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P L U R A L
O fascínio é o elemento que move essa Edição...
e te convida a ser uma Alice dentro do espelho. A Sofia da Condessa de Ségur na sala dos Castigos. Platão na sua Caverna. Atreva-se! A próxima página... será a sua saída de emergência. Use-a.......................
© Scenarium Livros Artesanais, 2019 Revista Plural vinte e um www.scenariumplural.wordpress.com [email protected] Publicação: Scenarium Livros Artesanais Responsáveis: Lunna Guedes e Marco Antonio Guedes Projeto Gráfico e Edição: Lunna Guedes A reprodução parcial ou total desta obra, por qualquer meio, somente será permitida com a autorização por escrito do autor. (Lei. no. 9.610 de 19.02.1998) Impresso em São Paulo
Pensar é encher-se de tristeza e quando pensonão em ti mas em tudo sofro Dantes eu vivia só agora vivo rodeada de palavras que eu cultivo no meu jardim de penas Eu sigo-as e elas seguem-me: são o exigente cortejo que me persegue Em toda a parte ouço o seu imenso clamor
Pensar é encher-se de tristeza
Ana Hatherly
Em abril de 2002, por fim, em resposta ao escândalo
criado pela revelação de inúmeros casos de encobri-
mento da atividade de padres sexualmente predatórios,
o papa João Paulo II disse aos cardeais americanos
convocados ao Vaticano:
“Uma grande obra de arte pode ser danifica-
da, mas a sua beleza perdura; e essa é uma
verdade que qualquer crítico intelectualmen-
te honesto vai admitir”.
Será tão estranho assim que o papa associe a Igreja
Católica a uma grande — ou seja, bela — obra de arte?
Talvez não, visto que a comparação inane lhe permite
UMA DISCUSSÃO... sobre a Beleza
Susan Sontag
transformar iniqüidades abomináveis em algo seme-
lhante a arranhões na película de um filme mudo ou
aos craquelês que recobrem a superfície da pintura de
um Mestre Antigo, defeitos que, mentalmente, apaga-
mos ou atravessamos com o nosso olhar. O papa gosta
de idéias veneráveis. E a beleza, como um termo que
significa (como a saúde) uma excelência incontestável,
foi uma fonte perene da formulação de avaliações pe-
remptórias.
A permanência, porém, não é um dos atributos mais
óbvios da beleza; e a contemplação da beleza, quando é
competente, pode estar cingida em pathos, o drama so-
bre o qual Shakespeare elabora muitos de seus sonetos.
Tradicionais celebrações da beleza no Japão, como
o rito anual de se admirar a floração das cerejeiras, são
incisivamente elegíacas; a beleza mais emocionante é a
mais efêmera. Tornar a beleza imperecível, em certo
sentido, demandou muitos remendos e transposições,
mas a idéia era simplesmente sedutora demais, potente
demais, para ser desperdiçada no louvor de corporifica-
ções superiores. O objetivo era multiplicar a idéia, per-
mitir que tipos de beleza, beleza com adjetivos, se or-
denassem numa escala de valor ascendente e de incor-
— ensaio: uma discussão sobre a beleza
ruptibilidade, com os usos metafóricos (“beleza inte-
lectual”, “beleza espiritual”) tendo a precedência sobre
aquilo que a linguagem comum exalta como belo —
uma alegria para os sentidos.
A beleza do rosto e do corpo, uma beleza menos
“enaltecedora”, continua a ser o lugar do belo mais co-
mumente visitado. Porém é difícil alguém supor que o
papa evoque esse sentido de beleza, na hora em que
constrói uma explicação que justifica, perante várias
gerações, o molestamento sexual de crianças por cléri-
gos, e que protege os molestadores.
Mais pertinente — para ele — é a beleza “mais ele-
vada” da arte. Embora muita arte possa parecer uma
questão de superfície e de recepção pelos sentidos, ge-
ralmente lhe é concedida uma cidadania honorária no
âmbito da beleza “interior” (em oposição à “exterior”).
A beleza, ao que parece, é imutável, pelo menos
quando encarnada — fixa — na forma de arte, porque
é na arte que a beleza enquanto uma idéia, uma idéia
eterna, se corporifica melhor. A beleza (caso optemos
por usar a palavra deste modo) é profunda, não superfi-
cial; oculta, às vezes, e não óbvia; consoladora, e não
perturbadora; indestrutível, como na arte, e não efême-
por susan sontag
ra, como na natureza. A beleza, o tipo postuladamente
enaltecedor, perdura.
A melhor teoria da beleza é a sua história. Pensar
sobre a história da beleza significa pôr em foco a sua
configuração nas mãos de comunidades específicas.
A beleza pode ilustrar um ideal, uma perfeição. Ou,
por causa da sua identificação com mulheres (mais
exatamente, com a Mulher), pode desencadear a ambi-
valência usual que advém do secular aviltamento do fe-
minino. Boa parte do descrédito da beleza precisa ser
entendida como um resultado da inflexão de gênero. A
misoginia também podia estar subjacente ao ímpeto de
metaforizar a beleza, elevando-a desse modo acima do
reino do “meramente” feminino, daquilo que não é sé-
rio, do que é enganador. Pois, se as mulheres são cultu-
adas porque são belas, são toleradas por sua preocupa-
ção em se tornarem ou se manterem belas. A beleza é
teatral, é para ser vista e admirada; e a palavra tanto
pode fazer pensar na indústria da beleza (revistas de
beleza, salões de beleza, produtos de beleza) — o tea-
tro da frivolidade feminina — como nas belezas da arte
e da natureza. De que outro modo explicar a associação
— ensaio: uma discussão sobre a beleza
da beleza — i.e., mulheres — com a inteligência curta?
Preocupar-se com a própria beleza é arriscar-se à pecha
de narcisismo e de frivolidade. Pensemos em todos os
sinônimos de beleza, a começar por “adorável”, ou o
meramente “bonito”, que clama por uma transposição
viril.
“O bonito é só bonito e não diz mais nada.” (Mas
não: “Belo é só belo e não diz mais nada”.) Embora se
aplique à aparência tanto quanto “belo”, “bonito” —
isento de associações com o feminino — parece mais
sóbrio, menos derramado em elogios. A beleza não é,
em geral, associada com gravitas. Assim podemos pre-
ferir chamar um veículo que divulga pungentes ima-
gens de guerra e de atrocidades de “um livro bonito”,
como fiz no prefácio de uma compilação de fotos de
Don McCullin, com receio de que chamá-lo de um
“livro belo” (o que era de fato o caso) fosse parecer
uma afronta, por seu tema apavorante.
Em geral supõe-se que a beleza é, de forma quase
tautológica, uma categoria “estética”, o que a coloca,
segundo muitos, em rota de colisão com o ético. Mas a
beleza, mesmo a beleza na modalidade amoral, nunca
está nua. E a atribuição de beleza jamais ocorre sem
por susan sontag
mistura com valores morais. O estético e o ético estão
longe de ser pólos opostos e, como insistiram Kierke-
gaard e Tolstói, o estético é em si mesmo quase um
projeto moral. As discussões sobre a beleza, desde Pla-
tão, estão povoadas de questões sobre a adequada rela-
ção com o belo (o irresistivelmente, o sedutoramente
belo), que julgam fluir da natureza da beleza em si
mesma.
A tendência perene de transformar a beleza em si
num conceito binário, em parti-la em “interna” e
“externa”, “alta” e “baixa” beleza, é a maneira usual
como os julgamentos do belo são colonizados por jul-
gamentos morais. De um ponto de vista nietzschiano
(ou wildiano), isso pode ser inadequado, mas para mim
parece inevitável. E a sabedoria que se torna acessível
mediante um profundo compromisso, de toda uma vi-
da, com a estética não pode, me atrevo a dizer, ser re-
produzida por nenhum outro tipo de seriedade. De fato,
as diversas definições de beleza chegam, pelo menos,
tão perto de uma caracterização plausível da virtude, e
de uma humanidade mais plena, quanto as tentativas de
definir a bondade em si.
A beleza é parte da história da idealização, a qual
— ensaio: uma discussão sobre a beleza
em si mesma é parte da história da consolação. Mas a
beleza nem sempre consola. A beleza de um rosto e de
uma figura atormenta, subjuga; essa beleza é imperio-
sa. A beleza que é humana e a beleza que é produzida
(arte) — incitam a fantasia e também a posse. O nosso
modelo do desinteressado advém da beleza da natureza
— uma natureza que está distante, fora de alcance, im-
possível de possuir.
