Páginas de Critica de Poesia Miolo Prova2

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29 Poesia e crítica: a febre do diagnóstico Golgona Anghel “Não te salvo, não me salvas – nem é certo, quando o medo se demora, que haja ainda o que salvar.” rui pires cabral Muito tempo antes de começarmos a estimar o valor dos livros com estrelas, Fernando Pessoa tentava invalidar o papel do crítico no pro- cesso de legitimação da obra, num breve ensaio que pretende denunciar a “[Inutilidade da crítica]”. Pois “se um grande poeta tivesse de aparecer, quem estaria presente para descobri-lo?” (PESSOA, 2005, p. 284-285). Ou seja, para quem é que ele escreveria? Para os “críticos competentes”? Para as classes de “incompreendedores”? Quem é que estaria presente para o legitimá-lo? Como é que se chega a ser poeta moderno? Ou então, como devir poeta contemporâneo? Alegar que uma obra de boa qualidade sempre se destaca é uma afirmação sem valor se aplicada a uma obra de qualidade realmente boa e se por “destaca” quer-se fazer referência à aceitação na sua própria época. Que a obra de boa qualidade sem- pre se destaca, no curso da sua futuridade, é verdadeiro; que a obra de boa qualidade, mas de segunda ordem sempre se destaca na sua própria época, é também verdadeiro (PESSOA, 2005, p. 284-285). Estas questões fazem ecoar um tema antigo, com origem na elegia de Hölderlin “Pão e vinho”, em que o poeta pergunta: “Para quê poetas num tempo de indigência?”. Se Hölderlin anunciava, com inquietação, um mundo de onde os deuses se tinham afastado, a edição de poesia, na actualidade, já não tem como pano de fundo o poeta enquanto figura de um absoluto literário e parece fadada a um determinismo da práxis: o lugar cada vez mais reduzido das colecções de poesia nas editoras em comparação com o romance; a falta de leitores; a suspeita de ser uma arte extemporânea num mundo vocacio- nado para as regras do mercado. São esses indícios de amargura, essas inquie- tações que assombram ao mesmo tempo que procuram legitimar alguma poesia mais recente. Os seus sintomas originam antologias como Poetas sem poesia_e_critica_v20.indd 28-29 10/9/14 5:48 PM

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A febre do diagnóstico

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Poesia e crítica: a febre do diagnóstico

Golgona Anghel

“Não te salvo, não me salvas – nem é certo, quando o medo se demora, que haja ainda o que salvar.”

rui pires cabral

Muito tempo antes de começarmos a estimar o valor dos livros com estrelas, Fernando Pessoa tentava invalidar o papel do crítico no pro-cesso de legitimação da obra, num breve ensaio que pretende denunciar a “[Inutilidade da crítica]”. Pois “se um grande poeta tivesse de aparecer, quem estaria presente para descobri-lo?” (PESSOA, 2005, p. 284-285). Ou seja, para quem é que ele escreveria? Para os “críticos competentes”? Para as classes de “incompreendedores”? Quem é que estaria presente para o legitimá-lo? Como é que se chega a ser poeta moderno? Ou então, como devir poeta contemporâneo? Alegar que

uma obra de boa qualidade sempre se destaca é uma afirmação sem valor se aplicada a uma obra de qualidade realmente boa e se por “destaca” quer-se fazer referência à aceitação na sua própria época. Que a obra de boa qualidade sem-pre se destaca, no curso da sua futuridade, é verdadeiro; que a obra de boa qualidade, mas de segunda ordem sempre se destaca na sua própria época, é também verdadeiro (PESSOA, 2005, p. 284-285).

