de

universidades públicas, organizações não governamentais, ativistas culturais, o fenômeno das

lanhouses, entre outros.

Dos programas internacionais que utilizam as tecnologias móveis na prática

pedagógica podemos destacar o projeto da organização americana OLPC (One Laptop per

Child), idealizado por um grupo de pesquisadores, dentre eles o pesquisador Nicholas

Negroponte, do MIT (Massachusetts Institute of Technology). No Brasil desde 2006 o MEC

vem ampliando o uso de laptops em algumas escolas brasileiras, por meio do PROUCA, mais

conhecido como UCA (Um Computador por Aluno). Diferentemente do projeto OLPC, que

garante um computador por criança, o projeto brasileiro demarca que seu projeto considera a

criança que estuda, ou seja, um aluno matriculado no sistema de educação pública do país.

Esse desenvolvimento, ainda incipiente no Brasil, nos convida ao investimento urgente em

ações formativas e novas pesquisas que garantam novas práticas que não subutilizem as

tecnologias digitais e as redes sem fio nos espaços educativos.

Nesse contexto de redes e conexões, temos a presença significativa da juventude.

Segundo os autores:

As redes conectam pessoas, instituições, setores e ajudam a

articular as ações. Com elas, e com as pessoas se apropriando das

tecnologias, novos saberes são produzidos, novas formas de ser e de pensar esse alucinado mundo contemporâneo emergem. Passamos a conviver,

mesmo com todas as dificuldades de acesso, com novas formas de partilhar

o conhecimento, com novas linguagens e novas formas de expressões (PRETTO e BONILLA, 2008, p. 84).

A mobilidade é a capacidade de tratar a informação e o conhecimento na dinâmica do

nosso movimento humano na cidade e no ciberespaço simultaneamente. Para tanto,

precisamos de interfaces que nos permitam protagonizar nessa dinâmica. Essas interfaces vêm

sendo chamadas de ―dispositivos móveis‖.

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Com a mobilidade dos laptops, os docentes e discentes podem mapear, acessar,

manipular, criar, distribuir e compartilhar informações e conhecimentos a qualquer tempo e

espaço acessados por tecnologias de redes. Essa flexibilidade só é possível por conta da

mobilidade própria do laptop, que pode ser transportado pelo docente, e pelo acesso à internet.

O acesso à internet é fundamental. Um laptop sem rede é uma máquina semântica, que nos

permite criar conhecimento em vários gêneros textuais, a partir do acesso e manipulação de

informações armazenadas, mas não nos permite acessar redes e conexões.

Portanto, além de ter o laptop, é necessário acessar com ele a rede mundial de

computadores, a internet. Assim, poderemos instituir práticas e currículos online. A educação

online é uma modalidade de educação que pode ser vivenciada ou exercitada tanto para

potencializar situações de aprendizagem mediadas por encontros presenciais, quanto a

distância, caso os sujeitos do processo não possam ou não queiram se encontrar face a face;

ou ainda situações híbridas, nas quais os encontros presenciais podem ser combinados com

encontros mediados por tecnologias telemáticas (SANTOS, 2005).

Entendemos a Educação, com letra maiúscula, como um processo amplo que vai além

da modalidade de organização dos processos de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, as

tecnologias digitais em rede podem potencializar a educação em geral (presencial ou online) e

a formação de educadores, pois permitem:

• Extensão e novas arquiteturas da sala de aula para além da localização física.

• Acesso a diversos objetos de aprendizagem, interfaces e informações em rede.

• Comunicação interativa entre seres humanos e objetos técnicos.

• Formação de comunidades de prática e de aprendizagem para além das fronteiras

institucionais.

• Vivenciar novas relações com a pesquisa em suas diversas fases.

Tais potencialidades desafiam a pesquisa, que relaciona educação e cibercultura. Pre-

cisamos instituir novas metodologias e novas práticas curriculares multirreferenciais. A

abordagem multirreferencial parte do princípio de que todos os sujeitos envolvidos formam e

se formam em contextos plurais de situações de trabalho e aprendizagem. Os professores e

pesquisadores universitários contribuem com suas itinerâncias científicas, sustentadas pela

prática da pesquisa acadêmica, prática muitas vezes articuladora da teoria e da prática. Os

professores da escola básica são os únicos que vivenciam o lócus escolar em sua

complexidade. Nessa relação procuram fazer a transposição didática das aprendizagens

científicas com suas situações e desafios cotidianos.

