Para Entender Fundamentalismo - Martin N. Dreher - Completo

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P A R A E N T E N D E R Fundamentalismo Martin N. Dreher São Leopoldo Sinodal 2006 ÍNDICE Introdução........................................................... 5 Pietistas e ilustrados ........................................... 9 Pietismo ........................................................ 9 Ilustração ..................................................... 28 Século XIX ....................................................... 45 Século longo ............................................... 45 Revolução Francesa .................................... 47 Da Revolução ao Congresso de Viena........ 52 Estado e igreja na Prússia ........................... 53 Questão social ............................................. 54 Catolicismo romano .................................... 58 Pio IX e o Concílio Vaticano I (1869-70)... 60 Kulturkämpfe juramento antimodernista......... 61 Teologia no século XIX .................................... 65 Schleiermacher............................................ 65 Reavivamento ............................................. 68 Teologia protestante .................................... 70 Teologia liberal ........................................... 74 Fundamentalismo ............................................. 81 Leituras complementares .................................. 95

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P A R A E N T E N D E R

Fundamentalismo

Martin N. Dreher

São Leopoldo Sinodal

2006

ÍNDICE

Introdução ........................................................... 5 Pietistas e ilustrados ........................................... 9

Pietismo ........................................................ 9 Ilustração ..................................................... 28

Século XIX ....................................................... 45 Século longo ............................................... 45 Revolução Francesa .................................... 47 Da Revolução ao Congresso de Viena ........ 52 Estado e igreja na Prússia ........................... 53 Questão social ............................................. 54 Catolicismo romano .................................... 58 Pio IX e o Concílio Vaticano I (1869-70)... 60 Kulturkämpfe juramento antimodernista ......... 61

Teologia no século XIX .................................... 65 Schleiermacher ............................................ 65 Reavivamento ............................................. 68 Teologia protestante .................................... 70 Teologia liberal ........................................... 74

Fundamentalismo ............................................. 81 Leituras complementares .................................. 95

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Pgs 5 a 8 INTRODUÇÃO

"Você é fundamentalista?" Se a pergunta fosse dirigida a nós,

certamente responderíamos com um sonoro "não". 0 conceito fundamentalismo tem sua origem na palavra fundamento. Não há casa que possa ser construída sem fundamento, não há argumento que possa ser formulado sem fundamentos, não há existência humana sem fundamento. Por esse último aspecto, somos todos fundamentalistas, pois todos necessitamos de fundamentos, de alicerces para a nossa existência, e quem desistir deles estará desistindo de si mesmo. Porém o trágico das formulações de nossos dias é que "fundamentalistas" são sempre os outros, jamais nós próprios.

É bom lembrar que a palavra "fundamentalismo" tem sua origem no Ocidente cristão e é fruto e decorrência do que se convencionou chamar de Modernidade. Os maiores fundamentalismos encontram-se no Ocidente. Foram gestados aqui em oposição à Ilustração1 e ao liberalismo2 e são filhos diletos do Romantismo1. Na época do Romantismo, contemporâneo do colonialismo do século XIX e da primeira metade do século XX, o fundamentalismo foi exportado para os continentes colonizados pelas potências do Atlântico Norte.

A temática do fundamentalismo voltou a ser atual após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, quando aviões foram lançados intencionalmente contra o coração financeiro norte-americano em Nova Iorque e contra o coração militar norte-americano, o Pentágono, em Washington. Fundamentalistas islâmicos foram acusados de ser os autores do atentado.

As pessoas que planejaram os ataques suicidas de Nova Iorque e Washington certamente estavam convencidas de que faziam isso em nome da luta do bem contra o mal. Essa sua convicção é chamada de maniqueísmo2, típico das pessoas que não vislumbram mais o arco-íris, mas só vêem preto e branco, luz e trevas... Seus argumentos não precisam ter sido religiosos. Os argumentos do presidente Bush ao jurar vingança foram semelhantes: "Vamos eliminar o mal deste mundo". Bush não fez suas colocações forçosamente a partir de convicções religiosas. Nossos fundamentais não são necessariamente religiosos. Não são apenas fanáticos religiosos que precisam de argumentos

1 Movimento que substituiu a Ilustração e os antigos modelos clássicos, procurando situar a existência humana num todo que envolvesse céus e terra. Daí que privilegiou os mitos da Antigüidade, da Idade Média e, não raro, da Reforma, culminando, muitas vezes, num movimento de Restauração de valores poéticos, religiosos e políticos. 2 Doutrina desenvolvida pelo persa Mani (século III), segundo o qual o universo foi criado e está dominado por dois princípios antagônicos: Deus e diabo. Por isso só há dois princípios opostos: bem e mal.

para justificar seus atos, que a maioria chama de loucura. Muitas vezes (na maioria das vezes?), quando procuramos argumentos para definir nossos fundamentos, procuramos por inimigos. Os proprietários e os acionistas da indústria de armamentos precisam de argumentos para dizer que são fundamentais. Então o bom passa a ser mau, e o mau passa a ser bom. Quando Saddam Hussein usou armas químicas contra curdos e iranianos era bom, e boas eram as armas químicas. Quando passou a criticar os fornecedores dessas mesmas armas, passou a ser mau, e más eram as armas químicas. Bom era Osama Bin Laden no tempo em que, em Hollywood, se filmava Rambo 3. Então os afegãos muçulmanos eram bons. Nas palavras de Ronald Reagan, eram heróis semelhantes aos pais fundadores dos Estados Unidos da América do Norte. Treze anos depois, são maus. Em 11 de setembro de 1973, 28 anos antes de 11 de setembro de 2001, o palácio presidencial de Santiago de Chile ardeu em chamas e o presidente Salvador Allende foi assassinado. 0 ato foi considerado bom, pois, segundo Henry Kissinger, o país "se havia tornado marxista em decorrência da irresponsabilidade de seu povo". Todos os fundamentalistas se parecem: os religiosos e os do mercado. Os religiosos porque vivem dos dogmas da fé; os do mercado porque, para eles, o mais importante são as leis que regem a compra e a venda de seus produtos. Desprezam vidas humanas. 0 trágico é que, enquanto desprezam vidas humanas, fazem-no em nome da Verdade Única. As crueldades do movimento guerrilheiro Sendero Luminoso, no Peru, prepararam as crueldades do presidente Fujimori. As atrocidades do Oriente Médio prepararam as atro-cidades do terrorismo feito em nome de Alá. Não é Alá quem comete os crimes feitos em seu nome. Não foi Deus quem encomendou aos nazistas o holocausto judeu; não foi Deus quem encomendou a expulsão dos palestinos de suas terras. 0 maniqueísmo do olho por olho e dente por dente deixa o mundo cego, sem olhos e desdentado. Depois que as vacas ficaram loucas, os seres humanos enlouqueceram. Os seres humanos criaram um sistema que provoca loucuras em nome da Verdade Única.

É nesse contexto que procuramos acompanhar a gênese do fundamentalismo. Fazemo-lo no contexto da Modernidade, dos anos que começam no século XVII e dos quais alguns afirmam que estariam chegando a seu final. Será? Para o leitor poderá parecer que privilegiamos pensadores protestantes. No entanto, é bom lembrar que desde o século XVI houve progressiva hegemonia do pensamento protestante no Ocidente, mesmo que o fato tenha tido poucos reflexos no Brasil.

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PIETISTAS E ILUSTRADOS

Duas formas de pensamento moldaram-nos no Ocidente mais do que possamos imaginar e fizeram com que alguns se considerassem piedosos enquanto julgavam os outros ilustrados; os outros, os ilustrados, consideravam os demais pietistas.

Pietismo

Pietismo e Ilustração são as duas faces de uma mesma moeda, cunhada para um o período da história do Ocidente marcado pelo cristianismo. Trata-se do período que se convencionou chamar de Modernidade. Nele há numerosos indicadores religiosos, políticos, sociais e intelectuais apontando para um novo espírito. Se perguntarmos por anos, devemos situar-nos entre a Paz da Westfália, em 1648, e o ano de 1806, quando chegou a seu final o Sacro Império Romano Germânico, iniciado em tempos medievais. No início do período, situamos um teólogo, Felipe Jacó Spener; em seu final, encontramos um filósofo: Immanuel Kant. Em 1675, Spener publicou um livreto: Pia Desidéria (Desejos Piedosos); em 1793, Kant publicou A Religião nos Limites da Razão Pura.

Politicamente, no início do período, chegou a seu auge na França de Luís XIV (1643-1715) o absolutismo. A política de então era pragmática, racional, centrada em cortes, funcionários públicos e exércitos permanentes. O governo era feito a partir de critérios de política que dispensavam, cons-cientemente, aspectos ético-religiosos. O novo espírito político estava caracterizado por homens como Thomas Hobbes (1588-1679), NiccolòMachiavelliX 1469-1527) e Jean Armand duPlessisdeRichelieu{\585-1642). Guerras religiosas ha-viam devastado a sociedade. Verdades haviam sido colocadas contra verdades; algumas eram católicas, outras eram protestantes. Famílias inteiras haviam sido destruídas, restando apenas indivíduos. Era necessário reconstruir. No processo de reconstrução, a igreja teve um papel importante e com ele surgiram o pietismo e a Ilustração.

O pietismo e a Ilustração são irmãos, sendo o mais velho deles o pietismo, que surgiu no século XVII e explodiu no século XIX. Ele acentuou e acelerou a individualização e a interiorização da vida religiosa, desenvolvendo novas formas de piedade pessoal e de vida em sociedade. Além disso, pro

Pgs 11 - 12 vocou mudanças na teologia e na igreja. Não ficou restrito a um país ou a uma denominação. Talvez o pietismo seja o primeiro movimento transconfessional, nome usado para descrever movimentos que perpassam as denominações, igrejas e grupos religiosos.

Nem o pietismo tampouco a Ilustração podem ser compreendidos sem se conhecer o contexto de seu nascedouro no século XVII. Ao acentuar o individualismo e a espiritualização da fé, o pietismo procurou superar o confessionalismo3, representante de uma religião fossilizada, da "pura e reta doutrina", ao qual julgava estéril em conseqüência das discussões teológicas dogmáticas, do acento das hierarquias, sem nada fazer contra a frouxidão ética. Acentuou a teologia da experiência da fé contra a teologia do mero conhecimento. Lutou pela regeneração pessoal contra a preocupação com o dogma correto, que levava a controvérsias nada edificantes. O desespero de um dos precursores do pietismo, ChristianHoburg{\607'-1675), com a situação do confessionalismo expressa-se nas palavras: "Justificação é ficção; renascimento é fato". Criticava com essa afirmação os teólogos da época, que viviam reproduzindo a tese de Lutero (1483-1546) de que o ser humano é "justificado pela fé", sem tirar dessa tese conseqüências práticas para o cotidiano do cristão. Por isso os pietistas foram incansáveis em afirmar o pecado pessoal, a conversão provocada pelo Espírito Santo e a manifestação desse acontecimento em vida santificada. Houve períodos em que o destaque dado à vida santificada era um chamado à perfeição, pois, se a relação íntima com Deus não culminasse em santificação, em vida santificada, a fé seria mera aparência. Então surgiu nos meios pietistas uma série de frases de efeito, nas quais se dizia que "vida é melhor do que doutrina", "religião é questão de coração e não de cabeça", "tornar-se não ser" etc. Além disso, acentuava-se a internalização da fé contra a exteriorização representada por pia batismal, púlpito, confessionário e altar. Ao acentuarem aspectos da Reforma radical do século XVI, que fora combatida a ferro e fogo por católicos e por protestantes, os pietistas entendiam-se como uma continuação da Reforma religiosa do século XVI, movimento que dera origem a luteranos, calvinistas e católico-romanos tridentinos. No século XVI, os reformadores radicais, conhecidos por sua negação ao batismo de crianças, pelo destaque que davam à liberdade de consciência, à separação de igreja e Estado e à necessidade de reforma social, tiveram suas idéias sufocadas. Estas retornavam no movimento pietista. 3 Conceito que designa a acentuação unilateral de determinado credo, tido como regra para a teologia e para a vida religiosa ou cultural. As peculiaridades são consideradas básicas, buscando-se impô-las aos demais.

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Pgs 12 - 13 Segundo os pietistas, no século XVI somente a doutrina fora reformada. Importava, agora, reformar a vida.

Vejamos algumas das características do pietismo. 0 ideal de perfeição, já mencionado, dever-se-ia manifestar em renovação espiritual e ética. Ambas estão centradas no indivíduo. Em razão desse acento, houve alteração no conceito de igreja: os reformadores protestantes haviam acentuado o lado "objetivo" da igreja - a palavra e os sacramentos. Neles se tem a verdadeira igreja. Já o pietismo acentuou o lado "subjetivo": a congregação, a comunidade. A igreja é, então, uma associação de pessoas regeneradas ou renovadas. Com isso foi estimulada a tendência ao separatismo e à formação de conventículos, designados de ecclesiola in ecclesiae (a igrejinha na igreja). Como a igreja centrada em palavra e sacramento estava ligada ao Estado, muitas vezes surgiu entre pietistas o acento radical na concepção da separação entre igreja e Estado. 0 acento na renovação ética gerou uma série de iniciativas para a renovação da sociedade. Como, no entanto, o pietismo acentuava a necessidade de renovação do indivíduo, a tônica sempre foi que a renovação da sociedade dependia da renovação do indivíduo. Com isso, as propostas de reforma social jamais foram além de obras de caridade, individuais ou na forma de associações livres. Finalmente, ao criticar o que chamava de formalismo da ortodoxia, o pietismo acentuou a recepção do Espírito Santo e a experiência religiosa, questões que retornam em nossos dias em movimentos pentecostais ou carismáticos. Com o tempo, porém, viu-se confrontado com a pergunta: Como separar o Espírito de outros "espíritos"? Felipe Jacó Spener já propusera o uso da razão para tal. Foi isso que o pietismo acabou fazendo. Assim encontramos no pietismo as raízes do incipiente racionalismo.

Se observarmos essa última questão e a juntarmos aos demais aspectos que já enumeramos, poderemos constatar facilmente que o pietismo é a outra face da Ilustração e do racionalismo. 0 ilustrado ou ilustre, aquela pessoa que confia no progresso, na razão, que desafia a tradição e reivindica liberdade de pensamento, não precisa deixar de ser pietista, nem um pietista precisa renunciar à Ilustração. Por isso o pietismo acentuou a educação; em conseqüência, não foi por acaso que importantes figuras da Modernidade se originaram no pietismo. Basta citar os nomes de pensadores e poetas alemães como Lessing, Kant, Schiller, Goethe, Fichte e Schleiermacher. Friedrich Daniel Schleiermacher (1768-1834), denominado de "Pai do Protestantismo Liberal", baseou sua teologia no "sentimento de dependência absoluta". Ora, o destaque

Pgs 14 - 15 dado ao "sentimento" vem do pietismo. Lutando contra o que designava de deturpação do verdadeiro cristianismo, o pietismo foi o maior dos preparadores da Modernidade.

