osman lins tese

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Uma obra em movimento leitura(s) de Avalovara, de Osman Lins REGINA DALCASTAGNE março de 1997 ,----, -._lOTECA CliNTftAA..

Transcript of osman lins tese

  • Uma obra em movimento leitura(s) de Avalovara, de Osman Lins

    REGINA DALCASTAGNE maro de 1997

    ,----, UNICAU~

    -._lOTECA CliNTftAA..

  • Regina Dalcastagne

    UMA OBRA EM MOVIMENTO: LEITURA(S) DE AVALOVARA, DE OSMANLINS

    Tese apresentada ao Curso de Teoria Literria do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Teoria Literria.

    Orientadora: Prof' DI" VilmaSant'Anna Aras, :

    Campinas Unicamp - IEL

    1997

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA IEL/UNICAMP

    Dalcastagne, Regina

    Uma obra em movimento: leitura(s) de Ava-lovara, de Osman Lins I Regina Dalcastagne. - - Campinas, SP [s.n.], 1997.

    Orientador: Vilma Sant'Anna Aras. Tese (doutoraC.o) - Universidade Estadual

    de Campinas, Instituto de Estudos da Lingua-gem.

    1. Estudo literrio:\ 2. l,:Jiteratura bra-sileira - sculo xx:, 3. Mito'~ 4. Espao e tempo na literat"C.ra"~/ 5. Lins, Osman. I. A-ras, Vilma Sant 1 Anna. II. Universidade Es-tadual de Campinc::.s, Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.

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  • Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei. LVARO DE CAMPOS

  • SUMRIO

    Resumo, i Abstract, ii Agradecimentos, iii Introduo, 1 PARTE 1 I - A cidade, 16 11- A catedral, 31 111 -A casa, 52 PARTE 2 IV- O homem, 71 V - O tempo, 84 VI - O corpo, 105 PARTE 3 VIl - Noite, 128 VIII - Dia, 149 Concluso, 169 ANEXOS Imagens, 175 Quadro cronolgico de personagens e eventos histricos citados em

    Avalovara, 197 Glossrio dos nomes prprios citados em Avalovara, 202 Bibliografia, 220

  • RESUMO

    Esta tese uma incurso pelo romance Avalovara, de Osman Lins. Obra que se narra a si mesma, que exibe sua estrutura e dialoga com seu

    tempo, Avalovara no permite uma leitura nica, redutora. Exige, bem ao

    contrrio, uma perspectiva mltipla, baseada em diferentes campos da arte e

    do conhecimento humano. este olhar que esta tese procura oferecer - o olhar de um viajante que busca reconstituir a viagem de um outro.

    O percurso est dividido em trs partes, que se inter-relacionam e se

    completam mutuamente - um pouco como as trs protagonistas do romance.

    A primeira parte do trajeto busca dar conta da distribuio espacial do romance; desde a sua estrutura mesma, que j nasce vinculada esttica medieval, at a relao do protagonista com as cidades que percorre - na

    Europa- e com aquelas que traz dentro de si -do Nordeste brasileiro.

    A segunda parte discuw a questo do tempo em Avalovara. O tempo

    em suas muitas implicaes, seja na organizao da matria narrativa, seja na relao do homem. ou da oersonagem, com o seu processo histrico e

    constitutivo. J a terceira e ltima parte fala da criao e de seus

    enfrentamentos. Primeiro, entre o criador e a opresso, que o nega,

    contamina e, muitas vezes, o destri. Depois, entre o criador e o objeto de sua criao - no caso, a palavra.

    Palavras-chave: estudo literrio, literatura brasileira: sculo XX, mito,

    espao e tempo na literatura, Osman Lins.

  • ABSTRACT

    This dissertation is an inroads into the novel Avalovara, by Osman Lins. While Avalovara narrates itself, it shows a structure and establishes dialogue with its time. It does not lend itself, though, to a single or

    simplistic reading. On the contrary, it demands a multiple approach based on different areas o f art and human knowledge. This is the vantage point the dissertation seeks to offer - a vantage point of a traveller that attempts to reconstruct someone else's voyage.

    The joumey is divided into three parts, which are interrelated and mutually complementary, much the same as the novel's main caracteres.

    The first part deals with space: starting with the novel's structure, which is in its origin related to the Medieval aesthetics, on to the protagonist's relationship with the cities he travels through in Europe as well as with those h e carries with him (the cities ofNortheast Brazil).

    The second part refers to the question of time in Avalovara. The analysis focusses on time and its implications both in the organization o f the account and in the relation between man (or the character) and his own historical and formation process. The third and last part talks about creation and its challenges. Firstly, this part sheds light on the creator's struggle against the oppression that denies, contaminares and often drestroys him. And finally, this part presents the struggle between the creator and his creature. The creature, in this case, is the word.

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  • AGRADECIMENTOS

    Este trabalho no teria sido possvel sem a ajuda, a companhia e a amizade de algumas pessoas. Gostaria de agradecer a Vilma Sant'Anna

    Aras, pela orientao carinhosa. Aos professores Vera Chalmers e

    Antnio Arnoni, pelas sugestes durante a qualificao. E funcionria do IEL Rose Marcelino, que tornou menos rdua a burocracia universitria.

    Tambm no poderia deixar de lembrar dos professores e da turma de "Histria e narrativa", na Universidade de Braslia, pesquisadores das mais diferentes reas que se dispuseram a me ouvir falar de Avalovara e de meu projeto. Em especial, Cristina Juc, que, numa tarde de inverno, me deu uma aula de arquitetura.

    Devo mencionar ainda Mauricio Melo Junior, que contribuiu, com informaes sobre o Recife e Olinda, para a elaborao do glossrio.

    Agradeo tambm o carinho de meus amigos, que, em diferentes pontos do Pas, acompanharam meu trabalho, me enviaram textos, discutiram minhas idias: Ira e Fernando, Taiana e Jaime e Cludia e Benoni. Em Braslia, Thas, Felipe e Snia deixaram os dias mais alegres. De Florianpolis, via correios e telefone, Egl Malheiros e Salim Miguel emprestaram livros, conversaram, leram e comentaram esta tese. Mas deram, principalmente, apoio e confiana - como sempre.

    Agradeo tambm minha irm, Cristina. E a meu pai, Hermnio, que trouxe o primeiro livro para eu ler.

    !11

  • IV

    Este trabalho todo ele dedicado ao Felipe, que hoje entende tanto de Avalovara quanto eu do discurso poltico. Sem ele, esta tese no teria a menor graa.

    * * *

    Durante toda a realizao do doutorado, contei com uma bolsa de

    estudos da CAPES, apoio indispensvel para a elaborao de meu

    projeto. Mais do que apenas CAPES, quero agradecer aqui a toda uma instituio: a escola pblica brasileira, que freqentei do primrio ps-graduao. Com todos os seus problemas, que devem ser enfrentados, ela

    permanece como um instrumento essencial de progresso e de democratizao. Espero poder retribuir, com meu trabalho, quilo que o povo brasileiro vem me dando, em forma de educao, h mais de vinte

    anos.

  • INTRODUO

    A vista seg~e os caminhos que lhe foram preparados na obra. PAULKLEE

    Toda narrativa uma viagem - percurso construdo pela imaginao para escoar possibilidades. Cada vez que algum conta uma histria, seja atravs de sof.sticadas tcnicas literrias, seja com a experincia dos velhos narradores, vai se fazendo um itinerrio, trajeto a ser percorrido por aquele que: l ou que ouve. Nada impede que ele descubra atalhos junto ao caminho principal ou que se demore na contemplao de detalhes quase irrelevantes; pode at se perder, ou simplesmente desistir. Isto porque a imaginao e a liberdade se sustentam mutuamente; e a narrativa pode ser uma viagem universal, mas permite ainda atingir o indivduo naquilo que ele carrega de mais ntimo

    cons1go.

    Antigos perfi.Imes, lembranas de um pequeno quarto, remotas vozes de um passado distante, sensaes e medos que no se sabe de onde vm, tudo o que habita o viajante faz parte do percurso - espao onde o novo e o j revelado, o fabuloso e o cotidiano, o sagrado e o profano se entrecruzam, formando a tessitura narrativa. esse movimento, entre o conhecido e o improvvel, que confere fascnio a uma histria. O que permite que uma obra sobreviva ao desgaste do tempo, ao lento desbotar da vida. A valovara, de Osman Lins, tem essa

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    pretenso e, mais que isso, essa proposta - inscrever o romance na grande trajetria humana, narrar essa aventura e ser narrado por ela.

    Por isso o livro se oferece ao leitor como uma inesgotvel

    viagem, uma incurso pelo conhecimento. A poltica, as artes, a filosofia,

    a psicanlise, a biologia, a astronomia, a religio, os mitos - grandes criaes humanas so visitadas, seja com o olhar encantado de quem est descobrindo o mundo, seja com a vista cansada e o corao desiludido daqueles que j sabem de suas mazelas. O homem que empreende a viagem sugerida por Avalovara ainda o mesmo que sofreu a Queda e j inteiramente outro. Esse o leitor do romance e esse Abel, seu protagonista. Tanto um quanto o outro sero conduzidos no tempo e no espao, na espiral que cruza o palndromo mgico, por trs mulheres, trs representaes da vida.

    Anneliese Roos, Ceclia e 0 so percursos, pedaos de uma viagem pelos meandros da existncia humana e a viagem inteira - so a parte e o todo, como o pssaro cosmognico que d ttulo ao livro, que pssaro e nuvem de pssaros. A primeira feita de cidades, a outra hospeda homens em seu corpo e a ltima, sem nome, carne e verbo. Abel as percorre e percorrido por elas, ele as cria e criado, ama e amado, mas, ainda assim, so as mulheres que o conduzem, que lhe exibem o mundo, com suas maravilhas e seus infortnios. So elas que transportam o conhecimento, o sentido das coisas ou a falta dele. Como guias, podem ser cruis, abnegadas, distantes, apaixonadas... s no guardam a pureza da Beatriz de Dante - esto absolutamente contaminadas de humanidade.

    Esta tese pretende ser uma incurso aos mistrios de Avalovara, uma viagem que procura obedecer ao itinerrio elaborado por Osman

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    Lins. Partindo da, com a liberdade inerente a cada leitor, permitir-me-ei

    a escolha dos pontos onde me deter e aqueles aos quais lanarei apenas um breve olhar; at porque a jornada seria demasiado longa, e possivelmente infrutfera, caso tivesse a presuno de oferecer uma

    leitura exaustiva do romance. Assim, entre todas as possibilidades

    apresentadas pela obra, h algumas questes que considero fundamentais

    para a compreenso de sua pmposta e que sero visitadas com mais vagar.

    Existem inmeras passagens possveis para cada estgio da

    anlise de Avalovara. Meu fio de Ariadne ser tecido pelas trs protagonistas do livro, Anneliese Roos, Ceclia e 0. Isolada e

    conjuntamente - ser resguardada a seqncia em que aparecem no caminho de Abel - elas iluminaro este trabalho. A primeira parte do

    trajeto, guiada por Anneliese, buscar dar conta da distribuio espacial do romance: desde a sua estrutura mesma, o plano da obra, que j nasce vinculado esttica medieval, a:: a relao de Abel com as cidades que percorre - na Europa - e com aquelas que traz dentro de si - do Nordeste brasileiro. uma etapa feita de percursos. Atravessaremos cidades mticas e catedrais gticas, praas povoadas de mendigos e outras repletas de histria, canaviais, palcios e pequenos chals.

