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29 CAPÍTULO 1 COMMON LAW E CIVIL LAW Os diversos sistemas jurídicos adotados mundo afora são nor- malmente agrupados para que se possa ter uma compreensão di- dática acerca das suas características, semelhanças e diferenças. Normalmente esse agrupamento leva em consideração critérios objetivos, sendo que a variação desses critérios faz como que te- nhamos mais de um agrupamento. René David faz o agrupamento dos direitos em famílias, que é a forma mais clássica de distinguir os ordenamentos jurídicos de países distintos, ressaltando o cará- ter didático desta denominação (família). Alude o professor francês às famílias (1) romano-germânica, que agrupa os países nos quais a ciência do direito se formou sobre a base do direito romano (os países da Europa continental, por exemplo), (2) à common law, que comporta o direito da Inglaterra e os direitos por ela influenciados (Estados Unidos da América, por exemplo), (3) a dos direitos socialistas, que não será por nós analisada, mas que David considera como sendo uma das três principais famílias. 9 A referida classificação, entretanto, não é aceita com tranqüili- dade pela doutrina internacional. Esin Örücü, professor de Direito Comparado da Universidade de Glasgow, Escócia, ensina que “os estudiosos não conseguem chegar a um acordo sobre o conceito de família é fundamental e científico ou teórica e descritivamente inútil. Aqueles que usam o conceito nem sequer concordam com os critérios de classificação e agrupamento.” 10 9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pp. 23-28. Elenca ainda o Professor francês outros sistemas, a saber, o direitos muçulmano, hindu, judaico, extremo oriente (China em especial), África negra e Madagáscar. 10 ÖRÜCÜ, Esin. A general view of ´legal families´ and of ´mixing systems´. Comparative law – a handbook. Coord. de Esin Örücü e David Nelken. Portland: Hart Publishing, 2007, p. 171. Örücü menciona outras classificações, como aquelas que são propostas por Warrington e Mark van Hoecke (existem 4 grupos, divididos por critérios culturais: africano, asiático, islâmico e ocidental, sendo que neste último estariam inseridos o direito europeu, americano e da Oceania), Adam Podgorecki (existem 10 grupos) e Ugo Mattei (existem 3 grupos, divididos de acordo com uma análise econômica do direito). precedentes_vinculantes_no_direito.indd 29 25/04/2013 12:02:40

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capítulo 1

COMMON LAW E CIVIL LAW

Os diversos sistemas jurídicos adotados mundo afora são nor-malmente agrupados para que se possa ter uma compreensão di-dática acerca das suas características, semelhanças e diferenças. Normalmente esse agrupamento leva em consideração critérios objetivos, sendo que a variação desses critérios faz como que te-nhamos mais de um agrupamento. René David faz o agrupamento dos direitos em famílias, que é a forma mais clássica de distinguir os ordenamentos jurídicos de países distintos, ressaltando o cará-ter didático desta denominação (família).

Alude o professor francês às famílias (1) romano-germânica, que agrupa os países nos quais a ciência do direito se formou sobre a base do direito romano (os países da Europa continental, por exemplo), (2) à common law, que comporta o direito da Inglaterra e os direitos por ela influenciados (Estados Unidos da América, por exemplo), (3) a dos direitos socialistas, que não será por nós analisada, mas que David considera como sendo uma das três principais famílias.9

A referida classificação, entretanto, não é aceita com tranqüili-dade pela doutrina internacional. Esin Örücü, professor de Direito Comparado da Universidade de Glasgow, Escócia, ensina que “os estudiosos não conseguem chegar a um acordo sobre o conceito de família é fundamental e científico ou teórica e descritivamente inútil. Aqueles que usam o conceito nem sequer concordam com os critérios de classificação e agrupamento.”10

9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pp. 23-28. Elenca ainda o Professor francês outros sistemas, a saber, o direitos muçulmano, hindu, judaico, extremo oriente (China em especial), África negra e Madagáscar.