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Muitas vezes criam etnométodos, métodos próprios para lidar com as situações educa-

cionais, aprendendo com o dia a dia da comunidade escolar. Interagem diretamente com o

sujeito cultural do nosso tempo, o estudante. Em tempos de cultura digital, os estudantes

vivenciam experiências culturais com o computador e a internet bastante diferentes das

experiências vivenciadas pelos professores. De um lado temos os professores, imigrantes

digitais; do outro, os alunos, nativos digitais. Os primeiros utilizam com pouca ou muita

destreza as tecnologias digitais, mas, muitas vezes, não as vivenciam em seu lócus natural. Os

segundos vivenciam a cultura digital como membros e não como estrangeiros. Dessa forma,

não podemos excluir o estudante da escola básica do processo formativo do lugar de

formadores. Tanto os professores universitários quanto os professores da escola básica podem

ensinar e aprender com seus estudantes. Assim, ampliamos a noção de sujeitos formadores

nos permitindo aprender com as novas gerações.

O conceito de multirreferencialidade é pertinente para contemplar, nos espaços de

aprendizagem, uma leitura plural de seus objetos (práticos ou teóricos), sob diferentes pontos

de vistas, que implicam tanto visões específicas quanto linguagens apropriadas às descrições

exigidas, em função de sistemas de referenciais distintos, considerados, reconhecidos

explicitamente como não redutíveis uns aos outros, ou seja, heterogêneos‖ (ARDOINO, 1998,

p. 24). A multirreferencialidade como um novo paradigma torna-se hoje grande desafio.

Desafio que precisa ser gestado e vivido, principalmente pelos espaços formais de

aprendizagem, que ainda são norteados pelos princípios e pelas práticas de uma ciência

moderna. Por outro lado, diferentes parcelas da sociedade vêm criando novas possibilidades

de educação e de formação inicial e continuada.

A emergência de atividades (presenciais e/ ou online, estruturadas por

dispositivos comunicacionais diversos), cursos (livres, supletivos; qualificação profissional),

atividades culturais diversas, artísticas, religiosas, esportistas, comunitárias começam a

ganhar, neste novo tempo, uma relevância social bastante fecunda. As redes sociais da

internet são um exemplo concreto.

Tal acontecimento vem promovendo a legitimação de novos espaços de aprendizagem,

espaços esses que tentam ―fugir do reducionismo que separa os ambientes de produção e os de

aprendizagem (...), espaços que articulam, intencionalmente, processos de aprendizagem e de

trabalho‖ (BURNHAM, 2000, p. 299). Os sujeitos que vivem e interagem nos espaços

multirreferenciais de aprendizagem expressam, na escola, insatisfações profundas, pondo em

xeque o currículo fragmentado, legitimando inclusive espaços diversos – espaços esses que há

bem pouco tempo não gozavam do status de espaços de aprendizagem – através da autoria

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dos sujeitos construídos pela itinerância dos processos nesses espaços. É pela necessidade de

legitimar tais saberes e também competências que diversos espaços de trabalho estão

certificando os sujeitos pelo reconhecimento do saber fazer – competência –

independentemente de uma suposta formação institucional específica, como, por exemplo, as

experiências ―formais‖ de formação inicial.

A noção de espaço de aprendizagem vai além dos limites do conceito de espaço/lu-

gar. Com a emergência da ―sociedade em rede‖, novos espaços digitais e virtuais de

aprendizagem vêm se estabelecendo a partir do acesso e do uso criativo das novas tecnologias

da comunicação e da informação. Novas relações com o saber vão-se instituindo num

processo híbrido entre o homem e a máquina, tecendo teias complexas de relacionamentos

com o mundo.

Para que a diversidade de linguagens, produções e experiências de vida sejam de fato

contempladas de forma multirreferencializada, nos e pelos espaços de aprendizagem, os

saberes precisam ganhar visibilidade e mobilidade coletiva, ou seja, os sujeitos do

conhecimento precisam ter sua alteridade reconhecida, sentindo-se implicados numa produção

coletiva, dinâmica e interativa que rompa com os limites do tempo e do espaço geográfico.

O desafio de criar um currículo que contemple a diversidade do coletivo, permitindo

que as singularidades possam emergir, potencializando as experiências multirreferenciais dos

sujeitos, requer não só uma mudança paradigmática das concepções de currículo, como requer

também o uso de dispositivos comunicacionais, interfaces digitais, que permitam uma

dinâmica social que rompa com as limitações espaço/temporais dos encontros presenciais.

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Nesse sentido, o acesso e uso criativo das tecnologias em rede podem estruturar as relações

curriculares de forma complexa e dinâmica. Obviamente, o uso de dispositivos

comunicacionais por si só não construirá um currículo em rede; entretanto, pode potencializá-

lo.