    A segunda parte, regida por Ceclia, discutir a questo do tempo em Avalovara. O tempo com suas mltiplas implicaes, seja na organizao da matria narrativa, seja na relao do homem, ou da personagem, com o seu processo histrico e constitutivo. uma etapa feita de encontros - do criador com a criatura, do artista com o homem, da personagem com o homem, do homem com o homem. Encontros cheios de conflitos, marcados por impossibilidades. J a terceira e ltima

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    parte, norteada por 0, falar da criao e de seus enfrentamentos.

    Primeiro, entre o criador e a opresso, que o nega, contamina e, muitas vezes, destri. Depois, entre o criador e o objeto de sua criao, no caso, a palavra. Mitos cosmognicos, descidas ao inferno, a nostalgia do

    Paraso, caos e cosmos - a construo da ordem narrativa ser estudada aqui. Essa ser uma etapa de revelaes.

    Juno de um quadrado palindrmico e de uma espiral, Avalovara abriga toda uma concepo, sofisticada e erudita, do fazer literrio. Matematicamente elaborado, permitindo que uma sucesso de temas se entrelace com perfeio, o romance contempla sua prpria trajetria, desde os primeiros narradores at as mais modernas inovaes tcnicas. Seus protagonistas, confeccionados a partir do amlgama de

    bichos, homens, cidades ou mesmo de personagens alheias, habitam no um mundo recriado pela palavra, mas um romance meticulosamente construdo a partir de uma viso do universo. Um romance que se prope como tal, que feito de poesia e clculo, de rigor e paixo.

    Descamando suas personagens, reconstruindo-as atravs da compresso de materiais estranhos, como fazia o pintor milans Giuseppe Arcimboldoi, Osman Lins as converte em metforas de si mesmas, e acaba por problematizar toda a relao entre realidade e arte ficcional. Nessa restaurao figurada, ele estabelece um novo jogo com o leitor, instigando-lhe a imaginao, induzindo-o a adaptaes inslitas. concreta no-materialidade das personagens - que permite que cidades se ergam e flutuem nos ombros, cabelos e rosto de uma mulher - combina-se o mundo "presentificado", ao qual almejava Osman Lins. Ou seja, uma

    1 Nos retratos de Arcimbo1do (1530-1593), rostos e troncos humanos so compostos a partir de legumes. frutas, animais ou mesmo livros agrupados.

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    literatura onde o passado e c futuro so incorporados por um Imenso presente, unificado, inteiroz.

    Esse efeito de integrao temporal comea pela prpria estrutura do livro. Sobre as 25 casas relativas s letras do palndromo latino SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS que significa aproximadamente "O lavrador mantm cuidadosamente a charrua nos

    sulcos", podendo tambm ser entendido como "O Lavrador sustm

    cuidadosamente o mundo em sua rbita" (Av, 32) - Osman Lins faz deslizar uma espiral. Constroem-se a oito linhas narrativas diferentes, uma para cada letra do palndromoJ. A passagem da espiral sobre cada quadrado, sucessivamente, determinar o retomo cclico dos temas neles esparsos. Apesar de acompanharem o movimento maior, de fora para

    dentro, cada um desses blocos desenvolve-se como uma nova espiral,

    dessa vez de dentro para fora, numa progresso rgida: dez linhas de texto na sua introduo, vinte no segundo trecho, trinta no terceiro e assim por diante. H trs exceqes - "O relgio de Julius Heckethom", onde a progresso obedece ao nmero 12, "Ceclia entre os lees", que segue o nmero 20, e "0 e Abel: o Paraso", dividido em apenas duas partes, e cuja ltima no acompanha nenhum critrio4

    2 Lins, Evangelho na taba, p. 142.

    3 Na verdade, seriam a rigor nove letras, j que os RR de SA TOR e AREPO (repetidos em ROTAS e OPERA) representam dois elementos diferentes na estrutura do quadrado palindrmico (um quadrado palindrmico de 25 casas possui necessariamente nove casas de liberdade). Osman Lins no percebeu ou desprezou este detalhe. 4 A quinta edio do romance (So Paulo: Companhia das Letras, 1995) ignorou a progresso do nmero de linhas. Para reduzir o nmero de pginas, a editora desrespeitou a obra.

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    Enquanto o quadrado a imagem do espao csmico e da pgina do livro, portanto da finitude, do horizonte, a espiral simboliza o tempo desenrolando-se infinitamente, o caos.

    Espao e tempo, caos e cosmos so

    elementos fundamentais em Avalovara, so causa e conseqncia,

    forma e contedo. Para Osman Lins, a narrativa era uma cosmogonia e o escritor seu demiurgo. O mundo e as palavras, a experincia do mundo e

    das palavras, tudo estaria ordenado at o momento em que o escritor se pe diante do papel em branco. Da em diante, mundo, palavras e narrativa explodem, retornam ao caos inicial e exigem nova reordenao: " nesse sentido que todo o problema do caos e do cosmos me atrai, pelo fato de que quando eu me ocupo das cosmogonias, vamos dizer assim, estou me ocupando da narrativa"5.

    Se criar significa dar ordem ao caos, reelaborar a matria pr-existente, ento o relato desse movimento tem de estar, necessariamente, inscrito na obra. Afinal, toda cosmogonia exige uma narrativa. Osman Lins oferece a gnese e a estrutura de sua criao em duas linhas narrativas de Avalovara- "A espiral e o quadrado" e "O relgio de Julius Heckethom". Na primeira, temos a histria da origem do romance e de sua substncia. A histria do servo, Loreius, a quem seu senhor promete a liberdade caso este consiga elaborar uma frase que possa ser lida de todos os lados e que represente "a mobilidade do mundo e a

    5 Lins, Evangelho na taba, p. 224.

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    imutabilidade do divino" (Av, 24) e a do senhor, Publius Ubonius, que sonha com o Unicrnio e o transporta para a viglia.

    a que o autor expe e justifica o obscuro parentesco entre a espiral e o quadrado mgico (Av, 55), ligao essa que vai nortear toda a estrutura espacial do romance. E onde afirma que a obra imitaria um

    longo poema mstico inconcluso, cujo nico exemplar existente, numa verso grega, encontra-se em Veneza. Nele, j estaria inscrito o quadrado mgico, por onde deslizaria uma espiral em cinbrio. Cada uma das oito

    letras possuiria um significado mstico (ver quadro abaixo) que teria perdido a grandiosidade no romance, restando "quando muito, um halo nostlgico da ambio que inspirou o seu modelo, mais de duas vezes

    milenar. E talvez a idia, insistentemente repetida no velho manuscrito, de que o Unicrnio circula entre estas pginas" (Av, 96).

    LINHAS NARRATIVAsa definio em "A espiral e o quadrado", 95-6 R - 0 e Abel: Enconrros, Percursos, "a palavra divina, nomeadora das coisas e Revelaes (22) ordenadora do caos" S- A Espiral e o Quadrado (10) "confia ao leitor, com a permisso de Jano,

    as chaves disponveis sobre a organizao do prprio livro"

    O- Histria de 0, Nascida e Nascida (24) ''a natureza dupla (anglica e carnal) do homem!!

    A - Roas e as Cidades (21) "a Cidade de Ouro" T - Ceclia entre os Lees ( l 7) "o Paraso e a Unidade: a o homem conhece

    a morte e expulso" P- O Relgio de Julius Heckethom (lO) "o equilbrio interior e o equilbrio dos

    planetas, sendo o eclipse total sua expresso perfeita por representar o alinhamento exato, embora temporrio, de astros errantes"

    E - 0 e Abel: ante o Paraso ( 17) "a pere1,'1inao humana em busca da sabedoria"

    N - 0 e Abel: o Paraso (2) urepresenta a comunho dos homens e das coisas 11

    '' a Entre parenteses esta md1cado o numero de vezes em que a lmha narrativa aparece no texto.

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    J em "O relgio de Julius Heckethom", a questo temporal que

    se narra. Atravs da histria de Julius, um msico alemo nascido no comeo do sculo, e de sua imensa paixo pelos relgios, vamos tendo acesso concepo de tempo que envolve Avalovara. Repudiando a representao do tempo atravs de engenhos contnuos, nunca

    interrompidos, e certo de que os relgios de ponteiros a saltos refletem um tempo mais real - uma vez que "a saltos move-se no corpo o sangue,

    a saltos atuam os pulmes, mesmo as aves de mais tranqilo vo a saltos se deslocam, nadam os peixes movendo, a saltos, as barbatanas, dia e noite so saltos, ir e vir, passar e ressurgir" (Av, 324) -, Julius constri seu prprio relgio. Uma mquina que smbolo da ordem astral e que, a intervalos impossveis de determinar, tocaria uma frase da Sonata em F

    Menor (K 462) de Scarlatti. Com a preciso do relgio e a pacincia do relojoeiro, Osman

    Lins engendra sua narrativa. No romance, como no relgio, a seqncia de notas est dispersa e exige do observador "um conhecimento geral das leis que regem a sua inveno, sem o que facilmente parecer fastidiosa, irregular e destituda de um conhecimento aprofundado do oficio" (Av, 334). Por isso, a necessidade da exposio dos andaimes, para que o leitor possa enxergar desde longe a envergadura da construo. Mas, se h, por um lado, a evidncia do grande projeto, por outro, percebe-se a dissimulao do artfice. Nem tudo se mostra em Avalovara - subsiste, nas ranhuras de suas paredes, o inefvel.

    Espalhados ao longo do livro, entremeados s diferentes linhas narrativas, se escondem fragmentos valiosos - pequenos retalhos de um tapete, notas dispersas de uma sonata. Atravs deles talvez se possa alcanar uma intuio maior do construtor e de sua obra. Tal como o

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    servo Loreius, ou o msico Julius Heckethom, o autor do romance (personagem tambm) est empenhado numa busca - a harmonia dos imponderveis, "que permite a um homem encontrar a mulher com quem se funde, que faz nascer umz. obra de arte, uma cidade, um reino" (Av, 347). Dentro dessa perspectiva, Avalovara descoberta e busca- projeto, execuo e relatrio num nico artefato.

    Quando Abel diz que sua vida se resume a um s ato, "buscar, sabendo ou no o qu" (Av, 64), ele se expe como personagem, criatura desse autor, que desde o incio alertava sobre sua funo: "A esto, homem e mulheres, inventados para ajudar o autor a desvendar uma ilha do mundo -e tudo, personagens e fatos, vem de um comeo inalcanvel.

    Nos seus gestos, triviais ou mesmo obscenos, eles buscam decifrar um

    enigma. Tm de faz-lo. Vibra dentro deles uma presena que no se pode negar ou esquecer" (Av, 73-4). A necessidade da busca anterior prpria existncia da personagem, porque constitu o cerne da obra.

    Mas se Abel experimento literrio de um autor no muito definido, ele tenta ainda, desesperado, se impr como protagonista de seu destino. A busca, muitas vezes transcendental, a que ele se v condenado, no compromete seu discer1imento histrico. Ainda que declarada personagem, Abel intrinsecamente humano - o que s faz agudizar seus conflitos. Como homem que , ele no pode deixar de dialogar com o seu tempo, de ser marcado por seus desgnios; mas como personagem sofre restries. H um projeto que o antecede e que, de alguma forma, conduz sua vida, seja por entre um complexo enredo terico-ficcional, seja num mundo que possui existncia prpria.

