Otto Kirchheimer entre passado e presente - SciELO · Kirchheimer e o passado: nacional-socialismo...

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Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 1, 2018, p. 85-112. Douglas Carvalho Ribeiro, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira DOI: 10.1590/2179-8966/2017/24970| ISSN: 2179-8966 85 Otto Kirchheimer entre passado e presente Otto Kirchheimer between past and present Douglas Carvalho Ribeiro Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Email: [email protected] Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Email: [email protected] Artigo recebido em 5/08/2016 e aceito em 10/02/2017. This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

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OttoKirchheimerentrepassadoepresenteOttoKirchheimerbetweenpastandpresent

DouglasCarvalhoRibeiro

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Email:[email protected]

MarceloAndradeCattonideOliveira

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Resumo

O presente trabalhopretende abordar de formapanorâmicao pensamentodo jurista

Otto Kirchheimer. Em um primeiro momento, busca-se relacionar o pensamento do

juristacomatradiçãodaTeoriaCríticadaSociedade–conhecidatambémcomo“Escola

deFrankfurt” -, cuja influênciaémarcanteao longode todasuaproduçãoacadêmica.

Posteriormente,ofocoresidiránacríticaqueKirchheimerfazaodireitopenalnacional-

socialista enquanto instrumento de eliminação dos adversários políticos. Por fim, a

partir da tipologia construída por Kirchheimer no texto “Justiça Política”, serão

abordadas possíveis contribuições do pensamento do jurista alemão ao contexto

jurídicoatual.

Palavras-chaves:Justiçapolítica;Nacional-socialismo;Teoriacrítica.

Abstract

Thiswork aims toprovideanoverviewof the juristic thinkingofOttoKirchheimer.At

first,willbetriedtorelateKirchheimer’sthoughtwiththetraditionofCriticalTheoryof

Society - known as "Frankfurt School" - whose influence is striking throughout his

academicproduction.Later,thefocuswilllieinthecriticthatKirchheimermadeagainst

theNational Socialist and his criminal law as instrument related to the elimination of

political opponents. Finally, considering the typology built by Kirchheimer in the text

"Political Justice," will be discussed the possible contributions of his thinking in the

currentlegalcontext.

Keywords:Criticaltheory;National-socialism;Politicaljustice.

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1.Introdução

OttoKirchheimer senotabilizounoâmbitododireitopenalbrasileiropelapublicação,

juntamentecomGeorgRusche,daobraPenaeEstruturaSocial,ondeambosdefendem

a tese de que as diversas formas de reação punitiva do Estado ao longo da história

possuemsuarazãodesernasvariaçõesocorridasnaestruturasocial–teseestaquese

vincula fortemente ao paradigma produtivista marxiano1, ou seja, que as formas de

consciênciapossuemestreitarelaçãocomascondiçõesmateriaisdasociedade2.

Poucoenfoqueédado,contudo,aobradeKirchheimercomoumtodo,sejaem

relaçãoaostextosqueseremetemàsituaçãododireitoàépocadonacional-socialismo

ouatemáticamaisamplada justiçapolítica,quandoformas jurídicassãoutilizadasno

sentidodaneutralizaçãododissensopolítico.Opresente trabalho temcomoobjetivo

umaapresentaçãopanorâmicadopensamentodeOttoKirchheimer, abordando tanto

as críticas que Kirchheimer faz contemporaneamente ao regime hitlerista quanto as

possíveiscontribuiçõesqueateoriadojuristafrankfurtianopoderiaforneceraodebate

sobre os crimes políticos no âmbito do direito penal contemporâneo – em especial o

direitopenalcontemporâneobrasileiro.

Otrabalhosedivide,portantoemtrêspartes.Emumprimeiromomento,busca-

se relacionar o pensamento de Otto Kirchheimer com a tradição da Teoria Crítica da

Sociedade–conhecidatambémcomo“EscoladeFrankfurt”-,cujainfluênciaémarcante

aolongodetodasuaproduçãoacadêmica.Posteriormente,ofocoresidiránacríticaque

Kirchheimerfazaodireitopenalnacional-socialista.Odireitopenalfoiuminstrumento

bastante utilizado pelo regime para fins persecutórios, o que ensejou por um lado, a

construção de um aparato teórico legitimador da prática criminal dos nacional-

socialistas e, por outro, o surgimento diversas críticas, que, independentemente da

censuraedosriscosdetalatividade,ousavamemdenunciaroretrocessodoregimeno

que diz respeito às garantias jurídicas típicas do Estado de Direito. Dois textos desse

períodomerecemdestaque:“EstruturaEstataleoDireitonoTerceiroReich”,publicado

sobopseudônimoDr.HermannSeitzem1935,e“DireitoPenalnaAlemanhanacional-

socialista”,disponibilizadooriginalmentenoanode1940noperiódicodelínguainglesa

1 TIETZ, Udo. Die Gesellschaftsauffassung In: BLUHM, Harald (Hrsg.). Die deutsche Ideologie. Berlin:AkadernieVerlag,2010,p.61.2ENGELS,Friedrich;MARX,Karl.Aideologiaalemã.SãoPaulo:Boitempo,2007,p.93.

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Studies inPhilosophyandSoicalScience.Emambosos textos,Kirchheimer sevaledos

pressupostosdateoriacríticaafimdeefetuarumdiagnósticodasituaçãopresentedo

direitopenaldanovaAlemanhaqueseconstróiemtornodafiguradoFührer.Porfim,a

partir da tipologia construída por Kirchheimer no texto “Justiça Política”, serão

abordadas possíveis contribuições do pensamento do jurista alemão ao contexto

jurídicoatual.

2.MatrizesFundamentaisdaTeoriaCrítica

ComaexpressãoTeoriaCríticadenotamosaquiatradiçãofilosóficaqueseiniciacoma

criação do Institut für Sozialforschung em 1922 e se estende até os dias atuais, com

Jürgen Habermas, Axel Honneth e Rainer Forst. A utilização de tal alcunha em

detrimento da famosa expressão “Escola de Frankfurt” se dá pelo fato de que tais

autorespossuemmaisdiferençasdoquesemelhançasentresi,nãohavendoumintuito

de continuidade entre eles no interior da tradição. Contudo, duas características são

marcantesno interiorde tal correntedepensamento.Vejamosdetidamente cadaum

dessespontos:

a) Capitalismo enquanto causa patologizante: desde a criação do Institut für

Sozialforschung em 1922 e, consequentemente, a consolidação daquilo que

entendemos hoje como teoria crítica, tem-se que os esforços dos intelectuais que se

filiaramaessatradiçãosedirigiramnosentidoderepensarasociedadecapitalista,seja

nosentidodabuscadosmotivosdofracassodarevoluçãosocialistaemsologermânico

oudepensarasalternativasemancipatóriasperanteaumcontextomarcadopelavitória

docapitalismopós-GuerraFriaesuaconsequentetransmutação,apartirdaapropriação

dosargumentosqueseopunhamaestes,paraochamadocapitalismoemrede.Issofaz

comquesejapossívelvislumbrarumeloqueseiniciaemHegel–paraquemaeticidade

concebidada enquanto expressão das relações burguesas é marcada pelo estado de

necessidade [Notstaat]3, e vai atéHonneth, passando porMarx,Horkheimer, Adorno,

MarcuseeHabermas.Todososautoresmencionados tememcomumumaassociação

3HEGEL,GeorgWilhelm Friedrich.Grundlinen der Philosophie des Rechts. Frankfurt amMain: Suhrkamp,1989,p.96.

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entre capitalismo – ou um de seus aspectos, como o chamado direito burguês – e

patologia social, que, de certo modo, afeta o próprio processo de subjetivização.

Expressões como “a busca da vida verdadeira no falso”, “homem unidimensional” ou

“colonização do mundo da vida” remetem, em última análise, a impossibilidade dos

indivíduos alcançaremo ideal de vida boa como resultado de processos extrínsecos à

própriaconsciência4.

b)Conhecimentoeemancipação:ateoriacríticaoperasegundoarealizaçãode

um diagnóstico de época da sociedade presente, no sentido de apontar os déficits

emancipatórios das práticas societárias atuais. Tal diagnóstico não se presta a uma

análisemeramentedescritivada sociedade, jáqueestacaracterística–autilizaçãode

estratégias descontextualizadas de análise – seria o que diferenciaria, segundo Max

Horkheimer,ateoriatradicionaldachamadateoriacrítica5.Oprojetoteóriconoseiodo

pensamentocríticoserelacionaria,portanto,aoconceitomarxianode“práxis6”.

