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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Juazeiro – BA – 5 a 7/7/2018
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Semiótica do risível no Auto da Compadecida: Uma análise do “não sei, só sei que
foi assim”1
Allane MARREIRO2
Diego CAVALCANTE3
UNIFANOR | WYDEN, Centro Universitário Fanor | Wyden, Fortaleza, CE
RESUMO:
O propósito desse artigo é analisar a singularidade do riso no filme o Auto da
Compadecida (versão da minissérie), de forma específica, do personagem Chicó. Para
compreender o significado do riso partiremos da abordagem semiótica de Charles Sanders
Peirce e do método semiótico do risível proposto por Cavalcante. Partindo desses
pressupostos, compreendemos que a singularidade do risível em Chicó é o da mentira.
Nesse processo de significação o efeito não é a manipulação do interlocutor, mas antes o
riso que deriva do caráter exagerado e criativo na apresentação das histórias que
apresentam dissonância inconciliável com a realidade.
Palavras-chave: Semiótica; Semiótica do Risível; Humor; Auto da Compadecida;
1. INTRODUÇÃO
O humor se manifesta de diferentes formas buscando sempre provocar o riso. Mas o que
gera esse riso? Se uma pessoa não conhecer o contexto do que está sendo narrado, ela vai
ser atingida por aquilo? O riso pode ser gerado através das coisas mais banais, ele só
depende que o receptor esteja aberto para perceber o que está sendo dito pelo emissor,
que nesse caso pode ser uma pessoa, um livro, uma obra audiovisual, ou simplesmente as
coisas que estão acontecendo ao seu redor.
Vários pensadores desde os mais antigos, como Platão, até os considerados
contemporâneos, como Joubert, já refletiam sobre o que gera o riso e chegaram à
conclusão de que ele está ligado aos sentimentos e a forma como eles nos afetam:
1 Trabalho apresentado na IJ – Jornalismo do XX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste,
realizado de 5 a 7 de julho de 2018
2Graduanda do curso de Comunicação Social – Jornalismo, UNIFANOR | WYDEN – Campus Dunas, e-mail:
3Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da DeVry | Fanor e orientador
desse artigo, e-mail: [email protected]
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Remeter o riso a uma afecção da alma não é propriamente novo na
história do pensamento sobre o riso. Já Platão definia o estado de alma
suscitado pelas comédias como uma afecção mista, feita de uma mistura
de dor e prazer (cf. Philèbe, 48a-ss). No mesmo sentido, foi no contexto
de discussão das paixões a serem suscitadas no ouvinte que o riso e
principalmente aquilo que faz rir surgiram como objetos no campo da
retórica antiga (cf. especialmente Cícero, Del'orateur, II, 216-ss, e
Quintiliano, Institutionoratoire, VI, 3). A novidade de Joubert não está
propriamente no fato de relacionar a causa do riso a uma paixão ou
afecção da alma, e sim no modo como dá conta dessa paixão,
dissecando o processo de formação do riso desde a matéria risível até
os mínimos detalhes da agitação do corpo - processo cuja precisão
depende de longas incursões no terreno das faculdades da alma,
especialmente no que diz respeito à relação entre o cérebro e o coração.
(ALBERTI, 1995, pág.5)
A palavra humor em si é vista como um estado de espírito em que um indivíduo se
encontra, mas para muitos constitui uma categoria cômica que transforma o significado
do mundo a partir da distorção da realidade encontrada no cotidiano. De acordo com
Urbano Zilles (2003, pág.84), “o humor parte de uma abertura da pessoa em relação às
coisas sensíveis, de uma entrega ao claro-escuro dos sentimentos, de uma percepção
perspicaz da ambiguidade da existência. Exige distanciamento e reações imediatas”.
Descobrir as causas do riso pode ser uma tarefa bastante difícil se levarmos em conta que
os indivíduos passam por experiências diferentes ao longo da vida e que tem um
repertório de conhecimento distintos entre si. Dentro da perspectiva da Semiótica
Peirceana, esse repertório simboliza os signos que adquirimos desde a infância, e a partir
deles as coisas ganham significado e são suscetíveis as mais diversas interpretações de
acordo com os signos identificados pelo interpretante.