Estas questões fazem ecoar um tema antigo, com origem na elegia de Hölderlin “Pão e vinho”, em que o poeta pergunta: “Para quê poetas num tempo de indigência?”. Se Hölderlin anunciava, com inquietação, um mundo de onde os deuses se tinham afastado, a edição de poesia, na actualidade, já não tem como pano de fundo o poeta enquanto figura de um absoluto literário e parece fadada a um determinismo da práxis: o lugar cada vez mais reduzido das colecções de poesia nas editoras em comparação com o romance; a falta de leitores; a suspeita de ser uma arte extemporânea num mundo vocacio-nado para as regras do mercado. São esses indícios de amargura, essas inquie-tações que assombram ao mesmo tempo que procuram legitimar alguma poesia mais recente. Os seus sintomas originam antologias como Poetas sem

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qualidades (2002) e Anos 90 e agora (2004), organizam revistas como o pri-meiro número da Telhados de Vidro (Novembro de 2003), a Criatura (2008), a Relâmpago – veja-se o número 12 dedicado à “Nova poesia portuguesa” e o número 33, “O estado da poesia”. Apesar de todos os indícios catastrofistas, a poesia continua, profícua, os seus caminhos irreverentes. O ritual de recepção pública do livro, de divulgação, produção sobrepõe-se à crítica e ganha uma função de autoclamação ou autoproclamação acrítica que funciona mais ou menos segundo a regra: “Tudo o que é bom aparece e tudo o que aparece é bom”. Esvaído do seu lugar – “Pois como há de um crítico julgar?” –, o crí-tico vê-se entregue à febre do diagnóstico, à vertigem dos tops e à incerteza. Encurralados no beco sem saída da legitimação pública, perguntamos: “Quais as qualidades que formam, não o incidental, mas o crítico competente?” Mas o que é um “crítico competente”? Ou melhor, quem é que tem legitimidade para criticar? É alguém que, diz Fernando Pessoa, possui

Um conhecimento da arte e da literatura do passado, um gosto refinado por esse conhecimento, e um espírito judicioso e imparcial. Qualquer coisa menos do que isto é fatal [ao jogo das faculdades críticas]. Qualquer coisa mais do que isto é já espírito criativo e, portanto, individualidade; e individualidade significa egocentrismo e certa impermeabilidade ao trabalho alheio (PESSOA, 2005, p. 284-285).

E depois como quantificar a competência? Ou melhor:

Quão competente é, porém, o crítico competente? Suponhamos que uma obra de arte profundamente original surja diante de seus olhos. Como a julga ele? Comparando-a com as obras de arte do passado. Se for original, porém afastar-se-á em alguma coisa – e quanto mais original mais se afastará – das obras de arte do passado [...] (Idem, Ibid.).

Isto é, qualquer crítico, por mais competente que seja, vê-se despreve-nido pela força inactual da obra de arte. Declarar o óbito da crítica, neutra-lizar a competência da recepção são ecos de certo pessimismo cultural na primeira metade do século XX. Adorno, ao regressar à Alemanha, em 1949, do seu exílio nos Estados Unidos escreveu um artigo que intitulava “Sobre a crise de crítica literária” que começava com a seguinte provocação: “Quem volta à Alemanha depois de longos anos de exílio sente a degradação da crí-tica literária” (ADORNO, 2009, p. 642). E mais adiante: “declarar que a esteri-lidade da crítica é devida à esterilidade da produção seria ainda dizer muito pouco” (Idem, p. 642). O período de pós-guerra é um tempo de ambigui-dade, de indeterminação, pois se torna difícil confiar em qualquer categoria

e qualquer discurso que sejam herdeiros de uma tradição que tenha teste-munhado o genocídio, o horror dos campos de concentração. O problema da crítica literária não é apenas uma “mera questão de incompetência dos especialistas. Remete à constituição global de toda a existência na actuali-dade” (Idem, p. 642).

Assim, em crise, embora não inerte, a crítica, destituída da sua missão social, vê-se desactivada pelo trabalho de animação de gosto dos divulgado-res. A mediação teórica é substituída pelo slogan e pela lista dos mais vendi-dos. A agitação dos tops é o indicador da legitimação pelo mercado. Ora, per-suadir-se-á alguém de que se fossem publicados agora o Nobilíssima Visão e os sonetos de Camões lograriam eles cotação acima da poesia de José Luís Peixoto ou a de qualquer outro cavalheiro quotidiano?