Remontaaopensamentohegelianooreconhecimentodequeomundoobjetivo,

e,consequentemente,adivisãonaturalizadaentresujeito-objetoseremete,emúltima

instância,àprópriasubjetividade,umavezqueopercursodoespíritosedánosentido

doprocessodeformaçãodaconsciênciaemdireçãoaestepontonoqualpensareser

podem reconciliar-se; contudo, o reconhecimento do mundo objetivo como produto

humano, apesar de um passo necessário, não é o suficiente para delegar um poder

transformadoràteoria.FoigraçasaMarx,apartirdacunhagemdoconceitodepráxis

revolucionária, que a teoria se empodera com a capacidade de transformar omundo

real, não se livrando, contudo, das influências conformativas oriundas da própria

realidadequevisatransformar7.CasooautordeOCapitalbuscasseapenasdescrevero

mundo como ele é, esta descrição consistiria apenas na narrativa acerca do

funcionamento dos diversos processos que ocorrem no âmbito da sociedade civil. A

teoria presume-se, então, como detentora de um caráter transformador e tal

transformaçãotemcomofinalidadefazerdomundoalgomaispróximodaquiloqueseria4 ROSA, Hartmut. “Kritik der Zeitverhältnisse. Beschleunigung und Entfremdung als Schlüsselbegriffe derSozialkritik” in JAEGGI, Rahel;WESCHE, Tilo (hrsg.).Was ist Kritik?.Frankfurt amMain: SuhrkampVerlag,2013,p.26.5HORKHEIMER,Max.Teoría tradicionaly teoríacrítica In:______.Teoríacrítica.BuenosAires:Amorrotu,2003,p,246-247.6 ENGELS, Friedrich;MARX,Karl.A ideologiaalemã, op. cit., p.535: “Os filósofosapenas interpretaramomundodediferentesmaneiras;oqueimportaétransformá-lo”.7 Ibidem,p534:“Todavidasocialéessencialmenteprática.Todososmistériosqueconduzemateoriaaomisticismoencontramsuasoluçãoracionalnapráticahumanaenacompreensãodessaprática.

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o seu conceito, buscando realizar a emancipação possível, a partir do diagnóstico

realizadoemumprimeiromomento,e sediferindo,nessesentido, tantodoutopismo

quantodopositivismo.

Odiagnósticoéelaborado,oprognósticoprescrito-masaemancipaçãonãose

realiza.Issotornaaadoçãodeumateoriadobloqueioumelementocentralnoâmbito

datradiçãocrítica.Anovidadedo“bloqueio”naTeoriaCríticaremontaaosescritosde

Friedrich Pollock, ocasionando uma ruptura brusca no seio do projeto do chamado

primeiro modelo daquela tradição. Pode-se dizer que tal empreendimento teórico,

chamadodematerialismointerdisciplinar,pretendia,emúltimainstância,refletiracerca

do fracasso da revolução socialista em solo alemão, a partir de uma perspectiva ao

mesmotempomarxistaemultidisciplinar.AcontribuiçãodePollocksedánosentidoda

apreensãodamudançaestruturalocorridanocapitalismonoqualMarxsebaseiapara

afirmarocolapsodosistemade trocasda livre-concorrência: se,noâmbitodaanálise

marxiana,omercadoexerciaafunçãocoordenativadaproduçãoedistribuição,i.e.,da

alocação de bens de forma geral, na fase posterior – o capitalismo de Estado – a

concorrênciaédiminuídaaníveisdrásticos,pormeiode instrumentos regulativosque

proporcionam um controle efetivo da economia por parte do Estado8. A mudança

estrutural do capitalismo exige o abandono do materialismo interdisciplinar e, nesse

sentido,aestruturaçãodeumnovodiagnósticodeépoca.Ateoriacrítica,nessesentido,

se utiliza de critérios críticos imanentes à sociedade na medida em que as próprias

práticas sociais são expressão de um processo de racionalização social e cultural. O

sentidonormativodeleséabertoenãose reduzaomeroexistente -maspodehaver

situações de inércia, bloqueio e retrocesso. Todavia, se acredita na possibilidade de

resgatediscursivo,aprendizadoeautocorreção9.

3.Kirchheimereopassado:nacional-socialismoedireitopenal

São as várias mudanças operadas no âmbito da tradição crítica que conformam o

pensamentodeOttoKirchheimernadécadade1930.Merecedestaqueo fatodeque

8POLLOCK,Friedrich.DiegegenwartigeLagedesKapitalismusunddieAussichteneinerplanwirtschaftlichenNeuordnungIn:______.StadiendesKapitalismus.Munique:VerlagC.H.Beck,1975,p.20-39.9Cf.HONNETH,Axel.PathologiesofReason:onthelegacyofcriticaltheory.NewYork:ColumbiaUniversityPress,2009,p.43-53.

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jurista deixa, já no ano de 1935, algumas pistas acerca da influência dos escritos de

Pollocksobreamudançaestruturaldocapitalismo–deconcorrencialparamonopolista:

Esse Estado Legiferante vazio [Dieser hohle Gesetzstaat], quereconheciaaexistênciadeobrigaçõesrecíprocasentrecidadãoseoEstado, foi superado pela versão nacional-socialista do Estado deDireito [...]. A transição do capitalismo competitivo para a formamonopolista significa que a necessidade de tais regras jurídicasdesaparece. Grandes firmas capitalistas – como bancos oumonopólios – já há muito tempo não dependem dos ritos dostribunais no que diz respeito à condução de seus negócios com osmembros de outros estratos sociais. Estas conseguiram dominar ogoverno,umavezquepodemanunciarsimplesmenteumaproibiçãono empréstimo ou argumentar que garantem o emprego de umexército de lacaios. Os governos então satisfazem as necessidadesparticularesdessas firmaspormeiode regulamentaçõesedecretosdeemergência10.

O próprio Kirchheimer já havia notado, no ano de 1933, uma mudança da

função da lei, à ocasião da discussão comCarl Schmitt sobre a questão da legalidade

enquanto legitimidade. O que motivou o debate foi entrave criado por uma

representaçãoparlamentarpulverizadae,emparte,anti-sistêmica,nofinaldaRepública

de Weimar. Com isso, o chanceler Heinrich Brüning passou a efetuar suas ações de

governocombasenoartigo48daConstituiçãodoReich11-adecretaçãodoestadode

emergência. InteressanteressaltarqueBrüningsevaledoestadodeexceçãonãopara

afastar uma situação emergencial que se apresenta de forma pontual perante a cena

políticadaRepública,massimcomotécnicadegoverno,valendo-sedetalinstitutopor

aproximadamenteumanoemeio12.

10KIRCHHEIMER,Otto.StaatsgefügeundRechtdesDrittenReichesIn:______.VonderWeimarerRepublikzumFaschismus:DieAuflösungderdemokratischenRechtsordnung.FrankfurtamMain:SuhrkampVerlag,1976,p.152-153(traduçãolivre).11 Emsua redação constava:Art. 48: (1)QuandoumEstadonão cumpre comdeveresestabelecidospelaConstituiçãodoReichouporLeidoReich,podeoPresidentedoReichforçartalcumprimentocomauxíliodas forças armadas; (2) Se a segurança publica e ordem se encontrem seriamente ameaçadas ouperturbadasnoâmbitodoReichalemão,podeoPresidentedoReichtomarasmedidasnecessáriasparaarestauração destas, intervindo, se for o caso, com o auxílio das forças armadas. Para isso, pode elesuspenderemtodoouemparte,osdireitos fundamentaisexpressosnosartigos114,115,117,118,123,124 e 153; (3) O presidente do Reich deve informar ao Reichstag sem delongas de todas as medidastomadas com fundamento nos parágrafos 1 e 2 do presente artigo. Asmedidas podem ser revogadas apedido do Reichstag; (4) Na eminência do perigo, pode o governo estadual, no que diz respeito ao seupróprio território, adotar as medidas expressas no parágrafo 2. Essas medidas podem ser revogadas apedidodoPresidentedoReichoudoReichstag;(5)LeidoReichregularáopresenteartigo).12WEITZ,Eric.D..WeimarGermany:PromiseandTragedy.PrincetoneOxford:PrincetonUniversityPress,2007,p.351.

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Como fimdaRepúblicadeWeimar, contudo,OttoKirchheimerpercebeoutro

fenômenoquesurgenanovaAlemanhahitlerista:autilizaçãodaformadodireitoparaa

eliminação de adversários políticos, o que acarreta em uma profunda alteração do

sistema de justiça criminal alemão13. Concomitante a esse processo, surgem diversos

constructos teóricos que atuaram suporte legitimatório à práxis penal, como por

exemplo,ochamado“DireitoPenalVolitivo”[Willensstrafrecht],cujoprincipalexpoente

foi secretário de Estado Roland Freisler. A teoria de Fresiler, segundo Kirrcheimer, foi

adotada de forma recorrente no início do regime nacional-socialista e se baseava na

afirmaçãodavontadedo indivíduocometedordo ilícitoemdetrimentodoselementos

objetivosdaação–oquetornoubastantetênueadistinçãoentrecrimetentadoecrime

consumado14.

Contudo,ateoriado“DireitoPenalVolitivo”foigradualmenteabandonada,uma

vezqueofocodoregimepassouasernãoapuniçãodeatosconsumados,massimas

ações que supostamente colocariam em perigo a comunidade, demonstrara as

legislaçõesdoanode1933ligadasàcriminalizaçãodeumasériedeatospreparatórios

independentedodanocausado.Soma-seaissoofatodequeadoutrina,poracentuaro

carátervolitivodocometedordoinjusto,encontravaseverasdificuldadesperantecasos

de negligência e de crimes praticados por parcial ou totalmente inimputáveis15. Dos

escombrosda teoriadominantes,duas correntespassam,então,adisputarodomínio

da produção do saber penal chancelado ideologicamente: a Escola de Kiel (escola

fenomenológica)eseusadversários,emespecialosmembrosdoReichsgericht.

