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1 Os saberes e práticas dos camponeses para conservação das sementes crioulas no Brasil: perspectivas de autonomia e resistência camponesa 1 Viviane Camejo Pereira 2 Fábio Kessler Dal Soglio 3 Na agricultura industrial as sementes têm sido apropriadas pela indústria fazendo com que os camponeses dependam do mercado e sejam vulneráveis a mudanças no sistema produtivo, acarretados pelas mudanças climáticas. A mobilização e resgate dos conhecimentos dos agricultores camponeses permitem a resiliência dos agroecossistemas. São necessárias iniciativas de resgate dos saberes sobre a conservação in situ das sementes crioulas que atuam na resistência camponesa. São trazidos casos brasileiros: Sementes da Paixão na Paraíba e Guardiões de Sementes Crioulas do Rio Grande do Sul em que os camponeses se mobilizaram, buscaram formas de enfrentamento às alterações climáticas, autonomia e resistência camponesas. Introdução Atualmente, as formas como as tecnologias e os conhecimentos chegam até o meio rural se dá de várias maneiras. Porém, muitas delas visam certa homogeneização da construção de conhecimentos em torno da gestão dos recursos da propriedade rural. Esta homogeneização é fortemente influenciada pela ciência positivista dos centros de pesquisas e pelas universidades bem como pela agricultura industrial expressa pelas grandes empresas que estudam e produzem sementes transgênicas e insumos químicos. Essa homogeneização responde às demandas do mercado, porém, se perde a diversidade dos conhecimentos específicos a cada cultivo, a cada clima, a cada contexto e a cada propriedade rural. Foi essa diversidade de conhecimentos que permitiu o desenvolvimento das práticas agrícolas desde a dominação humana sobre a produção de alimentos. Desde o início da prática da agricultura, os bens naturais como a terra, a água, a luz solar tiveram seus sistemas de funcionamento observados e integrados a 1 Este trabalho faz parte de tese de doutorado em construção no PGDR/UFRGS. Agradecemos ao CNPq que por meio da chamada 81/2013 está viabilizando esta pesquisa. 2 Bióloga. Mestre e Doutoranda em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. Correo: [email protected] 3 Ph.D., Professor Faculdade de Agronomia e Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, UFRGS. Coordenador da Rede de Núcleos de Agroecologia do Sul do Brasil. Correo: [email protected]

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Os saberes e práticas dos camponeses para conservação das sementes crioulas no

Brasil: perspectivas de autonomia e resistência camponesa1

Viviane Camejo Pereira2

Fábio Kessler Dal Soglio3

Na agricultura industrial as sementes têm sido apropriadas pela indústria fazendo com

que os camponeses dependam do mercado e sejam vulneráveis a mudanças no sistema

produtivo, acarretados pelas mudanças climáticas. A mobilização e resgate dos

conhecimentos dos agricultores camponeses permitem a resiliência dos

agroecossistemas. São necessárias iniciativas de resgate dos saberes sobre a

conservação in situ das sementes crioulas que atuam na resistência camponesa. São

trazidos casos brasileiros: Sementes da Paixão na Paraíba e Guardiões de Sementes

Crioulas do Rio Grande do Sul em que os camponeses se mobilizaram, buscaram

formas de enfrentamento às alterações climáticas, autonomia e resistência camponesas.

Introdução

Atualmente, as formas como as tecnologias e os conhecimentos chegam até o

meio rural se dá de várias maneiras. Porém, muitas delas visam certa homogeneização

da construção de conhecimentos em torno da gestão dos recursos da propriedade rural.

Esta homogeneização é fortemente influenciada pela ciência positivista dos centros de

pesquisas e pelas universidades bem como pela agricultura industrial expressa pelas

grandes empresas que estudam e produzem sementes transgênicas e insumos químicos.

Essa homogeneização responde às demandas do mercado, porém, se perde a diversidade

dos conhecimentos específicos a cada cultivo, a cada clima, a cada contexto e a cada

propriedade rural. Foi essa diversidade de conhecimentos que permitiu o

desenvolvimento das práticas agrícolas desde a dominação humana sobre a produção de

alimentos.

Desde o início da prática da agricultura, os bens naturais como a terra, a água, a

luz solar tiveram seus sistemas de funcionamento observados e integrados a

1 Este trabalho faz parte de tese de doutorado em construção no PGDR/UFRGS. Agradecemos ao CNPq

que por meio da chamada 81/2013 está viabilizando esta pesquisa. 2 Bióloga. Mestre e Doutoranda em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, Porto Alegre, Brasil. Correo: [email protected] 3 Ph.D., Professor Faculdade de Agronomia e Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural,

UFRGS. Coordenador da Rede de Núcleos de Agroecologia do Sul do Brasil. Correo: [email protected]

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manipulação das sementes em processos heterogêneos. No Brasil, a modernização da

agricultura iniciada no século XIX e vivida até hoje, integra as sementes neste processo

a partir da industrialização. A indústria de sementes tem operado em escala global e o

Brasil apenas reflete a situação mundial. As sementes industriais estão presente em

vários âmbitos da agricultura brasileira seja por meio das sementes híbridas ou

transgênicas. O uso dessas sementes compromete a soberania alimentar e nutricional do

povos ignorando os conhecimentos camponeses sobre as sementes crioulas resistentes e

incorporando a realidade rural sementes que carregam consigo toda tentativa de

homogeneização tecnológica da agricultura capitalista.

As sementes são essenciais na alimentação humana, tanto a semente em si que

alimenta seres humanos e animais, quanto às plantas que elas geram. Diferentes grupos

sociais almejam o domínio das sementes, seja no âmbito da conservação e da soberania

alimentar e nutricional quanto no âmbito do comércio industrial. O fato é que dominar

as sementes significa dominar a humanidade, pois sem elas e outros bens naturais como

a água e a terra não há alimento saudável e consequentemente há a vulnerabilidade dos

grupos humanos que ficaram de fora deste processo.

Essa vulnerabilidade pode-se agravar ainda mais com as atuais mudanças do

clima que cada vez mais são perceptíveis em todo o mundo. Nesse sentido é preciso

buscar a resiliência das sementes, a partir da seleção de sementes resistentes e

adaptáveis à instabilidade climática. Neste processo de resiliência, as sementes crioulas,

cultivadas a partir dos conhecimentos dos camponeses têm respondido a esta demanda.

As sementes atualmente carregam consigo conhecimentos advindos dos erros,

acertos e compartilhamento de práticas e saberes entre agricultores em que os processos

de manipulação obedecem à lógica e aos conhecimentos dos agricultores. Outras formas

de conhecimentos advindos de experimentos científicos e cruzamentos genéticos feitos

em laboratório obedecendo a lógica homogeneizante produtivista do mercado em

universidades e centros de pesquisa também compõem a atualidade da produção de

sementes.