De uma carta de um soldado alemão, em vigília, no
inverno russo, no fim de dezembro de 1942:
“O Natal mais maravilhoso que já vi, todo
feito de emoção desinteressada e despido de
toda ornamentação luxuosa. Eu estava sozi-
nho debaixo de um céu enorme e estrelado e
posso lembrar-me de uma lágrima que correu
pela minha face gelada, uma lágrima nem de
dor, nem de alegria, mas de emoção criada
por uma experiência forte. *
por susan sontag
Ao contrário da beleza, muitas vezes frágil e efême-
ra, a capacidade de ser subjugado pelo belo é espanto-
samente robusta e sobrevive em meio às mais berrantes
distrações. Mesmo a guerra, mesmo a perspectiva da
morte determinada, não conseguem eliminá-la.
A beleza da arte é melhor, “mais elevada”, segundo
Hegel, do que a beleza da natureza, porque é feita por
seres humanos e é obra do espírito. Mas a apreensão da
beleza na natureza é também resultado de tradições da
consciência, e da cultura — na linguagem de Hegel, do
espírito.
As reações à beleza na arte e na natureza são inter-
dependentes. Como Wilde assinalou, a arte faz mais do
que nos instruir sobre como e o que apreciar na nature-
za. (Ele estava pensando em poesia e em pintura. Hoje,
os padrões de beleza na natureza são, em larga medida,
estabelecidos pela fotografia.) O que é belo nos recorda
a natureza em si — aquilo que está além do humano e
do fabricado — e, portanto, estimula e aprofunda o
nosso sentido da pura amplitude e plenitude da realida-
de, inanimada mas também pulsante, que rodeia todos
nós.
— ensaio: uma discussão sobre a beleza
Um feliz subproduto desse achado, se é que se trata
de um achado: a beleza recupera a sua solidez, a sua
inevitabilidade, como um julgamento necessário para
dar sentido a uma larga parcela das energias, afinidades
e admirações de uma pessoa; e as noções usurpadoras
parecem ridículas.
Imagine dizer: “O pôr-do-sol é interessante”.
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Ensaio publicado no livro Ao mesmo tempo agora,
publicado pela Companhia das Letras/2007
— Tradução Rubens Figueiredo.
por susan sontag
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Ana Hatherly
...se estivesse viva a portuguesa Ana Hatherly, poeta,
ensaísta, artista plástica, professora, nascida em
1929, completaria então 90 anos em maio, no dia 8.
A poeta faleceu em 2015, deixando atrás de si um
rastro enigmático... sua escrita-pintura-caligrafia-
desenho sempre brincou com código experimental
— uma espécie de risco-rasgo-rabisco, espaço sem
fôrma ou formas prontas. Esse era o elemento na
poética de Ana Hatherly.
Em sua poesia gráfica... a escrita e o tracejado não
se separam, a linha e a dobra — são um mesmo ele-
mento em busca de silêncio e uma generosa porção
de ar. Dá para sentir ao passar os olhos por suas
construções-narrativas o poderoso trago...
A obsidiana é um vidro vulcânico negro como a antracite, o ónix, o azeviche. Antes de ser vidro, porém, foi lava ardente pedra líquida vómito das profundezas válvula de escape massa de bolo cru concha de pedra que estala revelando o seu recheio que escorre ácido e fétido como tumor que arrebenta. Explosão de estupenda cor jacto feérico, pirotécnico solta estrelas vivas fogo de oiro que cintila contra o céu que ferve raivoso ao contacto com o mar. Quando por fim arrefece e se transforma em cinza a obsidiana concentra-se e do nada faz o seu diamante.
Penso em ti
tranquilamente como numa tarde
em que resolvemos não fazer nada e os livros
arrumados verticalmente
são apenas o dorso ondulado
de um animal que dorme
enquanto por dentro
todo o trabalho se processa.
Penso em ti
tranquilamente
como deitamo-nos no chão
debaixo de uma árvore e olhamos
a sua copa em leque
a sua ramagem ondulando lenta
como o ventre de um animal adormecido.
Até que a luz da lua
entra e percorre tudo
sem refletir coisa alguma
Este corpo tem um nome: Eva. Como a primeira
mulher. Mas esta Eva não é a
primeira mulher, é apenas a primeira
mulher ali. Como todas as mulheres e
como todos os homens somos
sempre, em alguma circunstância,
os primeiros em alguma situação,
corrijo, em alguma emoção...
Eva é a tinta que pela
primeira vez vai escrever na
brancura indefinida do papel. E, ao
arriscar a escrita, pode encon-
trar a gaguez ou a palavra exacta ou a gralha.
Eva é a mulher limitada
pelo medo de esmagar o pássaro que
está fora da janela.
Filipa Leal
Meu filho sempre foi curioso, inteligente e esperto,
e queria saber o porquê de tudo. Mesmo assim, os
professores nos chamaram um dia e sugeriram que
ele passasse por uma avaliação de um terapeuta, pa-
ra identificar a causa de sua dispersão. Segundo o
diagnóstico, os exames clínicos apontaram um défi-
cit de atenção. Havia uma defasagem entre o que ele
ouvia e o que o cérebro processava. Provavelmente
a causa de sua desobediência às ordens dadas e à
tradicional disciplina exigida para adquirir o apren-
dizado regular. A partir daí, seguindo as orientações
médicas, ele começou a frequentar sessões de ludo
terapia e fonoaudiologia.
Certo dia, enquanto folheávamos algumas revistas
disponíveis na recepção do consultório, ele se inte-
ressou pela capa de uma delas que trazia a imagem
reconstruída em computador do crânio feminino en-
contrado pelos arqueólogos, com a chamada em
destaque: “LUZIA”, A PRIMEIRA BRASILEI-
RA.
— Olha, mamãe!
— É, que legal… A Luzia, a primeira mulher! —
exclamei.
— Mas a primeira mulher não é a Eva?
A sala repleta de gente e todos riram dessa tirada
genial, que me encheu de orgulho do meu filho
perspicaz. Então, expliquei a ele que aquele fóssil
era o da primeira mulher encontrada no Brasil e que
existiam muitos, até mais antigos, descobertos em
outras partes do mundo.
Como fazê-lo distinguir que uma coisa eram os
achados arqueológicos… outra era a abstração
necessária para compreender a complexa e me-
tafísica simbologia da existência da primeira
mulher bíblica (?) se eu mesma tinha tantas dú-
vidas…
Quando se perde a capacidade de acreditar em
algo que não deixa pistas materiais que satisfa-
çam aos cinco sentidos físicos, as pessoas ou
duvidam dessa existência ou cultivam a fé, que é
crer sem a necessidade de provas.
Muitos anos se passaram, mas meu filho conti-
nua o mesmo cético no que parecia ser apenas
ingenuidade infantil: “se foi possível descobrir a
Luzia, onde estariam os ossos de Eva?”.
— crônica: a inexistência de eva...
Supondo que por um ângulo da ciência nós exis-
timos a partir da evolução do macaco, quer cren-
ça maior do que um elo perdido que até agora
ninguém encontrou? Ou é melhor acreditar que
fomos criados a partir do pó das estrelas? Seja o
que for, há uma Eva em nossas vidas, encontrem
ou não seus restos mortais.
Pode crer!
•∆•
por virginia finzetto
“ “
Olá, 2019…
Olhando daqui, de frente para a folhinha, enquanto
o vento agita o pé de ipê, penso nas histórias que
quero te contar. Já ouvi hoje o suspiro de pessoas a
dizer:
— Nossa! Como voaram os dias!
Dentro desse contexto devo dizer que os próximos
dias me trazem medo. E nem ouso ir além de Janei-
ro.
Prefiro te apresentar a três Evas inexistentes para
além do toque físico. Seria riso fácil as três… a de-
senhar modelos de vontades na estampa de chita
que, a cortina do pequeno espaço tem.
Gouveia
Uma, atravessou a ponte de uma cidadezinha e foi
além do que esperava dela mesma. Se tornou Dou-
tora e trazia crianças, ao mundo. Cabia em si no
contentamento de viver até que se apaixonou. Co-
mo era livre na escolha, se deixou ser levada pela
mão. Ah! Ela poderia se chamar Eva e seria comum
entre os corredores desiguais. Mas, era Geneci… e
adorava o vermelho no cabelo. Mas o amor a tor-
nou comum entre as iguais. Um amor abusivo que a
proibiu de quase tudo que a fazia feliz! E quando
ousou se rebelar conheceu enfim o Homem que
amava.
