Para Que Serve a Filosofia_Simon Blackburn

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Crítica Epistemologia Estética Ética Filosofia da ciência Filosofia da linguagem Filosofia da mente Filosofia da religião Filosofia política Lógica Metafísica Filosofia geral Ensino da filosofia História da filosofia Filosofia Aberta Filosoficamente Filosofia Pública Julho de 2001 Filosofia Para que serve a filosofia? Simon Blackburn Universidade de Cambridge Está tudo muito bem, mas será que vale a pena preocuparmo-nos? Qual é o interesse? A reflexão não põe o mundo a funcionar. Não coze o pão nem põe os aviões no ar. Por que razão não havemos de pôr as perguntas reflexivas de lado, e passar às outras coisas? Irei esboçar três tipos de respostas: a elevada, a intermédia e a chã. A resposta elevada põe em questão a pergunta — uma estratégia filosófica típica, pois implica subir um grau na ordem da reflexão. Que queremos dizer quando perguntamos para que serve? A reflexão não coze o pão, mas também a arquitectura não o faz, nem a música, a arte, a história ou a literatura. Acontece apenas que queremos compreender- nos. Queremos isto pelo seu valor intrínseco, tal como os especialistas

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Simon BlackburnUniversidade de CambridgeEstá tudo muito bem, mas será que vale a pena preocuparmo-nos? Qual é o interesse? A reflexão não põe o mundo a funcionar. Não coze o pão nem põe os aviões no ar. Por que razão não havemos de pôr as perguntas reflexivas de lado, e passar às outras coisas? Irei esboçar três tipos de respostas: a elevada, a intermédia e a chã.

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    CrticaEpistemologia Esttica tica Filosofia da cincia Filosofia da linguagem

    Filosofia da mente Filosofia da religio Filosofia poltica Lgica Metafsica

    Filosofia geral Ensino da filosofia Histria da filosofiaFilosofia Aberta Filosoficamente Filosofia Pblica

    Julho de 2001 Filosofia

    Para que serve afilosofia?Simon BlackburnUniversidade de Cambridge

    Est tudo muito bem, mas ser que vale a pena preocuparmo-nos? Qual o interesse? A reflexo no pe o mundo a funcionar. No coze o ponem pe os avies no ar. Por que razo no havemos de pr asperguntas reflexivas de lado, e passar s outras coisas? Irei esboar trstipos de respostas: a elevada, a intermdia e a ch.

    A resposta elevada pe em questo a pergunta uma estratgiafilosfica tpica, pois implica subir um grau na ordem da reflexo. Quequeremos dizer quando perguntamos para que serve? A reflexo nocoze o po, mas tambm a arquitectura no o faz, nem a msica, a arte, ahistria ou a literatura. Acontece apenas que queremos compreender-nos. Queremos isto pelo seu valor intrnseco, tal como os especialistas

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    em cincias ou matemticas puras podem querer compreender oprincpio do universo, ou a teoria dos conjuntos, pelo seu valorintrnseco, ou como um msico pode querer resolver alguns problemasna harmonia ou no contraponto pelo seu valor intrnseco. So coisas queno se fazem em funo de aplicaes prticas. Grande parte da vidatrata-se de facto de criar gado para poder comprar mais terra, parapoder criar mais gado, para poder comprar mais terra Os momentosem que nos libertamos disso, seja para fazer matemtica ou msica, paraler Plato ou Ea de Queirs, devem ser acarinhados. So momentos emque desenvolvemos a nossa sade mental. E a nossa sade mental boaem si, como a nossa sade fsica. Alm disso, h no fim de contas umarecompensa em termos de prazer. Quando temos sade fsica, oexerccio fsico d-nos prazer, e quando temos sade mental, o exercciomental d-nos prazer.

    Esta uma resposta purista. Esta resposta no est errada, mas tem umproblema. Acontece que provavelmente s consegue ser atraente paraas pessoas que j esto parcialmente convencidas pessoas que nofizeram a pergunta original num tom de voz muito agressivo.