Como forma de traçar uma trajetória que culmine na importância dos saberes e

práticas dos camponeses para conservação das sementes crioulas no Brasil como

mecanismos de autonomia e resistência camponesa optou-se por dividir este trabalho

em cinco partes além da introdução e considerações finais. A primeira seção A

modernização da agricultura no Brasil, traz elementos para a compreensão do contexto

em que a discussão acerca das sementes está inserida. Contextualiza-se o processo de

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modernização da agricultura brasileira apontando para lógica produtivista da agricultura

industrial que viabilizará a industrialização das sementes. Na segunda seção tratar-se-á

sobre a industrialização das sementes a partir do contexto mundial que refletirá no

Brasil. Na terceira parte A insustentabilidade da agricultura industrial de commodities

em tempos de mudanças climáticas infere-se que a agricultura industrial baseadas nos

pacotes tecnológicos e produção de commodities não pode dar respostas às mudanças do

clima sendo incapazes de assegurar a resiliência. Na quarta parte traz-se a necessidade

do resgate dos saberes e práticas dos camponeses para a resiliência criando

possibilidade para a autonomia e a resistência camponesa. Na quinta seção é trazida a

experiência das sementes da paixão na Paraíba, Brasil em que os agricultores

camponeses buscam mecanismos de autonomia e resistência por meio da valorização e

resgate dos seus conhecimentos a fim de obter a resiliência do agroecossistema na

predominância da seca. Em seguida, na sexta seção demonstra-se a iniciativa dos

guardiões de sementes crioulas no sul do Brasil também como exemplo de autonomia e

resistência camponesa. Por fim, são trazidas algumas considerações finais.

1 A modernização da agricultura no Brasil

A fim de aumentar a produtividade, a rentabilidade agrícola, e a

homogeneização e expansão dos domínios das nações consideradas desenvolvidas, o

setor agrícola nos anos 60, empregou grandes somas em créditos agrícolas,

incorporando insumos considerados modernos, tecnificando e mecanizando o processo

produtivo integrando-se aos processos internacionais de comercialização. (Palmeira,

1989). Estes processos acompanharam as tendências tecnológicas internacionais. No

que se refere à mudança tecnológica, a modernização da agricultura no Brasil na visão

de Tambara (1985), é a concretização das concepções dualistas e difusionistas na matriz

tecnológica na agricultura. A concepção do dualismo tecnológico ou multiplicidade

tecnológica são estágios de modernização em que existiria a co-existência na produção

comercial de agricultores, de tecnologias tradicionais e modernas. Já o enfoque

difusionista de acordo com Tambara (1985), defende a necessidade de transferência de

tecnologia e de padrões culturais de regiões que se encontrariam mais “adiantadas” ou

desenvolvidas para as mais “atrasadas” ou em desenvolvimento.

A mudança da base tecnológica da agricultura em direção a um processo

crescente de integração com a indústria transformou o cenário da agricultura brasileira.

A modernização da agricultura embora consolidada nos anos 60 passou por um

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planejamento de décadas, preparando o cenário nacional. As discussões acerca de uma

mudança na matriz tecnológica na agricultura brasileira foi iniciada na República Velha

brasileira (1889- 1930) a partir do diagnóstico do atraso da agricultura. Nesse período o

governo brasileiro tinha por meta “construir produtores capazes de responderem aos

estímulos do mercado, racionalizando e atualizando a vocação agrícola do país.”

(Mendonça, 1995: 79). Os projetos educacionais e racionalizadores da produção, de

acordo com Mendonça (1995), perpassaram toda República Velha com o intuito de

“regenerar o homem e elevar ao máximo a produtividade tornando-a cada vez mais

tecnificada, parecem ter sido as metas da preconizada agricultura científica.” (1995: 83).

A industrialização iniciada na República Velha toma força na Era Vargas4 (1930- 1945)

e com os incentivos da ditadura militar (1964- 1985) a fim de fomentar a Revolução

Verde no Brasil nas décadas de 60 e 70 e, intensifica-se o uso intensivo de insumos

industriais. Abriu-se a agricultura brasileira ao uso de sementes híbridas e as

geneticamente modificadas, para a mecanização e a diminuição dos custos de transação.

Este processo culminou na chamada “modernização conservadora5” em que a

desestruturação dos complexos rurais deu lugar aos complexos agroindustriais (CAIS).

(Mielitz- Netto, et al., 2010).

De acordo com Palmeira (1989), a modernização da agricultura no Brasil se deu

sem que houvesse uma mudança na estrutura fundiária brasileira mantendo e

aumentando a concentração de terras. Segundo Guimarães: “Como a concentração

agroindustrial passou a exigir capitais centralizados em tão grande vulto que as

organizações individuais não eram capazes de mobilizar, as empresas individuais e

familiares deram lugar a empresas societárias, em que as sociedades anônimas

constituem a forma típica.” (Guimarães, 1979: 85). Além da transformação das

propriedades que possuíam caráter empresarial familiar em sociedades anônimas,

verificam-se outros processos descritos por Palmeira (1989) que reforçam a noção de

modernização conservadora: “(...) a propriedade tornou-se mais concentrada, as

disparidades de renda aumentaram, o êxodo rural acentuou-se, aumentou a taxa de

exploração da força de trabalho nas atividades agrícolas, cresceu a taxa de auto-

4Era Vargas é o período da história do Brasil entre 1930 e 1945, quando o país estava sob a liderança do

ex- presidente Getúlio Vargas. 5Modernização conservadora- termo adotado por analistas da economia brasileira para designar a

modernização da agricultura imposta pela ditadura militar no Brasil em 1964. De acordo Pires e Ramos

(2009), os economistas designaram assim este período em que no Brasil houve uma maior intensidade da

penetração das forças produtivas capitalista na agropecuária brasileira.

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exploração nas propriedades menores e piorou a qualidade de vida da população

trabalhadora do campo. “(PALMEIRA, 1989: 87).

Estes processos, na visão do autor, configuram-se na expropriação do

campesinato, caracterizada pela pressão modernizadora que atuou de forma a

desvalorizar o saber- fazer camponês. Sobre o termo expropriação do campesinato, de

acordo com o autor: “Trata-se menos de despojamento dos trabalhadores rurais de seus

meios de produção, pois destes, de alguma maneira, já haviam sido ou sempre

estiveram expropriados, mas de sua expropriação de relações sociais, por eles vividas

como naturais, que tornam viável sua participação na produção e sobre as quais, por

isso mesmo, exercem algum controle que se traduz num certo saber- fazer.” (Palmeira,

1989: 89).

A expropriação dos saberes camponeses trazida por Palmeira em 1989

constituem um conjunto de transformações na agricultura que até hoje possuem reflexos

na constituição do agrário brasileiro. As consequências dos processos de modernização

da agricultura desde a República Velha consolidou-se por meio do projeto de

modernização do Brasil e de integração internacional culminando na abertura da

economia agrícola brasileira às corporações internacionais, no aumento da concentração

fundiária6 e na agricultura capitalista de commodities, sendo as sementes um destes

produtos agrícolas destinados à exportação.