    Em meio ambigidade, Abel viVe o conflito primordial do homem - sua eterna luta contra a irreversibilidade do tempo, contra a

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    mortalidade. Segundo Hannah Arendt, os homens so as nicas coisas que morrem porque

    ao contrrio dos animais, no existem apenas como membros de uma espcie cuja vida imortal garantida pela procriao. A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual, com uma histria vital identificvel desde o nascimento at a morte, advm da vida biolgica. Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelo curso retilneo do seu movimento que, por assim dizer, intercepta o movimento circular da vida biolgica. isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cclico. 6

    Portanto, s restaria aos homens sua potencial capacidade de produzir obras que "mereceriam pertencer e, pelo menos at certo ponto, pertencem eternidade, de sorte que, atravs delas, os mortais possam encontrar o seu lugar num cosmos onde tudo imortal exceto eles prprios"7.

    Abel a conscincia angustiada desse fato. A imagem da linha reta que intercepta o movimento circular poderia estar refletida no plano da obra em Avalovara, onde o curso retilneo do quadrado que interrompido pela espiral. Quanto obra, que possibilitaria a incluso do mortal no cosmos, ela objeto da busca de Abel: "O texto que devo encontrar (onde est impresso ou se me cabe escrev-lo, no sei) assemelha-se ao nome de uma cidade: seu alcance ultrapassa-o - como um nome de cidade -, significando, na sua conciso, um ser real e seu evoluir, e as vias que nele se cruzam, sendo ainda capaz de permanecer quando tal ser e seus caminhos estejam sepultados" (Av, 64).

    O percurso de Abel procura da Cidade de Ouro est inscrito num quadrado e numa espiral, num espao e num tempo aparentemente

    6 Arendt, A condio humana, p. 27. 7 Id., p. 28.

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    limitados, circunscritos. Nosso protagonista estaria encurralado ali, apalpando paredes, esbarrando em linhas invisveis. Mas ele vai alm -

    seguindo o trajeto da espiral, viaja pela histria humana atravs de sua arte, seus medos, suas narrativas e seus mitos. No entanto, o conflito permanece, e mais que isso, se desdobra a partir desse movimento. Abel

    precisa transcender seu tempo para alcanar um "lugar no cosmos", mas no pode trair os homens com quem habita o mundo. Vive ento um

    insolvel conflito entre um temDo sagrado e um tempo profano. Conflito esse que, em diferentes escalas, modela tambm outras

    personagens, como Julius Heckethom e a prpria 0. Sofrendo os dramas da sociedade moderna, eles compartilham ainda a angstia do homem

    arcaico. Segundo Mircea Eliade, o primitivo tolera a "histria" (o tempo profano) com dificuldade, tentando aboli-la periodicamente atravs de rituais que reatualizem a cosmogonia8. o que faz Julius quando constri seu magnfico relgio, que smbolo e evocao da ordem astral, mas que sofre as desventuras de seu prprio tempo - Hitler e a Segunda Guerra Mundial. E o que faz 0 em seus repetidos encontros com o A valovara, pssaro cosmognico que a reconduz, junto com Abel, ao Paraso.

    At mesmo as personagens de Abel, as quatro gmeas septuagenrias, tentam ludibriar o tempo, venc-lo. E o fazem justamente atravs da fico. Cada uma quer incutir no esprito da outra "a memria da sua prpria vida; as demais devero esquecer o que viveram e recordar apenas o que ouvem" (Av, 267). As narrativas que produzem - idnticas, uma vez que sempre estiveram juntas - acabam se transformando em

    8 Eliade, Mito do eterno retorno, pp. 39 e 69.

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    biografias imaginrias, que geram uma quinta velha. Contando umas s

    outras histrias que no viveram, elas disputam entre si a sobrevivncia. Perdurar "ser o atestado e a comprovao da prpria identidade" (Av, 268). Sobram, no final, apenas duas, j octogenrias, que aguardam, cheias de rancor, o desfecho. J no saberiam dizer, mas uma delas pode ser a imaginada, a clandestina. So senhoras ou vtimas de sua fico?

    A revolta contra a irreversibilidade do tempo pode levar o homem a construir mitos, erguer cidades e monumentos, criar grandes obras de arte, mas nada o impede de continuar enxergando o conflito, de seguir vivendo-o. O mundo permanecer sendo, eternamente, o "lar no-mortal de seres mortais"9. Avalovara faz parte dessa tentativa de realizar algo mais permanente que a prpria vida, mas tambm uma profunda discusso sobre tal objetivo. Por isso mesmo difcil falar de sua estrutura espao-temporal sem pensar em toda uma combinao de significados e propostas que permeiam a obra e lhe do consistncia. A idia de um tempo "presentificado", sugerido por Osman Lins em entrevistas e levado execuo em Avalovara, possui tradio na literatura, na filosofia e na lsica.

    Quando 0 diz que "pode ser que tudo exista simultaneamente e que tenhamos do tempo no uma idia correta ou verdadeira, e sim uma que preserve nossa integridade. Temos de crer que somos um ponto, no um trao reto ou sinuoso; apreendemos as coisas, no a soma de seus deslocamentos" (Av, 140-l), ela est explicitando uma dificuldade essencialmente humana, de se situar no tempo, descrever-se ali. Mas est

    9 Arendt, op. cit., p. 181.

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    tambm insinuando uma outra possibilidade de apreenso do tempo e do mundo. Algo semelhante ao que intui Abel em seu texto:

    fmaginai uma viagem fluvial. O barqueiro. da nascente ao esturio, segue o fluxo das guas. Esse percurso comea? Termina? O barqueiro acha que assim e assim v: e na verdade h uma face do percurso onde o comeo e o fim existem, onde existe uma leitura ou uma execuo da viagem. H uma face da viagem onde passado e futuro so reais; e outra, no menos real e mais esquiva, onde a viagem, o barco, o barqueiro, o rio e a extenso do rio se confundem. Os remos do barco furam de uma vez todo o comprimento do rio; e o viajante, para sempre e desde sempre, inicia, realiza e conclui a viagem, de tal modo que a panida na cabeceira do rio no antecede a chegada no esturio (Av, 107-8. nfase suprimida). Essa concepo de tempo e espao meticulosamente pensada e

    elaborada por Osman Lins. Cono j disse, tudo comea pelo plano geral da obra, ou seja, pelo quadrado e pela espiral que se sobrepe a ele. Essa imagem, descrita pelo "autor" numa das linhas narrativas, chapada, sem perspectiva. Se lhe dssemos profundidade, poderamos imaginar a espiral no sobreposta a um quadrado, mas afundada num cubo. Tempo e espao estariam unificados pela ausncia de perspectiva, mas continuariam existindo ali, distintos, submersos. O efeito ilusrio aumenta sua ressonncia, d mais fora a seus deslocamentos. Ao entranhar-se no quadrado, a espiral construiria um trajeto que ma penetrar num territrio e num tempo mticos.

    Quando Abel descobre Anneliese Roos em Paris cronologicamente, a primeira das trs mulheres por quem o protagonista se apaixona- ela j futuro e passado. Ele no consegue deixar de v-la, desde sempre, inscrita como passado num texto futuro. Da mesma maneira, Ceclia lhe anunciada dezesseis anos antes do primeiro encontro. Nesse momento, presente que j faz parte do passado, o futuro se precipita pelo conhecimento que Abel possui sobre o destino trgico da moa. 0, que ela e as outras, "soma e smula de totalidades" (Av,

  • 14

    262), abrange tempos e espaos que so e no so necessariamente os seus. Transita por Paris, So Paulo e Recife, vem antes, depois e sempre.

    Essa a argamassa de Avalovara - um composto de tempo e espao que pode dar a impresso de imobilidade, de calmaria, mas que indcio de grandes tempestades. Osman Lins dizia que a estrutura rigorosa de uma obra " como uma jaula dentro da qual se movem animais selvagens" lo. H lees, grifos, unicrnios, borboletas e serpentes

    encerrados nas pginas de Avalovara, mas basta folhe-las para que eles

    escapem, voem sobre nossas cabeas, bafejem seu hlito quente ao nosso redor. Tudo movimento e vida sob uma fina camada de cal. Alm dos bichos, homens e mulheres residem ali, abrigados desde o instante da Queda.

    Construo firme e acolhedora, erguida segundo leis e princpios rigorosos que, como veremos, remetem muitas vezes concepo esttica da Idade Mdia, o romance de Osman Lins lembra uma catedral gtica. Imenso prdio espera de um olhar atento e paciente, de um observador que se disponha a percorr-lo, a acompanhar suas sombras e seu colorido, a incursionar por seus mistrios. Mais do que lido, Avalovara precisa ser visitado. Isto porque,

    um edfico gtico no , simplesmente, uma massa em movimento: mobiliza o espectador tambm e faz com que um ato de entusiasmo se converta num processo de direo definida e realizao gradual. Tal edificio no pode ser abrangido no todo, imediatamente, de qualquer ponto de vista possvel; de nenhum dos ngulos apresenta um aspecto calmo e completo que denuncie a estrutura do conjunto. Pelo contrrio, obriga o espectador a mudar constantemente de ponto de vista, e somente lhe permite obter uma viso de conjunto atravs de seu prprio movimento, ao e poder de reconstituio I I.

    !O Lins. Evangelizo na taba, p. 167.

    li Hauser. Histria social da literatura e da arte, vol. 1, p. 326.

  • 15

    Movimento, ao e reconstituio na anlise de uma obra como

    Avalovara podem ser traduzidos, mais uma vez, por viagem e relato de

    viagem. Se o romance tem essa proposta, a inteno desta tese no poderia ser outra. Mas como refazer um trajeto j percorrido sem pisar sobre seus mistrios, sem esmagar suas lembranas? Poder-se-ia, talvez, reescrever o livro, palavra por palavra, como fez Pierre Menard com Dom Quixote. Como viagem que , meu texto se pretende uma nova narrativa, novo percurso a ser escolhido por um leitor. Ele no apagar a

    memria original, de onde partiro todos os elementos, mas ser o olhar de um outro que se deter sobre a~ paisagens e os percalos do caminho.

  • A CIDADE

    De uma cidade, no aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que d s nossas perguntas.

    ITALO CALVINO

    Atravessar oceanos, enfrentar exrcitos, descer aos infernos - no

    existem fronteiras para aquele que busca, seja o objeto dessa busca um reino improvvel, a mulher amada ou uma baleia branca. Desde que o

    primeiro homem se retirou do convvio com os seus no encalo de algo

    que apenas podia inmir, uma multido o sucedeu - herdeiros de uma

    angstia que os sufoca e os impulsiona. Abel compartilha esse mesmo

    destino, escravo e senhor de uma razo que o precede e que veio depois

    dele. Saindo em busca da Cidade, que se faz anunciada dez anos antes no

    fundo de uma cisterna, ele empreende uma grande viagem, onde ter que

    se confrontar com territrios vazios, monstros sinistros e desiluses ainda

    mais terriveis.

    Abel, embora personagem de um outro, ainda aquele que habita

    um mundo povoado por homens, e, com eles, usufrui de uma histria

    comum, feita de enfrentamentos e paixes, alegrias e dor. Idnticas

    experincias que, num canto ou noutro do globo, podem ser vividas de

    maneiras completamente diferentes. Isso porque, ao ocupar a Terra, os

    homens semeiam culturas. Abel humano, mas tambm ocidental;

    nasce impregnado pela tradio judaico-crist. Mitos e deuses alheios a essa tradio podem at auxiliar na trajetria do protagonista, como o

    16

  • 17

    caso do A valo vara 1, mas no a sustentam. Abel est intrinsecamente

    ligado cosmogonia bblica. Ele descendente de Ado e Eva, irmo de Cam.