Então do ponto de vista semiótico como o riso é gerado? A semiótica traz através dos
signos uma representação do real, na semiótica do humor, proposta por Diego Cavalcante,
ela busca na relação dos signos com o objeto, o rompimento da lógica da realidade.
Situações inesperadas e que surpreendem faz com que haja uma quebra da seriedade e
essa interpretação do inesperado é o que faz nascer o riso no interpretante que no caso é
quem recebe a situação cômica.
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Para Diego (no prelo, p..2), “[...] se semiótica investiga a lógica de representação da
realidade e se assumimos que o humor promove a subversão, fuga da seriedade-realidade,
então, a semiótica do humor seria a investigação lógica da subversão da lógica de
representação da realidade”.
Dito isso, esse artigo tem como intuito fazer uma análise do humor do filme O Auto da
Compadecida (versão da minissérie) que foi baseado na peça de teatro de Ariano
Suassuna e o primeiro filme feito inteiramente pela Globo Filmes. Inicialmente foi
exibido como uma minissérie de quatro capítulos e fez tanto sucesso que foi adaptado
para uma versão de cinema com 100 minutos a menos que o tempo da minissérie, levando
mais de 2 milhões de telespectadores aos cinemas mesmo tendo sido exibido
gratuitamente na TV aberta.
Ele traz o drama vivido pelos nordestinos que são representados pelos personagens João
Grilo (Matheus Natchergaele) e Chicó (Selton Mello) que acuados pela seca e pela fome
lutam constantemente contra a pobreza e a miséria. O filme retrata bem o sertanejo
nordestino que vive submetido a opressão dos coronéis donos de terra e das famílias ricas
da cidade e que para sobreviver se apega a religiosidade representada principalmente na
figura de Nossa Senhora.
Através dos conceitos da semiótica, de Chales Peirce, e do estudo de semiótica do humor,
de Diego Cavalcante, focando no personagem Chicó, esse trabalho tem como objetivo
entender como o riso é gerado a partir das características (signos) visuais e verbais desse
personagem quando o mesmo começa a contar histórias bastante peculiares das supostas
aventuras que ele viveu.
2. SEMIÓTICA PEIRCEANA E SEMIÓTICA DO HUMOR
A semiótica é a ciência dos signos, ela investiga as linguagens e processos comunicativos
tirando significados da natureza e da cultura. A semiótica Peirceana tem como base a
fenomenologia que é uma quase ciência que descreve os fenômenos. O fenômeno, por
sua vez, é todo e qualquer tipo de coisa que aparece em nossa mente. Pensando nisso,
pode-se concluir que de certa forma, o processo de semiose pega algo abstrato e cria um
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olhar mais sensível e crítico em cima dessa coisa usando elementos trazidos pelo signo
para a construção de um pensamento lógico que pode ser guiado pelos valores e as
condutas de um indivíduo.
O conceito de signo, de acordo com Peirce, é uma coisa que representa outra coisa que
produz um efeito interpretativo para alguém. Está muito ligado as referências que cada
pessoa adquire durante a vida. São essas referências que dão significado na construção de
novos repertórios quando um indivíduo se depara com algo que estava desconexo do seu
campo de possibilidades.
[...]um homem pegou a idéia de um outro homem; em que, quando um
homem relembra o que estava pensando anteriormente, relembra a
mesma idéia, e em que, quando um homem continua a pensar alguma
coisa, digamos por um décimo de segundo, na medida em que o
pensamento continua conforme consigo mesmo durante esse tempo,
isto é, a ter um conteúdo similar, é a mesma idéia e não, em cada
instante desse intervalo, uma nova idéia. (PEIRCE, 2000, pág. 46)
Um signo pode equivaler a si mesmo ou pode ser um signo que representa outro signo. A
coisa representada por esse signo é denominada objeto e a significação criada na mente
do receptor é designada como interpretante. Esses três elementos juntos são considerados
a triádica do signo que pode ser melhor entendida do trecho a seguir:
Isso assim se dá porque, na definição de Peirce, o signo tem uma
natureza triádica, quer dizer, ele pode ser analisado:
em si mesmo, nas suas propriedades internas, ou seja, no seu poder
para significar;
na sua referência àquilo que ele indica, se refere ou representa; e
nos tipos de efeitos que está apto a produzir nos seus receptores,
isto é, nos tipos de interpretação que ele tem o potencial de
despertar nos seus usuários.