Vejamos alguns líderes pietistas:

Felipe Jacó Spener (1635-1705)

Spener recebeu profundas influências de JohannArndt (1555-1621), um luterano ortodoxo que, por sua vez, recebera influências da mística medieval. De sua lavra são as obras Quatro Livros sobre o verdadeiro Cristianismo (1605) e O Pequeno Jardim do Paraíso (1610). Se observarmos o conteúdo desses e de outros escritos de Arndt, verificaremos que esse autor dá destaque à conversão, à unidade com Cristo, à vida santificada, centrada no morrer para o mundo e para si mesmo e no viveria. Deus. Seus escritos foram muito populares. Em 1675, os Quatro Livros sobre o Verdadeiro Cristianismo já haviam tido mais de cinqüenta edições e haviam sido traduzidos para quase todas as línguas européias. Além de Arndt, Spener teve influências do puritano inglês Lewis Bayly. Quando de seus estudos teológi-cos em Estrasburgo, leu Lutero e, posteriormente, Jean de Labadie{\ 610-167'4), calvinista e iniciador de um movimento de piedade separatista nos Países Baixos. Já em Tübingen, leu e discutiu a obra de TheophilGrossgebauer{ 1627-1661), Voz do atalaia de Sião, na qual o autor lamentava a falta de acento no novo nascimento na teologia ortodoxa contemporânea. Além disso, criticou a prática do Batismo de infantes e exigiu uma experiência de conversão, da qual se pudesse apresentar dia e hora. Em 1664, Spener tornou-se doutor em Teologia pela Universidade de Estrasburgo e, desde 1666, pastor em Frankfurt sobre o Meno. Ali destacou-se no aconselhamento pastoral, na catequese e na pregação. Desde 1670, reunia pessoas nos collegia pietatis (colégios de piedade), nos quais se discutiam o sermão dominical, literatura edificante e a renovação da igreja.

Em 1675, Spener redigiu Desejos Piedosos ou Sinceros Desejos de uma Reforma da Verdadeira Igreja Evangélica, obra também conhecida pela formulação latina Pia Desidéria. Esta obra servia de prefácio a uma reedição do sermonário de Arndt sobre os evangelhos.

Pia Desidéria apresenta um diagnóstico das condições corrompidas da igreja em sua acepção protestante, anuncia um futuro melhor para a igreja a partir da conversão dos judeus e da queda de Roma. Além disso, oferece um programa de seis pontos para uma reforma da igreja: 1 - estudo ediscussão de

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Pgs 16 - 17 toda a Bíblia, em associações paralelas ao culto da comunidade; 2 - concretização do sacerdócio de todos os crentes por meio do estudo da Bíblia, ensino, repreensão, consolo e vida santificada; 3 - exortação a clérigos e a leigos para que passem de um mero conhecimento da doutrina para uma prática da fé; 4 - redução das controvérsias e debates teológicos e confessionais, passando a haver santidade de vida; 5 - reforma do estudo teológico como forma de renovação da igreja; 6 - centrar a pregação na edificação.

Spener produziu seus textos após a Guerra dos Trinta Anos. A oposição entre mundo e salvação era tão grande, que só poderia vir a ser superada por um novo nascimento, por um evento que deveria ser provocado por Deus. 0 novo nascimento foi um aspecto que influenciou toda a teologia do pietismo e foi ponto de partida para o perfeccionismo. Ecos donatistas4 fizeram-se presentes quando foi afirmado que somente aquele que é um cristão verdadeiro pode levar outros à fé. Mas apareceu também uma forte tendência ecumênica quando foi acentuada a primazia da vida renascida sobre a doutrina. A unidade da igreja não estaria mais dada na doutrina, mas no estilo de vida. Por isso os pietistas passaram a ler a Bíblia como uma ata da vida da igreja antiga e não mais como um compêndio de doutrina. Havia interesse por História e Biografia.

O que isso tem a ver com a Ilustração? Na Ilustração, encontramos os ecos do pietismo: ênfase na ética, ênfase no indivíduo sobre o comunitário, ênfase na Antropologia sobre a Teologia, ênfase na história e na natureza como lugar de revelação.

August Hermann Francke (1663-1727)

Em 1694, o pietismo recebeu um impulso decisivo com a criação da Universidade de Halle. Nela desenvolveu-se toda uma teologia pietista. Em Halle, atuou o homem que podemos denominar de "Pai do Pietismo Prussiano": August Hermann Francke. Natural de Lübeck, Francke estudou Teologia e foi influenciado pelos escritos de Arndt. Durante o curso teológico, dedicou-se a um estudo intensivo da Bíblia. Complementou sua formação com estudos no campo da Filologia, especialmente dedicando-se às línguas antigas

4 Designação de tendência existente no cristianismo que tem sua origem no século IV em Cartago, no Norte da África. Ali o bispo Donato exigia rigorismo na vida cristã, negando-se a reconhecer como válidas as atividades ministeriais de sacerdotes e bispos de mau-caráter.

Pgs 18 - 19 e às línguas orientais. Após o mestrado em Filosofia, fundou em Leipzig um Collegium philobiblicum, no qual era feita exegese bíblica com critérios científico-filológicos. Quando preparava, em 1667, uma pregação a respeito de João 20.31 -"Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome" -, descobriu que não possuía fé. Tinha conhecimento teológico, mas seu coração estava vazio. Essa crise veio acompanhada do desejo de ser libertado das dúvidas. Ajoelhou-se, orou e foi ouvido. Escreveu a esse respeito:

Pois assim como se vira uma mão, assim haviam desaparecido minhas dúvidas. Em meu coração eu tinha a certeza da graça de Deus em Cristo. Pude chamar a Deus não só de Deus, mas de meu pai. De uma vez, a tristeza e o desassossego do coração foram tomados; eu, porém, fui cumulado com uma torrente de alegria, de modo que, com coragem, louvei e dei glória a Deus, que me demonstrara tal piedade.

Essas palavras de Francke foram citadas muitas vezes e são tidas como um modelo de "conversões pietistas". A conversão, ou o novo nascimento, passou a ser o centro do aconselhamento pastoral pietista. Em Leipzig, Francke começou a criar círculos de piedade. Sua atividade provocou escândalo na Universidade, que lhe proibiu a docência. A ortodoxia luterana voltou-se com todo o vigor contra o grupo de "entusiastas"5 que começava a surgir na Alemanha. Talvez o pietismo teria se transformado em uma seita se o Estado prussiano não se tivesse adonado dele. A Prússia estava em luta com a ortodoxia luterana; nessa luta, o pietismo poderia servir-lhe de aliado. Foi o que a Prússia fez. Chamou Spener para ser pastor em Berlim e convocou Francke para ser professor na Universidade de Halle e, ao mesmo tempo, pastor em Glaucha, perto de Halle.

Em Glaucha, Francke logo criou uma escola para pobres, em regime de internato. A partir dessa escola surgiu uma série de instituições dedicadas à pobreza. Nela criou a primeira escola de formação de professores dos tempos modernos. A base de todas as instituições que Francke viria a criar foi a idéia de que era necessária uma reforma de todas as condições de vida do ser humano. Por trás dessa idéia estava uma visão social do mundo que tem suas raízes na convicção de que o reino de Deus tem uma ação eficaz entre os seres

5 O conceito, originário do século XVI, designa aqueles cristãos que não aceitavam nem a autoridade papal tampouco a autoridade da Bíblia, mas apenas a iluminação, recebida diretamente do Espírito Santo. Entre os principais representantes dos entusiastas está Tomás Müntzer.

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Pg 20 humanos: o ser humano é um indivíduo chamado por Deus para o serviço ao próximo.

Para manter suas instituições, Francke criou uma farmácia e uma livraria. A farmácia veio a ter renome internacional. Tanto a escola como a farmácia e a livraria foram apenas algumas dentre as inúmeras atividades de Francke. Devemos acrescentar aqui os primórdios da missão no sul da índia, em Tranquebar, atividade desenvolvida pelo Estado dinamarquês, para a qual forneceu os primeiros missionários. Além disso, Francke fundou em Halle a primeira sociedade bíblica alemã (1710) juntamente com Carl Hildebrand von Canstein (1667-1719). Por meio dessa atividade, a Bíblia veio a se tornar realmente popular. Reduzindo os custos de impressão, conseguiu-se distribuir mais de dois milhões de Bíblias somente no século XVIII. Em seu todo, porém, o pietismo de Francke ficou restrito à Prússia. Ali criou um sócialismo peculiar. Teologicamente, continuou a acentuar a doutrina luterana da oferta da graça a todos os seres humanos, aprofundando-a, porém, com a exigência de uma conversão pessoal. A comprovação dessa conversão era feita mediante um compromisso de dedicação em favor do próximo.

A maior contribuição de Francke para o protestantismo moderno está no fato de haver substituído a dogmática confessional pela prática cristã. Colocou a Bíblia no centro da experiência religiosa, e a conversão datável recebeu nele maior importância do que a autoridade tradicional. Temos aqui o acento no ponto de vista antropológico-psicológico tão importante para a Ilustração.

Nicolau Luís, Conde de Zinzendorf, e a Comunidade Morávia

Herdeiros do cristianismo dissidente do período medieval, os morávios6 tiveram seu movimento revitalizado e reorientado pelo Conde Nicolau Luís de Zinzendorf (1700-1760). Zinzendorf cresceu sob a influência de Arndt e Spener, pastor que o batizou. Ainda quando jovem, teve a certeza de que colocaria sua vida a serviço de Jesus. De 1710 a 1716, freqüentou a escola de Francke, em Halle, e foi permanentemente influenciado pelo fervor missionário do pietismo dessa cidade. Em Wittenberg, cursou Direito. Depois, viajou pela Europa e deparou-se com os primórdios da Ilustração, com o calvinismo e o jansenismo. Do encontro com o racionalismo chegou à conclusão de que a inclinação natural do ser humano é pelo ateísmo. A partir

6 Os morávios são um grupo cristão dissidente que tem suas origens em João Huss, professor da Universidade de Praga, condenado à morte na fogueira pelo Concílio de Constança em 1415.

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daí, passou a afirmar que todas as tentativas de comprovar religião a partir de "provas" da existência de Deus ou a partir de uma "teologia natural" são falhas. Religião e pensamento racional pertencem a níveis distintos. Por isso chegou à formulação: Quem tem Deus na cabeça é um ateu. Entre essas pessoas atéias situava tanto os racionalistas como os luteranos ortodoxos. A religião cristã é religião do coração; não se baseia na razão, mas na relação pessoal'com o salvador: Sem Jesus eu seria ateu. Não é difícil afirmar que entre os herdeiros de Zinzendorf vamos encontrar Schleiermacher, de quem já falamos, Nietzsche (1844-1900), filósofo e pregador ético que ataca os valores da sociedade burguesa, e Bultmann (1884-1976), teólogo que defendeu uma leitura existencial da Bíblia ao mesmo tempo em que exigia a demitologização de seu texto.

Desde 1721 a serviço do governo da Saxônia, Zinzendorf recebeu a incumbência de zelar pelo bem-estar dos refugiados protestantes expulsos dos territórios dos Habsburgos. No ano seguinte, em 1722, permitiu que refugia-dos morávios se estabelecessem em sua propriedade -Herrnhut. 0 grupo logo foi acrescido de outros grupos religiosos, como seguidores de Caspar Schwenckfeld (1489-1561), pietistas, separatistas, luteranos e calvinistas. Em 13 de agosto de 1727, segundo tradição do grupo, essa comunidade de diferentes experimentou o que chamou de "novo pentecostes", novo nascimento.

No ano de 1727, Zinzendorf elaborou uma constituição para o grupo. Foi tomado como exemplo o modelo da comunidade primitiva, mas também tradições dos irmãos boêmios. Além disso, todos subscreveram a Confissão de Augs-burgo7. Foram estabelecidas novas formas de celebração e de devoção, nas quais também havia o lava-pés, ágapes, a meditação diária sobre uma palavra bíblica ou sobre alguma estrofe do livro de cânticos. Dessa tradição originaram-se as Senhas Diárias, ainda largamente em uso.

O pietismo de Herrnhut ficou conhecido por sua atividade missionária. Em 1760, já havia mais de duzentos missionários de Herrnhut atuando mundo afora. Impressionante é sua intervenção em favor dos mais humildes, como nos revela sua interferência na possessão dinamarquesa de Saint Thomas, no Caribe. Ali, missionários viveram em quilombos e deixaram-se reduzir à escravidão, como no caso de Friedrich Martin. Este, ao casar com uma negra chamada Cristina Rebekka, perdeu seus direitos civis, passando por sérias di

7 Credo apresentado por príncipes e cidades luteranas, em 1530, ao imperador Carlos V, em Augsburgo, na Alemanha.

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Pgs 23 - 24 ficuldades juntamente com a comunidade de escravos negros. Zinzendorf interveio no caso, dirigindo-se a Saint Thomas, onde, ao beijar a mão da escrava Cristina Rebekka, na presença de oficiais dinamarqueses, reconheceu sua dignidade. Depois foi à Dinamarca, onde entregou uma petição de escravos ao rei. Não foi pedido o final da escravidão; apenas a melhoria das condições. No Brasil, o regente Diogo Antônio Feijó solicitou aos morávios, no século XIX, que iniciassem uma missão entre populações indígenas. 0 pedido não foi atendido.

Herrnhut e as povoações semelhantes a ela, surgidas em anos posteriores, foram obras de leigos. Sua constituição estava totalmente determinada pelo espírito do reavivamento. Por vezes, surgiram aqui algumas aberrações, o que, no entanto, não diminuiu o valor da obra, que deve ser vista no contexto do mundo barroco. Zinzendorf sabia que ele e seus colaboradores tinham suas fraquezas; por isso não podemos encontrar em sua obra nada daquele pietismo vulgar com suas estreitezas burguesas. Daí que ele pôde afirmar em certa oportunidade:

Os filhos de Deus muitas vezes não têm uma moral tão perfeita como as pessoas do mundo; eles não têm ambições heróicas de virtude e não buscam nenhuma forma superior de humanidade. Neles se evidencia aquilo que está no coração. Eles não querem ser mais do que são: pecadores agraciados.

Herrnhut não teve vida fácil. Houve denúncias, Perseguições, sendo o próprio Zinzendorf expulso por duas vezes do território. Mas tudo isso não impediu que Herrnhut viesse a assumir o papel de fermento no seio do protestantismo alemão. A teologia de Zinzendorf e de Herrnhut era o Salva-dor. Muito do que ele afirmou recebe hoje novos leitores. Outros aspectos foram esquecidos, com razão. Aqueles dentre os seus hinos que entraram nos hinários protestantes fazem hoje parte de um tesouro inestimável da igreja. Nesse contexto, vale dizer que a comunidade de Herrnhut foi uma comunidade cantante.

Com Herrnhut atingimos um estágio do pietismo que corrobora o que até aqui dissemos a respeito desse movimento. Ele rompeu com a aridez da ortodoxia e do confessio-nalismo, mas também foi uma resposta à situação cultural mais ampla. No século XVII, buscou-se reinstalar o antigo conceito do corpo cristão, da cristandade. Mas isso não era mais possível depois da Reforma e da Guerra dos Trinta Anos. 0 Estado e a cultura haviam se emancipado da religião. Estado, direito, comércio, ciência, filosofia, literatura

Pgs 24 - 26 e arte deixaram, progressivamente, de ser parte da civilização eclesial e buscaram novos parâmetros na vida das pessoas e da sociedade. Até a música, como podemos notar na barroca, emigrou do templo para a sala de concertos. Começou a estabelecer-se um pluralismo de religião, de modos de vida, de concepção de vida. Havia muitos aspectos e âmbitos não-cristãos, nos quais cristãos deveriam viver.

Com a internalização da fé e sua individualização, o pietismo facilitou a vida de muitos cristãos. A cultura poderse-ia desenvolver ou fragmentar, mas a vida cristã seria possível por meio da apropriação pessoal de verdade religiosa, de devoção e de disciplina pessoal. Determinadas esferas da vida passaram a ser vistas como particularmente religiosas. 0 resto da vida seria secular. Quem mais se alegrou com essa possibilidade foram os ilustrados.