Sabia que Maria achava que podia ser feliz dentro
do tempo? E mesmo sabendo que o namorado não
gostava que usasse saia curta e que o comporta-
mento violento podia piorar com o tempo… acredi-
tou que o amor o faria outro Homem. Mas, ele não
mudou e tudo piorou nos dias seguintes. Hoje, Ma-
ria já não é mais…
Rita não era Eva… e, ao mesmo tempo que trazia
no riso a jovialidade de quem tinha fé na vida, pen-
— crônica: a inexistência de eva...
sava que podia confiar non Homem que lhe fazia
juras. Com o tempo, descobriu que não. Passou a
viver com medo…. e, ainda se recupera das feridas
do corpo e da alma.
Você pode até me perguntar porque te escrevo so-
bre isso… mas é que enquanto reclamam da veloci-
dade do tempo, eu penso nas cicatrizes que ainda
irão existir a partir das feridas que esses 21 dias
contabilizam.
Aqui, onde vivo, algumas Evas deixaram de exis-
tir… e, todos os sonhos delas também. Outras, bus-
cam cura. Outras ainda esperam por ajuda. Descon-
fio que já não pensam em Futuro e tenho certeza de
que avaliam que a felicidade é coisa para os outros.
Outras, como Geneci e Rita… se recuperam, com
amparo de colo e abraço amigo. As vejo entre o
quintal e o jardim. As linhas traçadas em suas
mãos, costuram tecidos como se construíssem
“outros” sonhos… e acredito que são.
Não são Evas! São mulheres prontas para viverem
a vida e amar.
por mariana gouveia
ñ
Há quem proponha que Eva não tenha existido, que
se trata unicamente de uma figura mitológica, assim
como Adão. Algumas escrituras versam sobre outra
mulher original — Lilith — que aparece como um
demônio noturno na crença tradicional judaica. Na
crença islâmica, ela é tratada como a primeira mu-
lher de Adão, sendo, em uma passagem (Patai 81:
455f), acusada de ser a serpente que levou Eva a co-
mer o fruto proibido. Mais recentemente, esta vari-
ante tem sido cada vez mais adotada. Dessa forma,
não é de se estranhar que a mulher provoque a des-
confiança de seguidores religiosos de várias verten-
tes, quando certamente foi o homem, desde o princí-
pio, que a identificou como uma opositora temível
de sua liderança no âmbito das relações sociais, ca-
paz de desestabilizar as estruturas de poder que deti-
nha.
Aparentemente, Eva teria realmente existido. Em
1986, pesquisadores da Universidade da Califórnia
concluíram que todos os humanos descendem de
uma única mulher que viveu na África há cerca de
200 mil anos, denominada “Eva Mitocondrial”, a
grande avó de todos os humanos, a única a produzir
uma linhagem direta de descendentes que persiste
até hoje — contraparte do Adão-Y — do Homo sa-
piens, único primata bípede do género Homo ainda
vivo.
Nossa espécie, em algum momento da história, este-
ve bem perto da extinção e acabou reduzido a um
grupo bem pequeno. Conseguiu sobreviver e domi-
nar cada vez mais territórios, até se tornar sobrepu-
jante sobre as outras espécies.
... — crônica: a inexistência de eva...
Foram ocorrências bem próximas das narrativas ide-
alizadas por diversas culturas, como a descrita no
Gênesis, primeiro capítulo do Velho Testamento da
Bíblia, livro-alicerce de três grandes religiões: Juda-
ísmo, Cristianismo e Maometismo — que, através
de seus cânones, buscou colocar a mulher em um
papel de menor importância, a não ser quando a
apresenta como diretamente responsável pela expul-
são das criaturas favoritas de Deus do Paraíso.
Desde então, Eva tem enfrentado tentativas por par-
te de seu semelhante masculino em tornar irrelevan-
te sua atuação na construção da civilização. Com o
desenvolvimento das diversas sociedades, sobrevi-
veu o traço comum em colocar a mulher como su-
balterna operacional em relação ao homem.
por obdulio nuñes ortega
Adão, aquinhoado de maior força muscular, senhor
da caça — base de sustentação dos primeiros grupa-
mentos humanos — ocupou o topo do comando na
maioria das organizações sociais primitivas. Com a
sofisticação social e incremento da agricultura, a
maioria dos povos, inicialmente nômade, se fixaram
em posses territoriais, com estabelecimento de dife-
renciação de funções, surgimento da hierarquias e
consequente imposição de diferentes status sociais.
E, ao perceber que a descendência passava inevita-
velmente pela fêmea, o bicho homem inventou siste-
mas de dominação com medidas que iam desde a li-
berdade vigiada até o aprisionamento de sua criativi-
dade sob o jugo de tarefas específicas e segregadas
para assegurar sua descendência, através dos filhos.
— crônica: a inexistência de eva...
Com a ascensão exponencial da mulher, os saudosos
de poder evidenciam a discrepância entre as novas
diretrizes, alcançadas a ferro e fogo pelas mulheres,
e as antigas práticas impostas à força física pelo ho-
mem. As cenas de agressões covardes e os feminicí-
dios ocorridos em todas faixas sociais consubstanci-
am que ainda vivemos na idade da pedra. O que aju-
da a explicar o sentimento do ‘homem moderno’ que
sente desprotegidos com a perda da rede de susten-
tação da antiga cultura que o apresentava como cen-
tro do Universo. O que era natural, mudou de confi-
guração.
por obdulio nuñes ortega
Para esse Adão, que proclama ter nascido, por su-
posta designação divina, com direitos especiais so-
bre Eva, será muito triste quando finalmente perce-
ber que o ser completo não surgiu do incompleto,
antes, o contrário. E que, se Deus existir, provavel-
mente É Mulher.
O HOMEM SEM QUALIDADES
Ele vem de uma nova tribo na cidade, feita de ho-
mens com currículo impecável, sem manchas, apenas
buracos. Para ele vale o dito, não o escrito. Comprova-
ção se faz no boca a boca e se duvidar, no grito. Basta
olhar seu comportamento no trânsito. Onde, após se dis-
trair no celular, mas conseguir frear, a frase antiga é
sempre revivida, “Tinha que ser mulher/idoso/quatro-
olho!”.
Ele vai a velhos lugares, procurando festas diferen-
tes, como as de sempre. Puxa o cabelo das meninas, for-
ça um beijo, exibe a chave do carro e nem nota, o olhar
das mulheres para o seu comportamento. Interpreta risos
como aceites e as segura, usando mãos como algemas.
Vira para os amigos e ainda diz, “Elas gostam!”. Todos
concordam.
JOAKIM ANTONIO
Ele leu o filósofo mais vendido, o romance da moda
e os clássicos da biblioteca. O primeiro completo, no
twitter, o segundo as frases que lhe interessam, no filme
e dos clássicos, apenas os resumos do youtube, mas de-
corou os títulos. Por onde anda, ninguém saberá que não
leu os livros citados. Mas continua impressionante dizer
tudo isso.
Ele frequenta a igreja, mesmo sem seguir nada. Mas
usa Deus a cada explicação dada. Claro que só em casa
ou onde haja alguém como ele. Nunca dirá isso sozinho,
na cara de quem seja próximo ao seu tamanho. Só grita
com mais fracos. Sente-se um gigante. Depois faz cari-
dade em épocas especiais. Para poder olhar para o lado,
sem culpa, no sinal fechado.
Ele já está cheio dessas pessoas que querem salvar o
mundo, transformando-o em vilão. Tudo é proibição
agora, lavar o carro, mais a rua e a calçada, cortar árvo-
res centenárias para arejar a visão, passar a mão naque-
las meninas oferecidas, usando roupas curtas, dizer em
alto e bom som o quanto preto e pobre não é bom.
Mas ele anda de cabeça erguida, com todos seus pre-
dicados à mostra. Só não ver quem não quer. Todos es-
tampados em sua moradia, carros e roupas caras da mo-
da. Se tiverem dúvida, busquem nas mídias sociais, há
fotos provando tudo. Bom pai, marido, filho, amante.
Não toca nesses assuntos de conflitos, não mexe com
ninguém errado e fala bem de todos, desde que não dis-
cordem dele.