Desse modo, a teoria semiótica nos permite penetrar no próprio
movimento interno das mensagens, no modo como elas são
engendradas, nos procedimentos e recursos nelas utilizados.
(SANTAELLA, 2005, pág. 5)
A semiótica está preocupada com o desenvolvimento da significação, então para que haja
o processo de semiose é necessário entender o signo como um todo que é analisado a
partir do fundamento do signo ou representâmen, do objeto, e do interpretante. Cada parte
dessa tríade tem subdivisões que ajudam no estudo e na compreensão das relações
sígnicas através de modos universais de descrever tudo o que vem à mente. O signo em
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si ou representâmen se divide em quali-signos, sin-signos e legi-signos. O signo em
relação ao objeto se divide em ícone, índice e símbolo. E o interpretante se divide em
rema, dicente e argumento.
Os signos também são divididos em três categorias fenomenológicas que dão fundamento
à semiótica: a primeiridade que retrata aspectos que qualificam os signos, a primeira
impressão dele; a secundidade que confirma a existência do signo, é um registro do
sentimento da sua experiência com o signo; e a terceiridade que é a capacidade de
interpretar, é a conexão das qualidades (primeiridade) com o fato da existência
(secundidade). Para MEDEIROS (pág.3), a “primeiridade é sempre a percepção, algo
abstrato, rápido, secundidade a representação/função e terceiridade o pensamento
completo, dando todo o contexto do signo”.
Os aspectos que estão ligados a primeiridade sempre vão estar relacionada as coisas que
expõe e aguçam os sentidos para as qualidades visuais do signo, na secundidade são
relacionados as ações e reações e na terceiridade aos hábitos e leis. Esses aspectos
coexistem mas tem características específicas com podemos ver na tabela a seguir:
Tabela 1 – Categorias do signo
Categorias do
signo
Signo em si ou
Representâmen
Objeto Interpretante
Primeiridade Quali-signo:
qualidades dos
fenômenos que
envolvem o signo
como cores,
textura, formas,
etc;
Ícone: tem uma
relação de
semelhança/sugestão
com o objeto
representado
podendo substitui-
lo;
Rema: signo que
para o seu
interpretante dá
uma possibilidade
qualitativa. Um
tipo de estilo pode
ser um rema;
Secundidade Sin-signo: aspectos que
particularizam o
signo,
características
existenciais que o
tornam único
dentro do universo
em que ele se
manifesta;
Índice: o signo tem
uma conexão direta
com o objeto, de
maneira que o signo
faz uma indicação
do referente
apontando para ele.