Presidência da República

Ministério da Educação

TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO

Coordenação-geral da TV Escola

Érico da Silveira

Coordenação Pedagógica

Maria Carolina Mello de Sousa

Supervisão Pedagógica

Rosa Helena Mendonça

Acompanhamento Pedagógico

Carla Ramos e Ana Maria Miguel

Coordenação de Utilização e Avaliação

Mônica Mufarrej

Fernanda Braga

Copidesque e Revisão Magda Frediani Martins

Diagramação e Editoração Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil

Gerência de Criação e Produção de Arte

Consultora especialmente convidada Edméa Santos

E-mail: [email protected]

Home page: www.tvbrasil.org.br/salto

Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro.

CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)

Abril 2011

TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM:

http://tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/212448cibercultura.pdf

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O Impacto do Conceito de Cultura Sobre o Conceito de Homem

Clifford Geertz11

O antropólogo francês Lévi-Strauss afirma que a explicação científica busca substituir

complexidades pouco compreensíveis por complexidades mais compreensíveis, e não

reduzindo exclusivamente a complexidade como se imagina. Partindo deste princípio,

Clifford Geertz ensina que as ciências sociais, muito mais complexas por sua essência,

também devem buscar a ordenação de sua complexidade.

A idéia iluminista defendia que o homem, mesmo inserido em diversos contextos,

costumes, crenças e lugares, poderia ser definido por suas características gerais, presentes em

todos os indivíduos da sua espécie. Esta generalização, que buscava a simplicidade de análise

e definição, falhou em vários aspectos que, por serem muito superficiais, perderam o sentido

da própria definição ou tornaram por demais complexa a distinção entre características gerais

e características localizadas.

Assim, diferente da idéia iluminista do homem – regulada, invariante e simples, o

avanço da concepção científica da cultura propiciou uma nova idéia de homem, muito mais

complexa do que se imaginava, e que até então os estudos não conseguiram organizar. É a

partir do reconhecimento do homem com suas características gerais e do homem como fruto

de lugares e épocas distintas é que a antropologia busca definí-lo. De fato, apesar de a espécie

humana possuir distintivas universais, é improvável que se possa definir um indivíduo como

um ser desprovido das características impostas por sua cultura, necessárias até mesmo para

situá-lo como membro de uma determinada sociedade. Todavia, também não se pode perder a

essência do homem em suas características irrelevantes, o que fatalmente levaria sua definição

a diversas caracterizações meramente pessoais e localizadas.

Conforme Clifford Geertz, todas ou virtualmente todas as correntes teóricas que

tentaram localizar o homem no conjunto de seus costumes adotaram uma tática de relacionar

os fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais entre si, denominada por ele como

concepção estratigráfica. A estratigrafia compreenderia o homem como a sobreposição destes

incontestáveis fatores em camadas completas e irredutíveis. Os fatores culturais, neste

conceito de estratificação hierárquica, não se misturam com os demais fatores, pressupondo

11 Artigo enviado por Danilo Christiano Antunes Meira, em 22/05/2008, às 02:06:01

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uma relação de independência, criando a imagem de um homem que, embora racional, estaria

nu em relação aos seus costumes.

A análise concreta e a pesquisa da concepção estratigráfica buscaram definir

universais na cultura através do consensus gentium, no meio da diversidade do mundo e do

tempo, para que através destes fossem traçadas as características culturais essenciais ao

homem, distinguindo-os dos demais traços localizados e periféricos. A idéia de consensus

gentium ligado à cultura foi utilizada por diversos teóricos e com diversas denominações, tais

como fez Clark Wisser com ―o padrão cultural universal‖, Bronislaw Malinowski com ―tipos

institucionais universais‖ e G. P. Murdock e seus ―denominadores comuns da cultura‖.

A busca destas universais da cultura, características comuns e generalistas aos povos,

encontra diversos entraves em sua própria essência. Nesta afirmação, Clifford Geertz enumera

3 premissas que devem ser observadas:

1. Os universais propostos devem possuir teor substancial e não apenas

categorias vazias.

2. Os universais propostos devem ser fundamentados em processos

particulares biológicos, psicológicos ou sociológicos e não apenas associados a

realidades adjacentes.

3. Os universais propostos devem ser convincentemente defendidos como

elementos essenciais em uma definição de humanidade perante outras particularidades

culturais secundárias.

Sobre as reservas propostas e citando instituições como religião, família e casamento,

Clifford Geertz afirma que ao abstrair as diferenças destes universais empíricos, como

proposto pela abordagem consensus gentium, estes perdem a sua essência. Também, caso não

sejam abstraídas as características, não seria possível afirmar que tais manifestações culturais

possuam entre si o mesmo teor, dadas as suas distintas circunstâncias.