NoquedizrespeitoaGeorgDahmeseusseguidoresdeKiel,OttoKirchheimer

afirma que a corrente retira sua inspiração teórica no pensamento de Carl Schmitt,

especificamente na sua crítica ao normativismo como faceta típica do fenômeno

denotado de Liberalismo16. Daí resulta que, para os membros da Escola de Kiel, as

garantias penais típicas do Estado de Direito ocidental eram apenas fraseologias

pertencentes a uma época marcada pelo capitalismo concorrencial, supostamente

superada pela chegada de Hitler ao poder. Os termos “intuição” e “essência” são

13KIRCHHEIMER,Otto.StaatsgefügeundRechtdesDrittenReiches,op.cit,p.153.14KIRCHHEIMER,Otto.DasStrafrechtimnationalsozialistischenDeutschland.In:______.VonderWeimarerRepublikzumFaschismus:DieAuflösungderdemokratischenRechtsordnung.FrankfurtamMain:SuhrkampVerlag,1976,p186.15Ibidem,p.197.16 Sobre a questão do liberalismo em Carl Schmitt, ver FERREIRA, Bernardo. O risco do político. BeloHorizonte:EditoraUFMG,2004.

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introduzidos como parte do método de desvelamento de uma verdade material. Tal

concepçãonãoseriaumidealabstrato,masse identificariacomos interessesvitaisdo

povoalemão,relacionadosemúltimainstância,aumaordemconcretaconsistenteem

“certas instituições e organizações que transcendem a mera esfera pessoal17”. A

persecuçãodoinjustopenalnãodeveseateramerasclassificaçõestipológicas,massim

desvelaracontradiçãoentreaessênciadocriminosoeoespíritodopovoalemão:“Uma

pessoa que toma para si objeto móvel de outrem não torna a si mesmo

necessariamente um criminoso. Somente as especificidades da natureza de sua

personalidadepodemfazerdeleisso[grifonosso]18”,diráDahm.

Certamenteamudançadefocodaaçãoparaapersonalidaderefletiaaprópria

atividadedo legisladorpenalordinário, comosevê,porexemplo,naediçãoda Leide

ImunidadePenal[Straffreiheitsgesetz]de07deagostode1934,quepreviaemseutexto

anão-incidênciapenalquandooatopraticadopeloagenteindicar“umexcessodezelo

nalutapelomovimentonacional-socialista19”.Comooutroexemplodainfluênciamútua

entre teoria e prática, tem-se a alteração no ano de 1935 do § 2 do Strafgesetzbuch

(StGB), permitindo, em suma, autilizaçãodaanalogiapara apenalizaçãode condutas

anteriormentenãotipificadas:

Será apenado aquele que cometa uma ação que seja legalmentedeclaradailícitaouque,segundoaideiafundantedanormapenaleosentimentosadiodopovo,mereçapunição.Casooatonãoencontrecorrespondência imediata em uma norma penal, então a penacorrespondente será aquela da norma cuja ideia fundante melhorcorrespondeàaçãopraticada20(grifonosso).

Da citação anterior merece destaque a menção a um “sentimento sadio do

povo” [gesundes Volksempfinden]. Tal ideia possui íntima relação com a teoria

schmittiana,especificamentenoquedizrespeitoàideiaoutroramencionadadeordem

17SCHMITT,Carl.PolitischeTheologie.Berlin:Duncker&Humblot,1993,p.8.18 DAHM, Georg. Verbrechen und Tatbestand apud KIRCHHEIMER, OTTO. Das Strafrecht imnationalsozialistischenDeutschland,op.cit.,p.188:“EinePerson,dieeinebewigliche, ihrnichtgehörendeSachewegnehme,mache sichdamit nicht unbedingt zumDieb; nur das innereWesender Persönlichkeitkönnesiedazumachen“.19KIRCHHEIMER,Otto.StaatsgefügeundRechtdesDrittenReiches,op.cit,p.164:„sofernsieimÜbereiferdesKampfesfürdienationalsozialistischeBewegungbegangenwurden“20§2.doStrafgesetzbuch(StGB)alteradopela„GesetzzurÄnderungdesStrafgesetzbuchs“em28dejunhode 1935: „Bestraft wird, wer eine Tat begeht, die das Gesetz für strafbar erklärt oder die nach demGrundgedanken eines Strafgesetzes und nach gesundemVolksempfinden Bestrafung verdient. Findet aufdie Tat kein bestimmtes Strafgesetz unmittelbar Anwendung, sowird die Tat nach demGesetz bestraft,dessenGrundgedankeaufsieambestenzutrifft“.

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concreta. Sobre a aplicação desse parágrafo, Kirchheimer afirma que a analogia em

matéria penal era bastante difundida principalmente nas instâncias jurisdicionais

inferiores, sendoquedoiseramosparâmetrosutilizadosparaadeterminaçãodoque

seria tal “sentimento”: a) os pronunciamentos públicos dos líderes nacionais; b) os

standardsnormativosenvolvendotantoaformaçãoquantooambientedetrabalhodos

funcionáriosdosistemadejustiça.Concluieleque,longederepresentaraconcretização

doespíritodopovonomundoefetivo,talconstructoteóricoserefereimediatamentea

uma interpretação autêntica feita pela burocracia executiva e, de forma mediata, à

interpretaçãoefetuadapelaburocraciajudicante21.

Nemtodosossetoresdoregimedemonstravamsimpatiaaosdesenvolvimentos

realizados pela Escola de Kiel. Como aponta Kirchheimer, a utilização do raciocínio

analógicoquemencionao§2doStGBencontroupoucorespaldonaprática judicante

do Reichsgericht. No que diz respeito aos casos de falsas acusações anônimas, por

exemplo, aquele tribunal se posicionou sempre contra a punição do imputado, na

medidaemqueolegisladorseposicionouexpressamentedeformacontráriaàaplicação

de sanção nestes casos. Em apenas duas situações significativas o tribunal deu aval à

persecuçãoenvolvendofatooutroranãotipificado:a)noscasosdereceptaçãodebens

roubados,paraenglobartambémaparticipaçãonorouboeoaferimentodelucrocom

osprodutosdoilícito;b)nocasodepeculato,demodoqueosfuncionáriosdopartido

ficamtambémsujeitosàspuniçõesprevistaspelanormadestecrime.Pensar-se-ia,em

umprimeiromomento,queaatuaçãodessainstânciajudicantesuperiorsedirecionaria

a favordasgarantias individuaisestabelecidaspeloStGBdesdeasuapromulgaçãoem

1871,umavezqueotribunalprimavaporumainterpretação“tendenteàmanutenção

da racionalidade no âmbito do direito penal”, relacionada, em última instância, à

elevaçãodoCódigoCriminalaopostodefonteporexcelênciadajurisdiçãocriminal.O

queseviufoiumacampanhaporpartedotribunalnosentidodaampliaçãodavalidade

do texto do código penal para estrangeiros domiciliados fora do território alemão,

principalmente no que se refere às legislações raciais elaboradas pelo regime.

Importante registrar que a própria atuação do tribunal foi tolhida, tanto pelas leis de

organizaçãojudiciáriaapartirdoanode1937,quantopelarestriçãoacercadodireitode

21KIRCHHEIMER,Otto.DasStrafrechtimnationalsozialistischenDeutschland,op.cit.,p191.

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recorrer, o que impediria, certamente, uma hipotética atuação pro-garantias do

Reichsgericht.

Nesse ponto, cabe-nos indagar o seguinte: como pode uma corrente penal-

legalista desconsiderar elementos básicos da teoria criminal consagrada pelo

pensamentoocidental desdeos escritosdeMontesquieueBeccaria?A soluçãode tal

questão parece se ligar à junção entreDireito eMoral – citada por Kirchheimer – no

âmbitodonacional-socialismoeaconsequenteguinadadeumEstadoautoritáriopara

uma comunidade racial22. Em relação ao primeiro ponto, Kirchheimer assevera que a

manutenção da distinção entre a moralidade e o jurídico foi a principal bandeira do

liberalismopolíticoclássico. Issose justificanamedidaemquea ideiade liberdadeno

paradigma liberal deEstado compreende tantoumâmbitode ingerênciado indivíduo

perante o Estado e terceiros, quanto a possibilidade na participação do sistema de

trocasmediadopela ideiadepersonalidade jurídica, comobemexplicitouMarxemO

capital23.