2 A industrialização das sementes

A industrialização das sementes foi um processo que se tornou possível a partir

das experiências científicas do monge austríaco Gregory Mendel no século XIX.

Mendel, a partir de experimentos genéticos com ervilhas, descobriu a capacidade de

transferência de características genéticas das plantas. Assim, por meio de cruzamentos

em laboratório obteve plantas híbridas, que mantém características genéticas das

distintas variedades de plantas que lhe deram origem. Estas também sofrem mutações

descontroladas que podem acarretar até mesmo na esterilidade da planta. Essa

descoberta possibilitou o início de experimentos genéticos, as sementes VAR

(Variedade de Alto Rendimento) com fins industriais - o processo de industrialização

6 “A concentração de terra no Brasil é uma das maiores do mundo. Menos de 50 mil proprietários rurais

possuem áreas superiores a mil hectares e controlam 50% das terras cadastradas. Cerca de 1% dos

proprietários rurais detêm em torno de 46% de todas as terras. Dos aproximadamente 400 milhões de

hectares titulados como propriedade privada, apenas 60 milhões de hectares são utilizados como lavoura.

O restante das terras está ociosas, sub-utilizadas, ou destinam-se à pecuária. Segundo dados do Incra,

existem cerca de 100 milhões de hectares de terras ociosas no Brasil.” (DHNet, 2010: 1).

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das sementes. (Shiva, 2003). Esta manipulação das sementes VAR permite selecionar

características desejáveis às plantas como maior produtividade ou resistência a um

determinado estado climático, desde que estável. Porém apresentam características

prejudiciais à agricultura camponesa. De acordo com Cordeiro (2004), as plantas

híbridas na primeira geração costumam a se reproduzir com eficiência, já nas seguintes

gerações, não fazendo com que os agricultores não possam guardar suas sementes tendo

que comprá-las a cada safra.

No século XX, foi fundada a Pioneer Hi- Bred nos Estados Unidos, primeira

indústria de sementes de milho híbrido. (Cordeiro, 2004). Em seguida constrói-se a

proposta de Revolução Verde da Fundação Rockfeller7 com o apoio do Banco Mundial,

impondo pacotes tecnológicos e agendas de pesquisa para a “modernização da

agricultura”. A Revolução Verde foi imposta à sociedade como forma de garantir

alimentos em quantidade e baratos que pudessem alimentar o mundo em quanto as

potencias mundiais se recuperavam do pós II guerra mundial. Esta política foi planejada

como uma ação estratégica pensada pela Fundação Rockfeller a partir da visita de

Nelson Rockfeller ao México em 1946, o mesmo fundador das empresas Pionner Hi-

Bred, como já comentado, a primeira indústria de milho híbrido. Em 1971 este projeto

teve o apoio do empresariado mundial com a participação de 18 empresas

multinacionais como a Ford, Kellogs e principalmente da Fundação Rockfeller. Este

apoio consolidou-se com a criação da CGIAR- Consultative Group for International

Agricultural Research, contanto também com o apoio da Organização das Nações

Unidas FAO (Food and Agriculture Organization), Fundo Internacional de

Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e PNUD (Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento). Atualmente a CGIAR possui 54 membros e 15 centros de pesquisa.

(CGIAR, 2013, Gutiérrez, 2003). No entanto, tanto nos países considerados ricos

quanto nos países considerados mais pobres economicamente, houve a marginalização

das práticas e saberes dos agricultores camponeses em todo o mundo.

No Brasil as pesquisas genéticas com plantas foram incentivadas por Dom Pedro

II em meados de 1859, mas só em 1920, por influência da discussão sobre agricultura na

Europa e Estados Unidos, é fundado pelo Ministério de Agricultura brasileiro o Serviço

de Sementes. Conforme Cordeiro (2004), os primeiros experimentos brasileiros com

7A Fundação Rockfeller em conjunto com a Monsanto Corporation, a Fundação Syngenta e o governo da

Noruega, Fundação Bill e Melinda Gates da Microsoft Corporation, a Dupont e a Pioneer Hi- Bred

criaram em 2006 o banco de sementes para o fim do mundo, cujo nome oficial é Svalbard Global Seed

Vault localizado na ilha Spitsbergen no arquipélago de Svalbard, no ártico.

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sementes híbridas foram feitos nos anos 30. Em 1945 fundou-se a Agroceres com o

apoio da Universidade Federal de Viçosa e em 1965 instala-se no Brasil a primeira

empresa multinacional, a Cargill. A partir daí, outras multinacionais vão sendo

instaladas no Brasil a partir da compra de outras empresas menores. A Agroceres

fundada em 1945 foi incorporada a Monsanto em 1997. (Cordeiro, 2004; França-Neto,

1998). Em 2007, a Monsanto se torna uma das 3 maiores empresas multinacionais que

atuam no ramo da biotecnologia e com sementes seguida da Dupont, Syngenta. (Quadro

1).

Quadro 1- Top 10 Seeds Company- “As 10 maiores companhias de sementes em 2007”.

Company – 2007 Seed sales (US$ millions) % of global proprietary

seed market

Monsanto (US) $4,964m 23%

DuPont (US) $3,300m 15%

Syngenta (Switzerland) $2,018m 9%

Groupe Limagrain (France) $1,226m 6%

Land O' Lakes (US) $917m 4%

KWS AG (Germany) $702m 3%

Bayer Crop Science (Germany) $524m 2%

Sakata (Japan) $396m <2%

DLF-Trifolium (Denmark) $391m <2%

Takii (Japan) $347m <2%

Top 10 Total $14,785m 67% [of global proprietary seed

market]

Fonte: ETC Group In: GM Watch. Disponível em:< http://www.gmwatch.org/gm-firms/10558-the-

worlds-top-ten-seed-companies-who-owns-nature>. Acesso em: 24 out. 2013.

O principal ramo da biotecnologia em que atuam essas empresas é na

transformação genética- os OGM’s – Organismos Geneticamente Modificados. Dentro

desta área da engenharia genética está a produção de sementes transgênicas (1983)-

conhecidos por PGM’s- Plantas Geneticamente Modificadas. (Testart, 2011). No Brasil

atualmente existem quatro cultivos transgênicos destinados a exportação: soja, milho,

algodão e canola. Estas sementes são manipuladas geneticamente para conferirem

resistência a certos agrotóxicos, sendo assim, é possível utilizar herbicidas em uma

plantação de soja sem danificá-la. (Londres, 2000). Comumente estas plantas também

passam a ter sua estrutura genética (re)combinada, inclusive com estruturas de DNA de

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outras plantas que não cruzariam no ambiente natural, a fim de conferir tamanho,

formato ou cor que esteja sendo solicitada pelo mercado.

Atualmente, o debate a acerca dos transgênicos, está centralizado nos riscos em

torno da manipulação genética das plantas e suas relações com o ecossistema. Dentro

desta relação podemos inserir a relação com a sociedade e a natureza. Existem diversos

debates quanto aos riscos à saúde humana e de outros animais, como por exemplo, em

relação à recombinação do DNA de células animais com material genético da planta

transgênica, à resistência animal a antibióticos, à potencialidade de deformação de fetos.