    Abel, no Gnesis, o preferido de seu deus, o que desperta no irmo o dio e o leva ao fraticdio. Mas tambm o fraco, aquele que

    no vingou, o que pereceu. Seu nome significa vento passageiro,

    ninharia2. Caim, o assassino, o revelador da morte, foi "o primeiro

    homem a retirar-se da presena de Jeov e partir, numa infinda

    caminhada, em direo ao sol levante"3. Carregava consigo a marca de

    Deus, "a fim de que no fosse morto por quem o encontrasse"4 Foi Cam

    que construiu a cidade, ele quem povoou o mundo: Partiremos para o deserto dos homens, e que os homens, inumeravelmente, povoaro. Ns nos guiaremos pela aurora sempre renovada ... E ser por no nos determos em parte alguma que estaremos sempre em toda parte. Nossa vida errante nos permitir medir a terra e, ao mesmo tempo, ns a edificaremos. 5

    Na face de cada homem que veiO depois se exibe ainda a sua

    marca, sinal que distingue e une. O Abel que circula pelas pginas de

    Avalovara o mesmo que teve a garganta rasgada na Bblia, mas j inteiramente outro. Se observado por esse ngulo, veramos que sua

    fronte guarda uma pequena mancha, ao mesmo tempo em que uma tnue

    cicatriz se insinua em seu pe,coo. um Abel renascido, ainda aquele,

    I O nome do pssaro, e do livro, uma reduo da palavra Avalokitesvara - um deus oriental que representa a misericrdia e a compaixo. Ver Cotterell, Diccionario de mitologia universal, pp. 80-l.

    2 Cf. Bblia, p. 32.

    3 Chevalier e Gheerbrant, Dicionrio dos smbolos, p. 162. 4 Gn, 4,15. 5 Luc Estang,Lejourde Cafm, cit. in Chevalier e Gheerbrant, op. cit., p. 163.

  • 18

    mas j carregando a experincia dos que se seguiram, herdeiros de seu irmo, criadores e habitantes de cidades. Vrtice de um tringulo que une

    os trs primeiros homens, ele no nem aquele que habitou o Paraso -

    "nascemos expulsos e cados" (Av, 236) -nem o que edificou as cidades. Abel no passa de um "vento passageiro", e esse seu tormento

    primordial.

    Aos 16 anos de idade, jogando tarrafa numa cisterna, procurando no peixes, mas respostas s suas indagaes, Abel se confronta com a

    morte e sai ileso. Ao mesmo tempo em que irresistivelmente atrado

    para o fundo das guas, l, onde a morte o espera, algo impede que ele se

    atire. Rompido o encanto, ele se sente como se "houvesse mergulhado,

    lidado com o No, escapado" (Av, 78). Tal como Jos, Abel libertado do poo, de onde sai, como sobrevivente, para retraar seu destino.

    Esquivando-se da morte, ele no se faz provedor do Egito, mas jovem errante pelos chos europeus. Na nsia de perdurar, deseja talvez o lugar do irmo. Mas no Cam, no pode erguer cidades que h tantos sculos j esto l, enraizadas em sangue e histria, tragdias e cultura.

    Por isso ele sai ao encalo da Cidade, viso abstrata e carregada

    de fascnio que lhe escapa compreenso e o persegue com seus

    sortilgios. Abel a busca j cheio de ressalvas, parece que se justificando sempre pela decepo que vir - jamais ser a sua cidade. No sabe porque a quer. Talvez imagine que com ela possa se livrar

    definitivamente do monstro peonhento que o abordava na infncia6; talvez precise descrev-Ia, escrev-la, para faz-la sua, conquist-la ao

    6 "Sinto o cheiro do animai que desde a infncia, sempre que interrogo coisas simples e

    indizveis como a superficie de um espelho e as paredes lisas, aparece atrs de mim exalando a sua inhaca que significa: 'No consegues, Abel"' (Av, 52).

  • 19

    irmo. Mas antes tm de encontr-la, e ela nunca est l. A primeira parte

    de seu percurso se d na Europa, entre fabulosas catedrais e palcios luxuosos - arte e arquitetura. So milhares de quilmetros transitados, num itinerrio que tem, ele prprio reconhece, "alguma coisa de demncia" (Av, 178).

    Em cada cidade visitada, Abel encontra apenas um plido reflexo

    daquela que busca: "Farejo, co, nas cidades percorridas, uma presa intangveL uma caa que vi, eu, co, por um espelho, mas da qual no cheguei a distinguir o cheiro" (Av, 179). Mas no se sente fraudado, no cr desperdiados seus dias; nelas estariam as instrues sobre "o livro que em segredo aspiro escrever ,~ cujo tema central seria o modo como as coisas, havendo transposto um limiar, ascendem, mediante novas

    relaes, ao nvel da fico" (Av, 179). A Cidade que ele procura est desde sempre ligada a um texto futuro, a um livro que pretende se fazer possvel. A dificuldade da busca se alia ao fato de que a Cidade se transforma, muda suas feies permanentemente, como, alis, toda cidade, todo texto vivo, incluindo a o prprio Avalovara.

    Annelese Roos, uma alem que recita versos de Anacreonte para Abel em Paris (os mesmos versos que Abel lia, isolado, na cisterna), representao dessa inconstncia. Ela "o crculo, a volta, o progresso ilusrio" (Av, 25). Em seu corpo, flutuam cidades, incalculveis e desertas. Smbolo do inatingvel, corporificao do urbano, Roos ainda a mulher por quem Abel se apaixona, alm de declarada personagem de um autor que se insinua vez ou outra. Essa ambigidade entre o ser e o representar fundamental em Avalovara. Cada uma das personagens do romance e representa ao mesmo tempo; s assim podem dar conta da

  • 20

    prpria complexidade estrutural. Anneliese simboliza as cidades que transporta no corpo, mas tambm essas cidades.

    Tudo no romance possui essa ambivalncia. Nada apenas o que parece ser em determinado momento, sob determinado ngulo. Imagens e

    sentimentos, as prprias personagens - assim como a Cidade - se vo

    transformando, desconstruindo-se e refazendo-se ao longo do livro. Abel

    quer Anneliese tanto quanto deseja a Cidade e a ambas, de alguma maneira, teme. Observando, atento, um pssaro que se aproxima de Roos

    num parque, ele atrela seu destino junto a ela com o da ave: "suba o pssaro mo dessa estrangeira e estou para sempre enredado num

    barao" (Av, 56). Mesmo desejando-a, Abel bate palmas e espanta a ave,

    confirmando assim a separao que vir em breve: "Com o meu gesto,

    desapareci- como o pssaro- dos olhos de Roos" (Av, 56). A Cidade no o assusta menos. Suas metamorfoses, suas mltiplas faces, os acrscimos

    e perdas que, ele sabe, a constituem, tudo o submerge em dvidas. Como a reconhecer? "Vendo-a, encontrarei" (Av, 91), responde. Mas se Roos abriga, dentre todas as cidades, aquela que ele procura (Av, 93), por que o reflexo instintivo de afastamento? Talvez porque o encontro implique no fim da busca; talvez porque o medo da decepo seja maior; quem sabe porque ele ainda no se julgue preparado para a resposta que aguarda desde menino - resposta para uma pergunta que ele j no reconhece.

    A Cidade e est em Anneliese, mas Abel no a alcana porque ela apenas parte do percurso, trecho da viagem que, sob novas feies, prosseguir com Ceclia e 0. Encontrar a Cidade "cuja imagem aparece uma tarde, miniatura!, vinda atravs de mares e estaes, como o espectro de um pssaro ou de um antepassado" (Av, 90-1 ), pode parecer,

  • 21

    em certos momentos, menos importante do que busc-la. Mas no to simples. Basta andar um pouco mais, dar alguns passos em outra direo

    para que o sentido da busca e do encontro em Avalovara se transforme de novo, invertendo-se, revigorando-se incessantemente. Mais uma vez,

    possvel lembrar o edifcio gtico, tal como descrito por Hauser - uma massa que obriga o "espectador a mudar constantemente de ponto de vista, e somente lhe permite obter uma viso de conjunto atravs de seu prprio movimento, ao e poder de reconstituio".

    Invejado destino de Caim, texto futuro, resposta a indagaes desconhecidas - a Cidade que Abel procura tambm prottipo divino, a Jerusalm celestial que, no romance como no Apocalipse, desce dos cus "pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido"7. Essa Jerusalm, criada por Deus muito antes da primeira cidade ter sido

    erguida pelas mos do homem, teria sido mostrada a Ado antes do pecados. "Espectro de um antepassado", a Cidade que se insinua na

    existncia de Abel pode ser aquela mesma que foi apresentada um dia a seu ancestral. Remota memria, nostlgica lembrana do Paraso, sua imagem se confunde com a idia de Criao.

    Caso se entenda, como Mircea Eliade que "toda criao repete o ato cosmognico pr-eminente, a criao do mundo"9, pode-se perceber porque a Cidade de Abel est ligada a um livro. Atravs dela ele chegar ao texto, obra que, por sua vez, o levar de volta ao momento da Criao. Esse encontro inclui, necessariamente, a busca - trajeto de ida e volta que Abel crava em sua prpria carne, conduzindo e conduzido

    7 Ap, 21.2.

    8 Ver Eliade. Mito do eterno retorno, p. 20.

    9 Id., p. 27.

  • 22

    pelas trs mulheres que ama. Se a Cidade representao da nostalgia do

    Paraso, o percurso que leva at ela o mesmo que transportar Abel e 0

    ao Jardim original. Esse percurso vai em direo ao centro, ao N do palndromo mgico. l, no centro, que se encontra o Paraso - umbigo do mundoJO.

    Seu acesso dificil, a estrada rdua, repleta de perigos, porque, na verdade, representa um ritual de passagem do mbito profano para o sagrado, do eremero e ilusrio para a realidade e a eternidade, da morte para a vida, do homem para a divindade. Chegar ao centro equivale a uma consagrao, uma iniciao; a existncia profana e ilusria de ontem d lugar a uma nova, a uma vida que real, duradoura, eficientell,

    Esse carter inicitico da busca de Abel possui mltiplas perspectivas. Abel um homem, mas tambm uma personagem e um autor.

    "Transcender", para ele, muito mais que um movimento em direo ao

    mstico - toda uma escalada em torno do sentido de criao. Por isso mesmo, mais do que qualquer mistrio divino, o que

    Abel persegue so construes humanas (ainda que boa parte delas seja dedicada aos deuses). A grande Criao apenas exemplar, insuficiente aos homens para se sentirem integrados ao cosmos, ou aos seus. Erguer cidades, arrancar figuras de dentro de um bloco de pedra, construir uma vida manuseando somente palavras, todo ato criativo pode ser considerado uma afronta aos deuses. O poder da criao talvez j no lhes seja exclusivo, quem sabe nem lhes pertena mais. Pode ter sido roubado junto quela ma, ou com o fogo transportado por Prometeu. A punio sem dvida foi severa, mas o legado da liberdade um bem

    !O Ver id., pp.23-6.

    li Id., p. 27.

  • 23

    excessivamente precwso para que o homem venha algum dia a se

    arrepender.

    Abel, ao sair atrs do destino de Caim, reclama, de certa forma,

    seu quinho nessa herana. Abdica do privilgio de ser o preferido,

    rejeita o sacrifcio, e escolhe o incerto, aquilo que apenas se anuncia, promessas sussurradas ao vento. Ele renuncia a Deus em beneficio de um

    autor, que o convida a exercer ~:ua liberdade, a ser aquele que busca, o que cria. Quem o traidor e :JUem o trado aqui? Abel engana a entidade divina e enganado pelo mortal. Afinal, o que um autor seno

    outro criador? No entanto, humano. E essa parece ser a escolha

    definitiva de Abel. Ele opta pelo3 homens, Prometeu moderno, e passa a

    ser tentado e castigado pelos deuses.