Hoje, a crítica vê-se forçada numa falsa dicotomia, que a empurra quer para uma esfera de divulgação jornalística quer para um discurso “dema-siado” especializado dos “académicos”. A única resposta adequada ao declí-nio da crítica e à perda da autoridade da tradição seria tomar cada obra de arte “tão seriamente como se a obra fosse o que pretende ser” (Idem, p. 642). Ou seja, a obra não deve ser apenas julgada por aquilo que é, mas em função do que aspira ser, em função da sua futuridade.1 Mas se um

grande poeta tivesse de aparecer, quem estaria presente para descobri-lo? Quem pode dizer se ele já não apareceu? O público ledor vê nos jornais notí-cias das obras daqueles homens cuja influência e camaradagens tornaram-nos conhecidos, ou cuja secundariedade fez que fôssemos aceitos pela multidão. O grande poeta pode já ter aparecido; sua obra teria sido noticiada em umas pou-cas palavras de vient-de-paraître em algum sumário bibliográfico de um jornal de crítica (PESSOA, 2005, p. 284-285).

Seguindo em eco a linha de pensamento de Fernando Pessoa, que pro-cura assim denunciar a existência de um mecanismo ilícito de legitimação da obra, com base no poder da “influência” e das “camaradagens”, Gastão Cruz aponta também para as saias múltiplas do “sectarismo” e do “compadrio” que, muitas vezes, corrompem a crítica:

1 “Saber pela literatura as ideias de uma época só pode ter interesse para a posteridade, que não tem outro meio para a tornar presente ao seu raciocínio. O que nos ocupa é saber se a literatura pode ser ponteiro para indicar a que horas da civilização estamos, ou, para falar com clareza, para nos informar do estado de vitalidade e exuberância de vida em que se encontra uma nação ou época, para que, pela literatura simplesmente, possamos prever ou concluir o que espera o país em que essa literatura é actual” (PESSOA, 2000, p. 7-8)

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A pressa, a desatenção e, por vezes, o sectarismo [...] prendem-se com uma atitude: uma espécie de cedência aos enredos do compadrio ou às pressões (mesmo que indirectas e dissimuladas) do mercado. A insuficiência desse tra-balho está bem evidenciada no facto de os juízos críticos surgirem comple-mentados pela atribuição de estrelas, uma prática grotesca que começou com a crítica de filmes (CRUZ, 2013, p .51).

O problema, no entanto, parece não ser apenas do crítico enquanto “estratega da batalha da literatura” (como diria Walter Benjamin), mas tam-bém do “público ledor”, das pessoas que têm feito o favor de não compreen-der, por exemplo, o movimento literário da “nascente geração portuguesa” por serem “incompreendedores-natos” ou por serem “incompreendedo-res-de-ocasião”. Os “incompreendedores-natos” são pessoas com mais de trinta anos que se encontram já “inadaptabilizáveis”, por serem velhas. Os “incompreendedores-de-ocasião” seriam aqueles que se foram descuidando na “manutenção espiritual”. Uma outra causa dessa distância abissal entre obra e “ledor” podia passar também pela condição embrionária do próprio surgimento poético e, implicitamente, da sua disposição “nebulosa quanto a ideias que de si tenha” (PESSOA, 2005, p. 284-285). Mas “se um grande poeta tivesse de aparecer, quem estaria presente para descobri-lo?”. Ou seja, para quem é que ele escreveria? Para os “críticos competentes”? Para as classes de “incompreendedores”? Quem é que estará presente para o legitimá-lo? De que maneira o devir-poeta está condicionado por um processo de legi-timação pública, por parte da crítica e/ou dos seus pares? Ou melhor, como é que se chega a ser poeta? Mais precisamente, como é que se chega a ser poeta moderno? O que seria, logo à partida, mais fácil de pensar do que como é que se chega a ser poeta pré-moderno, se quiserem. Shakespeare, Milton, Vivaldi ou Eurípides foram considerados “artistas” (e aqui uso o termo no sentido dilatado, de escritores, poetas, músicos) graças a um tra-balho retrospectivo, levado a termo por várias casualidades e de acordo com critérios estéticos relacionados, muitas vezes, com a invenção da história da arte. Por isso mesmo, tanto Camões como Cervantes aparecem aos nossos olhos mais inocentes do que, por exemplo, Flaubert ou Picasso ou Pessoa cuja vontade de serem artistas é persistente. Isso deve-se ao facto de estes últimos serem artistas modernos, isto é, pessoas que lutaram propositada-mente para serem artistas; por um lado, porque essa luta era perfeitamente possível e porque estavam especialmente dotados para ela como é o caso de Picasso ou de Pessoa; por outro lado, porque foram eles quem forjou a figura canónica do artista moderno, como é o caso de Flaubert. Apesar das enormes