... — crônica: o homem sem qualidades...
Há uma nova tribo na cidade, feita de homens perfei-
tos. Onde ele é um dos guardiões da moralidade de fa-
chada, julgando e condenando, todos que não sejam
iguais. Sempre exaltando, tudo que lhe dê mais força,
para se distanciar do frágil humano e assim, conseguir
seguir em paz.
Ele é um sujeito raro, cheio de qualidades, que só os
espelhos conseguem ver.
por joakim antonio
Dia desses, escutei uma vizinha comentar com a ou-
tra em uma vendinha perto de minha casa que “está fal-
tando homem no mercado”. Achei interessante que ela
fizesse tal colocação justamente ali, em um lugar de
consumo onde nem tudo agrada a todos. Olhei para as
prateleiras ao meu redor repletas de ovos, laranjas, ce-
bolas e imaginei que tipo de mercadoria eu encontraria
se ali se vendessem homens.
― Seu Assis? O homem hoje tá fresquinho? O
quê? Homem não serve fresco? Bom é duro e com a
casca grossa?
Segui para casa com alguns legumes em uma saco-
la e com a afirmação de minha vizinha empacotada em
minha cabeça. O que ela quis dizer realmente com sua
asseveração de cunho satírico e, por que não, filosófico?
O homem que falta no mercado é o mesmo tanto para a
minha vizinha quanto para a mulher que a escutava?
Que homem é esse que está em falta? E, por favor, não
culpem a comunidade gay pelo suposto esvaziamento
EMERSON BRAGA
das gôndolas! Afinal, representamos apenas 10% da po-
pulação masculina do mundo, isto sem falar que tam-
bém somos homens, coisa que muita gente ignorante
por aí custa a acreditar.
Os números não concordam com minha vizinha.
Afinal, como homens podem estar em falta? De acordo
com a Organização Mundial de Saúde (OMS), "na espé-
cie humana, a relação entre o nascimento de meninas e
meninos pende a favor do sexo masculino". Ou seja, to-
dos os anos nascem mais homens do que mulheres pelos
quatro cantos da Terra. No Brasil, as mulheres são maio-
ria, é um fato. Mas, em um universo de aproximada-
mente 210 milhões de brasileiros, o fato do sexo femini-
no superar o masculino em apenas 4 milhões de indiví-
duos não significa exatamente que os homens brasilei-
ros estejam em extinção. Portanto, é bem provável que
esta falsa impressão se deva a razões de cunho qualitati-
vo, e não quantitativo. Voltemos por um instante à ale-
goria do mercadinho onde homens são comercializados:
― Seu Assis, o homem de hoje é de primeira? Na-
quele dia o senhor me empurrou um cara muito gostoso,
mas que me fez um mal terrível. Ai, sei lá, me deu uma
dor no corpo inteiro, um horror! Depois senti tristeza,
culpa... O quê? Só tem o mesmo da semana passada? O
senhor jura que ele não vai me fazer mal de novo? Ah,
então é só amaciar? Entendi. Já que não tem jeito, vou
levar.
Se olharmos para o país como o mercado proposto
por minha vizinha, veremos que há homens saindo pelo
ladrão, abarrotando os estoques e sendo fabricados mas-
sivamente enquanto escrevo esta crônica. O que falta
não é homem, mas qualidade e diversidade do produto.
A masculinidade é uma construção social de regramen-
tos tão rígidos quanto absurdos, o que faz com que a
maioria dos homens deixe a linha de produção replican-
do os mesmos padrões não só no que diz respeito ao
gosto que deveria ser pessoal, mas também retuítam ar-
quétipos comportamentais potencialmente tóxicos para
... — crônica: o homem sem qualidades...
quem os leva para casa. Pouquíssimos modelos vêm
acompanhados de responsabilidade, temperança e genti-
leza, enquanto isso, sobram acessórios não só dispensá-
veis, mas prejudiciais: mansplaining, manterrupting,
gaslighting, mania de controle, ciúmes delirantes, ex-
cesso de álcool no sangue, agressividade espontânea,
braço largo e um pavio bem curtinho, tá oquei? Tam-
bém é exigência do mercado que os homens se envol-
vam com a maior quantidade possível de mulheres sem
sentir apreço ou demonstrar respeito por nenhuma delas.
Não está faltando homem no mercado. O que está fal-
tando é uma versão menos perversa de um produto que
é vendido como algo indispensável, o que é uma inver-
dade.
― Seu Assis, enquanto só tiver esse tipo de ho-
mem aí, eu não vou levar, viu? Tá! Eu sei que todo
mundo tem ou quer ter um, mas eu não preciso disso.
Homens vendem a ideia de que homem bom é aquele
que não lava a própria bunda e depois acham que a mu-
por emerson braga
lher que se recusa a comprá-la não sabe escolher. Basta
dar uma olhada na maior vitrine do mundo, o YouTube,
para percebermos a qualidade duvidosa dos homens que
são apresentados como tecnologia de ponta. De danci-
nhas pélvicas a demonstrações estúpidas de força, há bi-
zarrices para todos os gostos. Nos aplicativos e sites de
relacionamento não é diferente. Homens se constrangem
com uma naturalidade que deveria fazê-los corar de ver-
gonha, mesmo quando pensam estar sendo galantes ou
gentis. Mas, ao invés de ficarem acanhados, eles dão li-
kes na própria estupidez para naturalizar aquilo que de-
veria ser combatido.
Segundo o Blog da Cidadania, em 2018, a Central de
Atendimento à Mulher (Ligue 180) registrou uma média
de 586 denúncias mensais de tentativas de feminicídio.
Em 2017, foram 229. Não há falta de homem no merca-
do. Os números crescentes de casos de mulheres assedi-
adas, de mulheres perseguidas, de mulheres ameaçadas,
de mulheres que sofrem violência doméstica, de mulhe-
... — crônica: o homem sem qualidades...
res mantidas em cárcere privado, de mulheres estupra-
das e de mulheres assassinadas são a prova incontestá-
vel de que há muito homem no mercado. O problema é
que a vigilância sanitária está fazendo vista grossa para
um produto que, década após década, aleija, enlouquece
e mata uma quantidade ainda maior de mulheres.
Em sua obra atemporal intitulada O segundo sexo,
Simone de Beauvoir nos ensinou que “não se nasce mu-
lher, torna-se mulher”. O mesmo se aplica aos homens.
A diferença está nas relações de poder entre os sexos,
em que se tornar mulher significa dobrar-se à opressão
masculina, ao passo que se tornar homem resulta fatal-
mente na construção de um opressor do feminino.
No mercado de gente de nosso mundo globalizado,
não se encontram mais mulheres como antigamente, e
muitos homens lamentam por não poderem mais se rela-
cionar com cópias fornicáveis de suas próprias mães: re-
signadas, resilientes, silenciosas e servis. Esta nova mu-
lher que não aceita programação é a antítese deste ho-
por emerson braga
mem que se recusa a desconstruir-se.
Talvez minha vizinha não saiba, mas o homem que
está faltando no mercado, ao menos aqui no Brasil, ain-
da é um protótipo sem data definida para produção em
larga escala.
― Seu Assis, tem homem bom?
― Tem, mas acabou.
Depois de passar quase o dia inteiro em reunião,
Chagas chegou a casa sem disposição-ânimo para quei-
xumes. Queria apenas o aconchego do lar e a mesa pos-
ta. Para isso se casou. Já tinha aborrecimentos o sufici-
ente em seu ambiente de trabalho... sua casa era o seu
santuário, onde relaxar e aproveitar da companhia de
quem lhe atendesse as necessidades — a esposa —, que
insistia no falatório. Depois do segundo minuto de con-
trariedade: rugiu... desferindo um tapa grosseiro e sono-
ro contra o rosto de Amanda. Não se apiedou! Apreciou
com prazer do silêncio dentro dos olhos da esposa e
provou com alguma satisfação do horror que viu aflorar
em forma de lágrimas, que escorriam pelo rosto averme-
lhando-quente da mulher.
Seus negócios estavam no limite do sucesso total e
do fracasso retumbante. Bastava um pequeno detalhe —
casar-se com a filha de um investidor. Escolheu a que
quis nas noites da cidade, onde algumas delas caçavam
seus futuros maridos. Escolheu a moça bonita, um tanto
OBDULIO NUÑES ORTEGA
sem graça, facilmente moldável... que facilmente se
apaixonou. Trocaram alianças e seu negócio prosperou,
graças ao aporte financeiro que recebeu como presente
de casamento.