Também debate-se entre os movimentos sociais e a academia a biosegurança em relação

às interações entre as espécies na medida em que sementes transgênicas acabam por

cruzar com plantas não transgênicas transferindo seu material genético. De acordo com

Nodari e Guerra (2001: 81):

A adição de um novo genótipo no ecossistema ou de sua transferência e expressão

em outras plantas pode proporcionar vários efeitos indesejáveis, como o

deslocamento ou a eliminação de espécies não domesticadas, a exposição de

espécies a novos patógenos ou agentes tóxicos, a geração de plantas daninhas ou

pragas resistentes, a poluição genética, a erosão da diversidade genética e a

interrupção da reciclagem de nutrientes e energia.

O debate acerca da sustentabilidade ambiental coloca em questão as sementes

transgênicas que além dos riscos relacionados à saúde humana, colocam em risco a

autonomia dos agricultores, já que as sementes transgênicas são patenteadas e por sua

utilização são cobrados royalties.

A crescente industrialização da sociedade originou uma séria de transformações

nas relações sociais econômicas e políticas desconsiderando as relações humanas e o

ambiente. O processo de modernização da agricultura e a industrialização das sementes

são projetos políticos e econômicos que não visam à adaptação à mudança dos

contextos ambientais mundiais, cabendo a sociedade repensar alternativas que

assegurem a alimentação saudável e ecológica como formas de garantir a segurança

alimentar e nutricional. Sendo assim, as comunidades rurais criam seus próprios

mecanismos de resiliência e possuem capacidades para isso por meio dos saberes e

práticas desenvolvidos ao longo de seus acertos e erros, de suas experiências.

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3 A insustentabilidade da agricultura industrial de commodities em tempos de

mudanças climáticas

De acordo com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC,

2007), as mudanças climáticas se tratam de qualquer mudança no clima ao longo do

tempo, seja ocasionada por ação antrópica ou causa natural independente da ação

humana. Já a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima

(CQNUMC) define as mudanças climáticas como sendo as mudanças no clima

ocasionadas pela ação humana, seja de forma direta ou indireta influenciando a

alteração da composição atmosférica (IPEA, 2010). Nesse sentido as mudanças

climáticas teriam por agente causador a ação antrópica, sendo a ideia de natureza

perpassada direta ou indiretamente pelas atividades da sociedade. O quarto relatório de

avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indica que a

agricultura será afetada pela instabilidade climática como a alteração da temperatura

média, precipitação, ventos e aumento da variabilidade climática associada com maior

frequência à gravidade dos eventos extremos como secas e inundações. (Campbell et al.,

2011). Essas alterações influenciarão especificamente a produção de alimentos. Ainda

de acordo com Campbell et al., (2011), até 2050 na África Subsaariana 56% das

colheitas serão afetadas negativamente enquanto na Ásia será em torno de 21%. A

mudança climática poderá afetar a distribuição e fornecimento de alimentos, como

também alterar os preços e a produção agrícola, mudando também as dinâmicas do

mercado agropecuário global.

Para Santilli (2009), ao longo da história do planeta já ocorreram várias

alterações climáticas independentes de fatores antropogênicos, como por exemplo, os

ciclos de glaciações. Porém, há poucas divergências entre os pesquisadores que

contestem o atual aquecimento global como uma mudança climática potencializada

pelas atividades humanas. Dentre as atividades, tem-se a queima de combustíveis

fósseis que contribui com cerca de 80% dos gases emitidos na atmosfera- os gases do

efeito estufa e os 20% restantes oriundos dos desmatamentos e queimadas entre outras

atividades que desgastam os solos. De acordo com Pinto et. al., (2010), o Brasil gera 5%

das emissões globais de carbono (aproximadamente 2,2 bilhões de toneladas de CO2)

que contribuem para o efeito estufa, em decorrência na maior parte, de queimadas e

desmatamentos. (Pinto et al., 2010). Em relação às emissões de gases que contribuem

para o efeito estufa, no Brasil as principais atividades poluidoras estão relacionadas à

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mudança no uso da terra, de uma atividade extrativista, por exemplo, para a criação de

gado (59,3%) seguido da agricultura (23,7%). (IPAM, 2010).

O aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera poderá elevar

a temperatura e uma maior precipitação está prevista para os próximos anos. As

mudanças climáticas poderão impactar significativamente as atividades econômicas

brasileiras, em especial a produção de alimentos. (Féres et al., 2007).

Para Margulis e Dubeux (2010), o Norte e o Nordeste do Brasil são as regiões

com maior vulnerabilidade às mudanças climáticas no Brasil. Na região nordeste, as

chuvas tenderiam a diminuir 2-2,5 mm/dia até 2100, o que acarretaria a diminuição de

cultivos agrícolas e das pastagens, e consequentemente, dificultaria o pastoreio e a

criação de animais. Enquanto as previsões apontam para um clima mais seco e quente

para a região norte e nordeste, no sul do país a tendência seria de temperaturas mais

amenas. (Margulis e Dubeux, 2010). Por meio destas informações, pode-se inferir que

em alguma medida, poderia ser favorecido o cultivo de espécies adaptadas a climas

mais amenos e, em contra partida, desfavorecer os cultivos que atualmente já estão

adaptados às temperaturas mais baixas, configurando uma mudança na atual geografia

alimentar.

Ao mesmo tempo em que setores da sociedade buscam alternativas que

poderiam ser mais viáveis ambientalmente, também se pode estar fomentando

problemas ambientais, econômicos e sociais ainda mais graves na medida em que a

racionalidade das formas de produção não se alteram. A manipulação genética e a

mecanização da maneira como são empregadas nos métodos convencionalizados pela

Revolução Verde mundial têm-se mostrado insustentáveis, porém em relatórios como

do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) ainda defende-se e recomenda-se

uma racionalidade de uma agricultura capitalista industrial.

De acordo com Margulis e Dubeux (2010), as modificações genéticas e a

mecanização seriam alternativas altamente viáveis para amenizar as consequências das

mudanças no clima na produção de alimentos. Porém, sobre esta afirmação, há de se

considerar que as modificações genéticas, os transgênicos, por exemplo, e a

mecanização já são empregadas pelo agronegócio brasileiro, sendo a mecanização uma

das metas de desenvolvimento do governo federal desde os anos 1930. Em todos estes

anos, observa-se a elevação da produtividade do agronegócio brasileiro e o aumento da

sua participação no PIB, dados estritamente econômicos que não contabilizam os

prejuízos sociais e ambientais gerados. Diante deste crescimento, não são considerados

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os danos irreversíveis, os problemas sociais e ambientais irreparáveis que este modelo

de agricultura sugerido por Margulis e Dubeux (2010) tem ocasionado, principalmente

aos agricultores familiares.