Sagrado Coração de Jesus

0 que descrevemos como pietismo não é propriedade do protestantismo. Trata-se de um sentimento que perpassa as diferentes confissões religiosas. É verdade que em cada uma delas vamos encontrar características peculiares. Por isso falamos em movimentos transconfessionais. Assim vamos encontrar características do pietismo presentes no catolicismo romano. É importante lembrar esse aspecto, pois pessoas que vivem numa mesma época recebem influências mútuas. Zinzendorf desenvolveu, por exemplo, um culto místico à chaga do Salvador, provocada pela lança do soldado romano. Esse culto tem profunda semelhança com o culto contemporâneo, mais tarde trazido para as Américas por europeus piedosos: o culto ao Sagrado Coração de Jesus.

A expressão coração de Jesus t a devoção do sagrado coração de Jesus tem, através dos tempos, adquirido uma importância significativa entre os cristãos, tomando como ponto de partida as passagens neotestamentárias de Mateus, João e Paulo (Mt 11.29; Jo 19.32 e Fp 2.8). Mesmo que a interpretação dessas passagens tenha variado ao longo dos tempos, elas oferecem-nos uma bela oportunidade de estudar o surgimento e o desenvolvimento histórico da prática devocional, que vai desde a mera referência até as devocionais e a veneração litúrgica.

Na patrística10, encontramos referências ocasionais ao coração de Jesus em Justino, Agostinho e Paulino de Nola. A partir do século XII desenvolveu-se, no contexto da mística alemã, um culto de caráter votivo e devocional, especialmente em conventos femininos. Nesses conventos, o coração de Jesus,

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Pgs 26 - 27 envolto pela coroa de espinhos, passou a ocupar o centro da mística da paixão. Ocorreu então o surgimento de orações ao coração de Jesus. Passou-se a pintar e a imprimir miniaturas do coração de Jesus, geralmente traspassado e apresentado ao lado dos outros três estigmas de Cristo. Devocionais de carmelitas do século XV apresentam-nos o menino Jesus ora sentado no coração traspassado, ora carregando o coração de Jesus para a cruz. Em 1670, um discípulo da Companhia de Jesus, João Eudes, obteve autorização diocesana para celebrar a festa do coração de Jesus. A veneração do coração de Jesus, porém, teve início com as visões de Maria Margarida Alacoque (1675-85). Esta salesiana afirmava ter visto o coração de Jesus envolto em espinhos, por amor, e o lamento de Jesus acerca da falta de gratidão e de desprezo de seu amor. Por meio de seu confessor, La Colombière, os jesuítas tornaram-se promotores da moderna veneração do coração de Jesus, cujas raízes estão na França, produzindo também vasta literatura a seu respeito. 0 jansenismo e o racionalismo opuseram-se a ela. Roma negou-se, por três vezes, a conceder autorização à festa do coração de Jesus. Ela só foi concedida por Clemente XIII em 1765. Em 1794, o Sínodo de Pistóia manifestava-se contra ela. Em 1899, Leão XIII elevou a festa à categoria de officium duptexóe primeira classe e aprovou a ladainha do coração de Jesus. Enquanto, originalmente, a devoção estava mais determinada por elementos expiatórios, desde a encíclica Miserentissimus redemptor, de Pio XI (1928), é ressaltada a temática do amor.

A veneração do coração de Jesus também encontrou aceitação entre as denominações cristãs oriundas da Reforma do século XVI, sendo entendida como amor ao Deus encarnado. Diversos hinos cantados por luteranos e calvinistas dão testemunho disso. A mística proveniente de Bernardo de Claraval foi assumida pelos luteranos Paul Gerhardt e Nicolau de Zinzendorf e pelo calvinista Gerhard Tersteegen. No Brasil, a devoção do coração de Jesus encontrou seus principais difusores entre os sacerdotes da Companhia de Jesus, mas também entre os frades capuchinhos franceses.

Pgs 28- 29 Ilustração

A Ilustração funcionou como eco e deu destaque a muitas ênfases pietistas: orientação para o futuro, cristianismo não-dogmático, centralidade da experiência humana, leitura histórica da Bíblia. Mas houve também outros fatores históricos fundamentais para o surgimento da Ilustração. As cidades mercantis, enriquecidas, passaram a ter consciência de sua importância e passaram a valer-se de critérios racionais e não-religiosos em sua economia. 0 acento na experiência prática possibilitou o avanço da ciência e da tecnologia e do uso racional dos recursos da natureza. A reflexão pragmática e racional também se fez presente na análise de sociedade, política, direito e nas constituições dos países.

Não se olhava mais para o passado com seus modelos clássicos, mas para o futuro da humanidade. 0 ser humano seria capaz de tudo. Bastaria investir na educação. Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), filósofo e poeta alemão, expressou isso para os alemães em seu livro A Educação da Raça Humana;o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e pedagogo, em Emile ou Tratado sobre Educação, e o também suíço JohannHeinrichPestalozzi'(17'46-1827), pai da pedagogia moderna, fê-lo na sua obra Como Gertrudes Ensina seus Filhos. 0 que Francke iniciara em Halle teve continuidade nos centros de formação de professores.

As experiências feitas na guerra de emancipação contra a Espanha fizeram da Holanda um chão propício para a gestação do primeiro sistema filosófico moderno. Foi na Holanda que aportaram os intelectuais refugiados de toda a Europa, fazendo dela a primeira pátria da Ilustração. Ali, o filósofo francês René Descartes (1596-1650), discípulo de jesuítas, colocou a dúvida radical como princípio do conhecimento e do autoconhecimento: Cogito, ergosum (Penso, logo sou). A Filosofia deixava de ser "serva da Teologia" para tornar-se uma ciência autônoma, fundamentada em observações empíricas e em princípios racionais.

Na Inglaterra, as discussões teológicas e confessionais levaram a pensar que a razão era mais importante do que disputas religiosas. Daí resultou o

11 O deísmo opõe-se ao ateísmo e expressa crença no divino. Confessa Deus como criador do universo, na condição de primeira causa de tudo o que existe, sem, no entanto, chamar esse Deus criador de Pai. Também não procura relação pessoal com ele. Deus criou o mundo e os seres humanos, mas deixa

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Pg 30 deísmo" com proposições que buscavam um fundamento sólido para a religião, assim que qualquer pessoa pudesse aceitá-la e viver a partir dela. A proposta era simples: 1 - existe um Deus; 2 - Deus deve ser servido; 3 - tal serviço acontece por meio de virtude e piedade e não do rito; 4 - deve-se deixar o erro de lado e fazer o bem; 5 - deve-se esperar recompensa divina aqui e no além. Ela também podia se resumir a algumas palavras: 1 - Deus; 2 - liberdade moral; 3 - imortalidade. Ou se podia afirmar com John Locke (1632-1704), filósofo inglês, que o cristianismo se baseia em tolerância, virtude e moralidade.

Quando os teólogos aplicaram os princípios deístas a seus sermões, estes passaram a ser meros discursos morais: "A pessoa virtuosa se levanta cedo; por isso as mulheres foram cedo ao sepulcro de Jesus na manhã da Páscoa. Levantemo-nos cedo, sejamos virtuosos!".

Na tentativa de harmonizar razão e revelação, os deístas reduziram o cristianismo ao que consideravam ser essencial nele. Houve um reducionismo que, contudo, julgavam necessário em razão da crescente diversidade e plura-lidade do cristão. Para eles, as verdades da fé jamais podem se opor à razão. Foi por isso que leram criticamente a Bíblia, vendo nela uma fonte para o estudo da história e da moralidade da Antigüidade. A Bíblia deixava de ser vista como testemunho a respeito da revelação na história. Submetidos à razão, milagres, ressurreição e Trindade foram inacessíveis para ela e, em decorrência, considerados inautênticos.

A crítica mais contundente à religião, mas também à glorificação da razão, foi feita por David Hume{ 1711-1776), outro filósofo inglês. Em seus escritos, atacou os argumentos deístas que buscavam comprovar que o cristianismo era racional. Se para os deístas a fé cristã era racional em função dos milagres, da harmonia da natureza e do senso comum da humanidade, Hume fez uma crítica radical a essa argumentação. Dizia ele que milagre e harmonia da natureza se excluem. Se há harmonia, por que seriam necessários milagres? Além do mais, não há evidência histórica para o "senso comum" da humanidade. Milagres são contrários à experiência humana. A experiência humana é que, sempre de novo, existem falsos testemunhos acerca de milagres. Milagres nada mais são do que auto-sugestão enganosa. Para Hume, o conhecimento vem da experiência empírica. As verdades metafísicas e teológicas não são lógicas nem derivadas, tampouco passíveis de teste na experiência empírica. Quer dizer: verdade metafísica e verdade teológica são lero-lero. Não há nada que as sustente. Também o argumento do senso comum

Pg 31 - 32 não é aceitável: os deuses primitivos nada mais são do que uma crassa revelação antropomórfica; sua atuação cheia de falsidades e truques e sua falsa moral nada refletem de senso comum.

A crítica derradeira à religião, feita por Hume, foi fatal: a religião só desvia a atenção do ser humano daquilo que realmente acontece na vida. Sua preocupação com salvação é estreita e egoísta, apenas leva a debates e provoca rancores e perseguições. Com isso, Hume ousou afirmar que a religião não tem qualquer base ou fundamento. Ela baseia-se na fé, e fé não é nada.

Na França, onde a igreja esteve profundamente ligada ao antigo regime8, foi profunda a inimizade entre religião e ilustrados. François-Marie Voltaire (1694-1778), típico representante da Ilustração francesa em sua primeira frase, foi um dos pioneiros na luta pela liberdade de opinião, por tole-rância e por direitos humanos. Valeu-se de conceitos dos deístas ingleses, como John Locke, para atacar a Igreja Católica Romana. Em poesia blasfemou contra a santa nacional, Joana D'Arc; em escritos rejeitou a teodicéia'3. Durante quase três anos, viveu na corte de Frederico II o Grande, da Prússia. Para Voltaire, Deus é um pressuposto importante para a preservação da moral, dos bons costumes e ajuda a prevenir a anarquia. Por isso ele escreveu: "Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo". Com esta frase voltava-se contra a nova geração de pensadores franceses que negava a existência de Deus.

Denis Diderot ( 1713-1784) e Jean d'Alembert{ 1717-1783) editaram, no século XVIII, 35 volumes da Encyclopaedia, obra maior do racionalismo francês. Na Encyclopaedia está presente todo o fascínio relativo ao progresso das ciências naturais: o progresso das ciências naturais e o crescente controle sobre a natureza trarão, no futuro, a eliminação das desigualdades entre as nações, a igualdade dos povos e a perfeição da humanidade. Esse otimismo se expressa em duas obras de Jean-JacquesRousseau-(1712-1778). Segundo ele, a pessoa é boa ao nascer, mas a sociedade, a cultura, o Estado e a religião a pervertem. No Contrato Social, apresentou, por isso, um ideal: o Estado baseado na ordem natural de uma democracia, a cujo serviço está a religião civil. Em Émi/e, apresentou o ideal de uma educação elementar racional de acordo com a natureza.

Ilustração alemã

8 A expressão "antigo regime" refere-se à forma de governo monárquica existente na França antes da Revolução Francesa.

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Pgs 33 - 34

A Ilustração alemã tem que ser tratada à parte da Ilustração no restante da Europa. Na Alemanha, a relação entre revelação e razão não está repleta de tensões e de oposições assim como no restante da Europa. Antes se pode falar aqui de uma relação de complementaridade. Pode-se também dizer que a Ilustração alemã não teve aquela postura crítico-destrutiva em relação à igreja, tanto a católica como a protestante, que podemos encontrar na Inglaterra e na França. Há razões históricas e teológicas para a peculiaridade alemã. Na base das razões históricas está a Guerra dos Trinta Anos. Esta guerra impediu o desenvolvimento dos territórios alemães, se comparado ao do restante da Europa. A divisão política, cultural e religiosa da região fez com que a Ilustração alemã se desenvolvesse, basicamente, em territórios protestantes, em suas universidades e nas cortes. Quase todos os principais representantes da Ilustração alemã são, em conseqüência, professores universitários e grupos dirigentes do absolutismo esclarecido. Além disso, pietismo e Ilustração surgiram quase que simultaneamente nos territórios alemães. Os ataques do pietismo à ortodoxia prepararam o caminho para as sugestões práticas de reforma que seriam feitas pela Ilustração.

0 filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) é um exemplo para o que vínhamos dizendo. Ele buscou comprovar a compatibilidade entre fé e razão, entre razão e revelação, entre Filosofia e Teologia, entre corpo e alma. Estes pares devem ser vistos em harmoniosa conexão. Para que haja essa harmonia, é necessário que se distinga entre verdades eternas e verdades atuais. Das primeiras verdades fazem parte a geometria, a sabedoria, a bondade e o poder de Deus. Nelas não há contradição entre revelação e razão, pois para a razão essas verdades são conceitualmente necessárias. Mesmo que, dessa maneira, a revelação seja subordinada à razão e a Teologia à Filosofia, há uma ordem maior que pode irromper por intermédio das leis da natureza.

Leibniz também se aventurou no campo da teodicéia, que trata de justificar Deus face ao mal que há no mundo, buscando tornar a questão da teodicéia plausível por meio da tese de que este nosso mundo é "o melhor de todos os mundos possíveis". 0 mal está baseado no fato de que o ser finito é restrito. Contudo a razão reconhece o bem e o divino como estruturas essenciais do mundo. Vemos nessas formulações que Leibniz tem uma visão otimista do mundo: pecado é apenas o bem imperfeito.

Teólogos que acompanharam a reflexão de Leibniz buscaram apresentar um cristianismo não-dogmático, mas ético. Aqueles que atuavam no ministério da pregação buscavam apresentar uma interpretação socioética do

Pgs 35 - 36 cristianismo. Jesus passou a ser o grande mestre da sabedoria e da

virtude, um precursor da Ilustração que quebrou as cadeias do erro. Cuidado: do erro, não do pecado!

Mas a Ilustração alemã não ficou só nisso. Houve também considerações críticas em relação à igreja. A principal delas veio de outro pensador alemão, Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), que publicou os Fragmentos Anônimos, também conhecidos como Fragmentos de Wolfenbüttel. Esses Fragmentos são da autoria do alemão SamuelReimarus (1694-1768), partidário do deísmo inglês e leitor crítico da Bíblia. Em seus textos, Reimarus faz observações críticas a respeito da autoria dos escritos bíblicos, aponta para contradições existentes nos evangelhos e levanta a tese de uma origem fraudulenta do cristianismo. Este teria sua origem em uma grande fraude dos discípulos. Quando falira o messianismo político de Jesus, os discípulos fabricaram a ressurreição para sobreviver a seu desapontamento e para ser aceitos pelo mundo. Quando publicou os Fragmentos, Lessing pensou que estava desencadeando uma discussão construtiva acerca da essência do cristianismo. 0 que aconteceu foram ataques sem fim contra ele. Em seu decurso, a ortodoxia foi ridicularizada. Em contrapartida, a Teologia teve que desenvolver o método histórico-crítico de leitura dos textos bíblicos, depois eficazmente aplicado a todos os textos históricos.

Em dois escritos, o próprio Lessing nos dá conta de sua própria posição. Trata-se de A Educação da Raça Humana, de 1780, e Nata, o Sábio, de 1779. Segundo Lessing, os testemunhos históricos acerca da revelação não produzem certeza e garantias. As religiões históricas são estágios do divino processo de educação, cujo objetivo é a verdadeira religião do amor e da razão. Na parábola do anel, de Natã, o Sábio, há três anéis. Dois são imitações perfeitas do autêntico. Como não conseguimos mais dizer qual é o anel autêntico, cada um dos três filhos - o cristão, o judeu e o islamita -deve viver como se o anel do pai tivesse sido dado a ele. A verdade da religião verdadeira manifesta-se em sua experiência e em sua prática.