10 ÖRÜCÜ, Esin. A general view of ́ legal families´ and of ́ mixing systems´. Comparative law – a handbook. Coord. de Esin Örücü e David Nelken. Portland: Hart Publishing, 2007, p. 171. Örücü menciona outras classificações, como aquelas que são propostas por Warrington e Mark van Hoecke (existem 4 grupos, divididos por critérios culturais: africano, asiático, islâmico e ocidental, sendo que neste último estariam inseridos o direito europeu, americano e da Oceania), Adam Podgorecki (existem 10 grupos) e Ugo Mattei (existem 3 grupos, divididos de acordo com uma análise econômica do direito).

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Örücü diz que existem sistemas híbridos, que não se amoldam a nenhuma classificação proposta, também chamados de mixed juris-dictions ou terceira família, referindo-se à civil e common law como as duas primeiras, citando como exemplos os sistemas vigentes em Quebec, no Canadá, na Argélia e na Holanda, nos quais há, segundo o autor, uma combinação dos direitos romano, francês, germâni-co e indígeno, e na Itália, que seria um mix dos direitos canônico, romano, francês, austríaco, germânico e o ius commune.11 Conclui seu estudo afirmando que é difícil determinar o exato nível de hi-bridismo em cada sistema jurídico, mas que lhe parece claro que a combinação de diferentes culturas sociais e legais deram ensejo a um sistema misto (mixed jurisdictions). Na sua visão, “como é agora amplamente reconhecido, não há realmente sistema puro no mun-do jurídico e vários graus de hibridismo resultam de vários graus, níveis e camadas de cruzamento e entrelaçamento.” 12

Jacques du Plessis também defende a existência de sistemas mistos, ao afirmar que eles são assim definidos por terem sido influenciados por uma variedade de outros sistemas. No entan-to, prossegue, tradicionalmente o termo ´misto´ só é usado para descrever um grupo relativamente pequeno de jurisdições que tem sido moldado significativamente pelas tradições da civil e da common law, a ponto de não se encaixarem em nenhum dos dois sistemas. Processualmente, em seu entendimento, esses sistemas (mixed jurisdictions) tem se aproximado da forma common law de julgar: o juiz está na vanguarda do desenvolvimento jurídico e o precedente é geralmente obrigatório e dotado de mais autoridade em comparação a trabalhos acadêmicos.13

Precisamos, entretanto, insistir nas diferenças entre common law e civil law, pelo menos na origem de cada um desses sistemas, pois a origem deles é uma base importantíssima para entendermos

11 O autor menciona, ainda, como exemplos de mixed jurisdiction: Malásia, Cingapura, Myanmar e Tailândia.

12 ÖRÜCÜ, ob. cit., p. 185.13 PLESSIS, Jacques du. Comparative law and the study of mixed legal systems. The

Oxford handbook of comparative law. Coord. de Mathias Reimann e Reinhard Zimmermann. Oxford; Oxford University Press, 2007, p. 478.

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porque os precedentes são, pelo menos em tese, mais respeitados nesse tipo de sistema. Como disse du Plessis, os julgamentos em países que tradicionalmente não se aproximaram da common law estão agora caminhando naquela direção, e, para que possamos ter uma real compreensão do fenômeno, é essencial mantermos as di-ferenças históricas, pois é a história que vai nos dar a resposta à se-guinte pergunta: por quê os precedentes vinculam? E ainda que não nos dê as respostas, nos dará pelo menos as direções necessárias para que possam aceitar, ou não, a vinculação dos precedentes.14

As duas famílias que serão objeto de análise no presente capí-tulo são aquelas que se amoldam aos limites da presente disserta-ção: as famílias civil law (romano-germânica) e common law. Se for possível a um país aderir apenas às características de uma família poderemos afirmar que o Brasil é país que integra a família civil law, enquanto que a Inglaterra e os Estados Unidos fazem parte da common law. Em que pesem as diferenças entre as duas famílias, realçadas mais adiante, ambas remontam, historicamente, a uma base comum: a origem é européia.