O nacional-socialismo se via comoummovimento revolucionário e se opunha

não somente aos comunistas, mas também ao liberalismo, especificamente na

concepção da atomização do indivíduo e a consequente desvalorização da função da

comunidade. A dissolução da racionalidade e da previsibilidade da norma jurídica

enquantocondiçãodepossibilidadedeparticipaçãodosindivíduosnomercadosetorna

umadasbandeirasdos simpatizantesdo regime.Cumpre ressaltar aqui, contudo,que

tal dissolução não prescinde da forma jurídica e isso se exemplifica nas Leis de

Nürnberg,elaboradasàépocado7ºEncontroAnualdoPartidoNacional-Socialistados

Trabalhadores Alemães [7. Reichsparteistag der NSDAP], realizado no ano de 1935.

Nosso interesse repousa especificamente na “Lei para a defesa do sangue e honra

alemãs” [Gesetz zum Schutze des deutschen Blutes und der deutschen Ehre], também

chamada de “Lei de proteção do sangue” [Blutschutzgesetz], que estabelecia a

proibição,dentreoutrascoisas,decasamentosentrealemãesejudeuseaconsequente

miscigenaçãodosangueariano.Aadmissãodeumauniãomatrimonialsedavaapartir

daobservânciadaárvoregenealógicadosindivíduosenvolvidoseaclassificaçãodestes

em uma das seguintes categorias: “alemão puro-sangue”, “mestiço de 1º grau”,

22Ibidem,p.187.23MARX,Karl.OCapital,VolumeI.TraduçãoporRegisBarbosaeFlávioR.KotheSãoPaulo:NovaCultural,1988,p.79.

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“mestiçode2ºgrau”e“judeu”.Direitoemoralsefundemnacomunidaderacialalemã

na medida em que a forma do direito não mais é pensada como garantia da quase

máxima abstenção do indivíduo dos negócios públicos, mas como afirmação de uma

forma determinada de homogeneidade sanguíneo-cultural. Àqueles que não se

adequassem aos ideais do povo alemão, pensados em uma relação identitária com a

ideologiadopartidorestavasomenteaexclusãosumária24.

O direito penal foi o ramo jurídico quemais sofreu influência domovimento

nacional-socialistae,independentementedacorrentehermenêuticaescolhida,oquese

viunapráticafoium“abandonodopostuladonullapoenasinelegeeasubstituiçãode

umpostuladode justiçamaterial (legitimidade)porumameradeduçãoformalapartir

da lei (legalidade)25”. Com base nesses pressupostos, o que se viu foi um sistema de

justiçacriminalmarcado,deformageral,pelasseguintescaracterísticas:

a)Retroatividadedaleipenal:adefesadaanterioridadedaleipenalfoiumadas

principaisbandeirasdePaulJohannAnselmFeuerbachàépocadaelaboraçãodoCódigo

Criminal da Baviera em 181326, o que o levou a cunhar a famosa expressão “nullum

crimen, nulla poenasine praevia lege poenali”. Importante é destacar o papel da

anterioridadenaformulaçãodeFeuerbach,umavezqueameraexistênciadaleipenal

incidentesobrefatosanterioresàsuaediçãonãosatisfaria,segundoele,anecessidade

levantadaporImmanuelKantacercadatensãoentrecoaçãoeliberdadenoâmbitodo

direito moderno27. O regime nacional-socialista ignorou tal garantia e condenou, por

exemplo,diversaspessoas jáapenadasàmorte28, incluindoofamosocasoenvolvendo

Marinus van der Lubbe, acusado de atear fogo no edifício sede do Reichstag na

madrugadadodia27defevereirode1933–antes,portanto,dachegadadefinitivados

nazistasaopoder.

b) Perdadaautonomia judiciária: o conceito de constitucionalismo cunhado à

época da Revolução Americana pressupunha uma estrita limitação dos poderes

constituídos e a consequente existência de um âmbito de ingerência inerente a cada

24NEUMANN,Franz.Behemoth:Thestructureandpracticeofnationalsocialism(1933-1944).Chicago:IvanR.Dee,2009,p.98etseq.25KIRCHHEIMER,Otto.DasStrafrechtimnationalsozialistischenDeutschland,op.cit.,p.188.26VORMBAUM,Thomas(Hrsg.).ModernedeutscheStrafrechtsdenker.Heidelberg:SpringerVerlag,2011,p.49.27HABERMAS,Jürgen.ElvínculointernoentreEstadodeDerechoyDemocracia.In:______.Lainclusióndelotro:estudiosdeteoríapolítica.Barcelona:Paidós,1999,p.249.28KIRCHHEIMER,Otto.StaatsgefügeundRechtdesDrittenReiches,op.cit,p.159-160.

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poder,frutodainfluênciadiretadateoriadeMontesquieu29edosautoresdosFederalist

papers - JamesMadison,JohnJayAlexanderHamilton.Emrelaçãoà independênciado

poder judiciário, este último chega a afirmar que “a independência rigorosa dos

tribunais de justiça é particularmente essencial emumaConstituição [...] que limita a

algunsrespeitosaautoridadelegislativa,proibindo-lhe,porexemplo,fazerpassarbilisof

attainder e decretos de prescrição, leis retroativas ou coisas semelhantes30”. A

independência dos poderes constituídos é, portanto, um pressuposto básico do

constitucionalismoenquantoconceito.

Apartirdoano1937,ojudiciárioalemãofoiperdendosuaautonomia,demodo

que toda sua organização passa a depender das ordens doministro da justiça, e não

maisdosprópriosjuízesdeformacolegiada,oquerelegariaopoderjudiciárioàposição

demeroagenteadministrativo.Soma-seaissoofatodequefoiconcedidoaoministro

da justiça o poder de modificar a organização jurisdicional e de extinguir a

inamovibilidadedosmagistrados.Por fim, combaseprincipalmenteno§71da Leido

Funcionalismo Público [Beamtengesetz], os juízes poderiam ser afastados

compulsoriamente quando não demonstrassem aderência aos ideais do nacional-

socialismo31.

c) Restrições à atuação do advogado: evidente é o fato de que a mera

autonomia do judiciário não garante uma prática judicial cujo produto pode ser

consideradoracionalnamedidaemexpressaemsi tantoaviolênciamonopolizadado

órgãoestatalquantoapossibilidadedequeosendereçadosdadecisãoparticipem,em

certamedida,doprocessodematerializaçãodesta.Nessesentido,odireitoàdefesaé

umdos institutosmais importantes do EstadodeDireito, o que confere ao advogado

uma função importante na condução dos negócios da vida pública. Amanutenção de

uma esfera privada livre de interferências injustificadas por parte do órgão estatal

requerqueaatividadedoadvogadosejapraticadadeforma independente,orientada,

imediatamente,pelointeressedoclientee,deformamediata,pelobomfuncionamento

daadministraçãodajustiça.

Se os nacional-socialistas se valeram da restrição das diversas garantias

fundamentais no âmbito penal para a construção do sistema de justiça criminal,

29ARENDT,Hannah.Darevolução.BrasíliaeSãoPaulo:UniversidadedeBrasíliaeÁtica,1988,p.19-20.30HAMILTON,A.;JAY,J.;MADISON,J..OFederalista.BeloHorizonte:EditoraLíder,2003,p.459.31KIRCHHEIMER,Otto.DasStrafrechtimnationalsozialistischenDeutschland,op.cit.,p.196.

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obviamentealiberdadedeatuaçãodoadvogadonãofoigarantidaduranteavigênciado

regime.O advogadoera livrepara atuarnamedidaemque talmister não conflitasse

com os ideais nacional-socialistas. A defesa de não-simpatizantes do regime era uma

atividade perigosa para o próprio advogado, pois este poderia ser punido com uma

sançãodisciplinarouatémesmocomummandadodeprisãoportempoindeterminado.

EmblemáticoéocasododefensordeErnstThälmann,oadvogadoberlinenseDr.Rötter,

quefoipresopordefenderseucliente,outroramembrodoPartidoComunistaAlemão,

e,comisso,atentarcontraonacional-socialismo32.

d)Reduçãodamaioridadepenal:oregimenazistatransformounãosomenteo

direito penal ordinário, mas também o chamado direito penal dos jovens

[Jugendstrafrecht],principalmentecomaediçãododecretode11deoutubrode1939.

Tal decreto previa, além de um recrudescimento das penas, a possibilidade de que

jovens entre 16 e 18 anos fossem julgados pela justiça comum, quando a ofensa

praticada possuísse um grau de criminalidade elaborado ou se a proteção da

comunidade justificasse tal fato33. Interessante ressaltar que na técnica judicante da

qualsevaliamosnazistas,aBildtechnik,afiguradoperigosojovemdelinquenteeraum

dos três tipos puros de criminalidade que deveriam ser combatidos pelo regime,

juntamentecomasfigurasdoparasitadeguerraedocriminosobrutal34.

e)Degradaçãodacondiçãodevidadoapenado:noâmbitodacomunidaderacial

alemã,marcadapeladissoluçãodaantigafronteiraentrejurídicoemoralerguidapelos

liberais,oprisioneironãoeravistocomoumindivíduoportadordedireito,demodoque

apenaterácomofunçãoprimordialasuaressocialização,massimcomoaquelesobreo

qualrecaem-nomínimo-ressalvaseindagaçõessobreapossibilidadedeparticipação

nesta mesma comunidade - quando não eram prontamente exterminados. Tal visão

refletiu no modelo de gestão prisional do regime nazista, gerando uma diminuição

substancial no padrão de vida dos detentos. Kirchheimer exemplifica tal situação por

meio do custo diário da alimentação de cada detento: se à época da República de

Weimar,o custogiravaem tornode50-60pfennig35, em1935 tal valor foi reduzidoa

aproximadamente30pfennig.Econcluidaseguintemaneira:

32KIRCHHEIMER,Otto.StaatsgefügeundRechtdesDrittenReiches,op.cit,p.168.33KIRCHHEIMER,Otto.DasStrafrechtimnationalsozialistischenDeutschland,op.cit.,p.206.34Ibidem,p.207.35MoedautilizadanaAlemanhaentre1924a1948,quandofoisubstituídapelomarcoalemão.