Na Ilustração alemã, mais e mais o cristianismo foi reduzido à moralidade. Tal redução atingiu seu auge em ImmanuelKant{ 1724-1804). Suas origens estão no pietismo. Com o apoio de seu pastor em Konigsberg (hoje: Kaliningra-do), Kant ingressou aos oito anos em uma escola pietista. Nesta escola, descobriu e viu-se confrontado com o aspecto mais negativo do pietismo: legalismo e hipocrisia. A partir das experiências feitas na escola pietista devem ser entendidos sua aversão à emoção religiosa e seu

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Pg 37 distanciamento de oração, cântico sacro e cultos religiosos. Seus estudos teológicos foram mínimos. Kant não tinha grande interesse na leitura de teólogos contemporâneos. Sua principal obra teológica foi escrita aos setenta anos: A Religião Dentro dos Limites da Simples Razão. Para escrevê-la, valeu-se de seu velho catecismo. Este forneceu-lhe as lembranças do cristianismo, com as quais então discutiu.

Kant lutou por autonomia, uma autonomia que é obediência à lei interna da razão. Isso fez dele o campeão da crítica. Tudo deve ser submetido à crítica: "Ousa ser sábio!". Toda forma de heteronomia e teonomia imposta por pais, sociedade, igreja ou Deus tem que ser criticada, submetida à crítica. Inclusive a razão deve ser submetida à crítica, para que possa ter certeza de si mesma.

Kant pôs seu pensamento filosófico em três obras: Crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788) e Crítica do Juízo (1790). Na primeira, discorreu sobre a validade e os limites do conhecimento; na segunda, falou da natureza do bem; na terceira, abordou a estética. As distinções feitas por ele entre "conhecimento", "vontade" e "sentimento" determinaram o pensamento teológico da geração que o seguiu. Hegel (1770-1831), professor de Filosofia em Heidelberg e em Berlim, tomou o conhecimento como critério da religião; Schleiermacher, a experiência. Para Kant, o tema da religião é a moralidade.

0 filósofo de Konigsberg não negou a existência de Deus, mas afirmou que não há argumentos teóricos que possam provar sua existência. Deus não pode ser conhecido pela razão. Na Crítica da Razão Pura, ele disse por isso que, para se poder crer, ter fé, é necessário colocar o conhecimento de lado. A fé racional de Kant baseia-se na "razão prática", na moralidade.

Em Kant, a religião é um sistema moral, baseado na máxima: "Eu devo; por isso posso". 0 ser humano não pode ser responsabilizado enquanto não for considerado capaz de fazer algo na situação em que se encontra. Qualquer pes-soa sensível pode verificar a verdade do imperativo categórico ("Eu devo; por isso posso") e praticá-lo. Tudo é dever. Também a fé e o dever fazem o bem. Para fazer o bem, para exercer moralidade, não se necessita de igreja. A fé eclesiástica não acompanha a razão pura.

Ao limitar o cristianismo à moralidade, Kant pôs fim aos princípios básicos da Reforma do século XVI: somente Cristo, somente a fé, somente a graça, somente a Escritura. Se para os reformadores as boas obras brotam da graça, Kant começa com as boas obras. Todos os temas teológicos são lidos a partir delas: Jesus Cristo não é um redentor, mas um arquétipo moral de vida

Pgs 38 - 39 divina, que deve ser imitado pelas pessoas. Deus não desce ao ser humano; o ser humano deve subir em direção a Deus. 0 ser humano é autônomo, e essa autonomia é destruída por aquilo que na fé cristã se denomina de graça. Se Deus perdoa, a humanidade não é livre. Kant alia-se a Pelágio, a Erasmo e a Armínio. Mas Kant não conseguiu resolver um problema: o que fazer com o "mal radical"? Em sua radicalidade, o mal é irracional. 0 que fazer nesse caso com a sola ratio, a razão pura? 0 próprio Kant complica sua visão otimista do ser humano ao não resolver o problema do "mal radical". A Ilustração e a Igreja Católica Romana

A teologia católico-romana pouco se abriu à Ilustração. Viu-a mais como uma destruição do cristianismo e da religião. Nas décadas que precederam a crise provocada pela Ilustração, a Igreja Católica Romana experimentou retrocessos em sua influência política, mas também no tocante à sua teologia.

Desde os dias de Luís XIV (1638-1715), o catolicismo tinha pouquíssima influência política. Na realidade, a influência política dos papas foi nula. Seus conselhos não eram aceitos. Em conseqüência, o papado tornou-se politicamente tão desinteressante, que somente após 255 escrutínios e quatro meses de conclave foi possível eleger Bento XIV (1740-1758).

Se essa era a situação no tocante à política mundial, é importante que se diga que a igreja de Roma continuou a ter certa influência na política interna de alguns países, utilizando-a para a repressão ou conversão de minorias protestantes. Comparados com os sucessos da Contra-Reforma14, esses, no entanto, foram pequenos. Em 1731, 22 mil protestantes tiveram que deixar o bispado de Salzburgo, sendo acolhidos pela Prússia. Fatos semelhantes aconteceram nos territórios dos Habsburgos, atingindo populações protestan-tes na Silésia e na Hungria. Na Polônia, todos os protestantes foram afastados de cargos públicos. Na França, voltaram a ocorrer perseguições a huguenotes nos anos de 1724 e 1743-52. Por ocasião da execução de Jean Calas (1762), em Toulouse, e em decorrência da intervenção de Voltaire em prol da tolerância, a situação começou a se alterar. Conversões ao catolicismo, como a de Augusto, príncipe-eleitor da Saxônia (1697), para poder obter a coroa polonesa, e nas casas de Württemberg (1713) e de Hessen-Kassel (1749), não provocaram alteração na situação confessional da Alemanha.

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Pg 40 - 41 Os retrocessos na influência política de Roma foram acompanhados por

uma diminuição no vigor da vida eclesial. As ordens, e principalmente sua atividade missionária, decaíram. É verdade que, em algumas ordens religiosas, ainda podem ser encontrados alguns nomes de expressão, mas também esses desaparecem com o advento da Ilustração. O século XVIII conheceu a fundação de apenas uma nova ordem religiosa: a dos redentoristas [Congregatio Sanctissimi Redemptoris).

Também houve catástrofes em meio a essa situação difícil. Especialmente nos países de fala românica, o advento da Ilustração transformou-se em ódio contra a Igreja Católica e contra os jesuítas. Os ilustrados viam nos jesuítas os mais ferrenhos defensores das pretensões papais. Chamavam-nos de defensores de "crendices", inimigos do progresso, das tendências da época. Quando a Ilustração aliou-se ao despotismo nesses países, a Companhia de Jesus sucumbiu indefesa ante as exigências desses déspotas.

A luta contra a Companhia de Jesus teve início em Portugal sob os auspícios do Marquês de Pombal. Ponto de partida para a intervenção de Pombal foi o levante dos índios Guarani dos sete povos das missões no atual Estado do Rio Grande do Sul, transferidos do controle espanhol para o por-tuguês. Com o massacre das populações indígenas, teve início a expulsão dos jesuítas de Portugal e de todas as colônias portuguesas (1759). A bancarrota de um jesuíta na ilha da Martinica levou o parlamento francês a condenar a Companhia de Jesus ao pagamento das dívidas daquele empreendimento e declarou a regra da Companhia de Jesus incompatível com as leis do país. Sua moral era considerada perigosa para o Estado. Em 1764, a ordem foi proibida na França. Em 1767, os jesuítas foram expulsos da Espanha e de Nápoles. Em 1768, foram expulsos de Parma. Em 21 de julho de 1773, o papa Clemente XIV (1769-1774), pressionado pelos governos Bourbons, declarou a extinção da Companhia de Jesus pelo breve Dominusacredemptornoster. Frederico II da Prússia e Catarina II da Rússia deram asilo à ordem. Todos os demais países se negaram a recebê-la. Após a morte de Clemente XVI, a situação da Igreja Católica era tão deprimente, que foram necessários 265 escrutínios até que Pio VI fosse eleito.

Se nos países de fala românica o catolicismo perdia com a proibição da Companhia de Jesus, na Alemanha, que durante os dias da Contra-Reforma fora um filho dileto de Roma e um campo de grande atuação dos jesuítas, a situação não foi muito diferente. Também no seio do catolicismo alemão a

Pg 42 - 43 Ilustração se manifestou. Na Alemanha, a Ilustração fez surgir o episcopalismo e aparecer uma tendência de enfraquecimento do especificamente católico nas concepções dogmáticas e na vida eclesial. Em 1763, foi publicada sob o pseudônimo de Justinus Febronius a obra De statu ecclesiae et legitima potestate Romanipontificis. Febronius contestou a tese de que o primado na Igreja Católica teria que estar ligado ao bispado de Roma, afirmou a independência do con-cílio geral em relação ao papa e destacou que o curialismo seria o grande impedimento para a união com os protestantes. 0 autor da obra, Nikolaus von Hontheim, bispo auxiliar de Tréveris, retratou-se em 1778, mas o impacto da obra permaneceu. Bispos alemães passaram a desenvolver uma política eclesial contrária a Roma. Em Colônia, Mainz e Würzburg formaram-se centros da Ilustração católica. Em 1786, fundava-se em Bonn uma universidade livre-pensa-dora católica, na qual também atuariam professores protestantes. Na teologia católica da época, nota-se um abrandamento de afirmações dogmáticas; passou-se a afirmar o comum a todas as denominações cristãs e a abertura para a crítica histórica. Em 1791, o professor de Dogmática da Universidade de Mainz, Anton B/au, publicava sua História crítica da infalibilidade papal, enquanto o arcebispo de Würzburg convocava, em 1803, o racionalista protestante Paulus para ser professor de Exegese Bíblica em sua universidade. 0 celibato e a vida conventual mereceram descrédito. As diferenças confessionais foram minimizadas. Por volta de 1800, pastores evangélicos e padres católicos substituíam uns aos outros nos serviços eclesiais. Teólogos católicos alemães do período mostram um interesse especial pela divulgação de Bíblias. 0 professor de Direito Canónico Adam Weishaupt, da Universidade de Ingolstadt, passou a divulgar o deísmo, fundando para tanto a Ordem dos Iluminados.

Apesar de todos esses fatos, a Ilustração esteve muito mais presente no protestantismo do que no catolicismo alemão. No seio do povo, a piedade tradicional continuava presente; a maior parte do clero seguia a tradição eclesial. Houve círculos em cujo meio a piedade passou a ser interiorizada, e foi ela que preparou futuros progressos no catolicismo. Johann Michael Sailer (1751 - 1832), bispo de Regensburg, deu ênfase à mística, mantendo-se fiel ao dogma católico e sendo, ao mesmo tempo, aberto aos protestantes. Outro importante centro de piedade católica estabeleceu-se em Münster, na Westfália.

Na Áustria, José II [ \ 780-1790) promoveu reformas profundas no catolicismo, seguindo a Ilustração. Representante do "absolutismo humano",

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Pg 44 considerou-se no direito de regulamentar não somente as relações de Estado e igreja, mas também questões internas da igreja, segundo os parâmetros da "razão". Em 13 de outubro de 1781, estabeleceu um édito de tolerância em relação a luteranos, calvinistas e gregos, aos quais foi dada equiparação civil aos católicos. Seus templos, porém, não podiam ter torres ou sinos. Seu édito de tolerância seria aplicado no Brasil imperial, figurando no parágrado 5 da Constituição do Império. José II procurou transformar a própria Igreja Católica em uma igreja nacional, completamente independente de Roma. Foi proibida a apelação a Roma, exigido o placet do senhor territorial e a separação das ordens religiosas de seus superiores no exterior. 0 número de conventos foi diminuído em um terço. 0 clero passou a ser formado em seminários do Estado, proi-bindo-se o estudo no Collegium Germanicum em Roma. No culto, proibiram-se relíquias, procissões, romarias. No direito matrimonial, passou a ser permitido um novo casamento para divorciados. Pio VI viajou a Viena (1782) para demover José II de suas intenções, mas nada conseguiu. No seio do clero houve uma forte oposição; na Bélgica, então pertencente à Áustria, houve levantes populares (1790). Leopoldo II' (1790-92) manteve a política do irmão. Seus sucessores, porém, eliminaram paulatinamente as reformas josefinas. Se observarmos a política eclesial de D. Pedro II no Brasil, constataremos que ele absorveu muito de seu parente José II. Mas então já nos encontramos no longo século XIX.

Pg 45 - 46

SÉCULO XIX

Século longo

Tanto na História como na Teologia, convencionou-se denominar o século XIX de "o século longo", deixando-o iniciar com a Revolução Francesa, em 1789, e concluir com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Nessas duas datas encontram-se assinalados dois acontecimentos que marcaram decididamente a cultura do Ocidente e as igrejas cristãs. Essas duas datas são acompanhadas na História da Igreja e da Teologia pela publicação de duas obras de dois teólogos protestantes. Em 1799, Friedrich Daniel Schleiermacher publicou Sobre a Religião: discursos dirigidos a seus cultos depredadores. Nesses discursos, temos a afirmação romântica do liberalismo. Em 1919, KarlBarth publicou seu Comentário aos Romanos, rejeitando o liberalismo. Se observarmos a História da Teologia, temos que afirmar que o século XIX é formado por uma série de movimentos teológicos defensivos, apologéticos e reacionários. A Ilustração e o incremento das ciências naturais formularam uma série de questões que tiveram que ser respondidas pelos que se ocupavam com a revelação bíblica. Tanto a Revolução Francesa como a Revolução Industrial formularam relevantes questoes quanto à importância da igreja para a sociedade e para a cultura. Schleiermacher cristalizou-as nas perguntas: Será que o cristianismo será doravante associado ao obscurantismo? Será que o estudo das ciências naturais será identificado com descrença? Ser cristão significará sacrificar o intelecto?

Ludwig Feuerbach mostrou a problemática na qual a Teologia se encontrava quando afirmou que a "rainha das ciências" estava despida, sem roupas, pois Teologia nada mais é do que Antropologia. As coisas complicaram-se ainda mais quando um discípulo radical de Hegel, David Friedrich Strauss, descreveu o Deus-homem como um mito. Com isso, a imagem histórica que a fé fazia de Jesus parecia ruir ante a análise histórico-crítica. Karl Marx disse que esse mito nada tinha de bom, pois era ópio que anestesiava a mente do povo.

A igreja ocidental, dividida, grosso modo, em católico-romanos e protestantes e que ressurgira na Idade Média após os ataques dos bárbaros,

15 O ultramontanismo é um movimento eclesial católico do século XIX na França, Bélgica, Alemanha e

Suíça, criticado pelos estados nacionais, pois promovia uma estreita ligação do povo católico e de sua

hierarquia como o episcopado universal do papa ultra montes ("além das montanhas").