    Por isso, eis uma resposta intermdia. A reflexo importante porqueest na continuidade com a prtica. O modo como pensamos sobre oque estamos a fazer afecta o modo como o fazemos, ou at mesmo se ochegamos a fazer; pode conduzir a nossa investigao, ou a nossaatitude relativamente a pessoas que fazem as coisas de modo diferente,ou at toda a nossa vida. Tomemos um exemplo simples: se as nossasreflexes nos levarem a acreditar na vida depois da morte, podemosestar preparados para enfrentar perseguies que no enfrentaramos senos convencssemos como muitos filsofos de que a noo no

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    faz sentido. O fatalismo, ou a ideia de que o futuro est determinado,seja o que for que faamos, uma convico puramente filosfica mas uma convico que tem o poder de paralisar a aco. Em termosmais polticos, pode tambm exprimir a aceitao do baixo estatutosocial atribudo a alguns segmentos da populao, o que pode serreconfortante para pessoas que, pertencendo aos estatutos maiselevados, encorajam essa aceitao.

    Consideremos alguns exemplos mais prevalecentes no Ocidente. Aoreflectir sobre a natureza humana, muitas pessoas pensam que, nofundo, somos inteiramente egostas. S procuramos a nossa prpriavantagem e nunca nos preocupamos realmente com mais ningum.Quando parece que nos preocupamos com os outros, isso apenasdisfara a nossa esperana num benefcio futuro para ns mesmos. Oparadigma principal nas cincias sociais o homo economicus ohomem econmico. O homem econmico toma conta de si, numa lutacompetitiva com os outros. Ora, se as pessoas pensarem que somostodos assim, sempre, as suas relaes com os outros transformam-se;pois tero menos confiana nos outros, sero menos cooperativos emais desconfiados. Isto muda o modo como interagem com os outros, oque acarreta vrios custos. Iro descobrir que difcil, e por vezesimpossvel, manter actividades cooperativas: podem ficar encurraladosnaquilo a que o filsofo Thomas Hobbes (1588-1676) chamou a guerra detodos contra todos. Na vida real, essas pessoas tero um alto custo apagar, pois esto sempre a pensar que esto a ser enganadas. Se aminha atitude for a de que um contrato verbal no vale o papel em queest escrito, terei de pagar a advogados para conceber contratos comsanes, e se eu no confiar nos advogados por pensar que eles nadafazem excepto encher-se de dinheiro custa dos outros, terei de

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    contratar outros advogados para verificarem o trabalho dos primeirosadvogados, e assim por diante. Mas tudo isto pode estar baseado numerro filosfico, que consiste em olhar para a motivao humana atravsde um conjunto de categorias erradas, compreendendo portanto deforma errada a sua natureza. Talvez as pessoas possam importar-seumas com as outras, ou talvez possam pelo menos preocupar-se emcumprir a sua parte e em manter as suas promessas. Se tivermos umaimagem mais optimista, talvez as pessoas possam viver de acordo comessa imagem. Talvez as suas vidas melhorem. Assim, pensar um pouco,encontrar as categorias certas para compreender a motivao humana, uma tarefa prtica importante. No algo que esteja confinado aoescritrio; pelo contrrio, algo que extravasa o escritrio.

    Eis um exemplo muito diferente. O astrnomo polaco Nicolau Coprnico(1473-1543) reflectiu sobre como temos conhecimento do movimento.Coprnico percebeu que o modo como compreendemos o movimentodepende da nossa perspectiva: isto , a questo de saber se vemos ouno os objectos em movimento o resultado do modo como nsprprios estamos colocados e, em particular, resulta da questo de saberse ns prprios estamos ou no em movimento. (Sobretudo emcomboios ou nos aeroportos, j tivemos a iluso de ver o comboio ouavio que est ao lado do nosso a comear a movimentar-se,apercebendo-nos depois, com um sobressalto, que somos ns queestamos em movimento. Mas no tempo de Coprnico havia menosexemplos quotidianos.) Assim, os movimentos aparentes das estrelas edos planetas poderiam ocorrer no por eles se movimentarem comoaparentam, mas por causa do nosso prprio movimento. E afinal ascoisas so mesmo assim. Neste caso, a reflexo sobre a natureza doconhecimento o que os filsofos chamam investigao

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    epistemolgica, do grego episteme, que significa conhecimento deuorigem ao primeiro grande salto da cincia moderna. As reflexes deEinstein sobre o modo como sabemos que dois acontecimentos sosimultneos tinham a mesma estrutura. Einstein percebeu que osresultados das nossas medies iriam depender da direco em queestamos a viajar relativamente aos acontecimentos que estamos acronometrar. Isto conduziu teoria da relatividade especial (e o prprioEinstein reconheceu a importncia dos filsofos que o precederam, aosensibilizarem-no para as complexidades epistemolgicas de taismedies).