R. C. van Caenegem, professor de História Medieval e do Direi-to da Universidade de Ghent, Bélgica, ensina-nos que os cavaleiros que colonizaram a Inglaterra eram da Europa Continental e possu-íam terras em ambos os lados do Canal (da Mancha, referindo-se à Inglaterra e França). O Rei e os cavaleiros falavam francês e o reino em si nada mais era do que uma aquisição dos normandos (atual França) e da família Angevina.15 Os sistemas de direito na Inglaterra e na Europa Continental tinham tudo para se identificar e hoje per-tencerem à mesma família, porém a razão da distinção é algo que intriga os historiadores. O próprio van Caenegem indaga: “por que o direito inglês é tão diferente?” A resposta só poderia estar na His-tória e, segundo o jurista belga não havia diferenças substanciais no início, até porque a Inglaterra foi invadida em 1066 por Guilherme,

14 R. C. van Caenegem, em interessante obra, elenca 10 diferenças entre os sistema de common e civil law. Sugerimos a leitura da obra, traduzida para o português. Juízes, legisladores e professores. Trad. de Luís Carlos Borges. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

15 VAN CAENEGEM, R. C. The birth of the English common law, 2nd edition. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 85.

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o Conquistador, que era francês e cavaleiro do então Rei da França, Henrique I.16 Os rumos distintos tomados pelo direito inglês e con-tinental começaram a serem traçados nos séculos XII e XIII, com a modernização da sociedade européia17, mais precisamente no sé-culo XIII, quando o Direito Romano começou a influenciar a Europa Continental, mas neste momento a common law já estava estabele-cida firmemente na Inglaterra, e era tarde demais para que ela fosse afetada de modo substancial. Como anota van Caenegem:

“A common law estava estabelecida em suas próprias técnicas, práticas, idéias e instituições, e tinha criado sua própria estrutura e tinha produzido uma terminologia técnica considerada sofisticada e precisa que duraria séculos e constituía uma barreira à influência da civil.” 18

A razão pela qual se desenvolveu na ilha um sistema jurídico diferente do francês é também explicado por historiadores, como Winston Churchill, ao afirmar que apesar da Conquista Normanda foram preservados os Tribunais, os direitos e os impostos saxôni-cos, enfim, as instituições saxônicas, para benefício das rendas nor-mandas.19

Segundo J. H. Baker o Duque da Normandia, Guilherme (em in-glês o nome dele é William), queria ser Rei por sucessão legal, e um dos seus primeiros atos foi prometer que a Inglaterra poderia manter seu direito antigo. Os invasores normandos eram bélicos (apreciadores da guerra), incultos e analfabetos, e gostando ou não, eles encontraram na Inglaterra um sistema de governo e de direito muito bem desenvolvido se comparado com o direito praticado na Normandia.20

16 VAN CAENEGEM, R. C. Ob. cit., p. 86.17 “Em toda a Europa, a segunda metade do século XI e todo o século XII foram

períodos de progresso (para usar uma expressão que os homens da Idade Medieval teriam dificilmente compreendido).” WOODWARD, E. L. Uma história da Inglaterra. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964, p. 33.

18 VAN CAENEGEM, R. C. Ob. cit., p. 92.19 CHURCHILL, Winston S. História dos povos de língua inglesa, vol. 1, Berço da

Inglaterra. São Paulo: IBRASA, 2005, p. 172.20 BAKER, J. H. An introduction to English legal history. Oxford: Oxford University

Press, 2002, p. 12.

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Estabelecer as diferenças entre as duas famílias não é tarefa fá-cil. Essa afirmação decorre da (cada vez maior) aproximação entre as duas famílias, fenômeno detectado quase que pela totalidade da doutrina mundial. A separação que os historiadores identificam ter ocorrido no século XIII parece estar diminuindo, demonstran-do que a evolução do direito é um ciclo fechado. Diversos autores, como observado, notaram essa aproximação, cujo maior exemplo para nós é exatamente o tema desta dissertação, a vinculação dos precedentes, cada vez mais freqüente em nosso direito. De qual-quer forma a aproximação não se limita ao fato de estarmos nos valendo de institutos que têm origem na common law, sendo cer-tamente mais ampla. O fato é que civil law e common law se apro-ximam cada vez mais. A razão? A globalização é apontada como a causa principal.