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Pgs 47 - 48 voltava a confrontar-se com a mesma barbárie. As respostas à "barbárie" foram distintas. Enquanto o catolicismo romano trancava todas as portas e janelas aos ataques da Modernidade, o protestantismo, mesmo que não de todo imune a essa tentação, encontrava em seu meio pessoas dispostas a partirem para a ofensiva e a dialogarem com os bárbaros. O papado apostou no antimodernismo e no ultramontanismo'5, procurando expulsar de seu meio o mundo moderno, já que não podia destruí-lo. No mundo protestante, desenvolveu-se uma teologia apologética, defensiva, preocupada com a essência do cristianismo e que procurava demonstrar que o cristianismo, em sua essência, não é contrário ao mundo moderno, mas contribuiu com o melhor que tinha para formá-lo. No campo social, católicos e protestantes deram o melhor de si por meio de associações que se ocupavam com os que ficavam à margem do processo modernizador, tentando diminuir o crescente fosso entre igreja e massas.

Revolução Francesa

A Revolução Francesa provocou mudanças muito profundas. Pôs fim ao regime monárquico, desfraldou a bandeira da liberdade, da igualdade e da fraternidade, lutou pela liberdade de consciência, mas também produziu um regime de terror e exportou seus ideais pela força das armas para toda a Europa, causando muita dor e sofrimento. Em razão dessas profundas mudanças, os anos ao redor de 1800 são essenciais na história da humanidade. Neles, aconteceram a queda e o fim do Estado absolutista. Surgiu a República, que transferiu o poder da aristocracia para a burguesia, mas também despertou as massas. Em decorrência, Hegel caracterizou o século XIX de "o século das massas". A Revolução Francesa não permitiu mais que se erradicassem o conceito e o sentimento da soberania das massas da democracia. Os conceitos liberdade, igualdade e fraternidade espalharam-se por toda a Europa e também se transferiram para as Américas. Da Revolução Francesa brotou o fenômeno do nacionalismo. Povos dedicaram-se e devotaram-se a uma luta de vida e morte por suas pátrias:

... ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil.

Pg 49 Como conseqüência desse nacionalismo, criaram-se exércitos

permanentes, usados para promover os objetivos daquele movimento, mesmo que sob enormes sacrifícios para as populações. Os exércitos da Revolução e de Napoleão espalharam esse sentimento por toda a Europa. Nas guerras promovidas pelos países europeus contra o jugo napoleónico explodira, com fervor religioso, o nacionalismo revolucionário. Na Rússia, o brado de guerra contra Napoleão era: "Deus, rei e pátria". As lutas de libertação na Europa foram transferidas para as Américas e aqui transformadas em lutas de libertação das antigas metrópoles.

A reestruturação da Europa revolucionária foi acompanhada por uma profunda transformação econômica e social. 0 desenvolvimento da técnica e a industrialização modificaram profundamente a vida dos povos nas cidades e nos campos. Técnica e industrialização foram acompanhadas pelo crescimento do proletariado e da explosão urbana. Surgiram problemas antes não existentes. Além disso, formou-se uma coletividade de massas que, por intermédio do movimento socialista, buscou poder político e participação nas decisões do mundo urbano. Em meados do século XIX, o movimento operário recebeu orientação de Karl Marx e Friedrich Engels com literatura e panfletos próprios. Exemplo de sua força de expressão podemos encontrar no Pai-Nosso Proletário de 1835:

Nosso soberano que estás na corte, altamente honrado seja o teu nome; venham os teus coletores de impostos; seja feita a tua vontade assim na câmara baixa como na alta; dá-nos hoje nosso pão seco; esquece nossos pedidos assim como nós também esquecemos tuas promessas; não nos deixes cair sob investigação; mas livra-nos da revolução, pois tua é a legislação, a administração, a coerção sem restrição e sem distribuição. Amém.

Nos meios intelectuais, a Revolução Francesa foi recebida com uma gratidão entusiasmada ou rejeitada por causa do sofrimento que causava: idéias que tinham suas raízes na Idade Média, no Renascimento e na Ilustração puderam ser concretizadas, mas o avanço da Revolução com a ditadura sanguinária e a subjugação violenta das populações européias à França levaram a reações contrárias a ela e levantaram o clamor por uma restauração das condições anteriores à Revolução. Assim, todo o século XIX está entre revolução e restauração. Todo ele está amarrado ao que foi desencadeado pela Revolução Francesa.

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Pg 50 - 51 A Revolução Francesa e tudo o que decorreu dela afetaram

profundamente a existência das igrejas. Acelerou-se o processo de dissolução do poder das igrejas. Isso não contraria aquilo que afirmamos sobre a participação do pietismo e da Ilustração nesse processo. A novidade do século XIX é que o secularismo adonou-se da classe média alta, criando a saturação específica, na qual a igreja se encontra nos tempos contemporâneos. Por outro lado, a industrialização e a conseqüente degradação das condições de vida trouxeram desafios para as igrejas, às quais elas só souberam responder de forma inadequada. Elas não souberam responder à alienação urbana.

Essa situação refletiu-se na vida das igrejas e foi tema de suas preocupações. Durante o longo século XIX, igreja e Estado ficaram discutindo sobre escolas, matrimônio, moral pública, nacionalismo e ciência. É importante considerar que o nacionalismo e o secularismo não pretenderam exterminar a igreja, mas adequá-la à razão do Estado e estabelecer a razão sobre a revelação em prol do bem comum da sociedade. Os líderes da restauração enfatizaram a autoridade da igreja como garantia da tradição e da legitimidade, mas fizeram-no por razão de Estado e não permitiram à igreja que expressasse opiniões políticas. Guilherme II da Prússia não foi o único a expressar que os pastores devem atender as almas dos crentes e praticar a caridade, mas deixar a política de lado, pois ela não lhes diz respeito.

Com a Revolução Francesa surgiu uma nova percepção de História. As antigas concepções mecanicistas foram deixadas de lado na leitura da humanidade e da sociedade. Revolução foi identificada com evolução. Formulou-se a convicção de que a vida humana, individual ou social, só pode ser compreendida no contexto do desenvolvimento histórico. Essa convicção recebeu o nome de historicismo. O historicismo é a mais original das contribuições do século XIX para a secu-larização e é marca registrada de nosso conceito atual de cultura. Em decorrência, a igreja passou a ser considerada um fenômeno da História da Cultura - e não mais uma mediadora da revelação.

A nova leitura da História com o advento do historicismo levou a uma cosmovisão que via os fatos a partir de seu desenvolvimento, propiciando o surgimento dos fenômenos modernos do relativismo9 e do niilismo10. Se no

9 É a doutrina que afirma não existirem valores absolutos, pois todas as qualidades são, na realidade, relações. Nada é belo, bom ou verdadeiro; somente para nós (ou para outros) algo pode ser belo, bom ou verdadeiro.

Pg 52 - 53 século XVII se discutia a relação entre fé e razão, no século XIX passou-se a discutir a relação entre fé e história. Da Revolução ao Congresso de Viena

Profundamente ligada ao antigo regime na França, a igreja também experimentou o fim do absolutismo. Dissolveu-se a profunda ligação entre igreja e Estado. A Assembléia Nacional Francesa (1789-1792) secularizou os bens da igreja, dissolveu os monastérios e estabeleceu a "Constituição civil para o clero". A administração eclesial foi subordinada ao Estado; bispos e sacerdotes passaram a ser eleitos pelos cidadãos; os vencimentos do clero passaram a ser estabelecidos pelo Estado, que também liberou o clero da obediência à autoridade eclesial estrangeira, no caso o papado, e ordenou o voto de obediência e lealdade à nação e à constituição por parte de todo o clero. Muitos bispos opuseram-se e abandonaram o país. Após a queda do rei em 1792, muitos integrantes do clero também deixaram a França. Durante o regime de Maximilien Robespierre, 1793-1794, foi abolido o calendário cristão, proibidas as festas cristãs, introduzido o casamento civil, destruídas igrejas e confiscados seus tesouros. 0 culto à razão foi introduzido nas antigas igrejas.

Em 1795, o fim do regime de Robespierre proporcionou liberdade a protestantes e católicos e, no dia 15 de julho de 1801, Napoleão restaurou a Igreja Católica por meio de concordata. Reconheceu-a como a religião da maioria dos franceses, manteve-a, porém, subordinada ao Estado, que providenciava os recursos para a sua manutenção. 0 papa voltou a nomear os bispos, mas teve que silenciar em relação aos bens eclesiásticos que haviam sido secularizados. Em 1804, na presença do papa Pio VII, que viera a França para coroá-lo imperador, Napoleão tomou a coroa do papa e coroou-se a si mesmo. Cinco anos mais tarde, a França anexou os estados pontifícios, Napoleão foi excomungado por Pio VII, mas encarcerou o papa. A firmeza de Pio VII, porém, contribuiu para o crescimento do prestígio papal após a queda de Napoleão (1815).

Estado e igreja na Prússia

10 É a negação de todo o ser. O niilismo teórico designa-se de ceticismo ou agnosticismo. O metafísico é considerado idealismo conseqüente; o ético representa a negação de todos os valores; o político é o anarquismo.

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Pg 54 As guerras napoleónicas e o caos gerado por elas levaram a crescentes

transformações também nas igrejas. Na Prússia, ao lado da maioria luterana também havia calvinistas. No século XVII, a casa reinante tornara-se calvinista. Frederico Guilherme III (1770-1840), casado com uma luterana, não podia comungar com ela na Eucaristia. Usando os 300 anos das 95 teses de Lutero, em 31 de outubro de 1817, buscou reunir luteranos e calvinistas em uma só igreja. A maior parte do clero concordou em abandonar os designativos "luterano" ou "reformado/calvinista" e substituí-los por "evangélico". Mas o rei viu-se confrontado por uma forte oposição quando quis implantar a uniformidade litúrgica e impôs uma ordem litúrgica formulada por ele próprio. A oposição tornou-se tão violenta, que algumas congregações na Saxônia e na Silésia optaram pela emigração para a Austrália e para os Estados Unidos da América do Norte, mormente ao Estado de Missouri.

Em 1834, a Prússia em expansão acabava formando três grupos no protestantismo alemão: unidos, luteranos e calvinistas. A união pretendida não vingara. Porém os emigrantes alemães que se dirigiram para o cone sul das Américas denominaram-se de "evangélicos", conceito que incluía unidos, calvinistas e luteranos.

Questão social

Foi no pietismo, segundo o modelo de Francke, que o século XIX encontrou os parâmetros para responder aos desafios sociais. Protestantes continuaram seus esforços para mudar o mundo pela transformação dos indivíduos, valendo-se de duas instituições: a missão interna e o movimento das diaconisas.

As duas instituições foram motivadas pela miséria social, que também provocou o Manifestou Karl Marx. Os principais nomes no seio do protestantismo foram Johann Hinrich Wichern (1808-1881) e Theodor Fliedner (1800-1864).

Wichern foi sensibilizado pelo empobrecimento das massas e fundou casas em que foram recolhidas crianças abandonadas. A primeira casa, Rauhes Haus (Casa Rude), foi aberta em 1833. Wichern enfatizou a educação e a profissionalização a partir da graça de Deus. Para obter colaboradores, passou a formar diáconos e diaconisas em centros de formação próprios. Desde 1844, também publicava um jornal, por meio do qual buscava criar uma consciência social. Wichern estava ciente de que o futuro de igreja e sociedade seria caracterizado por uma crescente alienação das massas urbanas em relação à

Pgs 55 - 56 igreja estatal, que não se preocupava com a questão social. Pouco depois de Marx, em 1848, Wichern publicou um Manifesto Protestante. Por ocasião do Dia da Igreja (Kirchentag) realizado em Wittenberg, anunciou que "o amor é marca indispensável da igreja, em nada menor do que a fé". A igreja só terá futuro se encarnar o amor de Deus na cidade industrial. Como conseqüência de seu apelo, fundou-se o Comitê Central da Missão Interna da Igreja Evangélica Alemã.

A missão interna ocupou-se inicialmente com aqueles que haviam abandonado a igreja e com a assistência a necessitados, doentes e pobres. Logo passou também a se ocupar com a reforma carcerária, com os sem-teto, com os deficientes físicos e mentais, com os imigrantes e os marinheiros. A iniciativa logo se espalhou para outros continentes.

Aquilo que se apresentou em Wichern não era algo isolado. Em toda a Europa desenvolveram-se movimentos voltados para a questão social. Na Inglaterra, os metodistas envolveram-se na educação de adultos, escolas, reforma carcerária, abolição da escravatura e alcoolismo. Serviços missionários surgiram em Basiléia, Londres e Paris. 0 Exército da Salvação (1865) é uma entre incontáveis organizações criadas para dar resposta e ajuda a uma sociedade doente.

Outra grande fonte de reavivamento foi o movimento das diaconisas, iniciado pelo pastor alemão Theodor Fliedner, que lutava pela renovação do ministério diaconal feminino na igreja. Fontes inspiradoras de Fliedner foram a quaker Elizabeth Fry (1780-1845) e o movimento de diaconisas menonitas na Holanda. Em 1833, Theodor Fliedner e sua esposa Friedrike receberam em sua casa uma ex-presidiária. Com a acolhida de outra ex-presidiária e de mulheres carentes, o casal Fliedner iniciou o treinamento de mulheres para o auxílio ao próximo. Em 1836 era criada a primeira Casa Matriz (Mutterhaus) de Diaconisas em Kaiserswerth. Do auxílio inicial a mulheres presidiárias o trabalho se expandiu para o auxílio a doentes, órfãos e marginais. 0 modelo de Kaiserswerth logo se espalhou por todos os continentes. Em 1884,56 comunidades diaconais abrigavam 5.653 diaconisas. Além das diaconisas, com forma de vida religiosa consagrada, Fliedner também formou enfermeiras assalariadas. Florence Nightingale (1820-1910), a pioneira da enfermagem inglesa, foi treinada em Kaiserswerth.

Ao lado do desenvolvimento diaconal, o protestantismo pôde experimentar a importância do envolvimento político.

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Pg 57 Outro pastor que participou da política para conquistar reformas sociais

foi Friedrich von Bodelschwingh (1821-1910). Desde 1872, ele fora diretor da casa para epiléticos e da casa de diaconisas da Renânia-Westfália chamada Bethel. Com o crescimento, a instituição passou a abrigar um centro de formação de diáconos, uma escola teológica, uma casa para desempregados. A luta de Bodelschwingh pelos doentes e marginalizados levou-o a participar da política. Em 1903, tornou-se membro do parlamento da Prússia e conseguiu, em 1907, a criação de lares para trabalhadores itinerantes e um maior envolvimento do Estado alemão nas questões sociais. Mas este buscou minar o movimento socialista com suas medidas. 0 filho de mesmo nome (1877-1946) continuou e ampliou a obra do pai. No início do governo nazista, ele foi eleito bispo da Igreja Evangélica Alemã, mas os nazistas anularam a eleição. Bodelschwingh opôs-se decididamente à liquidação de "vidas menos dignas", exigida pelo regime nazista.

Ao iniciar o século XX, a maior expressão das questões sociais no seio do protestantismo era o Congresso Social Evangélico. Como associação cristã para o estudo e a ação social, o congresso foi pódio de discussões para intelectuais protestantes que buscavam o moderno estado de bem-estar social. Seu presidente foi, por muitos anos, o teólogo Adolf vonHarnack{\851 -1920). No todo, porém, a preocupação social protestante ao longo do século XIX foi de natureza burguesa. Quase não penetrou nas camadas populares e manteve-se avessa a socialismo, comunismo e democracia. A missão interna e a diaconia só conseguiram sucessos maiores porque se desenvolveram paralelamente às igrejas territoriais alemãs, profundamente comprometidas com o trono.