    Como exemplo final, podemos considerar um problema filosfico quemuitas pessoas enfrentam quando pensam sobre a mente e o corpo.Muitas pessoas tm em vista uma separao estrita entre a mente, comouma coisa, e o corpo, como uma coisa diferente. Embora isto possaparecer apenas bom senso, pode comear a contaminar a prtica de umamaneira bastante insidiosa. Por exemplo, comea a ser difcil ver comoestas duas coisas diferentes interagem. Os mdicos podem ento acharquase inevitvel que falhem os tratamentos das condies fsicas querespondem a causas mentais ou psicolgicas. Podem achar praticamenteimpossvel ver como interferir na mente de algum pode alguma vezcausar mudanas no sistema fsico complexo que o seu corpo. Afinal, aboa cincia diz-nos que necessrio ter causas fsicas e qumicas para terefeitos fsicos e qumicos. Logo, podemos ter uma certeza a priori, umacerteza de poltrona, de que um certo tipo de tratamento (drogas echoques elctricos, por exemplo) tem de estar correcto e que outrotipo de tratamento (como tratar os pacientes humanamente, oaconselhamento e a anlise) est errado: no cientfico, no slido,est condenado a falhar. Mas esta certeza no tem como premissa a

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    cincia mas uma falsa filosofia. Uma concepo filosfica melhor darelao entre a mente e o corpo muda essa certeza. Uma concepomelhor deve permitir-nos ver que nada h de surpreendente no facto dehaver interaco mente-corpo. Um dos factos mais corriqueiros, porexemplo, que pensar em algumas coisas (domnio mental) pode fazercorar (domnio fsico). Pensar num perigo futuro pode causar todo o tipode mudanas corporais: o corao bate rapidamente, os punhos fecham-se, as entranhas contraem-se. Por extrapolao, no deve haver qualquerdificuldade em compreender que um estado mental como um alegreoptimismo possa afectar um estado fsico como o desaparecimento demanchas na pele ou at a remisso de um cancro. O problema de saberse tais coisas acontecem realmente transforma-se numa questopuramente emprica. A prpria certeza de poltrona de que tais coisas nopoderiam acontecer afinal algo que depende de uma m compreensodas estruturas do pensamento, ou por outras palavras, m filosofia enesse sentido anti-cientfica. E perceber isto pode melhorar as atitudese as prticas mdicas.

    Assim, a resposta intermdia chama-nos a ateno para o facto de areflexo estar na continuidade com a prtica, podendo a nossa prticaser melhor ou pior de acordo com o valor das nossas reflexes. Umsistema de pensamento algo em que vivemos, tal como uma casa, e sea nossa casa intelectual estiver fechada e for limitada, precisamos de verque outras estruturas melhores sero possveis.

    A resposta ch limita-se a sublinhar um pouco este aspecto, norelativamente a belas disciplinas graciosas como a economia e a fsica,mas relativamente ao piso trreo onde a vida humana um poucomenos elegante. Uma das sries de stiras gravadas pelo pintor

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    espanhol Goya tem por ttulo O Sono da Razo ProduzMonstros. Goya pensava que muitas das loucuras dahumanidade resultavam do sono da razo. Hsempre pessoas prontas a dizer-nos o que queremos, aexplicar-nos como nos vo dar essas coisas e amostrar-nos no que devemos acreditar. As convicesso contagiosas, e possvel convencer as pessoas depraticamente tudo. Geralmente, estamos dispostos a pensar que osnossos hbitos, as nossas convices, a nossa religio e os nossospolticos so melhores do que os deles, ou que os nossos direitos dadospor Deus anulam os direitos deles, ou que os nossos interesses exigemataques defensivos ou dissuasivos contra eles. Em ltima anlise, trata-se de ideias que fazem as pessoas matarem-se umas s outras. porcausa de ideias sobre o que os outros so, ou quem somos, ou o que osnossos interesses ou direitos exigem que fazemos guerras ou oprimimosos outros de conscincia tranquila, ou at aceitamos por vezes seroprimidos. Quando estas convices implicam o sono da razo, odespertar crtico o antdoto. A reflexo permite-nos recuar, ver quetalvez a nossa perspectiva sobre uma dada situao esteja distorcida ouseja cega, ou pelo menos ver se h argumentos a favor dos nossoshbitos, ou se tudo meramente subjectivo. Fazer isto bem pr emprtica mais alguma engenharia conceptual.