    O conflito, que lhe inerente, ser seu eterno companheiro.

    Estaria com ele no alto do Cucaso, observando seu figado ser

    diariamente devorado pela guia. Est ao seu lado no guich da Caixa

    Econmica Federal, enquanto o artista vai sendo mastigado pelo

    burocrata. Abel escolheu o destino dos homens, mas estes se realizam

    imitando os deuses. Gerando obra> que pretendem pertencer eternidade, eles tentam imp-las diante da Criao. Chegam a crer que aquilo que

    surge de suas mos pode ser ainda mais belo do que o resultado do

    trabalho divino. Witelo, amigo de Toms de Aquino, acreditava que "o

    artificial parece mais belo que o natural. Em outras palavras, que o artista

    humano poderia concentrar em sua produo uma idia mais significativa

    e um arranjo mais harmonioso do que qualquer outro proporcionado pela natureza"12.

    !2 Stites, 77le arts and man, p. 423. Tambm Hildeberto de Lavardin, poeta do incio do sculo XII, dizia a respeito da beleza h'Tandiosa e melanclica das runas de Roma: "As

  • 24

    Em meio discusso, Abel se questiona sobre o que produzir -

    um livro que fale dos homens aos homens, de um cotidiano histrico que jamais ser substitudo, j que nico, ou uma obra que instaure um novo dilogo com os deuses, que se inscreva na grande jornada humana em busca do perene, daquilo que pode se igualar ou mesmo superar a criao divina. Ao sair caa da Cidade, Abel tambm est cercando a possibilidade de soluo desse conflito. Est atrs de uma resposta que,

    como veremos adiante, s se dar atravs de novos e sucessivos embates. As dvidas de Abel, acerca do mundo que habita e dos homens com

    quem ele compartilha esse mundo e essas incertezas, sero respondidas com outras indagaes, sempre mais complexas, quase intraduzveis. H uma esfinge no meio do caminho e para onde quer que ele se volte sua

    sombra o perseguir. Nessa primeira parte do percurso, nesse deslocar-se alucinado

    pela Europa, Abel indaga cidades. Amsterdam, Lausanne, Reims, Milo, Verona, Pdua, Amboise, Veneza, Paris, Ravena, Ferrara, Anturpia, Florena, Pisa, Roma, Npoles, Assis, Arezzo, Londres ... Se "a arte de

    'moldar' frases tem como equivalente uma arte de moldar percursos" 13, como quer Certeau, ali que Abel comea a construir o seu texto. Esboa-o na linha invisvel que liga uma cidade a outra, rabisca nos muros, nas paredes dos palcios, nos rios e trens que o transportam. Tnue, sua escrita se vai efetuando, um sentido qualquer se insinua,

    esttuas de tuas divindades so mais belas do que os prprios deuses; estes as admiram e gostariam de se assemelhar a elas. A natureza no podia criar deuses de to formoso semblante: s a imaginao do homem poderia construir imagens to admirveis. Reverenciem-nas: se as honra mais pelo prestgio da arte do que por sua pretendida divindade". Cit. in Bruyne, Estudios de esttica medieval, v. 2, p.ll4. 13 Certeau, A inveno do cotidiano, p. 179.

  • 25

    entrev-se a conexo entre um espao conquistado e aquele outro, inalcanvel; entre o texto possvel e o sonhado.

    Ao indagar cidades Abel tambm indagado. Em meio ao

    percurso, deixa-se invadir por elas, percorrido e abandonado. Descrevendo-as pretende recuper-las, aprision-las num texto para

    ento desvend-las, possu-las. Mas nem como personagens elas se submetem; h lacunas, intenalos e silncios em suas praas, em seus monumentos. As cidades no corpo de Anneliese Roos so vazias de

    gente. Embora edificadas por homens, elas perdem a dimenso humana quando estes esto ausentes - passam a compr um cenrio, grandioso,

    belo, mas saqueado. Marco Polo descreveu o esplendor e o mistrio das vilas e cidades orientais, mas em momento algum esqueceu dos homens visitados. Eles esto ali; h sete sculos vivem em seus escritos e habitam suas cidades. Continuam realizando suas oferendas, danando em suas grandes festas, negociando seus produtos. H sete sculos mantm o brilho e o encanto de suas casas e palcios.

    As narrativas de viagens foram se transformando ao longo de todo esse tempo, como se transfonnaram os itinerrios e os prprios viajantes. De Marco Polo, de q1em se dizia que "no houve cristo, nem sarraceno, nem pago, nem trtaro, nem homem algum de gerao alguma, que tanto tivesse visto

  • 26

    iluses foi deslocado, recambiado, transferido. Desapareceram os monstros legendrios, as grandes maravilhas, o absolutamente outro.

    Foram sendo substitudos, aos poucos, pelas descries naturalistas, pela cincia, pela coleta dos mitos, pelo prprio etnlogo.

    Abel resultado desse processo. Um homem do Novo Mundo que faz o caminho de volta. No o ndio, o bom selvagem, mas

    certamente ainda o outro. Branco e de olhos azuis, herana da invaso

    holandesa no nordeste brasileiro, ele atravessa os mesmos mares, tantas vezes antes navegados, para chegar a um territrio povoado de

    maravilhas; no as naturais, engendradas pelos deuses, mas aquelas que nasceram das mos dos homens. A Cidade buscada por Abel seria, ento,

    o equivalente humano do paraso terrestre perseguido pelos viajantes medievaisl 6 . E as descries que ele faz das cidades expressariam o

    mesmo xtase que os grandes navegantes sentiam, e relatavam, ao descobrir rios e pomares que lhes indicavam talvez a proximidade, talvez um reflexo do Jardiml7 - indcios.

    Descendente de Marco Polo e Mandeville, de Colombo, Ferno de Magalhes e Vasco da Gama, Abel transporta em si a nostalgia do paraso, irreprimvel e ancestral desejo de atingir o inalcanvel. Cmplice dos antigos, Abel no pode deixar de ser tambm solidrio com os modernos, com a sua desiluso diante dos vestgios de uma realidade que, eles sabem, no existe mais. "A viagem agora, mais do que

    16 "O tema do paraso um dos mais importantes da literatura de viagem na Idade Mdia. O paraso objeto de uma busca muito real e, se s vezes alguns viajantes afirmam que nunca chegaro l, outros continuam a acreditar nele". Kappler, Afonstros, demnios e encantamentos no fim da Idade Mdia, p. I 16. 17 ... ue se por ventura esse rio no sair do paraso, isso parecer ainda mais maravilhoso, pois no acredito que se tenha visto em todo o mundo outro rio to grande e to profundo" Colombo, cit. in id., p. 126.

  • 27

    nunca, coloca o viajante diante de um espelho: onde ele pensa encontrar o outro, v a si mesmo" 18. Deslocando-se de maneira meio alucinada pela Europa, Abel reconhece seu prprio reflexo, mas vira o rosto e prossegue, "vou e vou" (Av, 178). Insiste em buscar a Cidade, que se revelar, bem mais tarde, ptrida '~ contaminada.

    Mesmo sem querer, ou apenas sem saber, Abel constri um

    percurso que o levar de volta cisterna, de volta a si mesmo. A Europa, de promessa de encontro, desrz-se em novos pontos de partida, prenncio de outras descobertas. Viajando em busca de um texto futuro, Abel transportado a escritos pas:;ados, linhas borradas pelo tempo, que,

    no entanto, o carregam de volta para casa. Mais ou menos como Marco Polo, magistralmente atualizado Dor ltalo Calvino, explicava a Kublai Khan:

    quanto mais (ele] se perdia ere bairros desconhecidos de cidades distantes, melhor compreendia as outras cidades que havia atravessado para chegar at l, e reconstitua as etapas de suas viagens, e aprendia a conhecer o porto de onde havia zarpado, e os lugars familiares de sua juventude, e os arredores de casa, e uma pracinha de Veneza em que corria quando era crianal9.

    Mas nem por isso Abel ou Marco Polo viajam com os olhos voltados para trs. Seus itinerrio; se estabelecem atravs de escolhas, opes feitas ao longo da vida, no contnuo materializar-se das coisas. Passado e futuro se transformam ao longo da viagem, dando lugar a um presente que sempre imprevisto:

    aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado. era um passado que mudava medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerrio realizado, no o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante

    18 Massi, "O nativo e o narrativo", p. 193. 19 Calvino. As cidades invisveis, p. 28.

  • 28

    reencontra um passado que no lembrava existir: a surpresa daquilo que voc deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, no nos conhecidos20.

    Esse poder de reconstruo do passado, que o Marco Polo de Calvino auibui viagem, inerente narrativa. Dar ordem aos acontecimentos, emprestar-lhes sentido, redimensionar a existncia, dialogar com o passado. Talvez por 1sso Abel busque, concomitantemente Cidade, um texto: "onde est impresso ou se me

    cabe escrev-lo, no sei" (Av, 64). Percorrendo as ruas, bibliotecas e museus da Europa, ele volta s ladeiras de Olinda, s paredes do Recife, ouve o rufar dos tambores e o som das vozes de sua gente (Av, 76-7). Vazias, as cidades europias, as cidades que habitam o corpo de Anneliese Roos, so de alguma forma preenchidas pela memria de Abel. nesse momento que, ainda sem saber, ele comea a construir um outro percurso, em direo aos homens, em direo a Ceclia.

    Viajante moderno, Abel no poderia deixar de esbarrar em SI mesmo ao deslocar-se pela Europa. Mas um tropeo no um encontro, talvez apenas um sinal, um convite- novo ponto de partida. Encontrar-se, aqui, possu tantos sentidos quanto os tem a Cidade. Vai desde uma espcie de auto-conhecimento, a compreenso das prprias possibilidades e deficincias diante do mundo que o cerca, at a conquista de um espao seu no universo, aquele lugar no cosmos que lhe garante a imortalidade. E tudo isso, envolvido pela necessidade de realizao amorosa, sexual, literria, poltica ... So buscas que se vo entrecruzando, se sobrepondo. Abel no encontra a Cidade na Europa e tampouco se encontra quando finalmente a tem diante de si.

    20 Id., p. 28.

  • 29

    Ao contrrio de Anneliese Roos, que aquilo que representa, a

    Cidade smbolo do encontro. mas no o encontro em si. Ao se

    descortinar, j no final do livro, ela mostra sua face oculta, prfida: Contemplo a Cidade, raiosa e insulada, sobre o canavial, contemplo as guas imveis, os palcios brilhantes como quartzo, as colunas muito altas e, de sbito, como se tvesl:e nas mos um pssaro de plumagem sedosa e multicor, e, soprando-a, descobrisse no pssaro um animal escamoso, minado de piolhos, pstulas e vermes, a Cidade, sem nada perder da pompa visvel, revela o seu asco, a sua doena, suas camadas malficas, at aqui dissimuladas (Av, 41 0).

    Condenado, capturado pelo prprio devaneio, Abel grita seu desespero,

    "quanto erro em buscar essa Cidade nica" (Av, 412). S lhe resta, ento, destru-la.