Pg 58 - 59

Catolicismo romano Com a queda de Napoleão, os Bourbons foram reinstalados no trono

francês; o papa Pio VII recebeu de volta os Estados pontifícios. KarlLudwig von Ha/ler ( ] 768-1854), convertido ao catolicismo, formulou a ideologia restauracionista para os regimes contra-revolucionários. A partir dos seis volumes de Restauração da Ciência Política (1816-1826), os conservadores partiam do pressuposto de que apenas a igreja, com o apoio da autoridade política, se-ria capaz de manter a integridade da sociedade.

No período da Restauração, o catolicismo experimentou uma renovação análoga à do reavivamento protestante. Formava-se novamente uma cultura cristã uniforme. 0 Romantismo via na Idade Média tal cultura cristã uniforme, liderada pelo papa. Novalis, apelido de Friedrich von Hardenberg (1772-1801), descreveu a utopia dos anos de ouro do mundo medieval na obra Cristianismo ou Europa. Autores ingleses descreveram a mesma utopia em relação ao anglicanismo medieval. Fato semelhante aconteceu na França em relação ao catolicismo. Conversões como a de Friedrich Schiegei, em 1808, promoveram a autoconfiança católica. Essa renovação da consciência católica estava convicta de que somente um papado fortalecido poderia renovar a Igreja Católica e, conseqüentemente, a civilização ocidental. Pio VII (1800-1823) voltou a Roma em 1814. 0 papado passou a ter liberdade política novamente, e a cúria romana passou a promover a igreja universal contra todas as tendências de igrejas nacionais. No ano de seu retorno a Roma, Pio VII restabeleceu a Companhia de Jesus. Sua influência mostrou-se forma crescente ao longo do século XIX. Promovendo uma série de concordatas, Roma reestruturou a hierarquia eclesiástica estado após estado.

Essa nova importância centralizadora do papado é conhecida como ultramontanismo. Na obra fundamental de Joseph de Maistre (1753-1821), O Papa, de 1819, foi expressa a infalibilidade papal:

O cristianismo depende totalmente da soberania do papa. (...) Não há moral pública nem caráter nacional sem a religião. Na Europa, não há religião sem cristianismo. Não há cristianismo sem catolicismo. Não há catolicismo sem o papa. Não há papa sem sua incondicional supremacia. Uma imprensa muito agressiva, aliada à Companhia de Jesus,

expressou o espírito antimodernista por meio da renovação da piedade

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Pgs 60 - 61 medieval e da organização sistemática da piedade das massas: devoção eucarística, devoção ao sagrado coração e devoção mariana.

Pio IX e o Concílio Vaticano I (1869-70)

No pontificado de Pio IX, deparamo-nos com uma profunda luta contra o liberalismo e o nacionalismo. Em 1854, Pio IX proclamou o primeiro dogma mariológico dos tempos modernos: a imaculada concepção de Maria. O dogma afirma que Maria estava livre de qualquer mácula do pecado original desde o instante de sua concepção, mercê de ato miraculoso do Espírito Santo. O contexto no qual esse dogma deve ser visto é um ultramontanismo apoiado por uma piedade mariana, expressa em visões e milagres como os de Lourdes, na França. Mesmo que os argumentos do dogma já sejam encontrados na Idade Média, o inusitado é que Pio IX o tenha proclamado sem consultar um concílio. Mesmo antes de ser proclamado o dogma da infalibilidade papal, o papa já fazia uso dele.

Na seqüência, em 1864, um Syllabus de Erros - condenou racionalismo, indiferentismo, socialismo, comunismo, sociedades bíblicas, independência do Estado em questões culturais e educacionais. No Syllabus, o catolicismo ultramontano, identificado e comprometido com a Restauração, rejeitou a sociedade moderna, a separação de igreja e Estado, a liberdade religiosa, a educação pública sem controle eclesial e proclamou a autoridade da hierarquia católica para regulamentar a coisa pública. Toda a legislação concernente a matrimônio civil e divórcio não seria aceita até que estivesse de acordo com o Direito Canónico. A igreja tinha assegurado o direito a seus próprios tribunais e o poder de polícia. Para não deixar qualquer dúvida, Pio IX começou a canonizar os juízes da Inquisição.

Todo esse desenvolvimento teve seu desfecho no Concílio Vaticano I (1869-1870). Este concílio definiu o episcopado universal do papado e a infalibilidade do papa. Com essas palavras está expresso o poder jurisdicional do papa sobre toda a igreja. O papa é infalível em questões doutrinais, quando fala excathedra, no exercício de sua função magisterial referente à fé e à moral. A decisão infalível do papa é válida para todo o mundo e tem sua base legal no poder decisório do papa, não no consentimento da igreja. Assim, o catolicismo romano transformou-se em monarquia absoluta, sem restrição constitucional. Estava inaugurado o fundamentalismo romano católico.

Pg 62

Kulturkampf e juramento antimodernista

Kulturkampf indica a divergência da Igreja Católica com o espírito do liberalismo e do nacionalismo no século XIX. Num sentido mais restrito, o Kulturkampf apresenta a luta de Otto von Bismarck (1815-1898), primeiro-ministro da Prússia e primeiro chanceler do novo Reino Alemão, com a cúria romana.

Em 1870, foi fundado na Alemanha o Partido do Centro. Bismarck temia que seu ultramontanismo viesse a pôr em perigo a recente unidade alemã. Ele temia um catolicismo político e pretendia manter tanto as igrejas protestantes como o catolicismo fora da política. A igreja deveria ater-se estritamente ao religioso. Uma legislação específica, elaborada de 1871 a 1875, proibia o uso do púlpito para fins de agitação política, determinava a expulsão de jesuítas e de ordens ligadas a eles e determinava a supervisão do Estado sobre a educação. As Leisde Maio'(1873) limitaram o poder disciplinar da igreja, instituíram a Suprema Corte Eclesiástica, estabeleceram o controle do Estado sobre todos os seminários e exigiram de todos os clérigos um exame a ser prestado perante o Estado. Pio IX condenou essas leis em 1875. Bismarck subestimou a extensão da oposição católica e protestante a essas leis. Como necessitava de apoio católico e protestante contra a socialdemocracia, ele modificou gradualmente as leis.

Após a morte de Pio IX, as tensões diminuíram durante o pontificado de LeãoXIII(1878-1903). Em 1891, Leão XIII publicou a encíclica Rerum novarum, documento até o presente básico para pronunciamentos católico-romanos em questões sociais. A encíclica faz a defesa da propriedade privada, condena o socialismo e o anarquismo. Essa sua parte inicial mostra o contexto no qual foi redigida: os movimentos socialista e anarquista dominavam o operariado, que se perdia para a igreja. Nesse sentido, a Rerum novarum\iem com cinqüenta anos de atraso em relação ao Manifesto de Karl Marx. Mesmo assim, a encíclica teve grandes conseqüências, pois fez coro com as exigências da classe operária contra os empregadores. Os reclamos contra as iniquidades intolerá-veis do capitalismo e da era industrial foram depositados ante as portas dos ricos e dos poderosos. 0 Estado foi declarado responsável pelo bem comum, inclusive pela promoção do bem-estar e dos interesses da classe trabalhadora. Nenhuma classe pode ser explorada em benefício de outra. 0 Estado deve posicionar-se apropriadamente, ocupando-se com o trabalho infantil, com as horas excessivas de trabalho e a justiça para os operários. Essa justiça inclui salário compatível para o sustento da família. A intervenção papal em prol de

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Pg 63 justiça e caridade em questões socioeconómicas foi considerada revolucionária e uma subversão da ordem estabelecida. A aplicação de princípios cristãos na relação capital-trabalho fez com que Leão XIII recebesse o codinome de "papa dos operários".

Mais conciliador do que Pio IX, Leão XIII manteve, mesmo assim, a oposição de seu antecessor em relação ao mundo moderno. Nesse aspecto foi seguido por PioX ( 1903-1914), que condenou os esforços feitos desde o final do século XIX por maior liberdade, especialmente na Teologia, contra uma cúria reacionária. Pio X condenou tais esforços como "modernismo", e todos os teólogos católicos tiveram que prestar o juramento antimodernista de 1910, que só foi revogado em 1967. "Modernismo" eram as mais variadas idéias e teorias científicas, como a teoria da evolução e os avanços nos estudos relativos à Bíblia e apoiados na crítica textual. Era a forma católico-romana de fundamentalismo.

Pg 65 - 66 TEOLOGIA NO SÉCULO XIX

Na Alemanha, a Teologia foi particularmente rica ao longo do século XIX. Nela se fizeram presentes variantes da ortodoxia, do pietismo e da Ilustração. A novidade foi que essas correntes tiveram que competir com aquilo que se convencionou chamar de liberalismo e de protestantismo cultural [Kulturprotestantismus). A figura teológica dominante foi Schleiermacher.

Schleiermacher

Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834) descendia de teólogos reformados, calvinistas. Seu pai fora capelão no exército da Prússia, mas fora fortemente influenciado pelo pensamento morávio, assim como o encontramos no pietismo de Zinzendorf. Em 1783, o jovem Friedrich passou a freqüentar, com sua irmã Charlotte e seu irmão Karl, as instituições dos morávios. Do pietismo, Schleiermacher recebeu a percepção para a riqueza da individualidade religiosa e para a comunitariedade da fé. Em carta dirigida a Charlotte, em 1802, escreveu após longos conflitos de fé: Posso afirmar que após muitas coisas volteia ser um morávio, só que de ordem superior.

Schleiermacher tornou-se pastor e professor universitário. Ao lado de sua carreira como professor de Teologia e de sua função de diretor da Faculdade de Teologia da Universidade de Berlim, ele pregou quase que dominicalmente na Igreja da Trindade. Fundou com Wilhelm von Humboldt (1767-1835) a Universidade de Berlim. Lecionou todas as disciplinas teológicas, exceto o Antigo Testamento, mas também ofereceu preleções sobre Filosofia, Dialética, Ética, Psicologia, Política, Estética, Hermenêutica e Educação. Suas obras teológicas vão da obra-prima apologética Sobre a Religião: aos cultos dentre seus desdenhadores (1799) à dogmática/4fec?/s/s(1821-1822). Schleiermacher levou a sério as críticas que a Ilustração dirigia à religião de um modo geral e ao cristianismo em particular. Para ele, a fé deixa de viver quando busca proteger-se na defensiva e no isolamento. Patriota, pregou instigando a Prússia em sua guerra contra a França de Napoleão. Sua fama era muito grande; quan-do de sua morte, dezenas de milhares de pessoas vieram prestar-lhe sua última homenagem

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Pg 67 Nos dias de Schleiermacher, a Ilustração e seu idealismo acentuavam a

liberdade e a autonomia do ser humano. Aliados aos cientistas naturais, os filósofos devotaram-se à experiência empírica e reduziram o discurso sobre o supranatural a um discurso sobre o natural. Falar de Deus e da revelação era descrever as capacidades humanas. Schleiermacher enfrentou essas formulações e tendências. Assim como seus contemporâneos, também partiu da experiência empírica. No entanto, ao invés de acentuar a liberdade, falou acerca da dependência humana. A experiência de Deus não depende de qualquer abstração intelectual ou de alguma compulsão ou piedade, de crença em coisas incríveis. Ela orienta-se na experiência de dependência do próprio ser humano. Daí também a definição de fé de Schleiermacher: Fééa consciência de ser absolutamente dependente ou, o que é a mesma coisa, de estar em relação com Deus. A fé cristã não consiste na crença em determinadas doutrinas, em viver de determinada maneira ou ter experiências que aqueçam o coração, mas antes em viver em relação com Deus. Essa relação está centrada em Jesus de Nazaré, o redentor, que não é objeto da fé, mas mediador da fé, que se concretiza no discipulado dos crentes: a igreja.

Schleiermacher era um teólogo apologeta e procurou apresentar a verdade do evangelho de modo que se tornasse compreensível ou crível para seus contemporâneos. Seus escritos nem sempre são de fácil compreensão. Por isso fez-se um jogo de palavras com seu sobrenome: fazedor (Macher) de véus (Sch/eier). Muitas vezes parece encobrir, velar, ao invés de descobrir, desvendar. Há, porém, uma série de expressões suas que nos ajudam a entender sua intenção: Religião não é extrínseca, mas intrínseca à vida humana; religião não é objeto de investigação, mas o sujeito do auto-exame; a fé cristã não somente critica a cultura, mas a si própria; teologia é o serviço com o qual a igreja responde a perguntas - não é uma coleção de verdades eternas. A proclamação do evangelho está acima da especulação a seu respeito.

Reavivamento

Se em Schleiermacher temos uma figura isolada que dá novos impulsos à reflexão teológica, temos naquilo que se chama de Reavivamento um movimento de grande significado. Na realidade, é um movimento religioso transconfessional, que teve início na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Pgs 68 - 69

Nos primórdios do século XIX, o Reavivamento atingiu também a Alemanha, irradiando-se para muitos outros países. É Awakening, é Erweckung, é Réveil.

Os principais impulsos do Reavivamento aparentemente provêm do antigo movimento pietista, especialmente do movimento de Zinzendorf e dos morávios. No entanto, foi um movimento pluriforme e multifacetado. Mas essa pluriformidade teve alguns aspectos comuns: a oposição à Ilustração e à religião da razão; a pecaminosidade do ser humano diante de Deus; o despertar para uma nova vida pela graça de Cristo somente; a experiência pessoal de um novo nascimento com o objetivo de uma reestruturação da sociedade (da soma dos convertidos surge uma nova sociedade); a crescente atividade social e esforços missionários para a expansão da fé cristã. Produto concomitante do movimento foi a apropriação da Bíblia pelo povo cristão e, em conseqüência disso, a formação de associações livres para atividades co-muns. Assim, o Reavivamento também rompeu os muros das denominações.

Na Inglaterra, o Reavivamento alcançou seu auge no metodismo. Seu impacto foi tão grande, que por muito tempo se afirmou que o movimento metodista teria sido a última grande forma de igreja a emergir na história do cristianismo. 0 pai do metodismo é o reverendo anglicano John Wesley (1703-1791), mas a seu lado ainda devem ser mencionados George Whitefield (1714-1770) e Charles Wesley (1707-1788). Em 1729, os irmãos Wesley fundaram uma associação de estudantes em Oxford. Sua vida piedosa, que se orientava em regras claras, e a ênfase que davam à santificação renderam-lhes o gracejo de ser "metodistas".

John Wesley pôde fixar a data de 27 de maio de 1738, às 20h45min, como o momento de sua conversão. Esta foi conseqüência da pregação morávia e da leitura do prefácio ao comentário de Lutero sobre a Carta aos Romanos. A experiência de conversão de Wesley tornou-se modelar para a pregação do Reavivamento e encontrou em seu irmão Charles e em Whitefield seus principais pregadores, atingindo a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda. Nessa pregação havia o chamado a um discipulado pessoal de Jesus Cristo, conseqüência de conversão, de dependência e de experiência da graça. Pessoas assim atingidas e com tal experiência formavam comunidades. Característico para o metodismo é o ministério do pregador leigo. Desses pregadores vieram impulsos para a política social inglesa. Por muito tempo, o metodismo foi um movimento no seio da Igreja Anglicana; separou-se dela após a morte de Wesley.

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Pgs 70 - 71 Entretanto, não podemos dizer que não restou nada do movimento do

Reavivamento na Igreja Anglicana. Nesta existe, em conseqüência daquele movimento, a Low Church ("Igreja Baixa"), que se diferencia da High Church ("Igreja Alta"). Da Low Church vieram importantes impulsos para a abolição da escravatura.