distâncias que há entre Flaubert e Pessoa, como entre muitos outros que se poderiam aqui referir, o caminho percorrido para serem artistas modernos está marcado por vários atentados simbólicos contra a ordem preestabele-cida da representação, atentados que em Flaubert nos parecem já normais, quase imperceptíveis, embora na altura tenham sido um escândalo. Mas o que torna diferente o devir-artista-moderno do devir-artista-pré-moderno não é apenas esse gesto irreverente, pois podíamos dar outros exemplos de atentados simbólicos que foram cometidos antes da modernidade. E aqui, o próprio Pessoa, no Prefácio à “Antologia de poemas portugueses modernos”, dá conta dessa ambiguidade, pois: “O termo ‘moderno’ nada significa em si mesmo. É moderna toda a civilização europeia em relação com o mundo gre-co-romano. É moderno tudo desde o romantismo em relação com tudo entre ele e a Idade Média, e com a mesma Idade Média” (PESSOA, 2000, p. 409). Para chegar a ser artista moderno é preciso fazer um esforço para tornar esta ruptura das regras numa “profissão respeitável”, de maneira que se poderia dizer que um dos logros da arte moderna tenha sido, não apenas a criação de tal e tal obra, nem a irreverência das vanguardas, mas a criação da insti-tuição “arte” como uma esfera autónoma da cultura, associada a entidades simbólicas como os museus, as bibliotecas nacionais, a indústria editorial, as faculdades de belas artes. Lembremos a obsessão de Borges e de Bioy Casares pelas Bibliotecas. O termo “belo” remete, no fundo, para o título de nobreza que distingue para os modernos a “grande arte” da “pequena”, que só tem um estatuto funcional embora seja também uma fonte de vários equívocos, pois as obras nada têm a ver com harmonia, proporção, ou qualquer outra coisa que pudesse ser concebida como uma medida objectiva de perfeição. Esta falta de medida objectiva é o que confere à arte moderna a sua famosa aura de subjectividade. A beleza moderna quer-se puramente artística (ou seja, não se poder reduzir ao regime do sensível, nem à adequação instrumental, nem sequer a um rigor moral). Este factor “puramente artístico” foi sempre bastante misterioso, na medida em que do lado do receptor aparece como uma estranha faculdade chamada “gosto”, algo que não se pode aprender, e do lado do produtor, como uma peculiar disposição do templo anímico, chamada “génio” – em virtude da qual a natureza dá a regra à arte. Manuel de Freitas, no prefácio da antologia Poetas sem qualidades, esboça o contorno de tal nobre figura de génio da poesia portuguesa e alimenta, não só a distância que nos separa dele, mas a persistência na singularidade como se:

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[...] nisto da poesia o melhor é sempre andar sozinho. Exemplos, acrescente-se, facilmente refutáveis pelo poeta – português, vivo – que melhor tem dado voz a uma quase esmagadora intemporalidade: Herberto Helder. Mas a um génio tudo se perdoa (FREITAS, 2002, p. 13).