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É inconcebívelquemuitosautoresacreditemqueessadeterioraçãodramáticadascondiçõesdevidadosprisioneirosnãoéumasimpleseinfortunaconsequênciadascondiçõeseconômicaspresentesequea celebremcomoum instrumentopenaldesenvolvidoquedeve serpermanentementeaplicado36.

EssassãoasprincipaiscaracterísticasapontadasporOttoKirchheimernoquediz

respeito à práxis e à teoria do direito penal da Alemanha nazista. A importância das

críticasdeKirchheimernãopodeserobscurecidapelo fatodequeatualmentenãohá

nacional-socialismoenquantogovernoeque,nessesentido,aofinaldaguerra,todosos

olhosdomundosevoltaramparaoshorrorespraticadospeloregimehitlerista.Criticar

onacional-socialismonosdiasdehojenãoétarefaárdua,umavezqueaquelequese

dispõe a tal exercício encontrará diante de si um vasto material: a história, como já

ressaltou Benjamin, é a história dos vencedores37, que neste caso foram os Aliados e

todooconjuntodeideiasquesetransformaramnaideologiadomundolivredurantea

guerrafria.QualaimportânciadascríticasdeKirchheimer,então?

4.Kirchheimereopresente:acriminalizaçãododissensopolíticonoâmbitodoestado

dedireito

A descrição do sistema de justiça criminal nacional-socialista a partir dos escritos de

Kirchheimer demonstra que a persecução penal tinha outro fim, que não a

ressocializaçãodo indivíduooua retribuiçãodo injusto.A justiçacriminalerautilizada

comfinsdeeliminarodissensopolíticoporpartedaquelesquedispunhamdopoder–

em suma, a justiça criminal era uma justiça política. Em seu ensaio “Justiça Política”,

Kirchheimer concebe ao leitor logo nas primeiras linhas umaprimeira definição dessa

expressão: “Falamos de justiça política quando procedimentos judiciais são utilizados

para a consecução de fins políticos38”. Em um primeiromomento, pensar-se-ia que a

associação do termo “justiça” com o predicado “política” em nada acrescentaria aos

36KIRCHHEIMER,Otto.StaatsgefügeundRechtdesDrittenReiches,op.cit,p.169.37BENJAMIN,Walter.ÜberdenBegriffderGeschichte. In:______.Gesammelte.Schriften I. FrankfurtamMain:SuhrkampVerlag,1972,p.696.38KIRCHHEIMER,Otto.Politische Justiz. In:______.PolitikundVerfassung. FrankfurtamMain:SuhrkampVerlag,1964,p.96.

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debates contemporâneos, pois, como bem aponta Ronald Dworkin, há na atividade

judicanteum fundamentoque, emúltima instância, se remeteaprincípios éticosque

subjazemaumadeterminadacomunidadepolítica39. Toda justiça seria,nesse sentido,

justiçapolíticaeaafirmaçãodequeseriapossívelaaplicaçãododireitodeformaneutra

perdetodosentidoprincipalmentecomodesenvolvimentodahermenêuticadematriz

fenomenológica a partir da segunda metade do séc. XX. Kirchheimer certamente

possuíaconsciênciadoaspectopolíticoqueenvolveodireitocomotodo-inclusivesua

aplicação.Em1928,comumtrabalhointituladoSobreaTeoriadoEstadodoSocialismo

e Bolchevismo40, o jurista alemão se doutorou sob a orientação de Carl Schmitt, que

defendia, entre várias outras teses, a necessidade de ummeio homogêneo para que

possa existir a normalidade e calculabilidade das relações jurídicas, associadas, em

última instância, ao pensamento liberal-burguês. Esse topos garantidor do

funcionamento normal das instituições jurídicas é, no pensamento schmittiano, uma

decisãopolíticasobreomododevidacoletivodeumdeterminadopovo41.

Kirchheimer pretende não tanto elucidar as conexões gerais entre direito e

política,mas simabordarocerceamentodapossibilidadedodissensopolítico,pois “a

justiça política pretende eliminar os adversários políticos42”. Está-se diante de uma

perfeita descrição do sistema de justiça vigente nos regimes totalitários. Contudo,

espanta-sequembuscanocaráterpolíticodajustiçaumfatordistintivoentreoEstado

deDireitoeosdiversos regimes totalitários.Segundooautor,a justiçapolíticaestaria

tambémpresentenassociedadesdemocráticas,de formaqueoaspectodiferenciador

entre democracia e totalitarismo seria o aspecto da calculabilidade do desenrolar do

julgamento43. Como visto anteriormente, a partir do exemplo nacional-socialista, a

ausênciadasdiversasformalidadesegarantiastípicasdoEstadodeDireitoconduzemo

julgamentoaumresultadopreconcebido–acondenaçãododenunciado.Jánoâmbito

doEstadodeDireito,comoconsequênciadaestritaseparaçãoentreosórgãosacusador

e julgador,o resultadodotrâmitese liga,emúltima instância,ao livreconvencimento

39 Comovemos,porexemplo, emDWORKIN,Ronald.O fundamentopolíticodoDireito. In: ______.Umaquestãodeprincípio.SãoPaulo:MartinsFontes,2001,p,47.40HERZ,JohnH.OttoKirchheimer,LebenundWerk.InLUTHARDT,Wolfgang;SOLLNER,Alfons(Hrsg.).Verfassungsstaat, Souveranitat, Pluralismus: Otto Kirchheimer zum Gedächtnis. Opladen: WestdeutscherVerlag1989,p.12.41Cf.SCHMITT,Carl.ConstitutionalTheory.DurhamandLondon:DukeUniversityPress,2008,p.75.42KIRCHHEIMER,Otto.PolitischeJustiz,op.cit.,p.99.43Idem.

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motivado do juiz e a capacidade probatória doMinistério Público.Mas como seria

possívelconciliarEstadodeDireitoeeliminaçãodosadversáriospolíticos?Ditodeoutra

forma: se o Estado de Direito é o regime da domesticação e racionalização da

violência44, haveria, então, espaço naquela forma de organização política para a

criminalizaçãododissensopolítico?TodoargumentodeKirchheimersedesenvolveno

sentido afirmativo. Deve-se tomar, nesse caso específico, o termo eliminação em um

sentido amplo. Desde a imposição de barreiras para o acesso ao poder atémesmo o

extermíniofísico–sãoinúmerasasformasdeeliminaçãodosopositorespolíticos.Nesse

sentido, parece-nos adequado a interpretação queUlrich Preuß dá à conceituação de

Kirchheimer,quandoconsideraajustiçapoliticacomooatode“neutralização,pormeio

danormalidade típica do EstadodeDireito, deum cidadãopoliticamenteperigoso45”.

Dignodenotaéofatodeque,noâmbitodoEstadototalitário,osaparelhosestataisse

orientam para construir o estereotipo vinculado ao inimigo da comunidade. Não é

somenteoDireitoe suas formasqueconstroemessa imagem–aomesmotempoem

quesãomoldadosporela-,mastambémaescola,asassociaçõescivis,amídiaoficial,

entreoutrosaparelhos.EspecificamenteemrelaçãoaoEstadodeDireito,omesmonão

ocorre: faz-se necessário àquele que pretende neutralizar seu adversário político a

criação de uma “realidade alternativa46” concomitante ao processo judicial, o que

garantiria, por um lado, uma suposta neutralização das lutas políticas do adversário,

assimcomoaaceitaçãomaciçaporpartedapopulação,que,comoemumespetáculo,

assistedesassombradaaodesenrolardoprocesso,comoseaquilofizessepartedoethos

democrático:

[comaeliminaçãodosadversáriospolíticos]vemoefeitopsicológicodoprocessopolíticonapopulação.Tenta-sesugeriràpopulaçãoumaimagemdarealidadepolíticaquetornaodenunciadoaincorporaçãodetendênciasantissociais[gesellschaftfeindlichenTendenzen].Sobrecondiçõestotalitárias,oaparatodejustiçaseencontratotalmenteàdisposiçãododetentordopoder.NavigênciadoEstadodeDireito,ogoverno pode se valer do aparato de justiça para eliminardiretamenteseusadversários,pormeiodadenúnciadetraição-morouàpátria, distúrbioe, emcertos casos, porperjúrio.Maselenãopode evitar que outros grupos, mesmo que de forma limitada, sevalham do aparato judicial. Eles podem dar causa a um processo

44 KRIELE, Martin. Introdução à teoria do Estado: os fundamentos históricos da legitimidade do EstadoConstitucionalDemocrático.Trad.UrbanoCarvelli.PortoAlegre:SérgioAntônioFabris,2009,p.146-168.45 Cf. PREUß, Ulrich K. Politische Justiz im demokratischen Verfassungsstaat. In: LUTHARDT,Wolfgang;SOLLNER,Alfons(Hrsg.).Verfassungsstaat,Souveranitat,Pluralismus,op.cit.,p.135.46KIRCHHEIMER,Otto.PolitischeJustiz,op.cit.,p.108.