O aumento da produtividade do agronegócio brasileiro não vem acompanhado

pelo aumento da sustentabilidade socioambiental, ao contrário, as principais atividades

agrícolas que alavancam os dados de produtividade estão relacionadas à exportação de

commodities agrícolas. Por sua vez, a produção e exportação de commodities agrícolas,

como; milho, trigo, arroz, algodão, soja, farelo de soja, óleo de soja, carne bovina,

frango e carne suína, sujeitam-se à financeirização do mercado capitalista, à

especulação e ao grande agronegócio, a um cassino global e não à alimentação das

populações mais carentes (Shiva, 2012). O aumento da representatividade do

agronegócio brasileiro no PIB do país8 tende a aumentar, fomentando a participação de

investidores nacionais e internacionais, segundo a revista Valor Econômico (2012).

Segundo Lopes (2012) em 2022 o Brasil deve se consolidar como líder mundial em

commodities agrícolas.

O capital que gira em torno das commodities, não contabiliza também os

prejuízos sociais, como a exclusão de milhares de pessoas que não acessam a uma

alimentação saudável e com qualidade nutricional, ou que nem mesmo acessam

alimentos. Pode-se citar ainda os prejuízos prováveis relacionados a privação de renda e

de liberdade, de condições que assegurem expandir as capacidades humanas (Sen,

2000). Neste contexto os agricultores camponeses se tornam cada vez mais dependentes

do mercado, bem como do pacote tecnológico de commodities como o fumo e a soja. O

monocultivo da soja está em expansão no sul do Brasil, principalmente em regiões de

agricultura familiar fazendo com que estes agricultores se sujeitem a produzir conforme

as negociações que faça com as empresas, com a obrigatoriedade do uso de sementes

geneticamente modificadas e uso de agrotóxicos. Este modelo suscita a dependência à

agricultura capitalista contribuindo para a perda de autonomia dos agricultores, seja no

âmbito produtivo e econômico como em relação ao gerenciamento da propriedade e do

seu tempo.

Segundo o dossiê de alerta ao uso de agrotóxicos no Brasil desenvolvido pela

Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), em 2011, a média do consumo

8 Segundo dados do CEPEA, a participação do agronegócio no PIB nacional teve um aumento de

21,78% em 2010 para 22,74% em 2011, ou seja, em 2010 e 2011 houve um crescimento acumulado do

PIB do agronegócio nacional em 13,51%. (RURALBR, 2012).

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de agrotóxicos no Brasil foi de 4,5 litros por habitante. (Carneiro, 2012). O trabalho do

Centro Estadual de Vigilância em Saúde de acordo com as projeções baseadas em

informações coletadas acerca da safra 2009/2010, indicou que o estado do Rio Grande

do Sul na época consumiu 85 milhões de litros de agrotóxicos no Estado, cerca de 8,3

litros de agrotóxicos a cada ano.

Os gastos com pesticidas agrícolas no Brasil superaram a casa dos US$ 2,7

bilhões por ano. No Brasil, entre 1993 e 1998 esta taxa foi de 6,7% ao ano. Dados da

ANDEF – Associação Nacional dos Defensivos Agrícolas (que atualmente trocou o

nome para Associação Nacional de Defesa Vegetal) dão conta de que em 1999 as

vendas totais de agrotóxicos no Brasil foram superiores a 288.000.000 de kg de

produtos comerciais, o que significou um valor total de vendas na casa dos US$

2.329.067.000 (ANDEF, 2003).

Do ponto de vista ambiental, um dos graves problemas causado pelos

agrotóxicos está relacionado com a quantidade de embalagens contaminadas que

acabam sendo jogadas em mananciais aquáticos e ao solo. Segundo a ANDEF, mais de

300 milhões de embalagens de agrotóxicos foram consumidas entre 1987 e 1997. Em

média, seriam 30 milhões por ano. Outro dado que é bastante conhecido no meio rural,

inclusive no Rio Grande do Sul, é a probabilidade de relação entre intoxicação por

pesticidas (ditiocarbamatos, por exemplo) e a ocorrência de casos de suicídio, incluindo

a relação do uso de agrotóxicos com a ocorrência de malformações de fetos humanos.

Sendo assim, a problemática ambiental é apenas um dos aspectos da lógica que permeia

o uso intensivo de agroquímicos e sementes transgênicas. Os dados anteriores

apresentados demonstram a insustentabilidade. O modo como a agricultura vem sendo

desenvolvida tem causado danos tanto ambientais quanto a própria sociedade, não

conseguindo preservar e nem conservar o ambiente, gerando uma instabilidade de

perspectivas futuras de continuidade dos bens ou recursos naturais, dos quais a

humanidade depende para sobreviver. A noção de insustentabilidade ambiental do

desenvolvimento atrelado ao crescimento econômico teve início nos anos 70 com

Primeira Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável,

promovida em 1972 pela ONU, em Estocolmo. (Freitas et al., 2012). O conceito de

desenvolvimento sustentável foi apresentado pela primeira vez de forma institucional,

pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD) criada

pela Assembleia Geral da ONU nos anos 80. Esta comissão apresentou em 1987, o

relatório Nosso Futuro Comum, também conhecido como Relatório Brundtland. (Freitas

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et al., 2012). Nele o desenvolvimento sustentável foi conceituado como o [...] o

desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a capacidade

das gerações futuras de suprirem suas próprias necessidades” (CMMAD, 1991: 7). Os

Estados Unidos e outros países considerados desenvolvidos, mantém níveis de consumo

e de degradação ambiental que necessitaria de vários planetas Terra para poder sustentá-

los sem acabar com os bens ou recursos ambientais dos quais necessitam para

sobreviver.

O modelo insustentável da tecnologia agrícola poderia responde a alterações

pontuais do clima, porém, em meio à insegurança das mudanças climáticas que poderão

ainda ocorrer, a agricultura baseada em insumos industriais e sementes geneticamente

modificadas não será capaz de assegurar a soberania alimentar dos povos, já que, esta

agricultura não obedece ao processo natural de evolução e consequentemente não há a

adaptação das espécies às alterações climáticas e sim, a resolução de problemas de

ordem imediata. Dessa forma este modelo traz insegurança alimentar ao pressupor as

tecnologias e os insumos sob o controle das empresas e da lógica produtiva da

agricultura capitalista. As mudanças climáticas estão associadas ao aumento das

ameaças à segurança alimentar (Beddington et al. 2012). Nesse sentido, a FAO em seus

relatórios recentes incorporou medidas relacionadas a criação de políticas públicas e a

readequação dos padrões de consumo como forma de enfrentar a instabilidade do clima

com vistas a segurança alimentar (Beddington et al, 2012: 21). Conforme as

recomendações acima da FAO pode-se inferir a necessidade de valorização dos saberes

e práticas dos camponeses a fim de fomentar a conservação dos recursos genéticos a

partir dos conhecimentos dos agricultores.