O seu enigma: um acontecimento intemporal, a força esmagadora de uma “voz antiga” que aterroriza o presente, “que tem a dimensão das ana-cronias, mas que o curso da história, como quer que ele seja entendido, não consegue suprimir” (GUERREIRO, 2013, p. 33). Certamente, a arte começou a tornar-se contemporânea no dia em que esta condição misteriosa de génio passou a ser considerada “suspeita” ao ponto de podermos afirmar que o caminho para chegar a ser artista contemporâneo está também marcado por uma série de atentados simbólicos. Os poetas de agora já não se dirigem con-tra a ordem da representação, mas contra a arte enquanto instituição, entre cujos muros, vive contra a sua vontade o artista contemporâneo, como orna-mento do poder público (veja-se, por exemplo, o caso de Joana Vasconcelos) ou como secreção do poder privado (colecção Berardo). Os poetas contem-porâneos não possuem estas “qualidades”, isto é:

Estes poetas não são muita coisa. Não são, por exemplo, ourives de bairro, arte-sãos tardo-mallarmeanos, culturalizadores do poema digestivo, parafraseado-res de luxo, limadores das arestas que a vida deveras tem. Podemos, pelo con-trário, encontrar em todos eles um sentido agónico (discretíssimo, por vezes) e sinais evidentes de perplexidade, inquietação ou escárnio perante o tempo e o mundo em que escrevem. Não serão, de facto, poetas muito retóricos (embora à retórica, de todo, se não possa fugir), mas manifestam força – ou admirável fra-queza – onde outros apenas conseguem ter forma ou uma estrutura anémica. Comunicam,2 em suma; não pretendem agradar ou ser poeticamente correctos (FREITAS, 2002, p. 14-15).

Há quem os acuse de não se conseguirem descolar do imediato, de mol-darem o olhar segundo os ritmos do banal. Mas é precisamente através da “inquietação”, do “escárnio” da “perplexidade” que estes poetas abrem uma brecha no real, naquilo que está diante dos nossos olhos, e fazem aparecer um sentido novo que estava apagado pela repetição do mesmo, do real quoti-diano. A descrença dos contemporâneos é a condição necessária para tomar distância, interromper o hábito e assim, talvez, inventar, descobrir o sentido intempestivo do agora ligado a uma posição crítica radical perante o pre-sente. Em contraste com o poeta moderno, o poeta contemporâneo não quer

2 O itálico é do autor.

ser artista ou autor. Aliás, a própria figura jurídica dos direitos de autor está em vias de extinção. A categoria de obra vai perdendo contornos e dilui-se. Numa entrevista com C. Bonnefoy, que Michel Foucault, “L’homme est-il mort?”, dá para a revista, Arts et Loisirs, (n. 38) em 15-21 de Junio de 1966 (p. 8-9.) mostra como, a partir de Igitur, a experiência de Mallarmé (que era contemporâneo de Nietzsche) enquanto jogo próprio, autónomo da lin-guagem tem-se vindo a alojar aí onde o homem está a desaparecer. Neste sentido, poder-se-ia dizer que a literatura é esse lugar onde o homem/o autor tem-se deixado desaparecer em proveito da linguagem. Ou seja, onde a lite-ratura está, o homem já desapareceu. Em 1968, Barthes R., fazendo eco ao texto foucaultiano, La mort de l’auteur, deixa-nos um aviso: “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor” (BARTHES, 1987, p. 69).3 A única comunidade que se poderia encontrar por detrás de tantos e heterogéneos programas é algo que se constitui à volta da ideia comum de atacar, desmon-tar, descobrir, dilatar, desmascarar o mistério do “puramente artístico” que os pré-modernos encobriram debaixo da ideia de “inspiração” e os modernos velaram debaixo da noção de beleza que acabamos de referir e que desperta tantas críticas por aparecer como um mero disfarce da mais nua arbitrarie-dade subjectiva. No limite, poderíamos até dizer que o ataque à “beleza” fez com que a arte/ a poesia contemporânea tenha ficado sem público. Os artis-tas contemporâneos não têm obra para vender nem recebem direitos para conseguirem viver e são obrigados a procurarem outro tipo de empregos. A profissão de artista, o ofício de poeta já não é uma profissão viável. Já não podemos dizer que é a “natureza que dá a regra à arte”, da mesma maneira que os artistas modernos não podiam defender a antiga teoria da possessão divina do poeta. Deus deixou de segurar os poetas pelos cabelos, como que-ria Hölderlin. Podíamos dizer que agora é a sociedade que dá a regra à arte. Não a sociedade dos sociólogos, que podemos definir como um conjunto de determinações culturais e económicas, mas a sociedade que levamos incor-porada na nossa conduta e, sem sabermos bem quando é que a aprendemos, legitimamos com o nosso comportamento.