Katja Funken é enfática ao afirmar que “o aumento da interna-cionalização comercial e cultural tiveram e continuam tendo suas conseqüências no direito de todos os sistemas jurídicos. Em parti-cular as duas maiores tradições legais do Ocidente, a common law e a civil Law, têm estado mais próximas nas últimas décadas.” 21

René David comunga da mesma opinião e ainda observa que “a common law conserva hoje a sua estrutura, muito diferente da dos direitos romano-germânicos, mas o papel desempenhado pela lei foi aí aumentado e os métodos usados nos dois sistemas tendem a aproximar-se; sobretudo a regra de direito tende, cada vez mais, a ser concebida nos países de common law como o é nos países da família romano-germânica. Quanto à substância, soluções muito próximas, inspiradas por uma mesma idéia de justiça, são muitas vezes dadas às questões pelo direito nas duas famílias de direito.” 22

Atribuir a aproximação à globalização não é, entretanto, ques-tão pacificada. Pier Guiseppe Monateri afirma que desde a Antigui-dade os sistemas legais cresceram através de “contaminações”, pos-

21 FUNKEN, Katja. The best of both worlds – the trend towards convergence of the civil law and the common law system. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=476461. Acesso em: 24 fevereiro 2009.

22 DAVID, René. Os grandes sistemas de direito contemporâneo, p. 26. A referida aproximação é reforçada mais adiante em sua obra, na página 379.

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to que a prática de tomar emprestado institutos de outros países sempre foi normal no desenvolvimento do direito. Citando seu país natal, a Itália, anota o Professor que o sistema de empréstimo resul-tou em uma mistura única de padrões germânicos e franceses que seria impensável para os países doadores. Essa contaminação de culturas legais, prossegue, é a característica chave de transplantes e empréstimos de padrões legais. Afirma, ainda, que a importação e exportação de regras e instituições é um processo quase incons-ciente de integrá-los na ideologia do sistema de empréstimos.

Finaliza Monateri com as seguintes palavras:A prática de empréstimos sempre foi uma prática normal, e ela nunca foi, e nunca será, uma atividade exclusiva de advogados comparatistas. É uma prática intencional a ser realizada por advogados do governo e a ser estudada espe-cialmente do ponto de vista das fraquezas do sistema que faz o empréstimo.23

Em que pese a tendência de aproximação, realçaremos no pró-ximo tópico as diferenças.

1.1 – COMMON LAWGeralmente confundido com sistema anglo-saxão24, a common

law pode ser definida como a família jurídica baseada nos prece-dentes judiciais, mais do que nas leis escritas (statutory laws). Ori-ginária das leis não escritas da Inglaterra, a common law é derivada

23 MONATERI, Pier Giuseppe. The ´weak law´: contaminations and legal cultures (borrowing of legal and political forms). Disponível em: http://www.alanwatson.org/PGMonateri.pdf. Acesso em 02 de abril de 2009.

24 O território que hoje conhecemos como sendo a Inglaterra foi primeiramente ocupado pelos Celtas, e a lenta ocupação ocorreu entre os séculos VI e IV a.C.. Já no século I a.C. iniciou-se a invasão Romana, e a ocupação da Inglaterra pelo Império Romano durou até o início do século V d.C. Logo após, o território foi invadido pelas tribos (germânicas) dos Anglos, Saxões e Jutos, e por volta do século IX d.C. ainda ocorre a invasão de tribos dinamarquesas e depois, mais precisamente em 1066, a invasão Normanda, através de Guilherme, o Conquistador. Daí a tendência de relacionar o direito inglês a um direito anglo-saxão. MAUROIS, André. História da Inglaterra. Trad. de Carlos Domingues. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1959. Sobre os anglo-saxões consulte-se: HINDLEY, Geoffrey. A brief history of the anglo-saxons – the beginnings of the English nation. New York: Carroll & Graf Publishers, 2006.