4 As práticas e saberes camponeses como alternativa de resiliência

De acordo com Belussi e Pilotti (2000) o conhecimento prático tende a ser

altamente tácito em sua natureza enquanto o conhecimento codificado ou conhecimento

científico está relacionado à compreensão teórica e os princípios científicos. O

conhecimento tácito diz respeito ao conhecimento construído socialmente por meio de

mecanismos objetivos e subjetivos. Os mecanismos objetivos podem ser exemplificados

pelo estudo, pela incorporação de verdades científicas e práticas conscientes em que o

agricultor racionaliza determinados saberes e práticos com o intuito de aprendizado,

podendo se dar por meio de um dia de campo com um técnico ou extensionista rural,

por exemplo. O conhecimento subjetivo é racionalizado a partir das experiências e

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práticas cotidianas e pode se tornar objetivado. Os agricultores camponeses estão

imersos em um conjunto de fatores que permitem a construção de conhecimento de

forma cotidiana, por meio de suas experiências de vida e seus experimentos com acertos

e erros permitindo uma construção coletiva em que os conhecimentos são

compartilhados e aprimorados durante as gerações. Os agricultores camponeses utilizam

estratégias que permitem mobilizar conhecimentos a fim de lhes permitir a resiliência de

seus sistemas produtivos em tempos de vários climáticas consecutivas, em um curto

espaço de tempo.

De acordo com Altieri e Nicholls (2013) como estratégias camponesas podem-se

citar a manutenção da diversidade genética, os policultivos e pluriatividades e

agroflorestas, o aproveitamento da água, a conservação do solo. Ainda pode-se citar no

caso brasileiro a pluriatividade em que os agricultores combinam atividades agrícolas e

não agrícolas a fim de manter a renda familiar e a conservação dos recursos locais

permitindo a regeneração do agroecossistema por meio das dinâmicas ecológicas e de

sazonalidade, permitindo o não-uso intensivo da terra. A mobilização dos

conhecimentos locais abarcam a coletivização dos saberes e práticas camponeses que

são úteis principalmente nas comunidades em que a extensão rural é escassa ao mesmo

tempo em que as respostas precisam ser rápidas, o que ocorre em diversas regiões do

Brasil.

Segundo Altieri e Nicholls (2013: 9), a resiliência pode ser definida como a

“propensalidad de um sistema de retener su estructura organizacional y su productividad

trás uma pertubación”. No Brasil, os agricultores camponeses mobilizam seus

conhecimentos em torno da conservação de suas sementes, o que contribui para a

resiliência ao clima. Dar-se-á dois exemplos em que a mobilização de conhecimentos

tácitos contribui para a conservação das sementes crioulas ou tradicionais. As sementes

da paixão na Paraíba demonstram que apesar das dificuldades climáticas enfrentadas

pelos agricultores é possível na região, a garantia da soberania alimentar dos

agricultores por meio do cultivo de suas próprias sementes e pela utilização de seus

próprios recursos. Já no Rio Grande do Sul, tem-se a experiência dos guardiões de

sementes crioulas em que os agricultores camponeses agem como guardiões da

agrobiodiversidade sendo responsáveis pela manutenção, perpetuação e dispersão de

sementes crioulas essenciais a soberania e a segurança alimentar e nutricional.

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5 As sementes da paixão na Paraíba, PB, Brasil

As sementes da paixão foi uma iniciativa de agricultores paraibanos em conjunto

com a AS-PTA em 1993, junto ao projeto de desenvolvimento local do Agreste da

Paraíba em uma região de alta biodiversidade e agricultura familiar. O termo sementes

da paixão foi criado pelos agricultores, para designar as sementes nativas, e o termo

paixão se refere à semente desejada para cultivar, e que expressam o equilíbrio e a

harmonia com o ambiente e a cultura regional. (Almeida e Cordeiro, 2002).

O agreste Paraibano é uma área entre a Zona da Mata e o Sertão no nordeste do

Brasil. É uma região semi- árida com predominância do bioma caatinga com vegetação

de savana estépica. Predominam as altas temperaturas, regiões de chuvas escassas e

pequenas áreas úmidas e brejos nas regiões baixas em que se desenvolve a agricultura.

A mesorregião do Agreste paraibano é uma das quatro mesorregiões do estado da

Paraíba e é formado pela união de 66 municípios.

A agricultura no semiárido nordestino é bastante diversificada. Os agricultores

desta região utilizam-se dos bens ambientais locais e por meio da observação

desenvolvem estratégias de manejo da biodiversidade, criando estratégias que diminuem

os riscos da instabilidade climática. A maior adversidade ambiental enfrentada pelos

agricultores camponeses da região é a limitação da água. A região do agreste paraibano

possui duas estações bem definidas: o inverno com períodos de chuva e o verão com

longos períodos sem chuva. A região também pode ser caracteriza pelas secas, em que

os períodos de escassez de chuvas podem durar mais de 2 anos. De acordo com Almeida

e Cordeiro (2002) as secas geram problemas relacionados à alimentação, pois os longos

períodos sem chuva diminuem drasticamente a produção agropecuária não havendo em

certas regiões, alimentos para consumo humano e nem para consumo animal. É comum

nesta região, observar a migração das famílias em busca de água que levam consigo

sementes para alimentação. De acordo com as autoras “isso coloca em xeque o plantio

da safra seguinte e aumenta os riscos de erosão genética das variedades locais”

(Almeida e Cordeiro, 2002: 25).

A conservação das sementes crioulas para plantio e alimentação se dá por meio

de conhecimentos transmitidos através das gerações e com o apoio das políticas

governamentais locais de incentivo ao resgate dos conhecimentos sobre conservação das

sementes. De acordo com Almeida e Cordeiro (2002: 21), os agricultores camponeses

ao longo das décadas guardam suas próprias sementes e possuem práticas de

conservação da diversidade agrícola “como adaptação e seleção de materiais, troca e

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experimentação de recursos genéticos. Aliada aos materiais há a mobilização e a

perpetuação do conhecimento sobre a biodiversidade, sem o qual não seria possível o

uso”.

A manutenção da tradição neste caso, mantém a autonomia dos agricultores

propiciando ações de resistência à entrada de técnicas e insumos externos nas

propriedades camponesas como previa a modernização da agricultura no Brasil e a

Revolução Verde. A conservação in situ e o manejo ecológico adequado às

especificidades do semiárido garantem sementes resistentes às secas e altamente

produtivas, a estocagem de sementes garantem a alimentação da família e o excedente é

voltado à comercialização em feiras locais. A estratégia do mercado das feiras locais

garante que os agricultores comercializem pequenas quantidades de seus produtos.

(Almeida e Cordeiro, 2002).