3 “[...] um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exacto em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade do texto, não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que reúne no mesmo campo os traços que constituem a escrita” (BARTHES, 1987).

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Uma certa suspeita de inautenticidade, muito mais grave que a possibi-lidade de falsificação que sempre tiveram que suportar as obras, em especial na área das artes plásticas, paira como uma sombra sobre todas as obras de arte, uma suspeita que enche de manchas a velha “beleza” das “belas artes”, uma inautenticidade que se alimenta de um “mar de equívocos”:

Há muita gente, de facto, a dizer que gosta (imenso...) de poesia, afirmação que geralmente me perturba, porque, na grande maioria dos casos, se baseia em pressupostos que me parecem exteriores ao cerne do fenómeno poético, acontecimento raro. Movemo-nos, neste domínio, num mar de equívocos, que se forma, quase sem-pre, a partir da convicção de que a passagem da emoção vivida para a emoção poética pode fazer-se sem “recriar o mundo”, para voltar a Carlos de Oliveira (CRUZ, 2013, p. 52).

A beleza torna-se, de repente, indigna, insuportavelmente supérflua e mesquinha e o gosto converte-se numa paixão vil e plebeia. Está a expandir-se a ideia de que a poesia modernista, os momentos gloriosos da poesia dos anos quarenta, a força da poesia de 61 já não são nem nunca voltarão a ser possíveis. Assim, a poesia que hoje se anda a escrever vê-se entregue à força heterogénea da “arbitrariedade”, aos “erros e perversidades de certos comen-tadores” (CRUZ, 2013, p. 53). Fica a sensação de que a beleza, mesmo que seja possível, já nunca poderá ser necessária nem desejável; temos a impressão de que, se é para conservar a própria ideia de poesia, a poesia deve significar outra coisa que beleza, deve suscitar outra coisa que prazer ou juízo de gosto, deve implicar-se nalgo mais sério, mais verdadeiro.

Esta impressão de “esgotamento”, talvez seja aquela que mais alimenta a febre do diagnóstico, a urgência de identificar sintomas e assim aplicar um modelo romântico de historicidade que segue a regra do crescimento, o auge e o declínio. Acreditar na hipótese de resposta, tentar esboçar um mapa do estado da poesia actual, é um exercício de ilusão e de ideologia.

Tudo isto leva-nos a pensar que, talvez, mais do que os modernos, os poetas portugueses de agora tenham a consciência de que a poesia não resolve nenhum dos nossos problemas. Quando muito pode chegar a imaginá-los.

referências bibliográficas:

ADORNO, Theodor. Sobre la crisis de la crítica literaria. In: ______. Notas sobre lite-ratura. Madrid: Akal, 2009.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de António Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987.

CRUZ, Gastão. Poesia e mudança. Relâmpago – O estado da poesia. Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava, n.33, p.47-54, out. 2013.

FREITAS, Manuel de Freitas. O tempo dos puetas. In: ____ (org.). Poetas sem quali-dades. Lisboa: Averno, 2002.

GUERREIRO, António. Poesia e terror. Ípsilon. Lisboa, n. 33, jun. 2013.PESSOA, Fernando. Crítica/ensaios, artigos e entrevistas. Edição crítica de Fernando

Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.______. A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada. In: ______.

Crítica/ensaios, artigos e entrevistas. Edição de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 6-17.

______. [Inutilidade da crítica]. In: ______. Obra em prosa. Edição de Cleonice Berardinelli [1974]. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.

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