    A reflexo pode ser encarada como uma coisa perigosa, visto que nopodemos saber partida onde nos conduzir. H sempre pensamentosque se opem reflexo. As questes filosficas fazem muitas pessoassentirem-se desconfortveis, ou mesmo ultrajadas. Algumas tm medoque as suas ideias possam no resistir to bem como elas gostariam secomearem a pensar sobre elas. Outras podem querer basear-se nas

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    polticas da identidade ou, por outras palavras, no tipo de identificaocom uma tradio, grupo ou identidades nacionais ou tnicasparticulares que os convida a voltar as costas a estranhos que coloquemem causa os hbitos do grupo. Essas pessoas iro minimizar a crtica: osseus valores so incomensurveis relativamente aos valores dosestranhos. S os irmos e irms do seu crculo podem compreend-las.Algumas pessoas gostam de se refugiar num crculo espesso, confortvele tradicional de tradies populares, sem se preocuparem muito com asua estrutura, as suas origens, ou mesmo com as crticas que possammerecer. A reflexo abre a avenida da crtica, e as tradies popularespodem no gostar da crtica. Neste sentido, as ideologias tornam-secrculos fechados, prontas a sentirem-se ultrajadas pelo espritointerrogante.

    Nos ltimos 2 mil anos, a tradio filosfica tem sido a inimiga deste tipode complacncia confortvel. Tem insistido na ideia de que uma vida noexaminada no vale a pena ser vivida. Tem insistido no poder dareflexo racional para descobrir o que h de errado nas nossas prticas,e para as substituir por prticas melhores. Tem identificado a auto-reflexo crtica com a liberdade e a ideia que s quando nosconseguimos ver a ns mesmos de forma adequada podemos controlara direco em que desejamos caminhar. S quando conseguimos ver anossa situao de forma estvel e a vemos na sua totalidade podemoscomear a pensar no que fazer a seu respeito. Marx disse que osfilsofos anteriores tinham procurado compreender o mundo, ao passoque o que era preciso era mud-lo uma das asseres famosas maistolas de todos os tempos (e completamente desmentida pela sua prpriaprtica intelectual). Teria sido melhor que Marx tivesse acrescentado quesem compreender o mundo, pouco saberemos em termos de como o

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    mudar pelo menos para melhor. Rosencranz e Guildenstern admitemno saber tocar gaita-de-foles, mas tentam manipular Hamlet. Quandoagimos sem compreenso, o mundo est perfeitamente preparado paradar voz reaco de Hamlet: Pensais que eu sou mais fcil de controlarque uma gaita-de-foles?

    H correntes acadmicas no nosso tempo que so contra estas ideias.H pessoas que questionam a prpria noo de verdade, de razo, ou apossibilidade da reflexo desapaixonada. Na sua maior parte, fazem mfilosofia, muitas vezes sem saberem que isso que esto a fazer: soengenheiros conceptuais que no conseguem desenhar um plano,quando mais conceber uma estrutura. Voltaremos a esta questo vriasvezes ao longo do livro, mas para j posso prometer que este livro estde cara levantada ao lado da tradio e contra qualquer cepticismomoderno, ou ps-moderno, quanto ao valor da reflexo.

    O mote completo de Goya para a sua gravura o seguinte: Aimaginao abandonada pela razo produz monstros impossveis; unidaa ela, a me das artes e a fonte dos seus encantos. assim quedevemos encarar as coisas.

    Simon Blackburn

    Retirado de Pense: Uma introduo filosofia, de Simon Blackburn (Lisboa: Gradiva, 2000).

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