    E ele a destri porque revela seu segredo, porque renega seu

    fascnio, quebra seu sortilgio. Escapando s suas muralhas, ele e 0

    atravessam o tapete da sala de estar - artefato humano, smbolo da

    tessitura romanesca - e se integram ao Paraso. Em suma, transpem

    aquele limiar do qual falava Abel e "ascendem, mediante novas relaes, ao nvel da fico" (Av, 179). Destruir uma cidade, segundo Mircea Eliade, equivale a uma regressilo ao Caos2 1 E s a partir do amorfo, do

    virtual possvel uma nova Criao, o recomeo. Fecha-se, assim, o

    crculo. A serpente - urboro - morde sua prpria cauda, evocando o

    "perptuo retomo, o crculo indefinido dos renascimentos, a repetio contnua, que trai a predominncia de um fundamental impulso de morte"22. Isso porque "a vida no pode ser reparada, mas somente

    recriada mediante um retomo s fontes"23

    21 Eliade, O sagrado e o profano, p. 47. 22 Chevalier e Gheerbrant, Dicionrio de simbolos. p. 923.

    23 Eliade, Mito e realidade, p. 33.

  • 30

    Cada uma das mulheres por quem Abel se apaixona encerra em si

    o processo inteiro da sua busca, ao mesmo tempo em que apenas uma

    parte dele. Ao ser abandonado por Roos, Abel j enxerga nela alguns dos aspectos da Cidade, que s se revelar mais tarde. O movimento de descoberta muito semelhante nas duas ocasies. No final do livro, Abel compara a Cidade a uma pequena ave cuja penugem, quando soprada, denuncia sua podrido. Com Roos, o suave toque na superficie da gua que delata o feio e o sujo:

    toco a pele fluida, de leve, docemente, o gesto de quem tentasse afagar, sem enrug-la. a superfcie da gua num recipiente, mas a gua revolve-se, a carne revolve-se, sucedem-se fontes - secas, limosas -, ruas esburacadas, pontes com parapeitos quebrados, casas desoladas margeando um lance de estrada de ferro. postes emaranhados de fos negros, fachadas de fbricas em runas, cheias de vidros poentos e partidos, lixo amontoado em terrenos baldios, canais infectos, jardins abandonados (Av, 188). Ainda assim, Abel prossegue. Obedece, desconhecendo, s

    ordens que o Unicrnio, em sonho, dava a Publius Ubonius, mais de dois mil anos antes: "caminhar sem trgua, no por exemplo em direo ao Norte, mas em espiral, sobre um mapa jamais visto, demarcado pelas cinco palavras simtricas" (Av, 94). na Itlia, na Biblioteca Marciana, que Abel encontra, por acaso, em meio a trezentos mil outros manuscritos, a verso grega de um longo poema mstico dedicado ao Unicrnio. "Seu fundo a espiral. Um dos temas, a busca do Nome" (Av, 220). O texto o mesmo cuja organizao o "autor" diz imitar "ponto por ponto" (Av, 96). Escrito por um contemporneo de Ubonius, o poema teria ficado inconcluso, mas esto l o quadrado mgico e a espiral, as letras e seus significados msticos.

    Eis, ai, a criatura diante do plano da criao.

  • A CATEDRAL

    Saindo em busca da Cidade, Abel encontra a estrutura da obra.

    Brincadeira de um autor que se quer deus, ou vestgio de solidariedade

    para com a criatura? O poema guardado na Biblioteca Marciana, com o

    palndromo e a espiral, uma espcie de mapa, talvez a planta baixa, no

    de um pas, ou de uma cidade, mas de uma catedral - uma catedral gtica.

    E sobre essa planta, uma proje:o e no um desenho feito a posteriori, que Abel se conduzir e ser conduzido. Avalovara possui um plano

    rigoroso, mas uma obra que se faz, lenta e cuidadosamente. O tempo

    escoa devagar em seu interior, vai, volta, quase pra. Na leitura de seus

    intervalos, deparamo-nos com um Abel que se impe, que tenta fazer

    parte do mundo que habita atravs da criao. Abel uma personagem, com um destino traado por um autor,

    mas, por alguma razo, lhe foi concedida a possibilidade de escolha. , ele tambm, responsvel pelo edi:Jcio que se ergue sobre a planta baixa.

    Talvez seja um desses pedreiros, r:1arceneiros, vidraceiros, escultores; um desses artistas que ainda podemos imaginar circulando pelos canteiros da obra, inspecionando, polindo detalhes, dando forma s pedras. So tantos

    os que passam por ali ... geraes que se sucedem enquanto a catedral se imortaliza, subindo, alargando-se, estendendo-se. Abel acompanha essa

    evoluo do comeo ao fim; e recomea e termina cada vez que um leitor

    abre o livro e mais uma vez percorre seus labirintos, suas sombras, seu

    colorido.

    31

  • 32

    Avalovara isso - uma catedral se fazendo. Por trs de sua

    aparente imobilidade, da lentido de alguns de seus deslocamentos, h

    um processo rapidssimo se desdobrando. Longe dos nossos olhos, no

    subsolo do romance, o construtor1 corre, mistura a massa, transpira,

    retalha as pedras, desenha e escolhe as cores, une as pontas que sobram.

    ali, em meio a um trabalho quase braal, que nasce a obra. Se a arte, como prope Toms de Aquino, imita a natureza no porque reproduz

    servilmente o que esta lhe oferece como modelo, mas sim porque copia

    suas operaes2, e se, como afirma Joo de Salisbury, ela concede a

    faculdade de abreviar o curso da natureza e antecipar seus resultados\

    Avalovara se ergue numa operao duplamente acelerada.

    O autor copia o processo de uma outra arte (a da construo) que, por sua vez, estaria imitando a operao da natureza, embora atuando

    com muito mais rapidez e agilidade que esta. Por isso mesmo, podemos dizer que Avalovara possui um movimento prprio, que comea a se

    formar em suas camadas mais profundas, d relevo e forma sua substncia, e acaba deixando vestgios inusitados e cambiantes em sua

    superficie. uma obra em constante transformao. Como uma das caractersticas da catedral gtica, apontada por Hauser, a inconcluso

    das formas, que faz com que tenhamos a "impresso de um conflito

    dramtico que procura decidir-se diante dos nossos olhos"4, ela jamais

    1 A imagem do "construtor" utilizada mais de uma vez por Osman Lins para designar o "autor!! do romance.

    2 Ver Eco. Arte e beleza na esttica medieval, p. 132. 3 Id. 133. 4 Hauser, Histria social da literatura e da arte, vol. 2, p. 324.

  • 33

    estar definitivamente pronta (fig. 1 ). A cada visita, a cada releitura, novas cores, perfis, novos detalhes, enfim, lhe sero acrescidos.

    Focillon dizia que um edifcio "planta, estrutura, combinao das massas, repartio dos efeitos" e que um arquiteto , "ao mesmo tempo e mais ou menos, gemetra, mecnico, escultor e pintor -gemetra na interpretao da rea espacial pela planta, mecnico pela

    soluo do problema do equilbrio, escultor no arranjo plstico dos volumes, pintor pelo tratamento da matria e da luz"5. Como estamos comparando Avalovara a um edifcio gtico, nada mais justo do que pensar sua construo como um processo arquitetnico dos mais sofisticados. No resolve todas as suas possibilidades, mas, sem dvida, ajuda a delimitar um espao de manobra para a compreenso do romance.

    Planta, estrutura, combbao de massas e repartio de efeitos em Avalovara podem ser interpretados com alguma clareza, desde que a metfora da catedral gtica no seja perdida de vista. Por outro lado, tambm preciso esclarecer que no se est pensando aqui num edificio esvaziado de significados. A ca:edral gtica uma obra de seu tempo, constituda dentro de um pensamento prprio a respeito da beleza, da verdade e da religio. um organismo que guarda, na solidez de suas pedras, sua prpria histria e a histria dos homens que a sonharam, ergueram, utilizaram. Por isso mesmo, a imagem da catedral no ser empregada neste estudo apenas como metfora para a construo do romance. Ao se apropriar de uma arte, ao integr-la no seu prprio fazer artstico, Osman Lins carregou junto o pensamento que a produziu.

    5 Focillon, Art d' occident, p. 58.

  • 34

    Assim, a planta em Avalovara o quadrado mgico e a espiral que o percorre. Impregnado de histria, esse desenho e suas implicaes

    vm fartamente documentados numa das linhas narrativas do romance6,

    onde o autor no se furta a utilizar metforas da arquitetura. Seja quando pergunta, por exemplo, como "fazer repousar a arquitetura de uma

    narrativa, objeto limitado e propenso ao concreto, sobre uma entidade ilimitada (a espiral] e que nossos sentidos, hostis ao abstrato, repudiam?" (Av, 17). Seja quando -j decidido a juntar a espiral a uma outra figura geomtrica techada, o quadrado, "evocadora, se possvel, das janelas, das salas e das folhas de papel" (Av, 19) - ele remete presena do "construtor", que exercer "uma vigilncia constante sobre o seu

    romance, integrando-o num rigor s outorgado, via de regra, a algumas

    formas poticas" (Av, 19-20). O quadrado, que "smbolo da terra por oposio ao cu, mas

    tambm, num outro nvel, o smbolo do universo criado, terra e cu, por

    oposio ao incriado e ao criador; a anttese do transcendente"7, liga-se

    aqui espiral, smbolo csmico, representao da fora criadora, da

    fecundidade, da transcendncias. Esse jogo entre o que se contradiz e o que se completa, marcado j na "planta" do romance, expande-se ao longo do livro, alcanando propores inusitadas. Talvez o exemplo mais

    bvio desse desdobramento seja a relao dplice vivida por 0 com ela mesma. Hospedando uma outra dentro de si, 0 abriga a contradio, o que faz dela um ser completo: "Olho-me duplamente, a noo que eu

    tenho da minha individualidade una, sinto-me uma, mas ao mesmo

    6 Em "A espiral e o quadrado". que dividida em apenas dez partes.

    7 Chevalier e Gheerbrant, Dicionrio de smbolos, p. 750.

    8 ld., p. 397-400.

  • 35

    tempo eu me sinto uma em cada uma que sou e nas duas simultaneamente" (Av, 169).

    S que a figura geomtrica utilizada pelo autor do romance,

    evocadora de janelas e folhas de papel, possu outras especificaes. No um simples quadrado, nele est assinalado um palndromo. Os

    quadrados mgicos9 - "um meio de captar e de mobilizar virtualmente um

    poder, ao encerr-lo na representao simblica do nome ou do

    algarismo daquele que detm naturalmente esse poder"10 - possuem

    origem remota. Sabe-se apenas que eram utilizados como uma espcie de

    amuleto. Sobre o palndromo Sator arepo, cuja criao, no romance, creditada a um escravo frgio qr.e pretendia obter com ele sua liberdade

    na Pompia de 200 a.C., h algumas hipteses e nenhuma certeza. Ele

    citado na obra de Plnio e, presume-se, tem origem celta11. Pode ter sido

    usado como amuleto de fertilids.de, ou "como um talism eficaz para a seduo de virgens" 12.

    Voltando a Focillon, a estrutura do livro est, de alguma forma,

    vinculada esttica medieval. Aqui, no se est falando simplesmente de um conjunto de arcos e nervuras que do sustentao ao edificio gtico.

    9 Em geral, os quadrados mgicos utilizam nmeros; a "mgica" obter sempre o mesmo resultado ao somar os nmeros de cada coluna, de cada linha e das duas diagonais. Num quadrado dito "normal", dado que cada lado possui n casas, haver n' casas ao todo, que sero preenchidas com os primeiros n' nmeros inteiros. Assim, um quadrado com 5 casas de cada lado ter um total de 5' = 25 casas e ser preenchido com os nmeros de l a 25. Embora vrias combinaes corretas sejam possveis para cada quadrado, o resultado da soma das colunas, das linhas e das diagonais o mesmo em todas elas, tendo o valor n(n' + l )/2. Os quadrados que no obedecem regra de utilizarem os n1 primeiros nmeros inteiros escapam, evidentemente, deste resultado. Ver Ghyka, Philosophie et mystique du nombre, p. 158.