(Ex: a fumaça é um
signo que indica
fogo);
Dicente: signo que
para o interpretante
comprova sua real
existência. É uma
sugestão que
envolve um rema;
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Terceiridade Legi-signo:a
manifestação de
padrões, regras e
convenções no
representâmen. A
extração de uma
característica que
ele tem em comum
com todos os
outros que o coloca
dentro de uma
classe geral;
Símbolo: o signo
representa um objeto
real através de
noções abstratas
associadas a uma
ideia que é
determinada por lei
por conveniência
coletiva;
Argumento:para o
interpretante o
objeto é
representado em
seu caráter de
signo por uma lei
geral que seja
reconhecida por
todos envolvendo
seu dicente;
Segundo Cavalcante, na semiótica do humor, a hipótese do riso semiótico parte de três
pressupostos: no primeiro o riso é gerado pela quebra da lógica de representação realista;
no segundo essa quebra vem da abstração de elementos que representam a realidade; e no
terceiro o riso é influenciado por aspectos sociais e culturais que fazem parte da realidade
do indivíduo que vai ser o interpretante. Logo, se a semiótica estuda a construção do
pensamento lógico e o humor se manifesta a partir da perturbação da razão lógica, a
semiótica do humor seria o estudo do rompimento da lógica da realidade. Em outras
palavras:
A semiótica do humor investiga como o signo (seu fundamento) faz
continuar seu objeto dinâmico abstraindo sua seriedade-realidade
(relação signo objeto) de modo que possibilite ao seu interpretante uma
descarga de riso que deriva da relação entre a realidade-lógica
corrompida e seu reconhecimento. (CAVALCANTE, no prelo, pág. 2-
3)
Apesar de todas as partes do signo coexistirem, pode haver a predominância de uma parte
do signo sobre as outras como é no caso da semiótica do humor em que os aspectos da
primeira tricotomia é o que atinge diretamente o interpretante. O fundamento do signo-
humor é formado pelas qualidades de apresentação da piada. Podemos confirmar isso no
seguinte trecho:
A hipótese é de que a semiose do humor que privilegia o fundamento
do signo humorístico é a que causa o riso imediato. Isso porque o riso
derivaria da subversão das qualidades sígnicas, ou seja, do que se
apresenta, do que é imediato e não da relação do signo com seu objeto
dinâmico. Ou seja, não precisa conectar o signo com algo ou extrair a
conclusão para rir. A subversão do real é a da própria aparência e não
do que ele representa. É importante lembrar: trata-se sempre de
predominância. (CAVALCANTE, no prelo, pág. 3)
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Os quali-signos humorísticos trabalham a estética dos signos, sua aparência em si,
pegando atributos de qualidades de cor, sons, formas, táteis, sinestésicas, que
desarmonizam e deturpam as características da seriedade e da realidade. Os sin-signos
humorísticos singularizam as qualidades dos signos-humor que manifestam de forma
única sons, gestos, movimentos, entonações. A combinação dessas qualidades com a
aparência gera a fuga da seriedade-realidade. Já os legi-signos humorísticos se apoiam
em leis, regras ou hábitos que ordenam as aparências, padronizando a forma como o
humorista constrói as qualidades dos signos-humor no decorrer da sua apresentação. Por
isso, para fazer essa análise foi levado em conta:
A análise semiótica do fundamento do signo é caracterizada pela
abstração da seriedade-realidade-lógica-ordem dos aspectos explícitos
do signo, ou seja, na sua apresentação. Tratar-se-ia de identificar nos
casos singulares (sin-signos) como estes indicam uma gradação de
regularidade (legi-signos) no modo como determinado comediante
associa as qualidades dos signos (quali-signo) para produzir o riso.
(CAVALCANTE, no prelo, pág. 4)
A análise desse artigo, portanto, vai se utilizar da abordagem semiótica do riso para
investigar a singularidade do processo de significação do risível na produção audiovisual
o auto da compadecida, através do que é representado no personagem Chicó e a relação
disso com suas histórias.
3. A semiose do riso mentiroso: “NÃO SEI, SÓ SEI QUE FOI ASSIM”
Ao longo do filme Chicó conta várias de suas histórias (mentiras) para diversos
personagens, por isso, foi separado dois desses casos, em que ele interage com seu amigo,
João Grilo, que serão analisados de acordo com o proposto pela semiótica do humor. A
primeira história vai de 04’47’’ a 06’03’’em que Chicó conta a história de sua caçada as
pacas para seu amigo João Grilo:
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Figura 1 – Cena da história de Chicó quando ele coloca a mão na boca da espingarda por tiro não
sair
João Grilo: Cadê? Caçou alguma coisa?
Chicó: Quase!
João Grilo: Tá aí um bicho gostoso esse quase. A gente quase assa, quase come e quase
morre de fome.
Chicó: Quase pego pra mais de quinze pacas João.
João Grilo: Estou quase lhe pegando na mentira Chicó.