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envolvendo crimes contra a honra ou perjúrio. Desse modo, osgrupos que se localizam fora do poder podem influenciar oimagináriodeseusconcidadãose,comisso,tentardesbancaroatualmandatáriodopoderoumanterdeledistanteosrivais47.

Apartirdessaperspectiva,Kirchheimerelaboraumaespéciedecategorização,

quepermitirianãosomenteelucidararelaçãoentrecrimespolíticoseEstadodeDireito,

mastambémcompreenderasmudançassofridaspela justiçapolítica,tantoapartirda

criminalizaçãodorisco,quantopela tendênciadeadministrativizaçãododireitopenal,

comoconsequenteafrouxamentodasgarantiastípicasdoregimejurídicopenal.Quatro

seriam os planos48 [Ebenen] – ou tipos49, como prefere Preuß - que compõe a

categorizaçãodeKirchheimer:

a) crimes comuns cujo cometimento se liga em última instância à orientação

políticadoagenteouamotivotidoporestecomopoliticamenterelevante:Kirchheimer

iniciaaexposiçãoporaquelescrimespolíticosquesecaracterizampelasemelhançacom

delitos comuns no cotidiano da justiça criminal. “Homicídio permanece homicídio50”,

asseveraoautor,mesmoquandoosmotivosdoagente se ligamaumacausapolítica

maior, como, por exemplo, o assassinato de um líder autoritário com objetivo de

promoção da democracia. Em relação à persecução criminal em tais fatos, o autor

afirma que os esforços do órgão acusador se concentram em minimizar as causas

políticasdoato,ressaltandoassimaocorrênciadoselementosobjetivosesubjetivosdo

tipoemquestão51.Issoseaplicasemdificuldadesàspersecuçõescriminaisnoâmbitode

Estadosautoritários,ondeosmeiosdepublicidadeordináriospassampelachancelados

detentores do poder. Escapa a Kirchheimer, contudo, no âmbito de um Estado dito

democrático, onde há efetivamente o exercício livre do direito de imprensa, não há

comoevitarapolitizaçãododebatenoâmbitoeemtornodapersecuçãocriminal -e

suasconsequênciasnoequilíbriodasforçaspolíticasquedisputamopoder.Oatentado

ocorrido na rua Tonelero em 5 de agosto de 1954, que tinha como alvo o udenista

CarlosLacerdaeacelerouaruínadogovernodeGetúlioVargas,exemplificabemessa

impossibilidade de despolitização do debate em torno de um ilícito criminal com fins

47Ibidem,p.99-100.48KIRCHHEIMER,Otto.PolitischeJustiz,op.cit.,p.102.49PREUß,UlrichK.PolitischeJustizimdemokratischenVerfassungsstaat,op.cit.,p.138.50KIRCHHEIMER,Otto.PolitischeJustiz,op.cit.,p.102.51Ibidem,p.103.

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políticos sob a égide de um regime democrático. Por mais que o governo tentasse

interferir nas investigações por meio de seu ministro da Justiça, Tancredo Neves, no

sentidodedescontruironexoqueconduziaosfatosaoPaláciodoCatete,osmeiosde

comunicação alimentavam a crise do governo, uma vez que havia uma clara ligação

entreosparlamentaresudenistaseagrandeimprensanosentidodedesestabilizaçãode

Vargas52.Entreosopositores,afiguradeCarlosLacerdasedestacavanoenfrentamento

aogoverno.

Opolíticoudenista,pormeiodeseujornalAtribunadaimprensa,articulavano

sentido de criar a realidade alternativa necessária para conferir contornos dramáticos

aos atos praticados pelo governo varguista, mobilizando politicamente, assim, não

somenteaopiniãopública,mastambémosdiversossegmentossociais,algunsdosquais

viriamaterumpapeldecisivonadesintegraçãodogoverno–comoasForçasAéreas53.

Pode-se dizer, então, que o episódio envolvendo Carlos Lacerda exemplificaria

perfeitamenteoprimeirocasotípicodoquadroesquemáticopropostoporKirchheimer.

b) crimes cujo cometimento atenta diametralmente contra a ordem estatal:

prosseguindoaapresentaçãodesuatipologia,Kirchheimerchegaaoscrimesdetraição

e distúrbio54. Quando se fala em justiça política no seio de um Estado Autoritário, o

julgamentodeumagentequerepresentaumaameaçarealaomandatáriodopodernão

podeseroutracoisasenãoumritualismoemsivazio,hajavistaquenãoéconferidoà

parteacusadaodireitodeinfluenciarnaquelasupostaprestaçãojurisdicional.Seporum

ladoautilizaçãodaformajurídicanosregimesautoritáriosnapersecuçãocriminaldos

adversáriospolíticosnãogozavadadevidasgarantiasprocessuaisclássicasconsagradas

na doutrina penal do ocidente desde o século XVIII, deve-se ressaltar, por outro, que

muitosnãoeram sequer julgadosoficialmente,mas simexecutados sumariamenteou

torturados até amorte, comomostram as barbáries cometidas pelo regime ditatorial

brasileiro55.Ogovernoditatorialbrasileirocontava,apesardisso,comdiversosdiplomas

legaisquedispunhamsobreoscrimescontraasegurançanacionaleasespecificidades

de sua persecução. Os decretos-lei nº 314/67 e nº 898/69, assim como as leis nº

6.620/78 e nº 7.170/1983 dispunham sobre os crimes que violavam a segurança

52FERREIRA,Jorge.AdemocracianoBrasil(1945-1964).SãoPaulo:AtualEditora,2006,p.39.53Ibidem,p.40.54KIRCHHEIMER,Otto.PolitischeJustiz,op.cit.,p.103.55VernessesentidoMEYER,EmilioPelusoNeder.DitaduraeResponsabilização:ElementosparaumaJustiçadeTransiçãonoBrasil.BeloHorizonte:ArraesEditores,2012.

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nacional, que iam desde a negociação com governo estrangeiro ou seus agentes,

visandoprovocarguerraouatosdehostilidadecontraoBrasil atéa criminalizaçãoda

tentativadesubversãodaordemouestruturapolítico-socialvigentenopaís,comofim

deestabelecerditaduradeclasse,departidopolítico,degrupoou indivíduo,emclara

referênciaàsdoutrinasmarxistaseosmovimentosdeesquerdaqueatuavamnopaís.

Fatodignodenotaéaquestãodacompetênciadajustiçamilitarparaojulgamentodos

crimes tipificados em todos os diplomas supracitados, sendo o rito determinado e

condicionado pelos ditames do processo penalmilitar. O decreto-lei nº 898/69 chega

inclusive a prever sanções e restrições adicionais, como a suspensão de direitos

políticos,pordoisadezanos,quandoacondenaçãosuperardoisanos,segundooart.

74daquelediplomaouainadmissibilidadedesuspensãocondicionaldapena,deacordo

comoseuart.75.Por fim,cumpre ressaltarquea leinº7.170/1983 foi recepcionada

pelaordemconstitucionalvigenteeascondutastipificadasnaquelediplomapodemser

consideradas,portanto,exemplosdoscrimesqueatentamdiretamentecontraaordem

estatalnoâmbitodoordenamentojurídicopátriocontemporâneo.

c) crimes cujo cometimento atenta indiretamente contra a ordem estatal: ao

exporaterceiracategoriadesuatipologiadajustiçapolítica,Kirchheimerbuscaabordar

aquelas ações, que, quando consideradas de forma isolada, não possuem nenhum

potenciallesivodiretoàordemestatal.Maiscorretoseriaafirmarquesuaexecuçãotem

comofinalidademinaraordempolíticaestabelecida:

Entreumsem-númerodeformasindividuais,elas[ascondutas]todastrazem consigo a característica comum da ausência do caráter detraiçãooudistúrbio.Asopiniõesepropagandasnocivas,aelaboraçãoconjunta de doutrinas revolucionárias e a consequente doutrinaçãode simpatizantes poderiam - se não fosse isso – transformar-se emaçõesconcretasnosentidodesubversãodaordem56.

A penalização da doutrinação ou da disseminação de propaganda anti-regime

inauguraria, segundo Preuß, uma nova fase do direito penal, a dos “crimes de perigo

contraaordemestatal57”[DeliktederStaatsgefährdung].Essainovaçãosedariacomo

rompimento com a função clássica do bem jurídico, que cumpria o papel, a partir da

publicaçãodaobraSobreanecessidadedeumalesãojurídicanoconceitodecrimeem

56KIRCHHEIMER,Otto.PolitischeJustiz,op.cit.,p.104.57PREUß,UlrichK.PolitischeJustizimdemokratischenVerfassungsstaat,op.cit.,p.138.