Alguns goles depois... Chagas se aproximou com
cuidado. Pediu desculpas. Implorou... em sua melhor
performance, colocou-se de joelhos em busca de perdão.
Agarrou-se às pernas de Amanda e chorou copiosamen-
te, expiando sua culpa em busca de redenção. Esposa
compreensiva que era... aceitou — certa de que tinha si-
do apenas um momento ruim a ser superado pelo casal.
Sua mãe-avó e tantas outras mulheres — compreensivas
— tinham passado pelo mesmo.
Chagas a beijou com sofreguidão, agigantando-se pa-
ra cima dela... até tê-la totalmente sob o seu domínio.
Um vampiro a sorver sua dose vital de sangue-dor-
prazer.
E, havia o depois: o corpo machucado-marcado de
Amanda e as visíveis dores demonstradas por gestos mí-
... — crônica: o homem sem qualidades...
nimos, quase inexistentes. Se sentia mais vivaz. O se-
nhor supremo. O homem da casa e o dono daquela mu-
lher, que lhe obedecia e compreendia como tinha sido
educada – por todas antes dela – a ser.
Visto de fora, o casamento dos dois era incensado co-
mo exemplar — casal jovem, bonito e bem-sucedido...
motivo de inveja por onde passavam. Amanda, um belo
espécime de fêmea... o par perfeito para ser apresentado
nas festas de gala da Associação.
Alguns títulos de Empresário do Ano depois, em uma
dessas manhãs calma... sirenes e derrapadas de carros
policiais em alta velocidade invadiram as ruas arboriza-
das do condomínio do casal.
Ela mesma chamou as viaturas e liberou a entrada
dos policiais, indicando a direção do quarto... onde en-
contraram o homem deitado na cama, com a faca crava-
da no peito. Observaram a cena e concluíram o obvio:
se tratava de um homicídio. Fizeram as perguntas de
praxe à viúva... visivelmente abatida, com os olhos fun-
por obdulio nuñes ortega
dos. Parecia em choque. Mas se comportava como uma
dama, com as pernas bem juntas, e as mãos unidas sobre
os joelhos. Era possível ver algumas marcas no corpo,
cortes no rosto e sangue na roupa.
Os policiais se entreolhavam desconfiados de uma
possível encenação. Amanda não disse palavra. Aguar-
dava a chegada de seu Advogado que chegou a tempo
de ver a cliente receber voz de prisão, ser algemada e le-
vada sob os olhares incrédulos de amigos e vizinhos —
culpados por omissão — que assistiam à passagem da
mulher, com quem dividiam um falso silêncio. Às suas
costas cresciam os comentários.
Na imprensa, o caso ganhou repercussão inaudita.
Amanda foi retratada como a “Sádica viúva do Morum-
bi” — mulher bonita, aparentemente calma... de menta-
lidade perversa – uma sociopata paulistana.
O advogado alegou legítima defesa... falou das cons-
tantes agressões sofridas pela cliente e relatadas a famí-
lia, que contemporizava a situação. O Delegado ironi-
... — crônica: o homem sem qualidades...
zou a alegação do defensor, afinal, não havia denúncia
feita pela criminosa. E todos alardeavam as qualidades
do homem. Figura respeitada e querida por todos: um
homem de família, pessoa honrada — uma vítima de
uma mulher desequilibrada.
Em seu depoimento... Amanda falou pela primeira
vez, aparentando calma descreveu o crime, que ocorreu
sem preparação. À mesa do jantar, após os proverbiais
xingamentos, o movimento da mão que empunhava a
faca afiada no corte da carne assada foi natural e rápido.
Poderia ter sido contra o próprio peito. Respirou fundo e
sorriu ao se lembrar da cena. De antemão, sabia das
consequências. Aparentando serenidade, Amanda nunca
se sentiu tão bem...
por obdulio nuñes ortega
EU, MULHER, agênera!
Vitória
Atento-me ao rubor dos dias insanos, bebericando cerva
gelada, com os bicos despontados, ouriçados e enrijeci-
dos. Vejo lá longe, algo despontar entre esquinas e aqui
dentro do que eu acho que sou, borbulha alguns mares de
indecisões e descobertas abrupta. Tudo, absolutamente
tudo ultimamente me faz indagar sobre o meu papel soci-
al e a que caixa pertenço eu, perante a esta vastidão de
percalços soturnos de uma vida liberta e ao mesmo tem-
po enclausurada. Que papéis devo interpretar, se como
detentora de carne humana, há sempre coisas por demais
a me devorar em colheres de sopa?
Fitas com lembranças passadas cruzam seus filmes por
entre meus olhos, afogando minha mente para lembran-
ças que são difíceis de apagar, até mesmo para o mais
chulo dos vermes. Estou sempre a me projetar para uma
feminilidade imposta, para um comportamento de servi-
dão, para uma interiorização urbana-materna, que cospe
em minha negra face o estrupo da alma, da genital e da
consciência feminina ao longo dos séculos. Pois bem,
quisera eu não ter lábios, “grandes ou pequenos”, não ter
culhões, “ou bolas murchas e pendidas”, não ter nada que
me prenda a um rótulo do qual nem eu mesmo enxergo.
Rá Rá Rá... e Rá novamente! Ser mulher. Eu mulher?
Mulher? Maldita palavra pincelada a cores frias, que re-
veste os berços antes mesmo da consciência do próprio
ser sobre sua existência nessa estadia mundana. Que gê-
nero é esse que tanto clama por liberdade, por igualdade,
por opção? Que gênero é esse que faz com que eu me
olhe no espelho de forma turva e me meça todinha, como
se sempre houvesse algo a me faltar? Cuspo em meu pró-
prio reflexo enquanto deixo os pelos de meu corpo fica-
rem visíveis e altos, a tal ponto de me confundirem com
primatas pré-históricos.
Mulher, palavra feminina... emprega tão bem a tantas ou-
tras que me questiono se sou um personagem de ficção,
tal como: Carie, a estranha. Jorro pelos ralos coágulos
que se assemelham a fetos todo santo mês, e mesmo as-
sim, nada me convence de que sou mais ou menos mu-
lher nesta via de mão dupla planetária.
Mediante a tudo isso, eu escrevo. Escrevo eu sobre tudo e
ao mesmo tempo sobre nada. Escrevo sobre um corpo
que é só um corpo e nada mais. Escrevo sobre a não-
feminilidade. Escrevo ao não-pertencimento. Escrevo so-
bre o tempo que passou, passa e talvez amanhã não pas-
sará... Mulher na literatura, se posso mesmo empregar as
duas coisas juntas: mulher-literatura. Tantas gerações de
zilhões de palavras escritas, pela porra de pênis de cabe-
ças tortas, enquanto dedilhavam palavras que se torna-
vam históricas, memoráveis, heroicas. E a mulher nisso
tudo? Se ao sentirmos coisas, iniciamos trabalhos de par-
to precoces e vomitamos de uma maneira nada sensível,
delicada ou dócil, mais de um zilhão de palavras potentes
e cheias de sufrágios e nunca, eu disso nunca, somos bo-
as o bastante para sermos eternas. Talvez, seja nossas te-
tas, talvez seja nossas bucetas, talvez seja nossas foguei-
ras, talvez seja nossa competência que sobressai as ex-
pectativas de uma existência: corrompida, pouco discuti-
da, pouco ou nada gozadamente úmida e prazerosa.
EU, MULHER.
Pedroso
Seja em períodos de benesse ou dias tenebrosos, somos
seres que sempre precisamos abrir caminho e provar que
estamos aqui sim e que temos nossos direitos a serem re-
conhecidos e respeitados. A todo instante, obrigadas a
provar competência e talento sofrendo críticas e julga-
mentos. Esse é nosso perfil: Mulher.
Falando através de minha ótica, o que observo, o que já li
— sim caros leitores —, sou mulher, bibliotecária e, qua-
se escritora (mas que abuso!).
Ser pensante que desde pequena observa o mundo ao re-
dor e tira as próprias conclusões. Por um bom tempo
acreditei ingenuamente que havíamos conquistados nos-
sos direitos e que nos encontrávamos num patamar con-
fortável. Ledo engano! Esqueci que a roda da história gi-
ra e que, hora estamos por cima, noutras, embaixo. O que
compromete esse maquinário, é que no nosso caso, quase
sempre a roda emperra e não sobe.