Chicó: Oxefulerage! Quando foi que já me viu mentindo?
João Grilo: Nunca vi, só ouvi.
Chicó: Pois devia tá lá pra ver.
João Grilo: A mentira?
Chicó: Não homem, as pacas. (Dá uma tragada no cigarro) No canto do riacho de Cosmo
Pinto onde as paca atravessa, é tanta paca mais tanta paca que cruza por lá que a trilha
delas fica marcada na água. O riacho vem reto e naquele canto dá uma afundada assim
oh.
João Grilo: Oxe e água é barro pra ficar com o caminho marcado pela passagem dos
bichos?
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Chicó: Não sei, só sei que é assim. Eu tava lá tocaiando quando apareceu pra mais de
trinta paca.
João Grilo: Você tinha falado mais de quinze.
Chicó: Oxente homem! Trinta não é mais que quinze não?
João Grilo: Tá certo. Eu vou calar minha boca para não espantar suas pacas.
Chicó: É melhor mesmo. Pois apontei minha papo amarelo, puxei o gatilho e de repente
apareceu na minha frente a égua do major Antônio Morais. Eu pensei: eu vou matar a
égua do Major Antônio Morais e ele vai me matar. Tenho que dar um jeito nisso.
João Grilo: Que jeito se já tinha puxado o gatilho?
Chicó: Tudo isso eu pensei foi ligeiro, mais ligeiro ainda eu tampei a boca da espingarda
com a mão pro tiro não sair chega a bicha ficou assim oh (barulho e coisa inchando)
quando destampei e soltei a bala as pacas já tinham ganhado mato.
João Grilo: Vamos largar suas caçadas Chicó, vamos caçar trabalho.
A história que Chicó conta é tão absurda que fica claro que não é verdade. A mentira em
si já é uma quebra da lógica realista então temos como objeto a subversão da realidade
que é trazida pela mentira. Ele sempre distorce as caraterísticas do real, tanto que João
Grilo fica questionando sobre essas coisas que ele fala que diferem da realidade como
quando o Chicó conta que é tanta paca passando pelo rio que por onde elas passam a água
dá uma afundada.
Na construção da mentira, Chicó, cria um mundo fantasioso a partir dos signos que ele
pega da situação em que ele está. Nesse momento ele acaba de chegar da caçada sem nada
para assar e para tentar reverter a frustação de não ter conseguido nada ele começa a se
gabar do motivo de não ter conseguido trazer nada de volta. Pegando esse fato e
misturando com as próprias características visuais do personagem que é pobre, medroso
que se passa de valente, entra em desespero facilmente, sempre acende um cigarro quando
começa a contar suas histórias e dá uma tragada, a fumaça que ele solta do cigarro faz ele
viajar na “lembrança” do que está contando que é a forma como visualmente é mostrado
esse mundo que ele cria através da mentira que é uma abstração da realidade em forma
de desenhos que lembram xilogravura, traços típicos que ilustram os cordéis nordestinos.
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A partir da quebra da lógica da normalidade dos signos com o objeto. A quebra da verdade
é tão exagerada que se torna cômico principalmente pela criatividade na explicação da
mentira. A surpresa que traz o rompimento da seriedade vem exatamente da criatividade
da construção da mentira. Ele vai aumentando as dimensões da mentira até esgotar
qualquer traço de razão e quando não consegue pensar em mais nada ele diz “não sei, só
sei que foi assim”.
Mas como o Chicó consegue transformar a mentira em riso? O conhecimento que o
emissor (personagem) e o receptor (quem está assistindo o filme) compartilham é uma
peça chave para a formação do humor. Como dito anteriormente, Chicó é medroso e sem
atitude, então, quando ele produz signos (fundamento) que apresenta grandes feitos, como
o da caçada das pacas, o fundamento do signo (que o apresenta) entra em colapso com o
conhecimento colateral sobre Chicó (medroso, frouxo).