    10 Chevalier e Gheerbrant, op. cit., p. 754. 11 Ver id., pp. 754-7. 12 Ghyka, Le nombre d'Or, tomo!, p. 165.

  • 36

    Mas de toda uma maneira de pensar e exprimir o belo, que passa do interesse pelos nmeros esttica da proporo, da harmonia, incluindo ainda o constante encanto exercido nos homens pela luz e pela cor. essa combinao inteira que d equilbrio ao romance; que faz com que os fragmentos que o compem - pedras polidas - no desmoronem, mas mantenham-se juntos formando uma obra compacta, una, ainda que absolutamente mltipla. O Avalovara, "ser composto, feito de pssaros midos como abelhas" (Av, 282), expresso desse equilbrio, metfora dessa vontade.

    A argamassa de Avalovara pode ser comparada quela que, segundo Focillon, formava a matria histrica da arte da Idade Mdia, ou seja, uma complexa mistura que junta "aos escombros da civilizao antiga, vestgios das culturas brbaras e contribuies do Oriente" 13 Esse tipo de composio, a um s tempo inusitada e necessria, plenamente aproveitado por Osman Lins. Seu romance se sustenta sobre o pensamento humano, sobre as diversas formas encontradas pelos homens para explicar o mundo que os cerca e a si mesmos. Se os "estetas" e filsofos da Idade Mdia reuniram o que lhes parecia vlido, Osman Lins, a seu modo, tambm o fez. Da sntese dos tericos medievais s idias de vanguarda da modernidade, quase tudo (como veremos mais adiante) de alguma maneira reinterpretado emAvalovara.

    Por outro lado, a combinao das massas, ou a "disposio plstica dos volumes", est intimamente ligada a uma das mais arraigadas concepes da beleza na Idade Mdia - a esttica da proporo. Os nmeros vm fascinando o homem desde sempre, mas

    13 Focillon, Art d' occident, p. 4.

  • 37

    possvel fazer um rastreamento das principais influncias dessa esttica

    entre os medievais. A metafisica do nmero e da proporo tem

    inspirao platnico-pitagrica'4; fixou-se no Cnon de Policleto ("o belo surge, pouco a pouco, de muit::>s nmeros")15, e atravs da sntese de seus conceitos feita por Galena ("a beleza no consiste nos elementos, mas na harmoniosa proporo das partes; de um dedo ao outro; de todos os

    dedos ao resto da mo ... de cada parte outra")16. Surgia, ento, segundo Umberto Eco, o "princpio fundamental da unidade na variedade"1 7 .

    Dois outros autores atavs dos quais a teoria das propores

    transmitida Idade Mdia so Vitrvio e Bocio. Do primeiro, os medievais iam buscar os tem10s proportio e symmetra ("simetria, em toda obra, dos elementos de uma determinada parte e do todo" e

    "harmoniosa concordncia dos elementos da obra e correspondncia das

    partes separadas de uma determinada parte imagem da figura inteira")18_

    J de Bocio, traziam a idia de que todas as coisas criadas so

    compostas por dois princpios. De acordo com o primeiro, permanecem

    idnticas a si mesmas; segundo o outro, se alteram e se desenvolvem de

    maneira contnua. O primeiro princpio seria o da unidade; o segundo, da

    multiplicidade. Um simbolizado pela mnada, de onde derivam os

    nmeros mpares e quadrados.; outro pela dada, dos nmeros pares e

    14 Bruyne, Estudios de esttica medieval, v. 1, p. 24. 15 Cit. in Eco, Arte e beleza na esttica medieval, p.45. 16 Cit. in id., pp. 45-6.

    17 ld., p.46.

    18 Cit. in id., ibid.

  • 38

    retngulos primeirosl9. "O primeiro princpio o princpio varonil, o outro, o princpio feminino. Um expressa a estabilidade, o outro, a

    variao incessante. Aqui se d a alterao e a mudana, l a potncia da

    imobilidade. Aqui o afluxo de uma multiplicidade indefinida, l a solidez bem determinada"zo.

    Todas as coisas senam, ento, formadas por dois princpios opostos que, para constiturem um organismo nico, teriam de se adaptar

    um ao outro "por um certo parentesco, certa amizade, certa harmonia"ZI.

    Portanto, a harmonia - que pode ser alcanada atravs dos nmeros, da

    perfeita combinao aritmtica - o que garante a unidade de algo que composto por qualidades opostas. Abel se mostra atento a isto quando, junto de 0, observa, demoradamente, a disposio harmoniosa dos pescadores sobre um cais em forma de T: "rege tudo isto um ritmo preciso e claro, uma simetria que, sabemos, o acaso nunca oferece e que os leves desequilbrios existentes fazem ainda mais tensa" (Av, 83).

    Em Avalovara, toda diviso de captulos, ou linhas narrativas -bem como sua subdiviso em ordem progressiva - obedece a clculos matemticos. Os nmeros e as figuras geomtricas (o quadrado, a espiraL o crculo) so responsveis pela distribuio das massas ao longo do romancezz.

    atravs dessa distribuio algbrica, desse sistema numrico que o autor consegue, depois, realizar sua repartio de efeitos, ou seja,

    19 Ver Bruyne, Estudios de esttica medieval, v. 1, pp. 24-5.

    20 Id., ibid.

    21 Id., p. 25.

    22 O prprio Osrnan Lins, em entrevistas, se reportava estrutura numrica da arte na Idade Mdia. A divina comdia, de Dante, seria a culminncia desta tendncia. Avalovara seria, entre outras coisas, urna homenagem ao poema de Dante. Lns, Evangelho na taba, p. 179.

  • 39

    o arranJo de cores e luzes. Osman Lins afirmava em entrevistas que

    gostaria de no mover jamais >eus personagens, preferia "apresent-los sempre em quadros fixos sucessivos como numa fotonovela de grandes propores". Uma vez que nem sempre dava certo, ele insistia para que, pelo menos, "a organizao das cenas tenda para Isso, para essa imobilidade"23.

    O efeito, comum tanto nas iluminuras medievais quanto nos

    vitrais gticos, pode ser encontrado no transcorrer de todo o romance. A longa cena do cais24, por exemplo, onde o movimento se faz quase

    imperceptvel e ainda assim ameaador, montada como um vitral -pequenos pedaos se encaixando, formando o quadro esttico: "Aqui, atravs dos fios e dos ns sr;mpre emaranhados das coisas, aqui, fragmentos dispersos associam-se e entre si estabelecem um nexo que evoca a seu modo as narrativas. As narrativas e os eclipses" (Av, 83).

    O vitral da catedral gtica , basicamente, cor e luz (fig. 2). Na verdade, toda a arte figurativa da poca "joga com cores elementares, com zonas cromticas definias e hostis esfumatura, com a aproximao de tintas vivas, que geram luz da harmonia do conjunto em vez de se fazerem determinar pnr uma luz que os envolva em claro-escuros ou faam destilar a cor alm dos limites da figura" 25. Mesmo na poesia medieval as cores so inequvocas, marcadas: vermelho, verde, alvo. "Existem superlativos para cada cor ( ... ) e uma mesma cor possui muitas gradaes, mas nenhuma morre em zonas de sombra. A miniatura

    23 Id., p. 178. 24 A cena do cais se estende por trs captulos; aparece nas pginas 82-4, 107-10 e 122-5.

    25 Eco, Arte e beleza na esttica medieval, p. 62.

  • 40

    medieval documenta, de modo bem claro, esta alegria pela aproximao

    de tintas vivazes"26. No sculo XII, os artistas no se "sentiam mais obrigados a

    estudar e a imitar as reais gradaes de tonalidades cromticas que

    ocorrem na natureza"27, estavam livres para escolher suas cores. Segundo

    Gombrich, foi justamente essa independncia diante do mundo natural que os habilitou a "transmitir a idia do sobrenatural"28. A cor em

    Avalovara tambm viva, brilhante. ressaltada na descrio das vestes que cobrem as mulheres, na vegetao, rios, cidades. A valo vara, o

    pssaro que visita 0, e que smbolo do romance, assemelha-se a um manuscrito iluminado (fig. 3):

    Nele, quase possvel ler. A cauda longa e curva, com reflexos de cobre. As asas, seis, de um tom verde celeste quando repousadas, ostentam na face interna, quando abertas, crculos de muitas cores, dispostos com simetria sobre fundo escarlate. ( ... ) Tranadas no seu peito, faixas e fitas roxas. Da delicada cabea, parecendo ornada com um diadema de pequenas flores e encimada por uma espcie de lngua, descem longas plumas muito claras, semelhantes a flmulas. Rosa brilhante o resto do corpo. Bico rubro e curto, olhos oblquos (Av, 281). Colorido tambm o tapete sobre o qual se deitam 0 e Abel.

    Outrora esmaecido, ele readquire fora e cor atravs de 0, "colhe-as de seus ps descalos" (Av, 337). Colorida a fauna que o habita, sua flora exuberante. Colorido o Paraso, cujo tapete representao e porta de entrada. Quase tudo em A valo vara possui cores fortes - vermelho, verde, azul, amarelo. O romance, como o pssaro que o sobrevoa, pretende ser

    to colorido e luminoso quanto os manuscritos ou os vitrais da Idade

    26 Id., ibid.

    27 Gombrich, A histria da arte, p. 136. 28 Id., ibid.

  • 41

    Mdia, com sua superposiiio de elementos, seu Jogo atemporal, sua fora sinttica.

    A luz impressiona os homens desde sempre e em todas as partes. Ela inspira mitologias e cosmogonias, fonte de beleza e de criaes

    artsticas. "Tanto no Gness como na ndia e na China, a operao cosmognica uma separao da sombra e da luz, originalmente confundidas"29 Para os msticos e filsofos medievais, a luz tem papel fundamental. Toda arte desse tempo inspirada nela. Basta lembrar que "a literatura da poca cheia de exclamaes de gozo diante dos fulgores

    do dia ou das chamas do DJgo" e que "a igreja gtica, no fundo, construda em funo de um irromper da luz atravs de uma abertura de estrutura" lo.

    At mesmo Deus celebrado pelos medievais como luz, fogo, fonte luminosa31. O Paraso de Dante feito quase que s de luz e msica: "E ao me volver, surpreso, por mirar/o que surgia na aura circundante/quanto nela possvel reparar,/um ponto vi de luz to fulgurante/que a minha vista se toldou, perdida/ irradiao do foco deslumbrame"J2 Dentre as vrias ascendncias dessa admirao da luz como algo positivo e bom, est Santo Agostinho, "em quem as influncias neo-platnicas se fundem com as numerosas aluses que faz a Bblia beleza da luz"ll.

    29 Chevalier e Gheerbrant, Dicionrio de smbolos, p. 568.

    30 Eco, Arte e beleza na esttica medieval, p. 64.

    31 ld., p. 65. 32 Alighieri, A divina comdia, v.2, p. 515.