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mais de princípios do que de regras (rules), e não consiste em re-gras absolutas, rígidas e inflexíveis, mas sim em amplos e abrangen-tes princípios baseados na justiça, na razão e no senso comum, que foram determinados pelas necessidades sociais da comunidade e que mudaram com a modificação dessas necessidades.25 Não se confunde com direito inglês, em que pese a história de ambos, sen-do que aquilo que se conhece como direito inglês é o praticado na Inglaterra e no País de Gales. A common law é mais ampla e abrange países como a própria Inglaterra, os Estados Unidos (o que não é unânime, pois alguns sustentam que em terras norte-americanas se adota um sistema misto), e os membros da Commonwealth, que é a comunidade formada por países historicamente ligados ao Reino Unido (Inglaterra, Irlanda do Norte, Escócia – civil law – e País de Gales), que engloba, entre outros países, África do Sul, Austrália, Canadá, Índia, Jamaica e Nova Zelândia, mas não os Estados Unidos da América.

Como esclarece René David “o direito inglês está na origem da maioria dos direitos dos países de língua inglesa, tendo exercido influência considerável sobre o direito de vários países que sofre-ram, numa época de sua história, dominação britânica. Esses paí-ses podem ter-se emancipado da Inglaterra e seu direito pode ter adquirido ou conservado características próprias. Mas a marca in-glesa muitas vezes permanece profunda nesses países, afetando a maneira de conceber o direito, os conceitos jurídicos utilizados, os métodos e o espírito dos juristas. Assim, o direito inglês, superando amplamente o domínio estrito de sua aplicação territorial, constitui o protótipo em que numerosos direitos se inspiraram; é por seu estudo que convém começar todo e qualquer estudo dos direitos pertencentes à ´família de common law´.”26

A exata origem da common law é tema sobre o qual já se de-bruçaram diversos pesquisadores. Sir Mattew Hale, por exemplo, invoca expressamente as tribos saxônicas, mas minimizando a sua importância, pois para ele a Inglaterra teve muitas e grandes vicis-

25 GIFTS, Steve H. Law Dictionary, Fifth edition. New York: Barron´s, 2003, p. 90.26 DAVID, René. O direito inglês. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,

2006, pp. VII-VIII.

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situdes dos povos que a habitaram e que muitas vezes influencia-ram os “governantes”, e que o sistema de direito na verdade resulta da mistura de uma grande variedade de sistemas. Segundo Sir Hale prevaleceu “em alguns lugares o direito dos Saxões, em outros o direito da Dinamarca, em outros o direito dos antigos Bretões, em outros o direito dos Mércios e até dos Normandos.” 27

Winston Churchill, por sua vez, afirma que:É uma máxima de direito inglês que a memória jurídica se inicia com a ascensão de Ricardo I em 1189. A data foi fixada por motivos técnicos por uma lei de Eduardo I. Dificilmen-te, porém, poderia ter sido escolhida outra mais apropriada, pois com o término do reinado de Henrique II estamos nos umbrais de uma nova era na história do direito inglês. Com o estabelecimento de um sistema de tribunais reais, minis-trando a mesma justiça em todo o país, a antiga diversidade da lei local foi rapidamente vencida e logo tomou seu lugar uma lei comum (sic) 28 a toda a terra e a todos os homens. Um advogado moderno, transportado para a Inglaterra do predecessor de Henrique, encontrar-se-ia em ambientes estranhos; com o sistema legado por Henrique ao seu filho, ele se sentiria quase à vontade. Essa é a medida da grande realização do rei. Estabeleceu os alicerces do Direito Comum Inglês, sobre os quais constituiriam sucessivas gerações. Surgiriam modificações no desenho, mas seus contornos principais não seriam alterados. 29

Não podemos esquecer que Churchill, além de estadista era his-toriador, mas não jurista, de modo que René David é mais técnico e divide a história do direito inglês em quatro períodos. O primei-

27 HALE, Sir Matthew. The history of the common law of England. Chicago: University of Chicago Press, 1971, p. 42.

28 O mais adequado não é a utilização da expressão lei comum, e sim direito comum, ou common law.

29 CHURCHILL, Winston S. Ob. cit., pp. 212-213. A importância de Henrique II é ressaltada também por Wouter L. de Vos, jurista sul-africano, quando afirma que durante seu reinado o sistema de writs se desenvolveu e os Tribunais Reais se estabeleceram, e neles a common law foi moldada. VOS, Wouter L. de. The jury trial: english and french connections. La ciencia del derecho procesal constitucional. Estudios en homenaje a Héctor Fix-Zamudio en sus cincueta años como investigador del derecho, tomo X, tutela judicial y derecho procesal. México, DF: Universidad Nacional Autónoma de México, 2008, pp. 247-256.