Em oposição ao Reavivamento, mas também como resposta ao declínio na vida da igreja, como reação ao liberalismo teológico e como decorrência do Romantismo e de sua redescoberta do mundo medieval, surgiu o Movimento de (Gr/W (1833-1845). Este movimento defendeu a igreja da Inglaterra como instituição divina, batalhou pela sucessão apostólica e pelo Livro de Oração Comum como regra de fé. Um dos principais líderes do Movimento de Oxford, John Henry Newman (1801 -1890), converteu-se ao catolicismo romano e foi feito cardeal em 1879 por Leão XIII. Seus escritos exerceram influência no anglicanismo e no catolicismo e formaram uma ponte significativa para o diálogo ecumênico.

Teologia protestante

Para entender as correntes da teologia protestante do século XIX, é necessário perceber que a mesma é filha da Ilustração, dos impulsos de Schleiermacher e do Reavivamento. Porém um filósofo jamais deve ser esquecido. Sem ele não podemos entender a evolução do pensamento teológi-co, tampouco seus descaminhos: Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1 770-1831).

Em Hegel destacam-se sua compreensibilidade esua profundidade. Ele faz parte do idealismo. Em seu pensamento, temos a culminância de uma era que tinha suprema confiança no pensamento racional do ser humano. Hegel montou um sistema filosófico; ele pensava que com esse se poderia compreender toda a realidade. Sendo assim, procurou transcender não somente os interesses analíticos da Ilustração, mas a própria realidade. Segundo ele, a divisão da realidade em partes possibilita um conhecimento válido, mas não atinge o todo. Podemos dissecar um animal, vamos entender suas partes, mas não vemos mais o animal. A verdade não está em particularidades, mas no todo. Daí a lapidar sentença de Hegel: Die Wahrheitist das Ganze (A verdade é o todo). Hegel rejeitou a lógica aristotélica, segundo a qual "A" não é "não-A", e atestou a natureza dialética da realidade, na qual tudo é visto em seu oposto: tese, antítese e síntese. A síntese transforma-se em nova tese, à qual se apresenta uma antítese, que é transcendida em nova síntese, e

Pgs 72 - 73 assim por diante. A realidade é um processo histórico, no qual o Absoluto (os teólogos diriam "Deus") chega à sua auto-realiza-ção em nossa razão (que não precisa ser necessariamente a nossa, mas a de Hegel). A história é vista como um processo dialético, uma evolução até seu cumprimento. Quem entra no trem da história participa de seu alvo. Os alunos de Hegel deram-lhe diversos nomes: Estado prussiano, sociedade sem classes etc.

Mas a história é inteligível, racional. Por isso Hegel escreveu no prefácio à Filosofia do Direito: Tudo o que éreal é racional, e tudo o que é racional é real. Esta sentença não é muito confortável para quem sofre as antíteses da história, mas, segundo Hegel, a vida tem que "sofrer feridas" para ser reconciliada com sua unidade. 0 ardil da razão provoca sofrimentos e inversões em seu nome. Oculta-se e revela-se em suas formas empíricas imanentes, para que o Espírito possa chegar à auto-realização por meio do processo de alienação e reconciliação. 0 desafio posto aos teólogos foi a aplicação desse sistema ao problema da teodicéia e da superação do abismo existente entre razão e revelação.

As influências de Hegel foram múltiplas. Um de seus alunos virou-o de cabeça para baixo, afirmando que o lugar de seu falar de realidade não é o idealismo, mas o materialismo. Por isso Ludwig Feuerbach (1804-1872) pôde afirmar: O ser humano é o que come. KarlMarx(1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895) e Wladimirlljitsch UljanowLenin (1870-1924) desdobraram as concepções de Hegel no materialismo dialético e aplicaram-no à sociedade e à política, afirmando que nosso objetivo não é entender a história, mas transformá-la. David Friedrich Strauss (1808-187'4) aplicou a lógica de Hegel ao estudo histórico de Jesus de Nazaré e chegou à conclusão de que esse é um mito. Sõren Kierkegaard (1813-1855) rejeitou todo o sistema de Hegel por amor ao indivíduo solitário que se confronta com o Outro, Deus, infinita e qualitativamente diferente. 0 grito de Kierkegaard só foi ouvido no século XX.

Feuerbach e Strauss provocaram furor entre os teólogos de seus dias. Feuerbach influenciou Marx, Nietzsche, Freud e Buber, acusou a Teologia de haver matado Deus e de haver divinizado a humanidade. Por isso interpretou o cristianismo como uma projeção dos temores e dos desejos humanos. Ao escrever  Essência do Cristianismo, em 1841, Feuerbach afirmou que Deus nada mais é do que a projeção da personalidade do ser humano e que o começo, meio e o fim da religião é o ser humano. Ao mesmo tempo, porém, asseverava que a negação do sujeito, Deus, não significava a negação dos predicados (sabedoria, amor, justiça). 0 ateu real reconhece Deus teoricamente e depois vive como se ele

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Pgs 73 - 74 não existisse. Sua intenção de resgatar a fé das abstrações dos filósofos e dos teólogos não foi aceita.

Strauss provocou uma tormenta com seu livro Vida de Jesus (1835). Afirmou que o Cristo dos evangelhos não é histórico, mas mitológico. Jesus foi um mestre humano que ensinava o amor a Deus e ao próximo. Foi a igreja que acrescentou a idéia do Deus-homem a Jesus. Strauss fez uso da lógica hegeliana. 0 Deus-homem é a síntese da dialética de Deus (tese) e ser humano (antítese): a dialética do sobrenatural e do natural leva ao mitológico. Obviamente a transformação da cristologia em mitologia levou a muitas reações.

A questão da relação entre fé e história, formulada por Strauss, foi objeto de estudo por parte de Martin Kàhler (1835-1912). Em sua obra O assim chamado Jesus histórico e o Cristo histórico-bíblico (1892), Kãhler afirmou que a base da fé cristã não é o Jesus histórico, mas o Cristo pregado e testemunhado pela comunidade. A tentativa de descrever o Jesus histórico é um equívoco metodológico e teológico. É um equívoco metodológico porque os evangelhos, antes de serem fontes para a pregação da igreja, são recursos históricos para uma biografia de Jesus. Em termos teológicos, a comunidade cristã não se centraliza no querido Jesus que partiu, mas no Cristo vivo do presente. Para Kãhler, o Cristo pregado é o Jesus terreno. A certeza da fé, porém, não pode repousar sobre os resultados da pesquisa histórica. Ao retirar a fé do emaranhado da pesquisa histórica empírica, Kãhler ofereceu elementos para a resposta dos teólogos, que tiveram que responder ao colapso do liberalismo após a Primeira Guerra Mundial. Teologia liberal

A teologia liberal tem suas raízes na Ilustração. No século XIX, porém,

ela centrou-se na temática de fé e história. Como é possível continuar a existir cristianismo se microscópio e telescópio não nos dão uma evidência de Deus? Para responder a perguntas como essa, os liberais concentraram-se então em estudos históricos. Como Jesus foi uma figura histórica, é acessível à pesquisa como qualquer outro personagem histórico. Por isso os teólogos liberais lançaram-se ao estudo histórico-crítico do Novo Testamento para encontrar o Jesus "real", "verdadeiro" e sua mensagem por trás dos acréscimos da dogmática. Os liberais distinguiram entre a religião de Jesus e a religião sobre

Pgs 75 - 76 Jesus. A fé cristã foi reduzida à mensagem de Jesus sobre o reino de um Deus do amor.

O próprio estudo histórico-crítico da Bíblia levou à destruição da teologia liberal. Johannes Weiss (1863-1914) e Albert Schweitzer{\Zl̂ -\965) mostraram em seus estudos que Jesus não era inglês nem alemão, que seu pensamento não equivalia ao pensar e ao agir de um gentleman. Para Weiss e Schweitzer, a partir de uma perspectiva moderna, Jesus não era um gentleman, mas um fanático religioso que esperava pelo fim iminente do mundo.

Mas, antes que despontassem as pesquisas de Weiss e de Schweitzer, surgiram nomes como os de AlbrechtRitschl (1822-1889), Adolf von Harnack (1851-1930) e Ernst Troeltsch (1865-1923). Ritschl esteve sob a influência de Kant e de Schleiermacher. Para ele, o cristianismo é um fato histórico mediado pela experiência pessoal do crer. 0 Novo Testamento dá testemunho a respeito da revelação que Jesus fez do reino de Deus, como sendo o alvo ético de todo o gênero humano. Jesus é o arquétipo da humanidade reconciliada e unida no reino de Deus. A redenção pessoal e a formação de comunidade no reino de Deus são a conseqüência da transformação e do retorno da vontade humana à vontade de Deus. Os temas clássicos da dogmática (pecado, juízo, ira de Deus, trindade, cristologia) e as expressões dos credos e das confissões são cascas que encobrem o cerne do evangelho.

As idéias de Ritschl foram acompanhadas pelo historiador Adolf von Harnack, que pode ser considerado o mais notável teólogo de seus dias. Mesmo sem expressar concordância com sua interpretação, devemos considerar magistral seu esforço em torno da recuperação do pensamento da igreja antiga. Harnack advogou um cristianismo não-dogmá-tico. Queria um cristianismo liberado dos acréscimos doutrinais feitos pelas gerações que se seguiram à primeira geração de cristãos e que transformaram a religião de Jesus, entendida como o reino do amor de Deus, em religião acerca de Jesus, um ser preexistente que expia vicariamente os pecados. 0 cerne do cristianismo está envolto em lixo metafísico. 0 dogma cristão é obra do espírito grego sobre a base do evangelho. Essa tese é desenvolvida nos sete volumes da História do Dogma (1886-1890). Harnack separa o cerne do evangelho de sua casca helenista e procura recuperar o cristianismo para seus contemporâneos.

Quando Harnack escreveu, em 1900, Das Wesen des Christentums (que podemos traduzir por "A essência do cristianismo" ou "0 que é cristianismo?"), ele procurou tornar o cristianismo plausível para o mundo moderno, reduzindo a fé à paternidade de Deus, à fraternidade do gênero

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Pgs 77 - 78 humano e ao valor infinito da alma humana. No prefácio à reedição de 1964, fíudo/f Bultmann informa que, até 1927, o livro de Harnack tivera 14 edições alemãs e fora traduzido para 14 idiomas. 0 livro transpira otimismo e confiança no progresso. Nesse otimismo e confiança procurou trazer a proclamação bíblica para o início do século XX. 0 final do livro é significativo:

Meus senhores! A religião, isto é, o amor a Deus e ao próximo, é que dá sentido à vida; a ciência não consegue. Permitam-me dizer de minha própria experiência. Sou alguém que se ocupou por trinta anos seriamente com essas questões. A ciência pura é algo maravilhoso e ai daquele que a menosprezar ou que deixa embotar em si o senso para o conhecimento! Mas ela não consegue dar hoje resposta às perguntas pela origem, destino e finalidade, assim como não o conseguiu há dois ou três mil anos. É verdade que ela nos dá conta de realidades, desvenda contradições, relaciona fenômenos e corrige os enganos de nossos sentidos e concepções. Mas sobre onde começa a curva do mundo e a curva de nossa própria vida - aquela curva da qual só nos mostra uma parte - e para onde essa curva conduz, sobre isso a ciência nada nos ensina. Se, porém, afirmarmos com firme vontade as forças e os valores que resplandecem nos ápices de nossa vida interior como nosso supremo bem, sim, como nosso verdadeiro ser, se tivermos a seriedade e a cora-gem de deixá-los valer como o real e de orientarmos a vida neles, e se então observarmos o processo da história da humanidade, perseguirmos seu desenvolvimento que se move em direção ao alto e nele procurarmos, esforçados e servis, a comunhão dos espíritos - não incidiremos em tédio e desalento, mas teremos certeza de Deus, do Deus que Jesus Cristo designou de seu pai e que também é nosso pai. Esse otimismo de Harnack e sua confiança no progresso tornaram-se

sempre mais problemáticos à medida que se foi descobrindo o caráter estranho da mensagem bíblica em seu confronto com o mundo moderno.

Quem mais refletiu a relação entre fé e história foi Ernst Troeltsch, citado, mencionado e discutido até o presente. Troeltsch continua atual, pois concentrou suas pesquisas na relação entre cristianismo e cultura moderna, en-tre revelação e história, entre liberdade pessoal e condicionamentos sociais. Sua obra sobre as relações entre cristianismo e cultura, A Doutrina Social das Igrejas Cristãs, de 1912, é mencionada seguidamente. Troeltsch historiciza todo e qualquer pensamento. Não há nada que escape ao condicionamento histórico.

Pgs 79 Senhores, tudo oscila, dizia ele aos conservadores. Não hesitava em chocar. E chocou até mesmo seus companheiros, que buscavam tirar a casca para chegar ao cerne do evangelho: Por baixo da casca não há cerne eterno, não-histórico. Tudo o que existe persiste em condições históricas. Ao escrever DieAbsolutheit des Christentums (0 absolutismo do cristianismo), em 1902, Troeltsch comprovou que o labor histórico não pode reivindicar a superioridade de uma religião sobre outra. Troeltsch descobriu que o método histórico, quando aplicado à Bíblia, à História da Igreja e à Teologia, não comprova revelação nem fé.

A Teologia tinha que reiniciar sua reflexão: o liberalismo não era a solução. A contrapartida, porém, também não foi a solução. Ela manifestou-se na reação católica romana, já descrita, e na reação protestante conservadora, conhecida como fundamentalismo. A melhor solução só veio após a Primeira Guerra Mundial, mas então parte dos cristãos ocidentais já havia optado pelo fundamentalismo.

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Pgs 81 - 82

FUNDAMENTALISMO

Quem se ocupa com a temática do fundamentalismo avança por um território escorregadio. Quanto mais cresce o caudal da literatura acerca do fundamentalismo, tanto mais difusos se tornam os contornos do conceito e da própria questão. Foi por isso que julgamos importante caminhar com o leitor por todo o desenvolvimento do cristianismo desde o século XVII, para que ele entendesse o que, mais recentemente, começou a ser designado de fundamentalismo. Há um uso realmente inflacionário do conceito, e esse vai sendo usado de forma mais ampla. Em decorrência, questões da política secular também passaram a ser caracterizadas de fundamentalismo. Penso nas posturas dos partidos verdes. Além disso, todas as formas de conservadorismo passaram a ser caracterizadas de fundamentalismo, tenham elas sido políticas ou religiosas. Nos meios universitários, a pessoa que defende sua posição com entusiasmo e veemência é caracterizada de "fundamentalista".

Pode-se suspeitar que a conjuntura na qual o tema fundamentalismo aparece está ligada aos contornos nada precisos do conceito e da questão fundamentalismo. Quanto mais imprecisos são os contornos, tanto mais facilmente se pode caracterizar algo ou alguém de fundamentalismo ou de fundamentalista. A isso ainda devemos acrescentar o fato mencionado antes de que o conceito sempre é usado em relação ao outro: sempre são os outros que são fundamentalistas.

No início do uso do conceito, a situação era outra. Grupos de cristãos protestantes conservadores atribuíram a si mesmos essa designação no princípio do século XX, nos Estados Unidos da América do Norte. Entre 1909 e 1915, foi publicada nos Estados Unidos uma série de textos, com edição superior a três milhões de exemplares, sob o título The Fundamentals - a Testimonium to the Truth (Os Fundamentais - um Testemunho em favor da Verdade). Do título dessa série saiu o nome de um movimento, formado no último terço do século XIX por grupos de cristãos conservadores evange-licais. Esse foi crescendo, principalmente graças ao suporte financeiro de leigos bem estabelecidos. Temos aqui o nascimento do fundamentalismo protestante, que determinará os Estados Unidos da América do Norte e que, em pouco tempo, começará a ser exportado para outros continentes e países.