No momento em que meus dedos correm nervosos por
entre o teclado, milhares de mulheres sofrem abusos de
todo tipo. Outras, têm suas vidas tiradas de forma violen-
ta e as que sobrevivem, passam seu dia-a-dia de forma
miserável.
Chego a sentir náuseas só de pensar nisso. Mais náusea
sinto, ao olhar para meu próprio umbigo ariano e ver que,
apesar de tudo, recebi apenas respingos daquilo de as de-
mais sofreram.
Tive o privilégio de nascer num lar onde fui respeitada e
incentivada a estudar ao invés de procurar um marido pa-
ra me sustentar.
Estudei, me formei e me transformei. Para algumas mu-
lheres sou exemplo a ser seguido, por outras, recebo ape-
nas o olhar de pesar por ter “encalhado” na vida e me tor-
nado uma “solteirona” solitária.
Ando bem preocupada com o fato de constatar que talvez
as conquistas femininas tenha sido ilusão de ótica e que
— na realidade —, não tenhamos tirado os pés
(descalços) do século onze.
Enquanto mulher, almejo muito mais que reconhecimen-
to por ser feminina. É pouco. Sou gananciosa, gulosa em
meus desejos e digo isso, não me referindo aos prazeres
carnais. Minha fome é mais profunda. É da alma. Não
desejo apenas o respeito por ser mulher. Preocupo-me
com a sociedade num todo. Quero o respeito para todos.
Ando cansada de discursos vazios e pobre de argumenta-
ções inteligentes. Anseio por uma roda de conversa onde
ferva ideias e risos sinceros de gente que pleiteia o mes-
mo.
Gosto de diversidade. E digo isso, não embalada por um
modismo raso, mas por realmente acreditar que é somen-
te na mistura do diferente que criaremos um mundo mais
justo e igualitário. E digo isso sem ranço de pensamento
Marxista ou Petista como tão em moda ficou no último
ano. Não me enquadro nisso. Sou pelo ser e não pelo ter
ou parecer. Sou digna apesar de todos os meus erros e de-
feitos. Sou brasileira com muito orgulho apesar de bem
arranhado pela vergonha alheia dos últimos acontecimen-
tos.
Sou, uma sonhadora que jamais perde a chance de visua-
lizar um mundo mais bonito para todos. Sou amiga, irmã,
filha, tia, sobrinha, neta, cidadã. Sou tantas em uma. Sou
Mulher!
Uma tempestade desmente
...qualquer raciocínio!
Uma mulher não...
Tememos vento?
Só ficamos desprotegidos...
— debaixo de uma mulher
............qualquer (?)
Sou o diabo...
— fiquei quarenta dias no deserto
...a te olhar!
Ofereci pão e água
Você comeu todos os dias...
— o que eu te dava!
Ela desenha e dorme nua...
O que mais existe no mundo
Que importa?
Sabe o recibo do motel?
Tem a placa do teu carro
...sabe tua mulher?
Sabe juntar as peças... que você
Mecanizou!
Enviei o pedido de troca
(pelos correios)
...e aguardo retorno {ainda}
— do avesso da sua vida!
Todo céu é mapa
Quando cansar de voar
prometa-me que serei teu pouso
E que o Silencio de tuas Asas fará
Eco em meu Coração...
Emoção de te tocar!
Todo vento é preciso porque quando
se cansa de voar... é preciso planar
e esperar que o teu coração se aninhe
aos olhos para que nessa hora,
você se lembre dos céus azuis
que cruzou. Dos abismos em que
se atirou... e do vento que bateu
em seu rosto... e das muitas vezes em que
se lembrou de mim!
Todo céu é mapa e seu dono...
o beija-flor... domina meu quintal.
E te espera... assim como eu!
Quando se cansar de voar
serei teu aconchego...
Os poemas feitos em melodias
que dedico em tua sintonia são seus.
Pegue-os.
Espalhe via vento
para que eles dancem
com a música que dediquei a você.
Aqui, o céu é mil vezes dourado
e colhe rotinas quando a manhã surge
— esse mesmo céu
Que te deixo como herança.
Deixo-te as minhas risadas
E o pensamento amoroso
com que amanheço...
Porque minha maior riqueza
é o meu amor, que é seu.
Invasor
Chegou como se fosse dono.
Ficou.
Trouxe no bico
o canto e a sede
Nos espaços — a asa
Na liberdade — aconchego
Não havia marcação
território livre
apenas a doçura
nos plásticos das flores
Invasor, intruso
e domina a arte de conquistar
o riso.
És
A asa secreta do meu voo
o pouso que aconchega minha alma
A calma que contorna minha paz.
A solidão que acompanha meu espaço.
És.
Não sei se é ninho
se é vento — miragem nos olhos
que te alcança.
És
Corpo que habita a essência
e a esperança livre das manhãs.
Junto de ti, o espaço infinito de voar.
Quando esmurrar o próprio reflexo,
...se torna uma frustração resignada (?)
— destorcida... sob olhos de quem
nunca lhe vê.
Doerá´s por dentro de forma crônica.
...e derramará´s seus fragmentos!
Trilhara´s rastros já percorridos.
Não importa quem és...
Desde que 'esteja' nesse dorso frio e
amembrado... a destilar
alguma empatia casual.
Desbastando-lhe os ossos — a cólera.
Ululando contrapesos internos de 'forma sutil'...
Passos curtos — pesados!
Aos malditos olhos surrados do tempo.
Que lhe mortifica o espírito e a fé.
Vamos celebrar a calmaria insana...
Alguém a propagar a agonia no vácuo.
Vamos alimentar em nós, a besta humana.
Que ri à revelia dos dias sulcados na face.
Nos convém maltratar os próprios calcanhares.
Nesses descaminhos — atravessados na garganta.
Já nascemos expelidos das entranhas!
Quaisquer vestes aqui fora,
Encruecem-nos de cinza — cólera.
Orquestremos nossas horas enforcadas na ampulheta...
como a morte — a dissimular nossas migalhas
insólitas.
Vimos ontem... a mesma cama
De amanhã — a nos embriagar
Em doses massivas de realidade...
A vida fútil se apresenta
no vômito noturno
da hipocrisia
O circo fúnebre repete
o enterro medíocre
da existência
Os animais salivam
desprezíveis
suas almas podres
sobre a carne crua
Qual miséria é maior
neste ensaio de bar?
Vence
quem primeiro vende
ou compra
tentativas risíveis
de (re)humanização?
Que pecado
saber que aqui
somos todos iguais:
criadores e vítimas
de manipulação
“ “
Cerca de cinco anos depois do aparecimento de Or-pheu, Fernando Pessoa traça o horóscopo da revis-ta. Sabe, desde logo, que o dia 26 de março será simbólico e que Orpheu ficará gravado no nosso panorama literário e artístico. O “órgão dos malucos”, como era conhecida a pu-blicação nas ruas de Lisboa, tinha aberto o seu próprio caminho.
O Modernismo português fica para a História sob a égide de Orpheu, grupo e revista.
Nunca em Portugal tinha aparecido uma corrente li-
terária que mostrasse originalidade, não relativa, se-
não absoluta; isto é, que excedesse as correntes lite-
rárias contemporâneas dos outros países — escreveu
Fernando Pessoa a propósito de Orpheu.
O Ano era 2015... e eu estava em Portugal quando soube
do centenário da Revista Orpheu. Embarquei em um Com-
boio rumo a Lisboa para visitar a Casa Fernando Pessoa e
participar dos eventos comemorativos da famosa Revista
Orpheu — orquestrada por Fernando Pessoa e seu cúmpli-
ce no crime Mário de Sá-Carneiro — responsável por in-
troduzir em Portugal... o Modernismo — movimento que,
por aqui, vingou para a realidade através da controversa
Semana de Arte Moderna, em 22.
revista o r f h e u
O exemplar de número 01 surgiu para o mundo como
se não fosse um acontecimento grandioso. Parecia ser
uma publicação que sempre teve seu lugar nas mãos
de meninos que a agitavam no ar, anunciando alguma
novidade “leiam, leiam... Pessoa escreveu um novo
poema” — sem conseguir, no entanto, atrair a atenção
de ninguém.