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ro é o que antecede a Conquista Normanda, ocorrida, como vimos, em 1066. O segundo vai de 1066 até o advento da Dinastia Tudors (1485), o terceiro vai de 1485 até 1832 e o quarto de 1832 até os dias de hoje.

O segundo período (1066-1485), identificado por David como o período de desenvolvimento da common law, é caracterizado pela extinção do direito local, tal como preconizado por Churchill. Não havia common law até 1066, sendo que ela só vai surgir no século XIII, como dito anteriormente, pelo estabelecimento dos Tribunais Reais de Justiça (Tribunais de Westminter, que eram três: Tribunal de Apelação – Exchequer, Tribunal de Pleitos Comuns – Common Pleas e Tribunal do Banco do Rei – King´s Bench). Como os Tribu-nais de Westminter eram de exceção, competentes para apreciação de casos excepcionais e para cada caso existia um processo particu-lar, os Tribunais foram levados a elaborar um novo direito, comum a toda a Inglaterra (common law), que “tira muitos dos seus ele-mentos de diversos costumes locais da Inglaterra”.30

Esta última afirmação é extremamente importante para que possamos compreender a origem da vinculação aos precedentes no direito inglês. A formação da common law deriva dos antigos costu-mes locais, e nem as fases posteriores, que lhe moldaram o caráter que hoje ela possui, foram capazes de modificar essa característica essencial. Como na common law os statutory laws têm papel secun-dário, a principal fonte do direito é o direito como posto pelo juiz no caso concreto. “O direito inglês foi profundamente marcado pela ausência, durante o seu período de formação, de poder legislativo real no seio do Parlamento e pelo poder das Cortes Reais de Justiça. A common law desgina a totalidade dessas regras, suscetíveis de serem subsumidas a partir de decisões particulares. No fundamen-to da common law se encontra, portanto, a regra do precedente.” 31

30 DAVID, René. Ob. cit. O jurista desenvolve o tema com precisão quase que cirúrgica, evoluindo para o período três (rivalidade com a equity) e quatro.

31 GARAPON, Antoine e PAPAPOULOS, Ioannis. Julgar nos Estados Unidos e na França – cultura jurídica francesa e common law e uma perspectiva comparada. Trad. de Regina Vasconcelos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 33.

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As leis, como as conhecemos, são diferentes na Inglaterra. Não se concebe uma norma genérica e abstrata, pois “na common law, a idéia que permeia o sistema é de que o direito existe não para ser um edifício lógico e sistemático, mas para resolver questões con-cretas.” 32 À guisa de esclarecimentos, cumpre-nos destacar a ob-servação de R. C. van Caenegem, no sentido de que “a ausência de codificação jurídica na Inglaterra não significa que os códigos não foram defendidos no país: alguns dos seus apóstolos mais convic-tos foram juristas ingleses. Tampouco significa que não foram feitas tentativas de codificação.”33

Importante é observarmos que a common law é de uma lon-gevidade invejável. Ela sobreviveu a guerras civis e mudanças de dinastias e várias vezes foi invocada sua superioridade sobre o próprio Rei, a Igreja e o Parlamento. Um dos casos mais notáveis, considerado por alguns como sendo a real origem do controle de constitucionalidade, é um julgamento de 1610 da Court of Common Pleas, através do Chief Justice Sir Edward Coke. Thomas Bonham era um médico que estudou medicina por 11 anos na Universidade de Cambridge, incluindo especializações, e que, ao final de seus estu-dos, resolveu se estabelecer como médico em Londres, em meados de 1600. Ocorre que na época cabia ao Royal College of Physicians of London a incumbência de licenciar aquele que quisesse exercer a medicina, por força de um decreto do Rei Henrique VIII (Royal Decree), de 1518, confirmado por uma lei do Parlamento (Parlia-ment Act).34 Autorizado pelo decreto o Royal College multou o Dr. Bonham e o obrigou a prometer que não continuaria exercendo a profissão, o que acabou não ocorrendo. Como continuou clinican-do o Royal College aumentou o valor da multa e ainda prendeu o

32 SOARES, Guido Fernando Silva. Ob. cit., p. 53. O referido autor, em sua excelente obra, diz que na civil law prevalece a concepção piramidal do direito, representada pela Pirâmide de Kelsen.