Os fundamentalistas entendiam-se como uma contra-ofensiva a um modernismo que, assim diziam, havia se apossado do mundo protestante. Particularmente, esse fundamentalismo entendia-se primeiro como uma

Pgs 83 - 84 contra-ofensiva a uma Teologia orientada em um método que interpretava os conteúdos da fé, especialmente os textos bíblicos, a partir de uma perspectiva histórico-crítica. 0 protestantismo estava se aliando à ciência moderna - e esse era o seu pecado. A esse modernismo os fundamentalistas opuseram seus fundamentais (fundamentais). Fundamentals eram os conteúdos de fé, verdades absolutas e intocáveis, que deveriam ficar imunes à ciência e à relativização por meio do método histórico. Os fundamentalistas valeram-se de terminologia muito semelhante à do catolicismo romano do final do século XIX. Alguns temas passaram a ser considerados fundamentais: a inspiração verbal11, literal, da Bíblia; a afirmação da verdadeira divindade e do nascimento virginal12 de Jesus; seu sacrifício expiatório vicário13 por meio de seu sangue derramado e de sua ressurreição corporal; a segunda vinda de Cristo à Terra, na época vista como iminente, com sinais apocalípticos ou com o retorno para um reino milenar, intermediário; não-aceitação dos resultados da ciência moderna, quando não correspondiam ao que designavam de "fé bíblica"; exclusão do statusàe verdadeiro cristão de todos aqueles que não aceitavam esse fundamentalismo.

Os fundamentais descritos acima destacam dois aspectos distintos do movimento fundamentalista. No fundamentalismo temos, em primeiro lugar, oposição e reação contra transformações da religião, determinadas pela Modernidade. 0 fundamentalista quer defender sua verdade religiosa, que ele vê ameaçada pelos "poderes" da Modernidade, designados de pluralismo, relativismo, historicismo e destruição de autoridades. Quando estudamos os conteúdos dos discursos e da autocaracterização dos movimentos funda-mentalistas, deparamo-nos com um diagnóstico básico acerca da relação entre religião e Modernidade: 0 fundamentalista não pretende a modernização da

11 Desenvolve-se, entre muitos protestantes, contra a leitura histórica e crítica dos textos bíblicos, a convicção de que cada palavra, cada letra do texto bíblico foi "inspirada", ditada pelo Espírito Santo a seus autores. Por isso muitos também afirmam a "inerrância" do texto bíblico: a Bíblia não ensina nada que seja cientificamente inexato. Se em Gênesis, por exemplo, a criação ocorreu em sete dias, estes sete dias são realmente sete dias de 24 horas. Nesse caso, os fósseis que encontramos foram criados por Deus e por ele colocados na terra. Eles não provam períodos maiores para a criação, muito menos a evolução das espécies. '9 Desde os primórdios do cristianismo, partindo da leitura dos evangelhos de Mateus e Lucas, o cristianismo tem afirmado que a concepção de Jesus seria atividade do Espírito Santo em Maria, sem o concurso de pai humano. Quando do nascimento de Jesus, o hímen de Maria teria permanecido intacto, tendo a mãe de Deus sido e permanecido virgem. 13 Aconcepção do sacrifício expiatório e vicário vem originalmente do judaísmo, em que um cordeiro era imolado a Deus em lugar do pecador e em seu favor, para o perdão, expiação, de sua culpa, pecado. No cristianismo, Jesus passa a ser visto como o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo em virtude de sua morte na cruz.

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Pg 85 religião, mas a fundamentação religiosa, explícita, da Modernidade. Isso vale para os fundamentalismos em qualquer parte do mundo. Não se busca, por exemplo, uma modernização do islã, mas a reislami-zação do mundo islâmico. Não se busca uma concepção secular do Estado de Israel, mas sua fundamentação teocrático-religiosa. Não se busca uma secularização do cristianismo, mas a recristianização do mundo ocidental. A esse aspecto devemos acrescentar, em segundo lugar, outra característica dos movimentos fundamentalistas. Trata-se da relação entre religião e política. Os adeptos do movimento fundamentalista cristão estavam convictos, desde o início, de que a política deveria ser cristã: o mundo ocidental tem que voltar a ser cristão. Nesse aspecto, os fundamentalistas distanciavam-se de seus pais quietistas14. Em conseqüência, exigiam que o Estado defendesse, nas escolas públicas, sua concepção bí-blico-fundamentalista do ser humano. No Estado norte-ame-ricano do Tennessee, um professor de Biologia chamado Scopesteve que se defender em juízo da acusação por parte de fundamentalistas de que transmitira a seus alunos a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin. Bem ao estilo fundamentalista, Scopes acabou sendo advertido pelo tribunal. 0 caso de Scopes mostra que, para o fundamentalismo, a verdade religiosa é pressuposto para a ação política. Seu alvo é a sociedade perfeita. A sociedade perfeita só se estabelece quando todos se submetem à verdade religiosa, assim como foi ditada pelo Espírito Santo a determinadas pessoas e fixada nas páginas inerrantes, incapazes de erro, do texto bíblico. Ora, nesse aspecto, o fundamentalismo teve no Syllabus15 papal um grande companheiro. Ambos são filhos da mesma época.

Essa investida sobre a política em nome da religião é aspecto central nos movimentos de renovação religiosa que começaram a se formar em todo o mundo a partir da década de 1970. Para caracterizá-los, passou-se a usar o conceito fundamentalismo, que, na realidade, é uma ampliação do conceito original de fundamentalismo, com o qual nos deparamos no final do século XIX e no início do século XX. Em 1977, por ocasião das eleições para o parlamento de Israel, o Partido Trabalhista, que representava um socialismo leigo e democrático, perdeu a maioria. Em contrapartida, um movimento

14 Concepção que se opõe a qualquer tipo de ativismo, seja ele ético ou religioso. Como Deus é todo-poderoso, devemos submeter-nos ao destino e desistir de qualquer intervenção no desenrolar normal das coisas. 15 Cf. acima p. 60.

Pgs 86 - 87 sionista16 passou a ter crescente influência. Ele estava determinado pela religião, pela aceitação de um parâmetro religioso que falava da relação especial de Deus para com seu povo eleito. Sem esse aspecto religioso, não se pode entender a colonização dos territórios ocupados por Israel nos últimos anos. Ela representa o fim de uma concepção secular de Estado e sua substituição por uma identidade baseada na EretzIsrael, a Terra de Israel, da promessa bíblica. 0 interessante é que também fora do Estado de Israel, na dispersão judaica, começa a se fortalecer um judaísmo religioso, que encontramos, por exemplo, no Teshuwa, o movimentos dos "arrependidos que retornam", ou num tipo de literatura na qual os autores confessam seu retorno ao judaísmo religioso.

Dois anos após as mudanças ocorridas em Israel, o aiatolá Khomeini1* retornava a Teerã, proclamando uma república islâmica em 1979. No mesmo ano, muçulmanos armados ocuparam a mesquita de Meca em protesto contra a família real que governa a Arábia Saudita. Os dois fatos não surgiram do acaso, mas fazem parte de um movimento que vem de longa data e que busca a reislamização17 do mundo islâmico, com o objetivo da expansão universal do islã. É uma reação à Modernidade ocidental, levada ao mundo islâmico pelo colonialismo europeu. Esse movimento vai da Malásia ao Senegal, do deserto africano às antigas repúblicas soviéticas e, entrementes, localiza-se nas periferias das metrópoles européias e latino-americanas.

No mesmo ano de 1979, em que Khomeini proclamava a república islâmica, nos Estados Unidos o televangelista Jerry Fa/lawetfunàou o movimento "Moral Majority", com o qual buscava recrutar e organizar politicamente os mais de 60 milhões de norte-americanos que se denominam de "cristãos renascidos". A vitória eleitoral de Ronald Reagan em 1980 foi conquistada com o apoio da "Moral Majority" e de movimentos similares. Entre os pré-candidatos republicanos estava Pat Robertson, pregador da igreja eletrônica26.

Os exemplos são muitos. No campo católico-romano, formam-se grupos tradicionalistas, integralistas, cujos representantes mais extremados foram o bispo Lefebvre, na França, e Plínio Correia de Oliveira, fundador do movimento Tradição, Família e Propriedade no Brasil, no qual contava com o apoio de bispos como Dom Sigaud e Dom Eugênio de Castro Meyer. No

16 Em sua obra O Estado Judaico, o escritor e jornalista Theodor Herzl (1860-1904) argumentava que,

como nem a integração e a assimilação dos judeus conseguiram acabar com a perseguição a eles, a única solução seria dar-lhes um Estado próprio. Essa concepção foi chamada de sionismo, palavra vinda do monte Sião, colina sobre a qual Jerusalém foi construída parcialmente.

monarquia iraniana e introdutor da república islâmica naquele país.

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Pgs 88 - 89 protestantismo brasileiro surgiu, por ocasião da Constituinte brasileira da década de 1980, o "Bloco Parlamentar Evangélico", que pretendeu introduzir na Constituição parágrafos que proibiam, por exemplo, o homossexualismo. Desde o final da década de 1990, há tentativas de tornar o Partido Liberal (PL) um partido evangélico.

Quando se verificam ou listam esses fatos, só se pode chegar à conclusão de que a religião retornou à história. Não conseguimos mais entender a situação do mundo atual se não estivermos dispostos a reconhecer que a religião também é um fator do processo histórico. Para quem foi formado na tradição iluminista ocidental, também preparada por movimentos como o pietismo, essa constatação é sinistra. Sinistra porque o surgimento de movimentos fundamentalistas evidencia que a história da Modernidade segue um curso diferente daquele propalado pelo culto à razão. A razão ilustrada tinha certeza do progresso, da evolução, e assegurava que a religião atrapalhava o ser humano na realização de seu verdadeiro destino. No decorrer do processo emancipatório da história, isto é, quanto mais o ser humano se emancipasse de Deus, sempre mais a religião iria desaparecer, passando a fazer parte de um estágio ultrapassado da história da humanidade. Alguns chegaram a afirmar que, se não viesse a desaparecer totalmente, seria privatizada, sem ter qualquer influência na conformação da sociedade. Para esse tipo de pensamento, os movimentos fundamentalistas são estranhos e perigosos. Eles são a comprovação de que verdades religiosas podem voltar a dominar o ser humano, que o ser humano pode voltar a viver sem as luzes da razão, que pode mergulhar novamente nas trevas. Na teoria iluminista sobre a religião, essa volta não estava prevista.

Decorre daí o fato de que, tanto em folhetins como em publicações da área das ciências sociais, pode-se ler a afirmação de que o fundamentalismo representa perigo por ser fanatismo religioso ou político, renovação das "trevas" da Idade Média, fim das luzes da razão. Fala-se em "tentação fundamentalista", em "fantasma" que estaria perpassando o mundo moderno, que seria necessário "construir diques" contra o "dilúvio fundamentalista".

No entanto, o retorno da religião não é apenas fundamentalismo. É necessário que se pergunte pela importância cultural desses movimentos religiosos. Eles são expressão autêntica da cultura de nossos dias. 0 fundamentalismo é expressão da própria Modernidade. A Modernidade criou fundamentalismos como a crença no fim da religião, no progresso da história... 0 fundamentalismo não é mero tradicionalismo ou antimodernismo.

Pgs 90 - 91 Seja permitido um trocadilho: ele é um antimodernismo moderno. Ele surge em meio a condições culturais de uma sociedade secular ou que está co-meçando a se secularizar.

Para evitar generalizações, é importante lembrar que a Modernidade foi determinada em seu surgimento e em sua história por esperanças seculares de salvação e por promessas seculares de redenção, com caráter religioso-secular. A Modernidade secular tem a sua história religiosa, sua secularidade religiosa. Ela própria está baseada em fundamentalismos que podem ser expressos na trindade: fé na história como história do progresso do mundo; fé na ciência como crença popular; fé na política como messianismo político. Basta lembrar a transformação das proposições do pai do positivismo, Augusto Comte, em Religião da Humanidade, com larga difusão no Brasil até 1945. Basta lembrar a transformação da teoria da evolução das espécies de Darwin em dogma. Basta lembrar a idéia do paraíso socialista de Karl Marx e a quase-transformação dos pressupostos marxistas em religião. Algo semelhante está a acontecer com a dogmatização de teorias econômicas mais recentes.

Na sociedade ocidental atual, parece que a marcha vitoriosa do fundamentalismo religioso secular está despida de sentido ou vai perdendo sentido. Há uma crise na história religiosa secular. A Modernidade está insegura quanto à sua fé, à sua certeza secular. O progresso das ciências leva realmente ao fim da miséria? O progresso da história leva realmente ao fim de guerras e matanças? Esse é o pano de fundo para podermos entender o surgimento de movimentos fundamentalistas.

Aqui temos a base para entender a diferença do fundamentalismo atual em relação àquele do início do século XX. No início do século XX, fazia-se oposição às crenças seculares, ao cientificismo, à fé no progresso. Hoje buscam-se respostas fundamentalistas a questões surgidas com a perda da certeza secular. O islamismo observou isso muito bem em relação ao Ocidente. A emancipação de Deus levou à maior exploração do humano. A emancipação da mulher levou a que ela pudesse ser mais facilmente explorada no mercado de trabalho e no consumismo sexista. Seu grande discurso é a rejeição dos valores da cultura ocidental, pois no próprio Ocidente ficou claro que a história da Modernidade ocidental é questionável, pois é fragmentária.

O adepto dos movimentos fundamentalistas reporta-se à tradição religiosa pré-iluminista e sabe-se carregado por um fundamento que precede e que crê ser "mais forte" do que a questionável orientação no "humanismo secular", no qual, por exemplo, os fundamentalistas norte-americanos vêem

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Pgs 92 - 93 seu principal adversário. Num mundo em que a autoridade desmorona, o fundamentalista sabe-se abrigado por uma autoridade que escapa à dúvida, à problematização e à dissolução modernas.

A visão de história do fundamentalismo olha para o tempo em que se vivia de acordo com a vontade de Deus, mira o futuro escatológico e apocalíptico, o futuro preparado por Deus para o fim dos tempos, e apresenta uma possibilidade de interpretação e de absorção coerente do presente. Em sua crise, o presente é, justamente por causa dos sinais de sua decadência, prenúncio e garantia da salvação que vem.

Por causa de sua importância para o comportamento ético individual, pode-se nominar a conversão como outra característica do fundamentalismo. Ela está relacionada à garantia de uma postura fundamentalista frente às experiên-cias de crise do mundo moderno. A experiência da conversão é norma de vida em muitos movimentos fundamentalistas. Ela tem significado como orientação e sentido para a vida. Por causa da conversão, a biografia do convertido adquire contorno e segurança. Ela pode ser estruturada a partir da conversão. "Conversão" significa, numa perspectiva sociopsi-cológica, saber a qual lugar pertencemos em conseqüência de nossa biografia.

O fundamentalista experimenta a sociedade que o cerca em decadência moral e anômica, sem lei e sem normas. Por isso a comunidade fundamentalista concede-lhe descanso e segurança em razão de suas regras severas e normativas. Assim, o fundamentalismo torna-se convidativo e atraente para uma parcela significativa da humanidade, pois oferece segurança em meio a verdades que se desvanecem, porto seguro em meio a pluralidades, relativizações e dissoluções das certezas antigas. 0 fundamentalismo torna-se instrumento de verificação para uma Modernidade que laborou em equívoco e que produziu monstros em nome de uma outra divindade, que não é Javé, nem o Pai de Jesus, nem Alá, mas o mercado. Nosso mundo busca desesperada-mente uma nova ordem de valores.