Assim prosseguindo, o autor demonstra que o fato de o conceito estratigráfico separar

em camadas independentes os supostos constituintes do homem faz com que os mesmos não

possam ser compreendidos como um conjunto interligado, anulando a possibilidade de um

fenômeno não-cultural justificar um fenômeno natural.

Também, salienta que quando se intenta combinar suportes universais, baseados nos

―pontos invariantes de referência‖, às exigências humanas subjacentes, como a necessidade

de reprodução e o casamento, se perde a relação dos níveis de relacionamento estratigráfico se

deseja manter, pois tais afirmações são desprovidas de qualquer integração teórica.

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Diante do impasse criado pela inadequação da teoria de conceito estratigráfico à sua

prática, Clifford Geertz salienta que a tipificação adequada de homem não pode se basear na

busca de constantes universais diante das particulares e acrescenta:

―… pode ser que nas particularidades culturais dos povos – nas suas

esquisitices – sejam encontradas algumas das revelações mais instrutivas

sobre o que é genericamente humano. E a principal contribuição da ciência antropológica à construção – ou reconstrução – de um conceito do homem

pode então repousar no fato de nos mostrar como encontrá-las.‖

Clifford Geertz defende que o fato de os antropólogos optarem pelas universais

culturais, diante da diversidade do comportamento humano, é o receio que o relativismo

cultural trazido pelo historicismo prive-os de um ponto fixo. Todavia, também não se pode

afirmar que todos os atos feitos por um grupo devem ser dignos de respeito por qualquer

outro.

De fato, se deve procurar relações sistemáticas entre fenômenos diversos, pois as

diferentes características apresentadas por diversas culturas podem contribuir mais para o

entendimento do homem que a relação de identidades substantivas em fenômenos similares.

Ao passo da abordagem estratigráfica, deve-se ater a uma abordagem sintética, onde os

fatores sociais, culturais, biológicos e psicológicos são compreendidos como variáveis de um

sistema unitário de análise, integrando diferentes tipos de teoria e conceitos a fim de formular

novas proposições.

Partindo deste princípio, Clifford Geertz propõe duas idéias: primeiramente, a cultura

não deve ser vista como um padrão concreto de comportamento – costumes, usos e tradições,

e sim como um conjunto de mecanismo de controle – planos, receitas, regras e instruções. A

segunda proposição baseia-se no fato de o homem ser o animal mais dependente de controles

extragenéticos que regulam o seu comportamento.

Seguindo-se o proposto, a definição de homem passa a enfatizar a cultura como

mecanismo de controle, o que pode ser verificado no fato de o homem visto como um

equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas acaba por viver apenas uma.

Esta perspectiva de cultura como mecanismo de controle se fundamenta no

pressuposto de que o pensamento humano é baseado em um tráfego público de símbolos

significantes – palavras, gestos, relógios, jóias ou qualquer coisa afastada da realidade e que

seja usada para exteriorizar uma experiência e auto-orientar-se no ―curso corrente das coisas

experimentadas‖, como define John Dewey.

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―Não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos

significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável,

um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da

existência humana, mas uma condição essencial para ela – a principal base

de sua especificidade.‖

Para que este conceito se tornasse possível, Clifford Geertz enfatiza os avanços

recentes da nossa compreensão em relação à evolução do primata ao homo sapiens e

especifica os 3 mais relevantes:

1. Descartar a perspectiva seqüencial que definia a evolução física anterior

à evolução intelectual, visto que os hominídeos moldaram seus descendentes através

da cultura. Esta produção e transmissão de cultura foram essenciais para que o mesmo

se evoluísse à definição de homem.

2. A descoberta que as principais mudanças biológicas que originaram o

homem moderno ocorreram no sistema nervoso central, e especialmente no cérebro

que, com o acúmulo e desenvolvimento da cultura, representou, além de maiores

proporções físicas, a maior evolução de fato.

3. A compreensão de que o homem é um ser incompleto, dependente da

cultura para se completar, distinguindo-se dos não-humanos mais do que sua

capacidade de aprendizado, por sua necessidade de aprendizado para se comportar

como ser humano.

Assim, a nova perspectiva da evolução do homem pressupõe o fato de que o processo

de produção, acúmulo e transmissão de cultura foi o responsável pelo surgimento do homem

como conhecemos, pois na ausência deste processo o homem poderia ser entendido como um

monstro incontrolável, um caso psiquiátrico.

Entre o que o nosso instinto intenta e o que o homem deseja fazer há lacunas que

devem ser preenchidas com as informações adquiridas pela cultura, dado que os valores, atos

e até o sistema nervoso, como ironiza o autor, são produtos culturais.

TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM: http://www.jurisciencia.com/artigos/clifford-

geertz-o-impacto-do-conceito-de-cultura-sobre-o-conceito-de-homem/73/