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1834porJohannMichaelFranzBirnbaum58,deorientaçãoaolegisladorpenalporparte

daciênciadodireitopenal.Quandosecomparaadisseminaçãodeumadoutrinaanti-

regimecomamarchadeblindadoscomoobjetivodetomaropoderdeformailegítima,

tem-seaclaracertezadequesomenteasegundaaçãoconstituíumalesãosubstancial

ao bem jurídico “ordem pública”, de forma que toda a criminalização da propaganda

revolucionáriapodeserconsideradaaexpressãodeuma“antecipaçãodatutelaestatal

noâmbitodalutapolítica59”.Nessemomento,aproduçãodeumarealidadealternativa

porpartedoórgãode acusaçãoassumeumpapel central napersecução criminal dos

acusados, pois faz-se necessário a produção, de forma artificiosa, do liame entre a

condutado agente eoprovável danoàordemestatal.Mas comodefinir as condutas

que são potencialmente lesivas à ordem estatal? Dito de outra forma: quais são os

limitesentrea legalidadeea ilegalidadedaatividadedeopor-seaumgovernoesuas

instituições? A primeira forma de definição da legalidade da oposição deve ser a

Constituição democraticamente promulgada, que, em última instância, constitui a

condição de possibilidade da existência do dissenso político, a partir da proteção da

liberdade de expressão, por um lado, e dos princípios políticos fundamentais

estruturantes do projeto constitucional, por outro. Disso resulta a criminalização, por

exemplo, da prática, indução ou incitação discriminação ou preconceito de raça, cor,

etnia,religiãoouprocedêncianacionalpeloart.20daleinº7.716/89,comorespostado

legislador penal à necessidade de proteção da diversidade social e dos princípios do

pluralismopolíticoedadignidadedapessoahumana -ambospresentesnoart.1ºda

ConstituiçãoenquantofundamentosdaRepúblicaFederativadoBrasil.

Função diferente parece assumir a lei nº 13.260/16, conhecida como Lei

Antiterrorismo, na criminalização de condutas que eventualmente adentremo campo

da disputa política. Já no artigo segundo do referido diploma, o legislador penal

apresentaadefiniçãodeterrorismoparafinspenais:

Art.2º.O terrorismoconsistenapráticaporumoumais indivíduosdos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia,discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quandocometidos com a finalidade de provocar terror social ou

58 Nesse sentido, VORMBAUM, Thomas. Einführung in die moderne Strafrechtsgeschichte. Berlin eHeidelberg:SpringerVerlag,2011,p.55.59PREUß,UlrichK.PolitischeJustizimdemokratischenVerfassungsstaat,op.cit.,p.138.

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generalizado,expondoaperigopessoa,patrimônio,apazpúblicaouaincolumidadepública.

Masoqueseriaapazpúblicaouaincolumidadepúblicaficaacargodoparquet

e da burocracia judicante definir. O legislador tentou, no § 2º do referido artigo,

delimitaraextensãosemânticadasreferidasexpressões,aoafirmarqueodispostono

art. 2ºnão se aplicaria à conduta individual ou coletivadepessoas emmanifestações

políticasesociais.Contudo,emúltimaanálise,quemdefineoslimitesentremovimento

social e terrorismo são os órgãos oficiais, em situação semelhante a que Kirchheimer

vislumbrara no fim da República de Weimar. Afirma Kirchheimer que a crença na

suposta atuação sine ira et studio - como como característica essencial a uma

formulação ideal de burocracia – não passa de mera ilusão. Ao interpretar cláusulas

abertas,aburocracia interfere,porexemplo,na lutados trabalhadores,provandoque

talformaderacionalizaçãopolíticaéreflexodasrelaçõesdeclasse.Oautorlançamão

doexemplodo julgamentodequestõesenvolvendoarupturadeconvençõescoletivas

[Tarifvertrag]causadaportrabalhadoresapartirdaadoçãodemedidasqueescapamao

âmbito econômico – isto é, ilegítimas. Em decisão proferida em 1929, o

Reichsarbeitsgerichtapresentouoseguinteentendimento:

Umadasconsequênciasdoacordocoletivoédeverdoabandonodedistúrbios trabalhistas injustificáveis e se valer de ações hostissomentequandofinseconômicossãoperseguidos.Setalmedidasedá sem um fim econômico ou sem justificativa evidente em simesma, isso significa que, mesmo quando não se refere aresponsabilidadecontratualespecífica,houveumaquebranodevergeral de manutenção da ordem pacífica, baseada no acordocoletivo60.

A burocracia judicante decide se uma ação tomada pelo sindicato dos

trabalhadores é legítima ou não, de forma que as ações tomadas tendo em vista a

transição ao socialismo, por exemplo, eram tidas como não-econômicas e, nesse

sentido, ilegítimas. Pensando em termos weberianos, Kirchheimer acredita que a

patogênese institucional da República se relacionava ao desrespeito à lógica da

legalidadecomopensadaquandodosurgimentodoRechtsstaat.Estesurgeapartirda

supressão do direito à resistência movida pela força absorvente da ideologia

60KIRCHHEIMER,Otto. LegalitätundLegitimität. In:______.PolitischeHerrschaft: fünfBeiträge zur LehrevomStaat.FrankfurtamMain:SuhrkampVerlag,1981,p.25.

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democrática assim como pela prática constitucional, sendo substituído pelo conceito

racionalizadodelei[rationalisierteGesetzbegriff]61,quepressupõeumaestritaatenção

ao procedimento de sua gênese, sob pena da perda do caráter adstringente do

comandolegal.AssimcomonaRepúblicadeWeimar,ondequemdecidiaolimiteentre

olegítimoeoilegítimonalutadostrabalhadoreseraoReichsarbeitsgericht,achamada

Lei Antiterrorismo repete a mesma prática, relegando ao Judiciário e ao Ministério

Públicoafunçãodedecidirsobreacategorizaçãodedeterminadomovimentosociale,

consequentemente,acercadacriminalizaçãodosseusparticipantes, jáqueoartigo3º

dareferidaleiprevêareclusãodecincoaoitoanos,somadaamulta,paraaquelesque

promovem, constituem ou prestam auxílio, pessoalmente ou indiretamente, a

organização terrorista. Nesse sentido, a lei nº 13.260/16 ilustra no âmbito do

ordenamentojurídicobrasileiroatualoterceirotipodajustiçapolíticadescritoporOtto

Kirchheimer.

d) crime político fabricado [das politische Kunstdelikt]: o percurso até o

momentotrilhado,desdeosdelitoscomunsorientadospormotivaçõespolíticas–como

homicídio,furtoetc.–atéasaçõesqueafetamaordemapenasemumsentidoindireto,

comoadisseminaçãodepropagandarevolucionária–outerrorista,nostermosdaleinº

13.260/16-,seorientanosentidodoaumentodanecessidadedejustificaçãoporparte

dosórgãosoficiaisquetomampartenapersecuçãocriminalnoquetangeàlegitimidade

de tal procedimento. Quando tal atuação no sentido de criação de uma realidade

alternativaquepermitaoestabelecimentodonexocausalentreagenteeaçãoélevada

aoextremo,está-sediante,segundoKirchheimer,deumcrimepolítico fabricado.Este

não se origina “de uma verdadeira intençãodo denunciadode ameaçar ou destruir a

ordem,maséapenasumartificio[Kunstprodukt]62”, istoé,aconstruçãodeumevento

politicamente relevanteepassíveldepersecuçãocriminalapartirdeumsem-número

deelementos,que,encaixadoscommaestria,deixariamtransparecerapericulosidade

doagenteedesuascondutas.Aparticipaçãodoórgãoacusatórionosentidodecriação

de uma realidade alternativa chega ao seu pontomáximo.No Estado deDireito, cuja

principal característica é a vigência do principio da legalidade e seus corolários, é

inconcebível,porviolaçãoaoprincípiodataxatividade,aexistênciadessetipodedelito

61Ibidem,p.9.62KIRCHHEIMER,Otto.PolitischeJustiz,op.cit.,p.112.

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político,ondeoquesebuscaéapenasacriminalizaçãododissensopolíticoapartirde

factoides, que, quando reunidos, comporiam a suposta conduta delinquente do

acusado.Contudo,parece-nosqueesseéocasodedeterminadainterpretaçãosobreos

crimes de responsabilidade do Presidente da República previstos no art. 85 da

Constituição da República – corrente interpretativa que encontrou sua máxima

expressãonoparecerredigidoporAntônioAnastasia,SenadordoPSDB/MG,noâmbito

daComissãoEspecialdoprocessodeImpeachmentdaPresidenteDilmaRousseff,soba

funçãoderelator63.