A modernidade discutida na academia, principalmente no que tange ao meio

urbano, também gera consequências no campo. Não só devido às políticas de

modernização da agricultura no Brasil, mas também pelas dinâmicas atuais que o

Estado tem adotado a fim de fortalecer o controle dos recursos naturais e evitar o

agravamento de uma “crise” ambiental e alimentar brasileira. Os agricultores paraibanos

comumente não possuem a propriedade da terra trabalhando de arrendatários ou

agregados nas terras dos “patrões”. Esse fator fragiliza a autonomia dos agricultores

visto que a produção gerada, nesses casos, precisa ser destinada ao pagamento pelo uso

da terra, sendo assim, as sementes são plantadas e colhidas para alimentação e também

como moeda de troca, muitas vezes sem sobrar sementes para uso no próximo ano.

Assim, alguns agricultores se vêm na dependência das sementes dos seus “patrões”. De

acordo com Almeida e Cordeiro (2002), as políticas governamentais que são

implementadas pelos setores de pesquisa, extensão e crédito rural, não exercem uma

contribuição significativa para transformar essa situação. As políticas vêm em forma de

normatização, fazendo com que os agricultores sejam obrigados a adotar certas

tecnologias a fim de estarem aptos ao pagamento do crédito, contrapondo as formas

tradicionais de conservação que tem contribuído para o estabelecimento das famílias

rurais no campo.

A padronização genética legitimada pelas leis desvalorizam a cultura local por

meio de um apelo a garantias de qualidade e normas sanitárias, muitas vezes criando

situações em que os agricultores são obrigados a aderir o uso de sementes

geneticamente modificadas. Essas sementes não passam pelo processo de seleção

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natural que permite a colheita de sementes aptas aos ecossistemas específicos dos

municípios paraibanos. Os laboratórios de centros de pesquisa, como da Embrapa

conveniada ao governo brasileiro, destinam recursos que não precisariam ser utilizados

caso as políticas orientassem outro modelo de desenvolvimento, em que as estratégias

de conservação in situ dos agricultores fossem protagonistas. De acordo com

Almekinders e Louwaars (1999), a seleção da semente in situ, realizada manualmente

pelos agricultores, complementa a seleção natural no sentido de selecionar as espécies

com maior resistência a algumas doenças e a fatores climáticos. A seleção de algumas

características, realizada através dos conhecimentos empíricos dos agricultores ano a

ano auxilia para uma maior eficácia do que apenas a pressão da seleção natural.

A presença da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) nos

grupos de conservação de sementes crioulas é recorrente em todo o Brasil. No Rio

Grande do Sul, a Embrapa atua na catalogação genética das sementes crioulas e na sua

distribuição aos agricultores. No Brasil discute-se acerca da propriedade intelectual das

sementes e inclusive existem Leis que favorecem a apropriação privada, mas que

encontram dificuldades de implementação devido às pressões populares.

Existem as Leis de Sementes e de Cultivares que são oriundas de acordo

internacionais de 1994, na Rodada do Uruguai, em que o Acordo GATT previa uma

seção específica sobre propriedade intelectual. Por meio deste acordo, os países são

obrigados a aprovar leis para proteção de cultivares, sendo as discordâncias penalizadas

pela Organização Mundial do Comercio. As leis brasileiras criadas nos anos 90 são: a

Lei de Patentes (Lei nº 9.279 de 15.05.96); Lei de Cultivares (Lei nº 9.456 de 28.04.97)

e a Lei de Sementes (Lei nº 10.711 de 05.11.2003). No Brasil, as iniciativas dos

movimentos sociais, alguns políticos e organizações, garantiram a produção, a troca e a

comercialização de variedades de sementes crioulas sem precisarem ser registradas.

A Lei de Sementes brasileira privilegia o sistema formal de sementes (sistema

industrial comercial) em detrimento dos sistemas informais (sistemas locais e

tradicionais). De acordo com Santilli (2012), a Lei de Sementes brasileira exclui os

agricultores não têm condições de adquirir sementes ou que optam por usar suas

próprias sementes, adaptadas às condições ambientais e resilientes às variações

climáticas. As espécies e variedades que não são interessantes para a produção

industrial comercial também são marginalizadas.

O privilégio ao sistema industrial de sementes caracterizado principalmente

pelas restrições ao uso, conservação e acesso das sementes pelos agricultores. Porém, as

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sementes transgênicas, por exemplo, tem tido seu uso fomentado por meio de políticas

públicas como o Troca- troca de sementes no Rio Grande do Sul. Atualmente, os

guardiões de sementes têm sofrido pressões tanto por questões geográficas, em que as

propriedades vizinhas que usam sementes de milho transgênico acabam por contaminar

as sementes crioulas por meio da dispersão e polinização do milho; tanto pelas políticas

como o Troca- troca. Políticas públicas como essa em vigor no Rio Grande do Sul ao

disseminarem as sementes transgênicas acabam por contaminar as lavouras suscitando a

necessidade de mecanismos de autonomia na produção de sementes e resistência em

manter a produção das variedades locais ou crioulas.

6 Os guardiões de sementes crioulas no Rio Grande do Sul, Brasil: o

fortalecimento de mecanismos de resistência e autonomia camponesa.

O Rio Grande do Sul é um estado ao extremo sul do Brasil. Faz divisa com a

Argentina e o Uruguai e com o estado de Santa Catarina. O estado caracteriza-se pelo

clima subtropical, com as quatro estações bem definidas e chuvas regulares a exceção

dos períodos de seca e estiagem no verão, que atualmente são cada vez mais frequentes

e duradouros, assim como por outro lado no inverno as enchentes provocadas pelo

aumento das precipitações das chuvas.

No evento Conferência sobre Mudanças Climáticas da Assembléia Legislativa

do RS em 2011, o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, colocou

que o Rio Grande do Sul faz parte dos cinco estados mais afetados pelas mudanças do

clima no Brasil. Segundo o pesquisador, as ondas de calor são cada vez maiores e mais

frequentes no estado (Hendges, 2011).

De acordo com Castro et al, (2003) há diferenças em relação às estiagens e secas

embora no senso comum as duas palavras signifiquem longos períodos de falta de

chuvas. Para Castro et al (2003),

Nas estiagens, ocorre uma queda dos índices pluviométricos para níveis

sensivelmente inferiores aos da normal climatológica, comprometendo

necessariamente as reservas hidrológicas locais e causando prejuízos a agricultura e à

pecuária. (...) a seca é uma estiagem prolongada, caracterizada por provocar uma

redução sustentada das reservas hídricas existentes. (Castro et al, 2003: 55, 59).

Sendo assim, as estiagens seriam menos intensas que as secas por terem menor

intensidade e devido ao menor período de duração. Embora as estiagens serem menos

intensas elas ocorrem com maior frequência no campo tendo consequências na

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produção agropecuária perceptíveis pelos aumentos dos preços dos alimentos ao

consumidor bem como a escassez de alguns causando mudanças na economia regional

(Souza Junior et. al, 2012).