A mentira produz uma dissonância entre o signo e seu objeto. Por isso, a mentira se torna
engraçada quando o conhecimento colateral denuncia e torna explícito, o caráter
desarmônico entre signo e seu objeto, ou seja, todos sabem que Chicó não é capaz de
protagonizar feitos tão corajosos e aventureiros como os que ele narra em suas histórias.
A relação entre o conhecimento da personalidade do Chicó e o signo quebra os esquemas
normativos de representação. O riso se dá pela quebra entre o fundamento do signo,
representados pelas atitudes triunfantes de Chicó, e quem ele realmente é “na vida real”.
O conhecimento prévio e a apresentação do signo são que geram o humor.
A criatividade à serviço da mentira destaca a relação entre fundamento, objeto e
conhecimento colateral, causando a produção de surpresa. A mentira tem um efeito
negativo quando engana, no entanto, o risível tira o peso da mentira pela quebra da
normalidade da situação de mentira. Quando o personagem mente, ele usa artifícios para
parecer real. No caso da mentira risível, ela se aumenta tanto que denuncia, por si só, que
se trata de um fato fictício, logo, fica impossível enganar alguém. E o fato de não enganar
aliado ao exagero leva ao riso.
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A segunda históriavai de 21’37’’ a 23’17’’ quando Chicó conta para João Grilo sobre seu
cavalo bento:
Figura 2 – Cena da história de Chicó quando ele estava montado em seu cavalo bento
João Grilo: Bispo tá pra chegar, eu tenho certeza que o padre João não vai querer benzer
a cachorra.
Chicó: E não vai benzer por quê? O que tem demais? Eu mesmo já tive um cavalo bento.
João Grilo: Que isso Chicó? Já estou ficando por aqui com suas histórias. É sempre
alguma coisa toda esquisita e quando se pede uma explicação vem sempre com: num sei
só sei que foi assim.
Chicó: Mas eu tive mesmo um cavalo meu filho, o quê que eu vou fazer? Vou mentir e
dizer que não tive?
João Grilo: Você vive com essas histórias e depois reclama que o povo diz que você é
sem confiança.
Chicó: Eu? Sem confiança? Antônio Martinho tá aí pra provar o que eu digo.
João Grilo: Êh! Antônio Martinho! Faz três anos que ele morreu.
Chicó: Mas era vivo quando eu tinha o bicho.
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João Grilo: Quando você teve o bicho? E foi você que pariu o cavalo, Chicó?
Chicó: Eu não, mas do jeito que as coisas vão eu não me admiro mais de nada. Mês
passado uma mulher teve um lá para serras do Araripe lá pros lados do Ceará.
João Grilo: Isso é coisa de seca, acaba nisso essa fome, ninguém pode ter menino e haja
cavalo no mundo. Comida é mais barata e coisa que se pode vender. Mas seu cavalo bento
como foi?
Chicó: Cavalo como aquele nunca tinha visto (dá uma tragada no cigarro) uma vez
corremos atrás de uma garrota das 6h da manhã até as 6h da tarde sem parar nenhum
momento. Fui derrubar o boi já de noitinha.
João Grilo: O boi? E não era uma garota?
Chicó: Era uma garrota e um boi.
João Grilo: E você corria atrás dos dois juntos assim de uma vez?
Chicó: Corria! É proibido?
João Grilo: Não, mas eu me admiro deles correrem tanto tempo juntos sem se apartarem.
Com foi isso?
Chicó: Não sei, só sei que foi assim. 17h montado e o cavalo ali comigo sem reclamar
nada.
João Grilo: Eu me admirava era se ele reclamasse.
Chicó: Comecei a correr na ribeira do Taperoá na Paraiba, pois bem, quando dei fé já
estava em Sergipe.
João Grilo: Sergipe? E o rio São Francisco, Chicó?
Chicó: Eita, lá vem você com sua mania de perguntas.
João Grilo: Claro! Tenho que saber. Como foi que você passou?
Chicó: Eu não lhe disse que o cavalo era bento? Por isso que não me admiro mais de nada.
Cachorro bento, cavalo bento, isso tudo eu já vi.
João Grilo: É, mas não vai ser com as suas lorotas que vamos convencer o padre João.