Aconstruçãodorelatóriopartededuaspremissas.Aprimeiraseligaaofatode

que os crimes de responsabilidade se difeririam dos crimes propriamente ditos, de

formaquesuapersecuçãoseguiriaprincípiosoutrosquenãoaquelesdoCódigoPenale

do Código de Processo Penal64. Daí extrai-se a segunda premissa: como os princípios

seriamoutros–enessecaso,sematençãoaoprincípiodataxatividade–seriapossível

incluir no rol dos crimes de responsabilidade condutas não tipificadas enquanto tal65

pelolegisladornoâmbitodaLeinº1.079/50,quedefineoscrimesderesponsabilidadee

regulaorespectivoprocessodejulgamento,emconsonânciacomosditamesdoart.85

daConstituiçãodaRepública.AntônioAnastasiachegaàconclusãoque

essapartedoutrináriaapontaparaumareservaconstitucionalestritapara os crimes de responsabilidade, o que é verdadeiro. Todavia,dessa premissa nãodecorre a conclusãode queo art. 11 não teriasido recepcionado. O crime previsto no art. 11, item 2, constituicondutamuitosemelhanteàdoart.10, item6–amboscapituladosnadenúnciaeconstantesdaautorizaçãodaCâmaradosDeputados.Ambos,naverdade,tratamdomesmobemjurídico.Todososcrimeselencadosnoart.11poderiamestarperfeitamenteelencadosnoart.10,evice-versa.Osdispositivosoperamdentrodeummesmocampo

63ANASTASIA,Antônio.DaCOMISSÃOESPECIALDOIMPEACHMENT,referenteàadmissibilidadedaDENnº1, de 2016 [DCR no 1, de 2015, na origem] – Denúncia por crime de responsabilidade, em desfavor daPresidentedaRepública,DilmaVanaRousseff,porsupostaaberturadecréditossuplementarespordecretospresidenciais,semautorizaçãodoCongressoNacional(ConstituiçãoFederal,art.85,VIeart.167,V;eLeinº1.079, de 1950, art.10, item4 e art. 11, item2); e da contratação ilegal de operações de crédito (Lei nº1.079, de 1950, art. 11, item 3). 04/05/2016. Disponível em<http://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/05/04/veja-aqui-a-integra-do-parecer-do-senador-antonio-anastasia>.Acessoem24dejulhode2016.64 Idem,p.11-12:“Todavia,contraditoriamente,emdiversaspassagens,adefesapretendeaplicarnormasdo regime jurídico penal ao caso. Daí porque, faz-se necessário, desde já, apresentar os substratosdoutrináriosejurisprudenciaisqueafastamapretensãodeequipararoscrimesderesponsabilidade–eporconseguinteoregimejurídicopróprio–aoscrimesregidospeloCódigoPenaleProcessualPenal(este,comosabido,deveseraplicadoapenassubsidiariamente,porforçadoart.38dacitadaLeinº1.079,de1950)”.65 Idem,p.51:“Alémdisso,a listade ilícitospolítico-administrativos inscritosnasConstituiçõesbrasileirassempreostentoueostentacarátermeramenteexemplificativo”.

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axiológico-normativo. Não se pode negar, por outro lado, que oincisoVIIdoart.85,daCR,prevêodescumprimentodeleicomoumadas hipóteses de crimede responsabilidade, que, conjugado comoart. 73, da LRF, afasta qualquer dificuldade, ao menos nessa fasepreliminar, de subsunção dos fatos apontados na denúncia àcapitulaçãodoscrimesderesponsabilidade66.

Ofenômenodaadministrativizaçãododireitopenalé,semsombradedúvidas,

umpassonecessárioàpossibilidadedeexistênciadedelitospolíticospré-fabricadosno

seio do Estado de Direito. Ausente o princípio da taxatividade, toda imaginação é

permitidaaoórgãopersecutório, ficandooréuaderivadapossívelutilização ilegítima

da maquinaria punitiva do Estado por parte de uma oposição política que busca

neutralizá-lo.Acriminalizaçãoadhocdeumacondutanãoseharmonizacomoprincípio

dalegalidadeedataxatividade?Issonãoseriaumproblemaquandoasgarantiastípicas

doEstadodeDireitosãoflexibilizadas,sobainvocaçãodeumregimejurídicooutroque

permitisse tal conduta. Não somente inconstitucional é tal interpretação, em clara

violação aos princípios supramencionados, mas representa também um perigoso

caminhoqueseabrenosentidodacriminalizaçãotravestidadelegalidadedodissenso

políticonaordemjurídico-políticabrasileira67.

O pensamento de Otto Kirchheimer se revela, portanto, bastante atual, para

alémdoscamposdeconcentraçãoou“Leideproteçãodosangue”doperíodohitlerista,

namedidaemqueoEstadodeDireitoconviveatodoomomentocomatensãoentre

proteção da ordem institucional e a criminalização do dissenso político. Os exemplos

mencionados anteriormente revelam ainda que este problema não se deixa limitar

geográfica e temporalmente ao contexto vivido pelo autor, mas se relacionam ao

projeto do Estado de Direito de uma forma geral. Devemos abandoná-lo? De forma

alguma.AapostanoDireitoenasualegitimidadedemocrática,istoé,quenãosebaseie

apenasem“umbrilhoemprestadodeumpassadoidealizado68”,masquesejafrutoda

efetiva participação popular no processo tanto de produção legislativa nos órgãos

legiferantes,quantonomomentodeefetivaçãodanorma jurídica,principalmentenos

66Idem.67 Posicionamento semelhante é defendido em BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes;OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; STRECK, Lenio Luiz. Breve Nota Crítica ao Relatório Anastasia:contra a admissibilidade do processo de impeachment por crime de responsabilidade da Presidente daRepública.Disponívelem<http://emporiododireito.com.br/breve-nota-critica-ao-relatorio>.Acessoem24dejulhode2016.68KIRCHHEIMER,Otto.LegalitätundLegitimität,op.cit.,p.27.

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processosenvolvendoajustiçapolítica,éalgotidocomofundamentalporKirchheimer.

Contraautilizaçãodosmeioslegaisparaaneutralizaçãododissensopolítico,eleainda

apostanoDireito.Emaisainda:nosprocessosdemocráticosdeformaçãoeefetivação

deste.

ReferênciabibliográficaANASTASIA, Antônio. Da COMISSÃO ESPECIAL DO IMPEACHMENT, referente àadmissibilidadedaDENnº1,de2016 [DCRno1,de2015,naorigem]–Denúnciaporcrime de responsabilidade, em desfavor da Presidente da República, Dilma VanaRousseff, por suposta abertura de créditos suplementares por decretos presidenciais,semautorizaçãodoCongressoNacional(ConstituiçãoFederal,art.85,VIeart.167,V;eLei nº 1.079, de 1950, art.10, item 4 e art. 11, item 2); e da contratação ilegal deoperaçõesdecrédito(Leinº1.079,de1950,art.11,item3).04/05/2016.Disponívelem<http://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/05/04/veja-aqui-a-integra-do-parecer-do-senador-antonio-anastasia>.Acessoem24dejulhode2016.ARENDT,Hannah.Da revolução. Brasília e SãoPaulo:UniversidadedeBrasília eÁtica,1988.BAHIA,AlexandreGustavoMeloFrancodeMoraes;OLIVEIRA,MarceloAndradeCattonide; STRECK, Lenio Luiz. Breve Nota Crítica ao Relatório Anastasia: contra aadmissibilidade do processo de impeachment por crime de responsabilidade daPresidente da República. Disponível em < http://emporiododireito.com.br/breve-nota-critica-ao-relatorio>.Acessoem24dejulhode2016.BENJAMIN,Walter.ÜberdenBegriffderGeschichte.In:______.Gesammelte.SchriftenI.FrankfurtamMain:SuhrkampVerlag,1972.DWORKIN, Ronald. O fundamento político do Direito. In: ______. Uma questão deprincípio.SãoPaulo:MartinsFontes,2001.FERREIRA,Bernardo.Oriscodopolítico.BeloHorizonte:EditoraUFMG,2004.FERREIRA,Jorge.AdemocracianoBrasil(1945-1964).SãoPaulo:AtualEditora,2006.HABERMAS, Jürgen. El vínculo interno entre Estado de Derecho y Democracia. In:______.Lainclusióndelotro:estudiosdeteoríapolítica.Barcelona:Paidós,1999.HAMILTON,A.;JAY,J.;MADISON,J..OFederalista.BeloHorizonte:EditoraLíder,2003.HEGEL, GeorgWilhelm Friedrich.Grundlinen der Philosophie des Rechts. Frankfurt amMain:Suhrkamp,1989.

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SobreosautoresDouglasCarvalhoRibeiroPossui graduação (2014) e mestrado (2017) em Direito pela Universidade Federal deMinasGerais.E-mail:douglascarvalhoribeiro@gmail.com.MarceloAndradeCattonideOliveiraProfessor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG.SubcoordenadordoProgramadePós-GraduaçãoemDireitodaFaculdadedeDireitodaUFMG.BolsistadeProdutividadedoCNPq (1D). MestreeDoutoremDireito (UFMG).Pós-DoutoradoemTeoriadoDireito(RomaTRE).E-mail:[email protected]íramigualmenteparaaredaçãodoartigo.