E ainda assim... afirmam-se os homens da história
que, nenhuma das vanguardas europeias da época —
do futurismo, por muito influente que tenha sido, pas-
sando pelo movimento vorticista lançado pela revista
inglesa Blast (1914-1915), onde colaboraram Ezra
Pound e T. S. Eliot, até ao mais tardio ultraísmo espa-
nhol — conseguiu, como Orpheu, “revolucionar” uma
“literatura nacional”.
“Cá estamos sempre. Orpheu acabou. Orpheu conti-
nua”... escreveu o Homem-Pessoa sobre o fragmento
datilografado em que recusava adjetivos vários atribu-
ídos a Revista e a ele também. Para Pessoa ser moder-
nista não tinha qualquer significado... não fazia senti-
do.
“É que Orpheu, meus senhores, foi o primeiro grito
moderno que se deu em Portugal”, escreverá Almada
Negreiros no Diário de Lisboa, em Março de 1935,
num texto em que evoca os 20 anos da revista, quan-
do Sá-Carneiro já havia morrido há muito e a Pessoa
restavam poucos meses de vida.
Os artistas que participaram dos dois exemplares da Revis-
ta — os “putos” de Orpheu, como eram chamados na épo-
ca —, pertenciam cada um à escola da sua individualida-
de própria, não lhes cabendo, portanto, designação alguma
coletiva... mas, não se pode deixar de afirmar que os cola-
boradores de Orpheu foram uma espécie de escola literária
de vanguarda — modernista!
O que é certo na Orfeu, é a variedade e o dinamismo que
todo o grupo dos ‘modernistas’ representou. Nenhum da-
queles que assinou o primeiro número da revista ficou
agarrado a um ideal estético fixo e imutável — com a rela-
tiva exceção de Sá-Carneiro que só viveu mais um ano —,
todos evoluíram ou recuaram — sem deixarem de ser ‘os
de Orpheu’...
E, com o objetivo de espantar a burguesia letrada de Lis-
boa, a dupla de conspiradores chegou a ponderar incluir,
no Orpheu 3, umas Pilhérias em francês de Numa de Fi-
gueiredo — amigo de Pessoa... era um negro nascido em
Angola, formado em Letras em Lisboa. A idéia era de
que Pilhérias iria bater o recorde do cosmopolitis-
mo: preto português escrevendo em francês.
Orpheu começou a surgir em 1911, quando Pessoa passa
a sonhar com uma Revista a que pensa dar o nome de Lu-
sitânia, um projeto que evoluirá para algo sensacionalista
e com outro nome Europa — assim que conhece Sá-
Carneiro, que também tinha suas próprias idéias audacio-
sas. O nome Orpheu foi oferecido por Luís de Montal-
vor, que regressa do Brasil, trazendo na mala um projeto
particular de revista.
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro eram dois espí-
ritos diferentes e improvavelmente sintonizados que tor-
nou possível Orpheu... um mito não apenas para nós...
seus admiradores tardios, mas, também para os mais lúci-
dos de seus colaboradores.
“Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!//
Hup lá, hup lá, hup-la-hô, hup-lá!/ Hé-há! Hé-
hô! Ho-o-o-o-o!/ Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!// Ah não
ser eu toda a gente e toda a parte!” — estes
versos finais dum poema intitulado Ode Triun-
fal, assinado por um tal Álvaro de Campos, fe-
chavam o primeiro número da revista Orpheu,
que no dia 24 de março de 1915, saía dos prelos
para escandalizar os meios culturais portugue-
ses.
~
“Adorava me sentir enfiada num poço de breu,
consumida pelas sombras.
(...)
Apenas a noite tinha aquela porção inteira de escuridão — onde tudo era possível.”
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Abro o diário de bordo, dedicado a mim, e me aven-
turo na mente criativa da autora. É uma navegação
sem bússola, ela diz, pelo mar de dentro, que tam-
bém poderia ser o meu; ou o seu, que agora lê esta
resenha.
Exatamente assim é que “Meus naufrágios” aconte-
ce: um livro que se nega a ser livro porque se rees-
creve no exercício continuado e reiterado da autora
ao enxergar a si mesma sob ângulos diversos: a leito-
ra, que ousou ser escritora em “Lua de Papel” e
“Vermelho por Dentro”; a escritora, que se alimenta
— Escrever ou nao ser —
Adriana Aneli
da leitura para não sucumbir ao sal, mas se afasta do
seu barco rumo à escuridão do fundo, mergulho no
passado, origem de tudo: que personagem sou eu?
— sem saber nunca onde, e se um dia, chegará à ter-
ra firme.
Das dolorosas descobertas, nasce a realidade que en-
charca os pulmões: oxigênio com que sobrevivemos
e nos fortalecemos neste redemoinho de ideias, con-
tos, crônicas, vagalhão, ondas de recordações verda-
deiras ou ensaiadas como peça de teatro.
Assim é que a escrita vem à tona. Silenciosa, plena...
Onde apenas o sol e as aves marinhas volteiam.
CADERNO 01
Fotografias — Mariana Montrazi
Modelo — De Rosze
Fotografias — Mariana Montrazi Modelo — De Rosze
CADERNO 02
Poesia Alice Vieira
JIZNETVORTCHESTVO
I
indignado,
o poeta dirige-se a sua analista:
“não, não tiro a máscara
coincidir comigo seria um exagero
atrás do ferro não há nada
não são manias, são
desconfianças
a linguagem é inviável
a única mania é
ser sempre outro
ou violar
a diplomacia dos nomes
aquém da clínica
repetindo rituais não
aliterações fazendo contagens
depurando
a fuselagem
seu melhor paciente
e você ri
do meu amor ao espelho
às vezes acho
que você não me escuta
às vezes acho
que só gritando
(e se eu estiver caindo
e se os olhos saltarem
das órbitas?)”
II
a poesia política
não serve pra nada
não é possível ser Blók e
portanto
não há meios de saudar
os bolcheviques como signos
do apocalipse ou algum outro
acidente teológico
@alicevieira se fosse
um bom poeta se fosse
um verdadeiro poeta
ortodoxo saberia:
causa estranheza
esta abertura
ao nácar do mundo
ninguém gosta da poesia
que atira pra todos os lados
III
há um poema da adília lopes sobre
peixes brancos e pessoas
a conclusão de que as pessoas
acontecem
como peixes brancos que machucam
como peixes brancos
que não são bons
me lembro de uma amiga
que me disse
“só tenho relacionamentos
abertos
pra nunca ser traída”
se eu pudesse escolher
não seria
um peixe branco mas um lagarto
lagartos provocam
nojo e ternura
na medida certa
lagartos não se preocupam
em dispor
objetos pela casa
— principalmente não consta
que lagartos
tenham desenvolvido
manuais de sobrevivência
ao acaso
quis o destino
que os lagartos
não produzissem
literatura
IV
há vários mundos
em que sou
amigo da carol
nesse também sou
amigo
da anna-varney
(um clube underground, música eletrônica)
sou interessantíssimo
naquele descuidei os olhos
secos os juncos
mudos os pássaros
assustadíssimo
ela vem
la belle dame sans merci
— será a Morte?
a Deusa Branca?
nesse mundo
a carol não me conhece
ninguém me conhece
(então não digam
que sou
como qualquer outro
descontrolado)
V
— carol, você e seu nome
são a mesma pessoa?
e se eu fechasse a sílaba tônica?
estou sozinho num bar
(os russos têm um nome pra isso:
jiznetvortchestvo ou
vida-em-criação
mas eu provavelmente
transliterei errado)
carol, uma máscara vai às compras?
o nome em russo significa
“criar a vida” como evitar que eu pense
“que vida estou criando?”
quais os sentidos latentes
contingência ou incêndio
carol, imagina
se você brotasse
do nada e fizesse
cócegas à Via-Láctea?
CADERNO 03
Palavras Nic Cardeal
A gente tinha um nome para essa coisa que apertava
o peito e fazia doer os olhos até a lágrima cair. Dizia
-se na aldeia que era uma palavra esquisita, mas que
pronunciá-la de um certo modo até aliviava um bo-
cadinho a dor. Então a gente aprendia, desde miudi-
nho, a dizer. Depois a gente crescia — cada dia um
pouquinho —, e essa coisa ficava cada vez mais
apertada contra as paredes do peito, não cabendo
mais em si, nem em mim, nem em ti, e a gente ia
perdendo, sem querer, a vontade de dizer... Até que a
lembrança dessa coisa que apertava o peito desapa-
recia por inteiro do pensamento, e a gente ia viven-
do como se nunca tivesse sentido, como se nunca ti-
vesse pronunciado aquela palavra esquisita...