Frente a essas variações climáticas ocorridas no Rio Grande do Sul, a

experiência dos guardiões de sementes permite a descoberta e a manutenção de

inovações produzidas pelos agricultores camponeses no sentido de permitir mecanismos

de resistência a agricultura capitalista e suas formas de agronegócio. Os guardiões de

sementes crioulas são experiências que exemplificam o que Scott (1985) vai chamar de

formas cotidianas de resistência camponesa. A resistência se dá de diferentes maneiras e

também diferentes níveis. Ela é política, mas nem sempre é racionalizada no sentido de

ser pensada com este propósito ou planejada. Os agricultores familiares camponeses

possuem distintas práticas e atitudes que ao serem subjetivados todos os dias lhes

permitem resistir frente aos modelos de agricultura capitalista. Muitos agricultores não

conseguem inserir-se no mercado capitalista, porém, no caso dos agricultores que

resistem a consolidação de práticas e conhecimentos em torno da produção e

comercialização de alimentos, por exemplo, não se dá pela necessidade devido a não

inserção, mas pelas formas alternativas que estes agricultores desejam, pelo sentimento

da não necessidade de comercializar com intermediários, por exemplo. A resistência

cotidiana se dá inclusive quando os agricultores camponeses possuem um leque de

opções e de forma consciente, muitas vezes a partir de mecanismos subjetivos, como a

coesão social, optam por formas alternativas de comercialização como o comércio

direto em feiras e práticas ambientalmente e socialmente sustentáveis de manejo dos

recursos naturais na propriedade. Este é o caso dos guardiões de sementes crioulas que

apesar do assédio das grandes empresas de comércio de sementes convencionais e

transgênicas, e da falta de incentivo governamental e de políticas públicas de crédito

para produção de sementes crioulas, ainda assim as cultivam, reproduzem, guardam e

trocam sementes com outros agricultores. De acordo com Bevilaqua (2014: 101), “os

guardiões são os principais atores na funcionalidade da agrobiodiversidade,

principalmente nesse período de mudanças climáticas acentuadas pelo qual estamos

passando”. Nesse sentido, os guardiões ao resistirem a agricultura capitalista, estão

construindo mecanismos de autonomia ao desenvolverem práticas agroecológicas

resilientes às mudanças do clima.

A autonomia se dá como consequência da resistência, e também em um processo

retroalimentado, em que resistência e autonomia se complementam. As tecnologias e

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práticas cotidianas construídas a partir dos conhecimentos tácitos dos agricultores

camponeses promovem autonomia diminuindo a dependência da agricultura capitalista.

Almeida (2009) remete a autonomia camponesa no sentido da auto- organização

no campo da produção. Verifica-se nos casos de Guardiões de Sementes mapeados no

Rio Grande do Sul, que de fato, a auto- organização produtiva, tendo a autonomia total

ou parcial em relação a produção e conservação das sementes tradicionais locais

contribui para todo processo da organização produtiva.

Em estudo sendo realizado pelos autores deste trabalho no Programa de Pós-

Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

Brasil, verificou-se até o momento (maio, 2014), a partir de entrevistas realizadas com

entidades que trabalham no fortalecimento dos Guardiões, a confirmação dos seguintes

pressupostos de Almeida (2009) sobre algumas condições que permitem aos

agricultores camponeses um ganho de autonomia: a) o domínio de um saber camponês

específico; b) o domínio de certos instrumentos próprios de produção; c) a possibilidade

de melhor organizar o tempo de trabalho; d) um maior espaço de manobra na

diversificação das atividades da família no contexto da produção. Estas condições

trazidas por Almeida (2009) remetem às motivações que fazem com que os agricultores

continuem a resgatar e conservar suas sementes crioulas.

O espaço de manobra, principalmente frente às mudanças do clima, como a

estiagem no Rio Grande do Sul, varia conforme os distintos contextos políticos e

econômicos. No entanto, as sementes crioulas agregam maleabilidade ao processo

produtivo, visto a resistência das sementes e a resiliência dos agroecossistemas; a não

necessidade de compra das sementes e dependência do pacote tecnológico empresarial;

a diminuição das despesas; a não submissão dos agricultores à tecnologia das empresas

de sementes e a qualidade nutricional da família e dos animais da propriedade.

O domínio do saber acerca da produção de sementes de variedades tradicionais

ou locais permite ao agricultor por meio da conservação in situ, ter a autonomia na

organização do seu trabalho e também a resiliência dos agroecossistema a partir de

práticas tradicionais e do uso de sementes locais, mais adaptáveis e resistes às mudanças

do clima. Sob a perspectiva da conservação, os agricultores que lidam com as sementes

através dos saberes e prática agroecológicos, além de terem uma maior autonomia em

relação às indústrias de sementes convencionais, adquire também maior independência

do mercado de insumos selecionando sementes com variabilidade genética cada vez

mais vigorosa e adaptada ao solo e ao clima locais. (CS, 2000).

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De acordo com Almekinder e Niels (1999), a seleção da semente in situ,

realizada manualmente pelos agricultores, apóia a seleção natural no sentido de

selecionar as espécies com maior resistência a algumas doenças e a fatores climáticos. A

seleção de algumas características, realizada através dos conhecimentos empíricos dos

agricultores ano a ano auxilia para uma maior eficácia do que apenas a pressão da

seleção natural. Segundo Altieri (2003), a diversidade genética que resulta das práticas

dos conhecimentos tradicionais: “[...] aumenta a resistência contra doenças que atacam

certas variedades de cultivo e possibilitam que os agricultores explorem diferentes

microclimas e obtenham múltiplos usos nutritivos ou outros da variação genética das

espécies (Altieri, 2003: 162).

Nesse sentido, as práticas e saberes agroecológicos dos agricultores camponeses

sobre a produção de sementes crioulas podem cumprir o papel de resistência na medida

em que reafirmam os conhecimentos tradicionais auxiliando na manutenção do fluxo

genético e das peculiaridades destas plantas resistentes às mais diversas condições

climáticas aos quais estão adaptadas.

Considerações finais

Este trabalho teve por intenção chamar atenção para a valorização dos saberes e

práticas dos camponeses para a conservação da agrobiodiversidade para a resiliência dos

agroecossistemas em tempos de mudanças climáticas. No Brasil já são possíveis de serem

visualizados alguns eventos que ainda estão sendo discutidos se corroboram ou não no

contexto das mudanças do clima. No nordeste se agravam as estiagens, secas e enchentes

que são percebidos há muitos anos fazendo com que os agricultores tenham buscado seus

mecanismos de sobrevivência. No sul do Brasil as estiagens e as secas têm ocorrido de

formas mais frequentes e a experiência dos guardiões de sementes crioulas no estado são

mecanismos de autonomia e resistência camponesa como também essenciais à resiliência

dos agroecossistemas.

A figura 1 a seguir expressa a resistência biológica do milho crioulo em meio ao

clima seco no Rio Grande do Sul. Mesmo em meio à falta de água e de solo adequado as

sementes se mostram aguerridas e tem nos agricultores e agricultoras familiares camponeses

e nos seus conhecimentos o respaldo à continuidade da vida.

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Figura 1: Milho crioulo brotando em beira de estrada em Maquine, RS.

Fonte: Foto de Viviane Camejo. Verão/2014.

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