33 VAN CAENEGEM. Juízes, legisladores e professores, p. 27.34 O decreto real estatuiu que o Royal College deveria coibir a audácia dos homens

ímpios (observação do autor: desumanos, cruéis) que exerciam a medicina mais pela sua avareza do que pelo bem das suas consciências, o que poderia trazer muitos inconvenientes para a população. Em 1523 um Parliament Act estendeu a prerrogativa do Royal College de Londres para toda a Inglaterra. Disponível em: http://www.rcplondon.ac.uk/heritage-centre/College-History/Pages/College-History.aspx. Acesso em 02.11.2008.

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médico, ignorando seus apelos, feitos através de seu advogado, Mr. Smith. Por influência do Arcebispo de Canterburry, Dr. Bonham foi solto depois de 7 dias, mas demandou em face do Royal College por prisão indevida, argumentando que eles não tinham autoridade para lhe prender, o que somente um Tribunal poderia fazer.35

Na decisão36 Sir Edward Coke expõe outro argumento levantado por Thomas Bonham, para questionar a autoridade do Royal Col-lege sobre ele: como ele se formou em medicina regularmente em uma Universidade (Cambridge), não precisava da autorização do Royal College, que alegou em defesa que estava apenas dando cum-primento a um Decreto de Henrique VIII, posteriormente ratificado por sua sucessora, Rainha Maria I, em 1554.

A decisão final foi pela “procedência do pedido”, estatuindo que o Royal College não tem autoridade sobre Thomas Bonham, porque ele não foi punido pela má prática da medicina, apenas esses atos é que podem ser sancionados pelo Royal College, e não o mero exer-cício da medicina.37 Continuando em seus fundamentos, Sir Edward Coke chega a algumas conclusões obter dicta, que são considera-ções lançadas na decisão que não são essenciais para a resolução da controvérsia, sem efeito vinculante mas como forte persuasão. Coke admite, hipoteticamente, que o Royal College tenha poderes para punir Thomas Bonham, mas mesmo assim conclui que não po-deria fazê-lo no caso concreto porque alguns abusos foram come-tidos, tais como a prisão de Bonham pelo não pagamento da multa anteriormente imposta de 5 Libras, pelo destinatário da multa ser o próprio Royal College, e, principalmente, porque o ato de prisão deve ser imediatamente levado ao Presidente e aos Censores do Royal College, sob pena da liberdade de alguém sujeitar-se ao pra-zer dos referidos membros.38

35 WHITE, Jeffrey. Dr. Bonham and due process for doctors: lessons from long ago. Journal of American Physicians and Surgeons, vol. 12, n. 1, 2007.

36 O inteiro teor encontra-se na obra The Reports of Sir Edward Coke, vol. IV, London: Joseph Butterworth and son, 1826, pp. 355-383. Disponível em: http://books.google.co.uk/books?id=PlYDAAAAQAAJ. Acesso em 01 de novembro de 2008.

37 “... their power is limited to the ill and not to the good use and practice.” The Reports of Sir Edward Coke, p. 367.