A palavra
Às vezes, até que a lembrança voltava, meio sorra-
teira, toda clandestina, fazendo a gente espreitar de-
vagarzinho por entre as frestas, para espiar aquela
coisa que nos deixava em completo desatino...
Às vezes essa coisa, que apertava o peito e fazia do-
er os olhos até a lágrima cair, acontecia de aparecer
na hora em que a gente não tinha como escapar de
sentir — bem na hora da viagem sem volta de al-
guém que resolvia partir lá pros confins dos céus on-
de criança nenhuma conseguia alcançar com a mão
— o braço era curto, a mão pequena... só a vontade
era comprida — e nem adiantava subir no banqui-
nho — não havia jeito de tocar na ponta do céu e
implorar pros anjos devolverem aquele alguém im-
portante que tinha deixado todo mundo aqui embai-
xo 'a ver navios' (ou melhor, 'a ver aviões', já que ti-
nha ido pro céu...)
Outras vezes essa coisa comprimia o peito de
um jeito tão estrangeiro, que era como se um
paraíso inteiro houvesse de ser expulso de sola-
vanco do mundo pra dar lugar a algum respiro
profundo, pois se não fosse o respiro, nem a coi-
sa suportaria comprimir o peito daquele jeito de
doer os olhos até a lágrima cair... Nessas horas
era porque viera morar por dentro, junto da coi-
sa e do peito, aquele sentimento tão bobo e tão
louco, que fazia toda criança já quase gentinha
grande de verdade, pela primeira vez sentir von-
tade de gritar de dor porque era caso da mordida
do amor — daquele jeitinho doido e doído feito
uma flecha que acerta o coração e faz a gente
passar ridículos de paixão...
Fora isso, poucas as vezes que essa coisa era de doer
a fazer a gente lembrar da palavra esquisita de di-
zer... como numa despedida de avó, ou um pai indo
embora solto no mundo sem hora de voltar, um filho
crescido dizendo 'tô indo', ou um amigo querido dei-
xando um abraço apertado como lembrança por toda
uma vida sofrida...
Era bem assim — quando a palavra esquisita era
dita, muito dita, repetida um bom par de vezes,
até que a aldeia inteira dizia em coro a palavra
esquisita, sentindo juntinha o mesmo aperto no
peito a fazer doer os olhos e a lágrima cair... Era
quando o milagre acontecia — pronunciar a pa-
lavra esquisita pela aldeia inteira virava uma es-
pécie de mantra de cura da dor nos olhos e do
aperto no peito — todos repartiam a dor de um
— e a dor virava um pão fatiado em tantos pe-
daços quanto o número de pessoas da aldeia, co-
mo se cada um mastigasse um naco da dor de
um, diluída em amor. A palavra esquisita vinha
ao mundo pra virar amor — o amor daquele jei-
tinho bonito: ninguém soltava a mão de nin-
guém numa ciranda quase sem fim de diluir a
dor até a própria dor virar 'um ninguém'.
Porque a saudade precisava ser dita, ainda que
fosse na aldeia uma palavra esquisita...
Desde criança sou afeita a consultar o ‘Aurélio’.
Gosto do seu corpo em celulose. Sempre o tive entre
as prateleiras da minha biblioteca. Prefiro-o físico,
tátil, folheado, dando sentido concreto à minha bus-
ca por sentidos.
Gostaria muito de carregar meu ‘Aurélio’ ao bolso,
na bolsa, para todos os lados. Missão quase impossí-
vel, diante do peso e do tamanho desse imenso sig-
nificador de entendimentos. Então o deixo em casa
e, numa esperançosa tentativa de conformismo, car-
rego sempre comigo um caderninho de anotações,
lápis e caneta. É que gosto de andar armada. Em ca-
so de perigo, retiro da bolsa e aponto a palavra. Nem
sempre acerto o alvo. Muitas vezes as curvas da es-
trada não me permitem a mira. Meu olhar não é
muito destro. Sou ambígua. Os pensamentos resva-
lam enquanto caminho pela avenida. E escorregam,
caem da testa. Estou sempre à procura da seta, da
palavra mais certa. Por isso gosto tanto de dicioná-
rios.
Onde a palavra?
Uma vez Clarice Lispector disse: “não se escreve
para a literatura, escreve-se para cobrir um vazio,
vencer a descontinuidade”. Talvez seja simples as-
sim: a salvo da literatura, primeiro eu escrevo. De-
pois ela chega e me reconhece, ou não — então con-
tinuo às escuras. Em busca de cobrir esse vazio, de
vencer os buracos persistentes em mim. Um vazio
que sonha a palavra. A palavra, “alta expressão do
pensamento, verbo”.
Em que lugar há de habitar a palavra, em nós? Qual
o lugar da voz? Palavras, querendo dizer o verbo do
mundo, pululam de um lado ao outro do peito, feito
ovelhas desgarradas, alvoroçadas, de lá e de cá, co-
mo se à procura de um bom lugar de se estar. De-
pois da palavra — a voz da palavra. Às vezes muda,
no silêncio do mundo. A palpitar por dentro, riscan-
do as superfícies de dentro, fazendo sangrar em inci-
sões doloridas o que se tem como alma a se agarrar
à concretude do mundo. De sôfrego, de ímpeto, im-
pávido colosso. O lugar da minha voz. O lugar do
silêncio na minha voz. Meu espaço (mulher) de de-
marcar parâmetros, limites, liberdade de ser e
acontecer (mulher). A escrever, circunscrever
meu corpo (mulher) no mundo. No discurso sig-
nificativo, significante, num contínuo aponta-
mento — o risco, sempre temporário, quase efê-
mero — a marcar as beiras, arredores, o centro
mais profundo. Pois ainda que por fora tudo seja
sempre mais vasto, nossos lugares mais navegá-
veis de voz são sempre internos.
Por isso escrevo. Para completar meus vazios,
como em busca de ligar os pontos. Em tentati-
vas muitas vezes insanas de desfazer os nós. Por
isso venero meu ‘Aurélio’: meu salva-vidas em
experiências de quase-morte da garganta, ten-
tando, boca a boca, a reanimação cardiorrespira-
tória da palavra escrita.
Sou a favor do porte de poesia. Carregá-la desde
a semente, até que a palavra infle, insufle, per-
corra o caminho do ventre, saia do ninho, alce
voo em direção ao céu do meu/teu/nosso cora-
ção. Ali aportada a poesia, que ela absorva a
empatia, a boemia, a leveza ou a entropia, a ex-
pressão, a expansão, a exuberância da própria
vida. E, quando pronta a atingir o alvo, aponte a
poesia na direção da alma! Não espere nenhuma
certeza íntima para o porte de poesia. A poesia
gosta mesmo é se adormecer envolta na dúvida
ingrata do inesperado ato da ausência, quando
sai do mundo por instantes únicos a consciência
concreta da existência.
(A)PORTE de poesia
Sou a favor do porte de palavras gastas. Apenas pa-
lavras rotas dizem do inesperado rasgo na alma can-
sada. É nesse rasgo que adormece, aflita, a sensação
dolorosa dos abismos que precisam ser ditos, quan-
do transmutados em superfícies 'andáveis' — sobre-
viventes heroicos na planura visível dos horizontes.
Pois, de que será feita a poesia, senão da veia aorta
que nos conduz ao peito — do lado esquerdo de
dentro — na emoção da palavra gasta, apontada so-
bre o alvo a flecha? Depois do alvo, da flecha, por
certo que estarão felizes os operadores de sonhos a
recortar palavras — exaustas — em algodão: poesia,
qu'inda flutua, aportada ao cais da alma...
Finalmente então, depois desse tempo cinza, ha-
verá um lugar no refazer do amor. N'alguma es-
trada aberta, onde plantações extensas de espe-
ranças, por ordem dos poetas (esses operadores
de sonhos a portar palavras!), serão colhidas aos
montes em novas eras. Guardaremos nossas es-
peranças em confortáveis celeiros de estocar pa-
lavras — poesia qu'inda flutua — por entre o al-
vo e a flecha. Tudo será refeito. Porque o porte
de poesia é do meu/teu/nosso direito — do lado
esquerdo do peito.
f i m
...