    33 Bruyne, Estudios de esttica medieval, v. 3, p. 24.

  • 42

    Em meio sua busca, Abel se pergunta se "acaso no me espera,

    na Cidade procurada, a claridade - ou ento um objeto, um ser que a claridade constitua a substncia ou mesmo o avesso" (Av, 92). Ao mesmo tempo, quer saber se Ahab entregar-se-ia "a uma busca to

    obstinada se a baleia que o faz revolver sem descanso o Oceano fosse de

    uma cor azulada como os demais cetceos - e no branca" (Av, 92). A luz, absorvida e emitida pelo corpo de Anneliese Roos, para quem as

    plantas se voltam em recintos fechados (Av, 153), encanta Abel. Tambm ele, como os medievais, a persegue. Procura-a nas cidades em que

    desembarca, nos quadros de Rembrandt, de Van Gogh, no rosto da

    mulher amada. Reconhece-a no reflexo do sol nas guas de Veneza e

    entre as estreitas paredes da catedral de Notre-Dame.

    Essa exaltao luz prpria do estilo gtico. Segundo lie Faure, "tudo o que d catedral sua significao, tudo o que determina o seu aspecto, a irresistvel ascenso de suas linhas, o equilbrio das curvas

    que a elevam acima das cidades, tudo conduzido pelo desejo de luz( ... ). Jamais um edificio menos mentiroso acusou sua funo com tamanha

    inocncia"34. Por isso mesmo, em toda parte vitrais imensos por onde penetra o dia... a lgica do esqueleto, onde todas as presses so equilibradas e transmitidas, e a imagem do absoluto transportada para o ordenamento perecvel dos elementos dispersos da vida. Entre o arcobotaote e a abbada, o edifcio como uma carcaa de cetceo gigante suspensa no espao por grampos de ferro para que a luz possa atravess-la em todos os sentidos. Ele parece flutuar nos ares35.

    34 Faure, A arte medieval, p. 207.

    35 Id., p. 206. Essa idia de flutuao tambm expressa por Abel diante da catedral de N otre-Dame: "Aproximamo-nos da catedral, de tal modo iluminada que parece leve, a ponto de alar-se do solo e flutuar" (Av, 126-7).

  • 43

    A evocao da Jerusalm celestial no gratuita: "No curso da poca romnica, a idia, s veze. evocada pelos escritores, de um edifcio

    com muros de luz semelhante Jerusalm celeste do Apocalipse, construdo em pedras preciosas e translcidas, era materialmente irrealizvel em razo mesmo do sistema de estrutura dos monumentos. A

    vontade de chegar a esta realizao era, no entanto, manifesta, na fachada ocidental de Chartres ou na abside de Potiers"36. S um sculo depois, nas catedrais gticas, com suas paredes vazadas e seus imensos vitrais

    coloridos, poder-se-ia alcanar essa vontade, fazer esse edificio que

    flutua.

    Mas luz e cor nas catedrais gticas esto contidas, delimitadas por um material bem menos nobre - o chumbo, que

    no engaste somente, desenho, valor. Escreve poderosamente a forma e faz cantar o tom. Estes seres 2travessados pela luz no tm o ar de pertencer ao nosso mundo, so personagens de teofania, mortos gloriosos na sua Primavera eterna, cintilante, ligeira, que os compe com a sua prpria luz. Mas o trao vigoroso qne os engasta e percorre aproxima-os de ns. Esto estreitamente presos nesta rede sombria e flexvel. Sem os chumbos, no s veriamos desaparecer a energia da forma. como os tons cintilariam uns sobre os outros: as evidncias rad:.osas seriam substitudas por um crepsculo multicor37

    Na Idade Mdia, cor e luz significavam, entre outras coisas, ornamento, que, para Osman Lins, passaria a ser a marca da unio entre o homem e as coisas, entre o criador e o universo: "Conheo bem os perigos do ornamentalismo: a retrica, a afetao, a diluio do texto em lama de palavras. No importa. Ousar indispensvel e seria insensato desejar que surgissem, em qualquer campo das atividade humanas,

    36 Grodecki e Brisac, Le vitrail gothique au XIII siec/e, p. 22.

    37 Focillon, Art d' occident, p.248.

  • 44

    solues definitivas"38_ Em sua primeira viagem Europa, logo depois de ter escrito O fiel e a pedra, o autor ficou extremamente impressionado com as catedrais gticas e romnicas e, em especial, com os vitrais, que conseguiam extrair fora e beleza de suas prprias limitaes39. Uma opinio compartilhada por Focillon:

    A economia do vitral foi profundamente modificada pelo emprego do vidro branco em largas lminas frias, pela descoberta do amarelo de prata, pelos progressos da tcnica que permitiram passar a obter as grandes superficies de vidro colorido na espessura ( ... ). Os chumbos so menos necessrios, uma vez que as placas so mais vastas, a rede distende-se e desfaz-se, e esta magnfica escrita, vigorosa, entrelaada, mltipla, apaga-se pouco a pouco para dar lugar a formas que passam de um largo esquematismo herldico imitao da vida. A matria mesma adquire qualidades picturais que lhe retiram a rudeza, dando-lhe um carter precioso. ( ... ) Toda arte que perde a enrgica vontade de seus belos "defeitos" est beira de sua decadncia40.

    Avalovara pode ser comparado a um desses extraordinrios

    vitrais gticos, onde cada pedao de vidro, seccionado, vai sendo costurado pelo chumbo, compondo, aos poucos, figuras, movimentos, a obra inteira - uma arte que busca a integrao do homem ao universo a partir de uma viso globalizante de seu prprio processo criativo. Como os vitrais em seu auge na Idade Mdia, que no procuravam imitar a realidade, Avalovara um romance que se prope como tal, dentro de seus limites, dos empecilhos impostos a uma arte que depende muito mais da imaginao do leitor do que dos seus sentidos. Ele exibe inclusive sua estrutura, aquilo que corresponderia aos pequenos pedaos

    de chumbo retorcidos dos vitrais- seus "belos defeitos".

    38 Lins, Guerra sem testemunhas, p. 212.

    39 Ver Lins, Evangelho na taba, p. 212. 40 Focillon, Art d'occident, pp. 252-3.

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    E, tambm como os vitrais, um livro que constri sua unidade sobre o plural, mas permitindo sempre o atravessar da luz. A clareza em Avalovara milimetricamente estudada -justamente pelo que o romance tem de sinttico e expressivo. Tudo muito direto e visual no livro, e o

    pouco que foge disso tem como proposta mesmo ser obscuro4J - talvez uma daquelas tiras de chumbo, que impedem a entrada do sol, mas que

    conferem mistrio obra. Da Idade Mdia, tambm, Osman Lins buscou o carter aperspectivo de sua obra - uma tentativa ntida de romper com

    "a condio carnal do olho hu:nano, de ver atravs de um ponto de vista espiritual"42, destitudo de qualquer anteparo fixo, limitado.

    Foi o Renascimento que descobriu, a partir de seu prprio antropocentrismo, a noo da perspectiva nica. At ento, o teocentrismo medieval trabalhava com a idia de que o mundo tem o centro em toda parte e a c:.rcunferncia em lugar nenhum, porque circunferncia e centro eram Deus, que est em toda parte e em lugar nenhum. Com isso, os mediev2js estabeleciam uma viso de mundo com mltiplas dimenses do real, que podia ser enfocado de diferentes ngulos, fornecendo inesgotveis fisionomias complementares, como pode ser observado nas iluminuras e afrescos da poca (fig 4).

    Mas, apesar de toda essa comunho com as idias da Idade Mdia, Avalovara no , nem poderia ser, uma obra "medieval". O romance apenas utiliza recursos, meios, modos de pensar da Idade Mdia. E tudo isso permeado pelo pensamento de outras pocas, outros

    4! "Sempre que eu percebia haver alguma obscuridade de sentido, alguma impreciso de sentido, quantas horas levei para que esta impreciso desaparecesse. A no ser em casos muito especiais. onde a obscuridade era um meio de expresso. Mas ai era para ser entendido como obscuridade". Lins, Evangelho na taba, p. 217.

    42 Id., p. 215.

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    ideais estticos, outras maneiras encontradas pelo homem de se ver no mundo.

    No entanto, o pensamento medieval percorre Avalovara. E isso aparece no s em relao sua estrutura, como a uma maneira muito peculiar de apreender o belo e de alegorizar o mundo. Todo o romance est impregnado pela "polifonia do pensamento"43 que, segundo Huizinga, embebia o cotidiano da Idade Mdia. Como lembra Eco, o

    homem medieval "vivia, efetivamente, em um mundo povoado de significados, referncias, supra-sentidos, manifestaes de Deus nas

    coisas, em uma natureza que falava continuamente uma linguagem herldica, na qual um leo no era s um leo, uma noz no era s uma noz, um hipogrifo era real como um leo porque, como este, era signo, irrelevante existencialmente, de uma verdade superior"44.

    Essa maneira de ver e se relacionar com o mundo era uma espcie de "reavivamento, atravs de uma nova sensibilidade ao sobrenatural, do sentimento do maravilhoso que a tardia antigidade clssica j havia perdido h tempo"45. Eco explica essa tendncia mtica, essa elaborao de um vasto repertrio simblico, como uma reao imaginativa ao sentimento da crise (da angstia e da insegurana que determinavam a condio humana na Idade Mdia), uma vez que, na viso simblica, "a natureza, at em seus aspectos mais temveis, toma-se o alfabeto com o qual o criador nos fala da ordem do mundo( ... ). As coisas podem inspirar desconfiana em sua desordem, em sua transitoriedade, em sua aparncia

    43 Huizinga, El otolio de la Edad Media, p. 281. 44 Eco, Arte e beleza na esttica medieval, p. 72. 45 Id., ibid ..

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    fundamentalmente hostil; mas a coisa no o que parece, signo de algo diverso"46.

    O cristianismo primitivo, procurando escapar s perseguies, usava smbolos. Escondia a figura do Salvador, por exemplo, sob a aparncia do peixe. Essa traduo simblica dos princpios da f

    transformar-se-ia, aos poucos num processo pedaggico que exploraria os processos mentais tpicos da Idade Mdia. "A mentalidade simbolstica inseria-se curiosamente no modo de pensar do medieval, acostumado a proceder segundo uma cadeia de causas e efeitos. Falou-se de curto-circuito do esprito, do pensamento que no procura a relao

    entre duas coisas seguindo as volutas de suas conexes causais, mas a encontra com um salto brusco, ccmo relao de significado e objetvo"47.

    Nessas atribuies simblicas, h sempre a necessidade de um esforo interpretativo. Afinal, para entender uma alegoria preciso entender suas correspondncias e fru-las esteticamente. O medieval, segundo Eco, fascinado por esse princpio, uma vez que

    as alegorias aguam o esprito, reavivam a expresso, adornam o estilo. ( ... ) , de fato, uma exigncia inconsciente de proportio a que induz a unir as coisas naturais s sobrenaturms em um jogo de relaes contnuas. Em um universo simblico tudo est no prprio lugar, porque tudo se corresponde, as contas so exatas, uma relaiio de harmonia faz a serpente semelhante virtude da prudncia e a correspondncia polifnica das referncias e dos sinais to complexa que a mesma serpente poder equivaler, sob outro ponto de vista, figura de Satans. Ou ento uma mesma realidade sobrenatural, como o Cristo e sua Divindade, poder ter mltiplas e multiformes criaturas a significar sua presena nos lugares mais diferentes, nos cus, nos montes, nos campos, na floresta, no mar, como o cordeiro, a pomba, o pavo, o carneiro, o grifo, o galo, o lince, a palma, o cacho de uva48.

    46 Id., pp. 72-3. 47 ld., p. 73. 48 Id., p. 75.

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    a "polifonia do pensamento", da qual falava Huizinga: "Um nexo harmnico une sem interrupo todas as e