38 Sir Edward Coke foi ainda um dos autores do Petition of Rights, de 1628, documento que assegurava uma série de direitos aos ingleses. A Petition of Rights

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Um trecho da paradigmática decisão tornou-se notório, pelo fato de estar ali esboçado o início do controle de constitucionalida-de das leis e de atos administrativos, pois havia sido questionada a autoridade do Royal College de julgar, intimar e ainda receber o dinheiro proveniente da aplicação das multas. Pela importância do trecho, que até os dias de hoje é interpretado e os resultados a que se chegam são controversos, optamos por fazer a transcrição como consta do original, em inglês, pois qualquer tradução poderia mo-dificar o significado das palavras empregadas e o próprio contexto:

“The censors cannot be (b) judges, ministers, and parties; judges to give sentence or judgment; ministers to make summons; and par-ties to have the moiety of the forfeiture (…) and one cannot be judge and attorney for any of the parties (…). And it appears in our books, that in many cases, the common law will controul [sic] acts of parlia-ment, and sometimes adjudge them to be utterly void: for when an Act of parliament is against common right and reason, or repugnant, or impossible to be performed, the common law will controul it, and adjudge such Act to be void.”39

A decisão do famoso Bonham´s Case demonstra bem a relevân-cia da common law na Inglaterra, ainda que tese invocada por Coke (supremacia da common law) tenha sido superada pela Revolução Gloriosa de 1688, ocasião em que se adotou a teoria da soberania parlamentar (parliamentary sovereignty), ou seja, o Parlamento é soberano, razão pela qual seus atos não têm limites, suas leis são superiores, o fato é que a common law, com suas regras e princípios, sobreviveu até os dias de hoje.

A partir do momento em que a common law segue a linha do judge made law, se não houvesse a vinculação aos precedentes o

foi elaborada pelo Parlamento e imposta ao Rei por causa da prisão, ordenada pelo Rei Carlos I, de 5 cidadãos que se recusaram a contribuir com a Coroa com um tipo de “empréstimo compulsório”, e uma das cláusulas do referido documento é a que impede a taxação sem o consentimento do Parlamento. Na época Coke discursou nos seguintes termos acerca de uma tentativa frustrada de diminuir a autoridade da Petition em nome da soberania Real: “It is repugnant to our petition of right, grounded on acts of parliament.” JOHNSON, Cuthbert William. The life of Sir Edward Coke V2: Lord Chief Justice of England in the Regin of James I. London: Henry Colburn Publisher, 1845.

39 The Reports of Sir Edward Coke, p. 375.

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Common Law e Civil Law 41

sistema ruiria. Considerando que a regra de direito é feita em cada caso concreto, é absolutamente fundamental que haja uma vincu-lação aos precedentes. É não só uma fonte do direito, mas sim uma questão de sobrevivência para manter o sistema seguro e coeso.

1.2 – CIVIL LAWA principal característica deste sistema jurídico é a codificação.

Segundo as precisas observações de Antoine Garapon e Ioannis Pa-papoulus:

“Nos sistemas de direito romano-germânico, a lei é a fonte primária do direito. A codificação aumenta consideravel-mente a força da lei, hierarquizando as suas disposições e as reagrupando em um conjunto exaustivo e coerente: em suma, racional. A codificação é certamente a técnica mais característica dos direitos da família romanista. Longe de ser uma simples coletânea de regras, o código é um edifício legislativo que pretende ser o espelho de uma polis harmo-niosa. Ele deve fornecer ao cidadão um material legível, ao qual seja sempre possível referir-se, e ser, para o juiz, uma guia precioso para perceber, através da disposição dos prin-cípios e da classificação das regras, a intenção legisladora. Aliás, somente a lei constitui o direito, do qual os juízes são apenas os porta-vozes.” 40

O juiz como porta-voz da vontade, genérica e abstrata, da lei é exatamente a representação figurada da pessoa do juiz na visão de Montesquieu.41 O sistema codificado, onde os códigos represen-tam um “monumento legislativo”, traz uma (falsa) impressão de que esses monumentos possuem a resposta para todos os tipos de problemas que uma sociedade pode experimentar. Ao juiz caberia apenas declarar a vontade da lei, seguindo a clássica concepção de jurisdição para Chiovenda, italiano e membro da família civil law.42

40 GARAPON, Antoine e PAPAPOULOS, Ioannis. Ob. cit., p. 33.41 “Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmo tempo clarividente e cega, fosse, em

certos casos, rigorosa demais. Mas os juízes da nação são apenas, como já dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor.” MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Trad. de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 175.

42 “Pode-se definir a jurisdição como a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já

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