Nesse caso é interessante perceber como eles pegam aspectos sociais e culturais que
fazem parte da realidade do sertanejo que é pobre e passa por dificuldades por conta da
seca usando isso para fazer uma crítica enquanto Chicó em meio disso, insere sua história.
Ele inventa uma mentira para concertar outra mentira até não conseguir criar mais nada e
altera seu tom de voz demonstrando irritação e indignação com seu amigo por questionar
o que ele está dizendo.
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Como o signo é toda a construção de mundo que ele cria para inserir a mentira os sin-
signos com a particularização das características desse novo ambiente que está sendo
criado e os legi-signos com a quebra do convencional, ficam mais evidentes na
composição do riso. A história num todo é um objeto icônico pela representação da
mentira lembrar um cordel e simbólico por quebrar as leis do real de maneira criativa
fazendo com isso que o interpretante seja remático quando se remete a observação da
alteração da tonalidade de voz e a visualização das figuras enquanto conta a mentira, mas
também seja argumentativo já que precisa interpretar o rompimento da verdade
argumentativa.
É necessária uma conexão das qualidades visuais e verbais, além do conhecimento prévio
das características do personagem, para gerar o riso porque as expressões e gestos dos
personagens contam muito na formação do cômico. O humor vem da composição das
qualidades dos signos-humor no decorrer da cena com a forma que o Chicó conta as
mentiras, os sons que ele acrescenta na história e as observações que João Grilo faz
questionando a veracidade daquilo tudo. A combinação dessas qualidades com a
aparência gera a fuga da seriedade-realidade levando ao riso.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando se analisa algo tão peculiar como a mentira, principalmente através da semiótica
voltada para o humor, é importante perceber que o ato de mentir em si não provoca o riso.
A princípio deve-se fazer os seguintes questionamentos: O que torna a mentira
engraçada? Quais as conexões entre signo-objeto-interpretante que causam o riso? Nesse
contexto, entender a origem do riso se dá a partir da desconstrução da lógica que está
sendo apresentada, extraindo a verdade dos fatos e identificando o que aproxima a mentira
da realidade.
No caso do estudo proposto nesse trabalho, a singularidade do humor criado pelo
personagem Chicó é exatamente o de transformar a mentira em riso. Pode-se perceber no
decorrer da análise que a mentira só se torna risível através da conexão que o interpretante
tem com o emissor, do conhecimento prévio de características que entram em
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discordância com o que está sendo contado. Ver o interpretante como comunicacional
diante do que lhe está sendo mostrado, acaba dando uma perspectiva diferente de um fato
e a partir disso desenvolve novos caminhos para a compreensão do riso.
Esse artigo se torna relevante justamente por abordar a semiótica aplicada no humor, que
ainda é uma área pouco explorada em estudos acadêmicos, podendo gerar mais pesquisas
tanto no âmbito da semiótica Peirceana em si, como na semiótica do humor, buscando
compreender o riso semiótico a partir da quebra da ordem, da normalidade e dos padrões
convencionais através do rompimento da lógica da realidade.
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. O riso, as paixões e as faculdades da alma. Textos de História. Revista da
Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Brasília, UnB, v.3, n.1, 1995, p.5-25.
CAVALCANTE, Diego. Ensaio: Método semiótico para o humor.
MEDEIROS, Diego Piovesan. Semiótica: Teoria e classificação dos signos. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2895111/mod_resource/content/1/Apostila de
semiótica.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2017.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2005. Tradução de José Teixeira
Coelho Neto. Disponível em:
<https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=forums&srcid=MTY3NjMzMjYwMzk0MDExNDk
zMDYBMDM5NDQwMDc0NDM2NDY2MjY1OTYBcmo2bmZzNk9SVThKATAuMQEBdjI
&authuser=0>. Acesso em: 20 maio 2018.
SANTAELLA, Lúcia. Semiótica Aplicada. 2. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.
ZILLES, Urbano. O significado do humor. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 22, p.83-89, dez.
2003. Quadrimestral.